"Conhecendo e imitando Dom Bosco, Façamos dos jovens a missão da nossa vida"
Conhecendo
e imitando Dom Bosco,
façamos
dos jovens a missão da nossa vida
Estreia 2012
Tradução: Dom Hilário Moser
Comentário do Reitor-Mor
“Eu
sou o Bom Pastor.
O
Bom Pastor dá a vida por suas ovelhas”
(Jo
10,11)
Caríssimos
Irmãos
Filhas de Maria Auxiliadora
Todos os Membros da
Família Salesiana
Jovens
Iniciamos há pouco o triênio de preparação para o bicentenário do nascimento de Dom Bosco. Este primeiro ano nos oferece a oportunidade de nos achegarmos mais a ele a fim de conhecê-lo melhor e mais de perto. Se não conhecermos Dom Bosco e não o estudarmos, não poderemos compreender seu caminho espiritual e suas opções pastorais; não poderemos amá-lo, imitá-lo e invocá-lo; em particular, será difícil hoje inculturar seu carisma nos diversos contextos e nas diferentes situações. Somente reforçando nossa identidade carismática poderemos oferecer à Igreja e à sociedade um serviço aos jovens que seja significativo e abundante de frutos. Nossa identidade encontra sua referência imediata na figura de Dom Bosco; nele, a identidade se torna crível e visível. Por isso, o primeiro passo que somos convidados a dar no triênio de preparação é precisamente o conhecimento da história de Dom Bosco.
1. Conhecimento de Dom Bosco e dedicação aos jovens
Somos
convidados a estudar Dom Bosco e, através das vicissitudes de sua
vida, conhecê-lo como educador e pastor, fundador, guia e
legislador. Trata-se de um conhecimento que leva ao amor, à imitação
e à invocação.
Para nós, membros da Família Salesiana, sua
figura deve ser o que São Francisco de Assis foi e continua a ser
para os franciscanos, ou Santo Inácio de Loyola para os jesuítas,
quer dizer, o fundador, o mestre de espírito, o modelo de educação
e evangelização, sobretudo o iniciador de um Movimento de
ressonância mundial, capaz de propor à atenção da Igreja e da
sociedade, com extraordinária força de impacto, as necessidades dos
jovens, sua condição, seu futuro. Pois bem, como fazer isso sem
recorrer à história, que não é guardiã de um passado já
perdido, mas de uma memória viva que está dentro de nós e que nos
interpela em função da atualidade?
A abordagem de Dom Bosco,
feita com métodos próprios da pesquisa histórica, leva-nos a
compreender melhor e a medir sua grandeza humana e cristã, sua
genialidade operativa, seus dotes educativos, sua espiritualidade,
sua obra: essas realidades serão compreensíveis somente se
estiverem profundamente radicadas na história da sociedade em que
viveu. Ao mesmo tempo, dispondo de um conhecimento mais aprofundado
do seu percurso histórico, tornamo-nos sempre mais conscientes da
intervenção providencial de Deus na sua vida.
Nesse estudo
histórico não há nenhuma intenção de rejeitar a
priori
as respeitabilíssimas imagens de Dom Bosco que gerações de
Salesianos, Filhas de Maria Auxiliadora, Salesianos cooperadores e
membros da Família Salesiana elaboraram, isto é, do Dom Bosco que
eles conheceram e amaram; o que existe e deve existir é a
apresentação e a reinterpretação de uma imagem de Dom Bosco que
seja atual, que fale ao mundo de hoje, que use uma linguagem
renovada.
A imagem de Dom Bosco e da sua ação devem ser
reconstruídas com seriedade a partir do nosso horizonte cultural: da
complexidade da vida hodierna, da globalização, da cultura
pós-moderna, das dificuldades da pastoral, da diminuição das
vocações, da vida consagrada hoje “posta em questão”. As
mudanças radicais ou de época, como as chamava meu predecessor
padre Egídio Viganò, nos obrigam a rever essa imagem e a repensá-la
sob outra luz, tendo em vista a uma fidelidade que não seja
repetição de fórmulas e obséquio formal à tradição. A
importância histórica de Dom Bosco deve ser pesquisada não só nas
suas “obras” e em alguns seus elementos pedagógicos
relativamente originais, mas particularmente na sua percepção,
concreta e afetiva, da importância universal, teológica e social do
problema
da juventude “abandonada”,
e na sua grande capacidade de transmitir essa percepção a numerosos
grupos de colaboradores, benfeitores e admiradores.
Ser fiéis a
Dom Bosco significa conhecê-lo em sua história e na história do
seu tempo, em fazer nossas suas inspirações e em assumir suas
motivações e opções. Ser fiéis a Dom Bosco e à sua missão
significa cultivar em nós um amor constante e forte dos jovens,
especialmente dos mais pobres. Esse amor nos leva a dar uma resposta
às suas necessidades mais urgentes e profundas. Como Dom Bosco, nós
nos sentimos tocados pelas suas situações de dificuldades:
pobreza, trabalho infantil, exploração sexual, falta de
educação e de formação profissional, inserção no mundo do
trabalho, falta de autoconfiança, medo perante o futuro, perda
do sentido da vida.
Com afeto profundo e amor desinteressado,
procuramos estar no meio deles de forma discreta e autorizada,
oferecendo propostas válidas para seu caminho, para suas opções de
vida e sua felicidade presente e futura. Nisso tudo nos tornamos seus
companheiros de caminhada e guias competentes. Em particular,
procuramos compreender seu novo modo de ser; muitos deles são
“nativos digitais” (“digital
natives”),
que por meio das novas tecnologias buscam experiências de
mobilização social, possibilidades de desenvolvimento intelectual,
recursos de progresso econômico, comunicação instantânea,
oportunidades de protagonismo. Também nesse campo queremos
compartilhar sua vida e seus interesses: animados pelo espírito
criativo de Dom Bosco, nós, educadores, nos aproximamos deles como
“migrantes digitais” (“digital
immigrates”),
ajudando-os a superar a distância (“gap”)
geracional em relação aos pais e ao mundo dos adultos.
Cuidamos
deles ao longo de todo o seu caminho de crescimento e maturação,
dedicando-lhes nosso tempo e nossas energias, e estando no meio deles
nas fases que vão da infância à juventude.
Cuidamos deles
quando situações difíceis, como a guerra, a fome, a falta de
perspectivas os levam ao abandono da própria casa e da sua família,
e eles de repente se veem sozinhos a enfrentar a vida.
Cuidamos
deles quando, depois do estudo e da qualificação, buscam
ansiosamente um primeiro emprego e se esforçam por inserir-se na
sociedade, às vezes sem esperança e sem perspectivas de
êxito.
Cuidamos deles quando estão construindo o mundo dos
seus afetos, sua família, particularmente acompanhando seu caminho
de noivado, os primeiros anos de matrimônio, o nascimento dos filhos
(cf. CG26, 98.99.104).
De modo especial, temos a peito
preencher o vazio mais profundo da sua vida, ajudando-os na busca de
sentido e, sobretudo, oferecendo-lhes um roteiro de crescimento no
conhecimento e na amizade com o Senhor Jesus, na experiência de uma
Igreja viva, no compromisso concreto para viver sua vida como uma
vocação.
Eis, portanto, o programa espiritual e pastoral para
o ano 2012:
Conhecendo
e imitando Dom Bosco,
façamos
dos jovens a missão da nossa vida
Numerosos
grupos da Família Salesiana já estão em sintonia com esse empenho
que nos enriquecerá a todos, a fim de voltarmos nossos olhos para
Dom Bosco, nosso Pai. Caminhemos,
porém, sempre mais juntos como Família.
Conhecendo
e imitando Dom Bosco,
façamos
dos jovens a missão da nossa vida
Estreia 2012
Tradução: Dom Hilário Moser
Comentário do Reitor-Mor
“Eu
sou o Bom Pastor.
O
Bom Pastor dá a vida por suas ovelhas”
(Jo
10,11)
Caríssimos
Irmãos
Filhas de Maria Auxiliadora
Todos os Membros da
Família Salesiana
Jovens
Iniciamos há pouco o triênio de preparação para o bicentenário do nascimento de Dom Bosco. Este primeiro ano nos oferece a oportunidade de nos achegarmos mais a ele a fim de conhecê-lo melhor e mais de perto. Se não conhecermos Dom Bosco e não o estudarmos, não poderemos compreender seu caminho espiritual e suas opções pastorais; não poderemos amá-lo, imitá-lo e invocá-lo; em particular, será difícil hoje inculturar seu carisma nos diversos contextos e nas diferentes situações. Somente reforçando nossa identidade carismática poderemos oferecer à Igreja e à sociedade um serviço aos jovens que seja significativo e abundante de frutos. Nossa identidade encontra sua referência imediata na figura de Dom Bosco; nele, a identidade se torna crível e visível. Por isso, o primeiro passo que somos convidados a dar no triênio de preparação é precisamente o conhecimento da história de Dom Bosco.
1. Conhecimento de Dom Bosco e dedicação aos jovens
Somos
convidados a estudar Dom Bosco e, através das vicissitudes de sua
vida, conhecê-lo como educador e pastor, fundador, guia e
legislador. Trata-se de um conhecimento que leva ao amor, à imitação
e à invocação.
Para nós, membros da Família Salesiana, sua
figura deve ser o que São Francisco de Assis foi e continua a ser
para os franciscanos, ou Santo Inácio de Loyola para os jesuítas,
quer dizer, o fundador, o mestre de espírito, o modelo de educação
e evangelização, sobretudo o iniciador de um Movimento de
ressonância mundial, capaz de propor à atenção da Igreja e da
sociedade, com extraordinária força de impacto, as necessidades dos
jovens, sua condição, seu futuro. Pois bem, como fazer isso sem
recorrer à história, que não é guardiã de um passado já
perdido, mas de uma memória viva que está dentro de nós e que nos
interpela em função da atualidade?
A abordagem de Dom Bosco,
feita com métodos próprios da pesquisa histórica, leva-nos a
compreender melhor e a medir sua grandeza humana e cristã, sua
genialidade operativa, seus dotes educativos, sua espiritualidade,
sua obra: essas realidades serão compreensíveis somente se
estiverem profundamente radicadas na história da sociedade em que
viveu. Ao mesmo tempo, dispondo de um conhecimento mais aprofundado
do seu percurso histórico, tornamo-nos sempre mais conscientes da
intervenção providencial de Deus na sua vida.
Nesse estudo
histórico não há nenhuma intenção de rejeitar a
priori
as respeitabilíssimas imagens de Dom Bosco que gerações de
Salesianos, Filhas de Maria Auxiliadora, Salesianos cooperadores e
membros da Família Salesiana elaboraram, isto é, do Dom Bosco que
eles conheceram e amaram; o que existe e deve existir é a
apresentação e a reinterpretação de uma imagem de Dom Bosco que
seja atual, que fale ao mundo de hoje, que use uma linguagem
renovada.
A imagem de Dom Bosco e da sua ação devem ser
reconstruídas com seriedade a partir do nosso horizonte cultural: da
complexidade da vida hodierna, da globalização, da cultura
pós-moderna, das dificuldades da pastoral, da diminuição das
vocações, da vida consagrada hoje “posta em questão”. As
mudanças radicais ou de época, como as chamava meu predecessor
padre Egídio Viganò, nos obrigam a rever essa imagem e a repensá-la
sob outra luz, tendo em vista a uma fidelidade que não seja
repetição de fórmulas e obséquio formal à tradição. A
importância histórica de Dom Bosco deve ser pesquisada não só nas
suas “obras” e em alguns seus elementos pedagógicos
relativamente originais, mas particularmente na sua percepção,
concreta e afetiva, da importância universal, teológica e social do
problema
da juventude “abandonada”,
e na sua grande capacidade de transmitir essa percepção a numerosos
grupos de colaboradores, benfeitores e admiradores.
Ser fiéis a
Dom Bosco significa conhecê-lo em sua história e na história do
seu tempo, em fazer nossas suas inspirações e em assumir suas
motivações e opções. Ser fiéis a Dom Bosco e à sua missão
significa cultivar em nós um amor constante e forte dos jovens,
especialmente dos mais pobres. Esse amor nos leva a dar uma resposta
às suas necessidades mais urgentes e profundas. Como Dom Bosco, nós
nos sentimos tocados pelas suas situações de dificuldades:
pobreza, trabalho infantil, exploração sexual, falta de
educação e de formação profissional, inserção no mundo do
trabalho, falta de autoconfiança, medo perante o futuro, perda
do sentido da vida.
Com afeto profundo e amor desinteressado,
procuramos estar no meio deles de forma discreta e autorizada,
oferecendo propostas válidas para seu caminho, para suas opções de
vida e sua felicidade presente e futura. Nisso tudo nos tornamos seus
companheiros de caminhada e guias competentes. Em particular,
procuramos compreender seu novo modo de ser; muitos deles são
“nativos digitais” (“digital
natives”),
que por meio das novas tecnologias buscam experiências de
mobilização social, possibilidades de desenvolvimento intelectual,
recursos de progresso econômico, comunicação instantânea,
oportunidades de protagonismo. Também nesse campo queremos
compartilhar sua vida e seus interesses: animados pelo espírito
criativo de Dom Bosco, nós, educadores, nos aproximamos deles como
“migrantes digitais” (“digital
immigrates”),
ajudando-os a superar a distância (“gap”)
geracional em relação aos pais e ao mundo dos adultos.
Cuidamos
deles ao longo de todo o seu caminho de crescimento e maturação,
dedicando-lhes nosso tempo e nossas energias, e estando no meio deles
nas fases que vão da infância à juventude.
Cuidamos deles
quando situações difíceis, como a guerra, a fome, a falta de
perspectivas os levam ao abandono da própria casa e da sua família,
e eles de repente se veem sozinhos a enfrentar a vida.
Cuidamos
deles quando, depois do estudo e da qualificação, buscam
ansiosamente um primeiro emprego e se esforçam por inserir-se na
sociedade, às vezes sem esperança e sem perspectivas de
êxito.
Cuidamos deles quando estão construindo o mundo dos
seus afetos, sua família, particularmente acompanhando seu caminho
de noivado, os primeiros anos de matrimônio, o nascimento dos filhos
(cf. CG26, 98.99.104).
De modo especial, temos a peito
preencher o vazio mais profundo da sua vida, ajudando-os na busca de
sentido e, sobretudo, oferecendo-lhes um roteiro de crescimento no
conhecimento e na amizade com o Senhor Jesus, na experiência de uma
Igreja viva, no compromisso concreto para viver sua vida como uma
vocação.
Eis, portanto, o programa espiritual e pastoral para
o ano 2012:
Conhecendo
e imitando Dom Bosco,
façamos
dos jovens a missão da nossa vida
Numerosos
grupos da Família Salesiana já estão em sintonia com esse empenho
que nos enriquecerá a todos, a fim de voltarmos nossos olhos para
Dom Bosco, nosso Pai. Caminhemos, porém, sempre mais juntos como
Família.
2. Redescobrir a história de Dom Bosco
Dom Bosco, à distância de mais de um século de sua morte, continua a interessar a muita gente em muitos países. Ele é considerado uma figura significativa, mesmo fora do ambiente salesiano. Embora, por força da necessidade, já tenham desaparecido as amplificações que afetaram sua figura durante muitos decênios e que impressionaram o imaginário coletivo, Dom Bosco continua a ser um personagem de notável grandeza e de alto apreço. Longa sequência de papas e cardeais, bispos e sacerdotes, estudiosos católicos e não católicos, políticos de ideologias diversas, na Itália, na Europa e no mundo, reconheceram e reconhecem Dom Bosco como portador de uma mensagem moderna, profética, historicamente condicionada, mas aberta a muitas projeções atuais, virtualmente disponível para vastos espaços e tempos.
O
centenário da sua morte, o sesquicentenário da fundação da
Congregação Salesiana, a atual preparação do bicentenário do seu
nascimento e outras ocasiões específicas favoreceram uma abundante
produção de livros e jornais. Ao lado de estudos e pesquisas de
alto nível científico surgiram também estudos mais modestos, que
deram motivos a reservas interpretativas baseadas em premissas
críticas infundadas e em análises históricas insuficientes.
De
fato, Dom Bosco é uma figura poliédrica, que não pode ser reduzida
a simples fórmulas ou a títulos jornalísticos; é uma
personalidade complexa, feita de realidades ordinárias e
excepcionais, de projetos concretos ideais e hipotéticos, de um
estilo cotidiano de vida e ação, e ao mesmo tempo de especiais
relacionamentos com o sobrenatural. Uma figura desse quilate não
pode ser compreendida adequadamente a não ser na sua multiplicidade
de facetas e de dimensões; do contrário, a apresentação parcial
de um ou de alguns aspectos, quem sabe confundidos consciente ou
inconscientemente com um perfil completo, corre o risco de falsificar
a sua fisionomia.
Às vezes, podemos ficar perplexos diante de
obras em que a apologética e a descrição superficial de Dom Bosco
ocupa espaço demasiado, nas quais a exaltação da sua figura
predomina em prejuízo da verdade do personagem, facilmente
circunscrito a estereótipos aos quais jamais se pode reduzir Dom
Bosco. Isso vale particularmente neste momento histórico em que se
multiplicam as vidas dos santos, escritas com uma nova criteriologia.
De fato, um novo tipo de hagiografia adquiriu atualmente maior vigor,
baseando-se em interpretações históricas fundadas e numa renovada
leitura teológica da experiência espiritual dos Santos. Por isso,
faço votos que se prepare uma moderna “hagiografia” de Dom
Bosco; enquanto ela deve basear-se em recentes estudos históricos,
tem como objetivo suscitar o amor a ele, a imitação da sua vida, o
desejo de percorrer seu mesmo caminho espiritual; idêntico desejo
vale para uma nova hagiografia destinada aos jovens.
3. Motivações para o estudo da história de Dom Bosco
Numerosos
são, sem dúvida, os motivos que nos levam a estudar Dom Bosco.
Precisamos conhecê-lo como nosso Fundador, porque isso é exigido
pela nossa fidelidade à instituição a que pertencemos. Precisamos
conhecê-lo como Legislador, enquanto somos obrigados a observar as
Constituições e os Regulamentos propostos por ele diretamente ou
por meio de seus sucessores. Devemos conhecê-lo como Educador, para
que possamos viver o Sistema Preventivo, riquíssimo patrimônio que
ele nos deixou. Devemos conhecê-lo, em particular, como Mestre de
vida espiritual, dado que nós, como seus filhos e discípulos,
haurimos nossa espiritualidade da sua; de fato, ele nos ofereceu uma
chave de leitura do Evangelho; sua vida é para nós um critério
para realizar o seguimento do Senhor Jesus de forma típica. Sobre
isso escrevi uma carta aos irmãos salesianos, em janeiro de 2004,
“Contemplar
Cristo com o olhar de Dom Bosco” (ACG
384).
Hoje cresce em nós a consciência do risco que estamos
correndo, se não fortalecermos os liames que nos unem a Dom Bosco. O
conhecimento histórico fundamentado e afetivo ajuda a manter vivos
esses liames; a formação inicial e permanente deve favorecer os
estudos salesianos. Já passou mais de um século desde a morte de
Dom Bosco; morreram todas as gerações que direta ou indiretamente
tiveram contato com ele e com quem o tinha conhecido pessoalmente.
Aumentando a distância cronológica, geográfica e cultural em
relação a ele, diminui sempre mais aquele clima afetivo e aquela
proximidade, mesmo psicológica, que tornavam Dom Bosco e seu
espírito espontâneo e familiar à simples visão do seu retrato. O
que nos foi transmitido pode perder-se; o liame vivo com Dom Bosco
pode romper-se. Se desaparecer a referência ao nosso Pai comum, ao
seu espírito, à sua praxe, aos seus critérios inspiradores, não
teremos mais direito de cidadania na Igreja e na sociedade como
Família Salesiana, dado que nos encontraremos sem raízes e sem
nossa identidade.
Além disso, manter viva a memória da própria
história é garantia de possuir uma sólida cultura; sem raízes não
há futuro. Por isso, a organização da memória histórica e a
possibilidade de usufruí-la têm notável importância enquanto
apelo às raízes comuns que nos estimulam a repensar os problemas do
momento presente com uma consciência mais madura a respeito do nosso
passado. Apesar das transformações históricas e das inevitáveis
mudanças, isso nos dá garantia de que nossa Família continuará a
ser a portadora do carisma das origens e a guardiã vigilante e
criativa de uma tradição fecunda.
Obviamente, a consciência
do passado não deve tornar-se condicionamento. É preciso saber
discernir criticamente o significado histórico essencial de
eventuais redundâncias gratuitas e interpretações subjetivas
infundadas; dessa forma, se evitará atribuir historicidade
carismática a reconstruções que pouco têm a ver com a “verdadeira
história”. Esse modo de fazer história, às vezes, é utilizado
para evitar o sério problema da reconstrução do contexto
histórico. Também na interpretação da história de Dom Bosco é
preciso dispor de um sadio discernimento. Sempre vale também para
nós a advertência do Papa Leão XIII: o historiador nunca deve
dizer nada de falso, nem calar nada de verdadeiro. Se um santo tem
algum ponto fraco, é preciso reconhecê-lo com lealdade. O relevo
dado às imperfeições dos santos tem a tríplice vantagem de
respeitar a exatidão histórica, de sublinhar o absoluto de Deus e
de encorajar a nós, pobres vasos de argila, mostrando-nos que também
no herói de Cristo o sangue não era água.
A necessidade e a
urgência de um conhecimento profundo e sistemático de Dom Bosco
foram sublinhadas nas últimas décadas pelos documentos oficiais e
pelas intervenções autorizadas dos meus dois predecessores. Eu
mesmo, na carta do final de 2003 (ACG n. 383), me expressei nos
seguintes termos:
“Dom
Bosco conseguiu ser jovem e, por isso, de tanto estar no meio dos
jovens, pôr-se em sintonia com o futuro[...] Na experiência de
Valdocco, é claro que houve um amadurecimento da missão e, como
consequência, uma passagem da alegria de ‘ficar com Dom Bosco’ a
‘ficar com Dom Bosco para o bem dos jovens’, de ‘ficar com Dom
Bosco para o bem dos jovens de forma estável’ a ‘ficar com Dom
Bosco para o bem dos jovens de forma estável com votos’. Ficar com
Dom Bosco não exclui a
priori
a atenção aos tempos que o modelaram e condicionaram; requer,
porém, viver com seu empenho suas opções, sua dedicação, seu
espírito de empreendimento e de vanguarda. […] Tudo isto faz de
Dom Bosco um homem fascinante e, no nosso caso, um pai a amar, um
modelo a imitar e também um santo a invocar... Nós percebemos que
quanto mais aumenta a distância entre nós e o Fundador, mais real
se torna o risco de falar de Dom Bosco com base em ‘lugares
comuns’, histórias, sem um verdadeiro conhecimento do nosso
carisma. Daqui a urgência de conhecê-lo por meio da leitura e do
estudo; de amá-lo afetiva e efetivamente como pai e mestre por causa
da sua herança espiritual; de imitá-lo, procurando configurar-nos a
ele, fazendo da Regra de vida nosso projeto pessoal. Este é o
sentido do retorno a Dom Bosco – a que convidei a mim mesmo e toda
a Congregação desde a minha primeira ‘boa-noite’ – por meio
do estudo e do amor que procura compreender, para iluminar
nossa vida e desafios atuais. Junto com o Evangelho, Dom Bosco é
nosso critério de discernimento e nossa meta de identificação”.
Meu
desejo não está muito longe das reflexões do padre Francesco
Bodrato, primeiro inspetor na Argentina, que, em 5 de março de 1877,
numa carta aos seus noviços, escrevia:
“Quem
é Dom Bosco? Vocês querem que eu o diga? Sim, eu vou dizer a vocês
quem ele é de verdade, do jeito que aprendi e ouvi de outros. Dom
Bosco é o nosso pai; pai extremamente carinhoso e terno. Todos nós
que somos seus filhos dizemos isso. Dom Bosco é um homem
providencial ou um homem da Providência dos tempos: é o que dizem
os verdadeiros sábios. Dom Bosco é o homem da filantropia: é o que
dizem os filósofos. Eu concordo com tudo o que dizem dele, mas digo
que Dom Bosco é verdadeiramente aquele amigo que a Sagrada Escritura
qualifica como um grande tesouro. Pois bem, nós encontramos esse
verdadeiro amigo e esse grande tesouro. Maria Santíssima nos
iluminou para que pudéssemos conhecê-lo e Deus nos concede a graça
de tê-lo como nosso. Por isso, ai de quem o perder. Se vocês
soubessem, meus caros irmãos, quantas pessoas têm inveja de nós
por causa disso […] E se vocês concordam comigo em crer que Dom
Bosco é o verdadeiro amigo de que fala a Sagrada Escritura, então
devem ter o máximo cuidado para conservá-lo sempre e para copiá-lo
na própria vida” (F.
Bodrato, Epistolario.
Aos cuidados de B. Casali. Roma, LAS, 1995, p. 131-132).
Não
sem motivo o proêmio e os artigos 21, 97, 196 das Constituições
atuais da Congregação Salesiana nos apresentam Dom Bosco como
“guia” e “modelo”, e as próprias Constituições são
definidas como “testamento vivo”. Expressões análogas se
encontram também na regra de vida dos outros grupos da Família
Salesiana. Para todos nós que olhamos para Dom Bosco como nosso
ponto de referência, ele continua a ser o fundador, o mestre de
espírito, o modelo de educação, o iniciador de um Movimento de
ressonância mundial, capaz de despertar na Igreja e na sociedade,
com uma força impactante, a atenção às necessidades dos jovens, à
sua realidade, ao seu futuro. Não podemos deixar de perguntar-nos se
hoje a nossa Família ainda constitui essa força; se ainda temos
aquela coragem e aquela fantasia que foram de Dom Bosco; se na aurora
do terceiro milênio ainda somos capazes de assumir suas posições
proféticas em defesa dos direitos do homem e dos direitos de
Deus.
Indicadas as necessidades e a urgência do conhecimento e
do estudo de Dom Bosco para a Família Salesiana, para cada grupo,
comunidade, associação e pessoa, o caminho ainda está por ser
feito; o caminho indicado ainda não é o caminho percorrido. Toca a
cada um individuar os passos, as modalidades, os recursos, as etapas
e as oportunidades para que esse empenho seja realizado ao longo
deste ano. Não podemos chegar à celebração do bicentenário sem
conhecer melhor Dom Bosco.
4. Função atualizadora da história
Para alcançar esses objetivos não é suficiente que a grandeza de Dom Bosco esteja presente na consciência de cada um de nós. É condição indispensável conhecê-lo bem, para além do simpático anedotário que envolve nosso querido Pai, e da literatura edificante com que gerações inteiras se formaram. Não se trata de andar à procura de receitas fáceis para enfrentar, como Família, a “crise” atual da Igreja e da sociedade, mas de conhecê-lo profundamente, de modo que possa ser “atualizado” na aurora deste terceiro milênio, na fermentação cultural em que vivemos, nos diversos países em que trabalhamos. É necessário um conhecimento de Dom Bosco que se alimente da contínua tensão entre nossas interrogações a respeito do presente e a pesquisa de respostas que provenham do passado; somente assim poderemos ainda hoje inculturar o carisma salesiano.
Deve-se prestar atenção ao fato de que no momento das “viradas da história”, um Movimento carismático pode crescer e desenvolver-se somente sob a condição de que o carisma fundacional seja “reinterpretado vitalmente” e não permaneça como um “fóssil precioso”. Os Fundadores fizeram a experiência do Espírito Santo num preciso contexto histórico; por isso, é necessário determinar os elementos contingentes da sua experiência, dado que a resposta a uma situação histórica bem determinada vale até quando dura tal contingência. Em outras palavras, as “perguntas” da comunidade eclesial de hoje e as do atual contexto sociocultural não podem ser consideradas como algo “estranho” à nossa pesquisa histórica; esta deve determinar o que é transitório e o que é permanente no carisma, o que deve ser abandonado e o que deve ser assumido, o que é distante do nosso contexto e o que lhe é afim.
Não é possível fazer essa atualização sem nos servirmos da história, que – como já disse – não é a guardiã de um passado já perdido, mas de uma memória que vive em nós, ou seja, em função da atualidade. Uma atualização feita ignorando os progressos da ciência histórica é uma operação falsamente útil. Da mesma forma, não levam a grandes resultados, nem históricos nem atualizadores, as pesquisas e as leituras conduzidas de forma diletante, sem hipóteses claras, métodos adequados e sólidos instrumentos de trabalho, fora de um pensamento historiográfico vivo e atual. A historiografia comporta uma contínua revisão crítica de juízos elaborados, uma revisão necessária, ao passo que devemos reconhecer que o passado não pode ser considerado só como um monumento destinado à admiração, precisamente porque ele está ligado de forma profunda à pessoa de quem se deseja conhecer.
Não
se deve minimizar o fato de que a história de Dom Bosco não é
somente “nossa”, mas é história da Igreja e história da
humanidade. Portanto, ela não deveria estar ausente da
historiografia eclesiástica e civil de cada país, tanto mais que a
salesiana é uma história feita de interações dinâmicas, de
liames de dependência e colaboração e, às vezes, de embates com o
mundo social, político, econômico, eclesial e religioso, educativo
e cultural. Ora, não se pode pretender que “os outros” levem em
consideração nossa “história”, nossa “pedagogia”, nossa
“espiritualidade”, se nós não oferecermos a eles modernos
instrumentos de conhecimento. O diálogo com os outros só pode
ocorrer se tivermos o mesmo código linguístico, os mesmos
instrumentos conceituais, as mesmas competências, o mesmo
profissionalismo; caso contrário, ficaremos à margem da sociedade,
longe do debate cultural, ausentes dos lugares onde se encaminham as
soluções dos problemas do momento. A exclusão do debate cultural
em curso em cada país determinaria também a insignificância
histórica dos Salesianos, a sua marginalização social, a ausência
da nossa oferta de educação. Por isso, faço votos de um renovado
empenho na preparação de pessoas qualificadas para o estudo e a
pesquisa no campo da história salesiana.
A literatura
salesiana, a editoria salesiana, a pregação salesiana, as
circulares dos responsáveis nos diversos níveis, as comunicações
internas à Família Salesiana, devem estar à altura da situação.
A tradicional popularidade da literatura salesiana, a própria
divulgação, não podem significar superficialidade de conteúdo,
desinformação, repetição de um passado sem credibilidade. Quem
tem o dom ou o dever ou a oportunidade de falar, de escrever, de
formar, de educar os outros, tem a obrigação de atualizar-se
constantemente a respeito do conteúdo de seus discursos e de seus
escritos. Os instrumentos de trabalho da comunicação popular devem
ser de qualidade e da máxima credibilidade possível.
O estudo
de Dom Bosco é a condição para poder comunicar seu carisma e
propor sua atualidade. Sem conhecimento não pode nascer o amor, a
imitação e a invocação; tanto mais que só o amor leva ao
conhecimento. Trata-se, portanto, de um conhecimento que nasce do
amor e conduz ao amor: um conhecimento afetivo.
5. Mais de cem anos de historiografia “a serviço do carisma”
A produção historiográfica salesiana em mais de cento e cinquenta anos de vida percorreu um caminho notável, passando dos primeiros modestos perfis biográficos de Dom Bosco dos anos setenta do século XIX, às biografias encomiásticas, inspiradas numa leitura teológica, anedótica e taumatúrgica da sua vida e da sua obra, que a partir da década de oitenta e no século XX afora teve grande difusão.
Os momentos solenes da beatificação e da canonização de Dom Bosco estiveram obviamente na origem de uma série de escritos e opúsculos de caráter espiritual e edificante. Analogamente, para o âmbito pedagógico, se poderia falar a respeito da rica série de escritos e debates sobre Dom Bosco educador, depois da introdução do Método Preventivo de Dom Bosco nos programas escolásticos dos Institutos de formação do professorado primário da Itália.
No
imediato pós-guerra e nos anos cinquenta, as novas gerações
salesianas começaram a expressar certa inquietação a respeito da
literatura hagiográfica do passado. Surgia a exigência de uma
hagiografia do Fundador que não tivesse como objetivo somente a
edificação e a apologia, mas a verdade da figura em todos os seus
múltiplos aspectos: isto é, uma hagiografia que se situasse no
contexto da história e, como tal, assumisse todas as tarefas, os
deveres, os endereçamentos. Impunha-se, de certa forma, a
necessidade de sair do círculo já consolidado para promover uma
revisitação da história de Dom Bosco filologicamente captada e
avaliada nas fontes, historicamente conduzida segundo métodos
atualizados. Devia-se ultrapassar a ótica própria dos primeiros
Salesianos, que indubitavelmente era providencialista, teológica,
taumatúrgica, na qual as realidades do ambiente e as forças
operativas do tempo tendiam a desaparecer.
Essas perspectivas
de estudo e aprofundamento da figura de Dom Bosco, que havia tempo
vinham despontando, receberam forte impulso por parte do convite do
Concílio Vaticano II de retornar às genuínas realidades humanas e
espirituais das origens e do Fundador, para a necessária renovação
da vida consagrada (cf. Perfectae
Caritatis, Ecclesiae Sanctae).
Tudo isso exigia como condição indispensável o conhecimento dos
dados históricos. Sem uma sólida referência às raízes, a
atualização corria o risco de se tornar uma intervenção
arbitrária e incerta. E, assim, no novo clima cultural da década de
setenta, através de pressupostos, endereçamentos, métodos,
instrumentos de pesquisa da atualidade, compartilhados pela pesquisa
historiográfica mais séria, aprofundou-se o conhecimento do
patrimônio hereditário de Dom Bosco, rico em acontecimentos e
orientações, significados e virtualidades. Individuou-se o
significado histórico da mensagem, definiram-se os inevitáveis
limites pessoais, culturais, institucionais que, quase
paradoxalmente, prefiguravam e prefiguram ainda as condições de
vitalidade no presente e no futuro.
6. Rumo a uma leitura hermenêutica da história salesiana
Como primeira exigência de renovação o Concílio Vaticano II pediu para que retornássemos às fontes. A respeito disso, a Congregação publicou uma dezena de volumes das “Obras Editadas” de Dom Bosco e também das inéditas; o Centro de Estudos Dom Bosco da UPS e o Instituto Histórico Salesiano se encarregaram disso. Graças ao seu trabalho, milhares de páginas de escritos de Dom Bosco estão à nossa disposição, em edições cientificamente cuidadas e revistas, de modo a permitir a necessária análise filológica. De fato, como é possível compreender a famosa “Carta de Roma” que o padre Lemoyne redigiu em nome de Dom Bosco, se não se conhece a fundo a difícil situação disciplinar que se vivia em Valdocco e que naqueles mesmos anos provocava a “circular a respeito dos castigos”? O valor de uma carta autógrafa de Dom Bosco, sofrida, repleta de correções, acréscimos e anotações, tem, por acaso, o mesmo valor de uma circular, quem sabe até mesmo escrita por um de seus colaboradores e depois só assinada por Dom Bosco? Que significado dar aos contratos de trabalho firmados por Dom Bosco, se os relacionarmos com os anteriores ou contemporâneos redigidos por outros em Turim?
À
análise filológica deve seguir a análise
histórico-crítica, que
toma em consideração tanto o conteúdo explícito das fontes quanto
aquilo que, lidas superficialmente, elas não dizem, mas dão a
entender. Nenhum texto, muito menos os textos de Dom Bosco,
personagem “encarnado” na história, se explica sem a relação
com o tempo em que foi escrito, situado num determinado contexto, em
relação a determinadas pessoas, segundo certas finalidades. Como
disse, os escritos de Dom Bosco e sobre Dom Bosco contêm a
interpretação do Evangelho marcado pelo influxo da época, das
ideias, das estruturas mentais, das perspectivas, da linguagem e dos
valores do tempo.
As duas operações precedentes conduzem à
terceira e mais importante: a
análise vital e atualizadora,
capaz de repensar, de exprimir e atualizar novamente o conteúdo das
fontes. A respeito disso é necessário adotar alguns critérios
hermenêuticos, sem os quais a interpretação das expressões de Dom
Bosco, das suas posições teóricas e práticas, dos modos concretos
de viver a relação com Deus e com a sociedade, poderiam até ser
contraproducentes. A simples repetição de frases de Dom Bosco
poderia levar-nos inclusive a trair a identidade salesiana. De fato,
trata-se de textos e testemunhos próprios de uma “cultura” hoje
superada, de uma tradição e de uma teologia que certamente não são
mais as nossas e, por isso, não estão mais imediatamente ao nosso
alcance.
A Congregação Salesiana nos anos de 1970 e 1980 do
século passado fez um grande esforço de renovação, cujo fruto
maduro é o das Constituições renovadas. Os salesianos elaboraram
uma reflexão histórico-espiritual que já é em si mesma uma
hermenêutica das fontes salesianas e dos “sinais dos tempos”. Se
folhearmos o índice analítico dessas Constituições, encontramos
uma bela surpresa: o nome de Dom Bosco aparece diretamente perto de
40 vezes. Nos primeiros 17 artigos está presente 13 vezes; mas
também onde o nome não aparece explicitamente, a referência ao seu
pensamento, à sua praxe, aos seus escritos, é constante. E dizer
que no século XIX a Santa Sé obrigava a não fazer menção nas
Constituições do nome e dos escritos do fundador! Isso vale também
para outras Constituições, Regulamentos e Projetos de vida de
outros grupos da Família Salesiana.
À distância de quarenta
anos do Concílio, deve-se obrigatoriamente tomar conhecimento de que
a pesquisa histórica a respeito da vida humana e espiritual de Dom
Bosco fez notáveis progressos, graças a estudos que adotaram os
novos quadros de referência, que levaram em consideração novos
métodos de pesquisa e modernas categorias de avaliação, que
recorreram a novas perspectivas, a partir da análise de documentos
inéditos ou de novas interpretações de documentos já conhecidos.
A nova hagiografia crítica obteve pelo menos dois efeitos positivos:
antes de tudo, o de mostrar-nos o rosto genuíno de Dom Bosco e a
verdadeira grandeza do nosso Pai; em segundo lugar, o de levar em
conta a pessoa de Dom Bosco na história civil.
De fato, até
algumas décadas atrás, a historiografia laica tinha uma espécie de
alergia por Dom Bosco e não lhe dedicava espaço, talvez por causa
de certos tons edulcorantes, de certo sensacionalismo milagreiro, de
certa magia no campo do sagrado, aspectos, este, que enchiam
biografias edificantes e repletas de casos maravilhosos. Hoje, pelo
contrário, Dom Bosco é tomado a sério. Obviamente, a figura que se
apresenta nesses casos não pode deixar de ser afetada pelos
critérios historiográficos dos diversos autores, pela sua
mentalidade, pelos seus pressupostos ideológicos, pelas suas
finalidades, pela disponibilidade quantitativa e qualitativa das
fontes, pelos métodos usados ao pesquisá-las, pelos seus diversos
níveis de leitura, pelas características do momento cultural que
criaram tais critérios.
Tudo isso corresponde à nova
sensibilidade presente em nossa Família, que tem um amor maior pela
própria vocação e missão. Como já acenei, o estudo de Dom Bosco
feito com os métodos próprios da pesquisa histórica leva a medir
melhor sua grandeza, sua genialidade operativa, seus dotes de
educador, sua espiritualidade, sua obra; esses dados são
compreensíveis somente se forem plenamente enraizados na história
da sociedade em que Dom Bosco viveu. Não rejeitemos a
priori
o que de válido recebemos a respeito da imagem de Dom Bosco,
transmitida a nós por gerações de Salesianos e de membros da
Família Salesiana. Hoje, porém, precisamos de um repensamento, de
uma ulterior reflexão, que nos apresente uma imagem de Dom Bosco que
seja atual, que fale ao mundo de hoje, que use uma linguagem
renovada. De fato, a validade da imagem oferecida depende do grau de
aceitabilidade e de compartilhamento por parte da atualidade.
7. Qual é a imagem de Dom Bosco hoje?
Diante dessa literatura salesiana necessariamente em evolução, é evidente que também hoje precisamos responder a uma série de perguntas.
Quem foi Dom Bosco? O que ele disse, o que fez e escreveu? Com que modalidade de vida e de ação ele conseguiu ampliar suas obras de bem? Que relação existe entre seu pensamento e sua atividade? Quais foram a origem das suas ideias, o seu desenvolvimento e a sua novidade? Que consciência teve de si mesmo e da própria mensagem no início da sua obra e qual foi a percepção que teve gradualmente ao longo da sua vida? Que tipo de percepção a respeito dele, da sua obra e da sua mensagem tiveram seus primeiros colaboradores leigos e eclesiásticos, os primeiros salesianos, as FMA, os Cooperadores, os alunos e o ex-alunos? Como compreenderam e avaliaram Dom Bosco os seus contemporâneos: papa, bispos, sacerdotes, religiosos, autoridades políticas e civis, detentores do poder econômico e financeiro, crentes ou não crentes, as massas?
Qual foi a imagem de Dom Bosco construída e transmitida pela “tradição histórica”, pelos cronistas e pelos biógrafos contemporâneos, pelas testemunhas dos processos, pelas comemorações e apoteoses dos aniversários e das datas significativas (1915, 1929 1934, 1988, 2009)? Quais foram as interpretações da sua “missão” histórica? Tratou-se de uma resposta providencial às necessidades de uma Igreja perseguida? Uma resposta católica às necessidades dos tempos? Uma solução do “problema dos jovens pobres e abandonados”, do problema social, da cooperação entre as “classes”? Uma promoção das massas populares no respeito da ordem vigente? Uma ação missionária e civilizadora?
O que caracteriza propriamente Dom Bosco? Foi o inventor de uma “pedagogia” idônea para aproximar os jovens “periclitantes e perigosos”? Foi mestre de espiritualidade para os jovens em situação de risco, para as classes inferiores, para os povos em via de desenvolvimento? Foi o Santo da alegria, dos valores humanos, do encontro com todos sem discriminações? Ou talvez tudo isso e muito mais?
Hoje,
é preciso reconstruir essa imagem de Dom Bosco; é necessário vê-lo
sob outra luz, para uma fidelidade que não seja repetição,
obséquio a fórmulas ou dissociações. Não basta limitar-se a
qualquer tipo de leitura de animação ou a algum ensaio de
estudiosos; precisamos, todos juntos, aprofundar a salesianidade para
chegarmos a uma visão comum, culta, profissional, profunda, que
saiba valorizar o patrimônio histórico, pedagógico, espiritual,
herdado de Dom Bosco; que conheça a fundo a realidade juvenil, que
possua um perfil claro do cristão na sociedade de hoje e de amanhã,
com os correspondentes compromissos “de acordo com as necessidades
dos tempos”. Em outras palavras, trata-se de rever as intuições e
as estruturas de agregação e de educação, de reler o Sistema
Preventivo em chave de atualidade, de apresentar ao mundo e à Igreja
um estilo particular de educador salesiano.
Hoje, mais do que de
crise de identidade, talvez se trata de crise de credibilidade.
Tem-se a impressão de estarmos sob a tirania do statu
quo, mais
em nível de resistências inconscientes do que intencionais. Embora
convictos a respeito da verdade dos valores teológicos de que está
impregnada nossa vida cristã e consagrada, sentimos dificuldade de
atingir o coração dos nossos destinatários, para os quais
deveríamos ser sinais de esperança; somos sacudidos pela
irrelevância da fé na construção da sua vida; constatamos uma
escassa sintonia com o seu mundo, a distância, para não dizer a
estraneidade, de seus projetos humanos; damo-nos conta de que nossos
sinais, nossos gestos, nossa linguagem não parecem incidir em sua
vida.
Talvez haja pouca clareza quanto à função da missão a
que nos dedicamos; talvez alguns não estejam convencidos da
utilidade da nossa missão; talvez não encontrem o trabalho adequado
às suas aspirações porque não sabemos inovar; talvez se sintam
aprisionados pelas emergências que se tornaram cada vez mais
prementes; talvez haja pouca estima mais ad
intra
do que ad
extra.
A história nos poderá socorrer na ação de atualização do
carisma. Por isso, limito-me a evidenciar aqui alguns aspectos,
demorando-me particularmente quanto ao primeiro.
7.1 Evolução das obras e dos destinatários. Para Dom Bosco, a abertura de novas obras é determinada pelas exigências da situação. A pobreza cultural dos jovens provoca em Valdocco a abertura de uma escola elementar dominical, depois noturna, em seguida diurna, especialmente para quem não pode frequentar a escola pública; finalmente, outras escolas, diversos laboratórios, e assim por diante, rumo à complexa “casa anexa” ao Oratório de São Francisco de Sales. Essa primeira obra, de simples lugar e encontro nos dias festivos para o catecismo e para o divertimento, torna-se lugar de formação global; para certo número de jovens sem meios de subsistência, torna-se uma casa, um lugar de residência. Ao pátio e à igreja, onde se desenvolve um programa com a possibilidade dos sacramentos, da instrução religiosa elementar, do divertimento, de interesses, de festas religiosas e civis, de dons, somaram-se outras estruturas para oferecer a aprendizagem de um ofício, evitando frequentar fábricas da cidade, às vezes muito imorais e perigosas para jovens já marcados por um passado difícil. Depois, fundaram-se outras casas salesianas, outros pequenos seminários confiados aos cuidados da já então existente Sociedade salesiana.
Para
o primeiro oratório confluíram tanto jovens provenientes das casas
de correção quanto imigrados e, em geral, jovens sem fortes liames
com as respectivas paróquias. Depois, num degrau mais alto, são
acolhidos no oratório e no internato estudantes e aprendizes que
vivem longe da “pátria”, que vão para a cidade a fim de
aprender um ofício ou fazer estudos que os habilitem a um emprego.
Para certo número de jovens pertencentes a essa categoria ou que
vivem em particulares dificuldades ou ainda que têm alguma
disponibilidade econômica, é aberta a possibilidade de aprender um
ofício nos laboratórios organizados ou de fazer estudos em escolas
em colégios. Essa população entra normalmente nas duas diversas
categorias sociais: a “classe pobre” e a “classe média”.
Exigências particulares favorecem também a instituição de escolas
elementares, técnicas, humanísticas, profissionais, agrícolas,
externatos, colégios também para a classe média-alta, em que se
trata de contrastar análogas iniciativas laicais ou protestantes, ou
então de garantir uma educação integralmente católica segundo o
Sistema Preventivo.
A preferência pelos mais pobres é
considerada por Dom Bosco compatível com a maciça destinação de
escolas e colégios para a “classe média”. Ele não rejeita
qualquer gênero de pessoas, mas prefere ocupar-se com a classe média
e a classe pobre, porque seus jovens estão mais necessitados de
socorro e de assistência. De qualquer forma, o mecanismo das
“diárias” a pagar não permitiu grandes aberturas para com os
verdadeiros pobres ou com os “meio pobres”, a não ser para
grupos limitados de jovens mantidos pela beneficência pública ou
privada. Além disso, uma categoria específica é constituída por
aqueles jovens entre os mais pobres e periclitantes que se encontram
em lugares de missão, privados da luz da fé. Naturalmente a ação
missionária não se limita aos jovens, mas tenta envolver todo o
mundo que os rodeia; nem se limita à ação estritamente pastoral,
mas se interessa por todos os aspectos da vida civil, cultural,
social, segundo quanto o próprio Dom Bosco diz em uma sua carta de
1º. de novembro de 1886: levar “a religião e a civilização
entre aqueles povos e nações que ainda ignoram a primeira e a
segunda”. São privilegiados também, sem distinção de classes,
os jovens que manifestam propensão para o estado eclesiástico ou
religioso; é o dom mais precioso que se pode fazer à Igreja e à
própria sociedade civil.
Finalmente, devem-se constatar as
extensas zonas da marginalização de “jovens pobres e abandonados”
em situações particularmente graves, às vezes trágicas, que
permanecem estranhas à atividade de Dom Bosco: a faixa emergente dos
jovens sempre mais envolvidos na “indústria” nascente da
assistência, proteção e formação do ponto de vista social e
sindical; o mundo da delinquência juvenil verdadeira e própria
existente em Turim; as obras para a recuperação de menores
delinquentes ou próximos à delinquência, com algumas das quais
entrou em tratativas mais ou menos claras; o imenso continente da
pobreza e da miséria não só nas cidades, mas também e, às vezes
ainda mais, no campo; o vasto planeta do analfabetismo e da educação
artesã e profissional; o mundo da desocupação e da migração;
finalmente, o mundo da deficiência mental e física.
Ora, essa
página da história nos obriga a refletir em perspectiva
atualizadora.
Quem são hoje os nossos destinatários privilegiados? Quais são as
obras adequadas às suas necessidades? O desaparecimento nas
Constituições salesianas renovadas do elenco das obras salesianas
típicas que contemplavam em primeiro lugar os oratórios, por acaso,
não contribuiu a reduzir o número dos nossos oratórios clássicos,
substituídos talvez por escolas superiores e universitárias?
7.2
Juventude
abandonada.
Como disse no início, a importância histórica de Dom Bosco deve
ser procurada, não só nas obras e em certos elementos metodológicos
relativamente originais, mas também na percepção intelectual e
emotiva da dimensão universal, teológica e social do problema da
“juventude abandonada” e na grande capacidade de transmiti-la a
densos grupos de colaboradores, benfeitores e
admiradores.
Perguntemo-nos, então: hoje, somos seus fiéis
discípulos? Vivemos ainda a tensão que Dom Bosco tinha entre ideal
e realização, entre intuição e concretização no tecido social
em que ele agia?
7.3 Resposta às necessidades dos jovens. Dado que as iniciativas assistenciais e educativas de Dom Bosco em favor dos jovens se sucedem no plano prático dentro de certo “ocasionalismo”, é preciso também dizer que suas “respostas” aos problemas não resultam de um “programa” orgânico e não são postas em prática em consequência de uma visão prévia e completa do quadro social e religioso do século XIX.
Dom
Bosco, esbarrando em problemas particulares, dá respostas também
imediatas e localizadas, até que, gradualmente, as diversas
condições juvenis o levam a propor-se de forma global “o problema
dos jovens” no mundo inteiro. Na vida heroica de Dom Bosco não se
constatam planos preventivos e estratégias de ação em longo prazo,
preparados à escrivaninha – coisas que hoje, com justiça,
consideramos indispensáveis – mas emergem soluções eficazes, às
vezes imprevistas, de problemas imediatos.
Que significa tudo
isso, hoje, para nós, que vivemos numa “aldeia global” onde tudo
é conhecido em tempo real, onde está à nossa disposição uma
ampla sequência de ciências especializadas? Como passar de uma
política de emergência a uma política de programação?
Baseando-nos em que critérios específicos nós podemos realizar as
opções operativas no contexto dos meandros da história, não
ficando estranhos a ela? Como evitar o duplo risco de perder unidade
e identidade por querer fazer tudo, para abandonar obras estáveis e
passar a coisas passageiras não bem pensadas, para desperdiçar
recursos em curto prazo; e o risco de tornar absolutos e perenes
certos aspectos contingentes do Fundador, acabando por
contentar-nos com o que já temos e que já conhecemos de uma
tradição fossilizada, defendida em boa-fé por fidelidade ao
passado?
7.4
Flexibilidade
de resposta às necessidades.
Da análise histórica resulta a genialidade e a capacidade de Dom
Bosco de coordenar, em torno da sua vocação de “salvar” os
jovens, obras educativas destinadas aos jovens das classes populares
urbanas, com ulteriores e variadas atividades que se destinavam a
outros ovjetivos. Em torno do pequeno Oratório de Valdocco Dom Bosco
conseguiu polarizar milhares de jovens, conquistar o consenso e o
apoio do ambiente eclesiástico num leque sempre mais amplo,
virtualmente universal. E o fechamento de obras, como o Oratório do
Anjo da Guarda em Turim, de casas salesianas isoladas como Cherasco,
Trinità, não era índice de retrocesso, mas de um ajuste e de um
novo impulso. É prova disso a expansão da sua missão com obras que
visavam à formação juvenil: a fundação das FMA, as missões, os
Cooperadores, o Boletim Salesiano. Essas diversas iniciativas põem
em evidência uma contínua coordenação, sempre uma nova retomada,
um desenvolvimento ulterior.
Ora, como não observar que em
nossa ação deve ser considerada importante não só e não tanto a
imagem, mas a realidade que se renova e se desenvolve com uma
coordenação sábia? O forçado fechamento de tantas obras não
corre muitas vezes o perigo de parecer uma simples escapatória, em
vez de uma opção ordenada para um desenvolvimento maior?
7.5
Pobreza
de vida e trabalho incansável.
Nos apontamentos que a tradição chamou de “Testamento
espiritual”, Dom Bosco deixou escrito: “Desde o momento em que
começar a aparecer o bem-estar nas pessoas, nos quartos ou nas
casas, também começará a decadência da nossa congregação. […]
Quando começarem entre nós as comodidades ou o bem-estar, a nossa
pia sociedade terá feito o seu curso” (P. Braido [ed.], “Don
Bosco educatore, scritti e testimonianze”,
Roma, LAS, 1992, p. 409, 437).
Hoje, inspirando-nos em Dom
Bosco, não deveríamos ter a coragem de dizer que quando uma
comunidade religiosa se fecha diante da TV e dos jornais por horas a
fio, é sinal de que pelo menos naquele lugar demos por encerrado o
nosso curso? O que dizer quando uma obra salesiana se reduz a quatro
meninos com uma bola e uma TV, e não encontra tempo para convocar
jovens e envolvê-los nas próprias iniciativas, mas, ao contrário,
encontra tempo para passeios culturais? Talvez aquela obra tenha
terminado o seu curso, dado que o número de jovens numa obra
salesiana local, embora não seja tudo, é sempre o termômetro da
razão de ser de uma casa num determinado território.
8. Sugestões para a concretização da Estreia
Partindo do conhecimento da história de Dom Bosco, os grandes pontos de referência e os compromissos da Estreia 2012 poderão ser os que vou apresentar em seguida; depois, cada grupo da Família Salesiana poderá concretizá-los.
8.1 A caridade pastoral caracteriza a história de Dom Bosco e é a alma das suas múltiplas obras. Podemos dizer que essa é a perspectiva histórica sintética através da qual se deve ler toda a sua existência. O Bom Pastor conhece as suas ovelhas e as chama pelo nome; Ele lhes mata a sede com águas cristalinas e as apascenta em prados verdejantes; torna-se a porta através da qual as ovelhas entram no redil; dá a própria vida para que as ovelhas tenham vida em abundância (cf. Jo 10,11ss.). A força maior do carisma de Dom Bosco consiste no amor que é haurido diretamente do Senhor Jesus, imitando-o e permanecendo n’Ele. Esse amor consiste em “dar tudo”. Daqui dimana seu voto apostólico: “Prometi a Deus que até meu último respiro seria para os meus pobres jovens” (MB XVIII, 258; cf. Const. SDB 1). Esta é a nossa marca e a nossa credibilidade junto aos jovens.
8.2 Na história de Dom Bosco, nós conhecemos as inumeráveis fadigas, renúncias, privações, sofrimentos, os numerosos sacrifícios que ele fez. O Bom Pastor dá a vida por suas ovelhas. Por meio das necessidades e das solicitações dos jovens, Deus está pedindo a cada membro da Família Salesiana que sacrifique a si mesmo em favor deles. Viver a missão não é, portanto, um ativismo vão; pelo contrário, é conformar nosso coração com o coração do Bom Pastor que não quer que nenhuma de suas ovelhas se perca. É uma missão profundamente humana e profundamente espiritual. É um caminho de ascese; não se dá presença animadora entre os jovens sem ascese e sacrifício. Perder alguma coisa, ou melhor, perder tudo para enriquecer a vida dos jovens, é o que sustenta nossa dedicação e nosso empenho.
8.3 Na ata de fundação da Congregação Salesiana e, sobretudo, no desenvolvimento histórico da múltipla obra de Dom Bosco, nós podemos conhecer as finalidades da Família Salesiana que, pouco a pouco, iam se delineando. Nós somos chamados a ser apóstolos dos jovens, dos ambientes populares, das zonas mais pobres e missionárias. Hoje, mais do que nunca, nos empenhamos em compreender e assumir criticamente a cultura midiática, e nos servimos dos meios de comunicação social, em particular das novas tecnologias, como potenciais multiplicadores da nossa ação de aproximação e de acompanhamento dos jovens. Enquanto estamos no meio deles como educadores, imitando o que fez nosso Pai Dom Bosco, nós os envolvemos como nossos primeiros colaboradores, confiamos a eles responsabilidades, os ajudamos a assumir a iniciativa, os habilitamos a serem apóstolos dos seus colegas. Dessa forma, podemos dilatar sempre mais o grande coração de Dom Bosco, que teria querido alcançar e servir os jovens do mundo inteiro.
8.4 Os bons propósitos não podem ficar vazias declarações. O conhecimento de Dom Bosco deve ser traduzido em empenho com e para os jovens. Como Dom Bosco, hoje, Deus nos espera nos jovens! Por isso, precisamos procurá-los e ficar com eles nos lugares, nas situações e nas fronteiras onde eles nos esperam. Por isso, é preciso ir ao encontro deles, dar sempre o primeiro passo, caminhar junto com eles. É consolador ver como em todo o mundo a Família Salesiana se prodigaliza em favor dos jovens mais pobres: meninos de rua, meninos marginalizados, meninos trabalhadores, meninos soldados, jovens aprendizes, órfãos abandonados, crianças exploradas. Um coração que ama é sempre um coração que se interroga. Não basta organizar ações, iniciativas, instituições para os jovens; é preciso garantir a presença, o contato, o relacionamento com eles: trata-se de retomar a prática da assistência e redescobrir a presença no pátio.
8.5 Também hoje Dom Bosco se interroga. Por meio do conhecimento da sua história, devemos ouvir as perguntas de Dom Bosco dirigidas a nós. O que podemos fazer a mais para os jovens pobres? Quais são as novas fronteiras no lugar onde trabalhamos, no país em que vivemos? Temos ouvidos para escutar o grito dos jovens de hoje? Além das já citadas pobrezas, quantas ainda tornam pesado o caminho dos jovens de hoje? Quais são as novas fronteiras em que hoje nos devemos empenhar? Pensemos na realidade da família, na emergência educativa, na desorientação da educação afetiva e sexual, na falta de compromisso social e político, no perigo de refugiar-se na privacidade da vida pessoal, na fragilidade espiritual, na infelicidade de tantos jovens. Ouçamos o grito dos jovens e ofereçamos respostas às suas necessidades mais urgentes e mais profundas, às suas necessidades materiais e espirituais.
8.6 Conhecendo suas vicissitudes pessoais, podemos conhecer as respostas de Dom Bosco diante das necessidades dos jovens. Desse modo, podemos considerar melhor as respostas que traduzimos em ações, e outras que devemos dar. Certamente, as dificuldades não faltam. Será preciso também “enfrentar os lobos” que querem devorar o rebanho: o indiferentismo, o relativismo ético, o consumismo que destrói o valor das coisas e das experiências, as falsas ideologias. Deus nos chama e Dom Bosco nos encoraja a sermos bons pastores, para que os jovens ainda possam encontrar pais, mães, amigos; sobretudo, possam encontrar Vida, a verdadeira Vida, a Vida em abundância oferecida por Jesus!
8.7 As Memórias do Oratório de São Francisco de Sales escritas por Dom Bosco a pedido explícito do Papa Pio IX são um ponto de referência imprescindível para conhecer o caminho espiritual e pastoral de Dom Bosco. Foram escritas para que nós pudéssemos conhecer os inícios prodigiosos da vocação e da obra de Dom Bosco, mas, sobretudo, para que, assumindo as motivações e as opções de Dom Bosco, cada um de nós, individualmente e cada grupo da Família Salesiana, pudéssemos percorrer o mesmo caminho espiritual e apostólico. Elas foram definidas como “memórias de futuro”. Por isso, durante este ano, empenhemo-nos em conhecer esse texto, em comunicar seu conteúdo, em difundi-lo, de modo especial em colocá-lo nas mãos dos jovens: ele se tornará um livro inspirador também para as suas opções vocacionais.
9. Conclusão
Como de costume, desejo concluir a apresentação da Estreia com um conto sapiencial. Antes disso, porém, gostaria de recordar aqui o “sonho dos 9 anos”. De fato, parece-me que essa página autobiográfica ofereça uma apresentação simples, mas ao mesmo tempo profética, do espírito e da missão de Dom Bosco. Nele é definido o campo de ação que lhe é confiado: os jovens; é indicado o objetivo da sua ação apostólica: fazê-los crescer como pessoas por meio da educação; é apresentado o horizonte em que se move todo o seu e o nosso agir: o plano maravilhoso de Deus que, antes de todos e mais do que todos, ama os jovens. É Ele que os enriquece com tantos dons e os faz responsáveis pelo seu próprio crescimento, para uma inserção positiva na sociedade. No projeto de Deus, a eles é garantido, não só um bom êxito nesse caminho, mas também a felicidade eterna. Ponhamo-nos, pois, a ouvir Dom Bosco e ouçamos o “sonho da sua vida”.
“O menino do sonho”
Nessa idade tive um sonho, que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida. Pareceu-me estar perto de casa, numa área bastante espaçosa, onde uma multidão de meninos estava a brincar. Alguns riam, outros divertiam-se, não poucos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias, lancei-me de pronto no meio deles, tentando, com socos e palavras, fazê-los calar. Nesse momento apareceu um homem venerando, de aspecto varonil, nobremente vestido. Um manto branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém, era tão luminoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo nome e mandou que me pusesse à frente daqueles meninos, acrescentando estas palavras:
Não
é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar
esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a
fealdade do pecado e a preciosidade da virtude.
Confuso
e assustado repliquei que eu era um menino pobre e ignorante, incapaz
de lhes falar de religião. Senão quando aqueles meninos, parando de
brigar, de gritar e blasfemar, juntaram-se ao redor do personagem que
estava a falar. Quase sem saber o que dizer, acrescentei:
-
Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis?
-
Justamente porque te parecem impossíveis, deves torná-las possíveis
com a obediência e a aquisição da ciência.
-
Onde, com que meios poderei adquirir a ciência?
-
Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio,
e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice.
-
Mas quem sois vós que assim falais?
-
Sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao
dia.
-
Minha mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que não
conheço; dizei-me, pois, vosso nome.
-
Pergunta-o a minha mãe.
Nesse
momento vi a seu lado uma senhora de aspecto majestoso, vestida de um
manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse
fulgidíssima estrela. Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas
perguntas e respostas, acenou para que me aproximasse e, tomando-me
com bondade pela mão, disse:
-
Olha.
Vi
então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar deles estava
uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos e outros animais.
-
Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte,
robusto; e o que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo
aos meus filhos.
Tornei
então a olhar, e em vez de animais ferozes apareceram mansos
cordeirinhos que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele
homem e daquela senhora, como a fazer-lhes festa.
Neste
ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi que falassem de
maneira que pudesse compreender, porque não sabia o que significava
tudo aquilo. A senhora descansou a mão em minha cabeça, dizendo:
-
A seu tempo tudo compreenderás.
Após
essas palavras, um ruído qualquer me acordou, e tudo desapareceu.
Fiquei transtornado. Parecia-me ter as mãos doloridas pelos socos
que desferira e doer-me o rosto pelos tapas recebidos; além disso,
aquele personagem, a senhora, as coisas ditas e ouvidas de tal modo
me encheram a cabeça que naquela noite não pude mais conciliar o
sono”
(Memórias do Oratório de São Francisco de Sales. Texto
crítico aos cuidados de Antônio da Silva Ferreira, 3ª. Edição.
São Paulo, Editora Salesiana, 2005, p. 28-30).
Dom
Bosco escreve nas Memórias do Oratório que aquele sonho “ficou
profundamente impresso na sua mente por toda a vida”, de tal modo
que hoje nós podemos dizer que ele viveu para transformar aquele
sonho em realidade.
Pois bem, o que nosso querido Pai tomou como
programa de vida, fazendo dos jovens a razão de ser de sua
existência e gastando por eles todas as suas forças até o último
respiro, é o que todos nós somos chamados a fazer.
O episódio
final, que desta vez tomo da história, ilustra eloquentemente o
desejo de Dom Bosco de ser para os jovens um sinal de amor que jamais
acabará. Ouvi-o contar a primeira vez por parte de um irmão da
Inspetoria da Austrália, padre Lawrie Moate, num discurso de
felicitações pronunciado por ocasião de uma celebração de
jubileus de vida salesiana, em Lysterfield, em 9 de julho de 2011:
“E a nossa música continua”
“Imaginem
o pátio da prisão de uma colônia europeia do século XVII. É o
amanhecer e, enquanto o sol começa a encher de cores douradas o céu
do oriente, um prisioneiro é trazido para fora, no pátio, para a
execução capital. Trata-se de um padre condenado à morte por se
ter oposto às crueldades com que eram tratados os índios da
colônia. Agora está de pé de costas contra o muro e contempla os
que compõem o pelotão de execução, seus compatriotas. Antes de
vendar-lhe os olhos, o oficial que comanda o pelotão lhe faz a
tradicional pergunta a respeito do seu último desejo a ser cumprido.
A resposta chega como uma surpresa para todos: o homem pede para
tocar pela última vez a sua flauta. Os soldados, então, recebem
ordem de ficar em posição de descanso, enquanto esperam que o
prisioneiro toque a sua flauta. Quando as notas começam a ferir o ar
silencioso da manhã, o ambiente da prisão é inundado por uma
música que se difunde doce e encantadora, enchendo de paz aquele
lugar marcado diariamente pela violência e pela tristeza. O oficial
está preocupado porque, quanto mais se prolonga a música, tanto
mais absurda lhe parece a tarefa que deve desempenhar. Por isso,
ordena aos soldados que abram fogo. O padre morre no mesmo instante,
mas, para estupor de todos os presentes, apesar da morte, a música
continua a sua dança da vida. Donde provém aquela doce música da
vida?
Numa
sociedade totalmente empenhada em sufocar a mensagem de Cristo, penso
que a nossa vocação seja a de estarmos entre aqueles que continuam
a fazer ouvir a música da vida. Num mundo que está fazendo de tudo
para que os jovens não escutem o insistente convite de Cristo “vinde
e vede”, é nosso privilégio sermos atraídos por Dom Bosco e
encorajados a tocar a música do coração, a testemunhar a
transcendência, a exercer a paternidade espiritual, a estimular os
jovens a caminharem numa direção que corresponde à sua dignidade e
aos seus desejos mais autênticos. Esta é a dança do Espírito!
Esta é a música de Deus!
Caríssimos irmãos, irmãs, membros da Família Salesiana, amigos de Dom Bosco, jovens, desejo a todos um ano-novo de 2012 cheio das bênçãos de Deus e um renovado empenho para continuar a fazer ouvir a música, a nossa música, a que enche de sentido a vida dos jovens e os faz encontrar a fonte da alegria.
A todos um abraço e minha lembrança no Senhor.
Roma, 31 de dezembro de 2011
Padre
Pascual Chávez Villanueva
Reitor-Mor