JUAN E. VECCHI
Espiritualidade Salesiana
Temas fundamentais
ELLEDICI
Coleção PEDAGOGIA SALESIANA
Gianni Ghiglione (resp.), Don Bosco: il sistema preventivo
Luigi Càstano, Salesianità di Don Bosco, di Madre Mazzarello e delle Figlie di Maria Ausiliatrice
Giovanni Battista Bosco, II sistema preventivo di Don Bosco
Giovanni Battista Bosco (resp.), Don Bosco ci parla di educazione
J. E. Vecchi - C. Di Cicco, I guardiani dei sogni con il dito sul mouse
Padre JUAN Edmundo VECCHI
Espiritualidade Salesiana
Temas fundamentais
Tradução: P. José Antenor Velho
Pro manuscripto
ELLEDICI
Internet www.el ledici.org E-mail: mail@elledici.org
© 2001 Editrice Elledicci -10096 Leumann (Turim)
ISBN 88-01-02038-4
INTRODUÇÃO
Apresento estas reflexões sobre a Espiritualidade Salesiana no contexto de três eventos muito significativos.
O primeiro é o Jubileu de 2000. Ele apela para a conversão pessoal e analisa as condições e os caminhos para evangelizar o mundo que entra no terceiro milênio: secular, tecnológico, pluralista, livre, unificado e dividido.
O ponto central desta reflexão é o valor que pode ter Cristo e a fé em nossa situação atual; e, portanto, a consciência da própria originalidade que os cristãos devem adquirir, a transparência do seu testemunho, a sua presença-fermento no mundo. É um convite a redescobrir a nossa vocação num mundo que tem necessidade de sinais, que precisa ver e tocar.
No âmbito mais restrito da Vida Consagrada foram feitos um aprofundamento e uma tomada de consciência, e este é o segundo evento, sobre a contribuição específica da consagração religiosa à comunhão eclesial e à cultura. Espera-se dos religiosos uma mensagem e uma proposta de espiritualidade. Neste nosso tempo de tantas formas de religiosidade e de busca de sentido, a sua missão consiste em oferecer exemplos e itinerários de vida espiritual cristã.
Refletiu-se muito sobre o específico do cristão no contexto secular atual e, em especial, dos consagrados que se propõe a seguir Cristo com radicalidade. A conclusão é que não são os sinais exteriores, nem o trabalho apostólico ou profissional a caracterizar o religioso no mundo, mas o tipo de existência que se propõe realizar, construído sobre o reconhecimento da presença e da ação de Deus.
Houve na Congregação o Capítulo Geral 24 (CG24). As Inspetorias ouviram falar dele pelos que dele participaram. Depois, receberam o documento. É de se supor que não só o tenham lido, como também o tenham estudado na comunidade e em reuniões de diretores. Agora, os Capítulos inspetoriais chegaram ao momento, talvez o mais importante, no processo de assimilação e aplicação.
O CG24 propõe-se a empregar melhor as forças que Deus nos concede para expandir o trabalho educativo e pastoral. Isso, porém, exige uma condição: uma maior qualidade religiosa, apostólica e formativa em cada salesiano e em cada comunidade. Há um equívoco a dissipar: que a possibilidade de animar os leigos seja resolvida em nossa habilidade de coordenação e organização. O CG24 aposta em nossa capacidade de comunicar “mística”, entusiasmo pela missão educativa, e de compartilhar a espiritualidade salesiana.
A estas circunstâncias: nova evangelização, renovação da vida consagrada, CG24, acrescento outra que a elas se referem de forma muito pessoal. A vossa vida caracteriza-se hoje por um fato: sois chamados a animar uma porção, embora mínima, da Congregação, com repercussões sobre uma Inspetoria e, mais distantemente, em âmbito nacional. A vós, o Senhor confia a responsabilidade de imprimir uma orientação frutífera à vida da Congregação nesta parte do mundo.
A exortação Vita Consecrata habituou-nos a contemplar alguns ícones bíblicos. O principal é o da Transfiguração, uma página inesgotável em duas vertentes: a contemplação de Cristo como Messias, Filho de Deus e Redentor mediante a paixão e morte; e a experiência de fé e de seguimento, dos apóstolos e de todos os crentes.
A Transfiguração, na história pessoal de Cristo, dá-se na conclusão da sua pregação e antes de ele enfrentar a paixão. Na história dos discípulos, ela é colocada como passagem da sua adesão humana, de simpatia por Ele, à fé robusta que será posta à prova com a morte de Jesus. Trata-se de um momento singular de iluminação relacionado com o primeiro chamado a seguir Jesus e com todos os outros gestos com que Ele reconfirmou o convite.
Em que consiste este momento de graça? Primeiramente, em gozar de uma intimidade especial com Jesus. Falam desta confiança especial o gesto de Jesus que, entre todos os apóstolos, escolhe três deles: o isolamento em que o fato acontece, a oração e o próprio lugar, sobre um monte.
Na intimidade, os apóstolos têm uma visão convincente de Jesus à luz da experiência religiosa do próprio povo, representado por Moisés e Elias, e daquilo que eles mesmos viveram. É uma iluminação e uma graça que vêm do Pai.
Sentem-se conquistados, atraídos, tomados por este mistério. “É bom estar aqui”. Fiquemos aqui para sempre. É um colocar-se definitivamente na vida. Depois de ter saboreado o que significava conhecer e seguir Jesus, segue o desejo, o propósito e o gosto de ficar com ele.
Os apóstolos também têm a confirmação autorizada de que esta atração é autêntica e cheia de valor real, não de pura fantasia ou apenas sentimento; é, portanto, uma indicação definitiva para o futuro: “Este é o meu filho predileto, ouvi-o!”.
Recebem assim uma chave, uma luz, para enfrentar a vida cotidiana onde o Jesus glorioso se esconde sob as aparências comuns e até mesmo se submerge em rostos desfigurados e vidas deturpadas.
“Os discípulos que gozaram da intimidade do Mestre, envolvidos durante alguns momentos pelo esplendor da vida trinitária... – lê-se na Exortação Vita Consecrata – são reconduzidos logo a seguir à realidade cotidiana, onde veem ‘apenas Jesus’ na humildade da sua natureza humana, e são convidados a regressar à planície para partilharem com Ele o peso do desígnio de Deus...”.1
Também para nós, como para os apóstolos, a Transfiguração é um convite a contemplar novamente Cristo, a apreciar a sua palavra e o seu mistério, para depois imergir-se na ação sabendo ver o seu rosto em todos os lugares.
Na literatura do Movimento Místico Hebraico da Europa Oriental do século XIII lê-se esta narração. Um rabino fora encarcerado em São Petersburgo. Certo dia, enquanto esperava para comparecer diante do tribunal, o comandante dos guardas, que se tornara seu amigo, entrou em sua cela e pôs-se a conversar com ele.
“Não vos parece estranho – disse-lhe – que Deus Onisciente pergunte a Adão: ‘Onde estás?’”.
“Acreditais – respondeu o rabino – que a Escritura abarque todos os tempos, todas as gerações e todos os indivíduos? Pois bem – concluiu – em todos os tempos Deus interpela cada homem e lhe diz: ‘Onde estás?’. Transcorreste muitos dos dias e dos anos dados a ti: nesse tempo, em tua vida e no teu mundo, onde estás? Deus diz por exemplo: ‘Eis que já são quarenta e seis anos que estás na vida. Onde te encontras?’”.
Ao ouvir o número exato dos seus anos, o comandante controlou-se com dificuldade, colocou a mão sobre o ombro do rabino e disse: “Bravo!”, embora o coração lhe tremesse.
Talvez alguém pudesse ouvir esta pergunta como uma acusação ou uma condenação; na verdade, o Senhor nos chama com sabedoria e responsabilidade, a uma forma de vida vigilante para que possamos desfrutar e gozar da riqueza que ela contém.
A vida no Espírito
1. Moda ou sinal?
A reflexão sobre a vida consagrada, em sua história, inspirou-se em diversas motivações: garantir a salvação da alma, fugir do mundo, imitar Jesus Cristo em seu estilo de vida, buscar a perfeição cristã, dedicar-se totalmente ao Reino.
Os documentos que preparam o Sínodo [sobre a Vida Consagrada] privilegiaram duas referências: o carisma e a consagração. Isso se vê na formulação dos temas: “A vida consagrada, carismas na Igreja para o mundo”. Os religiosos são “carismáticos”. Possuem um dom para a vida da Igreja e o serviço ao mundo. Exprimem-no não através do exercício da autoridade, mas com o testemunho da livre entrega. Eles possuem este dom porque foram “consagrados” por uma presença particular do Espírito, e a sua vida se realiza sob a inspiração e a força desse Espírito.
A consciência da presença do Espírito é como que explodida neste último tempo da Igreja. São prova disso o movimento de renovação no Espírito ou os numerosos grupos carismáticos e os acenos em quase todos os documentos do Magistério.
João Paulo II recolhe e desenvolve esta consciência na encíclica “Dominum et vivificantem”. Trata-se de uma visão da história humana em caminho para a sua realização, movida por uma energia e uma iluminação que atuam a partir da consciência dos homens: o Espírito. Dir-se-ia de uma leitura “espiritual” da história como outras deram uma interpretação “econômica”, “psicológica”, “cultural”. Declara-o no n. 2: “Deste modo, a Igreja responde também a certos apelos profundos, que julga ler no coração dos homens de hoje: uma nova descoberta de Deus na sua transcendente realidade de Espírito infinito...; a necessidade de adorá-lo em Espírito e verdade; a esperança de encontrar nele o segredo do amor e a força de uma ‘nova criação’”.2 As “instâncias profundas”, de que fala o texto, correspondem às condições em que se realiza a atual existência cristã.
Há, em primeiro lugar, da parte do homem, e nós o vemos nos jovens, a busca de um sentido para a própria vida. Ao mesmo tempo, porém, é difícil para o homem perceber Deus a partir do que é material, exterior à pessoa. A natureza foi dessacralizada a partir do conhecimento científico e da técnica. Ela oferece recursos a desfrutar e fenômenos a estudar, mas não provoca questionamentos transcendentes. A história e as tradições foram relativizadas. As instituições sociais e religiosas perderam a sua autoridade absoluta. O ambiente secularizado não oferece sinais, razões e estímulos para organizar a vida sobre um sentido que leve em consideração a presença de Deus e o nosso destino final.
A experiência religiosa vê-se socialmente marginalizada. Por isso, a pessoa procura as pegadas de Deus em sua experiência interior, no que ressoa em sua mente e no seu coração. Deus está em seu interior como pensamento, consciência, coração, realidade psicológica e ontológica. O coração do homem é o lugar recôndito do encontro salvífico com o Espírito Santo, com o Deus oculto, e justamente aqui o Espírito Santo torna-se fonte de água que brota para a vida eterna.3
Vivemos em tempos do primado da consciência nas opções que se referem à própria vida. Dela devem surgir respostas proporcionadas aos grandes desafios morais do nosso tempo: a manipulação da vida, o uso da comunicação, a distribuição equitativa dos bens, o respeito pela dignidade de toda pessoa, o respeito à natureza e ao ambiente.
Falar de espiritualidade é falar da vida segundo o Espírito e a serviço do Espírito no contexto atual. O que significa dizer três coisas: reconhecer e confessar Deus presente na humanidade; inspirar a própria vida na caridade; afirmar na história a proeminência da pessoa e dos seus valores. Nisto se percebe, de fato, a ação do Espírito.
2. O que faz o Espírito Santo
O Espírito dá o sentido de Deus. Estabelece uma misteriosa comunicação entre Deus e o homem e entre estes e Deus. Tudo o que, no mundo, orienta para Deus, tudo o que evoca explícita ou implicitamente a presença ou a intervenção de Deus, tudo o que leva à busca de Deus tem o Espírito como força recôndita.
O Espírito faz compreender o divino, mesmo que tão somente como “mistério” que não se consegue interpretar. Oferece uma espécie de sintonia com a presença e a ação de Deus. E mais profundamente ainda, faz sentir a relação que temos com Deus como criaturas e como filhos: “Aqueles que são guiados pelo Espírito são filhos de Deus”.4
Quem percebe o mundo sem Deus, não é guiado pelo Espírito. Quem percebe Deus sem o mundo, nem sequer é guiado pelo Espírito. Quem, contemplando o mundo, abre-se à adoração ou apenas ao questionamento sobre Deus é movido pelo Espírito. A fé, por isso, proclama e confessa que Deus é criador e Pai. O Espírito é a luz que ilumina a relação que há entre a pessoa, o mundo e Deus.
Entretanto, o Espírito se faz sentir ainda mais na história humana, na pequena história de uma cidade ou de um bairro e na grande história dos povos e da humanidade. Esta reflexão move hoje a Igreja a descobrir as “sementes do verbo” nas culturas, para entender qual o caminho possível que os povos fazem para a salvação.
Di-lo bem um texto da “Redemptoris Missio”: “A sua presença e ação são universais, sem limites nem de espaço nem de tempo... Está na mesma origem da questão existencial e religiosa do homem, que nasce não só de situações contingentes, mas da própria estrutura do seu ser” ... Ele “está na origem dos nobres ideais e das iniciativas de bem da humanidade em caminho”.5
O olhar dos crentes entende, portanto, como presença do Espírito a busca religiosa, embora confusa, o desejo de dignidade, as iniciativas nobres.
Isso se vê claramente na história do povo eleito, que é paradigma da história de todos os povos. Há um momento em que Deus se revela pessoalmente, manifestando o seu nome, a sua relação com o gênero humano e o seu projeto. A revelação de um Deus pessoal, benévolo para com os homens, distinto dos elementos do mundo é, no desenvolvimento humano, um acontecimento superior, como consequência, às maiores descobertas técnicas. Provocou um salto de qualidade na consciência do homem, que se libertou da dependência dos astros e dos elementos materiais, superou o temor do desconhecido e sentiu-se protegido por Deus. O Espírito dá à inteligência a capacidade de perceber o valor e o significado das palavras e dos fatos com que Deus se manifesta, e sugere, como resposta, a relação com Deus que chamamos de fé.
Jesus diz àqueles que eram capazes de aceitar o milagre dos pães, mas não entendiam o significado do milagre: “É o Espírito que dá vida, a carne de nada serve. As palavras que vos disse são Espírito e vida”.6 Quem permanece na materialidade dos fatos trágicos ou admiráveis não é guiado pelo Espírito; quem percebe o seu sentido é inspirado por Ele.
Tendo por base a fé, o Espírito sugere uma sabedoria, uma forma de pensar e de viver que dá fisionomia a uma comunidade humana, capaz de organizar toda a existência pública e privada ao redor da aliança com Deus: é o povo de Israel. Ele experimenta o Espírito como energia que a partir do interior transforma os homens e os torna capazes de gestos excepcionais para libertar o povo ou confirmá-lo na sua vocação e dignidade. O Espírito manifesta-se como inspiração, potência, fonte de vida, presença livre de condicionamentos, que atua de maneira imprevisível. A sua energia é descrita com as imagens do vento, pela origem misteriosa, pelo fogo, pela força incontida. O contrário do Espírito não é a matéria ou o corpo, mas a inércia, a ineficácia histórica, a esterilidade, a morte, a escravidão. Dizemo-lo no Credo: “Creio no Espírito... que é Senhor e dá a vida”.
Existem três linhas de ação nas quais o Espírito age como “poder” que move:
- a linha messiânica ou de salvação, que leva algumas pessoas a iniciativas de libertação; podemos pensar no êxodo, em Gedeão ou Sansão, dos quais se diz que foram “tomados pelo Espírito de Deus”;
- a linha profética, da palavra iluminadora e educadora; representam-na os profetas e os sábios que mantiveram viva a esperança do povo e iluminaram o sentido dos fatos históricos;
- a linha sacerdotal, que favoreceu a experiência religiosa, o culto, a oração, o serviço e a realidade material do templo.
Assim o Espírito, que nos abre à comunicação com Deus, inspira-nos o modo de viver no mundo e nos dá a força para realizar um determinado tipo de existência.
3. Jesus, evento do Espírito
Sendo verdade que o Espírito Santo age em todos os lugares, é também verdade que quem conheceu e acolheu Cristo está ciente da sua presença e consegue interpretar os seus sinais.
A obra do Espírito chega, de fato, ao ápice na pessoa de Cristo. Os evangelistas interpretam toda a sua existência como um evento do Espírito. Apresentam-no como “o homem espiritual” em contraposição ao homem “mortal ou carnal”.
O Espírito intervém até mesmo nas potências generativas de Maria para formar o corpo e a alma de Jesus no momento mesmo da sua concepção: “O Espírito Santo virá sobre ti, sobre ti a potência do altíssimo estenderá a sua sombra”.7 A humanidade de Jesus é construída, portanto, pelo Espírito, para fazer dele o homem espiritual totalmente aberto a Deus e totalmente a serviço dos homens.
Antes do nascimento e em preparação dele, o Espírito preenche e ilumina as testemunhas da Encarnação. Quanto mais este evento é ocultado ao mundo, tanto mais o Espírito o revela àqueles que dele participam de perto e inspira a sua confissão: Isabel, Zacarias, Maria, Simeão. Dessa forma, ainda hoje, perceber o mistério da Encarnação nas pessoas, nos acontecimentos históricos é obra do Espírito.
No Batismo, o Espírito torna público que Jesus é o Filho de Deus: “Enquanto Jesus, recebia o batismo, estando também ele em oração, o céu abriu-se e desceu sobre Ele o Espírito Santo em aparência corpórea, como de pomba e houve uma voz do céu que dizia: tu és o meu Filho predileto, em ti me regozijo”.8 Ele, portanto, faz aflorar a consciência divina na natureza humana de Jesus.
O mesmo Espírito leva-o para o deserto, o lugar da experiência de Deus, da aliança, da prova, da fé. Ali, ele supera as tentações típicas do homem e do povo de Deus: perder-se nas necessidades imediatas e organizar a vida independente de Deus, a vontade de colocar Deus ao próprio serviço, adorar ou tornar-se dependente de desejos humanos ou poderes mundanos.
A sua missão começa pelo impulso do Espírito. Leva-a adiante com a energia do Espírito: “O Espírito do Senhor está sobre mim. Por isso me consagrou com a unção e me enviou para anunciar aos pobres uma alegre mensagem...”.9 Com a força do Espírito, ele expulsa os demônios.10 Mas, sobretudo no Espírito brotam as suas palavras e os seus sentimentos: “Naquele mesmo instante, Jesus exultou no Espírito Santo e disse: Eu te louvo ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos doutos e aos sábios e as revelastes aos pequenos”.11
O Espírito é o dom da ressurreição. Os discípulos, certos da sua presença, vivem toda a aventura da pregação do evangelho e da fundação das comunidades. Percebem-na também de maneira imediata como certeza, energia interior, capacidade persuasiva. Ele os constitui testemunhas eficazes e anunciadores corajosos.
É o Espírito da palavra. Os discípulos não precisam mais da presença física do Senhor. O Espírito recordará para eles o que Jesus ensinou. Não será, porém, o Espírito da memória literal. Fará com que eles compreendam o anúncio de Jesus de forma nova, à luz dos novos acontecimentos e situações. Ajudá-los-á a tirar dele riquezas novas e significativas. Para que o Evangelho seja não um texto venerável ou arqueológico, mas uma luz para o presente. Não será só o Espírito das recordações e da nova compreensão, mas também o Espírito da invenção. Ele sugerirá o que deveis dizer.
O Espírito da palavra é também o Espírito da missão. Ele conduz os discípulos ao mundo pagão, também os precedendo. Conta-se nos Atos dos Apóstolos o fato do centurião Cornélio, chamado por muitos de “o pentecostes dos pagãos”. O Espírito Santo antecipa-se a Pedro na casa daquele soldado. Pedro tem dúvidas se deve ir ou não até ele e comer alimentos proibidos a um judeu, mas deve render-se depois de uma visão em que vê o Espírito ser derramado sobre aqueles que escutavam o seu discurso. Para justificar-se perante a sua comunidade judaica, ele diz: “Podemos, por acaso, negar a água do batismo a estas pessoas, que receberam, como nós, o Espírito Santo?”.12 “Se Deus concedeu a eles o mesmo dom que a nós, que acreditamos no Senhor Jesus Cristo, quem seria eu para me opor à ação de Deus?”.13 Dessa forma, a Igreja “prudente”, que titubeava em separar-se do judaísmo e temia abrir-se ao mundo, foi forçada a dar o passo.
É também o Espírito da comunhão. Ele inspira os novos ministérios quando os apóstolos, sozinhos, não conseguem satisfazer a todas as demandas da comunidade. Nascem assim os diáconos e os presbíteros. Ele enriquece as comunidades com novos carismas. Move-as a emitirem sinais que distinguirão os discípulos de Jesus: a oração, a fração do pão, a escuta da Palavra, o amor fraterno, a partilha dos bens. Dá-lhes o poder não apenas jurídico, mas profundamente transformador de reconciliar o homem com Deus e com os outros: “Recebei o Espírito Santo; aqueles a quem perdoardes os pecados, estes serão perdoados...”.
Assim, a Igreja passa a ser não uma organização religiosa como as muitas então existentes, que conserva ritos e palavras sagradas, mas a consciência da história da salvação e uma nova força enviada a transformar o mundo mediante o amor.
Nós somos testemunhas de que esta presença continua ainda hoje. Pode ser narrada com acontecimentos atuais. Detivemo-nos no passado porque o tempo e a experiência evangélica são exemplares. Podemos pensar no Concílio Vaticano II, nos Sínodos, nos movimentos eclesiais, na vida religiosa, na presença da santidade, na novidade da fé.
O hoje é bem sintetizado pela Lumen Gentium com estas palavras: “O Espírito habita na Igreja e nos corações dos fiéis, como num templo (cf. 1Cor 3,16; 6,19), e dentro deles ora e dá testemunho da adoção de filhos (cf. Gl 4,6; Rm 8, 15-16. 26). A Igreja, que Ele conduz à verdade total (cf. Jo 16,13) e unifica na comunhão e no ministério, enriquece-a e guia-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos e adorna-a com os seus frutos (cf. Ef 4, 11-12; 1Cor 12,4; Gl 5,22). Pela força do Evangelho, rejuvenesce a Igreja e renova-a continuamente e leva-a à união perfeita com o seu Esposo... Assim a Igreja toda aparece como um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.14
4. Espiritualidade: viver segundo o Espírito
Entretanto, talvez o tema da nova existência, que o Espírito dá origem na pessoa, tenha sido o que teve maior desenvolvimento na reflexão cristã. São Paulo explica-o mediante a inabitação: “Vós não estais sob o domínio da carne, mas do Espírito desde que o Espírito habita em vós”.15
Trata-se de uma autêntica nova personalidade construída, unificada e estruturada no crente de modo totalmente original. O Espírito cria nele uma nova consciência, a consciência de filho de Deus, que se manifestou em Jesus e que emerge também em nível psicológico. Jesus, no momento de maior aparente solidão, disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.16 Por isso, afirmou-se que Cristo jamais teve o sentimento do órfão. Abandonado por todos, sentiu-se acolhido pelo Pai. Assim, o crente que desenvolve esta consciência, em qualquer circunstância, sente e exprime a confiança em Deus.
O Espírito Santo também gera no crente uma nova inteligência; é a inteligência da fé, capaz de perceber o mistério de Deus, descobrir o sentido que têm o mundo e os acontecimentos da história. Com frequência, a fé foi considerada uma sabedoria que vem do Espírito. Quem vê a própria vida e a história sem Deus não é animado pelo Espírito. Quem percebe Deus na história pessoal e da humanidade é guiado pelo Espírito, porque Deus se manifestou no principal acontecimento da história, o de Jesus.
O Espírito sugere uma nova relação humana, acima da nacionalidade, da raça, da cultura, da religião, da situação econômica: é o amor, participação no amor de Deus; por isso, não há mais gregos e bárbaros, crentes e pagãos, homes e mulheres..., mas todos são uma única criatura.17 É a superação das discriminações, do espírito de conquista, do sentimento de superioridade.
O Espírito ensina uma linguagem nova que permiti dirigir-nos a Deus expressando sentimentos filiais e nos inspira o que devemos dizer. Ele nos dá o vocabulário para o anúncio e nos abre à sua compreensão. Por isso, se fala tanto do Espírito no contexto da evangelização.18
Em poucas palavras, o Espírito recria a estrutura interior da pessoa; dá-lhe o sentido da sua identidade, a possibilidade de atuar no mundo com o estilo das bem-aventuranças, de esperar a grande manifestação pela qual toda a criação chegará à sua condição perfeita.19
Entretanto, nem tudo já foi dito. Quem nasceu do Espírito é chamado a desenvolver-se segundo um projeto de vida. Não recebeu apenas algumas qualidades estáticas, como se fossem joias ou presentes de aniversário. Mas possui uma espécie de código genético segundo o qual ele cresce.
A existência cristã como qualquer vida tem uma lei interior, a lei do crescimento. No batismo, acolhe-se a sua semente; na morte, se tem o resultado final. O que está entre estes dois limites, é confiado à nossa vontade e capacidade de crescer, como acontece com a nossa inteligência e a nossa personalidade. Há um estado germinal, há uma maturidade: “Irmãos, não vos pude falar como a pessoas espirituais. Tive que vos falar como a pessoas carnais, como a recém-nascidos em Cristo. Eu vos alimentei com leite, não com alimento sólido, de acordo com a vossa capacidade”.20 São Paulo fala de recém-nascidos e adultos, de imperfeitos e perfeitos, de carnais e espirituais.
Passamos da imaturidade ao estado adulto pela iluminação progressiva e pela adesão à verdade, que nos ajudam a ver o sentido da nossa vida e do mundo, com sempre maior convicção, à luz do acontecimento de Cristo. Há, depois, a purificação de dependências e escravidões, de egoísmos, de paixões destrutivas, até chegar à liberdade interior. E o esforço de conformar a nossa vida à de Cristo inserindo-nos no seu mistério também nos leva à maturidade. O Diretório Catequético Geral, referindo-se ao crente, diz que a finalidade da iniciação cristão é “educar ao pensamento de Cristo, a ver a história como ele, a escolher e amar como ele, a esperar como ele ensina, a viver como ele a comunhão com o Pai”.21 É o que, com outras palavras, exprimia São Paulo: “Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”.22
O resultado é o homem espiritual. Na linguagem cristã “espiritual” tem um significado peculiar. Não se opõe à matéria, como pensam os filósofos, mas à carne. Não significa, pois, “imaterial”, mas “invadido por Deus e orientado para Ele”, qualquer que seja a sua natureza física. Espiritual, portanto, porque não é aquele que renega, foge ou ignora a sua parte corpórea, mas aquele que assume e orienta tudo na caridade. De fato, é a caridade que se difundiu nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado, revestindo a totalidade da pessoa, corpo e consciência.
Torna-se instrutivo ouvir de São Paulo as manifestações da fase infantil da nossa vida no Espírito ou do nível “carnal” da nossa mentalidade. Uma é a incapacidade de aceitar o Evangelho na totalidade das suas exigências e na sua originalidade. São Paulo chama os Coríntios de imaturos porque se perdem por trás da eloquência humana e das explicações intricadas, e não percebem a sabedoria simples, inspirada por Deus, que há no acontecimento de Cristo.23
Sinal do estado infantil é ser arrastado por motivos humanos como o ciúme, a vontade de sobressair na comunidade com carismas vistosos. Assim como o é também pensar que a liberdade consiste em satisfazer as próprias comodidades, ou não ser capaz de superar os conflitos mesmo com sacrifício da nossa parte. Sobretudo o é a instabilidade e a volubilidade da fé não solidamente ancorada na Palavra de Deus que se deixa arrastar pelas modas seculares, pelas fantasias religiosas ou pelas doutrinas efêmeras.
Há também páginas incomparáveis sobre a maturidade da pessoa no Espírito, que é purificação do mal e superação do que é imperfeito; mas também desenvolvimento máximo das potencialidades que existem em nós. Sinal de maturidade é, em primeiro lugar, a segurança ou evidência do amor que Deus tem por nós e, portanto, a paz e a serenidade interior pela qual sabemos que “nem a morte, nem a vida, nem os anjos nem qualquer criatura poderá separar-nos do amor de Cristo”.24
Há ainda a generosidade pela qual não nos limitamos ao que a lei nos obriga, mas nos doamos com liberdade e alegria. Há o empenho radical e total com o Evangelho. Há o amor aos irmãos como regra para agir em todas as circunstâncias acima de cálculos e convenções, acima dos nossos direitos e do próprio culto.
Quando estes dinamismos e atitudes crescem, alcança-se a estatura de Cristo. O Espírito dá unidade aos pensamentos, aos afetos, aos desejos, às ações. E se manifestam na pessoa os seus frutos maduros: o amor, a alegria, a paz, a paciência, a benevolência, a bondade, a fidelidade, a mansidão, o domínio de si.25
5. Para nossa reflexão
O que expusemos sugere-nos algumas linhas de meditação pessoal.
A primeira é procurar ver a nossa vida de cristãos e de religiosos nesta corrente de energia que vem de Deus e que, desde a consciência das pessoas, orienta a humanidade para um melhoramento e para a comunhão com Deus.
Procuremos, pois, interpretar a história, a pequena história do nosso contexto e a grande história dos Países do mundo, com a chave do Espírito: em suas aspirações, em suas nobres tentativas, em seus pequenos passos.
Pensemos em nossa missão de educadores a serviço do crescimento no Espírito. As Constituições das FMA afirmam que a assistência será vista como uma colaboração com o Espírito, que trabalha no coração de todas as pessoas.26
Enfim, adoremos o Espírito naqueles nos quais se vai manifestando a consciência de ser filhos de Deus, que trazem o nome de Deus gravado na fronte27 e no coração, e que representam o ponto mais elevado da humanidade.
Dom Bosco: tipo e modelo da nossa espiritualidade
Aceno aqui, de forma esquemática, o artigo 21 das Constituições dos Salesianos:
“Dom Bosco, nosso modelo”
1. O Senhor nos deu Dom Bosco
como pai e mestre.
Nós o estudamos e imitamos,
admirando nele:
2. (a) esplêndida harmonia de natureza e graça.
Profundamente homem,
rico das virtudes do seu povo
era aberto às realidades terrenas;
profundamente homem de Deus,
cheio dos dons do Espírito Santo,
vivia “como se visse o invisível”.
3. Esses dois aspectos fundiram-se
num projeto de vida fortemente unitário:
o serviço dos jovens.
Realizou-o:
com firmeza e constância,
por entre obstáculos e canseiras,
com a sensibilidade de um coração generoso.
“Não deu passo, não pronunciou palavra, nada empreendeu que não viasse à salvação da juventude.
4. Realmente tinha a peito tão somente as almas”
1. Uma atenção necessária
Falamos da consagração pelo dom do Espírito. O típico da vida religiosa é que ela se concentra em Deus. D’Ele quer ser experiência, transparência e anúncio.
Entretanto, há muitas formas de consagração, mediante as quais o Espírito coloca os homens em comunicação com Deus. A história é complexa; ela precisa de muitos sinais adequados a diversas situações. A pessoa, por outro lado, tem infinitas possibilidades de expressão. Há dons ou graças diferentes, diria São Paulo.28 Juntas fazem com que a Igreja esteja preparada para agir em todos os contextos e condições. Alguns, atraídos pelo mistério de Deus, retiram-se na solidão e entregam-se ao estudo e à oração. Os anacoretas, impressionados pela fugacidade da vida presente e pelos bens da eterna, encerraram-se em celas. Outros, porém, sentem o amor de Deus como impulso para intervir na história a fim de salvar o homem.
O Espírito age em todas essas pessoas e, através delas, na humanidade. Dá, assim, origem a diversos tipos ou personalidades cristãs. Os tipos não dependem a vontade humana nem provêm de uma doutrina religiosa pensada na mesa de trabalho. Brotam na comunidade cristã como as plantas no terreno fértil. Para descrevê-los é melhor narrar como surgiram e como se desenvolveram, mais do que propor a sua doutrina espiritual.
Com e por que o Espírito consagra um salesiano nos é revelado historicamente em Dom Bosco. Contemplar a sua figura é importante para descobrirmos o nosso código genético. Como se desenvolveu nele, também se desenvolverá em nós.
Da figura espiritual de Dom Bosco, existem muitas apresentações: breves, médias e longas. O P. Caviglia procurou resumir os traços espirituais e morais de Dom Bosco numa síntese de 150 pequenas páginas. Há representações artísticas (quadros e esculturas) que procuram colher o que mais sobressai em sua personalidade. Cada salesiano, depois, traz dentro de si uma imagem de Dom Bosco que foi modelada ao longo dos anos, através de experiências, leituras, meditações, opções. Às vezes, estas imagens pessoais aumentam desmedidamente um dado segundo as próprias preferências, deixando à sombra outros documentados pela história. Alguns, por exemplo, ampliaram a sua figura de amigo dos jovens e quase não o conhecem como “Fundador de um movimento espiritual”.
A relação entre estas duas espécies de imagens, as que têm pretensão de objetividade e as que são pessoais, é dinâmica: umas enriquecem e corregem as outras.
Há um perfil de Dom Bosco “consagrado, apóstolo, homem espiritual”, que as une e funde porque foi produto da comunidade e constitui um patrimônio comunitário. Encontramo-lo no segundo capítulo das Constituições dos salesianos, que procura descrever de maneira orgânica o espírito salesiano; é um capítulo com numerosas citações de Dom Bosco e frequentes acenos aos seus aspectos.
Na conclusão, e como que uma síntese, faz-se a tentativa de apresentar a sua personalidade em vinte linhas.29
A forma mesma do artigo é singular; tem alguma coisa de um hino ou um salmo. Suas frases são medidas como por um metro poético. As ideias apresentam-se com expressões à vezes contrapostas, às vezes paralelas ou num estudado crescendo. A estrutura do conjunto é pensada de modo que em intervalos calculados se sucedem dois motivos: a riqueza multíplice da sua personalidade e a sua extraordinária unidade.
Surgem em suas poucas linhas quase todos os protagonistas do evento salesiano: o Senhor, Dom Bosco, os jovens, o seu povo. Há também uma sucessão de realizações: a formação da própria personalidade, o projeto de vida, o serviço aos jovens, a busca das almas, a fundação de uma Família apostólica.
Não se trata de um esforço ou habilidade literária. Se o fosse, seria percebida a sua artificialidade. Trata-se, no entanto, do resultado do fascínio, da atração exercida por Dom Bosco sobre os salesianos. Na origem deste texto está, de fato, uma longa contemplação comunitária. Formulado uma vez, foi estudado três vezes consecutivas, num período de 12 anos, por duzentas pessoas, quantas eram os membros dos Capítulos Gerais. Esta é, portanto, a imagem de Dom Bosco que as congregações trazem na consciência comunitária. Ela nos oferece alguns núcleos a meditar sobre a espiritualidade.
2. A nossa relação com Dom Bosco
O primeiro destes núcleos refere-se à relação singular de cada um de nós com Dom Bosco: “O Senhor nos deu Dom Bosco como pai e mestre”. O encontro com ele foi providencial e determinante para toda a nossa vida espiritual. Podemos recordar como realmente aconteceu e a graça que representou para nós o contato sucessivo com ele, quando nos enriqueceu de projetos, sentimentos, ideais e relações através das diversas fases da nossa existência: como candidatos à vida salesiana, como noviços, ao longo do itinerário formativo sucessivo e nos repensamentos que fizemos como adultos.
Sua companhia interior foi sempre inspiradora. Se renunciássemos hoje a tudo o que nos veio dele, bem pouca coisa restaria da nossa atual vida espiritual. E, portanto, foi realmente o dom de Deus para a nossa existência. É verdade que se não tivesse sido ele, teriam sido outros. Mas a vida não é feita de condicionais, mas de fatos reais. Por isso, na expressão que estamos a comentar, o pronome “nos” não tem sentido coletivo, mas justamente distributivo: a cada um de nós, de forma pessoal, foi dada a graça do encontro com Dom Bosco e do seu conhecimento.
“Como Pai e Mestre”: a nossa relação com ele é de filhos e discípulos. Dom Bosco teve e ainda tem admiradores, fãs, colaboradores, amigos. Também Cristo teve ouvintes, seguidores, amigos, discípulos e apóstolos. Cada uma destas palavras indica uma relação diferente. Nós não somos apenas admiradores, colaboradores e amigos.
O termo que define a sua relação conosco é “Pai”. Seria um erro pensar que se trata de uma expressão apenas afetuosa, devocional ou retórica.
Refere-se a algo que vai além da sua bondade e do nosso afeto. Diz que ele é o iniciador, o fundador que nos transmite aquela experiência espiritual que é o carisma salesiano. É colocado historicamente no momento e no lugar do seu nascimento. Gera-nos para o seguimento de Cristo pelos jovens. Pai, Abbà, é uma denominação tradicional na vida religiosa para designar aquele que desvela o carisma e faz crescer nele.
“Pai” recorda-nos também a sua capacidade de fazer sentir a paternidade de Deus aos jovens pobres; depois da experiência com eles, a paternidade se torna um tema do seu sistema educativo e do seu estilo de autoridade. “Os diretores e os assistentes, quais pais amorosos avisem, sirvam de guia e todas as circunstâncias”. Recorda-nos que, para os salesianos de ontem e de hoje, ele preferiu a todos os títulos, o de Pai: “Chamai-me de Pai e serei feliz”.30 E nos faz pensar também no tipo de relação que os seus seguidores conservarão com ele: mais do que chefe, fundador, líder carismático, nós o conhecemos como Pai. “Em qualquer lugar que vos encontrardes, recordai-vos de que aqui em Turim tendes um Pai que vos ama no Senhor”.31
Poder-se-ia ir mais adiante, examinando a sua responsabilidade paterna. “Teve tudo de um pai: o amor terno e forte para com os filhos de adoção, a resistência aos cansaços e à dor, o senso agudo de responsabilidade do pai de família e a entrega sem limites que só encontra o seu correspondente no amor materno” (P. Caviglia).
Ao lado do de Pai é colocada a acentuação no magistério: “Mestre”. Mais do que a autoridade de impor uma doutrina, alude à arte de ensinar, de deixar-se entender, de falar com a linguagem do coração, de comungar com a vida. Acena ao fato de que o seguimos deixando-nos guiar pela experiência e, através dele, quisemos seguir Jesus Mestre. O magistério é um motivo ou tema recorrente com frequência em suas recomendações e comentários. No primeiro sonho, aparece a figura da Mestra. No testamento, diz sobre Jesus: “Ele será o nosso mestre, o nosso guia e o nosso modelo...”. Liga-se ao tema da sabedoria, que é central em sua pedagogia, em sua mentalidade e em sua vida espiritual.
Pai e Mestre é uma expressão que provém do ofício litúrgico. E o artigo parece mais um texto litúrgico, uma meditação sapiencial, do que uma norma jurídica ou um trecho doutrinal.
Nossa reação e atitude diante deste dom de Deus é esta: “Nós o estudamos e imitamos, admirando...”. Nossas possibilidades de amadurecimento estão agora relacionadas com a relação vital com ele. De fato, estamos nos desenvolvendo espiritualmente no âmbito e com as forças do seu carisma, da sua comunidade, da sua missão.
Diz-se “admirando”; o nosso estudo não é científico e crítico, embora isso não seja descartado; mas uma abordagem e frequentação afetuosa. Admirar é o verbo da contemplação, de quem fica a olhar por ser atraído. Conseguimos entendê-lo por amor e conaturalidade, mais do que pela análise e exame rigoroso dos dados históricos.
Isso, porém, comporta também um esforço: “estuda-lo”. Existem, hoje, algumas grandes dificuldades para um conhecimento útil de Dom Bosco. Uma é a distância cronológica, mas principalmente cultural que se interpõe entre nós e ele. O perigo é o esquecimento ou a impossibilidade de interpretá-lo. Entre as gerações que nos precederam e o tempo de Dom Bosco havia ainda uma semelhança de estilo de vida. As diferenças eram limitadas. Hoje, para entender o significado verdadeiro do que ele pensou e realizou é preciso colocar-se mentalmente no seu contexto e colocá-lo no nosso. Há, depois, as dificuldades dos escassos tempos comunitários para comunicar-se. Estes tempos eram, anteriormente, numerosos e regulares: boas-noites, conferências, leituras. A transmissão “oral” tinha incidência. Hoje, a vida nos dispersa mais e as poucas palavras que conseguimos dizer se perdem num mar de imagens e mensagens.
Ao mesmo tempo, como fator favorável, há hoje uma autêntica “cultura salesiana”: a meditação sobre a vida e o carisma dos fundadores e da sua Família religiosa acumulada através das gerações. Particularmente nos últimos tempos, fez-se um grande esforço dos dois Institutos (SDB e FMA) em três linhas: a espiritual, e são prova disso os Atos dos Capítulos Gerais, as cartas dos Reitores-Mores e das Madres Gerais; a histórica, e é sua indicação a fundação de um Instituto Histórico e a organização do arquivo central e a vontade de estudar a história das congregações em todas as partes do mundo; a pedagógica, com a abundante bibliografia sobre o sistema preventivo que demonstra o afeto com que os salesianos olham para esta herança. Vão-se recolhendo todos os títulos de livros e artigos que se referem a Dom Bosco, Madre Mazzarello e seu carisma. Hoje [em 2001] são cerca de trinta mil. O estudo torna-se além de um itinerário de vida espiritual, uma condição para poder comunicar e transmitir com fidelidade e riqueza. Por isso, foi inserido em todas as fases da formação.
3. A fisionomia espiritual de Dom Bosco
Um segundo núcleo a meditar é o tipo de pessoa e de cristão, a personalidade de Dom Bosco: uma esplêndida harmonia de natureza e graça.
É preciso primeiramente colher a força do adjetivo “esplêndida”. Não se trata de uma harmonia modesta, normal, que se confundo no comum. É algo que impressiona fortemente... como um panorama extraordinário, um quadro particularmente bem-sucedido, uma música vibrante. Não são poucos os estudiosos que se expressaram neste sentido. “Um dos homens mais completos que a história tenha conhecido” (Joergensen). “Agostinho, Francisco, Caterina de Sena, Dom Bosco devem ser enumerados entre as culminâncias da humanidade” (Hertling).
“Nós vimos esta figura de perto, numa visão não breve, numa conversação não momentânea; uma magnífica figura que a imensa, a insondável humildade não conseguia esconder... uma figura muito dominante e atraente; uma figura composta, uma daquelas almas que, por qualquer caminho se dirigisse, certamente deixaria uma grande marca de si, tanto era ele magnificamente equipado para a vida” (Pio XI).32
“O apóstolo Paulo, Agostinho de Hipona, Francisco de Assis, Vicente de Paulo e João Bosco foram evidentemente, criaturas de exceção no plano de seus recursos e qualidades humanas” (Wackenheim).
Nossa finalidade não é tecer um elogio ou panegírico, mas descobrir o “tipo” de pessoa e de espiritualidade: harmonia entre profundo instinto de vida e abertura a Deus, paixão por tudo que é humano e profundidade espiritual. “Acordo ou harmonia”, diz mais do que unidade. Esta se obtém, às vezes, soldando as partes, às vezes sacrificando alguns aspectos; mostra a imagem de algo de alcançado. Harmonia diz plenitude que se se torna esplendente no jogo das tensões; nenhuma delas é mortificada em favor da outra ou da tranquilidade. Sua natureza humana, terna e afetuosa, sensível à amizade, torna-se sinal transparente da experiência de Deus. Esta, por sua vez, produz uma delicadeza sempre maior de humanidade.
Esta harmonia transparece na sua pessoa: ternura e austeridade, inteligência e praticidade, retidão e esperteza, santidade e flexibilidade no mundo. Transparece também na sua espiritualidade: trabalho e contemplação, Deus e o próximo, caridade e profissionalismo, obediência e liberdade. Transparece ainda na sua pedagogia: disciplina e familiaridade, racionalidade e espontaneidade, exigência e bondade.
São as mesmas tensões que nós sentimos. Por isso, sublinhou-se com frequência nestes nossos tempos a sua principal característica: a graça de unidade.
Dimensões da personalidade de Dom Bosco
Relacionado com este ponto da combinação harmonia-unidade há outro núcleo: as dimensões fundamentais da sua personalidade, expressas de forma perfeitamente paralela. “Profundamente homem e homem de Deus, rico das virtudes do seu povo e cheio dos dons do Espírito, era aberto às realidades terrenas e vivia como se visse o invisível”.
A primeira coisa que chamava a atenção era a sua humanidade. Era a manifestação da sua santidade, enquanto esta transparecia como o esplendor da sua humanidade. “Tudo em Dom Bosco é humano e tudo irradia misteriosamente uma luz sobrenatural”.
A humanidade se manifestava numa capacidade de afeto intenso e pessoal. Esta se tornou a sua forma habitual de relacionamento; jamais formal, burocrático, administrativo, sempre próximo e envolvendo a pessoa numa atmosfera de estima. Isto se vê no oratório, mas também nas audiências, nas viagens, pela rua. Afeiçoar-se era próprio do seu temperamento, mas tornou-se a sua forma de imitar Cristo. Em suas memórias, ele recorda que ainda menino prendera um melro e o colocara numa gaiola. Cuidava dele e lhe dava de comer como se faz com um amigo. Certo dia, o gato aproximou-se da gaiola e o matou. Desconsolado, pôs-se a chorar. Sua mãe lhe disse: “Por que choras? Há muitos pássaros no bosque”. Contudo, todos os outros não valiam aquele pelo qual se afeiçoara. Naquela oportunidade tomou o propósito de nunca mais apegar o coração a qualquer criatura.33 Felizmente, comentou um autor, não o cumpriu.
Esta forma de relacionar-se pessoalmente e com intensidade de afeto foi o segredo da sua praxe educativa. Há toda uma coleção de fatos que o recordam; desde a frase dita a Gastini: “Sou um pobre padre, mas te amo tanto que se algum dia tivesse apenas um bocado de pão eu o dividiria contigo”; até a comovida lembrança do Padre Albera: “Devo dizer que Dom Bosco que Dom Bosco tinha por nós especial predileção, própria dele, pelo que sentíamos fascínio irresistível. Eu me sentia como que preso por uma força afetiva que mexia com pensamentos, palavras e ações. Sentia que era amado de um modo que nunca tinha experimentado antes, de uma maneira singular, superior qualquer afeto. Ele nos envolvia a todos em uma atmosfera de felicidade e alegria. Tudo nele tinha um poder de atração. Agia nos nossos corações juvenis como um imã, ao qual era impossível resistir. E ainda que pudéssemos, não o teríamos feito em troca de todo ouro do mundo, tamanha era a felicidade que experimentávamos por causa dessa influência excepcional sobre nós. Isso era algo muito natural nele, sem planejamento e sem esforço algum. E não podia ser diferente, porque de cada palavra ou ato seu emanava a santidade a união com Deus, que é a caridade perfeita. Ele nos atraía para si pela plenitude do amor sobrenatural que lhe ardia no coração. Dessa singular atração brotava a ação que conquista os nossos corações. Nele, os dons naturais se tornavam sobrenaturais pela santidade da sua vida”.34
Ao afeto, como traço de humanidade, deve-se acrescentar a capacidade de amizade. Quantas e diversas ele teve desde os primeiros anos de vida, na juventude, na idade madura! A alegria de compartilhar, de estar e trabalhar junto é uma característica do seu temperamento. Amigo do irmão José com quem dividiu entretenimentos e confidências; amigo dos meninos do povoado para os quais contava histórias e preparava entretenimentos (hoje lembrados com um belo monumento no Colle Don Bosco); amigo dos colegas de Chieri com os quais fundou a sociedade da alegria, amigo do colega Comollo, com quem estabeleceu um pacto para além da morte; amigo dos meninos judeus, discriminados. Especialmente de um deles, Tiago Levi, chamado de Jonas, que recordará com estas palavras: “De muito bonito aspecto, cantava com voz de rara beleza. Jogava bilhar muito bem. Tinha-lhe grande afeto e ele uma amizade louca por mim. Mal encontrava um momento livre, vinha passa-lo em meu quarto; ficávamos a cantar, a tocar piano, a ler, ouvindo com gosto mil historietas”.35
Este aspecto continua na maturidade, em que cultiva a amizade com sacerdotes, religiosos, cooperadores e jovens, escritores, perseguidos, políticos, autoridades. Ele o deixará documentado numa série de recomendações deste teor: “Todos aqueles com quem falares, tornem-se teus amigos”.36 A amizade será um tema da sua pedagogia. Para prova-lo basta recordar o capítulo sobre a amizade entre Domingos Sávio e Camilo Gavio.37
Outra vertente da sua humanidade é recordada com a expressão “rico das virtudes do seu povo, era aberto às realidades terrenas”. Quais são as virtudes do seu povo não era muito importante esclarecê-lo. Existe um pequeno volume que traz este artigo e procura defini-lo.38 Há certamente a magnanimidade nos projetos, o idealismo e o senso prático, a tenacidade e, ao mesmo tempo, a flexibilidade, a capacidade de trabalho e o sentido do real.
Alguém o definiu assim: lúcido no projetar, forte na vontade, lento no deliberar, moderado no proceder. Ele mesmo o reconhecia: “Dom Bosco não é um homem a quem agrade parar no meio do caminho, quando iniciou um empreendimento”.
Este estilo pode ser visto em todos os seus empreendimentos: o oratório começa com pouco, com o que era possível, mas logo sem demora; inicialmente recolhe apenas alguns meninos, mas não deixa de crescer. O aumento suscita novos projetos que alcançam as dimensões sonhadas. O mesmo acontece com as missões. Começa com uma intuição. Preparam-se alguns homens. Pacientemente e ao longo de vários anos buscam-se contatos úteis. Prepara-se da melhor forma o que é possível prever, mas muitas coisas permanecem incertas. Em todo caso, parte-se. O mesmo acontecerá com as outras instituições educativas. A organização das escolas profissionais ocupará a vida inteira de Dom Bosco e o seu “modelo” amadurecido ao longo de vinte anos.
A santidade torna os valores universais
Torna-se oportuno um comentário: a santidade torna universais alguns valores vividos por uma comunidade ou contexto especial já longamente fermentado pelo cristianismo. É certo que alguma coisa do Piemonte e da Itália passou através de Dom Bosco ao mundo, como à comunidade cristã passou alguma coisa do judaísmo e da cultura grega e latina.
Contudo, essa humanidade rica, sensível, concreta, prática, capaz de misturar-se com os problemas do seu tempo era o resultado final de uma resposta generosa à graça: “Homem de Deus, cheio dos dons do Espírito”. Era essa uma dimensão em parte ocultada pelo temperamento. De fato, embora Dom Bosco fosse levado a comunicar os próprios sentimentos ao interlocutor, não o era igualmente para manifestar a sua experiência interior. Os escritos e as cartas deixam transparecer pouco dos seus sentimentos profundos.
Dom Bosco não deixou uma “História da alma”, como a pequena Teresa ou João XXIII. Deixou a história do oratório. Não escreveu um “Diário espiritual”, mas o caderno de experiências pedagógicas. Isto leva a penar no nosso estilo espiritual feito de sobriedade na expressão das emoções e sentimentos e de uma moderada introspecção.
Entretanto, a profundidade espiritual era em parte ocultada sob o seu estilo de ação. “Muito obstinado e esperto, muito ávido de dinheiro e fácil de falar ou falar de si”, pensava um cardeal (Card. Ferrieri). Era posta em discussão pela aparente desordem e pelos limites reais da sua obra educativa, que devia ajudar a desenvolver os meninos pobres e não apresentava, portanto, as “qualidades” da obra educativa exemplar. “Se Dom Bosco tivesse realmente espírito de piedade deveria impedir certas desordens em sua casa”, disse outro cardeal mal impressionado com a espontaneidade não totalmente regrada de Valdocco.
Contudo, era clarissimamente manifestada sobretudo através da fé em Deus e da caridade pelo próximo. “Repassei muitos processos, mas não encontrei nenhum deles tão transbordante de sobrenatural” (Card. Vives).
“Para encontrar uma figura com as mesmas proporções, é preciso repassar séculos da história da Igreja e chegar aos santos fundadores das grandes ordens religiosas” (Card. Schuster).
Outro aspecto da sua dimensão espiritual é a riqueza dos dons do Espírito: prudência, fortaleza, sabedoria. Referem-se todos à ação, à leitura dos sinais, ao entendimento dos homens e dos acontecimentos.
Sobretudo, porém, sublinha-se um aspecto: “Vivia como se visse o invisível”. A expressão é gomada da carta aos Hebreus. O escritor sagrado descreve a fé dos patriarcas que viveram na precariedade sustentando duras provas na Esperança sólida de que se realizassem as promessas de Deus. Chegando a Moisés, recordam-se os seus empreendimentos e as dificuldades que comportavam. E afirma-se que conseguiu realizar tudo porque “caminha por este mundo como se visse o invisível”. Literalmente: “Pela fé, deixou o Egito sem temer a ira do rei. Permaneceu forte como se visse o invisível”.39 Trata-se de uma abordagem que se adapta bem a Dom Bosco, homem de grandes sonhos para a salvação dos jovens da miséria material ou moral e para a difusão do Evangelho. Descreve bem a sua maneira de colocar-se diante das coisas deste mundo e dos acontecimentos históricos como se visse a presença de Deus que agem neles. Alinha-se à leitura litúrgica que sublinha a sua fé e a sua magnanimidade.
4. O projeto de vida
Um último núcleo a meditar: o ponto de fusão de toda a sua vitalidade natural e as inspirações da graça; um projeto de vida unitário, o serviço aos jovens. O texto dedica-lhe um longo comentário, com um crescendo de expressões que evidenciam o esforço de Dom Bosco para realiza-lo, as dificuldades superadas por esta entrega total e o pleno emprego das suas energias físicas, intelectuais, espirituais. O projeto e não mais o “sonho”, assumido com a sensibilidade de um coração generoso e conduzido com firmeza e constância, acabou por modelar a sua personalidade, e tornou-se o lugar histórico do seu amadurecimento como santo original.
As Constituições salesianas dirão que a nossa consagração compreende simultaneamente a vida comunitária, a sequela Christi e a missão juvenil. Entretanto, é esta a dar a toda a vida o seu tom concreto.40 Aquilo que nos distingue e nos plasma. O lugar onde se exigem e onde se exercitam as virtudes do salesiano, onde ele é obrigado a reproduzir a esplêndida harmonia entre humanidade e sentido de Deus.
5. Conclusão
É difícil entender a espiritualidade salesiana e progredir nela como pessoas e comunidades, se não nos aproximarmos constantemente da sua fonte e origem. Um perigo não imaginário é interpretá-la segundo as nossas tendências espontâneas.
Na vida das comunidades, o amor a Dom Bosco foi expressado até agora sem pudor e é garantia de unidade e entusiasmo pastoral. Isto pertence ao nosso espírito. Padre Stella escreveu um volume sobre a formação da imagem de Dom Bosco como pessoa fascinante para os jovens e aceita no mundo, que é sensível à promoção dos mais modestos. Entre os elementos característicos do nosso espírito há, portanto, o amor filial a Dom Bosco, acompanhado de sentimentos de adesão e admiração. Enquanto a distância e a frieza produziram efeitos negativos.
Agora, porém, vai-se impondo em nós uma mudança de linguagem e de atitude: passa-se da narração ingênua e laudatória ao conhecimento aprofundado, à colocação dos fatos e ditos em seu contexto, ao esforço de repensar o seu significado em nossa situação e cultura. E isto exige igualmente afeto e atenção, e a mais um discernimento paciente e iluminado.
O Senhor nos consagra com o dom do seu Espírito
1. À base da nossa espiritualidade: a consagração
O Espírito move a história humana para a sua realização e a comunhão com Deus. E o faz a partir da consciência de cada pessoa, diz João Paulo II: “O Espírito entra incessantemente na história através do coração do homem”.41 Mas o faze de modo singular através das pessoas e comunidades que tomam consciência da sua presença, seguem as suas sugestões, deixam-se conduzir pelas suas inspirações.
Exemplo disto na história sagrada é Abraão: a partir d’Ele, o conhecimento de um Deus único e a fé tornar-se-ão patrimônio de um povo.
Também são exemplos os profetas: dos seus gestos e das suas palavras vieram esperança, luz e sustento para todos.
Na história contemporânea, exemplos desta ação do Espírito, através de pessoas e comunidades, são as Igrejas, os santos e os carismáticos, os pensadores religiosos, os pastores; eles são como uma espécie de concentração ou pontos dos quais se expande a energia do Espírito.
Entre estas pessoas estamos também nós, cristãos, religiosos e sacerdotes; fomos enxertados em Cristo mediante o batismo e escolhemos segui-lo com a profissão dos conselhos evangélicos; a nossa vida, assim, se desenvolve sob a ação do Espírito que Jesus dá aos seus discípulos. É importante ter consciência disso e que esta consciência não diminua com o passar dos anos.
Um dos aspectos que mais impressiona na vida de Dom Bosco é a sua convicção de ter sido escolhido por Deus para uma missão. É o tema do primeiro sonho, que constitui depois a trama das suas “Memórias do Oratório”. Contudo, a mesma consciência é demonstrada quando recapitula a história das congregações.
O P. Pedro Stella expressa-o assim: “A persuasão de viver sob uma pressão singularíssima do divino domina a vida de Dom Bosco; está na raiz das suas decisões mais audaciosas e está pronta para explodir em gestos incomuns. A fé de ser instrumento do Senhor para uma missão singularíssima foi nele profunda e sólida (...). Isto fundamentava nele a atitude religiosa característica do Servo bíblico, do profeta que não pode subtrair-se à vontade divina”.42
Para ele, portanto, trabalhar pelos jovens mais pobres não era apenas seguir uma tendência espontânea ou favorecer uma especial sensibilidade social, mas a realização de uma missão que acreditava ter recebido de Deus.
Esta consciência está na base de todo desenvolvimento da nossa espiritualidade salesiana.
2. A nossa consagração
A Exortação Apostólica Vita Consecrata insiste muito no fato de os religiosos serem consagrados. Dois números trazem explicitamente no título esta indicação: “In Spiritu: consagrados pelo Espírito Santo”.43 Quando se fala do Pai, sublinha-se “a iniciativa de Deus”;44 ao falar do Filho, evidencia-se a necessidade de segui-lo “nas pegadas de Cristo”.45 Entretanto, afirma-se claramente que uma e outra se tornaram possíveis porque o Espírito nos anima interiormente. “Consagrados como Cristo para o Reino de Deus”46 é o título do outro número que fala explicitamente da consagração.
Há, ainda, o n. 32 da Exortação Apostólica que se detém sobre “O especial valor da vida consagrada”.
Esta insistência não agradou a todos, sobretudo pelo receio de que se voltasse a pensar nos religiosos como pessoas sagradas no âmbito sociocultural. A mentalidade atual, de fato, leva a pensar que somos cidadãos como todos os outros, que fizeram a escolha de Deus.
Ninguém deve preocupar-se ou ficar apreensivo, nem o Parlamento nem o ministro do interior... Esta escolha se coloca no âmbito das escolhas pessoais, embora depois seja expressada na comunidade. Contudo, o pensamento de que isso fizesse prosperar novamente a presença de algumas pessoas socialmente sagradas punha alguns em salvaguarda.
Surgiram, também na Igreja, algumas suspeitas ao pensamento de que os consagrados se achassem, ou que os outros os achassem, com certa superioridade (a “excelência objetiva” da vida consagrada). Diversamente, portanto, sobre a insistência na consagração provinha do temor de que os consagrados, socialmente, pudessem ser considerados pessoas especiais e sagradas, e na Igreja, em contraste com a visão eclesial atual, pessoas superiores.
A linguagem, naturalmente, tem limites intrínsecos, mas nenhuma destas duas coisas pode ser tirada do significado do termo consagração. Mas há aí uma verdade que precisa entender.
Encontramos a insistência da Exortação Apostólica sobre a consagração como específico e distintivo dos religiosos também em nossas Constituições. Não deve escapar a semelhança encontrada nos dois textos. As Constituições nos propõem esta realidade quando nos repetem que fomos consagrados com o dom do Espírito. “O Pai nos consagra com o dom do seu Espírito e nos envia para sermos apóstolos dos jovens”,47 dizem as Constituições dos salesianos. “O Pai nos chama a viver com maior plenitude o nosso Batismo e nos consagra com o dom do Espírito”,48 encontramos nas Constituições das FMA.
Também não nos deve escapar a semelhança da expressão com que Lucas usa referindo-se a Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim; ... consagrou-me com a unção e enviou-me...”.49 Isto indica uma forte consciência de um fato de existência que aconteceu também em nós e que nós realmente não renegamos, antes nos sentimos particularmente amados por Deus.
Lendo atentamente todo o texto das Constituições, percebemos que este tema ou motivo é apresentado com muita frequência, quase repetido excessivamente. O que significa que é o fundamento de todo o nosso projeto de vida. A fim de expressá-lo utilizam-se também outras palavras semelhantes: vocação, aliança com Deus, entrega total, amor de predileção, escolha radical. Todas indicam uma só coisa: uma relação particularíssima com Deus que marca a nossa experiência pessoal e o nosso trabalho educativo.50
Além desta insistência, chama também a atenção o uso do verbo no passivo. Não se diz “nos consagramos”, mas “somos consagrados”: somos consagrados não por uma pessoa, um rito ou uma instituição humana ou divina, mas pelo Espírito: “Deus nos consagrada com o dom do Espírito”.
A consagração não é um esforço nosso para alcançar certo grau de virtude ou o próprio Deus, e ser todo d’Ele. Mas uma visita, um dom, uma sua vindo até nós, uma irrupção da sua graça em nossa vida. Isso se vê bem nas vocações proféticas. Elas são repentinas e imprevisíveis. Não é o profeta que vai em busca de Deus, mas é Deus que o investe, o ocupa. Amós diz que caminhava atrás do seu rebanho quando ouviu a voz de Deus.51
Há alguns anos a Congregação da Doutrina da Fé publicou um documento sobre “Alguns aspectos da meditação cristã” (15 de outubro de 1989). O móvito que levou a isso era a difusão de práticas e modalidades de meditação oriental. Da sua leitura entendem-se bem as diferenças entre uma espiritualidade natural e racionalista e a espiritualidade cristã. A primeira surge como uma conquista pessoal; através de um esforço de busca intelectual e domínio dos movimentos instintivos a pessoa alcança a iluminação. A vida espiritual cristã, diversamente, é concebida como um dom do Espírito. Trata-se de abrir-se à escuta, de responder, de deixar-se ocupar, de acolher. É graça. A iniciativa e as possibilidades não estão em nós.
Por isso, na espiritualidade oriental a via principal é a tomada de consciência de si, a ascese que dá confiança na própria capacidade e a satisfação pelos sucessos alcançados. Na espiritualidade cristã, a via principal é a caridade. Trata-se de sentir uma presença que nos fez objeto da sua predileção e responder com amor. É toda fundada na relação. E prevalece não tanto o sentido do valor pessoal, mas o agradecimento. O cristão é um ser grato: “Nós te damos graças pela tua imensa glória”.
Há ainda um particular a colher nas palavras das Constituições: o significado total que que se dá à palavra. A consagração não é “um” elemento da vida salesiana, mas compreende-a “toda” por inteiro. Não inclui apenas os votos; é todo o ser e o agir da pessoa, durante a vida inteira, que é como que marcado pela escolha de Deus.52
Aí devemos colher a diferença entre uma grande enfermeira, também amável e solícita, e uma irmã enfermeira. A questão não se baseia na qualidade do serviço e nem sequer nos modos caridosos, porque há enfermeiras estupendas também nisso. A qualidade da irmã está alhures, em alguns valores que estão no interior da realidade da irmã, que ela deve procurar exprimir através da caridade.
Nesta realidade e consciência da consagração, coloca-se, depois de um período de reflexão e discussão, o fundamento e o caráter específico da vida religiosa, vida que se sente atraída para Deus e se concentra n’Ele, quer o busque na oração, no silêncio e na solidão, quer se proponha a servi-Lo nos irmãos mediante a caridade.
A reflexão do Sínodo sublinha como nenhum elemento, além deste, pode dar identidade à vida religiosa no mundo atual: nem os trabalhos educativos ou sociais, nem o voluntariado nos países de pobreza, nem as lutas pelas grandes causas humanas; somente o fato de se reconhecer o primado de Deus na orientação e organização da própria existência. Hoje, mais do que nunca, a vida religiosa exige transparência.
De aí se vê a fragilidade de uma vocação cuja motivação seja apenas o trabalho juvenil ou a ação missionária. Estas motivações se esgotam se não têm raízes em outras mais sólidas e definitivas.
3. A consagração, dom de Deus e experiência pessoal
Hoje, é claro que quando se fala da consagração se pena numa experiência pessoal e interior, mais do que em elementos exteriores, sociais, organizativos, rituais, que colocariam as pessoas numa condição especial na sociedade ou na comunidade cristã.
Quando falamos da nossa consagração pensamos em três fatos da nossa vida.
O primeiro é pura graça, dom, inspiração, chamado, iniciativa, invasão de Deus. Ele se fez sentir em nossa vida até envolve-la totalmente ser o seu “motivo” principal. Aquele que mais escutamos e com maior atenção e gosto. Essa atração ou enamoramento de Deus é um dado e uma experiência que podemos reviver olhando para trás.
Recordamos certamente quando e como nos decidimos por Ele, como os esposos recordam o modo como se deu o encontro deles e a atração recíproca. Para alguns pode ter sido uma iluminação repentina e fulgurante num momento de particular intensidade espiritual, por exemplo, um retiro. Para a maioria tudo aconteceu gradualmente: uma primeira experiência devida ao contato com ambientes ou pessoas ligadas ao religioso, nos quais se veio a conhecer um valor particular. Depois, aos poucos, se descobriu a fonte de onde provinham esses valores; participou-se da experiência daqueles que nos impressionaram, através da amizade, da colaboração e das confidências. Enfim, sentiu-se “presos”, segundo a expressão de São Paulo: “Fui conquistado por Jesus Cristo”. 53
É a experiência bíblica de pertencer a Deus e não conseguir separar-se d’Ele: “Tu me seduziste, Senhor... e eu me deixei seduzir... no meu coração havia um fogo ardente, encerrado em meus ossos. Procurava contê-lo, mas não podia”.54
Então, vai-se enraizando em nós a convicção de sermos destinatários da atenção e do amor de Deus, não em geral, como alguém na massa, mas pessoalmente: “Eu te chamei pelo nome”;55 “Com amor eterno eu te amei”.56
“Escolheu-nos antes da criação do mundo para que fôssemos seus filhos adotivos”.57De expressões como estas, está cheia a Escritura quando descreve a atitude de Deus para conosco. Deus se introduziu na vida, criou espaço no coração e nós dissemos: isto me convence, este é o meu caminho.
Ao mesmo tempo, temos a evidência de que se trata de uma graça, de alguma coisa que nem merecemos nem buscamos, mas que nos veio ao encontro, que entrou em nossa vida. Às vezes, ouvimos estas histórias pessoais quando nos encontros juvenis algum/a jovem professo/a narra aos colegas como e por que se decidiu a entrar na vida religiosa.
Em 1993 as irmãs clarissas celebraram o seu nono centenário. A TV entrevistou algumas delas! A pergunta que mais intrigava os jornalistas era quais as razões ou fatos que levaram à decisão de assumir este gênero de vida. As respostas eram muito variadas em relação aos fatos e circunstâncias. Mas por baixo de todas havia um esquema comum: depois do primeiro vestígio do valor de Cristo, de Deus Pai para a própria vida, a reflexão as levara a escolhê-Lo como “o amor” da própria existência, preferindo-O a todas as outras coisas e as demais possíveis experiências humanas.
Esta experiência não diminui com o desenvolvimento da idade ou o enraizar-se dos hábitos, mas amadurece e deve preencher a vida. Se caísse, a vida religiosa perderia a sua motivação e se arrastaria no funcionalismo, isto é, apenas na realização correta dos próprios deveres.
Quando cai esta tensão acontece a nós o que acontece aos casais cansados que continuam a conviver e em paz, mas não estão mais enamorados um pelo outro, e a vida não apresenta mais muita atração.
A consagração não consiste principalmente num decreto, num conjunto de sinais exteriores, num estado social ou numa separação em relação ao mundo; mas, sobretudo, no fato de Deus ter entrado na existência de uma pessoa e ali tenha tomado o lugar principal, que habite nela e a faça seu interlocutor e companheiro. Não é, pois, exclusiva dos religiosos e nem mesmo dos cristãos. Onde quer que Deus intervenha, criando ou salvando, consagra com a presença do seu amor e dá dignidade inviolável. A primeira consagração é a existência humana; é o primeiro ato de amor que estabelece o caráter intangível da pessoa e a sua superioridade sobre tudo.
Mediante a fé e o batismo, que são autocomunicação de Deus através do ministério da Igreja, a nossa pertença a Ele se torna consciente e se transforma em princípio de desenvolvimento pessoal. Nós o explicamos muitas vezes aos jovens ao falar da consagração do batismo que nos faz filhos de Deus, membros do seu povo, templos do Espírito.
O singular do religioso é que ele sente tudo isso como o elemento principal, o ponto irrenunciável para a própria realização. A iniciativa de Deus o alcança no momento em que faz o projeto da própria vida; mediante o dom do Espírito o atrai a si de forma radical e exclusiva. Poderia também não fazer a profissão religiosa e a Igreja poderia não inserir na missão e comunhão visível este fato da existência, mas o fato existiria do mesmo modo. Naturalmente, com menor força e significado. O fato de entrar numa Congregação também é manifestação pública de adesão a um projeto de vida, é uma preferência e caminho adequado. Contudo, a consagração é, primeiramente, o lugar que Deus tomou numa existência, na mente, no coração etc. Isto para sublinhar que estamos longe da concepção pela qual seríamos socialmente pessoas sagradas...; nem sequer pensemos nisso!
4. Uma oção e um projeto de vida
Deste primeiro fato, cujo protagonista é Deus, deriva um segundo: a nossa opção de vida. Amadurece em nós a convicção, a consciência e o sentimento de que somos seus, que “n’Ele vivemos, nos movemos e somos”,58 que Ele é o primeiro e o único que importa, não em abstrato e em geral, para o mundo ou para o gênero humano, mas para nós. N’Ele nos reunimos. Buscamo-lo “desde a aurora”,59 isto é, continuamente.
De aí provem uma relação que nos vai enchendo de sentido e de paz, também psicologicamente, e nos caracteriza diante do mundo. O consagrado é aquele que colocou Deus e o valor religioso (a fé) no centro da sua existência. “O Senhor é parte da minha herança”.60 A pessoa, então, se entrega, se doa totalmente, se consagra segundo o sentido analógico que se dá a esta palavra. Seu esforço é para chegar a ser criatura de um só desejo, viver o amor de Deus ou o mistério de Deus não como uma breve pausa semanal ou cotidiana, por exemplo, na missa ou na oração, mas como um estado e uma relação permanentes, nos quais e enraízam todas as opções.
Muitas pessoas não entendem as razões ou o sentido desta opção, mas percebem a sua coerência interna. Admiram quem é capaz de exprimi-la com a vida e as obras e, ao contrário, criticam aqueles que, depois de tê-la feito, colocam no centro da própria existência valores incompatíveis ou estranhos a ela.
Assumimos um projeto concreto, uma forma de existência visível que traz o sinal de Deus, incorporamo-nos numa comunidade que já se reconhece na mesma opção e predispôs um caminho para desenvolvê-la. Também este tipo de vida é “consagrado” não em força de uma separação material em relação ao mundo, aos sinais ou às práticas exteriores (seria uma visão estranha à fé cristã), mas porque é fundado e organizado à luz da relação transformadora com Deus e o seu Reino.
Dela, sublinha-se com frequência a imitação de Cristo, expressa nos votos. É preciso, porém, acrescentar duas outras exigências. Primeiramente, a intimidade com Cristo. A acolhida das suas preferências operativas e das suas atitudes seria insuficiente. É preciso a relação. Jesus é uma pessoa viva com quem se encontrar e em quem viver. Entre o consagrado e Ele, estabelece-se uma relação profunda. Ensina-nos a vida dos discípulos. De fato, Jesus teve ouvintes, admiradores, seguidores, discípulos e alguns que foram particularmente íntimos e amigos: “Vós sois meus amigos”.61
Hoje, quando todos os elementos institucionais parecem frágeis e todas as solidariedades formalizadas parecem “transitória”, esta expressão evangélica de fidelidade e amor sugere muitas coisas.
Torna-se oportuno um comentário: convém dar lugar às manifestações afetivas de amizade com Cristo além das efetivas. É preciso evitar dois extremos: converter o amor num sentimento superficial, um simples movimento de sensibilidade quase de adolescente; e, no outro extremo, tornar árido o nosso coração com certo intelectualismo. Se a vontade se encontra muitas vezes freada no amor de Deus é por que a nossa sensibilidade humana está atrofiada. Enquanto a fé ou o pensamento de Deus não alcançar os sentimentos, permanece marginal e inativo. Houve santos que manifestaram com ternura a próprio amor por Deus. Podemos recordar São Francisco de Assis, mas não menos, embora com outro estilo, São Francisco de Sales, em cuja espiritualidade nos inspiramos.
Além da imitação e da intimidade há a participação ativa na sua causa, isto é, gastar-se por aquilo pelo qual Ele trabalhou e sofreu.
Exprimimos estes três fatos com a profissão. As fórmulas mais antigas são breves e essenciais. As modernas, porém, são mais longas e analíticas. Todas, porém, se caracterizam porque sublinham que o objeto da consagração não são as coisas, nem as atividades, nem as obrigações morais, mas a pessoa; que a razão é o amor de Deus percebido e o desejo de a ele corresponder. As exigências da consagração são, portanto, totais, exclusivas, perpétuas: tudo, só, para sempre. Num certo período prevalece a fórmula “até a morte”. Não era uma determinação de tempo, mas de intensidade: até o holocausto, até a consumação.
A profissão tem uma importância singular na organização e desenvolvimento da nossa vida espiritual. Por isso, a liturgia a valoriza hoje como uma celebração enriquecida. A presença numerosa da comunidade lhe dá relevo social. O período de preparação imediata insiste no seu caráter único. De fato, é, ao mesmo tempo, reconhecimento público da parte da comunidade eclesial desta irrupção de Deus na vida de uma pessoa, resposta de amor desta ao convite de Deus, acolhida de um projeto concreto de vida. A existência será construída sobre o compromisso assumido.
Não se trata de um ato passageiro, uma assinatura num documento, mas o início de uma relação que se prolongará, como a do matrimônio. Dela deverão brotar atitudes, gestos e palavras. Resulta, pois, não só um propósito de santificação, mas também uma fonte de graça, como para os esposos a promessa inicial de pertença recíproca.
5. Algumas consequências importantes
Daquilo que dissemos, podemos tirar algumas reflexões para nossa vida.
Os consagrados:
São as mulheres e os homens do senso religioso e isto na consideração de todos, crentes e não crentes. A existência pessoal e coletiva baseia-se numa constelação de valores que todos assumimos: respeito pelo outro, trabalho, saúde, honestidade, responsabilidade social. Dizendo constelação indicamos que há entre eles uma organização e uma jerarquia que permite vê-los como um sistema. Cada um de nós coloca no centro alguns de sua preferência e, em coerência com eles, se organiza tudo.
Os consagrados se concentram no valor religioso e dele se projetam para os outros valores, retornando sempre ao primeiro como justificativa e matriz de tudo o que fazem. Em força dele assumem a educação, cuidam dos doentes, dão-se à pesquisa. Cada ramo do agir humano se abre aos consagrados, desde que a inspiração e a motivação sejam próprias de quem fez de Deus a sua opção principal. Há grande diferença entre uma educadora honesta e profissionalmente capaz e uma religiosa educadora.
Surge uma anormalidade quando prevalece outra dimensão e o senso religioso fica marginalizado. Particularmente nas congregações dedicadas à educação ou a outros serviços é possível haver um desequilíbrio entre papel profissional e testemunho religioso. Tillard diz que o senso religioso é para o consagrado aquilo que a higiene é para o médico. A falta de limpeza é tolerável em qualquer pessoa, mas é uma falta séria num cirurgião.
Demonstram-se como profissionais da experiência de Deus. Eles não só escolhem o caminho da espiritualidade como caminho pessoal; mas também se propõem como interlocutores para todos os que no mundo estão em busca de Deus. Àqueles que já são cristãos, oferecem, então, a possibilidade de fazer, em sua companhia, uma experiência religiosa, e àqueles que não são cristãos, colocam-se ao seu lado, no caminho de busca. A experiência religiosa está na origem da sua vocação. O projeto de vida que assumem tende a cultivá-la e a privilegia em termos de tempo e de atividades. Todos os cristãos, por outro lado, devem e querem fazer uma experiência de Deus; mas a ela podem dedicar-se apenas em intervalos e condições de vida menos favoráveis, pelo que correm o risco de transcurá-la.
Os consagrados são, ao mesmo tempo, uma memória de Deus para os cristãos e não cristãos e um apoio para aqueles que querem buscar, perceber e apreciar a sua presença.
Há uma lei na vida que é aplicada em todos os âmbitos: nenhum valor permanece na sociedade sem um grupo de pessoas que se dediquem completamente a desenvolvê-lo e sustenta-lo. Sem a classe médica e a organização dos hospitais, a saúde seria impossível. Sem os artistas e as instituições correspondentes, o senso artístico da população decairia. O mesmo acontece com o senso de Deus: os religiosos, contemplativos ou não, formam aquele corpo de místicos capazes de ajudar, ao menos quem lhe é próximo, a ler a própria existência à luz do absoluto e a fazer experiência dele.
Isto pertence aos propósitos essenciais da vida religiosa. Por isso, os Fundadores colocaram o senso de Deus acima de todas as atividades e aspectos. Crentes e não crentes advertem um vazio impreenchível quando desaparece esta dimensão. Então, as crises começam a surgir e depois a desenvolver-se.
A Exortação Apostólica Vita Consecrata viu a vida religiosa como espaço privilegiado para o diálogo entre as grandes religiões,62 porque na sua origem há uma opção que, em termos gerais, é compartilhada por todas as pessoas profundamente religiosas.
As Constituições salesianas recordam-no no artigo 62: “Num mundo tentado pelo ateísmo e pela idolatria do prazer, da posse e do poder, o nosso modo de viver testemunha, especialmente aos jovens, que Deus existe e o seu amor pode saciar uma vida”.
Manifestação deste nosso perfil profissional é a nossa experiência pessoa de Deus percebida, tornada consciente, aprofundada, buscada e amadurecida como adulto. E a competência para iniciar outros, especialmente os jovens, na experiência de Deus, Eles desejam, ao menos como curiosidade ou sensação passageira, ter algum momento espiritual. Demonstram-no as casas de retiro. Em muitas delas, porém, os salesianos estão mais ocupados em administrar do que em orientar os jovens a descobrirem Deus, a senti-Lo na própria vida.
Assumem a santidade como finalidade principal da vida. Ela não é entendida apenas como retidão moral ou esforço ascético, mas como estilo de existência e relação nos quais transparece, de alguma forma, o mistério de Deus, libertador, próximo.
Os santos foram chamados transparência de Cristo hoje. São Vicente de Paulo dizia: “Como Jesus não terá sido bom, se o bispo Francisco de Sales é tão amável”.
As Constituições dizem que a santidade é o dom mais precioso que podemos oferecer aos jovens. A eles, de fato, é difícil construir a própria humanidade. Chegam-lhe do exterior mensagem e sugestões diversificadas, e com dificuldade conseguem discernir e escolher.
Não é fácil, para os jovens, perceber a transcendência no contexto secular, e o clima de liberalização torna difícil amadurecer critérios morais; como não é fácil para eles crer que Cristo vive hoje e não é apenas uma história edificante do passado.
Podemos acrescentar que a santidade é também a contribuição dos religiosos à cultura e à promoção humana. De fato, a santidade também tem valor temporal não só pelas obras de caridade em benefício dos pobres, mas pelo sentido e a dignidade que insere na convivência humana.
Congar escreveu: “A maior novidade do Concílio é esta: se a Igreja está no mundo e no mundo estão os problemas, a santidade é um fenômeno que interessa a cultura. Pode parecer um conceito discutível, mas um ponto central das intuições do Concílio é que a santidade tem a ver com a história. Com a Encarnação, a história do homem é o lugar no qual se expressa o amor de Deus; a santidade não brota, portanto, da fuga ou rejeição do mundo, porque é na medida em que me lanço no mundo para salvá-lo que encontro o grande dom de Deus”.63
Refletimos um pouco sobre a nossa consagração e profissão religiosa; surgiram claramente as consequências para a nossa vida. De tudo isso provém a urgência, para aqueles que exercem a autoridade, de animar a consagração religiosa para que possa ser vivida na plenitude dos seus significados e da sua importância.
Vimos anteriormente que “tipo” de pessoa espiritual é Dom Bosco: profundamente homem e totalmente aberto a Deus; como a harmonia destas duas dimensões foi construída num projeto de vida assumido com decisão: o serviço aos jovens. Evidencia-o este comentário: “Não deu passo, não pronunciou palavra, nada empreendeu que não visasse à salvação da juventude”.64
Examinando-se, porém, o seu projeto pelos jovens, vê-se que tem um “peito”, um elemento que lhe dá sentido, originalidade: “Realmente tinha a peito tão somente as almas”.65
Há, portanto, outra explicação e mais pontual da unidade da sua vida: queria, com a sua dedicação aos jovens, comunicar para eles a experiência de Deus. A sua não era apenas generosidade, mas caridade pastoral. Esta é chamada “centro e síntese” do espírito salesiano.66
“Centro e síntese” é uma afirmação exigente. É mais fácil enumerar vários aspectos, mesmo fundamentais da nossa espiritualidade, sem empenhar-se em estabelecer entre eles uma relação ou uma jerarquia, do que selecionar um deles como principal. Neste caso, é preciso entrar na alma de Dom Bosco ou do salesiano e descobrir o que explica o seu estilo.
Para entender o que inclui a caridade pastoral vamos dar três passos: reflitamos antes sobre a caridade, depois sobre a especificação pastoral e, enfim, sobre a caridade pastoral salesiana.
1. A caridade
Uma expressão de São Francisco de Sales diz: “A pessoa é a perfeição do universo; o amor é a perfeição da pessoa; a caridade é a perfeição do amor”.67
É uma visão universal que coloca em escala ascendente quatro modos de existir: o ser, o ser pessoa, o amor como forma superior a qualquer outra forma de consciência e relação humana, a caridade como expressão máxima do amor.
O amor representa o ponto ideal do amadurecimento de qualquer pessoa, cristã ou não. O trabalho educativo propõe-se a levar a pessoa a ser capaz de doar-se, a um amor de benevolência.
Os psicólogos, e não só Jesus Cristo, dizem que a personalidade completa e feliz é capaz de generosidade e desinteresse, e antecipa o amor que seja apenas de concupiscência, isto é, para a satisfação pessoal de ser amado. Diversas formas de neurose ou de perturbação da personalidade derivam do viver centrados sobre si mesmo. E todas as relativas terapias tendem a abrir e descentrar para os outros.
A caridade é, ainda, a principal proposta de qualquer espiritualidade; é não só o primeiro e principal mandamento; é, portanto, o principal programa para o itinerário espiritual, mas também a fonte de energia para progredir. Há sobre ela uma abundante reflexão principalmente em São Paulo68 e São João.69
Tomemos apenas alguns núcleos.
O acender-se da caridade em nós é um mistério e uma graça; não provém de iniciativa humana, mas é participação na vida divina e efeito da presença do Espírito. Não poderíamos amar a Deus se Ele não nos houvesse amado por primeiro, fazendo com que o sentíssemos e dando-nos o gosto e a inteligência para corresponder-Lhe. Não poderíamos nem mesmo amar o próximo e ver nele a imagem de Deus, se não tivéssemos a experiência pessoal do amor de Deus.
“O amor que Deus tem por nós foi derramado em nossos corações mediante o Espírito Santo nos foi dado”.70 Por outro lado, também o amor humano não tem explicação racional, e por isso se diz que é cego. Ninguém consegue determinar com exatidão porque uma pessoa se enamora de outra.
Devido a esta sua natureza, de ser participação da vida divina e comunhão misteriosa com Deus, a caridade cria em nós a capacidade de descobrir e perceber a Deus: a religião sem a caridade afasta de Deus. O amor autêntico, embora apenas humana, leva aqueles que estão distantes para a fé e o ambiente religioso. A parábola do bom samaritano enfatiza a relação religião-caridade em vantagem desta última.
São João o resumirá assim: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros porque o amor vem de Deus; quem quer que ame é gerado por Deus e conhece Deus. Quem não ama não conheceu Deus porque Deus é amor”.71 O significado do verbo “conhecer” é “fazer experiência”, mais do que ter noções exatas: quem ama faz uma experiência de Deus.
Uma vez que a caridade é a faculdade que nos permite conhecer Deus por experiência, é também aquela que nos permite apreciá-lo: “Agora vemos como num espelho, de maneira confusa; mas então O veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito, mas então conhecerei perfeitamente...”.72
Por isso, não e trata só de uma virtude particular, mas da forma e da substância de todas as virtudes e de tudo o que constrói a pessoa: “Mesmo que falasse as línguas dos homens e dos anjos... e se tivesse o dom da profecia... e se distribuísse todos os meus bens aos pobres... e se possuísse a plenitude da fé a ponto de transportar montanhas... mas não tivesse caridade, de nada me serviria”.73
Por isso, a caridade e o que dela procede são realidades que perduram, resistem ao tempo: “A caridade jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, a ciência acabará. Quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá”.74 Isto se aplica não só à vida, mas à nossa história. O que se edifica sobre o amor permanece e constrói a nossa pessoa, a nossa comunidade, a nossa sociedade. Enquanto o que se fundamenta sobre o ódio e o egoísmo cai em ruina.
Por isso, a caridade é o maior e a raiz de todos os carismas, através do qual se constrói e age a Igreja. Justamente depois de ter explicado a finalidade e o emprego dos diversos carismas, São Paulo introduz o discurso da caridade com estas palavras: “Aspirai aos carismas maiores e eu vos mostrarei o melhor caminho”.75
É o principal carisma também quando se exprime com gestos cotidianos e não apresenta nada de extraordinário ou vistoso: “a caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não se vangloria, não se ensoberbece, não falta ao respeito, não busca o próprio interesse, não se exalta, não leva em conta o mal recebido, não goza com a injustiça, mas se alegra na verdade. Tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.76
Também para Dom Bosco e Madre Mazzarello, como para todos os santos, a caridade é central. É a principal insistência de suas vidas. Convém sabe-lo e dizê-lo. Às vezes, de fato, algum salesiano faz experiência disso, descobre a importância da caridade num movimento eclesial, depois de muitos anos de vida na Congregação. Parece que nela não tivesse ouvido falar eficazmente e não o tivesse podido viver com intensidade.
No sonho dos diamantes – que é uma parábola do espírito salesiano – a caridade é colocada à frente e justamente sobre o coração do personagem: “Três daqueles diamantes estavam no peito... sobre aquele que se encontrava sobre o coração estava escrito: CARIDADE”.77 Sabe-se que neste sonhou ou parábola o que está colocado à frente é a parte fundamental do nosso espírito.
Além do mais, a caridade é recomendada pelos nossos Fundadores de muitas formas: como base da vida de comunidade, como princípio pedagógico, como fonte da piedade, condição do equilíbrio e da felicidade pessoal, prática de virtudes específicas, como a amizade, a boa educação, a renúncia aos interesses pessoais.
Também em nossas Constituições aprender a amar, é a finalidade da mesma vida religiosa: “um caminho que leva ao Amor”.78 O conjunto de práticas e disciplinas, de normas e ensinamentos espirituais desejaria conseguir apenas uma coisa: tornar-nos capazes de acolher os outros e colocar-nos a serviço deles com generosidade.
2. A caridade pastoral
A caridade tem muitas manifestações: o amor materno, o amor conjugal, a beneficência, a compaixão. Na história da santidade, as expressões recobrem todos os âmbitos da vida humana.
Os Salesianos (SDB) e as Filhas de Maria Auxiliadora (FMA) falam de uma caridade “pastoral”.
Esta expressão aparece muitas vezes em suas Constituições, documentos e discursos. O que significa caridade pastoral é dito muito bem pelo Concílio quando, referindo-se àqueles que assumem a responsabilidade de educar para a fé, diz: “receberam a graça sacramental para que, orando, sacrificando e pregando... realizem a tarefa perfeita da caridade pastoral, sem hesitarem em oferecer a vida pelas ovelhas e, feitos modelos do rebanho, suscitem na Igreja, também com o seu exemplo, uma santidade cada vez maior”.79
A palavra está a indicar uma forma de caridade. Faz referir-se mentalmente à figura de Jesus Bom Pastor.80 Não apenas, porém, às modalidades da sua ação: bondade, busca de quem se perdeu, diálogo, perdão, mas também e principalmente em relação à substância do seu ministério: revelar Deus a cada homem e cada mulher.
É mais do que evidente a diferença com as demais formas de caridade que voltam a atenção preferencial a necessidades particulares das pessoas: saúde, alimento, trabalho.
O elemento típico da caridade pastoral é o anúncio do Evangelho, a educação para a fé, a formação da comunidade cristã, a fermentação evangélica do ambiente. Pede, portanto, disponibilidade plena e doação para a salvação do homem, como projetada por Jesus: de todos os homens, de cada homem, também de apenas um. Dom Bosco, e depois dele os salesianos, exprimem esta caridade com uma frase: Da mihi animas, coetera tolle.
Os grandes institutos e as grandes correntes de espiritualidade condensaram o coração do próprio carisma numa breve frase: “Para a maior glória de Deus”, dizem os jesuítas; “Paz e bem”, é o cumprimento dos franciscanos; “Reza e trabalha”, é o programa dos beneditinos; “Contemplar e oferecer aos outros as coisas contempladas”, é a norma dos dominicanos.
As testemunhas da primeira hora e a reflexão sucessiva da Congregação levaram à convicção de que a expressão que resume a espiritualidade salesiana é justamente o “Da mihi animas”.
Esta expressão recorre com frequência nos lábios de Dom Bosco e influiu na sua fisionomia espiritual. Trata-se da máxima que impressionou Domingos Sávio no escritório de Dom Bosco ainda jovem sacerdote (34 anos) e levou-o ao comentário que ficou famoso: “Entendi que aqui não se faz negócio de dinheiro, mas de almas. Entendi: espero que a minha alma também faça parte deste comércio”.81 Para este jovem, ficou claro portanto que Dom Bosco não lhe oferecia apenas instrução e casa, mas principalmente uma oportunidade de crescimento espiritual.
A expressão foi recolhida da liturgia: “Suscitai também em nós a mesma caridade apostólica que nos leva a buscar as almas para servir a vós, único e sumo bem”.
Era justo que assim fosse, dado que Dom Bosco o quisera como intenção permanente na fundação das associações: “O escopo desta sociedade, se considerado em relação aos seus membros, não é outro senão um convite a quere se unir em espírito entre si, impelidos pelo dito de Santo Agostinho: divinorum divinissimum est in lucrum animarum operare”.82
Lemos na história: “À noite de 26 de janeiro de 1854, reunimo-nos no quarto de Dom Bosco e nos foi proposto fazer, com a ajuda do Senhor e de São Francisco de Sales, uma prova de exercício prático de caridade... desde então foi dado o nome de salesianos àqueles que se propuseram ou se proporão este exercício”.83
Depois de Dom Bosco, cada um dos Reitores-Mores, como testemunhas autorizadas, reafirmaram a mesma convicção. É interessante o fato de todos se terem preocupado em reafirmar com uma convergência que não deixa espaço à dúvida.
Padre Rua pôde afirmar nos processos: “Deixou que outros acumulasse tesouros... e corressem atrás das honras; Dom Bosco realmente não teve vivo interesse por outra coisa senão pelas almas; afirmou-o com os fatos, não só com aa palavra: Da mihi animas, coetera tolle”.
Também o Padre Albera, que manteve uma longa convivência com Dom Bosco, atesta: “O conceito animador de toda a sua vida era trabalhar pelas almas até a total imolação de si mesmo... Salvar as almas... pode-se dizer que foi a única razão do seu existir”. 84Mais incisivamente, também porque examina as motivações profundas do agir de Dom Bosco, o Padre Felipe Rinaldi vê no lema “Da mihi animas” o segredo do seu amor, a força, o ardor da sua caridade.
Quanto ao conhecimento atual, depois do repensamento da vida salesiana à luz do Concílio, assim se expressa o Reitor-Mor Padre Egídio Viganò: “A minha convicção é de que não existe nenhuma expressão sintética que qualifique melhor o espírito salesiano do que esta, escolhida pelo próprio Dom Bosco: Da mihi animas, coetera tolle”.
Esta expressão nos indica uma ardente união com Deus, que nos faz penetrar o mistério da vida trinitária, manifestada historicamente nas missões do Filho e do Espírito, qual Amor infinito ad hominem salutem intentus.85
De onde vem e o qual significado exato pode ter hoje esta expressão ou lema? Digo hoje, quando a palavra alma não exprime e não evoca o que significava em épocas anteriores.
A expressão está no Gênesis, capítulo 14. Quatro reis aliados fazem guerra a outros cinco, entre os quais o de Sodoma. Durante o saque da cidade cai prisioneiro também Ló, sobrinho de Abraão, com a sua família. Abraão é avisado. Parte com sua tribo, depois de armar os homens. Vence os predadores, recupera o butim e resgata as pessoas. Então, o rei de Sodoma, agradecido, lhe diz: “Dá-me as pessoas, e retém o resto para ti”. A presença de Melquisedeque, sacerdote de quem não se conhece a origem, dá um especial sentido religioso e messiânico ao trecho, sobretudo pela bênção que pronuncia sobre Abraão. Uma situação, portanto, tudo mais que “espiritual”. No pedido do rei, porém, há uma clara distinção entre pessoas e “resto”, as coisas.
Dom Bosco dá à expressão uma interpretação pessoal segundo a visão religiosa-cultural do seu século. “Alma” indica o elemento espiritual do homem, centro da sua liberdade e razão da sua dignidade, espaço da sua abertura a Deus. O entrelaçamento dos dois significados, o bíblico e o dado por Dom Bosco, aproximado da nossa cultura indica opções muito concretas.
Em primeiro lugar, a caridade pastoral leva em consideração a pessoa e se dirige a ela: a toda a pessoa; antes e principalmente lhe interessa a pessoa, desenvolver os seus recursos. Dar “coisas” vem depois; prestar um serviço está em função do crescimento da consciência e do sentido da própria dignidade.
Além disso, a caridade que contempla, sobretudo, a pessoa é guiada por uma “visão” dela. A pessoa não vive somente de pão; ela tem necessidades imediatas, mas também aspirações infinitas. Deseja bens materiais, mas também valores espiritais. Segundo a expressão de Agostinho “é feita para Deus, vive sedenta dele”.
Por isso, a salvação que a caridade apostólica busca e oferece é aquela plena e definitiva. Tudo o mais é orientado para ela: a beneficência à educação; esta à iniciação religiosa; a iniciação religiosa à vida da graça e à comunhão com Deus.
Em outras palavras, pode-se dizer que na nossa educação ou promoção damos o primado à dimensão religiosa. Não por proselitismo, mas porque estamos convencidos de que ela é a fonte mais profunda do crescimento da pessoa. Num tempo de secularismo, esta orientação não é de fácil realização.
A máxima também contém uma indicação de método: na formação ou regeneração da pessoa é preciso forçar e reavivar as suas energias espirituais, a sua consciência moral, a sua abertura a Deus, o pensamento do seu destino eterno. A pedagogia de Dom Bosco é uma pedagogia da alma, do sobrenatural. Quando se chega a tocar este ponto, começa o verdadeiro trabalho de educação. O outro é propedêutico ou preparatório.
Dom Bosco o afirma claramente na biografia de Miguel Magone. Este passa da rua ao oratório. Sente-se feliz e é, humanamente falando, um bom menino: é espontâneo e sincero, brinca, estuda, cria amizades. Falta-lhe, porém, uma coisa: entender a vida da graça, a relação com Deus, inicia-la. É religiosamente ignorante e distraído. Tem uma crise de choro quando se compara com os colegas e nota que lhe falta isso. Dom Bosco, então, conversa com ele. Desde aquele momento começa o itinerário educativo descrito na biografia: da consciência e acolhida da própria dimensão religioso-cristã.
Há, portanto, uma escolha e uma ascese por aquele que é movido pela caridade pastoral: “Coetera tolle”, “Deixa todo o resto”. Deve-se renunciar a muitas coisas para salvar o principal; podem-se confiar a outros e também deixar de lado muitas outras atividades desde que se tenha tempo e disponibilidade para abrir os jovens a Deus. E isso não só na vida pessoal, mas também nos programas e nas obras apostólicas.
“Quem percorre a vida de Dom Bosco, seguindo os seus esquemas mentais e explorando os traços do seu pensamento encontra uma matriz: a salvação na Igreja católica, única depositária dos meios de salvação. Ele sente que o desafio da juventude abandonada, pobre, vagabunda desperte nele a urgência educativa de promover a inserção destes jovens no mundo e na Igreja mediante métodos de doçura e caridade; mas com uma tensão que tem sua origem no desejo da salvação eterna do jovem”.86
3. Linhas de reflexão
À maneira de síntese, retomemos aquela que foi a linha da nossa reflexão.
A nossa é uma espiritualidade apostólica: exprime-se e cresce no trabalho pastoral.
Para que o apostolado seja “espiritualidade” e não consumo de energias, com possível deterioração, deve ter uma alma: a caridade. Ela dá facilidade, confiança, alegria no trabalho pastoral.
A caridade realiza a unidade na vida do salesiano. Compõe as tensões que brotam entre ação e oração, entre vida comunitária e missão, entre educação e pastoral, entre profissionalismo e apostolado.
Todo o esforço da nossa vida espiritual consiste em reavivá-la, purificá-la, intensificá-la: “Ama et fac quod vis”.
A comunidade: lugar, sinal e escola da espiritualidade salesiana
1. Urgência de uma vida “fraterna”
O lugar da nossa experiência de consagrados e do nosso trabalho cotidiano de educadores é a comunidade: a religiosa, a educativa e a humana mais larga às quais dedicamos as nossas preocupações. Quando a comunidade funciona, tudo o mais caminha. Quando há “educados” para e na comunidade, o benefício se reflete na consagração e na missão.
A exortação apostólica “Vita Consecrata” dedica à fraternidade e à vida de comunidade a segunda das suas três partes e faz perceber o seu caráter indispensável. “A vida fraterna desempenha um papel fundamental no caminho espiritual das pessoas consagradas, tanto para a sua constante renovação como para o pleno cumprimento da sua missão no mundo: conclui-se isso das motivações teológicas que estão na sua base, e recebe larga confirmação da própria experiência. Exorto, por isso, os consagrados e consagradas a cultivá-la com ardor, seguindo o exemplo dos primeiros cristãos de Jerusalém, que eram assíduos na escuta do ensinamento dos Apóstolos, na oração comum, na participação da Eucaristia, na partilha dos bens materiais e espirituais (cf. At 2,42-47).87
Todas as formas de vida religiosa têm, portanto, na comunidade um elemento indispensável. Cada uma delas, porém, a realiza de forma própria e diversa. Diz-se que as diversas formas de comunidade se inspiram em três modelos evangélicos.
O primeiro modelo é Nazaré, a Sagrada Família: a acentuação é colocada nas relações recíprocas de amor, entendidos como baseados no sentido de Deus, como aqueles que intercorriam entre Maria, José e Jesus.
O segundo é a comunidade dos crentes, descrita nos Atos dos Apóstolos:88 acentuam-se a oração comum, o colocar tudo em comum, o testemunho dos valores apostólicos.
O terceiro modelo é a comunidade de Jesus com os apóstolos: sublinha o estar com Jesus pregador do Reino e o serviço com Ele ao povo.
A nossa vida comunitária inspira-se, sobretudo, no modelo vivido por Jesus com os apóstolos: é uma comunidade para o Reino, para o Evangelho, para o serviço ao povo.
A missão, com efeito, dá a toda a nossa vida o seu tom concreto e a sua orientação. As nossas comunidades estão em missão e existem para a missão, sem por isso minimizar qualquer outro aspecto da fraternidade. Se caísse o sentido da missão, em nosso caso, a mesma fraternidade perderia cor e força.
Por outro lado, a nossa missão não é algo com inserção individual, retornando às comunidades apenas para rezar e repousar, ou de vez em quando, mas partilha da vida: “viver e trabalhar juntos é para nós uma exigência da nossa vocação”.89
A missão salesiana é comunitária pela sua natureza. As Constituições o dizem com muita clareza, com a força de uma definição: “é confiada a uma comunidade”.90
Isso se dá porque a mesma metodologia do sistema preventivo requer um ambiente de família e, portanto, um tecido de relações. Nós não somos preceptores de indivíduos, nem educadores isolados: trabalhamos em e através de uma comunidade e procuramos criar ambientes juvenis amplos.
Igualmente, o conjunto dos conteúdos e das experiências reconhecidos pelo sistema preventivo como adequados ao desenvolvimento humano e de fé, exige uma sinergia convergente de intervenções que não podem ser realizadas por uma única pessoa.
Acrescentemos ainda que os jovens devem ser orientados para a maturidade nas relações e na vida social com tudo o que isso envolve e que o itinerário de fé que propomos tem por objetivo levar os jovens a uma experiência de Igreja e, portanto, de comunidade cristã vivida segundo as suas dimensões características.
Os capítulos precedentes formularam uma série de propostas interessantes que se referem à educação dos jovens à fé e à comunidade do espírito salesiano aos leigos. Supõem a realização de outras orientações igualmente interessantes: a formação da comunidade educativo-pastoral, a sua animação da parte do grupo de salesianos, um projeto educativo-pastoral que coloque no centro o crescimento dos jovens na fé.
Lendo atentamente estas orientações, descobre-se que a sua realização se apoia num fator que se supõe sólido e funcional: a comunidade salesiana.
A comunidade é convidada a ler os desafios que provêm dos jovens. À comunidade, pede-se que pense no itinerário a propor para que a sua fé amadureça. A comunidade deveria viver e comunicar uma espiritualidade sem a qual seriam inúteis os esforços para colocar os jovens em contato com o mistério de Jesus e as intenções de reunir os leigos.
A comunidade é omnipresente nas propostas mesmo se nem sempre é explicitamente o tema. Fala-se a ela, mais do que dela.
A qual comunidade o texto se refere? À comunidade local, à inspetorial, à mundial? Entendem-se os três níveis que atuam juntos e de maneira intercomunicantes como indicam os artigos 58 e 59 das Constituições.
Contudo, examinando com maior atenção as deliberações, vê-se que o ponto focal, aquele do qual se parte e ao qual se retorna, trata-se da comunidade local e inspetorial. À comunidade local, confiam-se as tarefas mais numerosas e mais determinantes. À inspetorial compete garantir as condições para que as comunidades locais funcionem, projetar a missão no território, animar, dando apoio e estímulo e criando um círculo de comunicação enriquecedora entre as comunidades locais.
A preocupação central não é a saúde ou a atualização do organismo total da Congregação, como quando se discutiu sobre a natureza da missão salesiana, sobre a vida religiosa ou as estruturas de governo. O que se focaliza hoje é a capacidade de reação, a vitalidade do que podemos chamar de células e órgãos deste grande corpo: as comunidades locais e, em função delas, as inspetoriais.
Não é difícil entender suas razões. São elas as comunidades que entram em contato com os jovens e com o povo. São elas que sentem na própria carne as dificuldades para ajuda-los a trilhar um itinerário de fé, e que devem pensar com quais iniciativas responder-lhes. Na comunidade local, portanto, podem-se experimentar as orientações operativas e avaliar a sua validade e praticabilidade em nossas condições atuais.
Há ainda outra razão. Só envolvendo as comunidades locais é possível empenhar todos ou ao menos o maior número dos irmãos no esforço de repensar uma pedagogia da fé e uma nova dinâmica comunitária. Sabe-se que nos níveis inspetoriais e mundiais apenas uns poucos irmãos estão empenhados, embora as suas iniciativas sejam de grande valor e incidência.
2. A comunidade fraterna hoje
Refletiu-se bastante nos últimos tempos sobre a comunidade consagrada em dois níveis:
A evolução interna, isto é, as novas exigências, condições de vida e possibilidades de expressão que se manifestam na comunidade como consequência da cultura em que se vive, da renovação eclesial e das sensibilidades atuais da pessoa;
A extensão da comunidade para o exterior: é uma nova dimensão muito sublinhada hoje depois do aprofundamento da Igreja como mistério de comunhão.
O primeiro aspecto é desenvolvido extensamente no documento A vida fraterna em comunidade, de 1994. Ao segundo dedica muito espaço a Exortação Apostólica Vita Consecrata.
Faremos nesta reflexão algumas considerações sobre o primeiro aspecto.
A visão e o exame da vida interna da comunidade religiosa de hoje não é simples. São muitos os aspectos que devem ser examinados e resolvidos com critérios de fé, mas também de maneira praticável: o serviço da autoridade, a corresponsabilidade e participação, as relações interpessoais, a relação vida-trabalho ou comunidade religiosa-festão da obra, o equilíbrio entre projeto comunitário e carisma pessoal, o âmbito da privacidade, a comunicação entre as gerações.
Não é fácil enfrentar todos eles numa única conversação porque exigem aprofundamentos diferenciados. Por outro lado, para geri-los com maturidade não bata um estudo teórico. Interagem na comunidade pessoas muito diferentes. Às vezes, portanto, o “grupo” deve encontrar o próprio equilíbrio num processo de reflexão comum mais do que em conselhos generalizados, úteis aos indivíduos. Exigem-se atitudes generosas e esforços pacientes pelo que quem tem, sabe ou pode mais, supre, às vezes, limites inevitáveis de outros; é o esforço do amor que se adequa, acompanha, é paciente, oferece possibilidades, espera o momento pessoal favorável, orienta. Os conhecimentos humanos e as abordagens religiosas são úteis, mas nem todos podem ser soluções de aplicação geral. A profissão de amor fraterno está na base de tudo.
Algumas mudanças modificaram certamente a vida da comunidade e o farão no futuro.
Em primeiro lugar a composição: diminui o número de irmãos ou irmãs para as comunidades e, em alguns casos, vive-se no limite. Além do número pequeno, os irmãos pertencem, em geral, a gerações diversas; antes, às vezes, é preponderante a presença de pessoas mais idosas. Isto, obviamente, não é um mal, sobretudo se é vivido de modo positivo, como possibilidade de maior responsabilidade para o indivíduo no que se refere ao número reduzido; e como testemunho de afeto e solidariedade entre as gerações numa vida vivida segundo o carisma, no caso da presença preponderante dos idosos. Contudo, esta composição exige certamente nova capacidade de relações e atitudes particulares.
Uma segunda mudança refere-se à relação entre comunidade e obra apostólica. Já não se tem mais a responsabilidade exclusiva da obra e não há mais o envolvimento de todos os componentes da comunidade religiosa na obra; com sempre maior frequência existem alguns ou mitos envolvidos e outros que já estão em repouso. Sente-se a desproporção entre pessoal religioso e dimensão da obra. Esta fora construída quando se dispunha de muitos irmãos. Há, consequentemente, abundante intercâmbio entre religiosos ainda ativos e leigos que revestem responsabilidades nas obras e, em muitos casos, sobrecarregados de funções que afastam os irmãos da comunidade.
Uma terceira mudança é a maior inserção da comunidade na dinâmica de Igreja e uma maior abertura ao contexto. A vida consagrada é vista não como um “retirar-se”, mas como um inserir-se com uma contribuição e para uma missão. Consequentemente, há um multiplicar-se de relações e intercâmbios com o exterior. O tempo para a comunidade é menor e ela é menos recolhida e protegida, mais atravessada pela complexidade da vida e pelos estímulos do ambiente.
A mudança mais importante que aconteceu refere-se, porém, à passagem da insistência sobre a vida em comum, àquela sobre a vidra fraterna em comunidade.
Acredito que as duas expressões, vida comum e vida fraterna em comunidade, deem imediatamente a ideia do que se trata e se distinga, portanto, o valor diverso. Vida em comum significa fazer as mesmas coisas ao mesmo tempo (reunir-se, rezar, comer, trabalhar etc.). Para a vida comum era importante o “todos juntos”: na mesma hora e no mesmo lugar. Vida fraterna em comunidade significa acolhida do indivíduo na sua originalidade legítima, qualidade das relações interpessoais, participação ativa de todos na vida do grupo. Hoje damos maior importância às pessoas, à fraternidade das relações, à ajuda e apoio recíprocos, à convergência das intenções. Isso corresponde ao clima cultural e à nova consciência das pessoas, que exige reconhecimento, valorização e papel ativo.
O documento A vida fraterna em comunidade acena à evolução que se deu no primeiro momento da renovação conciliar: muito na marca da espontaneidade e improvisação.
Depois de descrever esta evolução, afirma que é preciso encontrar um equilíbrio; não uma pura comunhão de espíritos a fim de se avaliar as manifestações da vida comum; não tanta insistência legal sobre a vida comum a ponto de colocar em segundo lugar os aspectos mais substanciais da fraternidade em Cristo: “Amai-vos uns aos outros. Nisto conhecerão que sois meus discípulos”.91
As duas coisas, portanto, devem ser equilibradas, ordenadas: as instrumentais às principais. “É evidente que a ‘vida fraterna’ não será automaticamente realizada pela observância das normas que regulam a vida comum; mas é evidente que a vida comum tem a finalidade de favorecer intensamente a vida fraterna”.92
As nossas Constituições ajudam a compreender e realizar este equilíbrio. Dizem-nos que temos momentos em comum; estes, porém, tendem a criar entre nós uma relação madura, aberta à comunicação, colaboração, partilha e participação, à acolhida das pessoas tais e quais são.
O bom ordenamento e equilíbrio dos dois elementos realiza o desejo e a exigência de formar comunidades novas na medida das condições e aspirações da pessoa, segundo o que escrevem as FMA em seu último Capítulo Geral: “Comunidades novas, diz, sejam elas pequenas, médias ou grandes, que devem animar obras tradicionais ou inseridas de forma mais viva entre o povo, mas em todo caso sempre capazes de ajudar as pessoas a crescerem humana e religiosamente, a exprimir com maior transparência aquilo no que creem e comunicam, muito mais expressivas também dos valores religiosos e adequadas a suscitar o desejo de a elas pertencerem, isto é, comunidades com capacidade vocacional”.
Como dissemos, isso brota de uma visão de fé. Estamos convencidos de que os irmãos reunidos em nome do Senhor gozam da sua presença: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei entre eles”.93 Estamos também convencidos de que viver como irmãos no nome do Senhor é o segredo da eficácia na evangelização.
Além da visão de fé, que deve ser sempre aprofundada, a vontade de formar uma verdadeira família entre adultos precisa de uma nova forma de conceber e realizar as relações pessoais: encontrar as bases nas quais organizá-las, as formas de renová-las ante de se desgastarem definitivamente, de torna-las satisfatórias para os indivíduos.
Creio que dois temas sejam urgentes na vida fraterna: o das relações e o da comunicação. São como grandes dinâmicas de comunidade que recolhem ao redor de si e tornam possíveis outras às quais damos grande importância com a corresponsabilidade, o planejamento, o discernimento e semelhantes.
Relações interpessoais
As relações interpessoais constituem uma das provas ou parâmetros da maturidade da pessoa; talvez, até mesmo o principal indicador no qual se refletem as qualidades e limites das pessoas. Por isso, damos hoje uma atenção especial a eles na formação; e não só do ponto de vista formal, mas olhando para o aspecto substancial e interior. Deles dependem em grande parte, para uma pessoa, a possibilidade de vida serena com os irmãos e de uma fecunda ação pastoral.
O Decreto Optatam Totius, ao falar dos candidatos ao sacerdócio, diz que se deve exigir neles uma certa maturidade humana.94 E enuncia os traços ou sinais:
A estabilidade de espírito, que coloca ao seguro dos altos e baixos ou variações imprevistas e imotivadas no humor, nas orientações, nas convicções e projetos de vida, nos critérios de avaliação. Experiências de pessoas instáveis todos nós temos, particularmente entre adolescentes. E que abundem entre os adolescentes, diz alguma coisa.
A capacidade de avaliar com ponderação acontecimentos e pessoas; a maturidade do julgamento que sabe levar em consideração todos os aspectos de uma questão segundo a sua importância, se premune contra o influxo excessivo da própria subjetividade e evita ser precipitado; sobretudo, coloca-se na perspectiva do bem das pessoas, do amor e do Reino.
As relações: a capacidade de estabelecer relações profundas e oblativas; capazes de serem duradouras, de valorização das pessoas, isto é, de generosidade desinteressada e aberta ao bem do outro, fundada em motivações não egoístas. Sobre elas há algumas especificações a sublinhar.
Fala-se de relações duradouras e fiéis, capazes de superar também as provas. Estas, nas relações, sempre existem. Vivem-na os casais. Nós, como pastores e conselheiros, devemo adverti-lo muitas vezes que, de pois de um tempo feliz apresentam-se também as dificuldades, que é preciso aprender a superar o cansaço, a rotina, que é preciso reavivar as relações e renová-las porque se desgastam e se esgotam. As provas acontecem entre os amigos. Vimos muitas vezes rapazes e moças que foram amicíssimos por centro tempo, tornarem-se reciprocamente antipáticos e antagonistas. É preciso aprender a viver dispostos a superá-las. Como no amor, a primeira ligação pode ser de simpatia espontânea. A fidelidade, porém, é virtude.
Insiste-se, porém, que sejam interiores e profundas, não só funcionais ao trabalho, mas capazes de amadurecer em amizades. Não temos amizade com todos. Mesmo no interior da fraternidade religiosa a afinidade de pontos de vista, e, mais em geral, aquela dimensão incompreensível da afetividade que é a legítima simpatia, levam a diversos graus de amizade. Esta situação, isto é, que sejamos irmãos de todos e “amigos” de quem nos é possível, é aceita sem escândalo, como algo que serve à pessoa e à comunidade. Um artigo das Constituições95 dos SDB diz que a fraternidade deve ser capaz de dar lugar à amizade aberta a todos, que se exprime depois em vários graus e medidas conforme os temperamentos, antecedentes, afinidades, circunstâncias de colaboração ou trabalho comum, experiências espirituais compartilhadas.
É uma avaliação corrente entre os observadores de grupos e comunidades que a maior parte das dificuldades internas que parecem de trabalho ou de ideias, no fundo são problemas de relações interpessoais que têm como campo de desencontro o trabalho ou as ideias. Trata-se de personalidades que tendem a se impor, a centrar tudo sobre si mesmas; por outro lado, há quem se sente nada ou pouco reconhecido ou valorizado. Isso, porém, nem sempre é percebido pelos interessados. Com uma só palavra se diz “relações mal colocadas” entre os indivíduos e entre o indivíduo e o grupo.
Por exemplo, há, às vezes, expectativas cultivadas e depois frustradas; pode tê-las quem chega à comunidade com algumas previsões e promessas e, depois, constata com amargura que a comunidade não responde a tais expectativas; talvez, porque eram excessivas da parte de quem nela se inseriu.
Há, também as expectativas da comunidade, ou nela de pessoas particulares em relação a quem chega; e também neste caso as coisas depois nem sempre caminham como se esperaria. O diretor pensa que quem chega poderia servir-lhe para algum objetivo especial ou também de apoio na animação da comunidade; contudo, pode acontecer que aquele que chegou não consegue colocar-se bem naquilo pelo que era esperado.
Não se deve esquecer, ainda, a força da primeira impressão, que pode criar dificuldade se não é relativizada, redimensionada e superada. Há na comunidade, por vezes, bloqueios já formados que não facilitam o ingresso de um novo membro. Quem nela entra deve adequar-se e talvez enquadrar-se necessariamente numa determinada mentalidade, numa certa forma de agir e num certo estilo de relações. Nestes grupos há a tendência de defender-se e de condicionar. Isso se torna tanto mais pesado quando mais autorizados pela idade, ciência e papel apresentados por aqueles que formam o grupo. Isso se nota, depois, no diálogo, na vida cotidiana e até mesmo nas assembleias ou reuniões comunitárias.
Pode haver, também, da parte de quem sofre o condicionamento, a intensão de não se abrir: “Eu permaneço em mim, não me exponho!”. Isso tudo nem sempre comporta culpabilidade subjetiva”. Antes, quem assume determinadas atitudes o faz por motivo de “consciência”. É principalmente o universo humano, pessoal que lhe escapa; isto é, não percebe o que signifique objetivamente tal atitude para si, para o outro e para o grupo.
Relações mal ordenadas, dizia. Acrescento: não resolvidas positivamente na ocasião de conflitos. Por exemplo, quando por algum motivo a pessoa crê ter sofrido falta de atenção ou não se sentiu ouvida e compreendida, o quem lhe falou não foi claro sobre as coisas sobre as quais ela esperava clareza ou não a apoiou, ou não deu espaço suficiente de tempo para o amadurecimento da sua decisão.
São todas causas de situações conflituosas, declaradas ou caladas, resolvidas ou removidas. Podem acontecer a todos, também aos mais capazes de provoca-las ou mais dispostos a evita-las. Em todo caso, contudo, a relação deve ser reconstruída caso se queira uma saída de acordo com a Palavra do Senhor.
Eu o experimentou muitas vezes como Vigário do Reitor-Mor. Precisando tratar de situações muito difíceis, diante de uma pessoa fechada nas próprias posições e motivações, realmente armar-me de muita calma e dar-lhe a possibilidade de expor, divagar, retomar o discurso; é preciso tempo para conseguir dizer a alguém a verdade de certas coisas, mas mais ainda para esclarecê-las a si mesmos e para separar de si mesmos as argumentações construídas apenas para defender-se. Deve-se, então, estimular com calma, atitudes críticas; reenviar o discurso a um momento sucessivo.
Os conflitos não bem resolvidos ou não sanados oportunamente, aos quais não se seguiu a reconciliação, agem no interior da pessoa bloqueando o processo de amadurecimento ou criando dificuldade para a própria entrega serena e alegre à missão e a Deus. A tristeza e o mal-estar são danosos em todos os sentidos.
As amarguras interiores estragam; por isso, um grande ministério de caridade é ajudar a dissolvê-las, esclarecer as suas raízes, assumi-las como limites pessoais e enfrenta-las com calma, sem permanecer fixados nelas. Quantos irmãos e irmãs encontramos fixados num conflito havido e não resolvido. A reconciliação é realmente sinal de sabedoria e fonte de paz.
Por outro lado, ninguém pode esperar (isto vale para todos!) apenas receber na comunidade, como se esta fosse bela e completa, antes ou independentemente dele, e lhe fosse ofertada como um ninho quente já pronto. A comunidade é o resultado, além da graça de Deus dos esforços de todos para criar um clima e um tecido de relações. Quem se retira ou permanece fora fica privado dos bens que nela circulam.
Provavelmente, cada um obtém da comunidade uma resposta conforme os “sinais” que deu. Se dá, recebe; se se demonstra desejoso de ajuda, é sustentado; se faz os movimentos para inserir-se, é envolvido. E o contrário!
A linha, portanto, é educar os indivíduos continuamente e por diversos caminhos para as relações, mesmo com uma palavra, um apoio, um encorajamento.
Ao mesmo tempo, é preciso suprir as carências apresentadas por alguns, com uma maior capacidade de entrega da nossa parte, de ir ao encontro, de reabrir os jogos com quem não se demonstra disponível. Há nas comunidades, com frequência, limites de comunicação, timidez, excessivo respeito que freiam a familiaridade. Abençoados os irmãos ou irmãs que diante deste limite estão dispostos a pôr do seu lado, um pouco mais de conversação, de alegria, de proximidade para que não se reduza o nível da vida de comunidade, no que se refere ao afeto recíproco e o ambiente familiar.
É necessário, também, animar as relações. É um aspecto da “Caridade” do diretor e do inspetor com que eles constroem a união da comunidade. Também aqueles que têm dificuldades conseguem superar-se e crescem, são-lhes oferecidas oportunidades e facilitações para exprimir-se sem ansiedade da parte deles e sem condenações dos demais.
Os Atos do CG24 dos Salesianos (1996) falam de uma espiritualidade relacional;96 spiritualidade, ou seja, uma caridade que presta atenção, se preocupa, se torna capaz e disponível em criar, curar, restabelecer e multiplicar as relações. Esta caridade é “pastoral” quando é exercida no ministério de reger e orientar uma comunidade eclesial.
A Comunicação
Relacionada com a questão das relações, há a da comunicação: a disposição e a capacidade de comunicar e comunicar-se. Não nos referimos àquela expressiva, profissional ou teatral dos astros de TV, mas àquela mais cotidiana para a qual oferecemos com facilidade a nossa experiência e recebemos a dos que vivem conosco.
Valorizá-la na justa medida, conhecer as suas leis e os seus obstáculos sem cair em tecnicismos é importante para todos, mas de modo especial uma plataforma adequada para aqueles que devem cria-las. Esta exige:
Traçar as direções segundo as quais a comunicação que conta deve fluir; não só a vertical de quem tem autoridade sobre outros e destes para ela, mas circular e multidirecional, isto é, entre todos;
Garantir uma generosa distribuição de “papéis” ativos na comunidade; que não sejam apenas alguns a elaborar a comunicação e os demais apenas “destinatários” mesmo complacentes;
Levar para um nível satisfatório de comunicação: sobre o que comunicamos? Até que ponto envolvemos a nossa pessoa na comunicação?
Referem-se à comunicação o diálogo leve, o confronto livre e sereno em momentos estabelecidos, a comunicação espontânea de sentimentos, ideias, projetos e preferências, a coordenação fluida das corresponsabilidades, as revisões em comum, o colóquio pessoal buscado, o diálogo espiritual.
Adverte-se logo que os níveis da comunicação são diversos.
Há um nível que é de valor negativo, isto é, abaixo de zero: é a ausência, a ausência de comunicação que pode chegar a ser agressividade silenciosa, consiste em ignorar a existência do outro, embora vivendo sob o mesmo teto e comendo à mesma mesa: “Para mim, é como se não existisses!”. Ouvimos algumas vezes de um irmão irritado ou ressentido por dizer que não discutirá, não tentará mais aproximar-se ou reconciliar-se; haverá de se comportar com o irmão como se vivessem em dois mundos diversos. Muitas vezes, porém, sem declaração prévia, negar a palavra, fugir, limitar-se a responder. Há também uma ausência de comunicação menos dramática, aceita, benévola. Pensai em muitas situações familiares atuais, nas quais se vive um ao lado do outro, não há agressões, não se interfere nas ideias, nos gostos e projetos, mas não se tem nem sequer a intenção de pôr em comum o que vai no coração. A ausência de comunicação, o sabeis, é dos defeitos da era da comunicação de massa. Até mesmo os comunicadores de massa sofrem da ausência de comunicação pessoal. Algum suicídio, alguma “queda” de personagens famosos está a demonstrá-lo
Há, depois, um nível de positividade mínima, acima de zero: é a comunicação superficial. Fala-se de coisas banais, indiferentes ou distantes, apenas para não estar calado; é sempre melhor do que o silêncio e da falta de comunicação, porque, ao menos, se deseja estar juntos, em paz, não ser “deseducado”, tornar a companhia alegre: fala-se do tempo, dos acontecimentos difundidos pela TV, de personagens, de esporte. É uma plataforma aceitável a uma boa proximidade, ao menos um primeiro passo. Contudo, de todas essas coisas conversamos também com um “estranho” que se senta ao nosso lado no trem ou no avião.
Pode haver entre nós, e podemos não ir além disso, uma comunicação funcional ao trabalho: como o fazemos, como convém melhorá-lo, redistribuir os tempos, os papéis, as tarefas. É sinal de corresponsabilidade e, em geral reveste uma forma adequada. Contudo, há o perigo de ficar ali em nossa relação com os irmãos e jovens. Uma das correções mais recorrentes sugeridas às comunidades é que não considerem a si mesmas nem se deixem ver a partir de fora apenas com “equipes de trabalho”.
No nível mais elevado, coloca-se a comunicação pessoal, em que compartilhamos a experiência da nossa vocação. Trocamos avaliações, exigências, intuições que se referem à nossa vida em Cristo e à nossa forma de compreender o carisma. Trata-se daquilo que se chama muitas vezes de revisão de vida, exame da nossa comunidade, intercâmbio de oração, discernimento sobre projetos e acontecimentos.
O tempo atual tornou mais necessária a comunicação nas comunidades religiosas e modificou os seus critérios e modalidades. A complexidade da vida exige que nos confrontemos sobre tendências, critérios e acontecimentos de família e sobre fatos exteriores a ela; ou nós conseguimos compreendê-los e interpretá-los, ou ficaremos sempre mais fora da vida e do movimento do mundo.
Por isso, é preciso criar o hábito de determinar e elaborar critérios comuns de avaliação. Isso requer, com frequência, um itinerário que comporta explorações e provas. Devemos estar dispostos a nos exprimirmos com simplicidade, a mostrar-nos sempre prontos a modificar juízos e posições, mesmo que seja para as finalidades da convergência fraterna e operativa: mediar sempre é útil à comunidade, quando os valores essenciais não são comprometidos.
A comunicação é necessária também devido ao pluralismo positivo de visões e dons que há na comunidade: há riquezas de inteligência, de espírito, de fantasia, de competências práticas a comunicar. Há, também, os muitos temas sobre os quais comunicar com proveito na vida consagrada: projeto apostólico, experiência espiritual, desafios da missão, orientações da Congregação, tendências da Igreja.
A comunicação exige aprendizagem, prática e também animação. Dizemos aprendizagem espiritual mais ainda do que técnica. Quando se comunica em certos níveis ficamos expostos. A minha experiência me diz que nem todos têm a coragem de expor-se. Pensam: “Talvez, se eu falar bem, se as minhas ideias forem acertadas, se fizer uma péssima figura, se me catalogarão definitivamente”. É preciso aprendizagem também para receber comunicação, sem julgar a pessoa, sem coloca-la numa posição definitiva em relação ao que expressou.
Há, ainda, certo pudor a superar, pelo qual não queremos falar de nós mesmos; há, também a confiança no outro a ser consolidada, que me garante que ele acolherá com maturidade e positivamente aquilo que eu digo.
Além da aprendizagem, é preciso prática. A capacidade de comunicação, quando descuidada, enferruja. Perde-se o gosto e o treino. A prática leva à compreensão das diversas linguagens adequadas às situações, que vão do silêncio e gestos à palavra escrita. E tudo inspirado na caridade e não no cálculo técnico. Recordai Dom Bosco com o seu colocar a mão sobre a cabeça, sorrir, olhar, dizer uma palavra ao ouvido, dar um boa-noite, manter um diálogo como aquele com Domingos Sávio, pedir pareceres, discutir. Até o rosto se modifica. “A certa idade, somos responsáveis por isso”, dizia um humorista. “Aprende a sorrir”, aconselhavam alguns dos nossos diretores. É o esforço típico do sistema preventivo, tornar expressivo o afeto, libertá-la de uma atitude genérica ou fechada numa fria interioridade.
É preciso, portanto, aprendizagem e prática da parte de cada um, mas é preciso também animação da parte de quem dirige para criar o clima apropriado a uma comunicação serena e desenvolta. Dar oportunidade de comunicar; ter um estilo de direção pelo qual é fácil exprimir opiniões, solicitar e provocar essas opiniões, gozar da multiplicidade de contribuições, fazer entender que a pessoa não será julgada por aquilo que diz num momento de confronto. Que não haja o receio de que se manifesta uma ideia ou se exprime um parecer não agradável sobre o trabalho ou a comunidade, ou a Congregação; isso, depois seja recordado, enquanto com frequência é simplesmente uma passagem no diálogo, uma impressão que se quer examinar.
Eu mesmo, muitas vezes, procuro esclarecê-lo expressamente: “Aquilo que estou a dizer – sublinho – é um pensamento provisório que estou procurando elaborar; se tiverdes outras perspectivas, dizei-o: dessa forma, amadurecemos juntos”.
É necessário, portanto, um estilo de direção, que é também um alargamento da tolerância, da receptividade. Devemos habituar-nos a ouvir ideias e perspectivas inesperadas e insólitas.
Algumas comunidades podem ser freadas em sua comunicação espontânea pelos superiores, mas também por irmãos vulneráveis com muita autoridade no lugar, que aceitam apenas a própria formação e a própria mentalidade; que só aceitam informações primárias, isto é, aquelas se referem à saúde e ao trabalho, à aquisição de coisas etc. e não as profundas que se referem à vida. Pensam que só devemos falar de coisas importantes ou espirituais como as práticas de piedade e o apostolado como se o religioso esgotasse os seus sentimentos e possibilidades nestes níveis oficiais.
São superiores ou muito administradores ou muito espiritualistas, enquanto a comunicação hoje é mais diversificada e multíplice. Aceitá-la significa aceitar a pessoa como é segundo a sua história, o seu estado atual, as suas competências e a colocação que tem na comunidade e no trabalho.
3. Relações e comunicação para crescer
Relações e comunicação ajudam não só a se sentir bem, mas também a crescer; enriquecem do ponto de vista cultural, psicológico e social, e também espiritual.
Há um crescimento cultural, porque escutando os outros recebemos informações, visões, dados e leituras de realidades variadas. Basta pensardes o quanto são buscados e o quando nos servem as relações e a comunicação com pessoas competentes. Elas também existem entre os irmãos e as irmãs que vivem em nossas comunidades, antes provavelmente cada um tem uma determinada competência a oferecer-nos.
Há um crescimento psicológico, porque se desenvolvem a afetividade, a capacidade de acolhida de outras pessoas e mentalidades; torna-se mais capazes de doação, de superar frustrações e bloqueios internos, fixações sobre nós mesmos ou o nosso sucesso.
Há um crescimento social, porque se reforça a capacidade de inserção em grupos de trabalho, em equipes de participação e em ambientes variados, com liberdade e naturalidade; domina-se a ansiedade social, aquele primeiro sentimento de estranheza e insatisfação que nos assalta quando nos encontramos num contexto ou grupo desconhecido e pouco familiar.
Enfim e no vértice, dá-se o crescimento espiritual, ou total, porque as atitudes e os hábitos enunciados acima se inserem num esforço de resposta ao Senhor de acordo com o carisma e numa qualificação para a realização da missão.
Tudo isso é requerido e praticado também na comunidade educativa. Há ali um segundo amplo campo de exercício da caridade pastoral no que se refere às relações e à comunicação, com consequências determinantes na educação e na evangelização. Não nos detemos a desenvolvê-la apenas porque exigiria um tratado inteiro.
Formação permanente
Tomemos, porém, um aspecto da comunidade religiosa que se alterou muito justamente pela importância que é reconhecida nas relações e na comunicação: a formação permanente.
As primeiras experiências de formação permanente, realizadas distante da própria comunidade, produziam alguns benefícios, como o repensamento, uma nova síntese, uma atualização doutrinal, um novo entusiasmo vocacional; contudo, quando se imergia novamente na comunidade e no cotidiano, aquela visão renovada da vida e do trabalho percebida em condições extraordinárias de tempo e ambiente, dificilmente era traduzida em prática. Os ritmos costumeiros prevaleciam e o contexto humano “ordinário” e comum diluía as experiências exemplares de oração, intercâmbio, estudo. O curso de formação permanente permanecia, então, separado da vida.
Pensou-se, então, em aperfeiçoar o conceito e a iniciativa. Foram introduzidas quatro variações no conceito de formação permanente. Referem-se ao lugar, ao tempo, à matéria e à metodologia.
O lugar preferencial da formação permanente é a comunidade local. O lugar extraordinário é aquele onde se fazem os cursos longos. O mais real é o primeiro, porque é ali que se aprende a administrar a vida e a reagir como religiosos salesiano diante do cotidiano.
O tempo mais adequado e continuado para a formação permanente não aquele separado e livre, mas aquele marcado pela alternância de trabalho, estudo, confronto, encontro com pessoas. O tempo separado é útil como retomada e apoio.
A matéria ou conteúdo: é verdade que a exposição sistemática sobre a Igreja, Jesus Cristo, a comunidade serve porque motiva, ilumina e reorienta. Entretanto, tudo isso é encontrado depois distribuído e fragmentado, e quase diluído, no cotidiano. A comunidade, em que se deve conseguir ler em termos reais o tratado explicado, são aqueles quatro ou cinco irmãos ou irmãs com quem se vive ombro a ombro, que têm as próprias ideias, são marcados pelo próprio passado, têm limitações, embora também muita riqueza que se deve saber descobrir e acolher. Pode-se dizer o mesmo da eclesiologia ouvida, da pastoral juvenil explicada, do sistema preventivo aprofundado: são quadros de referência úteis porque iluminadores. Entretanto, eles são depois levados ao particular concreto de uma comunidade eclesial e às suas condições, ao campo de trabalho pastoral e aos jovens que nele encontram, ao ambiente salesiano no qual o sistema preventivo ouvido deveria ser aplicado. Este modo concreto de aplicar visões, quadros de referência ou tratados de casos particulares é a matéria própria da formação permanente que acontece na comunidade local. Nela, nós a submetemos à reflexão e ao exame, para ver qual é a nossa resposta atual às exigências da vocação e do trabalho. Diria que a formação permanente reproduz mais o modelo do tirocínio bem feito do que o do estudantado.
Por último, mas relacionado ao que foi dito anteriormente, deve-se acenar ao meio ou caminho mais eficaz para a formação continuada: não são as aulas a escutar, mas a comunicação fraterna: escutar-se com calma, detectar e sintetizar com cuidado, elaborar avaliações e critérios, assumir orientações pensadas. Isto, naturalmente, deve ser apoiado e relançado com os assim chamados “tempos fortes”.
Relações e comunicação realizam, portanto, processos de formação e crescimento. No momento, nem todos o entendem. Não se culpa ninguém porque na praxe formativa anterior a comunicação não tinha nem peso, nem as possibilidades atuais. Enquanto não culpamos ninguém, devemos saber criar e multiplicar oportunidades de comunicação, examinar a questão das relações, viver conscientes da plataforma exigida e cuidar dela como uma prática da caridade pastoral para com os irmãos e a comunidade.
A espiritualidade salesiana no cotidiano
A espiritualidade salesiana foi sintetizada em algumas fórmulas breves como aquelas usadas por Dom Bosco para os meninos. Trata-se de costume familiar: simplificar, unir, ajudar a lembrar. A síntese mística é sintetizada no lema: Da mihi animas. A síntese pedagógica da nossa espiritualidade é: razão, religião, bondade. Refere-se não só à relação com os jovens, mas a forma de construir-se do educador apóstolo. A fórmula devocional é Jesus Sacramentado, Maria Auxiliadora e o Papa.
Qual é o programa prático a viver todos os dias e no longo prazo? Trabalho, oração, temperança.
As três palavras, populares, quase proletárias, correspondem às três dimensões indicadas por Vita Consecrata como indispensáveis para qualquer espiritualidade: a contemplativa, a apostólica, a ascética.
Examinemo-la uma a uma.
1. Contemplativos na ação
Segundo Vita Consecrata, da contemplação precisam todos e sempre: os teólogos, para poder valorizar plenamente a alma sapiencial e espiritual da sua ciência; aqueles que se entregam à oração, para que não se esqueçam de que ver Deus significa descer da montanha com um rosto tão radiante que obriga a cobri-lo com um véu; aqueles que se empenham, para não se fecharem numa luta sem amor e sem perdão.97
Isso significa que a contemplação não coincide com o estudo das coisas sagradas, embora se tirem vantagens dela. Significa que inclui a oração, mas vai além: a contemplação, aquilo que tradicionalmente se chamava “união com Deus”, sentido e alegria da sua presença, relação filial com ele.
Em relação a ela, entreveem-se muitas questões a aprofundar: o que significa contemplação, as diversas formas de contemplação, os lugares adequados e a serem preferidos segundo as diversas experiências espirituais. Tive a oportunidade de confrontar estes conceitos com “contemplativos” a respeito da nossa espiritualidade da ação. Percebo que não são supérfluas algumas explicações para tomar consciência do que seja a nossa forma e orientar para uma prática convincente.
Dois lugares devem ser cuidados como se fossem uma unidade, como se fossem comunicados, para tornar verdadeira a definição de contemplativos na ação: a oração e a ação.
A oração
Uma das questões mais sérias que se fazem quando se propõe uma espiritualidade refere-se à oração. Hoje, um conjunto de fenômenos fazem-na surgir não só como expressão da fé cristã, mas também como satisfação de uma necessidade do homem. Não são poucos aqueles, de fés diversas, e também sem qualquer fé, que buscam certa forma de oração nas técnicas orientais ou de formas novas de religiosidade.
Difundiram-se na Igreja escolas de oração, orientadas por bispos e sacerdotes. Faz-se uma reunião semanal ou mensal nos tempos de quaresma e advento para ler a Escritura, recitar os salmos, rezara em silêncio. O movimento de renovação no Espírito fez da oração o seu ponto distintivo; o de Taizé convida os jovens à experiência da contemplação.
Em todos os lugares são oferecidas jornas de “mosteiro”. O mosteiro é considerado como um lugar social de reflexão e manifestação artísticas ligadas ao espiritual. Foram muito seguidas pela TV as “reuniões de oração” inter-religiosas (cristãos, judeus, muçulmanos) pelas grandes causas como a paz. Em quase todas as celebrações ligadas a acontecimentos religiosos inclui-se uma vigília de oração. Enfim, parece que o mundo ou a pessoa sinta uma necessidade urgente de pôr-se em contato com outras realidades que não sejam o computador, as máquinas, a bolsa de valores, balanços, produção, contas e semelhantes.
A mesma tendência, ao mesmo tempo significativa e ambígua, aparece também na religiosidade juvenil. Há grupos de jovens que buscam profundidade de oração e mestres que os guiem. Multiplicam-se para eles os lugares de oração: oásis, casas de retiro, acampamentos...
Certo número faz uma degustação disso, uma experiência fugaz que não aprofunda raízes. Talvez busquem satisfação pessoal; querem experimentar o “diverso”, o insólito. Mas jamais falta certo desejo de “sentido” ou um elemento estabilizador e tranquilizador para a própria vida.
Os salesianos e a oração
A nossa pastoral juvenil também se preocupou em dar respostas à demanda dos jovens. Para eles foram propostos itinerários atualizados de oração. Renasce atualmente uma produção abundante de livros de meditação e oração para todas as circunstâncias (festas, acampamentos, encontros, esportes, momentos alegres e também momentos de sofrimento). De modo especial, os movimentos eclesiais repassaram o próprio estilo de oração com relativos textos e coleções de cantos, tudo sob a marca da “personalização”, da qualidade bíblica, da participação.
Estes fatos nos questionam, primeiramente, como religiosos. Na mentalidade popular o religioso é alguém que pratica e aprecia a oração, que sabe rezar e reza.
Somos mais ainda questionados como educadores-evangelizadores. Cabe-nos iniciar os jovens naquela atitude cristianíssima que se chama piedade. Se não se quiser reduzir o Evangelho a uma teoria religiosa, a uma explicação intelectual sobre Deus, devem-se enraizar atitudes de afeto pelo Pai com suas relativas expressões.
Os salesianos em geral acolheram favoravelmente os estímulos que vinham do ambiente e da Igreja; muitas coisas melhoraram na oração da comunidade. E há exemplos admiráveis de orantes; penso nos doentes, nos anciãos.
Por outro lado, tornam-se difíceis para aqueles que estão no vivo das responsabilidades a atitude e a prática da oração regular e empenhada. O seu tipo de vida não leva, de fato, à oração nem é pensado em função dela. Parece orientado mais para atividades seculares, escolas, ambientes juvenis, relações sociais, organização. Tudo isso os expõem a imprevistos, ao acúmulo de trabalhos que não favorecem a calma e a regularidade.
Este tipo de vida reproduz o de Dom Bosco: a sua atividade multiforme e contínua parecia subtraí-lo à oração explícita abundante que se encontra em todas as biografias dos santos: “Em tema de oração propriamente dita – dizia o Promotor da fé no processo de beatificação – à qual todos os fundadores das novas congregações têm atribuído a máxima importância, se pode dizer que nada encontro. Como se pode declarar heroico alguém que foi tão carente na prática da oração vocal? Nunca na história dos processos apostólicos, havia acontecido fato semelhante”. 98
Acrescente-se a isso a dificuldade intrínseca da oração, que não consiste apenas em concentrar-se, em entra em si mesmo ou em falar a um interlocutor invisível que não responde, mas também no fato de a oração ser o espelho da fé vivida e da atenção que Deus recebe na nossa vida. “A oração é a síntese do nosso relacionamento com Deus. Podemos dizer que somos o que rezamos e como rezamos. O nível da nossa fé é o nível da nossa oração; a força da nossa esperança é a força da nossa oração; o ardo da nossa caridade é o ardor da nossa oração”.99
Desde o nosso modo de falar, percebe-se logo o grau de confidência que temos com alguém. Com um amigo, falamos de qualquer coisa e com facilidade. Diante de um estranho, não nos vêm nem argumentos nem palavras. O mesmo acontece quando nos colocamos diante de Deus.
Parece a alguns que entre os salesianos não haja uma iniciação à oração, que ninguém os tenha introduzido ou guiado à sua prática. Por isso, nota-se entre eles uma fuga para grupos e movimentos que a oferecem de maneira mais emotiva e participada.
É legítimo perguntar-se, então, como é a oração do salesiano, homem dado à atividade educativa e pastoral.
Ele tem dois modelos para entender como deve ser a sua oração; Jesus Pastor e pregado do Reino e Dom Bosco.
A oração de Jesus
São Lucas fala-nos abundantemente da oração de Jesus e dos seus ensinamentos sobre ela. Contudo, ainda antes de apresentar-nos Jesus em atitude de oração envolve toda a narração do evento num clima de invocação, louvor, agradecimentos e pedido. O seu nascimento e infância são como que enquadrados por quatro cânticos de alegria, esperança e louvor: os cânticos de Izabel, de Maria, dos Anjos e de Simeão. A morte sugere a Cristo a oração: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.100
“Nas tuas mãos entrego o meu espírito”.101
É uma indicação de como contemplar e viver os eventos de salvação. Aqueles que rezam conseguem ver o peso dos acontecimentos que os demais não vão além da normalidade ou têm significado negativo.
Os momentos principais da missão de Jesus são marcados explicitamente pela oração.
Na oração, durante o batismo, Ele recebe publicamente a investidura pública e o beneplácito do Pai: “Enquanto Jesus, tendo também Ele recebido o batismo, estava em oração, o céu abriu-se e desceu sobre Ele o Espírito Santo com aparência corpórea, como de pomba, e houve uma voz vinda do céu: Tu és o meu filho...”.102
Um longo período de oração acompanhado do jejum no deserto lhe dá o sentido da sua obra e a força para resistir às tentações de orientá-la de forma diversa da desejada pelo Pai.103
Antes da escolha dos discípulos, Jesus coloca nas mãos do Pai a decisão e aqueles que escolhera: “Naqueles dias Jesus subiu à montanha para rezar e passou a noite em oração. Quando se fez dia chamou a si os discípulos e escolheu doze deles...”.104
A sua oração obtém do Pai a confissão de Pedro... e a sustenta nos momentos de prova: “Rezei para que a tua fé não desapareça”.105
A transfiguração acontece num momento de intensa conversação com o Pai. E nesta atitude a sua humanidade aparece aos olhos dos apóstolos como era realmente.106
Muitos milagres são precedidos ou acompanhados por um gesto orante: a multiplicação dos pães, a cura do cego de nascença, a expulsão dos demônios, a ressurreição de Lázaro.
Sua última grande oração é um testamento, o olhar sobre a sua existência; recolhe os motivos da sua vida e da sua morte:107 a sua posição crítica diante do mundo, a sua disponibilidade total ao desígnio do Pai, o amor aos seus, a preocupação com a unidade e a perseverança de todos os que participam da sua ação de salvação, o seu propósito de fidelidade.
A oração no horto das oliveiras e na cruz é a aceitação dos fatos como vindos da vontade de Deus mais do que da malícia dos homens. Com ela, entrega a vida nas mãos do Senhor.
A oração de Jesus aparece assim como uma atitude constante, interna, que se manifesta em expressão espontâneas de alegria,108 de agradecimento,109 de invocação, de disponibilidade, de reflexão. Como plano de fundo de todas estas expressões, há uma única palavra: Pai. “Pai, eu te louvo”.110 Para o Pai também há tempos e lugares adequados para uma conversação tranquila: as montanhas, o deserto, a noite, os lugares solitários, a companhia de poucos amigos.
Entretanto, a verdadeira oração é a vida que se desenrola segundo a vontade do Pai e a serviço dos homens.111 Por isso, o seu ensinamento aos discípulos concentra-se em quatro recomendações, cuja unidade é não percebida por todos:
rezai sempre, sem interrupção;112 não se trata de estar rezando sempre, mas de fazer com que cada momento da vida seja uma invocação ao Pai;
quando rezardes “não dizei muitas palavras”...”.113 Isto é típico dos pagãos. Eles acreditam que os deuses consigam conhecer os nossos problemas e sentimentos somente se nós os dissermos a eles;114
substancialmente e no profundo de cada palavra e opção haja sempre uma palavra, um sentimento: “Pai”. Quando rezardes dizei: “Pai nosso que estais nos céus...”.115 O valor e o fundamento de cada palavra é a relação e o lugar que damos a Deus em nossa vida;
é preciso rezar “em Espírito e verdade”....116 A intensidade e a autenticidade da oração manifestam-se numa vida posta a serviço de Deus e dos irmãos.
Dom Bosco e Maria Mazzarello aprenderam esta modalidade de Jesus Pastor. Descobriram o caráter de oração que tem a ação apostólica e caritativa quando é feita segundo a vontade e na presença de Deus. Por outro lado, isso já era conhecido pelos místicos.
Para Santa Teresa, “ oração é um tratar a Deus como amigo...”; compreende a totalidade da vida qualquer que seja a ocupação do momento; pode-se falar com ele ou trabalhar para ele; pensar nele ou sofrer por ele.
Por isso, ainda segundo Santa Teresa, a oração prepara o encontro com Deus na ação: “A oração mental não é outra coisa senão praticar a amizade encontrando-se frequentemente com quem se ama... não para gozar, mas para acumular energias para servir”. Por isso, a ação a substitui com vantagem em determinados momentos: “Agrada-lhe deixar de estar sozinho com Ele para dedicar-se a uma destas duas coisas (agir e sofrer)”.
Dom Bosco em oração
Deve-se dizer, contudo, que os salesianos conhecem pouco da vida de oração de Dom Bosco. Repete-se que “era a união com Deus”. Entretanto, se perguntássemos a cada salesiano se Dom Bosco foi para ele Mestre de oração como o foi, por exemplo, de pedagogia, talvez numerosas respostas seriam negativas. O caminho pelo qual Dom Bosco progrediu na oração ativa é certamente menos conhecimento e comentado do que aquele que o levou a amadurecer o sistema preventivo. Deste último, conhecemos e difundimos histórias e máximas; do primeiro, porém, temos uma imagem um tanto genérica.
As biografias dão amplo espaço ao seu gênio criativo e acrescentam algumas pátinas exemplares sobre os momentos matutinos de oração.
Há um “clássico” da literatura salesiana no qual se faz um esforço de observação mais cuidadosa da vida mística de Dom Bosco. É o livro Dom Bosco com Deus, do Padre Eugênio Ceria. Nele se vê o quanto Dom Bosco insistiu na necessidade da oração mental e vocal para os salesianos: “A oração... eis a primeira coisa. Não se começa bem senão do céu”. “A oração era para ele... como a água para o peixe, o ar para o pássaro, a fonte para o cervo, o calor para o corpo”.117
Seria errado representar-nos um Dom Bosco que sempre reza orações vocais, assim como seria errôneo imaginar que não houvesse nele expressões externas de piedade. O que mais se admirava nele, porém, é o que comenta o P. Ceria: “Em Dom Bosco, o Espírito de oração era o que é o espírito marcial no bom militar, o que é o gosto num bom artista e o espírito de observação no bom cientista: uma disposição habitual da alma que se atuava com facilidade, constância e grande prazer”.118
Há, portanto, nele uma fusão natural e serena entre ação e oração. A vida não se divide entre um e outra. O amor exprime-se em um e outra: “A diferença específica da piedade salesiana está no saber fazer do trabalho oração... Esta é uma da características mais belas de Dom Bosco”.119
No seguimento destes dois “modelos”, o salesiano deveria chegar a ser “um orante” como todo religioso. Mas o deve fazer “imerso no mundo e nas preocupações da vida pastoral”,120 “operosidade incansável, santificada pela oração e pela união com Deus”.121
A fim de indicá-lo, usam-se duas expressões em nosso vocabulário: ser contemplativo na ação e celebrar a liturgia da vida.
Contemplativos na ação
Ser contemplativo na ação é uma expressão clássica da espiritualidade inaciana, aplicada a Dom Bosco pelo Padre Rinaldi. Diz, de outro modo, o que comentamos na meditação sobre a figura de Dom Bosco: “Caminhar neste mundo como quem vê o invisível”.
Mas, como se “contempla” na ação? Eis algumas indicações
Conservemos viva, em nosso trabalho, a consciência de somos instrumentos da ação de Deus em favor dos jovens. Dos nossos esforços, dos nossos gestos de serviço, das nossas palavras o Senhor se serve para fazer-se ouvir na vida dos jovens e despertar neles o desejo de serem “mais”. Nós não alcançamos o coração e a consciência deles. Mas a nossa presença, a nossa voz são a porta pela qual Deus se comunica com eles.
Habituemo-nos a descobrir a presença do Espírito na vida dos homens, particularmente dos jovens. Unamo-nos à obra que Deus realiza, dando graças, alegrando-nos, intercedendo. Se as nossas distrações se referem aos problemas e às esperanças das pessoas, podemos incorporá-las em nossas orações. Segundo Santa Teresinha do Menino Jesus, as distrações são como as crianças que importunam os pais durante a Missa. Basta unir as suas mãozinhas e fazê-los olhar para o altar.
Ainda: entreguemo-nos plenamente ao serviço dos jovens aceitando as suas exigências cotidianas a exemplo do Bom Pastor; participaremos, então, da paternidade de Deus, agindo como Ele em favor da vida a partir das formas mais elementares (alimentação, casa, instrução) e das mais elevadas (revelação do Evangelho, vida de fé).
Celebrar a liturgia da vida
A outra expressão da oração salesiana é: celebrar a liturgia da vida. O documento de onde foi tomada, a Constituição Apostólica Laudis Canticum, é dirigida a todos os cristãos que oferecem a própria vida a Deus e aos homens, incorporando-a à existência de Cristo sacerdote. É uma das apresentações mais belas e mais verdadeiras do culto cristão que vai além do rito e das cerimônias; e faz do homem o templo de Deus e da sua existência a adoração e o louvor ao Senhor.
Pode ser meditada e aprofundada seguindo muitas pistas: “Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus a oferecerdes os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o vosso culto espiritual”.122 “Tudo o que fizerdes em palavras e obras, tudo seja feito no nome do Senhor Jesus, dando graças por meio dele a Deus Pai”.123
A liturgia da vida foi assumida como “regra” de oração das Constituições dos dois Institutos, dos SDB e das FMA.124 Ela é, de fato, aplicável especialmente nas situações “educativas”.
Trabalho e oração são unidos no sacramento total da vida orientada para Deus e movida pela caridade. União de oração e união de vida com Deus são dois movimentos do mesmo coração. As duas têm ritmos e formas próprias. “A união de oração celebrada interrompe as relações com as criaturas para concentrar toda a atenção diretamente na luz e na vida íntima de Deus. A união prática realiza-se no coração mesmo da vida corrente, no tecido das relações humanas”.125
Contemplativos na ação educativa
Percebe-se no Sistema preventivo uma continuidade sem ruptura entre os dois momentos; antes, os dois se encontram num ponto de conjunção ulterior: a caridade. E, para o nosso tipo de caridade educativo-pastoral o momento da ação é principal como encargo e manifestação. Por isso, o Padre Egídio Viganò preferia a expressão de São Francisco de Sales: “o êxtase da ação”.
Isto é expresso num texto dos Salesianos: “Educar os jovens na fé é, para o salesiano, trabalho e oração. Ele está ciente de que se empenhando pela salvação da juventude faz experiência da paternidade de Deus. (...) Dom Bosco ensinou-nos a reconhecer a presença operante de Deus em nosso trabalho educativo, a experimentá-la como vida e amor. (...) Nós cremos que Deus está a nos esperar nos jovens para oferecer-nos a graça do encontro com Ele e para dispor-nos a servi-lo neles, reconhecendo a sua dignidade e educando-os para a plenitude de vida. O momento educativo torna-se assim o lugar privilegiado do nosso encontro com Ele”126 e da contemplação da sua obra na vida do homem.
Justamente na fé que entrevê a ação de Deus, na esperança que aguarda a sua manifestação na vida dos jovens, e na caridade que se coloca à disposição do jovem e do esposo, desenvolvem-se os sentimentos e vivem-se como oração os momentos educativos de alegria, de espera, de dor, de esforço, de aparente falência. Agradecemos, alegramo-nos, lamentamo-nos, intercedemos, desejamos, invocamos.
A celebração litúrgica tem um Kyrie, um Gloria, um Credo, uma oferta, um espaço simbólico, uma comunidade, tempos de penitência e de exultação. Dessa forma, a liturgia da vida tem momentos de resultados gratificantes e de desilusão, de iniciativa e de espera, de solidão e de companhia. Há um espaço (pátio, escola, bairro!) e há pessoas a amar e com as quais colaborar de coração (a comunidade educativa).
Tudo, visto à luz da presença operante de Deus, torna-se contemplação. Acontece como na comunicação entre pessoas que se conhecem bem: um sentimento pode ser expresso com palavras, com um gesto, um dom, um olhar, um silêncio, uma visita, uma mensagem pelo telefone, pelo fax [pelo facebook, pelo twiter...].
Trata-se, diria Santo Agostinho – “de tomar nas mãos o saltério das boas obras e com ele cantar os louvores do Senhor”.
Atitude constante de oração
Há, contudo, uma relação entre atitude contínua de oração e exercício de oração, entre oração-palavra e oração-vida, entre oração explícita e oração difusa ao longo do dia, entre liturgia celebrada e liturgia da vida.
Talvez seja nesta relação que se encontram as dificuldades e, ao mesmo tempo, a riqueza do salesiano. E, portanto, o ponto fundamental da sua formação espiritual-apostólica.
Os dois elementos ou aspectos são importantes: um para o outro; ambos para a estabilidade e a plenitude da vida consagrada. Quem abandona um deles, perde o outro.
A relação entre eles é diferente segundo o “tipo” de vida. Já na mesma origem dos nossos Institutos se declara: “A vida ativa à qual tende a sociedade faz com que os seus membros não possam ter muitas práticas de piedade em comum. Eles se esforçarão para suprir com o bom exemplo e a realização perfeita dos deveres do bom cristão”.127 Trata-se de um texto que é preciso interpretar colocando-o no próprio “tempo”.
Aquilo que ele sugere exige aprendizagem e tempos especiais de concentração. “Muitos acreditam que a oração venha por si e não querem saber do seu exercício, mas erram”.128
A oração deve brotar “naturalmente”, diz alguém; mas tudo o que nós fazemos com muita naturalidade é resultado de um longo exercício: brincar, caminhar, produzir algum som. A prática regular pessoal e a participação assídua à comunitária são indispensáveis.
É preciso uma iniciação tranquila e progressiva às diversas formas de oração: vocal, mental, leitura, silêncio, contemplação, fórmulas, criatividade. É preciso praticá-las em diversas situações e diversos momentos, até impregnar a vida de modo que a oração entre e brote de nós por muitos caminhos e de muitas formas.
O exercício enraíza o hábito: a regularidade é determinante; todas as coisas importantes da nossa vida têm um horário, um tempo reservado; se em determinado dia não as podemos realizar no horário habitual, logo fixamos outro. Isso se dá para comer, dormir, lavar-nos...
As mediações comunitárias são indispensáveis para nós: os lugares, os tempos, as formas, a comunidade. Digo “para nós”, para quem o estilo comunitário dobre todas as dimensões da vida. Para outros religiosos pode ser diferente. Exige-se, porém, também a aplicação pessoal. O resultado e a modalidade desta aplicação são diferentes. Cada um tem o seu modo de rezar, como tem o seu modo de falar, caminhar e olhar. Devem ser interpretados nesta chave a maior ou menos emotividade, as distrações, as preferências pela reflexão ou pelas fórmulas, os períodos de cansaço.
Entretanto, a oração é um dom. Cristo é o único orante. Ele nos incorpora na sua oração no Espírito. Nós não sabemos nem o que dizer nem como dizê-lo. O Espírito põe em nossos lábios o que convém pedir. “O Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, porque nem mesmo sabemos o que é conveniente pedir, mas o mesmo Espírito intercede com insistência por nós com gemidos inexprimíveis; e aquele que perscruta os corações sabe quais são os desejos do Espírito pois ele intercede pelos crentes segundo os desígnios de Deus”.129
A nossa vida precisa integrar reflexão e praxe, estudo e atividades, silêncio e encontro embora, para nós, isso não esteja ligado a uma rígida alternância de tempos. E, nas atuais condições de vida nas quais estamos mais expostos à multiplicidade, à deterioração, à urgência dos trabalhos.
2. O trabalho
A relevância que o trabalho tem em nossa vida é percebida facilmente por um conjunto de fatos de valor real e simbólico: a raiz camponesa e as primeiras experiências de Dom Bosco, os protagonistas e o tom das experiências das origens, a profissão de pobreza, a classe trabalhadora à qual dedicamos os nossos cuidados preferenciais. O trabalho é o conteúdo principal dos nossos programas de educação nas escolas profissionais e técnicas, é a característica de uma das figuras dos sócios, o coadjutor; é a nossa forma de inserção na sociedade e na cultura. Isso tudo apresenta um aspecto quase fundamental do salesiano: o salesiano é um trabalhador. Padre Cagliero dizia com uma expressão forte: “Quem não trabalho, não é salesiano”.
Dois fatos servem como síntese: a menção do trabalho no escudo, onde se teve que escolher apenas “duas” palavras, e as últimas palavras de Dom Bosco: “Recomendo-vos: trabalho, trabalho, trabalho”.
Alguns esclarecimentos, contudo, não são supérfluos. Para Dom Bosco, o trabalho não é simples ocupação do tempo em qualquer atividade, mesmo cansativa. Mas a dedicação à missão com todas as capacidades e com dedicação exclusiva. Neste sentido, não compreende apenas o trabalho manual, mas também o intelectual e apostólico. Trabalha quem escreve, quem confessa, quem prega, quem estuda, quem organiza a casa. O trabalho é caracterizado pela obediência, pela caridade pastoral, pela reta intenção e pelo sentido comunitário. Não se trata, portanto, de agitação, de movimentação pela impossibilidade de estar tranquilo, mas finalidade, escolha, ordenamento das ações. É preciso ainda dizer que na voz “trabalho” há uma intensa referência ao trabalho manual e prático. O salesiano aprende a trabalhar com as mãos e se encontra bem fazendo trabalhos “humildes”: domésticos, materiais. Mas é verdade que o grande “trabalho” é dedicar-se à educação “cristã” dos jovens.
A caridade pastoral, que orienta o trabalho, pode manifestar-se em impulsos espontâneos e generosos. O mais comum, todavia, é que deva empenhar-se por longo tempo numa obra paciente e cotidiana para fazer as pessoas se desenvolverem e animar as comunidades.
Mais do que uma atitude de bondade ou outro gesto de simpatia, é uma praxe, uma forma constante de agir com competência num âmbito, semelhante à praxe política, social, médica. Todas comportam uma ação coerente, pensada e mirada. Isso requer de nós algumas atitudes e algumas capacidades permanentes. E é este o trabalho que acaba por modelar a fisionomia espiritual da pessoa.
O gosto pelo trabalho está em primeiro lugar no “coração” pastoral: a vontade, o ímpeto, o desejo de trabalhar, de ter satisfação nos empreendimentos pastorais, de estar disposto, de doar-se como que gosta, de considerar proporcionadas todos os esforços, de sentir-se atraído por aqueles que mais precisam, de superar pequenas frustrações, de não desertar, de enfrentar os riscos e as dificuldades como se fossem coisas de pouca conta. O seu contrário é a indiferença, a preguiça pastoral, a ida para os momentos e trabalhos pastorais como para um sofrimento ou uma obrigação a satisfazer o mais rápido possível.
Contudo, além do “coração”, o trabalho guiado pela caridade postula e desenvolve o senso pastoral. Este é como o senso artístico ou dos negócios. É quase uma intuição, um modo de colocar-se rapidamente diante de uma situação. Visitando as nossas obras escolares ou oratorianas logo se percebe se a comunidade tem o “senso” pastoral da orientação das atividades e o tom das relações. Em algumas, surge em primeiro plano o senso econômico, o organizativo ou o disciplinar.
O senso pastoral consiste em parar para avaliar as coisas do ponto de vista da salvação da pessoa; em orientar-se bem na leitura dos acontecimentos, no ter critérios, chaves ou pontos de referência válidos para pensar e organizar uma atividade, de modo que as pessoas cresçam humanamente e consigam viver conscientes da presença de Deus Pai em sua existência.
O trabalho leva-nos a adquirir e desenvolver a capacidade pastoral: é uma preparação profissional específica, exigida pela pastoral, pelo que aprendemos e nos aperfeiçoamos para motiva, instruir, santificar, animar. Tornamo-nos capazes de entender um contexto, de elaborar um projeto que responda às suas urgências e de realiza-lo, levando em conta também o elemento invisível e imponderável que sempre existe no trabalho pastoral.
Enfim, compreende a criatividade pastoral: aquela atitude mental e prática que leva a encontrar soluções originais para problemas e situações novas. Dom Bosco concebeu um projeto para os meninos de rua enquanto as paróquias continuavam com o catecismo “regular”. Lodo depois, quando percebeu que os meninos não estavam preparados para o trabalho nem protegidos nele, pensou uma solução “pequena” e “caseira” que, depois, cresceu: os contratos de trabalho, as oficinas, as escolas profissionais. E assim para outras necessidades como a casa, a instrução.
Padre Ceria indica este aspecto como característico do espírito salesiano: “O primeiro aspecto, aquele que mais salta aos olhos de todos é uma prodigiosa atividades tanto individual como coletiva”.130
O mesmo aspecto foi acolhido também nas Constituições: “A caridade pastoral... caracterizada por aquele dinamismo juvenil que tão fortemente se revelava... nas origens da nossa Sociedade...”.131
Trabalho significa ocupação do tempo e dos recursos da melhor maneira, atenção ao nosso crescimento em todas as suas possibilidades, sagacidade nas opções, dedicação plena.
3. Temperança
A espiritualidade também comporta a dimensão ascética, de resistência ou combate espiritual, representada na Exortação Apostólica com o ícone de Jacó que luta com o Anjo: “a ascese é verdadeiramente indispensável para a pessoa consagrada permanecer fiel à própria vocação e seguir Jesus pelo caminho da Cruz”.132
Liga-se à dimensão penitencial que é essencial para a maturidade cristã. Sem ela é impossível tanto o início como o caminho seguinte de conversão; esta consiste em assumir alguma coisa e deixar muitas outras, optar e cortar, destruir coisas ou hábitos velhos ou inúteis e deixar-se reconstruir. Neste sentido, nos falam as histórias de Abraão e dos apóstolos.
Trata-se de um aspecto não muito congenial à sensibilidade corrente que tende à satisfação dos desejos e a justifica. Cada Instituto tem uma tradição ascética coerente com o próprio estilo espiritual. No nosso, a fórmula que a resume é “coetera tolle”: deixa o resto, orienta o resto para isto, ou seja, ao “da mihi animas”, à possibilidade de viver interiormente e exprimir o amor aos jovens, tirando-os das situações que os impedem de viver. São dois aspectos correlatos.
Aspecto importante desta ascese é dar unidade à pessoal, integrando no projeto de vida em Deus algumas tendências que, desenvolvidas de forma autônoma, comprometem a qualidade da experiência espiritual e as finalidades da missão: uma exasperada busca da eficiência e do profissionalismo separados das finalidades pastorais, a secularização da mentalidade e do estilo de vida, as formas, também dissimuladas, de afirmação excessiva da peculiaridade cultural.133
O “coetera tolle”, deixa ou orienta o resto, tem a sua expressão cotidiana, não única na temperança “salesiana”. Digo “salesiana” porque em nossa história e em nossos textos ela é carregada de algumas referências muito características.
A temperança é aquela virtude cardeal que modera os impulsos, as palavras e os atos segundo a razão e as exigências da vida cristã. Ao seu redor movem-se a continência, a humildade, a sobriedade, a simplicidade, a austeridade. No sistema preventivo as mesmas realidades são incluídas na racionalidade. As suas manifestações na vida cotidiana são: o equilíbrio, isto é, a medida em tudo, uma conveniente disciplina, a capacidade de colaboração, a calma interior e exterior, a relação com todos, mas especialmente com os jovens, serena e qualificada.
Temperança é, sobretudo, um “estado atlético” permanente para qualquer exigência em favor dos jovens; tornar-se e manter-se livres de ligações muito condicionantes, do peso dos gostos e exigências pessoais que criam dependências: “Todo atleta é temperante em tudo; eles o fazem para conseguir uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível. Eu, portanto, corro, mas não como quem não tem uma meta: luto, mas não como quem bate no ar...”.134
A temperança é aplicada no trabalho; é a ordem pela qual as ações têm uma motivação nas finalidades e uma priorização; dominam-se e avaliam-se tanto as ambições pessoais quanto as ambições “apostólicas”; exige-se dos outros o justo e não o que é excessivo ou serviria apenas para a nossa comodidade; faz-se com que o trabalho não elimine a oração nem as relações fraternas. É preciso ser temperante no movimento, nas saídas, na busca de dinheiro, na vontade de concluir alguma coisa para começar outra; no domínio da própria ação, mesmo que fosse apenas para que não termine para sermos apanhados como numa engrenagem.
A temperança é aplicada na vida fraterna; antes, sem ela não é possível uma boa relação comunitária.135 O amor fraterno envolve domínio de si, esforço de atenção, controle dos sentimentos espontâneos, superação dos conflitos, compreensão do sofrimento alheiro. Trata-se de um exercício de sair de si mesmo e mudar a própria orientação. Para nós, há também o esforço de demonstrá-lo de forma compreensível: um afeto que sabe provocar correspondência para o bem do outro.
A temperança aplica-se ao estilo de vida pessoal: relações controladas pela missão; uso e praxe de bens de consumo (carros, equipamentos); tempo de distensão e férias; interioridade controlada e purificada.
A temperança aplica-se também à oração e à contemplação: é a fé que não exige ver nem sentir; que quando “sente” não se apega ao prazer. Os autores falam de desejo imoderado de “consolação”.
Isso tudo pode parecer muito ordinário, como dimensão ascética, e quase festivo diante da seriedade do apelo à conversão e à radicalidade. Dom Bosco expressou esta aparente contradição com o sonho do caramanchão de rosas. Os salesianos caminharão sobre pétalas. Todos os acreditam “folgazões”. Feridos pelos espinhos, não perdem a alegria. Também isso é ascese: a simplicidade, o rosto sorridente, o não fazer “cena”. Responde ao conselho evangélico: quando jejuares, não assumas um ar triste, mas perfuma a cabeça e lava o rosto.136
A espiritualidade salesiana na praxe pastoral:
o Sistema Preventivo
I. CARIDADE PASTORAL E CARIDADE PEDAGÓGICA
1. Uma forma original de caridade pastoral
A caridade pastoral compreende todo o serviço da Igreja ao homem: anunciar o evangelho, promover as pessoas, animar a comunidade, realizar as obras de misericórdia corporais e espirituais.
O Concílio a propõe como caminho de santificação para aqueles que entendem envolver-se intensamente na missão da Igreja: bispos, sacerdotes, religiosos de vida ativa, leigos compromissados.
A caridade pastoral salesiana tem outra determinação mais precisa que não restringe, mas a define melhor: é uma caridade pedagógica. É um amor que sabe criar uma relação educativa; exprime-se na medida do adolescente e da adolescente pobre, que deve ser ajudado a abrir-se, a descobrir a riqueza da vida, a crescer.
Para este adolescente pobre, às vezes, falto de coragem, de educação, de palavras e de pensamento, a caridade do salesiano devem ser sinal legível do amor de Deus. É, portanto, uma caridade que sabe chegar aos últimos, aos mais humildes, àqueles que têm maiores dificuldades.
Alguns irmãos que trabalham em regiões de marginalização referiam-me que uma das maiores dificuldades que os jovens destes ambientes têm no início é justamente a de exprimir-se diante de pessoas adultas estranhas, diante das instituições e daqueles que as representam, incluída aí a Igreja. As instituições são para eles a imagem daquele mundo organizado do qual se sentem excluídos. O amor dos salesianos, que gostariam de ser instrumento de salvação para os mais pobres, deve ser capaz de gestos que os ajudem a assumir o próprio desenvolvimento com alegria e esperança, a abrir-se à confiança e ao diálogo, mesmo no contexto de uma vida depauperada e com condicionamentos.
Isto reproduz o gesto de caridade manifestada por Dom Bosco com Bartolomeu Garelli, que consistiu em fazê-lo “rir” deixando-o à vontade. Ao ardor espiritual esta caridade une, portanto, a sabedoria, o tato pedagógico e o senso prático, o otimismo educativo e a paciência de quem deve apoiar e cultivar os germes de vida. Isso tudo exprime o que afirma o Padre Caviglia e retoma João Paulo II na Juvenum Patris: “A santidade de Dom Bosco se plasma como santidade educativa”.137138139140141142143144145146
Já tivestes a oportunidade de ver o ardor profético de alguns pregadores, em geral não católicos, que nas praças se fazem de intérpretes do mandamento de Deus de converter-se e anunciam o fim dos tempos? Ninguém pode negar que temos amor e zelo religioso. Mas nem sequer temos a coragem de afirmar que este seja o “estilo” da caridade “pedagógica” que escuta, compreende, ajuda e acompanha as pessoas.
A caridade pedagógica demonstra ardor, mas também tato, bom senso, medida e afeto. Numa palavra, sabedoria paterna que ensina a enfrentar a vida. O patrimônio de reflexão e experiência sobre esta forma de caridade é expressado nas Constituições147 com estas palavras: “Guiado por Maria que lhe foi Mestra, Dom Bosco viveu, no encontro com os jovens do primeiro Oratório, uma experiência espiritual e educativa a quem chamou ‘Sistema Preventivo’. Era para ele um amor que se doa gratuitamente, nutrindo-se da caridade de Deus que antecipa a toda criatura com a sua Providência, segue-a com sua presença e salva-a com a doação da própria vida. Dom Bosco no-lo transmite como modo de viver e trabalhar para comunicar o Evangelho e salvar os jovens, com eles e por meio deles. Impregna o nosso relacionamento com Deus, as relações pessoais e a vida de comunidade no exercício de uma caridade que sabe fazer-se amar”.
Há neste artigo um conjunto de acenos que não se deve deixar escapar.
O Sistema Preventivo é chamado de “experiência espiritual” e não só pedagogia.
“Nutrindo-se da caridade de Deus”, não sendo, portanto, resultado de pesquisas educativas nem pelo que se refere aos seus fundamentos, nem por aquilo que se refere à pratica.
A experiência nasce e se desenvolve “no encontro com os jovens” e “no Oratório”. Esse é o húmus, a terra onde se encontram as substâncias nutrientes para esta planta. A experiência não nasce e se desenvolve nos mosteiros, nas bibliotecas, no próprio quarto...; o que não significa dizer que tudo isso não seja útil, também para o salesiano.
“Impregna o nosso relacionamento com Deus”. O salesiano é um “protótipo de oratório”, também diante de Deus e nas questões espirituais, imediato e aberto, simples e espontâneo, confiante e festivo.
Trata-se, então, de refletir sobre as atitudes que esta caridade pastoral exige e cria, e sobre a prática que exige.
2. Os aspectos da caridade pedagógica
A predileção pelos jovens
O primeiro aspecto é a predileção pelos jovens. Todo salesiano, em quem atua a caridade, deve poder repetir com Dom Bosco: “Entre vós, sinto-me bem. A minha vida é justamente estar entre vós”.
A consequência concreta da predileção em Dom Bosco pelos jovens foi escolher a juventude como campo do próprio trabalho. A Dom Bosco como sacerdote eram oferecidos outros campos com notáveis vantagens econômicas, de prestígio e em vista da própria realização. A opção de estar com os meninos de rua e com os pequenos trabalhadores renunciando a ser vigário paroquial, preceptor numa família rica, capelão de colégio ou professor de moral marcou todo o seu caminho futuro.
A mesma coisa vale para Madre Mazzarello. O trabalho apostólico entre os jovens da sua cidade cria nela aquela afinidade que a leva ao encontro “espiritualmente ardente” com Dom Bosco, do qual nasce a expressão feminina da espiritualidade salesiana.
Desta opção determinante, porém brotarão duas consequências: dedicar aos jovens todo o próprio tempo e assumir os seus problemas: a pobreza, o trabalho, a falta de educação, as dificuldades do crescimento, a ausência de um lar.
Nós, também, precisamos poder afirmar que não estamos entre os jovens “por obrigação de horário”, “por profissão” ou por algum ganho; que não esperamos o momento de nos retirarmos para poder dedicar-nos a outro que nos agrade mais, que consideramos mais sério e profundo, e no qual colocamos a nossa principal preocupação pastoral, o nosso momento de distensão ou o ponto mais alto da nossa vida espiritual.
Não nos consumimos espiritualmente entre jovens para depois carregar-nos de energias espirituais em outros momentos. Com eles nos encontramos bem... é o nosso momento espiritual!
Numa versão atual, assim o exprime o CG23 dos salesianos:
Nós cremos que Deus ama os jovens. Esta é a fé que se encontra na origem da nossa vocação e que motiva nossa vida e todas as nossas atividades pastorais.
Cremos que Jesus quer partilhar “sua vida” com os jovens: eles são a esperança de um futuro novo e trazem em si, oculto em suas expectativas, as sementes do Reino.
Cremos que o Espírito se faz presente nos jovens e que por meio deles quer edificar uma comunidade humana e cristã mais autêntica. Ele já opera, em cada um e nos grupos. Confiou-lhes uma tarefa apostólica para desenvolver no mundo, que é também o mundo de todos nós.
Cremos que Deus nos está a esperar nos jovens para oferecer-nos a graça do encontro com Ele e para dispor-nos a servi-lo neles, reconhecendo-lhes a dignidade e educando-os para a plenitude da vida.
O momento educativo torna-se, assim, o lugar privilegiado do nosso encontro com Ele.148
No início da vida salesiana e enquanto nós mesmos ainda somos jovens, estar com e entre os jovens é um movimento espontâneo e até mesmo gratificante, sobretudo quando se é capaz de sintonizar e se é acolhido com simpatia. Os jovens exercem certa atração pela sua vivacidade, pela capacidade criativa, a vontade de viver e compartilhar.
Entretanto, quando se esgota o gosto espontâneo, a decisão de “estar com os jovens” empenha a vida e exige esforço ascético. Num determinado momento começa a custar-nos estar fisicamente entre os jovens; mais ainda estar psicológica e culturalmente com eles, preferir o seu mundo a outros ambientes mais cordiais e formais.
Hoje, pode ser até mesmo difícil. A idade dos jovens em período de educação é mais elevada, a sua liberdade mais ampla, os comportamentos mais variados e menos regulares, o diálogo mais aberto em todas as questões. Isso pode provocar uma “fuga”, um “abandono” progressivo do campo juvenil da parte de não poucos salesianos, sob a impressão de não conseguir comunicar-se com a linguagem, as aspirações ou o tipo de vida das novas gerações. Trabalhar em comunidade ajuda-nos a integrar as contribuições de todos: aquilo de quem é particularmente dotado para o contato com os jovens e aquilo de quem pode dar apenas uma contribuição parcial e limitada.
Isto constitui a riqueza e o distintivo da Congregação. É assim característico da espiritualidade individual e comunitário de tudo o que a Congregação já fez. Ela o fez com e pelos jovens. Do Oratório e dos jovens tiveram origem, ao menos na ordem do tempo, as outras realidades que hoje compõem a grande árvore do movimento salesiano. Deles brotaram a Congregação e tudo o mai... sem eles, nada!
Nas celebrações de janeiro de 1988 estavam presentes em Turim 56 bispos salesianos. Contemplando-os, experimentávamos a satisfação por esta contribuição qualificada da Congregação à Igreja, pela confiança que isso significa da parte da Igreja para com a Congregação, pela responsabilidade e o amor destes irmãos para com a comunidade salesiana. Entre nós, porém, fez-se um comentário: os bispos salesianos, dizia-nos, são um excelente produto final de um trabalho pastoral que inicia e se regenera constantemente no ambiente oratoriano e juvenil. Se os salesianos não tivessem jovens, também não teriam bispos!
O lugar onde a Congregação se regenera, onde produz novas expressões espirituais e gera para si novos membros, inspirados pelo Espírito; onde renova o entusiasmo e exprime a criatividade carismática é o espaço juvenil. Nele se deu o nosso nascimento e continua a ser o continente da nossa missão e a nossa terra prometida. A nossa espiritualidade não encontraria novas expressões se os salesianos se afastassem dele.
A expressão do artigo 20: “Dom Bosco viveu, no encontro com os jovens do primeiro Oratório, uma experiência espiritual”, é válida ainda hoje. A caridade pastora, na forma como a vivem os salesianos, cria, pois, esta atitude fundamental: a predileção pelos jovens, que significa “estar”, “colocar-se”, “retornar” ao lugar típico da nossa experiência de Deus.
A confiança nos jovens
Há, todavia, uma segunda atitude: é a confiança nos jovens. A caridade salesiana entende começar não dos primeiros, mas dos últimos; não dos mais ricos do ponto de vista econômico ou espiritual, que já recebem atenção e serviços; mas daqueles que não sabem a qual paróquia pertencem nem qual escola devem frequentar. Nestes jovens, deve-se suscitar esperança e despertar energias.
Para tanto é necessário que o salesiano, em força da sua fé em Deus que quer a salvação de todos, creia no que Dom Bosco dizia: “Em todo jovem, mesmo no mais infeliz, há um ponto que oportunamente descoberto e estimulado pelo educador, reage com generosidade”,149 e proporciona a energia da qual o jovem precisa para transformar-se.
A fé em Deus Pai e o acontecimento de Cristo Salvador diz-nos que ninguém está definitivamente perdido. Todo jovem traz no seu interior o sinal do plano de salvação, no qual há uma promessa de vida plena e feliz para cada um.
As três biografias exemplares que Dom Bosco escreveu fazem ver como seja possível elevar a um alto nível a vida cristã de quem é particularmente dotado (Domingos Sávio); de recuperar quem tem um passado menos favorável (Miguel Magone); de acompanhar até um desenvolvimento satisfatório quem tem recursos normais (Francisco Besucco).
A satisfação espiritual do salesiano não é apenas a de propor uma meta a quem é capaz de voar alto, mas de “salvar”, tomar a partir do nível mais baixo e elevar, ajudar a dar um passo. Esta é também a participação do salesiano na obra de Deus, participação que requer fé e esperança. O exercício constante das virtudes teologais constitui, portanto, a ascética do salesiano: capacidade de semear sem se cansar e sem mesquinhez, de dar sempre uma nova oportunidade, também quando parece que os resultados não compensam, de ver a vida em tudo o seu valor potencial como mistério imprevisível, sempre à espera da ação da graça.
O bom educador é aquele capaz de dar e criar sempre uma nova oportunidade. E aquele que jamais diz: “basta”.
Por isso, dizemos que as três energias interiores do jovem – religião, razão, bondade – são também os três aspectos e as fontes de crescimento para o educador. Ele deve crescer continuamente na fé, reconhecendo a fecundidade daquilo que Deus semeou na vida dos jovens através da palavra e da presença; deve alimentar o seu otimismo que é esperança e confiança no futuro da sua ação; deve reconverter tudo numa caridade que é prontidão e capacidade de intervenção a favor dos jovens.
Isto tudo levou a repensar o conceito de prevenção e preventividade. Talvez isso significava para muitos apenas ocupar-se dos meninos e jovens que ainda não alcançados pelo mal. Antecipar é certamente uma regra de outro. Mas “prevenir” significa também impedir a ruina definitiva de quem já está no mau caminho, mas ainda tem energias sadias a desenvolver ou recuperar. Na atual reflexão sociopedagógica, fala-se de uma prevenção primeira e básica, de uma segunda, de recuperação e reforço, e de uma última que consegue conter as consequências extremas do mal.
O amor demonstrado
Junto com a predileção pelos jovens e a confiança na graça de salvação que atua neles, há uma terceira atitude: o amor demonstrado na forma de afeto.
O verdadeiro amor refere-se ao bem absoluto do outro, que é desejado e buscado como se fosse próprio. Esta é a expressão fundamental, não relacionada com a simpatia recíproca entre aqueles que se amam. Mas o amor do salesiano é, como diz o Padre Egídio Viganò, aquele que sabe fazer-se corresponder, porque intuiu que com esta correspondência ele faz jovens. Havia um bom relacionamento, mas se tratava de um relacionamento mais de coisas do que de pessoas. Era um intercâmbio de dinheiro com serviços, ambos prestados com perfeita gentileza e responsabilidade. Dele brotava uma relação de respeito e amizade, mas não de gratidão. O sistema, porém, que ele experimentou depois, baseava-se na correspondência de afeto gratuitamente oferecido e gratuitamente correspondido.
Saber provocar a confiança é um aspecto da nossa caridade educativa, porque somente onde ela existe é possível o trabalho de educação. Esta, como diz Dom Bosco, “é coisa do coração”.
Referindo toda este discurso à espiritualidade, não há quem não veja quanta ascese e purificação exija viver disponível aos jovens, não para satisfação pessoal, mas para o progresso deles; quanta fé... exija renovar a própria disponibilidade, criar oportunidades para encontrá-los, estar prontos para novas formas de comunicação, entender situações inéditas para poder ajuda-los.
É o que exprimem as Constituições: “Enviado aos jovens por Deus que é ‘todo caridade’, o salesiano é aberto e cordial, pronto a dar o primeiro passo e a acolher sempre com bondade, respeito e paciência. Seu afeto é o de um pai, irmão e amigo, capaz de criar correspondência de amizade: é a bondade tão recomendada por Dom Bosco. Sua castidade e seu equilíbrio abrem-lhe o coração à paternidade espiritual e deixam transparecer nele o amor preveniente de Deus”.150
II. CARIDADE PASTORAL NO TRABALHO EDUCATIVO
Além das atitudes criadas pela caridade pastoral, existem alguns componentes visíveis que constituem a sua prática. Como o salesiano manifesta a sua predileção pelos jovens? A sua confiança nos seus recursos, a sua capacidade de amá-los acima da simpatia espontânea ou da sua correspondência imediata?
1. O encontro com o jovem
Expressão típica da caridade pastoral é, antes de tudo, o encontro... o saber encontrar os jovens e encontrar-se com os jovens, dando o primeiro passo. Pensais que isso tenha a ver com a espiritualidade? Certamente! Onde e quando se ve a espiritualidade, por exemplo, de uma religiosa enfermeira, se não no encontro com os doentes? Onde e quando ver a espiritualidade do educador senão no “momento” educativo?
Dom Bosco foi um especialista do primeiro encontro com o jovem. Era capaz de suscitar imediatamente a confiança, eliminar as barreiras, provocar a alegria. Há muitos destes encontros narrados por ele mesmo.
Alguns destes encontros passaram para a história como momentos “fundantes”. O encontro com Bartolomeu Garelli na sacristia da igreja de São Francisco de Assis lançou os fundamentos do oratório.
Nas biografias dos jovens, Dom Bosco evoca com prazer os seus encontros com eles e detém-se a reconstruir a conversação passo a passo. Na biografia de Domingos Sávio, ele reproduz o diálogo-encontro, na casa paroquial de Murialdo e no escritório de Dom Bosco no Oratório. Na vida de Miguel Magone, há até mesmo um capítulo, o primeiro, que traz como título: “Um encontro curioso”.
Dom Bosco, não só revive estes encontros, como também os propõe como norma educativa. Exibe-se quase na sua arte de alcançar a vida do menino. O encontro começa sempre com um gesto de absoluta estima, afeto, sintonia. Dom Bosco entra logo e com simplicidade nos pontos importantes da vida do seu pequeno interlocutor (instrução religiosa, trabalho, pais, abandono, ociosidade).
O diálogo, portanto, é sério em seus conteúdos, embora cada expressão seja carregada de alegria e de bom humor. Por enfrentarem pontos importantes da vida e os enfrentarem com seriedade e com alegria, estes encontros caracterizam-se pela intensidade dos sentimentos. Miguel Magone comove-se, Francisco Besucco chora de comoção, Domingos Sávio “não sabia como expressar a sua alegria e gratidão; tomou-me a mão, apertou-a, beijou-a várias vezes”.151 Estes sentimentos explicam porque a lembrança do primeiro encontro permanece incancelável também na memória dos jovens. Padre Rua jamais se esquecerá dos gestos e das palavras do primeiro encontro com Dom Bosco, quando era apenas uma criança.
Se esta era a lembrança que os encontros deixaram no seu espírito, se esta é a relevância que ele lhe dá nas biografias, até fazer delas o eixo da narração, é porque estava convencido de que a qualidade do educador-pastoral se demonstra no encontro pessoal, e que este é o ponto para o qual tendem o ambiente e o programa.
Quando em Roma, um cardeal o desafiou na sua capacidade educativa, Dom Bosco ofereceu-lhe o espetáculo e a prova de um encontro pessoal e um diálogo com os meninos na Piazza del Popolo. Foram a um determinado lugar. A carruagem deteve-se perto da praça. O Cardeal ficou observando de longe. Dom Bosco vai na direção dos meninos que jogam e gritam. Não são decerto delinquentes, mas moleques e mal-educados. Trata-se de um episódio real, mas provavelmente reconstruído como “demonstração ou lição pedagógica”. Relendo-o, encontramos a estrutura narrativa de todos os outros “encontros”: o primeiro movimento de contato, a fuga dos meninos, a superação da timidez, o diálogo sério-alegre, a intensidade emotiva da conclusão.152
O encontro que suscita confiança e desperta a estima de si é, por outro lado, uma categoria evangélica. Jesus acolhe e vai ao encontro de todo tipo de pessoas: Zaqueu, Levi, Nicodemos, a Samaritana, a adúltera. E o encontro com Ele deixa marca.
Talvez existam, entre os salesianos, aqueles que perderam esta capacidade. Em compensação, porém, veem-se em diversas partes do mundo irmãos e irmãs que vão ao encontro dos jovens que, nem instituições educativas, nem forças da ordem, nem assistentes sócias são capazes de alcançar. E o encontro é feito na rua, sob as pontes, nos lugares de encontro dos grupos. Falando com eles entende-se o quanto esta é uma prática de caridade.
Para todos os salesianos, apresenta-se um dilema: encontrar os jovens apenas nas instituições educativas ou também em lugares mais livres e abertos? As primeiras vão se reduzindo sempre mais às atividades e ao tempo de ensino. E não são para os jovens o lugar onde eles revelam espontaneamente os seus problemas pessoais. As demais não têm uma evidente conotação educativa e são de difícil gestão.
No encontro no interior de uma instituição, a relação inicial entre jovem e educador é protegida pelas normas de comportamento. Pode haver educação sem confiança. Fora das instituições educativas põe-se à prova a nossa capacidade de demonstrar aos jovens o nosso interesse pela vida deles e de comunicação com eles. Hoje, talvez, os dois lugares de encontro devem ser levados em consideração pela comunidade mesmo se nem todos poderão agir no segundo.
2. A acolhida
Uma segunda prática da caridade pastoral é a acolhida. Saber receber o jovem com alegria como quem recebe uma graça. Não se trata apenas da acolhida física. Mas de tudo aquilo que a pessoa traz consigo como bagagem de vida: seus gostos legítimos, suas aspirações, sua cultura.
Talvez há algum tempo a acolhida que se dava ao jovem era principalmente “institucional”. O jovem inseria-se num dos nossos ambientes e sentia-se acolhido, porque o poder dispor de tal oportunidade educativa era um privilégio. A vida do instituto ritmada pelo dever de estudo, da oração cotidiana, da diversão, de atividades variadas, representava para ele uma verdadeira novidade. O instituto era mais “interessante” do que a cidade ou a família.
Neste contexto, os salesianos tornavam-se próximos: o assistente, o professor, o catequista, o diretor. É preciso tomar ciência do influxo marginal, e, portanto, da pouca atração, que as instituições têm hoje sobre os jovens. Entrar num ambiente solene e organizado, mas anônimo, não diz nada ao jovem. Tem valor, porém, a acolhida humana e pessoal, expressada com gestos sensíveis de aceitação. Isso comporta compreensão e empatia em relação a todas as situações e tendências juvenis sadias, dos indivíduos e dos grupos. As Constituições salesianas recomendam “abrir-se ao conhecimento vital do mundo juvenil e à solidariedade com todos os aspectos autênticos de seu dinamismo”.153
3. A criação de um ambiente
A terceira manifestação é dedicar-se com paciência e cuidado a construir um ambiente rico de humanidade, que é, por si só, expressão e veículo de valores. A experiência da força do ambiente pertence aos primeiros anos de apostolado de Dom Bosco e tornou-se uma aquisição definitiva para o restante de seus dias. Nessa época, visita as prisões e, estando às suas palavras, “Nessas ocasiões descobri que muitos voltavam àquele lugar porque abandonados a si próprios. “Quem sabe – dizia de mim para mim –, se tivessem lá fora um amigo que tomasse conta deles, os assistisse e instruísse na religião nos dias festivos, quem sabe não se poderiam manter afastados da ruína”.154
Com Bosco será o amigo de muitos jovens aproximados individualmente nos mais variados lugares; mas será também o animador de uma comunidade de jovens, caracterizada por alguns aspectos e com um programa a ser desenvolvido. Razões psicológicas, sociológicas e de fé confirmaram-no na convicção de que era necessária uma ecologia educativa, na qual se respirasse a religião e o trabalho e onde a caridade legitimasse os papéis, as relações e a atmosfera.
Ele, então, não só faz a opção do ambiente, procurando estabilidade para o seu oratório e redigindo um pequeno regulamento, mas enuncia uma teoria: “O fato de viverem juntos em muitos, serve muito para criar este mel de alegria, piedade e estudo. Esta é a vantagem que vos traz viver aqui no oratório. Serem em muitos ao mesmo tempo aumenta a alegria das vossas recreações, afasta a melancolia quando esta bruxa feia quisesse entrar em vossos corações; serem em muitos serve de encorajamento para suportar os esforços do estudo, serve de estímulo ao ver o aproveitamento dos outros; um comunica ao outro os próprios conhecimentos, as próprias ideias e, dessa forma, um aprende do outro. Viver entre muitos que fazem o bem nos anima sem que tomemos conhecimento disso”.155
O ambiente não é genérico. Mas tem aspectos que o caracterizam. Não é um lugar material, no qual se vai para entreter-se individualmente, mas uma comunidade, um programa, uma tensão em que se insere para amadurecer.
A caridade pastoral, o amor educativo leva-nos a gastar tempo e saúde, a procurarmos organizar bem um ambiente amplo, positivo, rico de propostas, capaz de acolher muitos jovens e oferecer-lhes uma experiência positiva de convivência, responsabilidade, trabalho, vida de fé.
Quem vê o salesiano, cansado às vezes, organizando coisas, criando relações, fazendo reuniões e enfeitando paredes, para poder criar esta atmosfera, é tentado a pensar: o que este religioso faz de espiritual colando pôsteres e criando cartazes? Isso tem algo a ver com a espiritualidade? É verdade que se o salesiano estiver totalmente tomado pelas coisas, podendo ser ajudado, talvez esteja empregando mal o seu tempo e a sua capacidade. Mas se alguém pensasse que toda a preocupação em preparar um ambiente positivo para os jovens é perda de tempo e não tem nada a ver com a espiritualidade, então deveria meditar o pensamento de São Paulo. Segundo o apóstolo as coisas não são espirituais ou carnais. É a pessoa que, movida pelo instinto, pelo egoísmo ou pela caridade, confere qualidade à ação e orienta as coisas para o espiritual ou para o carnal.
4. Relação educativo-pessoal
Juntamente com o saber e o querer encontrar os jovens, juntamente com a acolhida, a animação educativa e religiosa de um ambiente, apresentemos uma ulterior manifestação da caridade pastoral: a relação pessoal que ajuda o crescimento.
A acolhida talvez se refira apenas ao primeiro momento do encontro. A educação exige depois um acompanhamento sereno, mas prolongado. A natureza o provê na relação pai-filho. Nela, a geração biológica é continuada na assistência à vida mediante a reprodução (upbringing).
Há particularmente, sob este aspecto, duas manifestações: a amizade e a paternidade. A primeira ocorre frequentemente nas narrações de Dom Bosco que se referem à experiência pessoal e a práxis educativa. Já vimos que a amizade foi um aspecto da sua juventude, demonstração da sua capacidade de dar e receber afeto alegremente e sempre de maneira pessoal e profunda.
Na educação, a amizade profunda nasce dos gestos e da vontade de familiaridade, e dela se nutre. Por sua vez, provoca confiança. E a confiança é tudo na educação, porque somente no momento em que o jovem nos confia os seus segredos será possível educar.
A expressão concreta da amizade é a assistência. Ela é entendida como um desejo de estar com os jovens e compartilhar a vida deles. Não é, portanto, uma “obrigação de estado”, mas certa paixão para entender e ajudar a viver as experiências juvenis. É, ao mesmo tempo, presença física ali onde os jovens vivem, fazendo intercâmbio ou planejando; é força moral com capacidade de animação e estímulo. Assume o duplo aspecto da preventividade: proteger de experiências negativas precoces e desenvolver as potencialidades da pessoa mediante propostas positivas. Desenvolve motivações inspiradas na racionalidade (vida honesta, sentido atraente da existência) e na consciência, enquanto reforça nos jovens a capacidade de resposta autônoma ao apelo dos valores.
A assistência também teve uma evolução e um enriquecimento progressivo entre nós. O primeiro modelo de assistência foi o oratoriano, todo ele baseado na relação de amizade, colaboração e vontade de viver juntos e ajudar-se. A exigência disciplinar e o controle são mínimos.
Em seguida, veio o “modelo” escolar. Nelo prevaleceram o cumprimento do dever, a prevenção de desordens, a disciplina. A relação pessoal e a comunicação espontânea diminuíram de valor. Hoje, se recupera a dimensão de acompanhamento, de ajuda em liberdade, de proposta, animação das atividades juvenis. Por isso se faz “assistência” também fora das obras.
A acolhida, a amizade e a assistência culminam numa manifestação singularíssima: a paternidade ou maternidade. Esta é mais do que amizade. É uma responsabilidade afetuosa e qualificada que oferece guia e ensinamento vital e exige disciplina e empenho. É amor e autoridade. É o caráter que distingue o primeiro responsável de um projeto. Estende-se ao indivíduo e ao conjunto e neste conjunto deve protegida, defendida e enfatizada.
Ela se manifesta principalmente no “saber falar ao coração”, de maneira personalizada e que personaliza, para que chegue às questões que ocupam atualmente a vida e a mente dos jovens; saber falar revelando o valor e o sentido do que vai acontecendo com eles de modo a tocar a consciência, a profundidade, e ajuda-los a adquirirem uma sabedoria com que enfrentar alegrias, problemas e provas: num falar que comunica a arte de viver.
Amizade e paternidade criam o clima de família, no qual os valores se tornam compreensíveis e as exigências aceitáveis. Dessa forma, traça-se a linha entre o autoritarismo, que corre o risco de não influir, e o permissivismo que não consegue transmitir valores e no qual a amizade resulta passatempo inconsistente que não ajuda a crescer.
5. Conclusão
A nossa caridade pastoral tem uma fisionomia própria: ela é pedagógica.
Inclui atitudes internas, práticas cotidianas, hábitos de trabalho, critérios organizativos etc.
Tudo é imaginado e colocado em prática para poder despertar nos jovens o gosto da vida plenamente humana e o amor de Deus: queremos ser “sinais do amor de Deus”.
Neste sentido, o nosso trabalho educativo constitui também a nossa experiência espiritual típica. Quando desejamos apresentar a alguém a espiritualidade beneditina, levamo-lo ao “mosteiro”; que queremos fazer com que experimentem diretamente o ponto alto da espiritualidade focolarina, convidamo-lo às “Mariápolis”. Para ver em ação, viva e diretamente a espiritualidade salesiana é preciso ir ao pátio e observa os salesianos entre e com os jovens.
Educadores
1. Os salesianos são educadores
Os numerosos artigos constitucionais que descrevem as atitudes, as práticas e as ações da nossa caridade pastoral, junto com a palavra evangelizar acrescentam outra: educar, educadores. O mesmo acontece nos escritos e documentos qualificados sobre a nossa espiritualidade, até cunhar um slogan, cujo valor exato ainda se deve esclarecer: “Evangelizar educando, educar evangelizando”.
Um dos aspectos da personalidade, da missão e da espiritualidade de Dm Bosco – e deve-se dizer o mesmo de Madre Mazzarello – que a história fez emergir mais – é a sua atenção ao campo educativo e a sua genialidade pedagógica. Antes, podemos dizer, sem sobra de dúvida, que estes foram privilegiados mais do que todos os outros aspectos. A maior parte dos encontros e congressos, realizados em âmbito eclesial e secular, nas diversas nações, por ocasião dos centenários, escolheram o tema educativo-pedagógico como aquele que melhor podia falar aos nossos contemporâneos.
Amadureceu entre os salesianos até mesmo a ideia de pedir que Dom Bosco fosse declarado “Doutor” da Igreja. Não pela sua doutrina “teológica”, mas pela sua inspiração e praxe educativa. A Carta do Papa “Pai e Mestre da juventude” versa sobre o serviço, a dedicação e a capacidade educativa de Dom Bosco.
Tivemos uma apresentação deste aspecto da espiritualidade salesiana na beatificação de Madre Madalena Morano (30 de abril de 1994): mestra de escola por vocação primeira antes de entrar entre as salesianas, a sua vida religiosa é marcada pela mentalidade, pelo entusiasmo, o sérvio e a criatividade educativa.
O interesse não é novo. Antes, talvez seja este o aspecto que desde o início mais atraiu a atenção de todos e que teve maior realce nas primeiríssimas biografias por vontade do próprio Dom Bosco. E se explica. Só o fato de um padre que vai em busca dos jovens pelas ruas e se adequa à sua linguagem e aos seus gostos, seria também hoje tema para um filme.
Padre Auffray, no capítulo XII da sua viva biografia, capítulo dedicado a “Dom Bosco educador”, faz uma ponderação e apresenta um dado. “Se alguns nascem poetas, outros artistas, outros cientistas, Dom Bosco nascera educador. É como se Deus tendo-lhe confiado uma missão bem precisa, lhe tivesse dado também os meios para a realizar de maneira tão frutuosa. As circunstâncias e a ousadia apostólica induziram Dom Bosco a ocupar-se de um número incrível de problemas; pode-se dizer que poucos homens, na Igreja e fora, fizeram muitas e tão diversas coisas. Contudo, a de educador foi a vocação que ele sentiu como sua mais do que qualquer outra. No passaporte que lhe foi concedido em 1850 para uma viagem a Milão, a profissão declarada do Santo é a, muito eloquente, de ‘mestre de escola elementar’”.
Estas ponderações deram origem a uma discussão: se nele foi primeiramente no tempo e mais forte a vocação de educador ou a de sacerdote. Padre Pedro Braido acompanha o entrelaçamento das duas durante o tempo da sua vida para concluir que a de sacerdote é anterior e inspiradora e encontra o seu campo próprio na educação da juventude. Isso explica a nossa atual dedicação à educação com finalidades pastorais.
O Decreto de beatificação fala de Dom Bosco como de “um educador eminente (princeps) que abriu caminhos definitivamente válidos para a pedagogia cristã”.
Os Institutos dos Salesianos e das Filhas de Maria Auxiliadora viveram tempos de entusiasmo e de quase exaltação deste aspecto do seu trabalho e manifestaram-no de várias formas. Por muitos anos, deram um desenvolvimento preferencial aos diversos setores educativos: escolar, profissional, agrícola, criando estruturas e tarefas em todos os níveis. Para estes setores encaminharam a maior parte do pessoal e o prepararam com qualificações e diplomas. Com boa razão, quiseram apresentar-se e afirmar-se nos ambientes civis como pessoas interessadas no desenvolvimento cultural e na promoção dos jovens e do povo. Como vértice disso tudo, criaram (a seu tempo) duas faculdades de Ciências da Educação, que foram uma novidade nas Universidades Pontifícias. De fato, as ciências da educação não eram consideradas nem “eclesiásticas” nem “pastorais”. Foram necessários tempos e mediações para incluí-las como faculdades numa universidade pontifícia. Por último, entraram de bom grado no diálogo com governos e Igrejas particulares para dar resposta a problemas educativos urgentes.
Este entusiasmo incluía simultaneamente a educação humana, isto é, o desenvolvimento cultural da pessoa no próprio ambiente, e a formação cristã, ou seja, o desenvolvimento da pessoa, como filho de Deus e membro da Igreja. Os dois aspectos, em épocas precedentes, apresentavam-se unidos, interpenetrados, quase fundidos nos programas e instituições educativas e também nas intenções dos usuários.
Esta origem e esta tradição ficaram impressas em nossa identidade. Nas Constituições, os termos evangelizar e educar formam um binômio indissolúvel. Entre os dois existe uma relação original. A finalidade é única: iluminar, desenvolver, equipar para a vida, habilitar para o uso da liberdade, dar aos jovens o gosto pelos valores.
Há, contudo, entre os dois termos uma subordinação de valor: estamos persuadidos de que em Jesus Cristo encontramos o sentido, a luz e a força para orientar a vida. Tudo tende a torna-lo conhecido mesmo respeitando os tempos e o itinerário de cada um.
Educar-evangelizar são dois projetos que, sem serem iguais, se comunicam e preenchem reciprocamente. O nosso modo de evangelizar tende a formar uma pessoa madura em todos os sentidos. A nossa educação tende a abrir a Deus e ao destino eterno do homem.
Os salesianos não são apenas catequistas ou pastores, mas educadores. As Filhas de Maria Auxiliadora não são um instituto de catequistas paroquiais, embora também façam isso. Eles e elas fazem da educação a sua prática de caridade. “Dom Bosco surge diante do mundo e da Igreja como um santo Educador, isto é, como alguém que empenhou a santidade na missão educativa” (Padre Egídio Viganò).
2. Educação e experiência de Deus
O que isso significa em relação à espiritualidade? Trata-se apenas de uma ocupação profissional acrescentada à vida espiritual ou modela a espiritualidade da pessoa?
Surgiram nos últimos tempos muitos estudos sobre religiosos educadores. Vê-se em todos a preocupação de confirmar o caráter apostólico e carismático do trabalho educativo. Ao mesmo tempo se prevê o risco do “profissionalismo”, isto é, da separação entre trabalho profissional de educação e experiência de Deus. Não aconteça que um religioso ou religiosa não consiga fazer transparecer a própria vida consagrada através do papel educativo; que se ache e se preocupe mais em ser e parecer “diretor” ou “professor” do que homem ou mulher de fé.
Estes estudos procuram, também, frear um eventual senso de frustração pelos escassos resultados obtidos em relação à fé nas estruturas educativas. Enfim, incentivam a renovar a pastoral dos ambientes educativos, adequando-se aos tempos, a partir das nossas atitudes e mentalidades numa sociedade pluralista, secular, em que a atividade educativa é autônoma das preocupações confessionais, mas pode e deve comunicar-se com a fé.
Trata-se de assumir o trabalho educativo, vendo-o como colaboração com Deus no crescimento da pessoa.
A Sagrada Escritura apresenta, com efeito, a história da salvação como um processo educativo. Deus educa as pessoas e o povo segundo um preciso itinerário.
Primeiramente, Deus fala com eles. Eles são os seus interlocutores. Escutam, mas também respondem e interrogam. A imagem do homem que interpela, buscando razões e compreensão, é Jó. Mas também Abraão interpela o Senhor. Falar é a característica do Deus verdadeiro, em contraposição aos ídolos que são mudos. O diálogo entre Deus e o povo culminará na Palavra que se faz carne.
Contudo, além de falar, o Senhor incentiva e quase obriga o povo a experiências sempre novas e amadurecidas, embora não fáceis: romper a dependência do Egito, aventurar-se no deserto, formar a comunidade na própria terra, exprimir a identidade religiosa, assumir a lei. Com isto, estimula e acompanha pessoas e comunidades num caminho de libertação: libertação dos jugos humanos e abertura a Deus obtida também através de lutas e provas.
Dessa forma Deus faz o seu povo tomar consciência do que é, do seu destino, que o homem por si só não conseguiria descobrir: nem escravos, nem submetidos a forças mágicas, mas “povo de Deus”, objeto do seu amor.
A Bíblia não só descreve a ação de Deus segundo as atitudes que nós atribuímos ao educador (respeito da liberdade, paciência, novas oportunidades, provas); não só se serve da linguagem com que nós descrevemos o trabalho educativo (orientar, corrigir, acompanhar, castigar para salvar), mas atribui diretamente a Deus o papel de Educador... servindo-se da palavra hebraica “musar” que em grego é traduzida por “Paideia”.
“Em terra deserta o encontrou, na vastidão ululante do deserto. Cercou-o de cuidados e o ensinou, guardou-o como a menina dos olhos. Qual águia que desperta a ninhada, voando sobre os filhotes, também ele estendeu as asas e o apanhou e sobre suas penas o carregou”.156157158159160161162163164165 Este é o texto mais terno e poético, mas não o único. Poder-se-ia recolher centenas de textos bíblicos breves e longos do mesmo teor sobre a obra educativa de Deus em relação ao homem: “Eu o ensinava a caminhar segurando-o pela mão... eu os lacei com laços de bondade... era para eles como quem traz uma criança junto ao rosto... abaixava-me até eles para dar-lhes de comer”.166 “Reconhece, pois, em teu coração que, como um homem corrige o seu filho, assim te corrige o Senhor teu Deus”.167
A ação educativa de Deus exprime-se no apelo exigente a um crescimento progressivo, mas também a rupturas imprevistas com o passado e partidas repentinas para mundos e formas novas de vida. “Sai da tua terra”, não é apenas uma palavra ou um episódio, mas uma constante na relação entre o homem e Deus. Tudo concorria para elevar o espírito e a vida a uma qualidade superior de relações recíprocas e perspectivas históricas.
À luz deste modo de agir de Deus, entende-se o estilo e a responsabilidade educativa de Israel, que é vista como extensão e mediação da obra educativa de Deus.
Ela é assumida e realizada conjuntamente pela comunidade, pela família e pelos mestres religiosos, segundo o que está codificado na tradição e numa literatura sapiencial rica de conselhos, máximas e exortações.168
Trata-se de uma responsabilidade que vai além do fato de garantir um futuro ao filho. Transmite de uma geração a outra “a memória” das promessas de Deus e a esperança da sua realização. Por isso, a Palavra de Deus sugere aos pais, educadores e mestres uma estima sem par das novas gerações: os filhos são a bênção de Deus, anéis indispensáveis no desenvolvimento da humanidade e na realização do projeto de Deus; não há promessas sem filhos que conheçam a Deus.
Quem pôde acompanhar o conceito que outros povos têm sobre a descendência, nota uma enorme diferença. A mesma Palavra prescreve que se deve educa-los na aliança de modo que tenham a consciência de constituir “o povo de Deus”.
Este filão culmina em Jesus Cristo. Ele apresenta-se como Mestre. Não é difícil colher no Evangelho acenos e traços educativos. Baste pensar nos diálogos de Jesus com os discípulos e o povo que se aproxima dele: as aberturas de mente que provoca, os convites a refletir e entender. Acrescentemos a linguagem das parábolas, com que torna fácil aos seus ouvintes a compreensão da verdade; e, sobretudo, os seus convites a superar as questões materiais que, em geral, são apresentadas pelos seus interlocutores, e a passar às mais profundas, aos bens do Reino.
A sua ação educativa torna-se sistemática e cotidiana com os apóstolos. Aos poucos, ele os ajuda a entender o valor e as exigências de um projeto comunitário de longo prazo, enquanto eles se demonstram preocupados com as próprias vantagens e desejos de efeitos imediatos.
Ele os ajuda a superar o integrismo e o zelo autoritário. É preciso que aprendam a aceitar adversários, rivais e gente que pensa diversamente.169 Ensina-os a ver, a olhar com profundidade os problemas fundamentais do homem, por exemplo, as doenças, as catástrofes inexplicáveis, a morte.170 Devem aprender que não há relação direta entre desgraça e pecado.
Ele os faz passar da visão e dos interesses “locais” aos questionamentos religiosos e à salvação da nação e do mundo. Devem sair mentalmente da aldeia e pensar em termos universais. Orienta-os para serem críticos também em relação a alguns aspectos da religião que se voltaram contra o homem: o legalismo, o puritanismo, o uso da religião pelos que governam, o ritualismo.171
Ele os ensina a julgar com prudência e elegância, a superar a superficialidade e a rusticidade nas avaliações sobre as pessoas. Pensemos no julgamento sobre a mulher que ungiu os seus pés na casa de Simão e no episódio da adúltera. Ainda hoje, se escutam avaliações pesadas de pessoas crentes sobre situações similares.
A obra educativa de Deus não termina aqui. São Paulo a vê dividida em três fases que se distinguem porque cada uma influi mais profundamente sobre a pessoa.
Israel é considerado como uma criança sob o controle do pedagogo exterior: a lei. Esta lhe mostra o caminho, mas não lhe dá a força para percorrê-lo, nem lhe oferece a identidade a obter. A lei, com efeito, não é a meta, nem a forma, nem muito menos a vocação do homem. O destino da pessoa, porém, são o amor e a liberdade.
A segunda fase chega na plenitude dos tempos: Deus manda o seu Filho. N’Ele nos infunde a forma humana à qual somos destinados. Esta forma é plasmada no interior da nossa natureza pela encarnação de Jesus e constitui o nosso código genético pela graça da adoção. E em nosso interior deve revelar-se e desenvolver-se.
Enfim, há a terceira fase: Jesus nos infunde o Espírito que se torna nossa pedagogo e guia interior. É o Espírito de liberdade e generosidade que nos leva a modelar-nos segundo a grandeza e a profundidade que aparecem em Cristo.
Nesta perspectiva deve ser lida a função educativa da Igreja no mundo. A educação da humanidade não é, por si só, uma manifestação opcional da caridade, como pode ser dar alimento a quem tem fome ou dar descanso ao peregrino. É o coração mesmo da sua missão. A Igreja torna-se a mediadora da ação educativa de Deus, a continuação do magistério de Cristo, o sinal da presença do Espírito no homem.
Por isso, na Igreja, tudo é educativo, e tende a dar ao homem consciência do seu ser e do seu destino, a despertar energias de construção, a descobrir o quanto de bom, de nobre e de terno o Criador colocou nele. Um autor (Dietrich von Hildebrand) dedicou-se a estudar a força educativa da liturgia com seus gestos, ritmos, atitudes, palavras, significados.
A Igreja sempre apoiará a união ou coerência que há entre o dar origem a um filho, educa-lo, abri-lo ao conhecimento de Deus, inicia-lo ao mistério de Cristo e à vida segundo o Espírito, conforme a palavra de São Paul: “Tudo o que é verdadeiro, tudo o que é puro, tudo o que é justo, tudo o que é santo, tudo o que é amável, tudo que dá boa fama, tudo o que é virtuoso ou digno de louvor, seja objeto dos vossos pensamentos”.172
Sempre serão numerosos na Igreja, ao lado dos ministros do culto e dos pregadores, também os educadores do povo. Pessoas carismáticas fundarão instituições educativas para todas as classes sociais e em todos os contextos culturais.
Muitos religiosos se dedicarão profissionalmente à atividade educativa, fazendo dela a expressão da opção radical por Deus; não um aspecto justaposto à consagração religiosa, mas um modo singular de exprimi-la.
Concluindo, educar é participar da obra de Deus Pai que cria a pessoa, de Cristo que revela o nosso ser filhos de Deus e torna possível viver como tais, do Espírito Santo que desde o interior inspira o crescimento da liberdade e das expressões típicas dos filhos.
Isso é expressado com muita coragem e simplicidade num artigo das Constituições das Filhas de Maria Auxiliadora: “A assistência salesiana (a nossa maneira de educar!) ... se torna atenção ao Espírito Santo que atua em cada pessoa”.173
3. Educação e espiritualidade
Normalmente, enfrentamos o tema da educação com três abordagens.
Uma é a da experiência vivida. Dá-nos uma ideia real das dificuldades que comporta, mas também dos benefícios que os jovens tiram dela. Educar é uma arte difícil, mas insubstituível.
Outra, é a profissional; equipa-nos de conhecimentos e técnicas para realizar a missão educativa.
A terceira é a da fé ou “carismática”, que nos revela o valor de caridade que tem o nosso serviço educativo e as finalidades últimas para as quais tende.
Pois bem, quando educamos, o que cresce em nossa vida espiritual? O que devemos dominar e mortificar? Quais dimensões pessoais desenvolvemos?
O educador é chamado a contemplar o mistério de Deus que age na pessoa humana e a colocar-se ao seu serviço; algo semelhante àquilo que Maria fez com Jesus, até que a maturidade humana deste seu filho permitisse a expressão da consciência divina. Maria precisou acompanhar e sustentar esta humanidade com o alimento, o asseio, o afeto, o conselho, o ensino da língua e das tradições, sem saber com certeza o que Jesus haveria de revelar.
Há um diálogo secreto e misterioso no interior de cada pessoa. Um pouco por vez, ela assume a consciência de si, elabora um projeto de vida no qual aposta as próprias forças e põe em jogo as próprias possibilidades.
O seu futuro é uma incógnita. O educador é chamado a oferecer tudo aquilo que acredita ser oportuno e a respeitar a liberdade do sujeito neste diálogo, vivendo com esperança a incógnita do futuro. Dom Bosco, adaptando um dito da Sagrada Escritura conforme as traduções do tempo, fizera escrever nas paredes do Oratório uma frase que pode ser lida ainda hoje: “Não se pode conhecer a marca deixada pela serpente numa pedra, nem a estrada que uma criança tomará na vida”. No entanto, o educador interessa-se sinceramente pelo humano incerto. Nele, com efeito, em virtude do crescimento, Deus será acolhido e se manifestará com sempre maior evidência.
Talvez o religioso se pergunte: o que posso oferecer na educação, diferente do que um leigo oferece? Quanto aos serviços profissionais, nada. O consagrado ou consagrada faz e diz o que pode dizer e fazer um leito. Contudo, falando dessa forma, estamos reduzindo a educação a instrução, socialização ou preparação profissional.
Se, porém, entendermos a educação como florescimento de todas as possibilidades da pessoa e abertura aos horizontes mais vastos da experiência humana, então o religioso coloca nela todo o peso da sua opção radical. A sua proximidade pode dizer alguma coisa sobre os valores propostos pelo Evangelho.
“Num mundo tentado pelo ateísmo e pela idolatria do prazer, da posse e do poder, o nosso modo de viver testemunha, especialmente aos jovens, que Deus existe e o seu amor pode saciar uma vida; que a necessidade de amar, a ânsia de possuir e a liberdade de decidir da própria existência adquirem em Cristo Salvador o sentido supremo”.174
Ser educador requer profissionalismo e aplicação paciente à missão. A educação é um trabalho específico; para realiza-lo não basta a boa vontade. Como para as demais profissões há toda uma ciência e uma prática acumulada. Intervir por princípio de forma aproximativa ou improvisada é como fazer uma cirurgia no escuro ou com um instrumento inadequado. A história da psiquiatria está cheia de traumas sofridos durante o período educativo.
Hoje, mais do que nunca, a educação é complexa por muitos fatores: o jovem recebe muitos influxos e lhe é difícil fazer uma síntese deles, as agências educativas são muitas e quase sempre desarticuladas, as mensagens são heterogêneas. Por isso, a educação foi definida como “uma missão impossível”.
Ao educar se pede seriedade no próprio trabalho e vigilância mental. Ele deve tomar ciência de todas as correntes que influem sobre os jovens e ajudá-los a avaliar e escolher. E isso requer paciência e amor.
Enfim, há a capacidade de companhia e comunicação. Não basta saber, é preciso poder comunicar. Não basta comunicar, é preciso comunicar-se. Quem comunica uma noção, mas não se comunica ensina, mas não educa.
A comunicação, por outro lado, é impossível sem sair de si mesmos. É preciso amar o que comunicamos e aquele a quem comunicamos. Não é uma questão de usar os melhores instrumentos ou as melhores técnicas, mas de superar as lições “enlatadas” e os discursos “congelados”.
Autofalantes, televisores, vídeos [DVDs e CDs] servem certamente para a clareza conceituação. O ponto fundamental, porém, é crer o que se oferece, ser capaz de repensar à luz da experiência e cultura atuais o que constituiu a nossa riqueza para poder compartilhá-la com os jovens. Também isto obriga a um trabalho que é verdadeira ascese.
1. A caridade pastoral impele a evangelizar
A caridade pastoral é eminentemente ativa. Exprime-se sempre num serviço à comunidade cristã ou, mais em geral, à pessoa. Este serviço não é apenas um trabalho, um tempo que que deve ser salvo com a oração, uma espécie de degrado da vida espiritual. Na verdade, ele é ele uma experiência de Deus e um caminho de progresso na vida espiritual.
Nestes Institutos “pertence à própria natureza da vida religiosa a atividade apostólica e de beneficência, como o exercício do santo ministério e as obras de caridade próprias, que a Igreja lhes confiou e que eles devem exercer em seu nome”.175176177178179180181182183184185186187188189190191
Ainda não se dissipou na mentalidade comum a antiga oposição entre contemplação e atividade, Maria e Marta. Continua-se a pensar que a primeira consiste em ficar em oração ou a acumular energia, enquanto a segunda no gastar-se e quase distrair-se entre as coisas. É verdade que a contemplação tem o primado, mas é igualmente verdade que ela se coloca perfeitamente também no interior da ação e não é, portanto, oposta a ela.
As Constituições SDB e FMA dizem que os salesianos são evangelizadores dos jovens, especialmente os mais pobres, e do povo. E acrescentam que o Sistema Preventivo é o seu modo de viver e comunicar o Evangelho.192 Nisso, então, não só gastamos o tempo a servir o próximo, mas buscamos a nossa santificação.
Porque evangelizadores? É uma palavra que não se encontra no vocabulário de Dom Bosco e de Madre Mazzarello. Eles falavam de dar catecismo aos meninos e às meninas e de pregar ao povo. Evangelizar é um termo que prevalece hoje na linguagem eclesial pela situação que se está a viver, isto é, de distanciamento da fé cristã da parte da maioria e da difusa convicção de que se possa viver ignorando a fé.
Vejamos o seu sentido.
São Paulo, falando dos carismas como dons do Espírito para formar a comunidade cristã, enuncia cinco deles: apóstolos, profetas, evangelizadores, pastores, doutores.
Não eram os únicos nem perfeitamente distintos então, e muito menos o são hoje. Mas recordar como funcionavam e se eram coordenados ajuda-nos a entender o papel do evangelizador e o nosso de evangelizadores dos jovens.
O Apóstolo coloca os fundamentos da comunidade e a governa. Pela sua ligação com os primeiros doze, através da sucessão apostólica, garante a verdade da fé e a comunhão com a Igreja universal. Poderia não ser o mais ativo nem o mais eficiente dos evangelizadores. O seu carisma é o do fundamento e da comunhão. Não tanto pela ciência própria ou pelo próprio nível profético, mas objetivamente pela sua ligação com os onze. Assim, o cristianismo não se apresenta como uma doutrina religiosa em que prevalecem os doutores, mas como o acontecimento histórico de Jesus Cristo, cujo fundamento é dado por aqueles que são ligados historicamente aos apóstolos.
O profeta interpreta os desígnios de Deus para o momento atual da comunidade. Tem pouco a ver com predições do futuro. Todavia, lê os acontecimentos e percebe neles os sinais da ação de Deus na história.
O pastor guarda, cuida, anima e faz progredir a comunidade já constituída. A sua imagem é bem representada naquele que tem um rebanho, o conhece e o provê de pastagens e água; são dois símbolos que ainda falam claramente.
O doutor aprofunda a doutrina recebida. Extrai dela novos significados e ensinamentos e os confronta com a cultura do povo e dos sábios.
O evangelizador proclama o Evangelho àqueles ainda não o ouviram e aonde não foi suficientemente anunciado. Leva a Boa-Nova aproximando novos fiéis à comunidade. É um “missionário”, mas não necessariamente enviado para longe. Move-se na própria cidade ou no próprio ambiente, comunicando Jesus e convidando a participar da comunidade.
Sobressaem nos evangelizadores a iniciativa, o ímpeto, a capacidade de enfrentar situações novas, interpretar as expectativas dos que parecem distantes, entabular um diálogo com os indiferentes. Vão ao encontro do povo mais do que esperá-lo na igreja. Ser evangelizadores dos jovens é como ser “missionários dos jovens”, capazes de aproximar-se dos que estão distantes física, psicológica ou culturalmente.
A imagem do evangelizador nos Atos dos Apóstolos é o diácono Felipe. “Felipe percorria todas as cidades evangelizando” (At 8,40). Percorria as cidades, passava de uma aldeia a outra, de um grupo a outro. É um especialista do anúncio, podemos dizer, da provocação. Não se detém a consolidar a comunidade ou provê-la de estruturas materiais. O seu trabalho é o de um lavrador. Assim Jesus enviara os discípulos à sua frente para que preparassem a sua vinda.
Há, e deve haver, nas igrejas um justo equilíbrio entre cuidado pastoral e tensão evangelizadora; e o mesmo também nas Congregações e nos indivíduos.193
Igreja e evangelização hoje
Hoje, a Igreja está a viver um “tempo” de evangelização. As comunidades que são cuidadas tornam-se um grande sujeito de evangelização, caminham na direção dos outros. Por outro lado, se não o fizessem, iriam reduzindo-se sempre mais e, no final, ficaríamos “barricados”, como diz um autor, na última igreja”. O nosso tempo, portanto, é aquele no qual o primeiro lugar é dado à evangelização, ao anúncio, ao diálogo, à ultrapassagem da própria fronteira com a novidade que o sujeito é a Igreja inteira, não mais apenas alguns; os mais dotados são encarregados de mover a Igreja, motivar, acompanhar, impeli-la para frente. E isso em todos os lugares, mas com modalidade singular no mundo ocidental. O carisma do evangelizador parece preencher todos os outros e passar ao primeiro plano. A missão mais importante dos crentes hoje é anunciar o Evangelho e suscitar o desejo da fé. Por isso, falou-se de paróquia como comunidade missionária e também nós falamos das comunidades educativas como comunidades missionárias, dentro e fora.
A palavra “tempo”, em sentido histórico, indica também o conjunto de oportunidades, eventos, opções e desafios, que caracterizam um segmento da história humana; dizemos que estamos a viver um tempo de transformações, um tempo de violências, ou de tempos difíceis. Referimo-nos ao tempo de Dom Bosco e de João Paulo II. Os dias e os meses que se sucedem são caracterizados por um acontecimento, uma pessoa, uma preocupação. Não significa que não se verifiquem outros eventos favoráveis ou adversos, mas a atenção pessoal e comunitária é substancialmente dominada por um fenômeno vivido com intensidade particular, como fonte de angústias ou de alegrias, ponto para o qual convergem esforços e questionamentos. Tal fenômeno marca o passar dos dias. Neste sentido, dizemos que a Igreja está a viver um tempo de evangelização.
O anúncio do Evangelho, na verdade, sempre foi uma missão tão importante a ponto de ser identificada com a mesma missão da Igreja.194 Entretanto, na história da Igreja, há épocas em que emergem outras preocupações: a organização, a disciplina interna, a defesa da cristandade. Falamos do tempo das cruzadas, do tempo das grandes catedrais, do tempo da contrarreforma.
Contudo, há épocas nas quais todas as energias são voltadas a difundir o anúncio puro e simples do Evangelho e formar comunidades cristãs. Podemos voltar com a memória ao tempo pós-Concílio de Jerusalém. Os apóstolos se dispersaram para levar ao mundo de então o núcleo da mensagem. Procuraram ajudar especialmente os que se convertiam a viverem em conformidade com o Evangelho num ambiente heterogêneo.
Nosso tempo é semelhante àquele dos apóstolos. Começa com o Concílio Vaticano II, no qual a Igreja se coloca de forma positiva diante da modernidade, sem por isso deixar de ser sadiamente crítica. A condição de modernidade é considerada não contrária ou inimiga, mas como a massa em que a Igreja deve agir como fermento. No Espírito que a guia, ela intui o seu serviço insubstituível a ser oferecido nesta circunstância da humanidade.
Dez anos depois do Concílio, um Sínodo e o Papa Paulo VI apresentaram um documento pragmático, julgado o mais lúcido e determinante do fim de século, a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (1975). A ela unem-se reuniões e documentos de nível continental, entre os quais o documento do Episcopado Latino-Americano A evangelização no presente e no futuro da América Latina (1979).
O movimento consolida-se com a quarta Assembleia do Sínodo, que concentra a atenção sobre a evangelização dos jovens, da qual tem origem a Exortação Apostólica sobre a Catequese (1979). Enfim, na década dos anos 90 e nos umbrais do terceiro milênio, o Papa lança e relança a “nova evangelização”.
Tempo de evangelização
Desejando-se qualificar o nosso tempo com uma palavra, desejando definir os principais desafios, a solicitude que se manifesta com preponderância, a direção em que se concentram os recursos, o termo mais apropriado seria “evangelização”: “tempo de evangelização”. Prova disso são as Exortações de Paulo VI e o atual movimento da nova evangelização.
Mas porque este é um “tempo” no qual sobressai a urgência e também o dever da evangelização? Percebem-se em nosso tempo alguns fenômenos que desafiam a credibilidade do cristianismo.
Há, antes de tudo, amplos espaços geográficos abertos: a África é uma terra nova; a Ásia é um grande continente em que ainda não abrimos caminho diante das grandes religiões, há apenas uma pequena semente; a América e um grande continente batizado, mas que deve ser evangelizado; com uma grande religiosidade popular na qual ainda é preciso assumir as consequências morais e sociais do cristianismo. A mesma Europa é um continente que sempre mais percebe o seu afastamento progressivo dos referenciais cristãos e também das referências às Igrejas e às comunidades cristãs. São estes os sintomas que mais percebemos e que nos fazem reconhecer a urgência da evangelização.
Ao lado disto, há a busca de sentido para a vida, sentida por muitas pessoas depois do crepúsculo das utopias políticas e das explicações científicas. Pode o Evangelho dar este sentido? E é real e praticável, ou é idealístico e inútil? Emerge dos mesmos questionamentos que há uma nova exigência de sentido e de Evangelho.
Há também os problemas de consciência postos aos indivíduos e à sociedade sobre a vida, a morte, o amor, a família, a sexualidade. A moral cristã é adequada? A moral cristã é interpelada em vista de uma orientação, de um senso ético novo.
Há, ainda, a presença de diversas religiões e de muitas seitas, ao lado da cultura da indiferença. Há a fé necessária e há a fé cristã, a única verdadeira... ou a melhor?
Há, depois, os novos fenômenos, por exemplo, a promoção-libertação feminina, a situação juvenil, o empobrecimento irrefreável de muitas pessoas e muitos povos, que exigem atenção e iluminação evangélica. E há as realidades antigas (educação, cultura), que tomam distância do Evangelho, mas ao mesmo tempo deixam intensos questionamentos que exigem de novo a iluminação do Evangelho.
Por isso tudo, podemos dizer que estamos a viver um “tempo” de evangelização, com três aspectos:
Para a Igreja é uma oportunidade “histórica”; ela é intensamente desafiada, mas vai-se amadurecendo uma nova concepção de vida (pensemos na ética, na liberdade individual), uma nova forma de relações sociais e de gestão política, uma nova organização da educação. O que se perde hoje, pode estar definitivamente perdido. Será o Evangelho? O senso religioso? A fé? O que se semeia hoje pode tornar-se fruto maduro amanhã.
Toda iniciativa e presença se mede, agora, pela capacidade de evangelizar. A evangelização é a medida de todas as estruturas e comunidades. A evangelização é apenas meta, mas também caminho, não é um simples fim, mas meio; isto significa afirmar que hoje as iniciativas eclesiais devem ser avaliadas segundo a sua capacidade de testemunhar e anunciar o Evangelho. As associações eclesiais, quando examinam a própria validade, devem-se perguntar se ajudam os seus membros a viverem mais profundamente o Evangelho e se anunciam sem reduções ou mascaramentos a mensagem de Jesus, não dando por certo a própria caracterização religiosa ou cristã. Os santuários, as estruturas eclesiais, as instituições educativas, a vida religiosa etc., hoje, devem ser novamente planejadas, assumindo como critério a qualidade da sua evangelização. Sinais religiosos e gestos de culto de pouco servem se as pessoas não têm a chave para interpretá-los. Evangelizar, portanto, não é um aspecto particular da pastoral, mas o seu canal preferencial pelo qual flui tudo o mais.
O Espírito suscita carismas e concede graças específicas. São eles o gosto pela Palavra de Deus, que se manifesta nas comunidades cristãs, a atividade missionária jamais entendida assim como nos nossos tempos, o trabalho dos leigos, os movimentos espirituais e apostólicos surgidos nos últimos anos.
Nós vivemos este “tempo” entre os jovens. Percebemos o seu distanciamento da Igreja e, ao mesmo tempo, a sua busca de experiência religiosa subjetiva.
Vemos que o aspecto religioso é irrelevante em nossa cultura juvenil. A atenção dos jovens volta-se para a sobrevivência (trabalho) e a inserção numa sociedade que privilegia o imediato e o visível.
A comunicação com a comunidade eclesial é difícil para eles; depois da primeira catequese e, para um certo número, a preparação para a crisma, chega uma distância silenciosa. Por outro lado, o ambiente oferece as mais variadas mensagens e explicações da existência e de qualquer um de seus aspectos.
Isto nos leva a trabalharmos intensamente no plano da evangelização e a buscarmos a nossa experiência espiritual no comunicar o Evangelho, no acender o desejo do Evangelho e fazer entrever quanta luz, quanta sabedoria, quanta confiança provêm de Jesus.
2. A evangelização plasma a nossa espiritualidade
A nossa identidade de “evangelizadores” e o “tempo” que nos cabe viver impelem-nos a buscar a profundidade da nossa vida espiritual na paixão pelo Evangelho, e a cultivar, portanto, algumas atitudes que são características do evangelizador.
A paixão, o entusiasmo para comunicar o Evangelho como testemunhas mais do que como profissionais, nasce mais de uma experiência pessoal de Jesus Cristo do que do domínio dos conceitos e das técnicas. Foi este o caso dos apóstolos como João confessa a respeito de si mesmo: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e o que as mãos apalparam da Palavra da Vida... – vida esta que se manifestou, que nós vimos e testemunhamos, vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós –, isso que vimos e ouvimos, nos vos anunciamos, para que estejais em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho, Jesus Cristo. Nós vos escrevemos estas coisas para que a nossa alegria seja completa”.195
A paixão se manifesta, portanto, como alegria profunda na revelação, a quem estiver disposto, das riquezas do mistério de Cristo. Mais do que dar “aulas” de religião, trata-se de introduzir outros uma experiência que atrai e fascina, primeiramente a nós. Mais do que uma obrigação de ofício ou uma profissão, é uma inclinação incontida. São Paulo compara-a ao ato de “dar à luz”, produzido justamente com sofrimento sustentado por um impulso de paixão. Ao mesmo tempo, relaciona-a com uma responsabilidade vital da qual ele não poderia fugir, porque se refere a algo de muito precioso para aqueles aos quais se quer bem: “Ai de mim se não evangelizar!”.196
Paulo VI no-lo recorda com a costumeira eficácia numa página da Evangelii Nuntiadi: “Conservemos o fervor do espírito, portanto; conservemos a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! Que isto constitua para nós, como para João Batista, para Pedro e para Paulo, para os outros apóstolos e para uma multidão de admiráveis evangelizadores no decurso da história da Igreja, um impulso interior que ninguém nem nada possam extinguir. Que isto constitua, ainda, a grande alegria das nossas vidas consagradas. E que o mundo do nosso tempo que procura, ora na angústia, ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo, e são aqueles que aceitaram arriscar a sua própria vida para que o reino seja anunciado e a Igreja seja implantada no meio do mundo”.197
Esta experiência (conhecimento de Cristo e alegria de comunicar) leva a dar em nossa existência o primado ao núncio: “Somos todos e em qualquer ocasião educadores da fé”.198 Não necessariamente “pregadores”, catequistas ou professores de religião. Não há separação entre tarefas de evangelização e outras, entre trabalhos religiosos e profanos. Em qualquer lugar ou papel pode-se dizer uma palavra, fazer um gesto, iniciar uma relação que abra à fé.
Recordemos Dom Bosco numa viagem sentado ao lado do cocheiro; este, cansado, lança blasfêmias, e Dom Bosco, depois de lhe perguntar sobre os animais e outras coisas da sua vida leva o discurso ao seu passado religioso e sobre Deus, para concluir com a reconciliação.
Ao primado da evangelização no pensamento e no coração deve corresponder o primado na organização das atividades. É a dimensão fundamental das nossas obras, antes a finalidade delas.199
O primado deve aparecer na preocupação de cada pessoa, na distribuição do tempo, na inspiração dos temas, no emprego dos recursos. Talvez, isso signifique rever algum planejamento educativo em nível pessoal e comunitário.
Ainda um aspecto que pertence à espiritualidade.
Ao evangelizar, entramos mais profundamente no conhecimento de Cristo e, portanto, se cresce n’Ele. Cristo não vive principalmente nas coisas e nem mesmo nas coisas sagradas, e nem sequer nas proposições dogmáticas. Vive especialmente na mente e no coração das pessoas e na vitalidade da comunidade. Quando se entra nesta mente para dizer alguma coisa, mas também para realçar a sua reação, é ali que se vê o mistério de Cristo que trabalha no homem e nas comunidades. A evangelização é produzida na vida; tudo o mais são caminhos para entrar.
Paul Ricoeur, em um de seus livros, garante aos leitores que todos os temas que oferece foram antes expostos e discutidos com os alunos. Verificou, pois, que aquilo que disse é compreensível e sentido como real e que as palavras são adequadas. É a experiência de todos os que se comunicam. Percebem que muitas coisas são ditas sem senti-las interiormente, e são levados a remediá-las; outras, não as possuem suficientemente e devem aprofundá-las. Depois, porém, no esforço de exprimi-las descobrem novos significados e ouvindo seus interlocutores entreveem novas ressonâncias e aplicações. É a experiência daqueles que comentam o Evangelho nas comunidades eclesiais de base. São Gregório, porém, já o tinha advertido quando insistia: “Muitas coisas que não tinha entendido sozinho, percebi-as escutando o povo”. Evangelizar não é uma atividade em que nos consumimos, mas uma atividade em que nos enriquecemos espiritualmente e desde o ponto de vida da compreensão do mistério de Cristo.
Por outro lado, é o conselho dado por Paulo: “Quem é catequizado torne-se participante do que possui a quem o instrui”.200 Isso pode ser entendido quanto aos bens materiais, mas por que não dos espirituais?
3. Algumas atitudes e práticas do evangelizador
Todos os estudos e documentos detêm-se na apresentação das atitudes do atual evangelizador. De fato, ele pode ser ficar chocado com a irrelevância da fé num mundo desenvolvido, ou ter a impressão de que o anúncio não tem fundamentos convincentes num mundo dominado pela mentalidade científica, ou ainda que o seu esforço tem pouco rendimento pela impenetrabilidade dos ambientes nos quais os cristãos são minorias em diáspora.
A Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi201 ressalta as seguintes atitudes do evangelizador:
- entregar-se ao sopro do Espírito,
- ser testemunha autêntica,
- tornar-se artífice de unidade e servo da verdade,
- agir animado pelo amor e com o fervor dos santos.
Evidenciamos alguns deles que podem plasmar a espiritualidade salesiana.
Primeiramente, a relação pessoal com a Palavra de Deus. É preciso frequentar e aprofundar a Sagrada Escritura e principalmente o Evangelho. Ela contém a experiência de Deus feita pela humanidade e é ainda capaz de suscitar e iluminar essa experiência.
Surgiram hoje e praticam-se diversas formas de abordagem e meditação da Palavra; além do Ofício divino e da leitura litúrgica tornou-se comum a “Lectio” com os seus quatro momentos: leitura, compreensão e aprofundamento do texto, meditação pessoal, partilha.202
Antes de apalavra ser pronunciada deve tornar-se “fogo nas vísceras e mel nos lábios”.203
Nisto se faz de nosso modelo o próprio Jesus que apresenta, em seus discursos, a Escritura demonstrando sobre ela o seu conhecimento e estima; e se fazem também de modelo os grandes evangelizadores. Neles, a meditação da Palavra, retomada continuamente, tornar-se uma segunda natureza. Santo Agostinho conta que quando ia visitar o bispo Ambrósio encontrava-o com o livro da Escritura nas mãos, enquanto lia e meditava com os olhos fechados. Para nós, é indispensável ler e entender a mensagem, confrontando-a com as situações atuais e com os desafios vividos pelos jovens.
A questão fundamental é esta: quando não comunicamos o Evangelho é por falta de tempo, de função ou de meios, ou por que a Palavra ainda não nos impressionou como luz insólita, como sabedoria, como caminho aberto?
Em primeiro lugar, portanto, precisamos retomar contato profundo e vital com o Evangelho.
Uma segunda atitude é a confiança e serenidade diante do “tempo” que nos cabe viver e evangelizar.
Aceitá-lo e amá-lo (“Deus amou tanto o mundo”),204 sem ingenuidade, mas também sem um espírito negativo que insiste nos limites e não descobre e goza das enormes possibilidades. É certamente mais fácil anunciar o Evangelho num ambiente “confessional” ou simples, onde a resposta é numericamente abundante. Mas não é dito que seja mais útil ou mais cheio de consequências para o futuro do que o anunciar num contexto menos predisposto.
“Jesus desceu a Cafarnaum”.205 Nesta indicação, o Card. Martini vê o movimento de Cristo para os lugares da vida secular, que não têm referências religiosas. Oposta a Nazaré e Caná, cidades rurais, Cafarnaum representa o ambiente urbano. Comparada a Jerusalém, lugar do templo, Cafarnaum é a cidade das guarnições militares, do comércio, da administração, do poder político. Ali Jesus realizou o seu ministério com pregações ao ar livre, entradas nas casas (por exemplo, a de Pedro), encontros com doentes e endemoninhados, além de discursos na sinagoga.
Há em todo desafio atual uma oportunidade nova para o Evangelho. “Completou-se o tempo para nós”. Este é o tempo que Deus nos oferece, aquele que nós devemos fermentar e transformar. Inútil e danoso é pensar num outro melhor no passado ou no futuro. “Viver em desacordo permanente ou insatisfeito com a realidade e a cultura em que vivemos imersos leva à amargura e à falta de paz interior. O que impede a realização de um projeto pessoal e contamina as fontes de onde nasce o nosso viver cotidiano”.206
De fato, a evangelização de alguns grupos e fenômenos parece-nos lenta. Esperar pode ser um sinal de saúde psíquica e um exercício não fácil de fé.
A terceira atitude é o senso da semeadura.
O reino, o bem, a Palavra de Deus são sempre comparados a coisas pequenas que têm uma energia interna: o fermento, a semente. Chama a atenção a ausência absoluta de realidades materiais grandiosas como termo de comparação ou explicação da evangelização. A tarefa dos agentes consiste em inserir estes elementos pequenos e fecundos no próprio ambiente, como uma injeção. Depois, lê-se no Evangelho de Marcos, “durma ou vigie (aquele que lançou a semente), dia e noite, a semente brota e cresce; como, ele mesmo não o sabe. Pois a terra produz espontaneamente, antes a haste, depois a espiga, depois o grão cheio na espiga”.207
A nós, cabe lançar a semente sem avareza, considerando mais aquela que brota do que aquela que se perde em tempo e palavras. Também na natureza há grande desperdício. De muitas sementes apenas algumas vencem as dificuldades de nascimento tornando-se plantas. Mas são estas que garantem a espécie e a vida.
Enfim, a espiritualidade do evangelizador exige que ele qualifique o próprio serviço.
Trata-se de uma profissão semelhante a outras. É preciso conhecimento da matéria e prática da comunicação. A qualificação refere-se a todos os serviços de evangelização: da homilia à catequese das crianças, passando pela capacidade de oferecer aos jovens uma mensagem ou uma oportunidade de meditação, como, por exemplo, os retiros.
Dizia um político: “Só a Igreja pode ter em todos os domingos uma audiência como aquela que se reúne para as missas. Quanto todos os padres pregam bem num domingo, na minha cidade (uma cidade média) sente-se o seu influxo”. As possibilidades que temos em conjunto são enormes. Às vezes, elas são desperdiçadas pela improvisação ou pela nossa falta de profundidade em assumir e anunciar a Palavra.
É impossível traçar a fisionomia da nossa e de qualquer outra espiritualidade apostólica sem nos referirmos aos sacramentos.
Na pastoral, tudo é sacramento. A pastoral, de fato, refere-se a uma realidade invisível que se só se pode perceber através de sinais.
A existência consagrada é, para nós e para o mundo, um “sinal”, um sacramento. Procuramos testemunhar uma realidade invisível mediante algumas opções e formas de vida.
Além disso, como educadores, contamos com uma dimensão muito profunda da pessoa, que Dom Bosco chamou “religião”. Isto é, a consciência da presença de Deus na própria vida. Somos, pois, como que imersos numa atmosfera sacramental.
O tempo permite-nos meditar somente sobre um dos sacramentos: a Penitência. Ela nos diz respeito de perto em dois sentidos.
Como pessoas “consagradas”: ao redor da penitência recolhe-se um feixe de temas, fundamentais para a vida no Espírito, sem os quais o Evangelho não é nem mesmo pensável: a conversão, o sentido do pecado, a reconciliação, a mortificação, a compunção (dor pela ofensa de Deus), o “tomar a cruz”.
Como educadores: a reconciliação está relacionada com muitos aspectos do amadurecimento cristão dos jovens, mas principalmente a um deles que é crucial: a formação da consciência.208209210211212213214215216217218219220221 Desta formação dependem a conversação e o desenvolvimento da fé. A fé encontra confirmação e estímulo numa consciência iluminada e reta enquanto se bloqueia, desaparece ou fica marginalizada em relação à vida, quando não se age em conformidade com ela.
Os dois aspectos devem ser estreitamente unidos por nós: se educar e evangelizar não é aulas, mas comunicar uma experiência de vida, apenas termos feito nós mesmos uma experiência de reconciliação, nos poderá tornar capazes de introduzir os jovens neste aspecto fundamental da vida cristã.
Esta relação é expressa num belo texto de São Paulo referido à Igreja: “Portanto, se alguém está em Cristo, é uma criatura nova; as coisas antigas passaram, eis que surgem outras novas. Tudo isto, porém, vem de Deus que nos reconciliou consigo mediante Cristo e confiou a nós o ministério da reconciliação. Foi Deus, com efeito que reconciliou o mundo consigo em Cristo não imputando aos homens as suas culpas e confiando a nós a palavra da reconciliação... Suplicamos-vos em nome de Cristo: deixai-vos reconciliar com Deus”.222
Estas duas realidades devem estar unidas: experiência pessoal e serviço de reconciliação.
A nossa reflexão privilegia quatro aspectos:
- ser educadores-evangelizadores realistas;
- ser pessoas reconciliadas com Deus e com a vida;
- ser penitentes... com simplicidade e alegria;
- ser educadores e ministros da reconciliação.
1. Educadores com o sentido da realidade
Ter o sentido da realidade significa reconhecer a presença e as dimensões do mal, saber que existes fatos que colocam a vida em perigo e que no mundo também se deve resistir.
A maturidade de julgamento consiste justamente em perceber as possibilidades oferecidas pela vida e os riscos correspondentes que a ameaçam. Colher apenas uma destas dimensões é distorção visual e, no fundo, infantilismo.
Todo bem tem o seu contrário que se lhe opõe no mais profundo de nós e no mundo que nos está ao redor: amor e ódio, empenho e indiferença, retidão e deslealdade... no fundo luz e trevas, vida e morte.
Militância, drama, luta é a vida do home sobre a terra. Nada é mais imatura do que eliminar a consciência de uma possível falência. Na pedagogia de Dom Bosco “os novíssimos”, “as máximas eternas” referiam-se a esta condição “de risco” da pessoa humana.
Nos documentos da Igreja são acrescentadas as grandes consequências do mal: a violação da dignidade humana, a discriminação racial, social, religiosa, a prepotência do poder político e econômico, a violência e as agressões bélicas, o abuso dos pobres, a distribuição injusta da riqueza, a corrupção na administração dos bens comuns.
Descobrimos efeitos semelhantes nos jovens: o mal (evasões, libertinagem, falta de compromisso) destrói as suas melhores energias. Assim, a existência se consuma no efêmero; a vitalidade é aplicada às coisas sem valor, e muitos acabam na alienação e no desespero.
Viver conscientes do poder destrutivo do mal é ter o senso do pecado.
Foi dito que “o maior limite do nosso tempo é ter perdido o senso do pecado” (Pio XII). E, consequentemente, “restabelecer o adequado sendo do pecado é a primeira forma de enfrentar a grave crise espiritual que paira sobre o homem do nosso tempo”.223
Deve-se afirmar que a formação da consciência e do senso do pecado não será obtida com uma pregação que simplesmente denuncia e culpa, mas com uma educação à fé mais atenta à dimensão ética.
De fato, formar para o senso do pecado comporta:
- perceber o “mal moral” como destrutivo da pessoa e das relações, quaisquer que sejam as vantagens imediatas que traga: por que é mal?... a vida como responsabilidade e missão e não apenas como prazer e direito;
- individuar o mal: o que é ruim... onde está o limite entre o bem e o mal: libertação, subjetivação, relativização;
- colocá-lo em relação com a liberdade e a responsabilidade pessoal: tendência a diminuir a responsabilidade pessoal ou a colocar o mal como algo exterior à pessoa;
- perceber a referência à vontade e ao amor de Deus: dificuldade de pensar na transcendência.
Com efeito, o ambiente e a cultura em que somos imersos, levam-nos, quase sem que o percebamos, a sentir menos a presença do mal e, portanto, a diminuir a vigilância. Vê-se de tudo e ninguém dá muita importância. Estamos como que habituados ao fato de alguém escolher a própria moral desde que não viole as normas da convivência e os direitos alheios. Pode acontecer que nem os religiosos se impressionem com os comportamentos deformados e pouco se interessem por uma austera orientação moral.
As causas são muitas.
O juízo ético corrente é fundado frequentemente em razões imediatas: o parecer da maioria que aparece nas estatísticas, as vantagens, a situação pessoal.
O senso de Deus é frágil. A sua imagem foi quase cancelada na consciência pessoal e social. O que torna difícil pensar que as nossas ações tenham a ver com a sua vontade. Procuramos não nos desencontrarmos com os vizinhos e a não ofender os que estão ao nosso redor. Os personagens invisíveis ou distantes não determinam os nossos comportamentos.
A análise das culturas fez perceber o quanto dependem delas muitas normas que se tinham como absolutas: o senso do pudor, o respeito da autoridade, certa forma de matrimônio, a expressão da sexualidade. Elas foram relativizadas julgando-as mutáveis e não obrigatórias.
O estudo dos comportamentos humanos atribui “os sentimentos de culpa” ao tipo de personalidade, à educação familiar, ao ambiente social. Sublinham-se mais os condicionamentos e a urgência de livrar-se deles do que a responsabilidade da pessoa.
Foi-se criando uma separação entre moral “privada” e moral “pública”. Isso não ajuda a sustentar critérios morais. Muitas coisas já são deixadas às opções individuais: aborto, eutanásia, divórcio, homossexualidade, fecundação. Sobre tudo isso, em âmbito social e também educativo, há uma sensibilização, mas referidos apenas aos riscos e às vantagens; não oferece um fundamento ético sólido, muito menos com referimento transcendente.
Isso tudo influi sobre os jovens como uma nuvem tóxica. Não se deve admirar que surja neles um conjunto de sintomas e reflexos da cultura que respiram. A sua formação moral é fragmentada. Parece mais uma roupa de Arlequim do que um quadro pintado racionalmente.
Assumem, de fato, critérios e normas de diversas fontes: da família e da escola, das revistas e da TV, dos amigos, da reflexão pessoal. A opção é ditada por preferência subjetivas.
Fala-se de sensibilidade dos jovens a novos valores. Mas é difícil conseguir entender até que ponto isso constitui um empenho ou apenas um entretenimento de breve termo, uma forma de conviver e estimular-se.
Pontos centrais da sensibilidade moral atual são: a pessoa como valor determinante e quase absoluto; a consciência pessoal como norma última; a situação em que se encontra como fator importante da valoração moral.
Ao mesmo tempo o ambiente influi sobre os adultos, religiosos e educadores, se a leitura atenta da Palavra de Deus e o discernimento não os mantiver vigilantes. Pode-se atenuar a sensibilidade. Passamos, então, como que a seguir a lei do pêndulo, de uma mentalidade anterior severa e que culpabilizante a outra de marca oposta, “alegre” e “qualunquista”, do ter visto o pecado em tudo a não o ver mais em nada e em ninguém; do ter insistido nos castigos merecidos pelo pecado a apresentar o amor de Deus sem responsabilidade da parte do homem: a sua sorte seria “a mesma”, qualquer resposta que seja dada ao seu Senhor; da severidade no corrigir a consciência errônea ao respeito que não se preocupa nem mesmo em formá-la; dos dez mandamentos aprendidos de memória a não mais ensinar uma moral cristã coerente.
Ser “cristãos adultos”, “verdadeiros educadores da fé”, evangelizadores realistas, significa então:
- não desconhecer ou dissimular e nem mesmo exagerar a presença do mal na vida privada e social, e viver conscientes das suas capacidades destrutivas;
- saber individualizar o mal nas suas raízes, iluminados pela Palavra de Deus, para levar aí a regeneração;
- saber que Cristo venceu, que a nossa incorporação à sua morte e ressurreição nos indica, para superar também nós, o seu mesmo caminho: resistência, vigilância, luta intelectual, moral, espiritual.
2. Profundamente reconciliados
São tais as pessoas que se questionam e se deixam questionar com serenidade, que não fecham os olhos sobre as próprias atitudes e comportamentos, que perdoam com alegria e sentem que devem ser perdoados, que fazem experiência da paz com Deus, consigo mesmos, com os irmãos. Livram-se assim do mal mediante o reconhecimento da presença de Deus na própria pobreza e o esforço de orientar a vida para Ele.
Em que consiste esta experiência no-lo diz São Paulo num texto sobre o qual podemos nos deter: “Justificados, portanto, pela fé, estamos em paz com Deus por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo... Se, quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte do seu Filho, quanto mais agora, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida. Ainda mais: nós nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo. É por ele que, já desde o tempo presente, recebemos a reconciliação”.224
O texto fala de paz, salvação, alegria e vida. Aproximado a muitos outros que encontramos na Sagrada Escritura, presta-se a muitos comentários. Escolhemos alguns deles
A reconciliação é uma iniciativa e um dom de Deus
No Evangelho, não é a pessoa, homem ou mulher, que pede ou deseja o perdão, mas é Jesus que o oferece.
O caminho de reconciliação jamais começa com a acusação das culpas, mas com o sentir-se “pessoas” reconhecidas, numa nova e inesperada relação que ilumina a vida e faz ver a sua deformidade. E, dessa foram, Zaqueu descobre o seu pecado. É Jesus que olha para Zaqueu e se convida à sua casa. É Jesus que vem em defesa da adúltera. É Jesus que olha para Pedro, já esquecido da sua infidelidade.
Na origem do desejo de reconciliação sempre há o impacto da palavra ou da pessoa que desperta a nossa letargia numa existência depauperada e nos convida a superar-nos.
É preciso ir além da mentalidade que considera as nossas infrações aos mandamentos ou a não realização dos propósitos como o elemento principal da reconciliação. Contudo, é necessário colocar-se diante das próprias relações com Deus: se Ele conta muito para nós, se esperamos muito d’Ele, se nos interessa muito não o perder. Tenho na mente a imagem dos casais. Quanto há uma relação de amor vive-se contente de reconhecer as próprias pequenas transgressões e reconhecer a generosidade do companheiro; vive-se sempre dispostos a compor as grandes diferenças. Quando a relação de estima, amor e expectativas recíprocas é consumada, torna-se desgostoso e pesado desculpar-se das coisas pequenas. Só a presença ou o pensamento do outro tornam-se cansativos e insuportáveis.
A coisa mais importante para nós, então, no que se refere à nossa pessoa e atividade pastoral é reconhecer, apreciar e proclamar a misericórdia de Deus, e concentrar a atenção n’Ele, Pai de Jesus e nosso: é este o tema central a história da salvação. A misericórdia de Deus recompõe a história que, de modo diverso, se desfaz, e restabelece continuamente a aliança que a nossa fragilidade e esquecimento descuida.
O amor a Deus não provém da nossa perfeição ética, mas está na sua origem. É dom do Espírito. Não amamos a Deus porque somos bons, mas ao contrário.
Deus opera em nós dando-nos o Espírito
Aquilo que Deus opera em nós não é simplesmente nem principalmente a eliminação da culpa e da pena, que a nossa inteligência humana considera justas. Mas nos dá o Espírito, cria em nós uma nova realidade, abre-nos um novo horizonte, dá-nos um coração novo.
Ele não nos faz voltar àquilo que éramos antes. Que interesse poderia ter para ele e para nós refazer-nos como éramos antes de algum dos nossos arrependimentos? Ele, na verdade, nos recria como seus filhos!
O admirável é que assim como as nossas más ações nos levariam a um futuro de perdição, Deus com a reconciliação não nos traz de volta ao ponto de partida, mas nos coloca numa nova intimidade de aliança com Ele. É preciso meditar novamente a cena do retorno do filho pródigo.
A reconciliação não é, pois, o sacramento do passado da pessoa, como se fosse um véu colocado sobre as suas escapadinhas ou sua vontade de deleitar-se. Mas é o sacramento do seu “futuro”, das novas possibilidades, do espírito novo, do seu projeto de futuro.
Nós somos levados a dar graças
A reconciliação difunde-se através da graça recebida em todos os aspectos da vida: compõe as tensões que agente no interior da pessoa, dispõe à acolhida mais tranquila de Deus na vida, abre à tolerância e educa ao perdão. Zaqueu, depois de se ter reconciliado está disposto a restituir mais do que havia roubado.
Por isso, a experiência da reconciliação no Evangelho é sempre de alegria e plenitude. Há festa excessiva, com escândalo das pessoas “boas”. Há derramamento de perfumes custosos com protestos dos poupadores. Há desperdício de alimentos e convites gerais com o lamento da gente séria...
O seu contexto é sempre de louvor e de ação de graças. Segue-se nisso o que os salmos cantam repetidamente: “Celebrai o Senhor porque é bom; porque eterna é a sua misericórdia”.225 “Bendize o Senhor, ó minha alma... Ele perdoa todas as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades”.226
A Palavra de Deus exprime, de fato, a realidade da reconciliação com uma sinfonia de metáforas e analogias: graça, nova criação, regeneração, justificação, libertação. Uma não nega nem se opõe à outra: cada uma delas mostra um aspecto parcial do que a pessoa sente. Na verdade, não são definições científicas, nem descrições de estados psicológicos, mas um esforço de comunicar o que acontece na pessoa quando descobre que tem valor para Deus e é por Ele amada.
A grande mediação é Cristo
A grande mediação e instrumento de reconciliação foi e é a humanidade de Cristo. Ela abateu todos os muros e distâncias entre Deus e os homens. Com ela, a comunicação de Deus conosco chegou aos máximos níveis possíveis. Suponho que ouvindo esta expressão, muitos pensaram que se trate de uma afirmação teológica, isto é, verdadeira, mas não prática. Entretanto, ela tem aplicações extremamente concretas em nossa praxe e em nossa vida.
Dificilmente se chega ao desejo de reconciliação sem a experiência humana da acolhida e do afeto. A mediação da comunidade fraterna é indispensável. A praxe pastoral do Bom Pastor sugere, portanto, apresentar em primeiro lugar consideração, estima e escuta das pessoas. É este o caminho que leva a reexaminar a própria vida e ao desejo de mudança.
3. Penitentes
Distinguimos, acertadamente, entre penitência-sacramento, ação salvífica de Deus através da mediação da Igreja, e penitência-virtude, isto é, a atitude interior de conversão, o esforço ascético de domínio, expiação e mudança que se prolonga na vida e se pratica todos os dias.
Entre as duas deve haver um nexo se não se quiser fazer do sacramento um gesto “sacro e quase mágico” ou da vida um puro esforço voluntarístico sem referências a Deus e à sua graça.
A praxe antiga da Igreja tinha uma regra: rigor no sacramento que se oferecia poucas vezes, ou melhor, uma única vez, e muitas oportunidades de penitência também pública na vida. O perigo, hoje, é de sinal contrário: que nos habituemos ao sacramento porque não há limites para o seu “uso” e esquecemos de levar uma vida “penitente”
Ora, a dimensão penitencial é essencial ao amadurecimento cristão. Sem ela é impossível tanto o início que o seguinte caminho de conversão; esta consiste em assumir alguma coisa e deixar muitas outras, optar e cortar, destruir coisas ou hábitos antigos ou inúteis e deixar-se reconstruir. Neste sentido falam-nos as histórias de Abraão e dos apóstolos.
A penitência-conversão é a mensagem inicial, o exemplo principal e a recomendação constante de Jesus: “Convertei-vos e fazei penitência,227 “quem quiser vir após mim, tome a cruz”.228 Por isso, ela será assumida na Igreja, de forma pública, por pessoas e grupos, como carisma especial. A sua função será tornar “radical” a imitação de Jesus neste aspecto e recordá-la a todo o povo de Deus.
A espiritualidade salesiana incorpora este aspecto, segundo a própria vocação e estilo, e propõe itinerários de penitência.
O trabalho
Não a simples ocupação do tempo em qualquer atividade que seja, mas a dedicação à missão com todas as capacidades e com dedicação exclusiva. Neste sentido, não compreende apenas o trabalho manual, mas também o intelectual e apostólico. Trabalha quem escreve, quem confessa, quem prega, quem estuda.
A relevância que o trabalho tem em nossa vida é percebida facilmente por dois fatos: a sua menção no brasão e as últimas palavras de Dom Bosco: “Recomendo-vos: trabalho, trabalho, trabalho!”.229 Mas também um forte valor simbólico; o trabalho é manifestação da nossa pobreza, é um aspecto da classe simples à qual dedicamos os nossos cuidados preferenciais, é o conteúdo principal dos nossos projetos de educação nas escolas profissionais e técnicas, é a característica de uma das figuras dos sócios, o coadjutor; é a nossa forma de inserção na sociedade e na cultura.
O quanto de penitência isso comporte é visto quando se pensa na preparação e atualização profissional exigida, nos gostos pessoais que é preciso controlar, na suportação, nas fadigas.
Por baixo dela está uma motivação espiritual: o salesiano sabe que com o seu trabalho “participa na ação criadora de Deus e coopera com Cristo na construção do Reino”.230
A temperança
É a virtude cardeal que modera as tendências, as palavras e os atos segundo a razão e as exigências da vida cristã. Ao seu redor movem-se a continência, a humildade, a sobriedade, a simplicidade, a austeridade. No Sistema Preventivo, as mesmas realidades são incluídas na racionalidade. As suas manifestações na vida cotidiana são: o equilíbrio, isto é, a medida em tudo, uma conveniente disciplina, a capacidade de colaboração, a calma interior e exterior, a relação serena e qualificada com todos, mas especialmente com os jovens.
Temperança é, sobretudo, “estado atlético” permanente para qualquer exigência em favor dos jovens; ser e manter-se livres de ligações muito condicionantes, do peso dos gostos e exigências pessoais que criam dependência.
O amor fraterno
O amor fraterno231 implica domínio de si, esforço de atenção, controle dos sentimentos espontâneos, superação de conflitos, compreensão dos sofrimentos alheios. É um exercício que faz sair de si mesmo e mudar a própria orientação, com o esforço de demonstrá-lo de forma compreensível.
Isso tudo parece muito inconsistente e quase festivo diante da seriedade da penitência e conversão. Dom Bosco exprimiu essa aparente contradição com o sonho do caramanchão de rosas.232 Os salesianos caminham sobre as pétalas. Todos creem que são “foliões”. Atormentados pelos espinhos, não perdem a alegria. Também isso é ascese: a simplicidade, o rosto alegre, o não fazer cena. Responde ao conselho evangélico: “Quando jejuardes, não assumi um aspecto melancólico... mas perfumai a vossa cabeça e elevai o semblante”.233
4. Educadores e ministros da penitência
Ouvimos dizer muitas vezes que, segundo Dom Bosco, a Reconciliação e a Eucaristia são os pilares da educação. Talvez não nos detivemos a meditar o significado completo desta afirmação. Tomamo-lo como a sugestão de manter práticas religiosas mais do que como a recomendação de uma experiência educativa múltipla e complexa.
Encontramos, certamente, na vida de Dom Bosco expressões que mostram a importância que ele atribuía ao sacramento. Nas três biografias exemplares (Domingos Sávio, Miguel Magone, Francisco Besucco) há um capítulo que fala da confissão. Na de Domingos Sávio, que é a primeira em ordem de tempo, o capítulo trata dos dois sacramentos, penitência e eucaristia. Na de Miguel Magone, porém, há dois capítulos, o quarto e o quinto, dedicados apenas à confissão. Sob forma biográfica, Dom Bosco propõe uma pedagogia para ajudar o jovem a superar as próprias tendências mais baixas, crescer em humanidade e orientar-se para Deus mediante a penitência.
Um estudioso de Dom Bosco, o Padre Alberto Caviglia, acredita que o capítulo quinto desta biografia seja um dos escritos pedagógicos mais importantes de Dom Bosco, um documento insigne da sua orientação espiritual.
Há, também, uma fotografia, muito difusa ainda durante a vida de Dom Bosco e que fez o giro do mundo depois da sua morte. Nela, Dom Bosco posa enquanto confessa os jovens. O menino Paulo Albera apoia a cabeça na de Dom Bosco, como para fazer a confissão dos pecados, enquanto muito jovens ao redor do genuflexório esperam a sua vez.
Esta fotografia não é casual. Foi desejada e preparada por Dom Bosco com a intenção de difundi-la. Trata-se de um pôster, um cartaz, uma mensagem. Entendia exprimir, com uma imagem, o que dissera e escrevera com as palavras: “Está comprovado pela experiência que os mais válidos apoios da juventude são os sacramentos da confissão e da comunhão. Dai-me um jovenzinho que frequente estes sacramentos, e vós o vereis crescer na juventude, chegar à idade viril e chegar, se assim agradar a Deus, à mais elevada velhice com uma conduta que é exemplo de todos os que o conhecem. Os jovenzinhos devem entender esta máxima para praticá-la; compreendam-na também os que se ocupam da sua educação para insinuá-la”.234
O mais original nele, porém, não é a insistência sobre o aproximar-se do sacramento, mas o ter sabido criar um ambiente educativo de reconciliação, no qual havia uma continuidade entre experiência de vida e momento sacramental. No Oratório, o jovem sentia-se acolhido e estimado, num ambiente de família e confiança, estimulado à comunicação e convidado a progredir, com relações que o convidavam a examinar-se. Isso era uma autêntica antecâmara a reconciliação. Esta era vivida antes de forma humana e imediata. Não poucas vezes, os jovens passavam da conversação amigável no pátio com Dom Bosco ao ato penitencial.
A reconciliação, especialmente a extraordinária, era envolvida num clima festivo, segundo o estilo evangélico: acompanhavam e envolviam o perdão obtido a celebração eucarística, à qual se seguia algo “especial” à mesa, o tempo de diversão, a manifestação musical e artística. Os jovens podiam contar com todas as condições favoráveis: tempo, local, pessoas, convites.
Justamente neste contexto se multiplicavam os salesianos confessores de jovens que tiveram tanto influxo nos resultados vocacionais masculinos e femininos.
Hoje, vivemos um tríplice fenômeno: o primeiro é o abandono por parte da maioria, o segundo é o uso rápido da parte de certo número, o terceiro, positivo, é o pedido até mesmo de direção espiritual da parte de um grupo, pequeno no número, mas em busca de qualidade espiritual.
A resposta a esta demanda diversificada consiste em repercorrer o caminho educativo com a maioria, estar à disposição do segundo grupo para apoiar o seu esforço ainda imperfeito, e ser capazes também de orientar os poucos que pedem uma assistência mais cuidadosa.
A expressão madura da caridade pastoral: a paternidade
1. Sacerdote educador
Contemplamos a imagem completa de Dom Bosco. Vejamo-lo, agora, “em ação”: desenvolvendo um projeto, governando uma comunidade.
Há dois aspectos-mestres, duas fisionomias maiores que permanecem em todas as imagens que formamos dele.
Uma é a vocação sacerdotal: o coração e o ministério sacerdotal; a outra é a genialidade educativa, o ser predisposto para os jovens, a facilidade de compreendê-los e trata-los. Representa-o bem a iconografia mais difundida: um padre rodeado de jovens, que se volta afetuosamente para eles, que os tem pelas mãos e os escuta. Se algo disso fosse cancelado ou tão somente enfraquecido, a sua figura seria atraiçoada.
A originalidade educativa teve mais sorte na história; ela foi, desde o início, mais amplamente apresentada e comentada fazendo, em alguns casos, que fosse esquecida e deixada à sombra a outra dimensão: a sacerdotal. Foi privilegiado também nas celebrações centenárias. Repassando os títulos das conferências, das biografias e dos estudos monográficos completos ou setoriais, percebe-se que o tema de “Dom Bosco educador” é retomado com maior frequência: Dom Bosco e as escolas profissionais, Dom Bosco e o tempo livre, Dom Bosco e a cultura popular, Dom Bosco e a promoção da juventude marginalizada e pobre.
Quem dirigiu o olhar de forma particularmente intensa a “Dom Bosco sacerdote”, no ano centenário [do nascimento] foi o cardeal de Turim, Ballestrero. Ele centrou os exercícios espirituais aos inspetores da Itália sobre o tema “Um padre para os jovens”, sublinhando justamente “um padre”. Depois, dirigiu ao seu clero uma carta pastoral com o título “São João Bosco, sacerdote de Cristo e da Igreja”. E, também na homilia da Missa de abertura do centenário, referiu à inspiração sacerdotal todo o trabalho educativo de Dom Bosco.
A “Dom Bosco sacerdote”, os biógrafos dedicaram quase sempre algum capítulo. Padre Auffray, por exemplo, em seu livro intitulado “Dom Bosco Educador” constrói um capítulo ao redor da sua figura de sacerdote, mas para mostra-lo logo como educador genial entre os jovens. Padre Ceria, no livro “Dom Bosco com Deus” detém-se sobre Dom Bosco confessor, pregador e, no final, desenvolve o capítulo “Gemma sacerdotum” (pérola dos sacerdotes), mas se concentra nos aspectos ministeriais: pregação, confissão, celebração da Eucaristia.
São, porém, escassos os estudos completos e orgânicos sobre “Dom Bosco sacerdote”, que reúnam à graça sacerdotal, a sua capacidade educativa e outros aspectos da sua personalidade e obra, como a fundação da Congregação e de outras associações eclesiais.
Isto talvez se dê porque a opção e modalidade educativas foram, desde o tempo de Dom Bosco, uma expressão não usual do sacerdócio e no sacerdócio. Bons sacerdotes haviam muitos; mas, sacerdotes amigos dos meninos de rua, capazes de conviver com os jovens pobres e preparar programas de recuperação e crescimento adequados à condição deles, eram poucos. Acontece ainda hoje que não se fale dos bons padres normais e se fale e sejam referidos os que têm um apostolado especial. O fato se deve também aos salesianos e a outros admiradores de Dom Bosco que quiseram apresentá-lo de forma simpática a atraente, não só nos ambientes crentes, mas também ao mundo, sensibilidade esta que vem do próprio Dom Bosco, que como se recorda, redigiu uma versão “secular” do Sistema Preventivo.
Quanto ao sacerdócio, é preciso colocar em primeiro plano na reflexão a consistência da sua identidade sacerdotal, ou seja, a medida, a profundidade com que Dom Bosco se tinha consubstanciado com esta sua condição até não se sentir, não querer ser e não ser na realidade nada mais do que sacerdote; e, como consequência, buscar a própria realização como homem e como discípulo de Cristo desenvolvendo a graça sacerdotal.
Há um dado que é de pura observação: o padre nele emergia sobre todos os aspectos da pessoa e os preenchia. No-lo recorda João Paulo II na Juvenum Patris quando diz: “Dom Bosco foi, antes de tudo e sobretudo um verdadeiro padre. A nota dominante da sua vida e da sua missão foi o fortíssimo sentido da própria identidade sacerdotal: padre católico segundo o coração de Deus”.
Estas palavras são um comentário às de Dom Bosco, familiares a nós salesianos, que vale porém recordar e ouvir novamente: “Dom Bosco é padre no altar, padre no confessionário, padre entre os seus jovens; como é padre em Turim, assim também o e em Florença, padre na casa do pobre, padre no palácio do Reio e dos ministros”.235236237238239240241 Não pensava que o devesse fazer esquecer ou esconder ou colocar em segundo plano quando tratava de negócios seculares ou se apresentava em ambientes “mundanos”; antes, o sacerdócio devia dar razão a quanto fazia e como o fazia e ser um sinal do Evangelho e da Igreja.
Este dado biográfico foi considerado por todos como o primeiro e o mais importante para interpretar Dom Bosco. Padre Albera resumia-o na expressão: “Padre sempre e a todo instante”. E o Padre Brocardo afirma: “Não é possível pensa-lo se não como sacerdote”.242
Devemos recordá-lo por duas razões.
A primeira é de atualidade eclesial. O Sínodo [1992] sobre A formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais viu-se diante de dois possíveis eixos de discussão: um acentuava “as atuais condições em que se deve exprimir o sacerdócio” dando como certa a aceitação da assim chamada doutrina do ministério para deter-se nas dificuldades e nas situações em que o sacerdote deve viver; o outro, privilegiava o aprofundamento “da identidade do sacerdote”, qual ideia ou imagem de sacerdotes a interiorizar conforma à Palavra de Deus e à tradição da Igreja. O Sínodo e a correspondente Exortação Apostólica Pastores dabo vobis escolheram o segundo. O risco maior não estaria na falta de adequação dos sacerdotes a algumas particularidades de hoje, mas em não conseguir assumir, interiorizar e identificar-se totalmente com o que a tradição eclesial e a Palavra de Deus oferecem sobre o padre.
A segunda razão pela qual meditar sobre este aspecto é urgente, porque nós educadores (coordenadores de escola, animadores esportivos e diretores de oratórios) trabalhamos em cargos seculares e pode ser difícil exprimir a cada momento esta identidade: ser padre antes de tudo e sobretudo, como intencionalidade e como serviço. Exprimia-o o Padre Egídio Viganò quando dizia que fosse possível ter simultaneamente na Congregação muitos sacerdotes e pouco sacerdócio.
Esta característica de Dom Bosco – sentir-se e parecer sempre principalmente como sacerdote – pode ser vista por outro ângulo: o subjetivo, isto é, a satisfação, a alegria pessoa que experimentava por ser padre.
Esta identidade possuída com alegria é fruto da graça, mas também de um caminho pessoal de identificação; a identificação que acontece com a meditação, com o exercício do ministério, com a participação cordial nas preocupações da Igreja. Perguntemo-nos, então, com qual figura de padre Dom Bosco se identificava.
Sobre isso, há outro comentário do Card. Ballestrero. Dom Bosco identifica-se com o padre da melhor tradição eclesial, não ligada rigidamente a nenhuma das figuras que se viam então; não a do pároco, do padre que assume a atenção espiritual de um setor de pessoas ou a capelania de uma instituição; não a do padre que tem algum papel diocesano, do professor de seminário ou de uma universidade. Menos dependente ainda colocação de tipo político ou cultural: o padre integrista, o padre liberal, o padre “moderno”, o padre “social”.
Todas estas figuras estavam difusas e representadas em porções do clero. “São João Bosco sentiu-se e soube ser sempre simplesmente sacerdote”, com referência aos modelos que mais sublinhavam o trabalho e a caridade pastoral do tipo do Padre Cafasso, indo, porém, destes modelos diretamente a Cristo sacerdote e, sobretudo, ao senso sacerdotal da Igreja.
Há, porém, um segundo aspecto, que faz amadurecer o seu tipo particular de paternidade, que não é apenas espiritual, sacerdotal, mas quase biológica, cheia de humanidade; paternidade que sabe acompanhar a pessoa pobre no crescimento desde os primeiros passos.
A vocação, o gênio, a opção “educativa” emergem já nos primeiros anos da sua vida. Manifestam-se na predileção pelos jovens e no gosto de abri-los à plenitude da vida em suas diversas expressões: à consciência da própria dignidade, à alegria, ao trabalho, às amizades; tudo na direção e sob a luz da salvação eterna. Ele trazia em si este gostos e hábitos antes dina de receber a ordenação sacerdotal, a tal ponto que alguém disse: como alguns nascem artistas, Dom Bosco nasceu “educador”.
Padre Pedro Braido, em seu estudo monográfico sobre o Sistema Preventivo, apresenta uma discussão: em Dom Bosco, apresentou-se antes o desejo de reunir os jovens para fazê-los melhores e em função disso amadureceu a ideia do sacerdócio, ou o seu primeiro desejo e vocação foi o sacerdócio, embora imaginado próximo dos jovens?
Depois de apresentar diversos pareceres, ele faz ver que estas duas tensões se cruzam continuamente, quase sem distinção, na existência de Dom Bosco; mas que durante, e sobretudo no final, do processo de amadurecimento a vocação sacerdotal serve de fonte que gera atitudes e iniciativas, enquanto a juventude e a educação se tornam o campo pastoral no qual exercer o sacerdócio.
A opção pastoral da juventude e da educação não foi fácil. Em Turim, havia muitos padres. Dom Bosco lamentava-se da escassez de clero pelo fechamento dos seminários. Mas Turim em 1838 havia um padre para cada 137 pessoas, isto é, 851 sacerdotes para 117.000 habitantes.
Havia o padre que desejava realizar o ministério ordinário das paróquias de modo consciente e com bom espírito. Dom Bosco recebeu a oferta de um lugar de vigário paroquial, o que comportava uma renda três vezes superior à de um operário, um lugar economicamente conveniente. Havia quem trabalhava como padre “de família”, e a Dom Bosco foi oferecido a trabalhar como preceptor, mestre de uma família rica. Havia os capelães de institutos e também este trabalho foi oferecido a Dom Bosco. Eram trabalhos dignos do ponto de vista social e “seguros” do ponto de vista econômico.
Entretanto, a cidade explodia pelos novos fenômenos da imigração, da pobreza, do trabalho infantil. A opção de lançar-se nem numa paróquia, nem numa família ou num instituto, mas pela rua, portanto sem uma renda fixa e um trabalho reconhecido, foi uma opção pastoral corajosa e nova. Dom Bosco praticamente se colocou nas novas correntes pastorais que se estavam formando na Igreja de Turim. Assim, mais do que em “trabalhar como padre” num papel institucional definido, preferiu “ser padre” para o povo e os jovens na comunhão eclesial; fora do quadro de papel rígido, mas certamente de acordo com o seu bispo que num determinado momento designou-o “diretor” ou encarregado da obra dos oratórios.
Neste contato com os jovens pobres, fez algumas experiências típicas. Uma é a experiência fulgurante da relação entre a fé que atua através da caridade e a vida dos jovens, e, portanto, a compreensão da função de salvação total que tinha o seu sacerdócio, diferente da função mais reduzida que consiste na iniciação cristã, no ensino do catecismo ou na atenção religiosa tópica do ministério paroquial. Ele devia ocupar-se com a vida e a felicidade dos jovens, compreendendo também a salvação deles da prisão, da miséria, da ignorância, da inconsciência da própria vocação e destino.
A outra experiência é a urgência a eficácia de dar expressão humana, sensível, compreensível à caridade para com os jovens, de modo a suprir o afeto da família, recuperando a dimensão afetiva e fazendo-os sentir, de forma sensível, a paternidade de Deus.
É claro que os dons de natureza presentes em Dom Bosco desde a infância, isto é, a sua capacidade inata de aproximar-se dos jovens e a sua profunda sensibilidade humana pelo que foi chamado de “um gênio do coração”, foram assumidos, potenciados e transformados pela tensão sacerdotal.
2. A paternidade típica de Dom Bosco
Da fusão destes dois aspectos ou, em se querendo, destas duas energias da sua personalidade, brota e desenvolve-se uma característica de Dom Bosco educador, fundador e superior, muito comentada e muito desejada hoje: a paternidade.
O sacerdócio é a sua fonte de alimentação continua, de onde brota como um jato poderoso e ininterrupto; a opção dos jovens e o encontro com eles em vista da sua plenitude de vida, é como a marca, a pegada em que a paternidade recebe a sua forma típica, a sua tonalidade e as suas expressões.
É verdade, em relação à paternidade, o que diz o artigo 1º das nossas Constituições sobre o Sistema Preventivo: ela vem do Espírito Santo através da vocação, do carisma e do ministério sacerdotal. “O Espírito Santo formou nele um coração de pai... capaz de doação total”; mas plasma os gestos e as expressões típicas no encontro e no trato com os jovens.
Simplificando e apenas para nos explicarmos, seria possível dizer: o sacerdócio dá a sua substância; a pedagogia, a modalidade. Nada se pode dizer de centrado e específico da paternidade de Dom Bosco se não se levam em consideração estes dois aspectos. Faltando ou diminuindo o primeiro, desaparece o “Da mihi animas”; faltando o segundo, cai o Sistema Preventivo.
Desta forma, vai amadurecendo nele uma paternidade que é “espiritual”, a do padre que, pelo batismo, gera para a graça e mediante o perdão reconduz misericordiosamente ao Pai. É a paternidade de que falava São Paulo aos Coríntios quando lhes dizia: “Poderíeis ter também dez mil pedagogos em Cristo, mas não certamente outros pais porque fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, mediante o evangelho”.243 Contudo, há também uma manifestação quase “biológica” da paternidade, que assume a responsabilidade pela vida inteira, que alcança de forma sensível os jovens até provocar neles um desejo e um entusiasmo de crescimento, uma consciência do próprio valor, uma nova capacidade de entender a vida que eles ainda devem aprender a sentir e interpretar.
A paternidade e uma exigência recorrente. Parece um dos aspectos que é mais colocado em risco pela “mentalidade projetual” que, às vezes pode resultar “empresarial ou gerencial”, pela multiplicidade das ocupações e também pela nova relação que intercorre entre indivíduos e superiores, entre pais e filhos. Cola-se em risco o mesmo aspecto da paternidade, mas também a sua interpretação e atualização em chave salesiana. Não é apenas uma exigência de quem é desejoso de atenções e afeto; é um traço carismático que interessa a Família Salesiana, porque constitui a sua originalidade no exercício da autoridade em consonância com todos os outros aspectos da sua fisionomia.
O ministério ordinário representa a concentração e a expressão de uma realidade difusa na Igreja da qual todos participamos: o sacerdócio de Cristo. Na comunhão da comunidade salesiana e educativa, cada uma das figuras acentua uma dimensão sem negar a outra. Ao superior de pede que fundamente o seu ministério na forma como o fez Dom Bosco.
3. Expressão da paternidade salesiana
Admitido que estamos diante de um sacerdote educador no qual a paternidade adquire uma característica especial, podemos perguntar-nos quais são as manifestações que brotam desta condição, dando por certo que serão análogas, segundo seja expressa em vista dos jovens ou em vista dos adultos.
Em geral, quando falamos da paternidade de Dom Bosco realçamos e nos detemos em seus gestos de bondade tranquilizadora e encorajante, o afeto que fazia florescer nos jovens uma atitude de filhos para com ele; um afeto e uma bondade inspirados no amor de Deus na mansidão de Cristo. Este é um aspecto muito real, que caracteriza a sua fisionomia e está muito presente em nossa memória e em nossa doutrina espiritual. Incidiu-a com clareza João Paulo II na carta que nos enviou por ocasião do centenário: Pai e mestre dos jovens.
Padre Brocardo, em seu livro Dom Bosco, profundamente homem, profundamente santo, recolheu uma série de fatos inéditos que embelezam este tema com recordações de pessoas idosas nas quais a imagem paterna de Dom Bosco ficara esculpida para sempre. Foram acolhidos por uma pessoa que assumira plenamente o lugar de seus pais.244
Há, depois, a antologia de narrações de salesianos em dificuldade, provados ou inexperientes, ou de outros vivazes e geniais, que deixaram desenhada a sua figura de responsável de uma família capaz de dar paz e felicidade ao conjunto e de valorizar cada um de seus componentes, fechando um olho, valorizando a espontaneidade, propondo horizontes, inspirando ideais e expectativas.
Há, ainda, um florilégio de textos nos quais Dom Bosco exprime os seus sentimentos de compaixão, comoção e ternura diante dos jovens carentes. Pensai nas palavras com que comentou as visitas às prisões: “Eu me sentia profundamente comovido vendo aqueles jovens, ociosos, picados pelos insetos”. Um homem que não consegue passar indiferente diante de uma situação de infelicidade. Contudo, exprime o mesmo sentido a respeito dos jovens do Oratório que vivem numa situação mais favorável, quando está longe deles. Já lemos e relemos a carta de 1884: “Sinto, meus caros, o peso do afastamento de vós e o fato de não vos ver nem ouvir me aflige como não podeis imaginar”.245 As expressões de repetem em relação aos salesianos adultos, empenhados em trabalhos importantes e em terras distantes: “Chamai-me e considerai-me pai e serei feliz!”.246
Esta bondade que não é apenas sentimento, mas desejo eficaz da felicidade do outro – “Quero que sejais felizes” – difusa em toda a vida e não em momentos especiais, que é aplicada aos projetos e não só às relações, produz aquilo que chamamos de “Sistema Preventivo”, dado como dom carismático a todas as gerações salesianas que seguirão. Esta bondade é protegida e evidenciada no ambiente mediante a organização dos papéis que a libertam de intervenções que a poderiam comprometer e sublinhada numa festa da gratidão e da confiança: suas atitudes essenciais no Sistema Preventivo. Recordamos na tradição aqueles que souberam retomá-la. Para não fazer injustiça a ninguém, recordo um deles para quem a paternidade, cheia de bondade e compreensão, é reconhecida na liturgia: o Beato Felipe Rinaldi.
O traço da bondade, do afeto, a ternura, da acolhida sozinho, porém, não explicita suficientemente a paternidade educativa de Dom Bosco. Esta aparece em toda a sua clareza em outros dois elementos. A paternidade de Dom Bosco, como qualquer outra, é uma cominação adequada de afeto e responsabilidade; é, de fato, terna e compreensiva, mas ao mesmo tempo é responsável pela “vida” dos seus filhos, capaz de esclarecer, propor e exigir aquilo que sustentará em longo prazo. Não é, pois, apenas “óleo” que alivia momentaneamente, mas energia que orienta para os aspectos árduos da verdadeira vida. Uma figura paterna e, ao mesmo tempo, afetuosa e forte. “Do pai – dirá o Padre Caviglia – ele teve tudo: o amor terno e forte aos seus filhos de adoção, a resistência ao cansaço e à dor, o agudo senso de responsabilidade de chefe de família e a entrega sem limites que tem um modelo no amor materno”. Dom Bosco é um educador que só acolhe, mas propõe; não só perdoa, mas orienta para o sacrifício. Não é apenas um “bom homem”, mas tem da vida uma ideia rica e realista. Baste pensar no tema do trabalho, do estudo e do dever. As consequências estendem-se à visão educativa, à comunidade e aos indivíduos.
É aqui que se insere o caráter sacerdotal da sua paternidade. Ele quer abris os jovens ao mistério de Deus; coloca-los em contato com Ele; revelar-lhes o plano admirável de salvação que Deus tinha para eles e ajuda-los a serem felizes neste mundo e na eternidade.
Este modo de conceber e buscar a felicidade do jovem é a expressão do seu sacerdócio. De Dom Bosco tivesse sido muito amigo, mas preocupado apenas em comunicar aos jovens os valores nobres da vida natural, não teria ido além de um bom pedagogo. A sua bondade “pedagógica”, o seu estilo de bondade estava relacionado com a “vontade”, o “desejo”, diria São Paulo, de gerar jovens para a vida da graça que provém do sacerdócio de Cristo, cuja função é a revelação do Pai. A sua pedagogia, na substância e no método, é uma pedagogia da alma. Dom Bosco interessa-se pela alma, pela graça, pela vida em Deus jovens e dos irmãos.
A configuração de toda a organização educativa e de cada um de seus momentos e fatores é salvífica. A finalidade de tudo (relações, atividades, ambiente) tende a suscitar e cultivar a fé.
É a conclusão do Padre Braido: “Não nos admiremos, portanto, se o seu sistema educativo, porquanto permeado de júbilo, de alegria, de humanidade, esteja no seu centro e na inspiração fundamental ‘devota’”. Há quem fique talvez desiludido, porque a sua admiração por Dom Bosco está ligada a uma perspectiva diversa. Pensa nele como no sacerdote santo, mas de uma santidade nova, humana, “moderna”, enquanto tudo nele está intensamente radicado no religioso, na fé.
Por isso, o senso religioso não ocupa apenas um setor das suas atividades (p. ex.: a catequese ou as funções de igreja), mas permeia todos os momentos e toda a intervenção educativa: a “boa educação” tem raízes religiosas, o dever é inspirado na fé, a obediência aos superiores e a amizade com os companheiros buscam motivação no evangelho. O “bom cidadão” é o bom cristão.
A formulação que agradava ao Padre Egídio Viganò: “honestos cidadãos, porque bons cristãos”, não é a formulação mais frequente que se encontra em Dom Bosco, mas é certamente a que melhor representa a sua mentalidade: da raiz da fé brotam as melhores expressões do amadurecimento pessoal.
Estes comentários provocam certamente um repensamento em nós sacerdotes educadores, numa época em que o profissionalismo educativo parece não admitir facilmente uma “forma” confessional e sacerdotal.
Este é o primeiro e o mais importante aspecto do sacerdócio e da paternidade sacerdotal. O que faz um padre? Gera à vida e acompanha o crescimento nela. A vida a que se refere o sacerdote é aquela que vem de Cristo: “Que conheçam a ti e àquele que tu enviaste”.
O segundo aspecto que pertence à sua paternidade sacerdotal é a confiança absoluta (sublinho absoluto) na força transformadora da “religião” – assim diz Dom Bosco e eu assumo o seu termo – do qual o sacerdote é ministro e dispensador. Hoje dizemos que uma coisa é a religião e outra é a fé, e é bom distinguir. Em sua linguagem, a religião inclui a presença de Deus, antes apenas percebida, e depois reconhecida e aceita, a iluminação da mente através da palavra, a formação da consciência e a purificação do coração mediante os sacramentos, a aceitação da graça, misteriosa força interior, a vida na Igreja. Enfim, todo o universo do mistério, percebido e acolhido num primeiro momento, usufruído depois, e desejado, portanto, sempre em maior medida.
Consequência de toda esta abordagem é a aplicação continuada e confiante dos ministérios sacerdotais no processo educativo e na guia da comunidade religiosa e educativa. Analogamente para os seus colaboradores, a paternidade sacerdotal educativa exprimia-se na capacidade de fazê-los nascer para a vocação carismática, ajuda-los a crescer no sentido da consagração, torna-los sempre mais abertos à graça até a santidade.
Ministério sacerdotal da palavra
O ministério sacerdotal da “palavra” tem, como característica paterna e educativa, a capacidade de falar ao coração e de forma muito direta sobre os pontos que preocupam o jovem ou o irmão, iluminando-os, de modo que eles tenham de Cristo um estímulo à vida e um encorajamento para crescer, como faz um pai, que tira o que diz não de um texto de teologia ou de pedagogia, mas da experiência vivida e da relação de afeto. Esta, talvez, seja a diferença com as demais formas rituais de tal ministério. Dom Bosco, sacerdote e homem da palavra, tem a capacidade de falar sobre as coisas que o jovem sente como importantes e fazer ressoar no coração as palavras do Evangelho, traduzidas em linguagem compreensível. É um ministério que o sacerdote educador exerce a cada momento, pelo que não é necessário subir ao púlpito. A substância do ministério da palavra não é o enquadramento ritual, mas o fato de levar a luz de Cristo e tornar presente a sua graça.
Ministério da palavra é a conversação que se tem num encontro pessoal; é o conselho que se dá também de passagem. Em Dom Bosco era a “palavra ao ouvido”, mensagem personalizada, direta e afetuosa.
Manifestação típica do ministério da palavra é o “boa noite”, que constitui o modelo “salesiano” de falar aos jovens; colocada num contexto comunitário “celebrativo” do ponto de vista familiar, num momento sugestivo no final do dia, baseia-se na relação pai-filho e no desejo de comunicar. O seu esquema é, sobretudo, adequado: parte de uma situação de vida, conhecida ou sofrida, procura iluminá-la através do bom senso e da fé, infunde alegria e encoraja também pelo tom fácil e humorístico.
São as características do falar sacerdotal, paterno e educativo. O “boa noite” é, no falar salesiano, aquilo que a homilia é para a pregação: protótipo, que traz as suas características fundamentais.
Ministério sacerdotal da santificação
Dom Bosco exprime a sua paternidade sacerdotal educativa no e com o ministério da santificação. Ele mira admitir os jovens e irmãos em contato direto com Deus mediante a própria consciência e as mediações da graça. Tendo conseguido fazê-lo, a função do educador é secundária e complementar. A graça tem caminhos próprios. Mas é preciso renovar e fazer crescer a relação e a abertura.
O momento mais típico e personalizado é o sacramento da reconciliação. Evidenciava o desejo de mudança e o propósito de crescer como cristão. Entretanto, não estava isolado nem dos outros atos religiosos nem da vida. Pode-se dizer que Dom Bosco era um mistagogo; ele iniciava e introduzia na celebração e garantia as suas condições de eficácia através da mediação educativa. Contudo, não havia um corte nítido de temática ou de estilo entre a conversação do pátio e o momento em que o jovem se ajoelhava para resumir a conversação sobre a sua vida de forma mais profunda e receber o perdão.
Sacramentos e exortações à santificação da própria pessoa e do trabalho levavam à reorganização das atitudes e da conduta, a uma iluminação da consciência e à conversão progressiva. O mesmo acontecia com os irmãos. Dom Bosco estava atento e encorajava a sua fidelidade e impulsionava à santidade.
Ministério sacerdotal da guia
O terceiro ministério sacerdotal, reger, é o poder, a graça de reunir a comunidade cristã e orientá-la na fé, na esperança e na caridade, para que exprima a presença de Deus entre os homens e torna-se assim sinal e instrumento de salvação.
A paternidade sacerdotal educativa de Dom Bosco manifesta-se no esforço de fazer de todo o complexo educativo uma família, na qual a figura do pai (o diretor) e dos irmãos maiores (os assistentes) fazem com que todos se sintam “em cada”, à sobra dos sinais da presença de Deus Pai; por isso, a capela está à mão dos jovens, reza-se no início de cada atividade, conclui-se a jornada com a oração, celebra-se comunitariamente a Eucaristia e resolvem-se, a partir da perspectiva de Deus e das almas, os problemas de organização e de trabalho.
Há em todo o ambiente educativo, uma característica difusa que é a familiaridade. Não é apenas uma atitude de cada educador, mas é um aspecto da organização, das normas, do governo, das relações e da linguagem. Pensa-se justamente numa estrutura de família e não de instituição.
Há, também, um clima que já sublinhamos muitas vezes, de alegria e de confiança. Cria-se assim o ambiente educativo, entendido não só como atmosfera, mas também como tecido de relações.
Seria interessante – eu apenas aceno – repassar a antologia de textos salesianos, para reler a realidade deste conjunto educativo, em todo os seus detalhes e nuanças. Recordo apenas que o Padre Braido, que o estuda do ponto de vista da educação, dedica-lhe dois capítulos, o 4º e o 5º, da segunda parte do seu livro sobre o Sistema Preventivo.
Todo o esforço para criar um clima de família provém não só da intuição pedagógica de Dom Bosco: o jovem num ambiente marcado pela afetividade vive mais disponível, assimila mais facilmente atitudes e propostas; mas liga-se à sua graça sacerdotal, isto é, ao projeto de fazer assimilar e sentir a “beleza” da vida cristã e da própria santidade que é paz interior, alegria de viver juntos, entusiasmo para realizar iniciativas, esperança no futuro.
Em suas diversas expressões, a tradição salesiana conservou estes dois aspectos da personalidade do superior: cuidado da vida espiritual e bondade. Em alguns, elas se apresentam com tal nitidez que nos serve de exemplo. Refiro-me ao Beato Felipe Rinaldi do qual se escreveu: “Habitualmente, apresentava Deus como pai, de modo que experimentava no íntimo a necessidade de sentir e fazer sentir a sua infinita paternidade que ama em silêncio, acolhe e perdoa” (Padre Ricaldone).
As manifestações da paternidade de Dom Bosco aconteceram num contexto marcado pelo “familiarismo” isto é, pelo modelo da família patriarcal, considerada como célula e protótipo de todas as outras formas sociais.
Não se discutia quanto ao princípio de que a educação devia assumir a forma paterna.247 A referência comporta hoje valores a serem conservados e novas atitudes a serem assumidas. A fonte, o estilo são invariados: o amor responsável que abre à vida e a cura. Podem variar as expressões em comunidades de adultos nas quais se ressalta a corresponsabilidade.
(1Tm 4,6)
1. Unidade entre pessoa e serviço
Não é infrequente encontrar pessoas que dizem não se sentirem bem no lugar ou trabalho que lhes foram confiados. Por isso, o consideram-no e realizam como provisório. Não só; procuram o seu “repouso”, um momento de maior satisfação legítima em alguma outra atividade. Às vezes, o próprio superior, advertindo a tensão, indica-lhes alguma “saída” de segurança como hobby.
A divisão entre trabalho e realização pessoal é um fenômeno da cultura e da situação atual. Muita gente é obrigada a realizar um trabalho que não lhe diz respeito; então, vinga-se da frustração em outros momentos. Trabalha-se, de um lado, mas “se vive“, o que se chama realmente viver, em outro. O trabalho é funcional ao ganho ou à realização de obrigações sociais e institucionais (em nosso caso!); a gratificação e os desejos pessoais estão num outro espaço.
Há quem acredite que esta divisão seja natural, e o é. Mas, muito natural, sobretudo quando o trabalho é “missão” e quando há alguma indicação da vontade de Deus. Há, contudo, consequências, ao menos limitadoras, tanto no próprio crescimento como na prestação do serviço. Em relação à primeira, o limite consiste em não pode capitalizar a experiência, mesmo espiritual, que a situação comporta. Quando ao serviço, é verdade o que é afirmado: “Ninguém alcança a perfeição de um trabalho a não ser que sinta prazer por ele”.
A simples obrigação não produz a arte. A consequência mais séria não é só uma eventual limitação no tempo dedicado ao serviço. Muitas vezes, acontece, mas é sobretudo a avareza dos recursos pessoais: o não funcionamento com toda a sua potência do próprio motor; o não conseguir entregar-se totalmente. Pode acontecer, e acontece realmente, entre aqueles que são chamados à responsabilidade de animação e governo.
A divisão, ou a simples separação, sempre traz sofrimento e relativa ineficácia. O segredo para a serenidade e também para os bons resultados está na construção da unidade entre pessoa e serviço. Quando dizemos pessoa dizemos coração, mente, desejos, gostos, ocupação, amizades. Quando dizemos serviço dizemos coordenação e formação, irmãos agradáveis e difíceis, iniciativas encorajadoras e práticas cansativas, animação de comunidade e acompanhamento de pessoas que nos são confiadas, vida fraterna e relações sociais e até mesmo burocráticas, programação e redimensionamento, estímulo e correções oportunas.
O exercício da autoridade tem aspectos difíceis que a Sagrada Escritura descreve de maneira incisiva na parábola que Joatão propôs aos senhores de Siquém:248249250251 as videiras, o figo e a oliveira são enviados a governarem as árvores, mas respondem que não veem razão para renunciar às suas qualidades originais (a doçura, a capacidade de comunicar alegria, a suavidade e a paz) e colocar-se em luta contra aqueles que deverão dirigir. Fica claro que assumir responsabilidade de governo comporta muitas vezes renunciar a cultivar e dar aquilo que se considera mais de acordo com a própria natureza. É convidado, então, o espinheiro que não só aceita, como também promete que se fará respeitar.
O exercício da autoridade comporta decidir e tomar partido que muitos chamaram de “odioso”; nós o chamamos apenas de “árduo”. E, no exercício do poder, pode-se desviar para formas de egoísmo e até de violência. Por outro lado, o senso pleno da autoridade é dado pelas palavras de Jesus que convida ao serviço, e no gesto de lavar os pés dos discípulos revela o seu sentido.
A unidade requer a superação do apego da videira, do figo e da oliveira aos próprios legítimos gostos e projetos; moderar, nos justos limites, a prontidão do espinheiro em usar o poder e pôr tudo sob o sinal do amor fraterno que nos é indicado no lavar dos pés.
Há algumas reflexões que podem nos ajudar a construir esta unidade.
2. “O apelo” à responsabilidade
A primeira reflexão é a consciência de que o apelo ou a ordem de assumir um cargo é um “apelo de Deus” a participar a partir de dentro e com maior responsabilidade na construção do seu Reino num determinado tempo e lugar. Se assim não fosse, a nossa designação seria um puro “acaso”, fruto de amizade ou, na melhor das hipóteses, apenas o resultado de uma busca técnica para descobrir os melhores talentos da comunidade.
No entanto, é uma iniciativa de Deus, relacionada com todas as demais precedentes que marcaram o surgimento e o amadurecimento da nossa vocação.
No congresso de jovens religiosos, realizado em Roma em setembro de 1997, quem expôs o tema da “vocação”, fazia ver que os apelos ou convites de Deus se sucedem, completam e esclarecem durante a vida de uma pessoa.
Não conseguimos saber o que devíamos ser, para o que éramos chamados, enquanto não o tornamos por sucessivas respostas generosas e confiantes e tantos outros apelos. Indicava, como passagens, o chamado à Vida, o chamado à Fé ou ao ser cristão, o chamado à existência consagrada, o chamado a viver numa determinada Igreja e num determinado mundo que é o nosso. Fazia ver também que os apelos não só se sucedem, como também se esclarecem e enriquecem reciprocamente. A vocação a fé não sucede àquela à vida, mas abre a esta novas dimensões e novos horizontes. O convite à vida consagrada não substitui os dois anteriores, mas os assume, dá maior sentido e tira deles novas possibilidades. Diga-se o mesmo do chamado a viver como pessoa, cristão e consagrado, na Igreja da qual nos cabe ser parte viva, e em nosso mundo atual com os seus desafios, vantagens e dificuldades.
Gostaria de aplicar a mesma linha de reflexão ao apelo a assumir responsabilidades a serviço dos irmãos e das comunidades. Enquanto consagrados, eles são propriedade de Deus. Ele cuida deles e propõe-lhes algumas pessoas segundo a sua providência. Para quem é convidado, isso comporta uma iniciativa de Deus em linha com o primeiro e fundamento chamado vocacional, leva-o à realização em suas características mais verdadeiras e fundamentais: viver radicalmente o Evangelho e colaborar com Deus na salvação. Não serve ao amadurecimento cristão o sonhar-se livre de responsabilidades comunitárias.
É o que aconteceu aos seguidores de Jesus. Antes, tiveram a alegria do encontro e do conhecimento do Senhor e o privilégio de estar junto dele de forma habitual, depois, veio a participação parcial no seu ministério de serviço, que não só comportava mover-se e encontrar todo tipo de pessoas, mas também compartilhar o sofrimento e a morte. Nisto, os discípulos demonstraram limites e incompreensões que o Senhor assinalou e corrigiu. Depois, com a vinda do Espírito, aconteceu a entrega a eles da evangelização e do cuidado das comunidades formadas em nome de Jesus. Não só do anúncio alegre, mas da vida e do testemunho comunitário; não só da palavra, mas também das pessoas e da organização. Assim, como Jesus, aprenderam a morrer a si mesmos e a viver para os outros. “Quando eras jovem, tu mesmo amarravas teu cinto e andavas por onde querias; quando fores velho, estenderás as mãos, e outro te porá o cinto e te levará para onde não queres ir”.252 Jesus intercala estas palavras a Pedro, como explicação, entre outras duas: “Cuida das minhas ovelhas” e “Segue-me” numa narração evangélica toda centrada no cuidado pastoral da comunidade.
À consciência de que se trata de iniciativas e vontade de Deus, é bom fazer uma leitura “espiritual” das passagens que nos levaram à situação em que nos encontramos. O inspetor deve pensar que a consulta comunitária, na qual foi indicado, é resultado de um discernimento guiado pelo Espírito. A decisão do Reitor-Mor com o seu Conselho é uma daquelas mediações que nós aceitamos e como que concordamos com o Senhor na nossa profissão. Aprecio o comentário de um autor: “A obediência não é profissão de sofrimento ou suportação, mas de alegria pela certeza da vontade de Deus que nos indica onde empenhar o que nos deu gratuitamente”.
Serve para a unidade entre sentimentos, desejos e trabalhos considera que o serviço de autoridade é, para nós, uma oportunidade pessoal, totalmente singular, para crescer em todos os sentidos. Os inspetores o repetem em suas cartas para mim. As visitas às comunidades e o encontro pessoal com os irmãos abre-lhes panoramas desconhecidos sobre a variedade e a riqueza humana. Precisar avaliar situações e iluminar as comunidades leva-os a aprofundar todas as dimensões da vocação e da espiritualidade salesiana. Ter que participar da responsabilidade da Igreja local ou de congregações em níveis amplos os introduz em horizontes mais vastos de avaliações e realizações. Precisar resolver casos dolorosos, abre-os à compreensão, à compaixão, ao respeito pelas pessoas, ao diálogo.
Com frequência, quando se busca uma pessoa para uma missão delicada, pergunta-se se já teve funções de animação e governo. Isto é considerado exercício e prova de algumas qualidades: a aptidão para avaliar corretamente acontecimentos e pessoas, a capacidade de estabelecer relações adequadas com um amplo leque de “tipos”, o comportamento diante das dificuldades, a capacidade de manter claras as finalidades em relação à evangelização e à educação, e conceber iniciativas novas em relação a elas.
Portanto, o Senhor “chamando-vos” a assumir responsabilidades não vos pede tanto um “sacrifício”, mas oferece-vos uma graça.
A esta altura, alguém poderia apresentar uma dificuldade: não sou capaz, pesa-me o senso de inadequação. É um sentimento pertinente. O tipo de trabalho é tal que ninguém pode considerar-se totalmente à altura. Sentimo-nos seguros quando trabalhamos o ferro, contamos ou trocamos moedas ou trabalhamos no computador. Quando se trata de pessoas, de suas opções e da sua orientação para Deus tudo é jogado no imprevisível e nas reações livres.
A declaração de inadequação, por outro lado, está presente em todas as narrações de “chamado” a responsabilidades da parte de Deus. Disse-o Moisés, Gedeão, Jeremias, Maria Santíssima e Paulo... para recordar apenas alguns deles. Quem é incentivado a profetizar sente-se exposto e frágil; quem e chamado a falar se reconhece balbuciante e confuso; que é chamado a trabalhar pelas pessoas e por Deus, declara-se pobre e inexperiente.
Entretanto, sempre há uma resposta do Senhor. Ele garante que concederá ajuda não geral, mas individual, proporcionada ao que Ele nos pede, ao que nós somos e às situações nas quais se encontram os destinatários do nosso serviço. Na terminologia teológica tradicional, e no nosso caso, se chama graça de estado. Ela atua em nós despertando energias e possibilidades potenciais anteriormente ocultas. Ousamos muitas vezes como superiores, e somos obrigados a ousar, acima das nossas capacidades; devemos agir com um irmão ou por uma iniciativa sem indicações seguros de bom resultado. E vemos que Deus nos vem em auxílio.
A graça de estado atua também nos irmãos e destinatários. Muitos deles cultivam expectativas sobre o nosso serviço, valorizam com espírito de fé e acima do valor dos nossos serviços, acolhem-nos como “representantes” de Deus. Dessa forma, o Senhor constrói a comunidade através da sua fé e através da nossa inadequada mediação. É o meu sentimento e a minha conclusão depois de numerosos encontros com os irmãos e as comunidades.
A graça de estado atua nas comunidades como conjunto e age também na instituição entendendo por isso não um conjunto de frios instrumentos de governo, mas a organização e o entrelaçamento de papéis, finalidades e instrumentos que as comunidades se deram em vista da genuinidade e da continuação do carisma. Elas dão a quem preside um primeiro cheque, quase em branco, de confiança e autoridade que não deve ser disperso, mas feito frutificar, representa uma apólice totalmente confiável. Quando fui nomeado diretor aos 33 anos, disse-me um ancião: “Muitos sabem mais do que tu e são mais virtuosos do que tu. Mas, fica tranquilo, pois isso serve à tua autoridade e a facilita. Eles te aceitarão porque são sábios e virtuosos e veem nas tuas orientações sinais da vontade de Deus. A tua juventude te faz ainda mais aceitável porque veem em ti o fruto do trabalho deles e a realização das suas esperanças”.
Um último comentário: graça e crescimento provocados pela responsabilidade de governo deixam alguma marca e ficam por toda a vida. Não é necessário prolongar-se no cargo para continuar a servir “como inspetor”, isto é, como pessoa que aprendeu a viver para os outros, a discernir e avaliar situações. Afirma um provérbio popular: que foi rei não perde a majestade. O serviço, digamos também o papel vivido integralmente, plasma. Supere-se, portanto, o sentimento de viver alguma coisa de provisório da qual queremos nos libertar o mais rapidamente possível, porque a nossa vida, o nosso gosto e as nossas possibilidades de expressão estariam em outro lugar.
3. Consciência de ser “instrumento”
É verdade que os objetivos e o trabalho de animação e governo nos superam. São muitas as coisas a dar importância. Não é apenas, porém, a multiplicidade que cria problemas. Supera-nos também a qualidade exigida por esses trabalhos: é preciso acompanhar as pessoas, consagrados, numa vocação feita toda de decisões pessoais, de diálogo e liberdade. Coloca-se à prova a nossa capacidade de convencer, de mover e comover, de orientar para a santidade.
Dizia Dom Bosco: “Só Deus é dono dos corações”. A este ponto devemos dizer-nos em voz alta que ninguém nos convidou nem chamou a realizar este trabalho sozinhos e nem sequer como agentes principais, como protagonistas. Podemos ser muito responsáveis, sem pensar-se nem nos propormos como primeiro ator ou personagem.
Em cada indivíduo atua o Espírito Santo desde o momento do Batismo. Ele entabula um diálogo pessoal na consciência, nas aspirações e nos propósitos de cada um. Os irmãos não nos vêm pedir muitas coisas; vêm dizê-las ou contá-las para nós como expectadores, testemunhas, amigos do Esposo. Somos chamados a escutar, a olhar, a aprender, a “recolher”.
Assim, também, o Espírito habita nas comunidades. Acompanhando as Inspetorias, convenci-me de que não poucas soluções e adequações não se devem a medidas de governo, mas a uma conversão interior acontecida depois de uma busca, da parte dos irmãos, para superar uma situação: uma mudança amadurecida em suas conversações ou em seu empenho de oração.
O mesmo Espírito atua nos âmbitos mais amplos nos quais devemos orientar a missão: a nossa comunidade educativa ou o nosso bairro, o território maior onde a Inspetoria realiza a própria ação e o mais vasto ainda do mundo no qual participamos de um serviço sem limites. Os sinais da presença do Espírito são muito visíveis na Igreja. A partir dela aprenderemos a individuar também a sua presença além da Igreja.
Precisamos meditar. Com o Espírito precisamos estabelecer quase um diálogo. As nossas avaliações, as nossas obras, a nossa relação com pessoas e realidades deveriam ser concebidas no Espírito Santo, discernindo a sua voz e seguindo os seus encaminhamentos.
Sobre o Espírito Santo, dizemos no Credo: é Senhor e dá a vida. É a expressão que João Paulo II quis colocar como título da sua carta. Age com magnanimidade, energia e na linha da vida, da felicidade, do sentido, da dignidade. Não é um pobre diabo... que não tem sucesso; ou uma vaga inspiração tipo “New age”, que faz as pessoas girarem ao redor de si mesmas e se consumirem na pura agitação do sentimento. Não é feito para reter o homem ou para ser consumido.
Insere-nos, porém, num grande projeto, maior do que nós, no qual somos chamados a colaborar. Se falamos das coisas salesianas, o projeto é o carisma e a Família Salesiana, uma forma de aproximação de Cristo e uma revelação do amor do Pai aos jovens através daquele conjunto de pessoas e iniciativas que chamados de “Missão Salesiana”, e daquela atitude e praxe que denominamos “Sistema Preventivo”.
Se falamos de Igreja, o grande projeto no qual o Espírito nos insere é a presença cristã no mundo atuada pela Igreja universal em, mais além dela, pela experiência religiosa. Hoje, ela se une ao movimento da nova evangelização. Vós não agis apenas num pequeno espaço; pelo mistério da videira e dos ramos, cooperais para criar aquele tecido pelo qual a Igreja resulta realmente instrumento de salvação universal.
Se falamos da história, o projeto é o Reino. A Igreja não é o seu sinal, não a sua totalidade. O Reino é aquele enfoque da vida pessoal e social que se inspira no nosso ser filhos de Deus, chamados à sua comunhão.
O projeto é maior do que nós. Mesmo se fôssemos capazes de administrar bem a nossa pequena barca que é a casa ou a Inspetoria, não teremos esgotado as exigências e as possibilidades do projeto do qual participamos. Há sempre novas potencialidades a tirar dele e novos espaços a trabalhar. Devemos ter o seu sentido, torna-lo critério de avaliação e decisão. A isso nos chama o Espírito salesiano: à magnanimidade de visão e de sentimentos.
Como o projeto é tão grande, nós não somos chamados a trabalha sozinhos. Fazemo-lo numa ampla comunhão visível e invisível que não tem limites. Não nos ajudam apenas os irmãos que temos perto de nós. Somos sustentados por todos os que vivem na mesma onda e ligamo-nos até o céu, isto é, os santos, declarados e não declarados, que se gastaram pelo carisma, pelo Reino, ou pelo Bem. Somos, pois, em muitos e em boa companhia.
Esta visão traduz-se na certeza de ter recebido do Senhor o que pode servir à comunidade e à Congregação numa fase concreta da sua vida. Na comunidade, muitos trabalharam antes de nós e outros depois de nós darão passo talvez mais importantes dos que nós somos chamados a dar; nós ocupamos uma fase que foi precedida e será completada por outros. Consequentemente, deveria exprimir-se na oferta alegre das próprias possibilidades e na tranquilidade de humor diante dos nossos limites de temperamento ou de capacidade. Não temos todos os conhecimentos, recursos e capacidades que uma comunidade requer para a sua vida em Deus e para a sua missão, mas temos o que é suficiente nesta fase se colocado ao lado do que possuem outros irmãos que vivem conosco.
Das mesmas convicções: chefe, projeto, rede de técnicos e operários surgirá a atitude de gratidão para com os irmãos e de busca de colaboração. Trata-se de valorizar os dons da comunidade, pequena ou grande; do grupo que trabalha conosco, mas também da Congregação, do quanto possa dar de experiência, estímulo, senso do carisma.
Os defeitos que vi caminham mais nesta segunda frente do que na primeira. A comunidade grande é pensada muitas vezes como anônima e vaga, uma instituição de pertença mais do que grande comunhão dos bens que o pequeno grupo não conseguiria elaborar e, portanto, uma reserva de energias, experiências e orientações. Devemos superar todos os preconceitos e todas as razões que limitam a sinergia com a comunidade mundial se quisermos entrar numa rede ampla de comunhão e usufruir dos seus benefícios.
4. Consciência de ser chamados a uma “bela profissão”
Existem profissões pesadas, ingratas, árduas. No mundo da criminalidade organizada fala-se de “trabalhos sujos”; os mandantes mantêm o rosto e as mãos limpas, mas encarregam outros de eliminar pessoas e fazer sabotagem. Também na vida civil existem as profissões nobres e aquelas que só os imigrantes realizam.
Que tipo de profissão é a de um superior?
Trata-se de um trabalho de alta qualidade. Isso se vê nos destinatários do próprio serviço. Não são apenas pessoas, mas pessoas nas quais o Espírito fez todo um trabalho de santificação desde o momento da primeira resposta à vocação, e continua a fazê-lo. Nós dizemos que a formação é permanente e que o primeiro agente é o Espírito. Temos, portanto, em nossas mãos, um material de valor. Isso é muito mais evidente quando se calculam as possibilidades humanas e espirituais abertas aos nossos irmãos. Constatamos estas possibilidades vendo-os crescer sob os nossos olhos, sobretudo se vivemos em comunidades formativas.
Vem-me à mente uma cena que se repete em quase todos os filmes sobre os santos: superiores ou superioras que os têm em suas comunidades e não os percebem. Relativamente “santificados” e a caminho de sê-lo sempre mais pela consagração, a Eucaristia, pela presença do Espírito, são todos os irmãos e as irmãs e a eles se refere a nossa missão de superiores.
A profissão tem valor não só pelos destinatários, mas pelo trabalho que somos chamados a realizar e pelos resultados aos quais se tende. Alguns anos atrás, eu participava de um curso de formação permanente para diretores. A casa onde estávamos estava diante de um quartel. Bem cedo, enquanto íamos à Eucaristia, ouvia-se o som militar do levantar-se e, pouco depois, as ordens dos suboficiais que ordenavam: descansar, sentido, marcha. Podíamos até mesmo ver os soldados que, no pátio, se esforçavam para executar tais ordens.
Manter bem a tropa também é um trabalho útil à sociedade. Mas comentávamos com os diretores: “Que diferença de conteúdo e de finalidade com o que nós fazemos! Na animação, nós agimos sobre a alma e o coração, sobre os sentimentos e as convicções”.
Isso tudo deve levar-nos a agir com confiança também em condições não ideais, iniciais, precárias. Trata-se de lançar sementes. De trabalhar aquela parte do campo que se pode. Às vezes, trata-se de arar. Há pessoas preocupadíssimas com o próprio sucesso em termos de realizações controláveis e vistosas; falta-lhes sempre pessoa, tempos e meios, mas quem tende muito às realizações acaba por sacrificar as pessoas. Enquanto as nossas realizações mais desejadas devem ser a oferta a Deus de pessoas, os nossos irmãos, como “hóstias puras e imaculadas”.
Para agir assim é necessária a capacidade de descobrir os sinais de salvação, as riquezas das pessoas, as oportunidades que se apresentam improvisamente ou, como formula o artigo 95 das Constituições, viver “descobrindo os frutos do Espírito na vida dos homens”.
Impressiona sempre a página do Evangelho em que Jesus, entre as muitas pessoas que podiam atrair a sua atenção pela relevância da oferta, descobre a viúva que oferece um centavo.253 Perdemo-nos, muitas vezes, na busca dos grandes talentos e das grandes oportunidades e não descobrimos o valor do que é colocado à nossa disposição.
Há uma ascese a ser praticada; aquela do otimismo que consiste em apostar que as sementes de bem se multiplicarão e produzirão recursos novos, que o reino, não só no tempo de Jesus, mas ainda hoje é como uma pequena semente que se tornará árvore, como o levedo que fermentará a massa.
Somos chamados a organizar âmbitos de esperança, nos quais ela seja sentida não com palavras, mas porque existem realidades que atraem, convencem e fazem sonhar.
Lemos no Evangelho: “O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos”.254
A palavra “serviço” é uma das palavras ricas de significado, fortes e orientadoras do Evangelho porque referida por Jesus à própria vida e morte quase como a principal definição. Infelizmente, corre o risco de se tornar consumida e genérica porque usada para tudo: serviço do país, dizem os políticos; serviço dos clientes, dizem os vendedores; serviço do altar...
A autoridade é chamada de “serviço” justamente no sentido evangélico mais forte, próximo da vida e da morte de Jesus.
Este “serviço” ensina-nos na vida, que:
L'autorità viene detta «un servizio» proprio nel senso evangelico più forte, avvicinato alla vita e alla morte di Gesù.
servir é uma dimensão de toda a existência (“Eu vim para...”), não um fragmento do nosso tempo e do nosso agir. Toca não só as tarefas, mas o pensar e o raciocinar. Servir é um modo de existir. É preciso que sempre nos interroguemos nesta profundidade;
o estilo de serviço põe-se nitidamente à lógica do ser servido (“Mas...”). É inútil querer compor as duas lógicas. Não se podem viver alguns esforços como serviço e outros como busca de si. Para o Evangelho quem é egoísta o é em todos os lugares, na vida pessoa e na vida pública: vive centrado sobre si;
servir significa sentir-se responsável pelos outros. “Recuperação” alude a solidariedade entre os parentes estritos. Quando um irmão passa por necessidade, não se pode fingir que não há nada: isso diz respeito a nós e é assim que somos chamados a viver;
o serviço não só chega às necessidades, mas acolhe a pessoa. As “multidões” pelas quais Jesus se oferece não são nem “problemas”, nem “funções”; são pessoas, rostos (a “paciência do agricultor”)
Ícones evangélicos da espiritualidade salesiana
1. A anunciação: apelo e resposta
A narração da anunciação a Maria255256257258259260261262263264265266267268269270271272273274275276277 está entre os mais belos do Evangelho de São Lucas. Apresenta um fato real e, ao mesmo tempo, propõe o seu significado para nós e para a história da humanidade. Não se refere apenas ao passado, mas é uma chave de leitura do presente. O Evangelho, de fato, não é só história, mas sempre anúncio.
A narração é construída com acenos da Bíblia que se referem a antigas esperanças, exprimem expectativas atuais e antecipam os sonhos de salvação do homem. Maria, que personaliza a h humanidade, ressente em si tudo isso e é chamada a colocar-se à disposição de Deus para realiza-lo.
“Alegra-te” é uma saudação usada pelos profetas quando se dirigem à Filha de Sião. Não se trata de uma formalidade para introduzir-se, como o nosso comum “bom dia, salve”. Ela garante uma atenção especial, um olhar de amor, a vontade benevolente de Deus por uma pessoa e traz consigo uma prova que depois poderá ser verificada. Anuncia uma eleição que constitui uma felicidade sem par. “Exulta! Coube-te um estupendo destino”.
“O Senhor é contigo”,278 aparece frequentemente quando Deus chama a uma missão; repete-se nas narrações das vocações que terão alguma missão importante para a salvação. Indica que a atenção e o olhar de Deus se traduzem em presença, assistência, companhia, aliança.
“Nada é impossível a Deus”,279 é a expressão dita a Sara, mulher de Abraão, no momento desesperado da sua esterilidade, no início da geração dos crentes. Exprime a decisão de Deus de intervir na aventura humana em favor do homem, superando qualquer limite que seja de natureza ou de liberdade humana. E de fazê-lo mediante algumas pessoas que ele escolheu. Deus pode salvar, dizia Bonhoeffer, com a Sagrada Escritura e com um cão morto. Os instrumentos são secundários.
Estamos diante do anúncio de um acontecimento de particular importância para a humanidade. Estamos diante de uma “vocação”, um “chamado”, e da resposta d’Aquela que devia ser instrumento e mediação humana deste evento.
Era, pois, convidada, primeiramente, a crer que o evento fosse possível e a crer também em si mesma (e é a coisa mais difícil!); depois, a aceitar empenhar-se e, ainda mais, manter-se fiel na colaboração durante a sua vida. Isso tudo, porém, como uma entrega incondicional a Deus.
Há, na Anunciação, uma imagem de deus. Um discutido filme procurou explorá-la. Trata-se de um Deus “pessoal”, que segue os eventos do homem e o salva com o seu amor através de intervenções reconhecíveis. É interessante ver se também nós temos alguma imagem de Deus, que se formou mediante o diálogo vocacional e se coincide com a da Anunciação. Ou se não temos realmente nenhuma!
Deus envia um anjo, isto é, comunica-se conosco e nos faz conhecer os seus planos, não só, e talvez não principalmente, em momentos solenes ou com modalidades vistosas, mas na vida ordinária; a Anunciação acontece em Nazaré, numa casa particular, a uma jovem noiva, que faz a experiência humana do amor, da família e da responsabilidade.
Sentiremos Deus em nós mesmos no fluir da vida e no desenrolar-se dos trabalhos. Vendo ao nosso redor rapazes e moças, devemos pensar que uma comunicação com Deus está acontecendo no coração deles. Não só Deus se comunica, como espera a nossa escuta e a nossa resposta.
Deus possui o poder misterioso de tornar fecundo o que, aos olhos humanos, é estéril, limitado ou perdido. E se trata de uma fecundidade não comum, mas valiosa, da qual têm origem os filhos de Deus.
Este é um convite a rever a nossa fé na ação e na energia do Espírito. Justamente como uma virgem pode conceber um filho, assim também o nosso mundo aparentemente estéril, é fecundado pelo Espírito, de possibilidades que não ousaríamos sonhar.
Os artistas, sobretudo os pintores, mas não só eles, demonstraram uma preferência por esta cena da Anunciação. Incluem-na sempre quando apresentam a história da salvação. Muitos também a deixaram engrandecida e separada. Diante de suas obras-primas, como diante desta página, ficamos em êxtase e pensativos.
Gostaríamos de perscrutar a alma de Maria através daquela modéstia e daquele semblante, tão delicadamente trabalhados, para descobrir além das palavras e da cena exterior: entendemos que a coisa mais importante e misteriosa acontece no coração e na mente de Maria, uma jovem, em idade de casar que, naquela época oscilava entre os treze e os catorze anos.
O seu colóquio com o Anjo, trate-se de uma revelação, visão, audição ou apenas inspiração interior, é pessoal e velada. É certamente atenção à própria vida, escuta atenta em forma de discernimento; é diálogo confiante com Deus sobre o seu destino; é disponibilidade à proposta de Deus; é entregar-se confiante a ele para a realização do que agora lhe pede, para as etapas intermediárias e para o resultado final.
Em cada vida há uma anunciação, ou melhor, várias e relacionadas; elas propõem uma novidade, iluminam para compreender e convidam a abrir-se a uma esperança.
Anunciação foi a nossa vocação. Anunciação foi a inspiração a fazer a profissão. Anunciação foram os chamados a responsabilidades nas quais é preciso entregar-se confiante a Deus e esperar com confiança o futuro. O princípio, a condição e o critério de todo itinerário espiritual é acolher, entregar-se, partir.
A Anunciação recorda-nos que a nossa resposta a Deus, dócil, confiante e contínua, é pessoal. O homem ou a mulher nada produzem que não tenha sido concebido e amadurecido interiormente. Pensamentos, sentimentos, desejos, projetos, acontecimentos são elaborados no nosso coração. Ali está o santuário de Deus. Daquele santuário Maria confessa o seu propósito de virgindade, a sua disponibilidade, a sua entrega.
Ali operam a graça e o Espírito que tornam Maria interiormente Mãe do Verbo. Este é concebido na alma antes que no seio. É bela a representação da Anunciação que apresenta Maria com a Escritura sobre os joelhos como em leitura atenta. Ela, serenamente concentrada, absorve a palavra. Vê-se em seu rosto que a acolhe e aprecia.
A nossa vida ativa, consagrada ou leiga, traz uma tensão: relação pessoal com Deus, ou seja, atenção, diálogo, acolhida afetuosa e grata do Senhor; e, por outro lado, preocupação pelos resultados da nossa atividade. Esta última desafia-nos e frequentemente nos tenta. Queremos fazer sempre mais; e, aos poucos, depositamos de tal modo a nossa confiança nos meios e nas atividades, que estas acabam por esvaziar-nos, a menos que os relacionemos continuamente com o ponto do qual tomam energia e significado: o convite de Deus a colaborar com ele.
Maria concebe por obra do Espírito Santo. Dá a Jesus não só o corpo, mas também a natureza humana. Se a Encarnação deva ser real, era inevitável que Jesus herdasse de sua Mãe os traços físicos, o modo de gesticular, talvez o tom da voz e a cadência no falar; mas também a forma de pensar e o modo de reagir diante das pessoas, dos problemas e das coisas. “Assemelha-te em tudo”, deviam dizer-lhe as suas amigas, mães jovens, olhando para Jesus.
Sabe-se que Jesus, depois, cresceu em idade, sabedoria e graça. Quando proclamou a sua missão, afirmou a sua liberdade de expressão e de ação também diante das normas, tradições e da família.
Para que Maria pudesse transmitir uma natureza humana capaz de acolher e exprimir a pessoa divina, o Espírito precisou trabalhar no seu pensamento, na sua vontade, nos seus sentimentos, nos seus propósitos, nas suas relações, e torná-los totalmente abertos a Deus e como que cheios por Deus.
Não só; o Espírito tornou humanamente valiosos os traços e as atitudes de Maria, isto é, capazes de manifestar o melhor da humanidade em retidão, bondade, energia, justiça, beleza de palavras e de gestos, sinceridade. De fato, os discípulos e o povo, chegavam a reconhecer e confessar a divindade de Cristo através da sua humanidade.
Maria tornou-se, assim, a Mãe de Jesus como era entendida antigamente e ainda é entendida hoje: não uma incubadora ou um seio emprestado, mas justamente a Mãe, aquela que concebe e dá à luz comunicando a natureza como ela a possui.
O Espírito não opera por força nem mecanicamente; mas por sugestão, diálogo interior, inspiração; toma o tempo necessário para fazer com calma, com ritmo humano, uma bora completa e bem harmonizada.
É também o nosso itinerário e a nossa história: sentir interiormente o chamado, deixar-nos fecundar interiormente pelo Espírito para depois plasmá-lo ao longo da vida e gerar frutos apostólicos.
2. A Visitação: um serviço generoso
A visita de Maria a Izabel280 parece um instantâneo de vida cotidiana: o gesto de solidariedade e delicadeza feminina de todos os tempos. Maria põe-se em viagem para oferecer os serviços que uma jovem mulher pode prestar a uma parente anciã à espera de um filho.
A pronta partida, a longa viagem, a assistência solícita e afetuosa, são gestos que a Igreja conservou na memória e ofereceu como modelo. São Francisco de Sales colocou a Visitação como ícone da sua fundação: uma caridade que vai ao encontro, entra em casa e assiste com delicada solicitude.
Era e é comum que nestes encontros as futuras mães falem de suas expectativas, de seus temores e de seus segredos. Maria e Izabel deviam ter muito a conversar. Uma, pela experiência singular da sua concepção, a outra pela longa espera de um filho.
É um quadro delicado de intensa humanidade que escritores e pintores nos fizeram apreciar completando-o, para nosso prazer, com detalhes pitorescos do ambiente doméstico.
Isso tudo não é marginal na experiência de Maria e em nossa espiritualidade. Estes aspectos domésticos e populares libertam a imagem da Mãe de Deus dos atributos extra-humanos e fenomenais com que a concebe a fantasia, mas que estão distantes da narração evangélica.
Também para nós é uma orientação: o chamado insere-nos na vida do povo segundo as suas necessidades e demandas, mesmo elementares e naturais, lidas em nova chave, o amor, o serviço, a compaixão.
Contudo, se nos limitássemos a estes aspectos, não alcançaríamos o significado central deste episódio. A visita é narrada como uma revelação, uma intervenção de Deus que difunde a notícia da sua presença entre os homens e realiza a sua promessa de aliança através da concepção do Salvador no seio de Maria.
Aquilo que era um segredo de Maria, é reconhecido por aqueles que esperam este segredo, personalizados por Izabel, pelo sacerdote Zacarias e pelo precursor João. A notícias se difundirá na região será proclamada em todo o mundo através da mensagem dos anjos e da revelação aos magos. Tudo começa e acontece com e pela presença de Maria, sempre em todas as passagens, imagem da Igreja.
A caridade e o serviço levam sempre ao homem uma boa notícia, seja ou não acompanhada de um discurso “religioso”.
Os fatos e os personagens do Antigo Testamento que se entreveem no episódio orientam nesta leitura. Maria é representada como a Arca da Aliança, quando Davi a tira da terra dos filisteus para levá-la solenemente a Jerusalém. A expressão que Izabel dirige a Maria reproduz a de Davi: “Como poderia vir até mim a Arca do Senhor?”.281 A exultação da casa de Zacarias recorda a alegria do rei que dançou, quase fora de si, diante da Arca e a festa do povo à chegada do Senhor.
Agora, a presença de Deus não é mais através de sinais, mas pessoalmente, Ele se fez homem, Quem o contém e o transporta não é um tabernáculo, uma tenda ou um templo material: é a humanidade, especialmente aquela que crê, a Igreja, na pessoa de Maria. De agora em diante, não será mais com o ouro, com a madeira ou com as pedras que edificará a habitação de Deus na terra, mas com a fé, a caridade e a esperança. A maternidade louvada não é a física, mas aquela que vem da fé: “Bem-aventurada és tu, que acreditaste”.282
Ao redor deste ponto central de atenção, que é a vinda de Deus salvador entre os homens, são construídos os outros elementos do quadro. A humanidade exulta naquele que será a testemunha mais próxima da manifestação de Cristo, João Batista. Quando o menino se agita no seio, diziam as mulheres, isso significa que ele sonha, prevê, pressagia. Esta alegria de João no seio da mãe é anterior à manifestação da sua Inteligência. É, portanto, a voz do Espírito nas vísceras da humanidade que anseia pela presença de Deus.
A anciã Izabel representa o fim de uma época que se esgota, mas que não termina com a morte. É-lhe dado ver a aurora do tempo novo.
O Evangelho leva-nos novamente a uma terceira perspectiva: como este evento haverá de transformar a vida do homem. O “Magnificat” é o cântico com que Maria recolhe a experiência vivida por ela e a relança para todas as gerações. É tudo mais que uma poesia para coroar o episódio. Ao contrário, é um “credo”, a profissão pessoal de fé de Maria que assume em si todo o povo messiânico; deste povo, Maria se torna voz e coração. É o hino da humanidade crente de todos os tempos.
Não apresenta uma explicação racional sobre Deus, mas contempla as suas obras salvíficas na história dos homens, iniciando da sua concepção virginal e do anúncio da vinda do Salvador: “Fez em mim grandes coisas”.
Ele intervém, hoje, de forma inesperadamente eficaz e faz surgir um mundo novo no qual são revirados os esquemas habituais da história mundana; os que contam para Deus, os que conduzem o projeto de justiça não são os orgulhosos e poderosos, mas os humildes, os que passam fome, que coincidem com os que sentem necessidade de Deus e dos outros.
Este é o mistério gozoso da Visitação.
A Igreja o revive como um fato que se atualiza hoje na comunidade eclesial e em todos os que esperam, buscam ou acolheram Cristo.
Maria parte, ignara do acontecimento que explodiria na casa de Izabel. Nessa partida, aparentemente espontânea, havia a inspiração de Deus que preparava a sua manifestação. A caridade predispõe à manifestação de Deus, a exprime e ilumina; é preparação, caminho, sinal e efeito do anúncio. Difunde-se em nosso coração pelo Espírito Santo e coloca-se à disposição dos outros segundo as suas urgências humanas, como beneficência, assistência, educação, acompanhamento para Deus.
3. O Nascimento de Jesus
Estamos habituados a ouvir a narração do nascimento283 no clima do Natal. São Lucas escreveu-o quando ainda não existiam os presépios. E não teria imaginado que as ovelhinhas, as pequenas casas, as luzes, as estrelas pudessem diminuir a atenção para os três personagens – Jesus, Maria, os pastores – ao redor dos quais ele constrói a sua meditação.
Maria no Evangelho, além de ser a Mãe de Jesus, representa sempre também a Filha de Sião, isto é, o povo eleito que gera o Messias na história humana. É também figura da Igreja que traz Jesus no próprio seio, o faz nascer nos povos, crescer até torna-lo visível através da vida e do testemunho das comunidades. É o modelo do ser cristão proposto aos discípulos de Jesus.
O texto apresenta o momento da Encarnação. Lucas quer dar a ideia de que se trata de um nascimento real de um verdadeiro homem; por isso, registra a data, a época histórica, o local, as circunstâncias do parto, os cuidados da Mãe.
É um acontecimento, aparentemente insignificante, que acontece numa pequena nação, nem mesmo em seu interior, mas nos arredores de uma cidadezinha desconhecida, fora dos ambientes nos quais acontecem as coisas que contam e nos quais se tomam as decisões que têm influência sobre a gente. Belém é o oposto de Roma, de Jerusalém ou da Babilônia. A gruta é a antítese de uma corte, de um templo ou de um palácio.
Assim sendo, o fato teria ficado para sempre oculto e insignificante. O anúncio dos anjos, porém, faz com que se torne “notícia” para os pastores que não só escutam a narração do acontecimento, mas a sua interpretação salvífica: o menino que nasceu não é um homem qualquer; é o esperado, o Salvador.
Os pastores, símbolo de todos os que esperam e são movidos interiormente por Deus, vão à gruta e ali recebem a confirmação do anúncio recebido dos anjos. Depois, difundem a notícia.
Lucas reproduz assim a natureza da evangelização. Ela não é uma teoria sobre Deus e o mundo, nem ensina apenas verdades religiosas ou éticas, mas refere acontecimentos realmente acontecidos, evidenciando o significado que têm para o homem e a mensagem que contêm. A luz que se desprende do anúncio vem de Deus, mas é contida e revelada nos fatos da história humana.
E, aqui, Lucas sublinha o conhecimento diferente que os vários personagens têm da Encarnação e do seu significado, que são como a chave para viver na fé todos os demais eventos da vida pessoal e social.
Os pastores devem dirigir-se ao local onde acontece a Encarnação e onde se pode ter o seu testemunho direto. Eles se detêm um pouco de tempo e escutam Maria. Depois, retornam e referem o que lhes foi dito sobre o menino. Eles não têm experiência pessoal de fatos anteriores, como o anúncio e o nascimento virginal e nem mesmo assistiram o aparecimento de Jesus.
A gente que escuta os pastores admira-se com o que eles contam. Isso ainda não exprime a fé, mas apenas é a tomada de interesse inicial, de curiosidade pelas coisas estupendas nas quais a fé pode ter início.
“Maria, por sua vez, conservava todas estas coisas, meditando-as em seu coração”.284 Maria não deve ir, como os pastores, ao local onde acontece a Encarnação. Ela já está ali, faz parte do evento. Não deve ouvir de outros como as coisas aconteceram e qual o seu significado. Ela conserva memória de todas as promessas feitas à humanidade, como demonstra o Magnificat, e está ciente de que Aquele que cresceu em seu seio veio do Espírito Santo.
Visto o menino, Maria não se afasta do local do evento, como os pastores. Permanece ali. Não pode afastar-se. Onde quer que Jesus se encarne, ela é indispensável. Não entende ainda todos os significados que emanam dali, nem pode enumerar todas as energias que brotam da Encarnação.
Significados e energias haverão de se revelar ao longo da vida de Cristo e ao longo de todos os séculos. Contudo, Maria conserva no coração a lembrança do acontecimento, tem-no como caro, medita-o, está atento a ele e, oportunamente, sabe repensá-lo para tirar dele novas consequências.
É a figura da Igreja e da sua relação com o nascimento e o crescimento de Cristo no mundo e em cada povo. Também ela, a Igreja, faz parte do evento da Encarnação e está ali onde quer que Cristo se introduza e torna-se boa notícia. Também ela não sabe ainda tudo o que os tempos revelarão sobre Cristo. Tem, porém, no coração e na memória um acontecimento que a ilumina: Jesus, Palavra de Deus que se fez homem. Dele, qualquer coisa veja e qualquer coisa apenas entreveja, qualquer coisa entenda e qualquer coisa lhe seja obscura, porque ainda se deve revelar. Isso lhe serve para alegrar-se interiormente, para permanecer serena, para trabalhar, para orientar-se. Entretanto, não se afasta de Cristo, refere-se a Ele, testemunha-o, anuncia-o.
Esta é a meditação de Lucas. E também a nós pode sugerir alguns pontos de meditação sobre a nossa espiritualidade pastoral.
Não podemos ser apenas visitantes, turistas da Palavra e do mistério de Cristo. Santo Agostinho, comparando as três atitudes de que falamos, pergunta ao cristão: A quem te assemelhas? Àqueles que ouvem o anúncio e apenas se admiram? Aos pastores que vêm à gruta, recebem alguma notícia e partem para anuncia-la, ou a Maria que recolhe toda a verdade de Cristo, conserva-a na mente e medita-a continuamente? A admiração dos primeiros logo se dilui; a informação dos pastores, embora ditada pela fé, é imperfeita e inicial. Somente quem contempla e interioriza o mistério de Cristo pode extrair dele nova luz e significados para os tempos e para os povos.
A história da Igreja enumera muitas figuras de evangelizadores de primeiro plano. São todos “mediadores” pacientes da Palavra. Aquilo que aprofundaram na oração e no estudo eles o exprimem na pregação, nos escritos, na guia da comunidade cristã, na orientação das almas.
Comunicar o acontecimento de Cristo é a nossa profissão e a finalidade da nossa vocação. Devemos ser seus especialistas não tanto pelo uso dos meios técnicos, mas porque nos aproximamos dele com calma e tempo, tiramos dele luz para a nossa vida pessoal, confrontamo-lo comunitariamente com o que observamos no nosso ambiente; isso se chama interioridade.
A Encarnação, isto é, a presença salvífica de Deus na vida dos homens através de Jesus, além de objeto de meditação, será para nós também critério pastoral.
Isso comporta três coisas:
a nossa disponibilidade para assumir com prontidão a realidade que devemos evangelizar, inserindo-nos no povo ao qual somos enviados e compreendendo na fé a sua cultura;
a convicção de que em tudo que se desenvolve do ponto de vista humano há uma misteriosa presença e ação de Deus, e que toda revelação de Deus produz um crescimento em humanidade;
o esforço de individuar as expectativas e as demandas das pessoas e dos povos, para nós sobretudo dos jovens, que suspiram pelo advento do Redentor.
4. As bodas de Caná: Cristo, chave da vida
“Jesus manifestou a sua glória e os discípulos creram n’Ele”.285 Termina assim a narração das bodas de Caná.286 Tanto São João como a Liturgia colocam estas bodas entre as principais manifestações de Jesus; primeiramente aos Magos, depois no Batismo e, agora, no casamento de Caná.
Esta manifestação, contudo, tem uma particularidade em relação às anteriores. Não acontece num contexto milagroso ou numa circunstância religiosa, como o nascimento ou o batismo, não há testemunhas celestiais: anjos, estrelas, cânticos misteriosos ou vozes do céu. Não há nem sequer pregadores ou profetas.
Acontece numa festa de família, no contexto de uma celebração popular, no coração de um evento alegre: o amor entre dois jovens, o seu desejo de felicidade, a sua promessa de fidelidade, a sua vontade ou instinto de prolongar-se através dos filhos, a participação alegre dos parentes e conterrâneos; um banquete no qual se fizeram todos os esforços para satisfazer os comensais.
Isto nos sugere logo um pensamento: Jesus, Deus, se manifesta nos momentos de culto e de oração, mas não só; Ele está presente em todas as nossas experiências autênticas de vida, alegre ou dolorosa. Com as bodas de Caná podemos colocar a experiência da amizade, do trabalho, o esforço para realizar alguma coisa.
E isso porque o Verbo se fez carne: entrou no coração das nossas experiências, assumindo-as e tornando-se participante e solidário delas. Jesus está em nossas festas e em nossas tristezas. O amor apresentado em Caná é a principal das experiências humanas e como que o protótipo de todas as outras.
Temos uma orientação para a Igreja e para cada cristão: ser solidários e participantes das alegrias e esperanças dos semelhantes; jamais separar-se deles, mas assumir as suas preocupações e angústias; e não como “curiosos” ou pesquisadores, mas “compadecendo-se” e “alegrando-se” com eles, compartilhando.
Na festa, contudo, acontece um fato: veio a faltar vinho. A alegria está a ponto de esgotar-se; a companhia está para dissolver-se. O que os encarregados da festa predispuseram, segundo os cálculos e previdências exigidos pela ocasião, não se sustentou.
Também esta passagem da narração tem o seu correspondente em nossa experiência. Toda alegria ou todo empreendimento humano deixados apenas ao seu dinamismo natural, ao cálculo e às forças humanas, está exposta ao esgotamento e, com frequência, também à corrupção. Num determinado momento parece chegar ao fim da linha e não consegue dar mais nada de si: acontece com o amor. Pensai nos namoros ardentes que se esvaziam, e nos casais que, embora tendo começado a relação com sinceridade e boa vontade, acabam por não encontrar mais nem motivo nem gosto para viver juntos.
Acontece também com os propósitos generosos e com a solidariedade. Colocamo-nos frequentemente em estado de alerta em relação aos jovens sobre este risco quando os vemos espontaneamente generosos, mas inconscientes sobre quais sejam as fontes perenes da generosidade.
Há na narração um particular interessante: Jesus participa, com seus discípulos, mas “misturado”, quase “submerso”, “ignorado”, “anônimo”. Não emerge; não foi apresentado como convidado famoso e não aparece nem sequer como o animador da festa ou o centro das relações.
É um dos muitos, portanto; ninguém o vê como o homem-chave, nem lhe pediria a solução do problema. Há necessidade de alguém, que já o conhece, o tire do anonimato, o indique como aquele que pode resolver o infeliz incidente de uma festa que está se estragando.
A esta altura entra em cena a dulcíssima figura de Maria, imagem da Igreja e, portanto, de todos nós. E que assim seja, indica-o o detalhe, não só narrativo, mas simbólico e alusivo, que Jesus está ali “com os seus discípulos”.
Ela perceber por primeira a situação, mesmo antes de Jesus. Ela sente quase que por instinto as situações humanas. Não as deve assumir; ela, como nós, nasceu e viveu na própria condição humana. Ela não é um ser divino encarnado; é uma criatura humana, nascida e vivida em condições comuns.
Maria não faz críticas, nem sequer maternas, àqueles que falharam no cálculo; não faz comentários de “especialista” de banquetes e festas familiares, e não indica soluções técnicas sobre o modo e onde nos arredores se possa encontrar uma solução.
Ela indica e recorre a Jesus. À resposta de Jesus, que demonstra não quer depender das ligações de parentela, ela lança outra cartada: a sua fé; “fazei o que ele vos dirá”.287
Mesmo neste caso, há uma indicação do que a Igreja e nós cristãos, em particular os consagrados, trazemos de específico e de resolutivo à festa da vida: o sentido da presença de Deus, a experiência de Cristo, a confiança no seu coração e no seu poder.
E é também uma orientação para o nosso modo de agir; não como críticos da triste condição humana, nem principalmente como “especialistas” que demonstram ter uma lista de soluções, mas como pessoas solidárias, dispostas a compartilhar o que temos de fé e de conhecimento de Jesus.
Não escapará certamente que a narração é um entrelaçamento de símbolos; há as núpcias, que uma longa e ininterrupta tradição bíblica vê como a imagem do amor de Deus pela humanidade e da aliança histórica com o povo eleito; há as jarras para a purificação segundo os costumes dos judeus, símbolo do judaísmo superado; elas são de pedra como as tábuas da lei e pesadas, imóveis; estão também vazias, não contêm nada; há uma abundância fabulosa de vinha: 500 litros e não do comum, mas de valor, próprio de entendedores exigentes. Para sublinhar a abundância, João dirá que os servos encheram as jarras “até a borda”. Há, portanto, ar de festa, de alegria, de abundância sem limites; há as palavras de Jesus: “a minha hora”.
João quis mostrar-nos o exaurimento da experiência religiosa hebraica e de todas as outras experiências semelhantes, no que se refere ao sentido da vida humana e à relação de Deus e com Deus. Em Cristo, porém, surge uma possibilidade riquíssima de comunicação e de graça, mais do que o homem possa esperar.
N’Ele tiveram início as núpcias de Deus com a humanidade e estas núpcias têm a Igreja como a sua Caná, o lugar da sua festa, a comunidade que se reúne ao redor de Jesus, onde estão Maria e os discípulos. Como Maria, a Igreja revela o mistério da sua presença porque tem disso uma experiência direta: os discípulos creem, isto é, conseguem compreender o significado do “sinal” porque já encontraram o Senhor e formam com Ele uma família; os outros, embora não cientes do milagre, recebem os seus benefícios; bebem o vinho e continuam a celebração do amor e da solidariedade.
No início e a qualquer momento do nosso caminhar, Jesus está sempre no centro da nossa atenção. Nós o conhecemos, frequentamos, tomamos como chave da alegria, mostramos aos jovens como salvação, anunciamos como aquele que pode trazer a solução para as questões humanas e além delas.
5. Aos pés da Cruz: a fecundidade no Espírito
Maria aos pés da Cruz288 é um ícone pascal. A representação “lacrimosa” prevaleceu apenas nos últimos séculos. No Evangelho, contudo, não se acena às lágrimas ou à tristeza. Simplesmente “estava em pé”,289 participando conscientemente deste acontecimento supremo da humanidade.
A cruz, para São João, coincide com a glorificação de Jesus; é o momento culminante da sua revelação, o seu ir ao Pai. “Quando for elevado da terra atrairei todos a mim”.290 E é também o momento do dom do Espírito.
Da Cruz nasce a comunidade dos crentes, representada pelo pequeno grupo fiel que se reúne ao redor dela e simbolizada pela água do Batismo e pelo sangue da Eucaristia que emanam de Cristo. Na Cruz e neste grupo, funda-se a nova unidade do gênero humano, que Cristo deve realizar segundo a promessa messiânica.
Nesta cena, que representa a Igreja nascente estão inseridas as palavras dirigidas a maria, que sugerem mais um símbolo a decifrar, um mistério a revelar, do que a narração de um festo filial.
O gesto está no centro dos últimos e supremos que a memória cristã da morte de Jesus se preocupou em transmitir. Precede-o o aceno à túnica “sem costura, tecida toda por inteiro”291 que os soldados não dividem, que é o símbolo da humanidade recomposta, do povo de Deus reunido definitivamente pela graça de Cristo. E é seguido pela expressão com que Jesus declara a realização do desígnio do Pai. “Disse: Tudo está consumado. E, inclinando a cabeça, expirou”.292
Assim iluminado, João apresenta o diálogo entre Jesus, Maria e o discípulo.
Jesus dirige-se primeiramente a Maria. Temos a impressão, e é assim mesmo, que não é Maria a ser confiada a João, mas que ele lhe seja dado como filho.
Maria não é chamada com o seu nome, mas sempre com o apelativo de “sua Mãe”, o que recorda de perto o episódio de Caná, do qual o próprio João afirma que nele “Jesus manifestou a sua glória e os discípulos creram n’Ele”.293 Caná era a revelação inicial da glória do Messias, que tem o seu ponto mais alto na morte.
Também faz pensar o apelativo de “mulher”, que nos leva ao mesmo episódio, símbolo das novas núpcias de Deus com a humanidade. E, mais atrás na história, faz pensar na mulher da criança, da tentação e da sentença de Deus: Eva. Estamos num novo início da humanidade.
Do discípulo, por outro lado, jamais é dito o nome. Ele representa todo seguidor de Jesus, o conjunto dos discípulos, a comunidade dos seus fiéis, que se caracterizam porque são amigos de Cristo, amados por Ele, fiéis a Ele.
Estamos, então, no momento não de uma solução familiar, mas de uma entrega solene e sagrada, de um testamento, de um ponto de partida.
Jesus chama Maria a uma nova maternidade que tem origem na Cruz e se torna fecunda pela Cruz. É uma nova capacidade de fazer nascer homens do Espírito. Maria será Mãe de Cristo, não só por tê-lo acolhido em seu seio, mas porque, identificando-se sempre e totalmente com a comunidade que nasce da Cruz, o conceberá continuamente na história em milhões de pessoas ao longo dos séculos. Trata-se de outra anunciação; para nós, uma representação da Auxiliadora.
Maria representa a Igreja universal e também cada comunidade local. Todas nascem aos pés da Cruz, são chamadas a gozar das suas riquezas significadas pela água e pelo sangue e a dar-lhe testemunho com a ardente fidelidade daquele primeiro núcleo.
Por isso, a comunidade dos discípulos toma Maria consigo. Desde então, Ela está presente onde quer que esteja a comunidade cristã: visivelmente pela veneração e pelos sinais de devoção dos centres; mais profundamente, pela sua intercessão que sempre dá sinais novos e imprevisíveis. É a companhia que também nós sentimos em nossas comunidades e em nossos empreendimentos.
A Cruz recordar-nos o valor da oferta de si a Deus na caridade pastoral. As atitudes e os gestos de Cristo, que recordamos frequentemente como exemplares (acolhida, escuta, apoio, iluminação, misericórdia), têm na cruz o seu coroamento, a sua explicação, o seu preço.
O Pastor, que João apresenta no capítulo 10º, é aquele que dá a vida. Se isso fosse ignorado, a caridade pastoral se tornaria técnica de abordagem, relações públicas, forma de beneficência mais do que de salvação.
Maria, incorporada interiormente pelas palavras de Jesus a esta oferta, educa-nos ao sentido da misteriosa fecundidade do amor. Também para ela tudo tem sua realização e tudo se revela neste momento. A sua preocupação de fazer nascer o Filho de Deus assume outra dimensão em relação àquela que tinha em Nazaré e durante a vida terrestre do seu Filho: passa de Jesus à Igreja, a histórica e concreta, feita de homens e acontecimentos: da fecundidade humana à da graça. Aceitá-lo foi uma prova para a sua fé, como um salto de qualidade. E o é também para nós.
Maria, aos pés da cruz, recorda-nos a salvação de que queremos ser sinais e portadores; salvação que provém da Redenção de Cristo, que abre a Deus para receber dele a realização da própria existência. Colocamos em ação muitas iniciativas em favor dos jovens e adultos. Todas orientadas para a única e principal, todas fermentadas por aquela única expressa em nosso lema “Da mihi animas”: a salvação em Deus, que está no centro da ação de Jesus.
Com Maria, junto à cruz, descobrimos quais são as energias para a transformação que Deus que atuar em nós e em nossas comunidades: a água e o sangue; a Reconciliação e a Eucaristia. A liturgia que vivemos é toda baseada na pedagogia sacramental. As páginas evangélicas e os itinerários litúrgicos propõem esta pedagogia de mil maneiras.
Maria, aos pés da cruz, revela-nos o valor da comunidade, na qual se realizará o nosso serviço, daquela comunidade que está presente no sacrifício de Cristo de forma singular e diversa dos demais expectadores. Ela é portadora da memória e somente ela entende o seu sentido. É mais do que um “grupo”. É o espaço em que Deus revela a salvação.
Assim pensamos sobre as comunidades educativas que animamos, da Família, do Movimento Salesiano, das Igreja. Cuidamos delas em referência a Cristo, a unidade no amor e na ação.
Com elas invocamos e aguardamos o Espírito, vivemos atentos aos seus sinais e “partimos” e partimos para o além.
6. No Cenáculo: a comunidade com a força do Espírito
O pequeno grupo que reproduzia a Igreja junto à Cruz é apresentado nos Atos, capítulo 1º, em Jerusalém, ao retorno do local da Ascensão.294
Jerusalém é o lugar dos acontecimentos da salvação, o lugar onde se realiza a missão terrena de Jesus,295 o ponto de partida da missão universal dos Apóstolos.296
A comunidade do Ressuscitado reúne-se completa no Cenáculo, lugar onde foi proclamada e sigilada a nova aliança, onde a antiga Ceia Pascal foi inundada do seu significado definitivo, onde foi instituída a Eucaristia, onde Jesus apareceu diversas vezes aos doze reunidos. É plenamente uma imagem da Igreja!
Há no texto uma sucessão essencial e rápida de acenos aos acontecimentos principais da vida de Jesus: a paixão, as aparições, os discursos sobre o Reino, a promessa do Espírito, a ascensão, o anúncio da última vinda; tudo recordado pelos discípulos, embora ainda não totalmente compreendido em seu peso histórico.
Neste contexto, de uma comunidade reunida, com um patrimônio de verdade e uma missão confiada, Lucas anota: Todos eles eram assíduos e concordes na oração, com algumas mulheres e com Maria a Mãe de Jesus e com os seus irmãos”.297
É a única vez que Maria é nomeada no “período pós-pascal”. E é também a última do Novo Testamento. Trata-se de um aceno brevíssimo e passageiro.
Maria não parece protagonista da cena! Antes dela são enunciadas “algumas mulheres”. São aquelas mesmas que Lucas nomeou na narração da crucifixão, da sepultura, da descoberta do túmulo vazio, das aparições.
Entre estas mulheres, contudo, Maria a Mãe Jesus não nunca incluída ou nomeada. Impressiona que, agora, apresentando ordenadamente e de forma completa a comunidade do Ressuscitado, a Mãe de Jesus seja colocada na lista com o nome e o título.
Temos aqui, uma das passagens que servem para fazer um rápido resumo da vida da comunidade. De fato, há aqui, como nos outros trechos semelhantes, o aceno à concórdia, ao reunir-se, à oração. Não se trata, portanto, apenas de uma pequena notícia histórica, compatível com a narração, mas de uma reflexão teológica.
As mulheres com os Apóstolos no Cenáculo são o sinal de uma novidade inaudita no contexto judeu e representavam a reviravolta que a passagem de Jesus já atuara: uma comunidade sem discriminações nem separações de gênero, condição ou raça. O que conta substancialmente e une é ter sido objeto da predileção de Jesus e testemunhas que confessam a sua vida.
A menção das mulheres sublinha o fato e a importância da presença na comunidade de testemunhas diretas e apaixonadas da morte, sepultura e Ressurreição de Jesus, do que justamente estas mulheres foram as primeiras mensageiras.
Maria
Concentremos, agora, o olhar em Maria, nomeada depois das mulheres, como numa categoria diversa, toda sua. O texto exprime primeiramente uma convicção de fé: onde está a Igreja, a comunidade de Cristo, sempre está Maria, e vice-versa, como na concepção e no nascimento do Messias, como nas primeiras revelações (aos pastores e aos magos, a Zacarias e Simeão, no templo e em Caná), como no momento da oferta total.
Trata-se de uma indicação para a nossa vida pessoa, que tem influxo determinante em nossa ação pastoral. Nas Igrejas e comunidades que formamos e animamos, Ela deve estar, com um lugar distinto, como companhia, memória, espelho e inspiração.
A menção de Maria é colocada, portanto, na linha do testemunho direto. Ela conhece, tomou parte ativa nos fatos mais ocultos e misteriosos, menos conhecidos, que estão na raiz histórica dos mais visíveis e admiráveis que o grupo viu: a encarnação, o nascimento, o crescimento em Nazaré, o início da vida pública. Ela esteve com Jesus “todo o tempo em que ele viveu entre nós”,298 como será exigido de Matias, escolhido como substituto de Judas.
A imagem de Maria desenvolvida por Lucas é, aqui, a mesma que ele traçara no seu Evangelho. Ela não fazia parte visível do grupo que se formou ao redor do Messias, nem estava entre as mulheres que o seguiam. Contudo, era a perfeita discípula espiritual, única em sua categoria, em quem emergem a disponibilidade total à vontade de Deus e a confiança nas intervenções de Deus para realizar o que havia prometido.
Neste sentido, Maria é como uma rocha, um ancoradouro de esperança no tempo de espera. Os discípulos sentem-se órfãos da presença visível de Jesus. São enviados em missão ao mundo, missão da qual têm uma vaga ideia; não sabem em que consiste, quais são os caminhos mais adequados, não têm experiência da sua força oculta.
Esta não é a condição só da primeira comunidade cristã. Todas as comunidades, até as nossas e a própria Igreja experimentam estas impressões e hesitações. A presença de Maria dá sentido à espera, enche-a de confiança, faz dela uma serena experiência espiritual que foi justamente a sua: esperar o tempo do amadurecimento sem retrocessos nem quedas.
Entretanto, na espera, a comunidade dos discípulos, guiada pela autoridade designada por Jesus, completa-se e prepara-se para a missão, escolhendo o membro que falta, à luz da vontade de Deus. Discerne, purifica-se de interesses pessoais e espírito partidário. Abre-se sinceramente aos sinais.
E também persevera unida na oração. As duas palavras importantes: oração, unidos. Esta última exprime o propósito de manter a união, espiritual e visível, da comunidade em momentos de espera, de dúvida, de incerteza. Se os nossos tempos de espera fossem como estes seriam sempre fecundos. E nós vivemos permanentemente à espera!
Enfim, a comunidade com Maria prepara-se para receber o Espírito e, de fato, o recebe. Torna-se fecunda e capaz de gerar Jesus nos povos. Maria possuía a experiência do Espírito e da sua fecundidade porque fora a primeira a ser inundada por Ele e a dar à luz o Filho de Deus na história humana. Ela é garantia e salvaguarda para reconhecer e interpretar autenticamente a ação do Espírito na humanidade. Com a força do Espírito, a Igreja é chamada a continuar a encarnação de Cristo, a tornar concreto de muitas formas o seu amor pelo homem, a renovar a sua capacidade de serviço.
O senso feminino e materno de Maria não permitirá que as verdades da fé se tornem formulas abstratas, mas haverá de traduzi-las em gestos concretos de salvação, de transformação das condições de vida, de amor a Deus, de reforma dos costumes.
Assim também ela, sem status especial, recorda aos apóstolos que o “privilégio” de receber o Espírito não é para colocar-se “acima” dos outros ou “fora” da condição comum, mas para misturar-se, compartilhar, fermentar, servir.
Dom Bosco ensinou-nos a sentir esta presença. Ele mesmo a advertira antes e a confessara em sua vida e ação. Mas deu-a também como lembrança aos missionários: “Tornai Maria conhecida, e vereis os milagres”.299 É um preceito também para nós em nosso itinerário espiritual, em nosso trabalho pastoral, em nossa missão de animação comunitária.
Na oração de entrega invocamos Maria com dois títulos: Imaculada e Auxiliadora. Os mesmos títulos aparecem nas Constituições com um brevíssimo comentário para cada um deles: Imaculada, modelo da nossa consagração total ao Senhor e do nosso desejo de santidade; Auxiliadora, sinal e inspiradora do nosso trabalho pastoral no povo de Deus, particularmente entre os jovens.300301302303304305306307308309310311312313314315316317318319320321322
Os dois títulos não foram escolhidos e justapostos por acaso e nem mesmo por pura simpatia ou devoção. Eles refletem a história salesiana e sintetizam as características da espiritualidade das nossas Congregações. Muitos outros apelativos de Nossa Senhora aparecem na biografia dos fundadores: Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhor do Rosário, Nossa Senhora da Consolação, Nossa Senhora das Graças. E, verdade, então, que, para lá das diversas representações, eles sempre olharam para a pessoa de Maria, Mãe de Jesus, da Igreja, de cada um de nós.
É igualmente verdade, porém, que as duas imagens que mais recorrem e que deram para nós a fisionomia de Nossa Senhora são, sem comparação, Imaculada e Auxiliadora. De fato, a experiência espiritual e apostólica de Dom Bosco e de Madre Mazzarello tem como que três etapas.
1. A experiência oratoriana
A primeira é a experiência oratoriana. Dom Bosco a realiza com os meninos de Turim. Maria Mazzarello, com as meninas da sua cidade. A preocupação dominante é educar os jovens do próprio contexto. Todo esforço é dirigido a dar-lhes dignidade humana e abri-los à fé. As estruturas e os meios são poucos, mas em compensação, há muita doação e criatividade. O menino/a toma consciência de si e da vida da Graça. O educador/a tem por ele um cuidado materno-paterno. É o momento em que nasce e se plasma o Sistema Preventivo.
Neste ambiente há um fato evidente: Maria é sentida por educadores e jovens como uma presença viva, materna, potente. Os títulos que lhe são dados é coisa de importância secundária. Mas é verdade que no período oratoriano domina, acima de tudo, a figura da Imaculada.
A preferência de Dom Bosco por esta imagem provém do seu período juvenil. A Imaculada era venerada em Chieri. A capela do seminário onde ele estudara tinha no altar-mor uma imagem da Imaculada, diante da qual rezava todos os dias. O culto ao Imaculado Coração de Maria, originário da França, difundira-se no Piemonte. O título será reforçado com a declaração do dogma da Imaculada Conceição em 1854 e com as parições de Lourdes em 1858.
Algumas coincidências providenciais levaram, depois, Dom Bosco a atribuir à Imaculada uma intercessão especial nos inícios da sua obra: “Todas as nossas grandes iniciativas – dirá – tiveram início no dia da Imaculada” (MB XVII, p. 510). O modelo era o oratório, 8 de dezembro de 1841.
A imagem também representa Maria como vencedora do mal, com a serpente sob os pés, o que lhe recordava o triunfo da Graça sobre as paixões da pessoa e a vitória da fé sobre a impiedade e a heresia na história do mundo.
Madre Mazzarello percorreu um itinerário semelhante com as Filhas da Imaculada, expresso mais em devoção vivida do que em formulações explícitas.
Esta presença tão sentida deixou uma marca na pedagogia do Oratório. A celebração da solenidade da Imaculada, com a relativa preparação espiritual, tornou-se central.323 E continua a sê-lo ainda em nossos dias, onde existem oratórios-centros juvenis.
No Oratório, surgiu, depois, a Companhia da Imaculada, que corresponde ao que hoje chamamos de grupo de jovens colaboradores. Foi a semente e a prova da futura Congregação Salesiana. Nove sobre dez membros da Congregação Salesiana que em 18 de dezembro de 1869 se reuniram com Dom Bosco e o Padre Alasonatti (18 no total) eram membros da Companhia da Imaculada.324
Nesta atmosfera mariana amadureceram os temas mais importantes da educação dos jovens: a Graça, a pureza, a familiaridade com o sobrenatural, o amor a Jesus. Para os salesianos e as salesianas configurou-se o Sistema Preventivo como assistência materna e caminho para a santidade, com uma exigência de doação generosa a Deus e aos jovens. O fruto deste ambiente é Domingos Sávio.
Foi desenvolvido também um conjunto de intuições sobre o valor pedagógico da devoção a Maria. Em nosso trabalho, devemos contar com a presença materna e invisível de Maria. Ela ama cada um, mas especialmente os jovens porque os ajuda a crescer como fez com Jesus. É uma verdade de fé cristã, mas vivida de maneira não comum e transferida à experiência educativa.
A presença materna de Maria, sentida interiormente pelos jovens, infunde neles segurança e esperanças para construir-se como pessoas num momento difícil e delicado de sua vida, devido à instabilidade, ao desenvolvimento corporal, à discussão da fé. Maria Imaculada, como ideal de pureza, exerce uma atração sobre os jovens e dá-lhes o gosto e a vontade de empenhar-se em projetos nobres. A pedagogia de Dom Bosco tem certa componente estética. Desde o início, ele falou da beleza da virtude, da religião e da feiura do pecado.
A devoção a Maria também ajuda a familiarizar-se com as realidades sobrenaturais e a sentir Deus um pouco mais próximo e encarnado. Ele é pensado em relação com uma mulher apresentada sempre como Mãe e como nossa Auxiliadora. É o estímulo espiritual.
A catequese oratoriana tendia, pois, a fazer acolher e interiorizar esta imagem até penetrar na vida dos jovens como garantia para a perseverança futura. A isso tendiam tríduos, novenas, florzinhas, enfeites, peregrinações, visitas a lugares marianos. A etapa “oratoriana” para Dom Bosco estende-se até a organização de Valdocco; para Madre Mazzarello a todo o tempo das Filhas da Imaculada até a fundação do Instituto de vida consagrada.
2. O santuário de Maria Auxiliadora
Por volta de 1862, Dom Bosco sente a necessidade de ter uma igreja maior. Aquela de que dispõe é muito pequena para os jovens e salesianos que já se multiplicaram em Valdocco. “Um sábado de dezembro – refere o Padre Albera – talvez o dia 6, Dom Bosco tendo terminado de confessar os jovens pelas 11 da noite, desceu para o jantar no refeitório próximo à cozinha. Dom Bosco estava pensativo. O clérigo Albera estava a sós com ele quando Dom Bosco, de repente, passou a dizer-lhe: – Confessei bastante e, na verdade, quase não sei o que disse ou fiz, tanto me preocupa uma ideia que, distraindo-me, me levava irresistivelmente para fora de mim. Eu pensava: a nossa igreja é muito pequena; não cabe todos os jovens ou eles ficam grudados um no outro. Portanto, faremos uma mais bela, maior, que seja magnífica. Daremos a ela o título de Igreja de Maria Auxiliadora”.325
Ele também vê a conveniência dar um lugar de culto ao povo dos arredores porque Valdocco, de periferia quase rural, tornou-se um bairro urbano. É o mesmo ano do encontro de Dom Bosco com Maria Mazzarello, o início distante do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora.
Ao mesmo tempo, Dom Bosco intui, embora ainda vagamente, algo que vai um pouco mais longe. É o momento da consolidação da obra de Valdocco. A Congregação, fundada há quatro anos, já tem um primeiro núcleo e Dom Bosco começa a vê-la como uma realidade em expansão. Pensa, portanto, num “centro” real e simbólico desta nova Congregação. “– Sabes de outra razão para construir uma nova igreja?”. Pergunta a outro dos seus clérigos, Padre Cagliero. “– Creio, respondeu ele, que será a igreja-mãe da nossa futura Congregação, e o centro do qual se difundirão todas as nossas obras em favor da juventude”. “– Adivinhaste, disse-me. Maria é a fundadora e será a sustentadora das nossas obras”.326
Nesse tempo, comentam-se na Itália as aparições acontecidas em Spoleto (pequena cidade da Úmbria), num momento particularmente delicado para a Igreja e o Papa. Difunde-se a ideia de construir um templo no lugar das aparições e recolhem-se contribuições em todos os lugares, também em Turim.
Sob estas três impressões: a presença manifesta de Maria no povo cristão, os perigos da Igreja, a dificuldade dos tempos, Dom Bosco escolhe o título para a sua igreja e dá as seguintes motivações: “Celebramos, até agora, com solenidade e pompa a festa da Imaculada e neste dia tiveram início as nossas primeiras obras dos oratórios festivos. Nossa Senhor, porém, quer que a veneremos sob o título de Maria Auxiliadora. Os tempos caminham tão tristes que precisamos realmente que a Virgem Santíssima nos ajude a defender a fé cristã...”.327
Dom Bosco torna-se assim, resolutamente, o apóstolo da devoção a Maria Auxilium Christianorum.328
A construção do templo é mais do que um trabalho técnico, do que uma preocupação com os projetos, materiais e financiamentos. Representa para Dom Bosco uma experiência espiritual e o amadurecimento da sua mentalidade pastoral. Dom Bosco está ao redor dos 45-50 anos, anos da sua maturidade sacerdotal e bem fundamentada projeção social, com algumas obras já organizadas e outras apenas iniciadas. Ao final da construção alguma coisa se transformou nele. Por quais razões?
Primeiramente, porque a realização supera a ideia inicial: de uma igreja para a sua casa, o seu bairro e a sua Congregação, ia-se traçando a ideia de um santuário, meta de peregrinações, centro de culto e ponto de referência para uma família espiritual. A realidade crescera-lhe entre as mãos.
Os problemas econômicos, depois, foram resolvidos com graças e milagres que estimularam uma generosidade não calculada do povo. Tudo isso arraigou em Dom Bosco a convicção de que “Maria construíra a sua casa”, “que cada tijolo correspondesse a uma graça”.329 A construção concluída em apenas três anos e as despesas acumularam-se sobre as outras necessárias para manter tantos meninos.
Na origem do santuário de Valdocco não há, como em outros lugares marianos, uma aparição ou um milagre. Mas o próprio templo acaba por ser um lugar e um complexo “taumatúrgico”.330 Afirmou um sacerdote daquele tempo, certo teólogo Margotti: “Dizem que Dom Bosco faz milagres. Eu não creio nisso. Mas aqui houve um que não posso negar: trata-se deste suntuoso templo que custa um milhão e foi construído em apenas três anos com as ofertas dos fiéis”.331
Durante a construção surge e cresce a fama de Dom Bosco operador de milagres e o seu nome começa a difundir-se além do Piemonte; de um sacerdote conhecido apenas em sua terra, passa a ser um personagem símbolo da novidade pastoral na Igreja. Ele sente a responsabilidade desta fama de “operador de milagres” e consulta um teólogo, Monsenhor Bertagna, se deve continuar a dar a bênção de Maria Auxiliadora! A resposta é afirmativa.
A construção coincide e é seguida pela fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora. Elas representam o alargamento do carisma ao mundo feminino, com o consequente enriquecimento; assim como outra fundação, a arquiconfraria de Maria Auxiliadora é, com os Cooperadores, a extensão ao mundo leigo. Começa, então, a expansão das Congregações. Terá a sua manifestação vistosa nas expedições missionárias que, até há poucos anos, partiram todas do Santuário.
Veio-lhe como consequência a abertura apostólica: do instituto educativo à pastoral popular com elementos típicos: a pregação, os sacramentos, a prática da caridade mediante ofertas materiais e participação nas atividades caritativas. Seguiu-se também o trabalho sistemático pelas vocações adultas chamado “obra de Maria Auxiliadora”.
Sem tornar absoluta a afirmação, pode-se dizer que Dom Bosco começou a construção como diretor de uma obra e a concluiu como chefe carismático de um grande movimento ainda em germe, mas já definido nas finalidades e nos aspectos distintivos; iniciou-a como sacerdote originário de Turim e concluiu-a como apóstolo da Igreja; passou da cidade ao mundo.
Se a experiência do Oratório dera como resultado positivo a praxe pedagógica, a obra do santuário fez emergir no trabalho salesiano uma visão de Igreja, como povo de Deus espalhado pela terra inteira, em luta com as potências do mal; uma perspectiva que apresentará de outra forma no sonho das duas colunas (1862), representado hoje numa pintura na parede de fundo do Santuário. Ele forjou um estilo pastoral feito de audácia e confiança: saber começar com pouco, ousar muito quando se trata do bem, ir adiante entregando-se ao Senhor. Esculpiu uma convicção no coração da Congregação: “Propagai a devoção a Maria Auxiliadora e vereis o que são os milagres...”332 em todos os campos: econômicos, sociais, pastorais, educativos.
3. A formação das Congregações
Contemporaneamente a estes acontecimentos nascem, crescem e tomam corpo as duas Congregações. Foi o maior trabalho de Dom Bosco. Couberam a Madre Mazzarello as dificuldades domésticas. Dom Bosco, além destas, precisou enfrentar práticas administrativas, obter beneplácitos dos bispos e da Santa Sé. “Se tivesse sabido desde o início o que exigia, talvez não teria começado”.333
As Filhas da Imaculada tornaram-se Filhas de Maria Auxiliadora, não ser alguma pequena resistência e perda como referido pela Cronistória.334 Só a mudança de imagem já o demonstra. No altar-mor da igreja da Casa de Mornese havia o quadro de Nossa Senhora das Dores. A primeira imagem da Auxiliadora foi colocada alguns anos depois da fundação, mas num pedestal ao lado da balaustrada (1875). No ano seguinte, foi colocada uma estátua no jardim e celebrou-se a festa de Maria Auxiliadora. A primeira expedição missionária, porém, só levou uma imagem de Maria Auxiliadora, adquirida pelo Padre Cagliero.
A mudança não se deu a um entusiasmo momentâneo. Mas foi uma tomada de posição sobre o estilo espiritual e apostólico do Instituto. Não era a mesma coisa ser Filhas de Nossa Senhora das Dores e de Maria Auxiliadora. Dom Bosco, e depois dele os seus sucessores e as superioras falaram de “um templo vivo e espiritual”, de um “monumento de gratidão” a Maria Auxiliadora. É interessante ver o que entendiam. “É a denominação de uma Congregação educativa, catequista e missionária” disse Madre Ângela Vespa.335 É a denominação de um Instituto “que tem por finalidade formar na piedade e na virtude as jovens e difundir a devoção a Maria no mundo todo”,336 “a denominação de um Instituto no qual Maria deve reviver em suas Filhas de modo que a tornem presente no mundo todo”337 e que cada uma delas seja uma cópia viva de Maria.338
Portanto, também no ramo feminino o nome de Maria Auxiliadora sublinha o aspecto apostólico, a saída da aldeia e o serviço à Igreja e ao mundo.
A fundação das Congregações deixou como resultado em Dom Bosco o sentimento de ser instrumento de um projeto inspirado e realizado com uma especial mediação de Maria: “Nossa Senhor quer que iniciemos uma sociedade... nos chamaremos salesianos”, diz em 26 de janeiro de 1854. E o confirmará com frequência. Quando, de volta da Espanha comenta no trem: “Tudo é obra de Nossa Senhora. Tudo tem início naquela Ave-Maria recitada com um menino com fé e esperança”. Ou ainda mais, quando durante a missa na igreja do Sagrado Coração de Roma, interrompida quinze vezes pelas lágrimas, pensava na sua vida e recordava as palavras do primeiro sonho: “A seu tempo, tudo compreenderás”.339
Relacionado com isto há a convicção de uma especial assistência e relação entre Maria e a Família Salesiana além de qualquer título: “Eu vos digo diante de Deus. Basta que um jovem entre numa casa salesiana para que Maria o tome sob a sua proteção”.340
De Madre Mazzarello, por outro lado, escutamos repetir que o Instituto não é outra coisa que a família de Nossa Senhora, o “lar” que ela formou para si. Ela é a superiora, e tem uma vigária que coloca sob os seus pés todas as noites as chaves da casa.
4. Ícone e texto da nossa espiritualidade
Relendo na fé a história dos nossos Institutos e da Família Salesiana vemos que Maria foi a inspiradora do empreendimento e também a Mãe da nossa vocação comunitária e a Mestra da nossa espiritualidade.341
A nossa vocação pessoal e a nossa formação têm n’Ela um modelo, uma guia e uma educadora. “N’Ela encontramos uma presença viva e a ajuda para orientar decisivamente a nossa vida para Cristo e tornar sempre mais autêntica a nossa relação com Ele”.342
Por isso, reservamos-lhe um lugar privilegiado na nossa oração: “Recorremos a Ela com simplicidade e confiança celebrando suas festas litúrgicas e honrando-a com as formas de oração próprias da igreja e da tradição salesiana”.343
Tudo isso nos leva a fazê-la sentir presente na educação dos jovens e na pastoral entre o povo.
A fisionomia espiritual de maria foi representada no quadro do altar-mor da Basílica.
Sua história é conhecida. Dom Bosco queria uma representação artística completa do seu pensamento sobre a Igreja, sobre Maria como Mãe da Igreja, da Congregação a serviço da Igreja. Apresenta a sua ideia ao pintor Tomás Lorenzone. Quer apresentar Maria na Assunção ao céu e coroada como rainha. Ao redor, os anjos... mas depois, em outros círculos e grupos, os grandes personagens e os momentos importantes do caminho da Igreja: os apóstolos, os mártires, os profetas, as virgens, os confessores. Deviam-se reproduzir também os acontecimentos nos quais a intervenção de Maria parecera evidente... e também os povos que a invocam.
A resposta do pintor foi que, para criar tal obra, seria preciso uma superfície tão grande quanto a Praça Castelo. O quadro acabou por ser uma tela de sete metros de altura por quatro de largura. No espaço, o pintor procurou colocar o essencial da ideia de Dom Bosco. Quando o terminou, “ajoelhou-se em lágrimas e dizendo que o resultado havia superado as suas capacidades”.344
A composição compreende três planos. A figura de Maria no céu, com o Menino Jesus nos braços, ocupa o eixo vertical e a metade superior do plano horizontal. É retratada como Mãe de Jesus (Encarnação) e da Igreja. O cetro e a coroa, mais do que sinais de poder são símbolos de intercessão e de vitória sobre o mal, antes em si mesma e, depois, na história humana.
No plano superior percebe-se o Pai figurado mediante um olho e o Espírito Santo em forma de pomba: do Pai, através do Espírito, difunde-se sobre Maria um facho de luz: é e a eleição de Deus e a ação do Espírito Santo que a tornam Mãe de Cristo e da Igreja. O coro dos anjos recorda o céu: a Assunção, a sua páscoa, o início do seu papel de Auxiliadora. O conjunto também indica a origem da Igreja e a sua relação com o mistério de Deus Trino: do Pai, pelo Filho encarnado, no Espírito Santo.
O plano médio mostra a Igreja na história: os doze apóstolos, mais os dois evangelistas que não são apóstolos, mais São Paulo. E o fundamento da Igreja (os apóstolos), o seu dinamismo na evangelização (São Paulo), a guia da Igreja (Pedro com as chaves) e a maternidade de Maria. Todos trazem o símbolo do próprio martírio, sinal de doação total. É o húmus no qual nasce o carisma salesiana: a Igreja, a missão apostólica, o ardor espiritual.
O terceiro plano desenvolve-se em baixo e no fundo. Acena ao mundo de hoje, à basílica e ao que aconteceu no seu entorno como centro de um movimento de evangelização e de serviço à Igreja, que se inspira na maternidade de Maria e se entrega à sua intercessão poderosa.
Da nossa espiritualidade, o quadro comunica bem a unidade entre o sentido da iniciativa de Deus e a nossa habilidade pastoral. A nossa vocação vem do Pai e por Ele nós nos dedicamos ao trabalho educativo. Comunica bem também o sentido eclesial, de serviço: participamos da missão da Igreja e trabalhamos nela, atentos às suas urgências e orientações. Também apresenta bem o trabalho missionário de evangelização. E ainda a modalidade da nossa presença educativa: materna, protetora, preventiva.
Indice
Introduzionepag.5
La vita nello Spirito »9
Una moda o un segno?»9
Cosa fa lo Spirito Santo »11
Gesù, evento dello Spirito»13
Spiritualità: vivere secondo lo Spirito»17
Per la nostra riflessione »21
Don
Bosco: tipo e modello della nostra spiri-
tualità »22
Un'attenzione necessaria »23
Il nostro rapporto con Don Bosco»25
La fisionomia spirituale di Don Bosco»28
Il progetto di vita»35
Conclusione »36
Il
Signore ci consacra col dono del suo Spi-
rito »37
Alla
base della nostra spiritualità: la consa-
crazione »37
La nostra consacrazione »38
La
consacrazione, dono di Dio ed esperien-
za personale »42
Una scelta e un progetto di vita »45
Alcune conseguenze importanti »48
La carità pastorale »53
La carità »54
La carità pastorale»57
Linee di riflessione»63
235
La comunità: luogo, segno e scuola della spi-
ritualità
salesiana pag.64
Urgenza di una vita «traterna» »64
La comunità fraterna oggi »67
Rapporti e comunicazione per crescere »82
La spiritualità salesiana nel quotidiano »86
Contemplativi nell'azione»86
Il lavoro»100
Temperanza»103
La
spiritualità salesiana nella prassi pasto-
rale: il Sistema
Preventivo»107
I. Carità pastorale e carità pedagogica »107
Una forma originale di carità pastorale»107
Gli
atteggiamenti della carità pedagogica ..»109
II. Carità
pastorale nel lavoro educativo ....»116
L'incontro con il giovane»117
L'accoglienza»119
La creazione di un ambiente »120
Rapporto educativo personale »122
Conclusione »124
Educatori »125
I salesiani sono educatori»125
Educazione ed esperienza di Dio »128
Educazione e spiritualità»134
Evangelizzatori »137
La carità pastorale spinge ad evangelizzare»137
L'evangelizzazione
plasma la nostra spiri-
tualità »144
Alcuni
atteggiamenti e pratiche dell'evan-
gelizzazione »148
Riconciliazione »152
1. Educatori col senso della realtà»153
236
Profondamente riconciliati
pag.157
Penitenti»161
Educatori e ministri della penitenza »164
L'espressione matura della carità pastorale:
la paternità»167
Sacerdote educatore»167
La paternità tipica di Don Bosco»173
Espressione della paternità salesiana»175
Buon servitore di Cristo (1 Tm 4,6)»184
Unità tra persona e servizio»184
«La chiamata» alla responsabilità»186
Consapevolezza di essere «strumento» »191
Consapevolezza di essere chiamati ad un
«bel mestiere» »194
Icone evangeliche mariane della spiritualità
salesiana»198
L'annunciazione: appello e risposta »198
La visitazione: un servizio generoso »203
La nascita di Gesù »206
Le nozze di Cana: Cristo, chiave della vita»210
Ai
piedi della croce: la fecondità nello Spi-
rito »214
Nel
Cenacolo: la comunità con la forza del-
lo Spirito »218
Due titoli: una sintesi »223
L'esperienza oratoriana »223
Il santuario di Maria Ausiliatrice»226
La fondazione delle congregazioni »230
Icona e testo della nostra spiritualità »232
237
Questo
libro raccoglie quattordici riflessioni e approfondimenti della
spiritualità salesiana, che nascono dalla sapienza e dal cuore del
Rettor Maggiore della Congregazione Salesiana. Il punto centrale
della riflessione è il valore che hanno Cristo e la fede nella
situazione attuale e quindi la coscienza della originalità che i
cristiani devono acquisire per essere lievito in questo mondo che
entra nel terzo millennio: secolare, tecnologico, pluralista, libero,
unificato e diviso. Il libro è utile a tutti gli evangelizzatori ed
educatori.
Juan Edmundo Vecchi, argentino, dal 1996 è l'ottavo successore di Don Bosco alla guida della Congregazione Salesiana. Ha puntato a un forte impulso culturale per accompagnare la Famiglia Salesiana a un servizio pastorale sensibile e attento ai segni dei tempi.
1 VC 14.
2 Cf. Rm 8,22; Gl 6,15.
3 Cf. Jo 4,14.
4 Rm 8,14.
5 RM 28.
6 Jo 6,63.
7 Lc 1,35.
8 Lc 3,21.
9 Lc 4,18.
10 Cf. Lc 11,20.
11 Lc 10,21.
12 At 10,47.
13 At 11,17.
14 LG 4.
15 Rm 8,8.
16 Lc 23,46.
17 Cf. Gl 3,28
18 Cf. EM 75.
19 Cf. Rm 8,19-22.
20 1Cor 3,1-2.
21 DCG 38.
22 Gl 2,20.
23 Cf. 1Cor 2,1ss.
24 Rm 8,38-39.
25 Cg. Gl 5,22-23.
26 Cf. Constituições FMA 67.
27 Cf. Ap 7,13.
28 Cf. Rm 12,6.
29 Cf. Constituições SDB 21.
30 Carta de 1884, MB XVII, pág. 175.
31 Cf. MB, pág. 387.
32 MB XIX, pág. 81.
33 Cf. MB I, pág. 118.
34 P. Brocardo, Dom Bosco profundamente homem – profundamente santo. São Paulo: Editora Salesiana, 22002, pág. 53-54
35 João Bosco, Memórias do Oratório, editadas por Antonio da Silva Ferreira. Brasília: EDB, 2012, pág.67.
36 MB X, pag. 1038.
37 Giovanni Bosco, Vita di San Domenico Savio, Cap. XVIII.
38 Cf N. Cerrato, Don Bosco e le virtú della sua gente, LAS, Roma 1985.
39 Hb 11,27.
40 Cf. Constituições SDB 3.
41 João Paulo II, Carta Encíclica Dominus et Vivificantem, n. 59.
42 P. Stella, Don Bosco nella storia delia religiosità cattolica, Vol. II, PASVerlag, Zurigo 1969, pag. 32.
43 VC n. 19.
44 VC n. 17.
45 VC n. 18.
46 VC n. 22.
47 Constituições SDB, 3.
48 Constituições FMA, 5.
49 Lc 4,18.
50 Há um grupo que está refletindo sobre a contribuição específica que o religioso oferece na obra de educação.
51 Cf. Am 1,1.
52 Cf. Constituições SDB, 3.
53 Fl 3,12.
54 Jr 20,7-9.
55 Is 41,8.
56 Jr 31,3.
57 Ef 1,19.
58 At 17,28.
59 Sl 62,2.
60 Sl 16,15.
61 Cf. Jo 15,14.
62 Cf. VC, 101-102.
63 Radio Vaticana, 20/02/84; “Avvenire”, 22/02/84.
64 Constituições SDB, 21.
65 Constituições SDB, 2.
66 Cf. Constituições SDB, 10; Constituições FMA, 80.
67 Cf. Francesco di Sales, Trattato dell'amore di Dio, Vol. Il, libro X, c. 1.
68 Cf. 2Cor 12,13-14.
69 1Jo 4.
70 Rm 5,5.
71 1Jo 4,7-8.
72 1Cor 13,12.
73 1Cor 13,1-3.
74 1Cor 13,8-10.
75 1Cor 12,31.
76 1Cor 13,4-6.
77 MB XV, pág. 183 (o famoso “Sonho” por inteiro).
78 Constituições SDB, 196.
79 LG 41.
80 Cf. Jo 10.
81 G. Bosco, Vita di San Domenico Savio, Turim: SEI, 1963, cap. VIII, pág. 34.
82 MB VII, pág. 622.
83 MB V, pág. 9
84 P. Brocardo, Dom Bosco profundamente homem - profundamente santo, São Paulo: Editora Salesiana, 2005, pág. 144.
85 P. Brocardo, Dom Bosco profundamente homem - profundamente santo, São Paulo: Editora Salesiana, 2005, pág. 145.
86 P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, Vol. II, Zurique: Pas-Verlag, 1969, pag. 13.
87 VC 45.
88 Cf. At 2,44-47; 4,32-35.
89 Cf. Constituições SDB 49.
90 Cf. Constituições SDB 44; Constituições FMA 51.
91 Jo 13,34-35.
92 Congregazione per gli Istituti di vita consacrata e le Società di vita apostolica, La vita fraterna in comunità, n. 3.
93 Mt 18,20
94 Cd. Decreto Conciliar Optatam Totius, n. 11.
95 Cf. Constituições SDB 51 e 110.
96 CG24, 91-93.
97 Cf. VC 38.
98 P. Brocardo. Dom Bosco profundamente homem – profundamente santo, São Paulo: Editora Salesiana, 2005, p. 211-212.
99 Cf. C. Carretto, Lettere del deserto. Brescia: La Scuola Editrice, 1964, p. 47.
100 Lc 23,33.
101 Lc 23,46.
102 Lc 3,21-22.
103 Cf. Lc 4.
104 Lc 6,12-13.
105 Lc 22,32.
106 Lc 9,28-29.
107 Cf. Jo 17.
108 Mt 11,25-26.
109 Jo 11,41-42
110 Mt 11,25.
111 Cf. Mt 7,21.
112 Cf. Lc 2,136.
113 Mt 6,7.
114 Cf. Mt 6,7.
115 Mt 6,9.
116 Jo 4,23.
117 P. Brocardo. Dom Bosco profundamente homem – profundamente santo, São Paulo: Editora Salesiana, 2005, p. 214.
118 Ib., p. 214.
119 Ib. p. 223
120 Const. SDB 95.
121 Const. SDB 95.
122 Rm 12,1.
123 Cl 3,17.
124 Cf. Constituições SDB 95; Constituições FMA 48.
125 P. Brocardo. Dom Bosco profundamente homem – profundamente santo, São Paulo: Editora Salesiana, 2005, p. 214
126 CG 23; SDB 95.
127 Constituições SDB 1858.
128 R. Guardini, Lettere su autoformazione, p. 91.
129 Rm 8,26-27.
130 Annali, c. CXVII, p. 722.
131 Cf. Constituições SDB 10 e 19.
132 VC 38.
133 Cf. VC 38.
134 1Cor 9,25-27.
135 Cf. Constituições SDB 90.
136 Cf. Mt 16,16-17.
137 JP 5.
147 Constituições SDB 20; Constituições FMA 7. 66.
148 CG23 95.
149 MB V, p. 367.
150 Constituições SDB 15.
151 MB V, p. 124.
152 Cf. MB V, p. 917-918.
153 Constituições 39.
154 MB II, p. 63 (MO 3ª edição, p. 121)
155 MB VII, p. 366.
156 Dt 32,10-12.
166 Cf. Os 11,1-4.
167 Dt 8,5.
168 Cf. Pr passim; Sr passim; Sb passim.
169 Cf. Mc 9,38-39; Lc 9,52-56.
170 Cf. Jo 9,1-4; 11,17ss; Lc 13,1-5.
171 Cf. Mt 12,1-11; 15,10-19; 13,13-20; Lc 13,10-16; Jo 5,9-18.
172 Fl 4,8.
173 Constituições FMA 67.
174 Constituições SDB 62.
175 PC 8.
192 Cf. Constituições SDB 20; Constituições FMA 7, 66.
193 Cf. C. M. Martini, L'Evangelizzatore in San Luca, Milão: Ed. Ancora, 1986, p. 18-19.
194 Cf. EN n. 15.
195 1Jo 1,1-4
196 1Cor 9,16.
197 EN n. 80.
198 Cf. Constituições SDB 34; Constituições FMA 70.
199 Cf. Constituições SDB 6; Constituições FMA 70.
200 Gl 6,6.
201 EN n. 75-80.
202 A “lectio divina” é recordada também na Exortação Apostólica Vita Consecrata no n. 94 como fonte de espiritualidade e modo de os religiosos comunicarem entre si.
203 Cf. Ap 10,9; Jr 5,14.
204 Cf. Jo 3,16.
205 Lc 4,31.
206 Congresso sobre a evangelização, Espanha 1985; cf. “Ecclesia” n. 2237 (21.IX.1985).
207 Mc 4,27-28.
208 Cf. CG23 182-191.
222 2Cor 5,17-19.
223 RM 18.
224 Rm 5,9-11.
225 Sl 106 (105)
226 Sl 103 (102).
227 Mt 4,17.
228 Mt 10,38.
229 MB IV, p. 216.
230 Constituições SDB 18.
231 Cf. Constituições SDB 90.
232 MB VII, p. 664.
233 Mt 6,16-17.
234 Giovanni Bosco, Vita del Giovane Domenico Savio.
235 MB VIII, p. 534.
242 Cf. P. Brocardo, Dom Bosco, profundamente homem – profundamente santo, São Paulo: Salesianas, 2005, p. 81-82.
243 1Cor 4,15.
244 P. Brocardo, Dom Bosco profundamente homem - profundamente santo, São Paulo: Salesiana 2005, p. 49-60.
245 MB XVII, p. 107.
246 MB XVII, p. 175.
247 Cf. P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, Vol. II, Zurique: Pas Verlag, 1969, p. 46.
248 Cf. Jz 9,7-15.
252 Jo 21,19.
253 Cf. Lc 21,2.
254 Mc 10,45.
255 Lc 1,26-38.
278 Lc 1,28.
279 Lc 1,37.
280 Lc 1,39-56.
281 2Sm 6,9.
282 Lc 1,45.
283 Lc 2,1-20.
284 Lc 2,51.
285 Jo 2,11.
286 Jo 2,1-11.
287 Jo 2,5.
288 Jo 19,25-27.
289 Jo 19,25.
290 Jo 12,32.
291 Jo 19,23.
292 Jo 19,30.
293 Jo 2,11.
294 At 1,14.
295 Cf. Lc 24,33.
296 Cf. At 1,8-12.
297 At 1,14.
298 At 1,21.
299 Cf. MB XI, p. 395.
300 Cf. Constituições SDB 92; Constituições FMA 44.
323 Cf. MB VII, p. 334.
324 Cf. MB VI, p. 632 e 887.
325 Cf. MB VII, p. 334.
326 MB VI, p. 334.
327 Giovanni Bosco, Meraviglie della Madre di Dio invocata sotto il titolo di Maria Ausiliatrice, Turim 1868, p. 5-7.
328 Cf. P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, Zurique: Pas Verlag, 1969, Voi. II, pag. 169.
329 Cf. MB IX, pag. 247; XVIII, pag. 338.
330 Cf. P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, Zurique: Pas Verlag, 1969, Voi. II, pag. 174.
331 Processo ordinario, I, p. 511ss; La Madonna dei tempi difficili, p. 118.
332 Cf. MB IX, p. 359.
333 Cf. MB X, p. 416 e 662; CVII, p. 143.
334 Cf. C. Colli, Patto della nostra alleanza con Dio, Istituto FMA, Roma 1984, p. 446.
335 Circolare del 24-10-1965; cf C. Colli, Patto della nostra alleanza con Dio, Istituto FMA, Roma 1984, p. 455-456.
336 Cf. C. Colli, Patto della nostra alleanza con Dio, Istituto FMA, Roma 1984, p. 453.
337 Cf. C. Colli, Patto della nostra alleanza con Dio, Istituto FMA, Roma 1984, p. 454-455; cf. E. Ceria, Vita del servo di Dio sac. Filippo Rinaldi, SEI, Torino 1946, p. 294-295.
338 Madre Luisa Vaschetti, Circolare del 24-4-1942; cf C. Colli, Patto della nostra alleanza con Dio, Istituto FMA, Roma 1984, p. 445.
339 MB XVII, p. 340.
340 Carta de 1884; c. também MB XVII, p. 144.
341 Cf. Constituições FMA 4; cf. Constituições SDB 1.
342 Cf. Costituzioni FMA 79; cf. Costituzioni SDB 98.
343 Cf. Costituzioni FMA 71; cf. Costituzioni SDB 34.
344 MB VI, p. 4