Nesse sentido, para Galimberti, não há diferença entre natureza e cultura, levando em conta
que, antropologicamente, a técnica – que é o elemento que possibilitou a cultura - é naturalmente
constitutiva do homem. Não há homem sem técnica. Não fosse a mediação da técnica - nascida da
ação – a inteligência humana continuaria como potência, mas não se transformaria em ato, o ato de
refletir, de auto-reconhecer-se e de solucionar problemas, de transcender.
A técnica, ao existir, se manifesta em “tecnologias”. Uma infinidade delas. Nesse sentido, a
técnica não seria apenas elemento alavancador da cultura. Seria a própria cultura, constituindo-se
numa espécie de segunda natureza do homem. Sem ela o homem não se reconheceria como
“humano”, isto é, não teria tido a oportunidade de sentir sua consciência e de reconhecer-se como
inteligente e racional, de produzir conhecimentos, de fazer história, de sonhar e de produzir.
Assim, quando Galimberti fala da “técnica” como segunda natureza não está se referindo
exatamente ao que hoje denominamos como tecnologias, isto é, como artefatos, do aparentemente
mais simples (a roda) ao mais complexo (o mundo digital e suas constantes auto-superações). Está
falando do conjunto dos dispositivos através dos quais o homem busca encontrar soluções para suas
demandas ou para os problemas que a vida lhe propõe.
No caso, uma dado arcabouço teórico ou filosófico, como a própria ciência, por aquilo que
representa em termos de mobilização humana, é entendido por Galiberti como uma “técnica”.
Registra, assim, a condição de dependência do homem com relação ao seu fazer. É porque ele “faz”
que é inteligente. As tecnologias, como subprodutos da técnica, ganham, assim, nova dimensão,
representando a evolução ou o retrocesso do modo do homem estar no mundo.
O chamado progresso, fruto das tecnologias, como todos nós sabemos, não traz só evolução,
traz também retrocesso! Todos testemunhamos como as tecnologias acabaram, em alguns casos,
saindo do controle de seus criadores, ganhando autonomia sobre o próprio homem, sufocando-o,
subordinando-o sob a forma de ideologias4. Exemplo clássico foi a forma como a humanidade – e
suas lideranças - naturalizou o colonialismo, conferindo legitimidade a regimes autoritários, ou,
mesmo, estabelecendo práticas econômicas de manejo dos recursos naturais, que acabaram levando
à destruição do ecossistema natural.
Em outras palavras, as tecnologias - uma vez implantadas e tornadas hegemônicas - acabam
por tornar plausíveis procedimentos auto-destrutivos, demonstrando a necessidade da reinvenção da
técnica para dar sentido à tecnologia, garantindo, assim, o retorno à capacidade de análise, de
previsão e de antecipação da realidade, pelo uso da inteligência e da racionalidade5.
A reinvenção da técnica6 significa a defesa da tese de que o homem é maduro o suficiente
para “refazer a estrada”, tomando consciência – mediante a ação – da necessidade de se exercitar
para o controle das tecnologias, mediante a educação e o trabalho. No caso, uma aproximação
4 Quanto mais se complica um aparato técnico, quanto mais se entrelaça com outros aparatos, quanto mais se agigantam os sues
efeitos, mais se reduz a nossa capacidade de perceber os processos, os efeitos, os resultados e, se o pretendêssemos, os objetivos,
de que somos partes e condições. Essa defasagem entre produção técnica, de um lado, e imaginação e percepção humana, do
outro, torna o nosso sentimento inadequado em relação às nossas ações que, ao serviço da técnica, produzem algo de
desmesurado, ao ponto de tornar nosso sentimento incapaz de reagir. Nasce, então, esse “niilismo passivo” denunciado por
Nietzsche, que brota do fato de que o “muito grande” no deixa “frios”, porque o nosso sentimento de reação se detém na soleira
de certa grandeza, e como “analfabetos emotivos” assistimos à proliferação das armas nucleares, à destruição do sistema
ecológico, a uma riqueza e a uma pobreza decididas mais pelas técnicas que regulam o regime econômico do que pelo nosso
efeito trabalho, à possibilidade da comunicação total superior aos conteúdos efetivos que temos a comunicar, à presença
simultânea de todos os acontecimentos do mundo sem uma adequada possibilidade de assimilação (Galimberti, pg. 826).
5 O caso da poluição da atmosfera é um dos exemplos mais recentes do domínio das tecnologias sobre a política, instalando o
pragmatismo da incapacidade de análise e de antecipação. Alerta Galiberti: Não se pode extinguir a capacidade de antecipar,
essa capacidade que os gregos haviam atribuído a Prometeu, o inventor das técnicas, cujo nome significa literalmente “aquele
que vê por antecipação [Pro-methéus]. É essa capacidade que diminuiu no homem de hoje, que não é mais capaz de
“antecipar”, nem mesmo de “imaginar” os efeitos últimos do seu “fazer”. É preciso evitar que a idade da técnica marque esse
ponto absolutamente novo na história, e talvez irreversível, onde a pergunta não é mais: “o que nós podemos fazer com a
técnica?”, mas: “O que a técnica pode fazer conosco? (GALIMBERTI, pg. 827 ).
6 O fato de a técnica ainda não ser totalitária, o fato de quatro quintos da humanidade não viver de produtos técnicos, mas não
ainda com mentalidade técnica, não nos deve confortar, porque o passo decisivo para o “absoluto técnico”, para a “máquina
mundial”, já os demos, ainda que a nossa condição sentimental não tenha ainda interiorizado esse fato, e portanto não esteja à
altura dele. (GALIMBERTI, pg. 828).