Estréia|Estréia 2018: Cultivemos a arte de escutar e acompanhar

Estreia 2018

Senhor, dá-me desta água” (Jo 4,15)

CULTIVEMOS A ARTE DE ESCUTAR E ACOMPANHAR



Caros irmãos e irmãs da Família Salesiana no mundo,


como tradição, apresento a Estreia no final do ano às nossas irmãs Filhas de Maria Auxiliadora e, em seguida, ela se torna um presente para a nossa Família Salesiana em todas as partes do mundo. A finalidade da Estreia e do seu comentário é ajudar a ter o mesmo coração e o mesmo olhar sobre as multíplices iniciativas em todas as nossas Obras e a missão que cada um é chamado a realizar segundo a vocação carismática específica dos grupos da nossa Família Salesiana.

O tema escolhido está em continuidade com o do ano anterior e refere-se ao próximo grande evento eclesial que é a XV Assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, convocada pelo Papa Francisco para o mês de outubro de 2018, intitulada: «Os jovens, a fé e o discernimento vocacional».

Trata-se de um tema que toca diretamente o coração do nosso carisma e que procuraremos preparar da melhor maneira possível, sensibilizando a nós mesmos e fazendo com que muitos leigos e muitos jovens tornem-se cientes e participantes desse importante evento da vida eclesial. Com o Sínodo «a Igreja decidiu interrogar-se sobre o modo de acompanhar os jovens a reconhecer e a acolher o chamado ao amor e à vida em plenitude, e também pedir aos próprios jovens que a ajudem a identificar as modalidades hoje mais eficazes para anunciar a Boa Notícia».1

A Estreia que lhes apresento neste ano é proposta como ajuda para podermos chegar como Família Salesiana, em todas as nossas presenças no mundo, ao objetivo declarado pelo Documento preparatório do Sínodo.

O tema escolhido, que considero simples e muito direto, contém dois elementos de importância vital no mundo de hoje: a escuta e o acompanhamento pessoal. Para iluminar os dois aspectos, ofereço-lhes um belíssimo ícone evangélico, que servirá para múltiplas reflexões: Jesus e a Samaritana. Narra-se nesse ícone o episódio em que se verifica, apesar da presença de diferenças étnicas e antagonismos religiosos, um encontro no nível mais profundo da pessoa, a ponto de transformar a vida.

Convido-os a receber a Estreia com a disponibilidade positiva de todos os anos e aproveitar o que lhes possa ser útil segundo as diversas situações pastorais em que estamos a trabalhar.


Posso testemunhar-lhes que, nas centenas de encontros tidos nestes quase quatro anos com jovens dos cinco continentes, amadureci a certeza de que nas casas e obras dirigidas pelos grupos da Família Salesiana existem milhares e milhares de jovens bons, abertos à vida, desejosos de formar-se, de aprender; jovens em busca. Muitos deles têm um coração grande, generoso, e desejam servir aos outros, fazer alguma coisa pelos outros, auxiliar, doar-se.

São jovens que pedem a nossa ajuda para continuar a crescer e amadurecer na própria fé. Outros que não o desejam explicitamente, mas sentem grande necessidade de um encontro pessoal e de serem escutados. São numerosos os que estariam dispostos a trilhar um caminho pessoal e comunitário de discernimento e acompanhamento.

Então me pergunto: o que estamos a esperar? Por que não nos decidimos a estar muito mais disponíveis para acompanhar os nossos jovens no que é mais importante para suas vidas? O que nos detém? Por que “nos ocupar” ou “gastar tempo” em outras coisas quando essa é uma verdadeira prioridade educativa e de evangelização?

Daremos passos muito mais significativos, meus caros irmãos e irmãs, quando realmente nos convencermos que, mais importante daquilo que fazemos, é o que somos e quem somos; que mais importantes das coisas e atividades que oferecemos aos adolescentes e jovens, e às suas famílias, é a nossa presença, a nossa escuta e a nossa disponibilidade ao diálogo. Isso, sim, deixa “marcas de vida” para sempre. E deixa-as nos jovens e nas famílias.

Tudo isso está na base e é a motivação verdadeira e profunda da escolha da Estreia deste ano.


I.- ENCONTRO QUE NÃO DEIXA INDIFERENTE: “Escutar”


Convido-os desde já à leitura calma e meditada da narração evangélica, conhecida como “o encontro de Jesus com a Samaritana”. Este ícone vai nos ajudar a compreender como o Senhor estabelece relação com ela e quais as consequências desse encontro com Ele na vida dessa mulher.


Veio uma mulher da Samaria buscar água.

Jesus lhe disse: «Dá-me de beber».

(Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar algo para comer).

A samaritana disse a Jesus: “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” (Jo 4,7-9).


Jesus e a Samaritana anônima provêm de dois povos diferentes, que viveram em conflito ao longo da história, e que se consideram um ao outro radicalmente distantes da antiga fé de Israel. Podemos afirmar que suas famílias se consideravam inimigas do ponto de vista social, religioso e político, e não tanto por serem diferentes, mas justamente por serem muito semelhantes e ao mesmo tempo opostas: cada uma convencida de ser a depositária autêntica e a guardiã da religião original do antigo Israel. De fato, os dois povos se consideram reciprocamente impostores.


Eis os protagonistas.

Uma mulher samaritana que, ao chegar ao poço, reconhece sem qualquer dúvida a proveniência de Jesus. Ele é um judeu dado o modo caraterístico de vestir-se. Para a mulher samaritana ele é um forasteiro: tem sede, mas não tem um balde à disposição e a água do poço profundo é inacessível. Entretanto, a mulher não está somente diante de um forasteiro; diante dela, do ponto de vista religioso, está um “adversário”.

Ao mesmo tempo, a mulher, do que se pode entender pelo conjunto da narração, é uma pessoa marcada, para dizer pouco, por uma reputação duvidosa, com uma situação “irregular” de vida. Pode-se deduzir que se trata de uma mulher que, emocionalmente, se sente vítima de rejeição.

Diante de Jesus e a mulher samaritana também se interpõem fortes preconceitos étnicos e religiosos: segundo o costume do seu tempo, pelo fato de pedir água a essa mulher, Jesus tem uma conduta reprovável e transgressiva.

É lícito supor que a mulher se sinta segura diante de Jesus pois, não sendo da sua aldeia, não conhece as “falências da sua vida”. E por faz parte de um grupo religioso afim, embora herético, Jesus não teria oportunidade de entrar em contato com os chefes israelitas-samaritanos da sua comunidade; por isso, ela não tinha nada a temer ou com o que se preocupar.

Podemos tirar dessa situação alguns elementos de grande interesse para nós: o encontro acontece num lugar profano e “ao ar livre”, um poço no meio do campo, que se transformará em lugar de encontro com Deus.

Jesus, verdadeiro protagonista e sujeito primeiro do encontro, da escuta e do diálogo inicial, “desenha” a estratégia do encontro, a começar da escuta da outra pessoa e da situação, que Ele intui.

O exemplo do Senhor é de grandíssima atualidade para nós


Escuta que é ACOLHIDA e ENCONTRO PESSOAL


A ESCUTA é sempre uma arte. «Precisamos exercitar-nos na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual».2 É por isso que o dom da palavra, especialmente nas relações pessoais, deve ter como correlativo a “sabedoria da escuta”.

Esta escuta, tão importante em nossa missão de Família Salesiana, deve ter como ponto de partida o encontro, que se torna oportunidade de relação humana e de humanização, vivida em plena liberdade, «com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã».3


Nas relações com os adolescentes e jovens, com nossos alunos, com as famílias das diversas presenças, a escuta autêntica deverá levar em consideração algumas atenções:

favorecer a abertura ao outro: abertura com toda a nossa pessoa, porque escutamos certamente com nossos ouvidos, mas também podemos escutar, quando a escuta é autêntica, com os olhos, a mente, o coração, com todo o nosso ser;

prestar atenção no que a pessoa comunica e empenhar-se ativamente na compreensão do que se deseja comunicar, dado que o fundamento da escuta que oferecemos é o profundo respeito pela outra pessoa;

acompanhar com verdadeiro interesse a pessoa, jovem ou adulto, naquilo que busca e espera de si mesma, com verdadeira empatia, que é o oposto da cortesia fria e formal. Trata-se de identificar-nos e de caminhar com a outra pessoa;

pôr o próprio mundo de lado para aproximar-se o mais possível do mundo do outro, com a capacidade de acompanhar sem interferir;

escutar, em outras palavras, é a arte que exige uma atenção solícita pela pessoa, pelas suas lutas e fragilidades, suas alegrias, seus sofrimentos e suas expectativas; não nos limitemos, então, a escutar alguma coisa, mas coloquemo-nos à escuta de alguém. Dessa atenção solícita são ricas as páginas evangélicas que narram alguns encontros de Jesus com a sua gente;

a escuta, quando se refere ao acompanhamento espiritual pessoal, transcende a dimensão psicológica e adquire dimensão espiritual e religiosa, porque leva por caminhos à espera de Alguém;

requer, ainda, certo silêncio interior, que tem como ponto de partida a aceitação das pessoas como são e na situação em que se encontram;

o nosso olhar de educadores, voltado de modo especial aos adolescentes e jovens, e também às suas famílias, garante-nos que há muito de positivo em todo coração;4 é preciso fazer emergir esses aspectos positivos. Por isso, a escuta precisa significar para nós muito mais do que ouvir com paciência: deve levar-nos a compreender na sua profundidade o que a pessoa nos diz e porque no-lo diz; deve levar-nos a dar atenção ao que realmente interessa ao outro, aos adolescentes e jovens, às suas famílias.


A escuta deve levar-nos a compreender adequadamente a necessidade dos jovens de hoje, e, às vezes, a necessidade dos seus pais, ou o das pessoas com as quais estamos em contato no ambiente pastoral. De fato, no mais das vezes, os jovens ou seus pais, ou ambos, não se aproximam de nós em busca de acompanhamento. Mas, com frequência são estimulados por necessidades, dúvidas, problemas, urgências, dificuldades, conflitos, tensões, decisões a tomar, situações problemáticas a enfrentar.

E bem sabemos pela nossa formação de educadores e evangelizadores que é muito frequente eles se aproximarem se fizermos algum gesto de aproximação, se demonstrarmos algum interesse por eles; se formos ao seu encontro, se nos mostrarmos disponíveis. Os próprios jovens, filhos de uma cultura “cientista”, dominada pela técnica e pelo seu mundo de possibilidades, e que pertencem a uma geração hiperconectada, sentem «a necessidade de figuras de referência próximas, credíveis, coerentes e honestas, assim como de lugares e de ocasiões para pôr à prova a capacidade de se relacionar com os outros (tanto adultos como seus coetâneos) e para enfrentar as dinâmicas afetivas. Eles procuram figuras que sejam capazes de manifestar sintonia e oferecer apoio, encorajamento e ajuda a reconhecer os limites, sem fazer pesar o próprio juízo».5

Este é o motivo pelo qual, às vezes, os encontros e diálogos casuais podem “abrir portas” para um caminho mais profundo e de crescimento...

Foi o que aconteceu durante o encontro de Jesus com a mulher que fora até o poço simplesmente para tirar água.

Sem ter a pretensão de sugerir técnicas de escuta, desejo, porém, evidenciar que, se se quiser cultivar as atitudes mais adequadas para uma escuta autêntica, deve-se dar atenção a:

não ser impaciente tomando a palavra em vez de deixar que o outro fale;

estar atento para não interromper continuamente o diálogo;

não reagir de forma impulsiva diante de alguma divergência;

não descuidar da atenção à pessoa que estamos a escutar;

ter presente a necessidade de todos precisarem sentir-se escutados.


Será igualmente importante nos momentos de escuta:

dar à pessoa a oportunidade de comunicar tudo o que tem dentro de si e que, às vezes, pode ser para ela um peso ou uma opressão;

fazer perguntas oportunas e evitar aquelas que possam criar desconfiança ou conflito;

aceitar com serenidade os silêncios, deixando o tempo necessário, sem preenchê-los de conselhos ou de perguntas supérfluas, pois os momentos de silêncio podem colocar o outro plenamente à vontade e permitir-lhe refletir sobre o que está escutando;

fazer com que possam ser “reconhecidos os sentimentos”, que são uma parte muito importante em toda comunicação;

evitar a loquacidade, as muitas palavras e as soluções imediatas. Não esqueçamos que nas coisas importantes é preciso tempo, processo.


Concluo esta parte dedicada à escuta com uma referência a Dom Bosco. Não há dúvida de que a linguagem que usamos hoje para referir-nos à escuta (ao discernimento e ao acompanhamento), apresenta diferenças substanciais em relação ao contexto cultural e religioso de Dom Bosco. Entretanto, vejo como muito belo o testemunho a seguir que nos faz entender como os seus jovens e outras pessoas se sentissem acolhidos e escutados por ele:


Apesar das suas muito e graves ocupações, estava sempre pronto a acolher em seus aposentos, com coração de pai, os jovens que lhe pediam uma audiência particular. Antes, queria que o tratassem com grande familiaridade e jamais se lamentava da indiscrição com que, às vezes, era por eles importunado... A todos ele dava plena liberdade de apresentar perguntas, expor dificuldades, justificações, desculpas...

Recebia-os com o mesmo respeito com que tratava os senhores importantes. Convidava-os a sentar no sofá, continuando à mesa de trabalho, e escutava-os com a maior atenção como se as coisas expostas por eles fossem todas muito importantes”.6


II. ENCONTRO QUE ESTIMULA A PESSOA A IR ADIANTE: “Discernir”


Continuando a leitura do texto do encontro de Jesus com a Samaritana, que nos leva pela mão no caminho de escuta, discernimento e acompanhamento, lemos:


Jesus respondeu:

Se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz: “Dá-me de beber”, tu lhe pedirias,

e ele te daria água viva”.

A mulher disse: “Senhor, não tens sequer um balde, e o poço é fundo; de onde tens essa água viva? (...)

Jesus respondeu: “Todo o que beber desta água, terá sede de novo; mas quem beber da água que eu darei, nunca mais terá sede. (...)

A mulher disse então a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede”. (Jo 4, 10-15)


Jesus, como bom conhecedor do coração humano, serve-se de todos os recursos da palavra, do colóquio e dos gestos, para encontrar as pessoas:

Faz perguntas, dialoga, explica, narra, presta atenção no ponto de vista do interlocutor; sugere, afirma, provoca reações.

Faz com que a Samaritana anônima entenda que Ele compreende a sua situação mais do que ela possa imaginar, e intui a dor e o sofrimento que, de certo modo, deve ter suportado.

Coloca a mulher diante da sua situação real e das suas respostas evasivas; até mesmo diante da verdade mais íntima, como no momento em que ela diz: «Eu não tenho marido».

Ao mesmo tempo em que experimenta uma empatia compassiva.

Jesus não dá por terminado o diálogo, não se dá por vencido diante das resistências iniciais.

O diálogo ajuda a esclarecer os equívocos e a manifestar-se de modo autêntico; as respostas enigmáticas e provocadoras suscitam proximidade na mulher; ela sente-se surpreendida e tem confiança, chegando realmente a desejar o que pode tornar a sua vida melhor.


Jesus, que busca o bem do outro, estabelece uma relação pessoal, em vez de emitir um juízo moral de desaprovação ou censura:

Em vez de acusar, dialoga e propõe.

Sua linguagem, suas palavras, são dirigidas ao coração daqueles aos quais fala.

No diálogo com a mulher da Samaria, procede com calma, sem pressa de apresentar-se como Aquele que pode mudar a sua vida, despertando nela aos poucos o interesse pelo acesso à fonte que promete uma vida especial, diferente, melhor.


Jesus, especialista em humanidade, está atento e cheio de interesse pelo mundo interior dos seus interlocutores: lê nos seus corações, escuta-os e sabe decifrá-los.


A fé e a vocação à alegria do amor.


O Senhor, também em nossos dias, como então com a Samaritana, fascina muitíssimos jovens, e essa atração está em estrita relação com a fé e o chamado que Deus dirige a cada um dos seus filhos e filhas para viverem a vida como vocação à alegria do amor.

A fé faz com que os jovens se sintam conquistados pelo modo de ver, acolher, relacionar-se e viver de Jesus, e dilata a sua vida. Como diz o Papa Francisco, a fé «não é um refúgio para gente sem coragem».7

E para nós que tiramos as águas da torrente que flui do carisma salesiano suscitado pelo Espírito em Dom Bosco, a proposta de fé como ponto de partida de qualquer outro discernimento se fundamenta numa única certeza: cremos realmente que Deus nos ama e ama os jovens, cremos que Jesus, o Senhor, quer compartilhar com eles a sua Vida, e cremos que o Espírito Santo se faz presente nos jovens e age em cada um deles.8

A luz da fé que, gradualmente e acompanhando os processos, amadurecerá na vida dos jovens que “se deixam tocar por Deus”, permitirá que eles tomem consciência do «projeto de amor apaixonado que Deus tem para cada um”;9 e descobrirão assim que «a vocação à alegria do amor é o apelo fundamental que Deus inscreve no coração de cada jovem, a fim de que a sua experiência possa dar fruto».10

Esse caminho exige uma atitude de abertura à voz do Espírito, em diálogo com a Palavra de Deus, naquele espaço, o mais íntimo e sagrado que a pessoa humana conhece, que é a consciência.


Devemos ter presente, com visão educativa e pastoral, que os jovens, ou os esposos em seu matrimônio, ou as famílias chegam a percorrer esse caminho impelidos não poucas vezes por uma série de busca originada em algumas situações vitais:

Situações que levam a pessoa, o jovem, o casal, ou algum membro da família, a experimentar a necessidade de dar um significado profundo à vida, também na perspectiva da fé. Às vezes, isso acontece porque se atravessam situações nas quais se percebe vitalmente que algo não funciona ou não vai vem.

Momentos nos quais não se está bem, não se vive em harmonia interior e não se encontra significado pleno no que se vive, ou no “nós” do matrimônio, ou na família. A situação pode manifestar-se concretamente num “vazio existencial” que frequentemente gera desorientação pessoal, mal-estar, tristeza e falta de esperança.

Tenha-se também presente que, em algumas sociedades, vivemos e somos obrigados a viver de tal maneira projetados para fora como se estivéssemos numa vitrine, e nas quais se vende a ideia de que não há lugar para limitações ou defeitos, e onde não se tem o direito de envelhecer ou fazer aniversário porque “é de mau gosto”. Nessas sociedades, é preciso, mais do que nunca, de uma educação, de um caminho pessoal e comunitário, de uma escuta e de um diálogo que favoreçam o aprofundamento e a interioridade da vida.


O dom do discernimento.


O que dissemos até aqui, e ainda mais, justifica a intenção da Igreja de reiterar através do Sínodo «o seu desejo de encontrar, acompanhar e cuidar de cada jovem, sem exceção» e de não «abandoná-los às formas de solidão e de exclusão às quais o mundo os expõe».11 O que permite evidenciar o quanto é importante, com a escuta, o dom do discernimento. Isso foi aplicado na tradição da Igreja a uma pluralidade de situações: discernimento dos sinais dos tempos; discernimento do modo de agir moral; discernimento espiritual em se referindo à busca de um caminho de vida cristã plena; discernimento quando se trata da própria vocação ou opção de vida.

Em todo caso, o diálogo com o Senhor e a escuta da voz do Espírito são sempre essenciais pois, como evidenciamos anteriormente, precisamos estar cientes de que «a pessoa de Jesus e a Boa Notícia por Ele proclamada continuam a fascinar muitos jovens».12

Por que sugerir ou promover itinerários de discernimento a quem já está na situação de deixar-se livremente interpelar ou tocar por Deus? Simplesmente porque reconhecemos que o Espírito Santo fala e age em cada pessoa através dos acontecimentos da existência, sua e dos outros. Fala também através de muitas mediações, contudo os fatos, as experiências, os acontecimentos, a vivência podem ser de per si mudos ou ambíguos, pois são sempre sujeitos a interpretações muito diferentes e subjetivas. Iluminá-los com o método correto será um dos frutos do itinerário de discernimento.

O Papa Francisco na Evangelii Gaudium oferece-nos três chaves para o discernimento, incluindo o estudo dos sinais dos tempos, como indicava o Papa Paulo VI.13 As três chaves ou critérios são: reconhecer, interpretar, escolher.


RECONHECER14, à luz do que é inspirado pelo Espírito:

Para ter lucidez nos momentos dos altos e baixos da vida; nos períodos de verdadeira luta interior.

Para fazer aflorar toda a riqueza emotiva da pessoa, e dar um nome ao que se experimenta ou que existe em nós mesmos.

Para colher o “gosto” que experimento na consonância ou dissonância entre o que experimento e o que há de mais profundo em mim.

Tudo isso, iluminado pela palavra de Deus que se deve meditar, colocando no centro a capacidade de escuta e a própria afetividade da pessoa, sem ter medo nem mesmo do silêncio.

Assumindo tudo como parte do caminho de amadurecimento pessoal.


INTERPRETAR15

Compreender para o quê o Espírito de Deus está chamando através do que suscita em cada um.

Interpretar e interpretar-se é uma tarefa muito delicada, que requer paciência, vigilância e também certa aprendizagem. É preciso estar ciente da existência de condicionamentos sociais e psicológicos.

Será necessário confrontar-se com a realidade e, ao mesmo tempo, não se contentar com o mínimo, não tender apenas ao que é fácil, estar ciente dos próprios dons e das próprias possibilidades.

Naturalmente, a tarefa de interpretação poderá desenvolver-se num crente, num cristão, com algumas condições:

  • Cultivando um verdadeiro diálogo com o Senhor (como o diálogo da mulher da Samaria com Jesus);

  • Ativando todas as capacidades da pessoa, fazendo com que ela não seja indiferente àquilo que acontece, com àquilo que vive (como na ressonância que o diálogo com Jesus teve no coração daquela mulher).

  • Deixando-se ajudar por uma pessoa perita na escuta do Espírito (que, no caso do texto evangélico, era o mesmo Jesus quem orientava).


ESCOLHER16

Chega-se, assim, ao momento em que a pessoa, o jovem, os esposos, a família – se o discernimento se dá no âmbito familiar – devem tomar decisões, fazendo um exercício de autêntica liberdade e de responsabilidade pessoal ou comunitária, segundo os casos.

A Samaritana precisou escolher interiormente entre ignorar Jesus e continuar a sua vida como se nada tivesse acontecido naquele encontro, ou tomar a decisão de deixar-se surpreender por Ele e envolver-se a ponto de ir chamar seus conterrâneos comunicando-lhes a comoção que sentia porque aquele homem chegara à profundeza do seu mundo interior.

A escolha feita quando se discerne à luz do Espírito, com muita frequência, dá grande liberdade às pessoas e, ao mesmo tempo, exige coerência de vida.

Por isso, pode-se afirmar que favorecer nas pessoas, e de modo todo especial nos jovens, escolhas de vida que sejam realmente livres e responsáveis, é o ponto de chegada de todo processo sério de discernimento no caminho da fé e do crescimento pessoal (e de toda pastoral vocacional que se possa pensar).


O discernimento é o «o instrumento principal que permite salvaguardar o espaço inviolável da consciência, sem pretender substituí-la»17, justamente porque – diz-nos o Papa Francisco – «somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las»,18 seguindo o exemplo de Jesus que no diálogo com a mulher samaritana a acompanha na viagem para a verdade e a interioridade de sua vida.


III. ENCONTRO QUE TRANSFORMA A VIDA: “Acompanhar”


Nisto chegaram os discípulos e ficaram admirados ao ver Jesus conversando com uma mulher. Mas ninguém perguntou: “Que procuras?”, nem: “Por que conversas com ela?”. A mulher deixou a sua bilha e foi à cidade, dizendo às pessoas: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo?”

Saíram da cidade ao encontro de Jesus. (...)

Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus por causa da palavra da mulher que testemunhava: “Ele me disse tudo o que eu fiz”. Os samaritanos foram a ele e pediram que permanecesse com eles; e ele permaneceu lá dois dias. Muitos outros ainda creram por causa da palavra dele, e até disseram à mulher: “Já não é por causa daquilo que contaste que cremos, pois nós mesmos ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4, 27-30, 39-42).


A Samaritana entrou na cena evangélica como “uma mulher da Samaria” e sai dela “conhecendo a fonte de água viva” a ponto de sentir a necessidade de correr a anunciar aos seus conterrâneos o que lhe aconteceu; mediante o seu testemunho, permite a muitos aproximar-se de Jesus.

Abandonada a ânfora, a mulher corre à aldeia para falar aos seus sobre aquele homem. E lhes porá uma questão importante: «Este homem não poderia ser aquele que Israel esperou por tanto tempo?».

Do mesmo modo, como se pode deduzir do contexto, Jesus faz os seus discípulos entenderem que está cumprindo a vontade do Pai, vontade que é a Vida da sua vida e que deseja transmitir aos outros.

Jesus oferece àqueles com quem se encontra, como no caso da Samaritana, não tanto o aumento do seu conhecimento e sabedoria, quanto uma proposta para crescer ou mudar de vida. O mesmo “poço de Jacó”, símbolo da sabedoria que vem da Lei, perde o seu valor e é substituído pela “água viva”.

A imagem de Deus, comunicada no encontro com Jesus, não é de um deus impassível, distante, filosoficamente frio. Jesus, ao contrário, revela o Deus que dá a Vida, que pode ser chamado de Pai, que não se deixa encerrar nem controlar nem possuir, porque é Espírito (culto em Espírito e verdade).

A conclusão do encontro vai além do que se esperaria num final normal, isto é, que a mulher voltasse à sua vida ordinária com a ânfora cheia de água. Ao contrário, a ânfora, que a mulher abandona vazia para ir chamar os seus, fala-nos de um ganho e não de uma perda.

Como Jesus... acompanhando.


Há inúmeras narrações bíblicas que são, primeiramente, narrações do acompanhamento que Deus garante ao seu povo ao longo do tempo.

Na fronteira dos dois Testamentos, João Batista apresenta-se como o primeiro acompanhante espiritual dos Evangelhos; antes do próprio Jesus, João pôde dar testemunho e preparar o caminho porque Deus falara ao seu coração.

Jesus mesmo em muitas passagens do Novo Testamento faz-se próximo e companheiro de caminhada para comunicar-se e encontrar-se de modo pessoal com as pessoas do seu tempo.

O encontro do Senhor com a Samaritana manifesta como o Espírito de Deus pode agir no coração de cada homem e de cada mulher: aquele coração humano que, devido à fragilidade e ao pecado, se sente, não poucas vezes, confuso e dividido, atraído por solicitações e propostas diferentes e muitas vezes opostas.19

Diante da realidade humana, o acompanhamento pessoal surge como um meio validíssimo da tradição espiritual cristã, dando aos crentes instrumentos e recursos que lhes permitam reconhecer a presença do Senhor, os seus questionamentos e os seus chamados.

Como podemos definir o acompanhamento? «Como uma forma de diálogo permanente entre companheiros para acolher a Vida, acompanhando a vida»;20 um diálogo que tem como finalidade última favorecer a relação entre a pessoa e o Senhor, ajudando-a a superar obstáculos eventuais.


Assim como Jesus fez no encontro com as pessoas do seu tempo, é preciso ter em qualquer experiência de acompanhamento:

Um olhar amável, como o de Jesus no chamado vocacional dirigido aos doze (Jo 1,35-51).

Uma palavra manifestada com autoridade, como pronunciada por Jesus na sinagoga de Cafarnaum (Lc 4,32.)

A capacidade de fazer-se próximo, como Jesus no encontro com a mulher samaritana (Jo 4,3-34.39-42.)

A opção de caminhar ao lado, fazer-se companheiro de caminho, como Jesus com os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).


Para nós, acompanhar os adolescentes e os jovens, as suas famílias, os adultos em geral, comportará:

Conhecer o caminho já trilhado por eles, em que ponto estão e para onde se dirigem, a fim de poder caminhar juntos.

Garantir a promoção do encontro como oportunidade de relação, humana e humanizadora, e não utilitarista. Conhecemos bem a importância que o encontro tem na pedagogia salesiana, ao colocar no centro a pessoa do jovem e qualquer outra pessoa, com relações pessoais que se fundamentam no conhecimento recíproco, no interesse que busca o bem do outro, na compreensão, na empatia, na confiança. E sabemos que nisso Dom Bosco foi um mestre excepcional, incomparável.

Com atitude de escuta (faz-se novamente referência à arte de saber escutar como fundamento do acompanhamento!), que torna possível conhecer e compreender a realidade da outra pessoa, o caminho que está trilhando, a situação de dor, de falta de esperança, de cansaço ou de busca em que se encontra, como também os sonhos, os desejos e os ideais ocultos no seu coração.

Tratar-se-á sempre de um encontro de mediação, porque o verdadeiro Acompanhante é o Espírito Santo. Afirma-o com força o místico São João da Cruz quando escreve: “Lembrem-se aqueles que orientam almas, e considerem, que o principal agente e guia e movente das almas neste negócio não são eles, mas o Espírito Santo, que jamais perde de vista o cuidado delas».21 Isso, porque jamais se dirá suficientemente que o companheiro de viagem da nossa ação educativo-pastoral e evangelizadora é o Espírito Santo.

O acompanhante e companheiro de estrada deve fazer-se testemunha e anunciador da ação do Espírito no acompanhado, mas de modo discreto, permanecendo ao lado, limitando-se a ocupar o espaço que lhe corresponde e não outro. Na verdade, o educador e o evangelizador formam-se como acompanhantes espirituais na experiência fundante de ter-se encontrado por primeiro com Ele. Isso é tão claro, explícito e radical porque «o verdadeiro educador à fé é aquele que num determinado ponto se põe de lado, ficando para trás, deixando o “lugar vazio” que só pode ser ocupado pelo Senhor»,22 para permitir, como fruto e resultado do acompanhamento, que se chegue a uma verdadeira relação ou encontro do jovem, da pessoa acompanhada, com Deus.

Para descobrir como Deus se manifesta na nossa vivência até surpreender-nos ao sermos encontrados por Ele.

Cientes de que a iniciativa será sempre de Deus; e serão nossas a responsabilidade e a liberdade.


Dom Bosco educador e guia espiritual dos seus jovens23


Falar de Dom Bosco como educador significa pôr em evidência e estar ciente da estreita relação existente entre a sua missão educativa e o acompanhamento espiritual dos jovens, e do significado que isso reveste para a formação deles.


Para ser muito sintético e evidenciar só o que é essencial, realçarei alguns elementos que considero de grande valor:

Dom Bosco é um evangelizador-educador que se preocupa, com grande intuição, em criar um ambiente educativo atraente, rico de propostas educativas e de relações humanas; ele jamais renuncia a dar, gradualmente, passos concretos na formação cristã dos seus jovens.

Dom Bosco é para nós o genial acompanhante dos seus jovens, porque não se limita ao diálogo pessoal, ou à celebração do sacramento da reconciliação (chamado naquele tempo apenas de confissão), mas vê tudo em relação e unido aos demais elementos da ação educativa e à vida cotidiana nos seus diversos momentos.

No estilo de Dom Bosco, acompanhante e acompanhado não se limitam a encontrar-se segundo uma agenda pontual no dia e na hora estabelecidos, mas compartilham cotidianamente ambientes, espaços de recreação, momentos de trabalho, oração e alegria.

Isso leva a pensar que assim podia nascer facilmente o conhecimento recíproco, a confiança e também a amizade; o que favorecia a confiança e a disponibilidade de deixar-se guiar.

Em Dom Bosco, a paternidade espiritual é consequência e fruto maduro da paternidade educativa, que os seus jovens vivem com ele no cotidiano. Encontramos magnificamente descrita essa paternidade nas seguintes expressões: «Para todo jovem, Dom Bosco confessor e diretor espiritual é aquele que o acolheu com afeto, o apoia, instrui, educa e estimula a dar o melhor de si na comunidade e no trabalho cotidiano. Ao seu lado há assistentes, formadores e jovens amigos com os quais se pode compartilhar a mesma tensão ética, os mesmos valores espirituais, num intercâmbio dialógico, estimulante e fecundo».24 Em última análise, o tom afetivo e a instauração de confiança e simpatia são para Dom Bosco condições fundamentais do seu método educativo.

Dom Bosco é sempre e em todo momento o educador que não só provê os seus jovens de alimento, cuidados de saúde e instrução. O seu trabalho educativo é sempre orientado à educação cristã deles. É por isso que podemos afirmar que «o acompanhamento espiritual em vista da perfeição cristã é parte essencial e necessária da pedagogia salesiana».25

É muito ilustrativo saber que, no acompanhamento, Dom Bosco não tinha a mesma relação e a mesma ligação com todos os seus jovens, mas a tinha com “tonalidades e gradações diversas”. Não era igual a relação com os jovens que ele encontrava apenas no oratório festivo na tarde dos domingos e na confissão e com aqueles que viviam dia e noite em Valdocco, e, entre eles, os que se mostravam vocacionalmente sensíveis e disponíveis.

Uma caraterística que deve “ser muito nossa”, porque o foi de Dom Bosco, é a de sempre caminhar para a criação de comunidades de vida, nas quais os encontros cordiais, a presença contínua, a proximidade empática dos educadores (típica da assistência salesiana), suscitando confiança e amizade, são a caraterística habitual da comunidade de adolescentes, jovens e adultos. O objetivo para o qual sempre se tendia, na medida do possível, era “a conquista do coração”. É admirável, em se pensando no que isso pode significar num verdadeiro evangelizador e educador.

Sabemos ainda que, para Dom Bosco, a qualidade do ambiente educativo a ser oferecido e construído com os jovens em Valdocco, era o acompanhamento mais eficaz para cada um, qualquer que fosse a situação em que se encontrasse.

Em sua ação educativa, Dom Bosco procura compreender os jovens, captar as necessidades e os desejos juvenis; dessa forma, o jovem sente-se nessa relação compreendido, acolhido, apoiado e amado.


A confiança dos jovens no seu amigo, educador e pai, faz com que abram o coração e aceitem percorrer com ele caminhos que lhes permitam descobrir coisas novas e atraentes.

Exemplo de grande relevo e ao mesmo tempo esclarecedor é dado pela resistência inicial do jovem Miguel Magone – como narrado pelo mesmo Dom Bosco – que só gosta de cantar, gritar, correr e saltar,26 enquanto não chega a uma “crise” que o perturba, e à transformação graças à conversão do coração27 que o faz experimentar uma grande alegria e um inesperado itinerário espiritual.

Por isso tudo afirmamos que «Dom Bosco é modelo: ele tende a identificar em si o educador, o confessor e o diretor espiritual; e insiste na acolhida afetuosa, na bondade, na magnanimidade e na preocupação com os particulares, na intensidade do afeto demonstrado de modo que os jovens confiem e colaborem na ação formativa com uma obediência pronta e cordial».28


Isso tudo se realiza através de uma pedagogia de processos, muito comum na tradição espiritual. «A vida cristã é vivida de modo progressivo, segundo vários graus de profundidade e plenitude, e está constantemente aberta a um crescimento sempre maior»:29

Segundo processos que não devem ser forçados nem de dentro nem do exterior;

Até tomar consciência do processo e assumi-lo, dado que é o Espírito que o provoca em cada um.


IV. PARA REALIZAR QUAL AÇÃO PASTORAL?


O discernimento vocacional como sugerido pelo Papa Francisco.


Creio que tudo o que dissemos até agora ofereça sugestões e pistas pastorais com as quais precisamos confrontar-nos. O fato de o mesmo documento de preparação ao Sínodo dos Bispos convidar à ação pastoral, permite-me sugerir algumas linhas às quais dar atenção. O próprio texto ao qual me referi convida a «pôr em foco o que comporta levar a sério o desafio do cuidado pastoral e do discernimento vocacional».30

Levar estes desafios a sério com visão salesiana poderia traduzir-se nas seguintes considerações:


1. Saber que este é o tempo favorável e que devemos continuar a caminhar com os jovens e as jovens, com os jovens e suas famílias, com os pais e as mães que precisam e aceitam percorrer juntos estes caminhos, em vez de percorrê-los em dura solidão na qual jamais se sentirão confortáveis.

Anos atrás, o P. Vecchi escrevia sobre isso em sua carta “Eis o tempo favorável”.31 O Papa Francisco comentou-o em diversos momentos na sua Exortação Apostólica e fala-se disso no Documento Preparatório do Sínodo; muitos de nós também o sabem pela própria experiência educativo-pastoral, e eu mesmo o manifestei com grande convicção na motivação desta Estreia. Assim escrevia o P. Vecchi: «As conversas individuais com os jovens fizeram com que aparecesse o quanto se apresenta em suas almas o pensamento de seguir a Cristo radicalmente. Frequentemente, porém, encontra-os despreparados para uma resposta e, segundo o que já se comentou outras vezes, encontra-os inseguros diante das possibilidades reais de encontrar espaços na medida das suas expectativas, nos quais exprimir essa vocação por toda a vida».32


2. Cultivar em todos os momentos a cultura vocacional, mesmo em contextos culturais que possam parecer-nos difíceis. Essa expressão foi utilizada pela primeira vez pelo Papa João Paulo II na mensagem à 30ª Jornada Mundial de orações pelas vocações.

Como educadoras, educadores e evangelizadores propomo-nos a ajudar os jovens a enfrentar a vida, o presente e o futuro com profundo conhecimento de si, e com uma atitude de disponibilidade e generosidade para escutar a voz de Deus em cada um, acompanhando-os em seu caminho em vista de um projeto de vida pessoal e consistente. Isso não poderá dizer respeito apenas a alguns, como se se tratasse de uma elite, mas é um convite e um apelo do próprio Deus para o caminho de cada pessoa em vista do seu pleno desenvolvimento.

Desejamos que os jovens possam descobrir um modo de viver e de sonhar a própria vida amadurecendo valores como a gratuidade e a entrega, a abertura aos outros e a Deus. Queremos ajudar os jovens, e toda pessoa que está em caminho, a descobrir que a vida pode ser concebida como dom e missão,33 e que isso os fará felizes. Almejamos que diante das tendências culturais dominantes, veiculadas por mensagens para as quais a única coisa importante é o próprio eu, uma alternativa significativa consista em entender a vida como dom, segundo um projeto de vida que cada um sinta como “feito à sua medida e segundo as suas possibilidades” e no qual se sinta feliz, como resposta ao sentido da sua vida desde a perspectiva de Deus e dos outros.

Queremos isso para todos os jovens, sempre com grandíssimo respeito pelas suas pessoas, e excitando a sua liberdade enquanto caminhamos juntos.


3. Favorecer um intenso clima espiritual que seja de grande ajuda para a relação pessoal com Jesus. Minhas visitas aos cinco continentes tornam sempre mais profunda a minha convicção de que no mundo a grande maioria dos “nossos” jovens, aqueles com os quais nos encontramos todos os dias, estão abertos quando lhes mostramos e testemunhamos o Deus que habita em nós, que habita a nossa pessoa e em cujo nome vivemos por eles.

Creio com sinceridade que se os “resultados” da nossa ação pastoral são às vezes escassos, isso pode ser devido ao fato de não termos pessoalmente a coragem de ser mais decididos nas propostas. Quiçá, por receio de sermos recusados, optamos por ficar num “caminho tíbio” oferecendo propostas que não incomodam ninguém.

Estou sempre mais convencido de que no mundo todo os nossos jovens têm sede de espiritualidade, sede de transcendência, sede de Deus, mesmo quando não sabem como exprimi-lo e como pedir-nos uma resposta. Com Dom Bosco, os jovens aprendiam a ouvir e viver, quase de modo espontâneo, que Deus os amava e tinha para cada um deles um projeto de felicidade e de vida plena.

O projeto de Deus para cada um de seus filhos e filhas não mudou. Permanece sempre o mesmo. Este clima espiritual é, portanto, mais do que nunca necessário e cultivado mediante a relação pessoal com Deus e com os irmãos, alimenta-se com a oração compartilhada com os jovens e com a celebração da fé nos sacramentos. Alimenta-se com a escuta, no silêncio acolhedor da Palavra, no diálogo e na sua partilha. E alimenta-se com a devoção mariana e um forte sentimento e experiência de amor em relação à Mãe, Maria Auxiliadora.


4. Oferece essa oportunidade a todos os jovens e a todas as pessoas que o pedem, sem excluir ninguém, pois o Espírito Santo age em cada um.

Acreditamos que a vocação de cada pessoa é iniciativa de Deus. «Não fostes vós que me escolhes, mas fui eu que vos escolhi» (Jo 15,16). Pois a vocação de cada pessoa é um chamado e um dom que se recebe, e. além do próprio Deus. ninguém pode inspirá-la ou fazer com que nasça. Contudo, devemos acompanhá-la com um itinerário através do qual a fé se torna o mais possível pessoal; um caminho no qual se cresce na interioridade e no encontro com Jesus, o Senhor.

O chamado que Jesus faz ao jovem rico e a sua resposta fazem-nos entender que não basta ser entusiasta e honesto para responder afirmativamente ao apelo de Deus. Para responder a esse chamado a dimensão ética e moral da pessoa precisa, em primeiro lugar, da dimensão espiritual e da fé.

Em se vivendo essa dimensão, os jovens poderão sentir o chamado como projeto de vida e sonho de Deus para cada um deles, e será possível o acompanhamento para qualquer tipo de itinerário vocacional: para a vida cristã laical, para a vida consagrada, o ministério presbiteral, a secularidade consagrada...


5. Propor uma espiritualidade que favoreça a visão unitária da vida. É um aspecto que deveria ser conatural à nossa espiritualidade salesiana da “união com Deus”, que recebemos como patrimônio espiritual de Dom Bosco.

Falamos de uma espiritualidade em que se unem estreitamente o Deus que se entrega gratuitamente, o encontro pessoal com Cristo e a liberdade com que cada pessoa responde na fé ao Espírito atuante em cada uma.

Dom Bosco, grande mestre no espírito para os jovens, viveu com eles uma espiritualidade que era, antes de tudo, educativa e os ajudava a viver de modo natural um caminho que os levava à maturidade espiritual para a qual «a presença de Deus torna-se tão “natural” como respirar, dormir ou pensar. É um dinamismo que não se refere apenas ao aspecto “religioso”, mas interessa toda a vida».34


6. Testemunhar a alegria com que se vive. Os jovens que sonham em viver a vida cristã de modo autêntico e se questionam sobre o que Deus espera deles, querem ver o nosso entusiasmo e também experimentá-lo pessoalmente.

«Ninguém poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16,22), diz o Senhor. O que é possível quando nós mesmos e os jovens, os adultos, os pais e as mães que estão em busca, vivemos a experiência do encontro do Senhor conosco. Essa experiência deve traduzir-se na alegria de viver, no otimismo com que vamos ao encontro de cada dia, na coragem serena com que enfrentamos os problemas e os momentos difíceis. Nada está mais distante do Deus que preenche a vida do que uma vida marcada pela desilusão, sem vivacidade, desmotivada. Esse é o motivo pelo qual disse repetidamente nestas páginas que devemos ser para os outros, no acompanhamento, pontos de referência significativos e críveis em vista do discernimento da vida e da vocação. Caso contrário, acabaremos por cumprir uma função que não deixa na vida das pessoas qualquer marca duradoura, que valha a pena.


7. Na lógica do “vem e vê”.35 É claro que os jovens dos cinco continentes aos quais me referi, fascinados por Cristo, seguirão os caminhos que os atraiam. Como afirma o P. Vecchi no texto citado, os jovens não ficarão fascinados pelas nossas obras e organizações, pelas nossas estruturas e nem mesmo pelo nosso trabalho. No máximo, poderão dedicar algum tempo, talvez alguns anos, à animação e ao serviço, mas se não chegarem a descobrir a profundidade e o fascínio que Jesus Cristo suscita, antes ou depois, irão em busca de alguma outra coisa, que os recompense mais.

O mesmo vale, na mesma medida, para os religiosos, as religiosas e os jovens sacerdotes. Por isso, a experiência de valores como a fraternidade evangélica em nome de Jesus, o espírito de família, que sentimos “tão nosso”, o clima de afeto familiar, a oração e o testemunho compartilhado das pequenas e grandes coisas da vida, será o que dá significado às buscas pessoais e ao “sim” como resposta ao chamado de Deus. Trata-se daquele “a mais” que atrai, «aquele “a mais”, incluído na profecia, na significatividade, na radicalidade; ou naquela que se pode chamar de “experiência calorosa”, da qual brotam intuições e vontade de empenhar a vida».36

O aspecto que faltaria na apresentação do “vem e vê” é estar ciente de que, para qualquer tipo de discernimento vocacional na Igreja, o testemunho silencioso e o silêncio vocacional não são suficientes para fazer com que se torne concreta a vocação suscitada por Deus. O convite pessoal e a proposta de itinerários adequados para cada um devem fazer parte do “vem e vê”.


8. Com o acompanhamento em estilo salesiano, que não é só individual nem intimista, mas também comunitário.

Em nosso estilo salesiano, quando falamos de acompanhamento não nos referimos apenas ao diálogo individual, mas a uma realidade muito mais ampla e rica, que ajuda a pessoa, de modo especial o jovem, a interiorizar os valores e as experiências vividas. Entre elas têm grande importância as de serviço aos outros e de solidariedade em favor dos mais necessitados.

Como já se dava com Dom Bosco, o acompanhamento parte de um ambiente educativo em que se favorecem a interiorização das propostas e o crescimento pessoal e vocacional.

Além dos momentos de diálogo pessoal e sistemático, são decisivos neste itinerário os encontros breves e ocasionais, simples e familiares com outras pessoas, membros da comunidade cristã, do grupo de fé, ou das mesmas comunidades religiosas.


V. EM COMPANHIA DA SAMARITANA


Desejo concluir este comentário imaginando que a Samaritana, como foi ao encontro dos seus conterrâneos e falou-lhes d’Aquele que a tinha fascinado e ajudado a encontrar-se consigo mesma, na sua verdade mais profunda, talvez também nos tomaria pela mão e:

Haveria de nos levar ao poço de Jacó, poço do encontro com Jesus que a fez entender que Ele não se detém diante das nossas resistências e da nossa ancoragem em situações de conforto e de segurança diante do que desconhecemos, mas permanece próximo de nós para levar-nos a descobrir a nossa sede mais profunda.

Haveria de nos convidar a não deixar que nada nem ninguém sufoque ou freie os nossos ideais mais profundos, o ideal que nos encheu de entusiasmo no início do nosso itinerário vocacional missionário, ou da vida matrimonial, da consagração religiosa, do ministério presbiteral ou da consagração laical.

Haveria de nos propor certamente a fazer todo o possível para estar sempre abertos ao “dom”, que nos vem de Deus, dom que jamais conseguimos discernir completamente, e que, devido aos nossos limites, não apreciamos de forma plena.

Haveria de convencer-nos, a partir do que ela mesma viveu, da importância de nos acompanharmos uns aos outros, orientar-nos e apoiar-nos na fé.

E haveria de revelar-nos que ela mesma aprendeu de Jesus a ser mais humana, e, talvez, também um pouco mais “especialista em humanidade”, o que é para nós um desafio permanente.


Como Maria, que viveu a novidade da Anunciação, o encontro com um Deus “pessoal” que bateu com tanta delicadeza à porta da sua liberdade tornando fecundo o que humanamente não teria sido possível, também nós somos convidados a nos interrogar sobre a nossa fé, o nosso “abandono” em Deus, que é perene novidade de vida, e deixar conduzir-nos pelo Espírito.

O Senhor ajude-nos a percorrer este caminho e ajudar os jovens a percorrê-lo.

Nossa Mãe conceda-nos a graça de sermos mediação autêntica da palavra do Senhor, que ressoa, nem sempre de modo imediatamente compreensível, no coração de todo jovem, nos casais, nas famílias, em todos os que estão em busca.

Invocando a Mediação da Auxiliadora junto ao seu Filho e a proteção de Dom Bosco e de todos os membros da nossa Família que já estão no caminho da santidade, cumprimento-os e desejo-lhes todo bem,


Roma, 1º de janeiro de 2018.

Ángel Fernández Artime

Reitor-Mor


Trad.: P. José Antenor Velho

1 Sínodo dos Bispos. XV Assembleia Geral Ordinária. Os jovens, a Fé e o Discernimento Vocacional. Documento Preparatório, Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano [ed. em português], p. 5-6. Citado em seguida como DP.

2 EG, 171.

3 EG, 169.

4 «Há em todo jovem... um ponto acessível ao bem e o primeiro dever do educador é buscar esse ponto, essa corda sensível do coração». Cf. MB V, 367 e 266, citado no CG23, n. 151.

5 DP, p. 21.

6 MB VI, 438-439.

7 LF, 53.

8 Cf. CG 23, 95.

9 DP, p. 33.

10 Ibid.

11 DP, p. 29.

12 DP, p. 25.

13 Paulo VI, Carta Encíclica Ecclesiam suam (6 de agosto de 1964), 19: AAS 56 (1964), 632, citado in EG, 51.

14 Cf. DP, p. 37-38.

15 Cf. DP, p. 38-40.

16 Cf. DP, p. 40-42.

17 DP, p. 41.

18 AL, 37.

19 Cf. DP, p. 42.

20 L. Arrieta, Aquel que acompaña sale al encuentro y regala preguntas de vida para andar el camino (Apuntes provisionales). Simposio CCEE, Barcelona, 2017, 11. Veja-se também P. Chávez Villanueva, Carta do Reitor-Mor. “Vinde e vede” (Jo 1,39). A necessidade de convocar, in ACG 409 (2011), p. 33-36; M. A. García, L’accompagnamento personale nella proposta educativo-pastorale salesiana, p. 261-282, in F. Attard-M. A. García (ed,), O acompanhamento espiritual, EDB, Brasília 2014, 356s.

21 João da Cruz, Chama viva de amor 3,46 in F. Attard-M. A. García (ed.), O acompanhamento espiritual, EDB, Brasília, 2014, 345.

22 R. Sala, Pastorale Giovanile 1, Evangelizzazione e educazione dei giovani, LAS, Roma 2017, p. 391.

23 Convido-os a reportar-se à abundante e rica literatura salesiana existente; evidencio em particular: A. Giraudo, Direzione spirituale in San Giovanni Bosco, in F. Attard-M. A. García (ed.), Acompanhamento espiritual, Edebê, Brasília 2014, p. 139ss.; P. Chávez, Estreia do Reitor-Mor 2011, “Vinde e vede” (Jo 1, 39). A necessidade de convocar, p. 13-20 [ACG 409]; J. E. Vecchi, Spiritualità Salesiana. Elle Di Ci, Turim, p. 22-36, 117-124, 173-174 [Espiritualidade Salesiana, Edebê, Brasília, 2017]; Dicastério para a Pastoral Juvenil Salesiana, A Pastoral Juvenil Salesiana. Quadro referencial, Edebê, Brasília 2014, 3ª ed., p. 24-25, 78-103,114-117; E. Alburquerque (coord.), Espiritualidad Salesiana. 40 palabras clave, CCS, Madri, 77-82.

24 A. Giraudo, Op. cit., p. 149.

25 Ibid.

26 G. Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele allievo dell’Oratorio di San Francesco di Sales. Seconda edizione. Tipografia dell’Oratorio di San Francesco di Sales, Turim 1866, 15.

27 Ibid., 16-24.

28 A. Giraudo, Op. cit., p. 160.

29 S. de Fiores: Itinerario espiritual, in S. de Fiores - T. Goffi - A. Guerra (coord.), Nuevo Diccionario de Espiritualidad, Paulinas, Madri, 2004, p.755.

30 DP, p. 47.

31 J. E. Vecchi, Carta do Reitor-Mor, Eis o tempo favorável, ACG 373 (2000), p. 3-43; Cf. também P. Chávez Villanueva, Carta do Reitor-Mor, “Vinde e vede” (Jo 1,39). A necessidade de convocar, Op. cit., p. 3-43.

32 J. E. Vecchi, Op. cit., p. 10.

33 Cf. P. Chávez Villanueva, Op. cit., p. 19-20.

34 M. A. García Morcuende, La educación es cosa de corazones. PPC, Madri 2017, p. 109.

35 Cf. Jo 1,39 e J. E. Vecchi, Op. cit., p. 25-26.

36 J. E. Vecchi, Op. cit., p. 26.

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