Educacao escolar indigena e a bebida alcoolica


Educacao escolar indigena e a bebida alcoolica

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Educação escolar indígena1
e a bebida alcoólica2
Justino Sarmento Rezende3
justinosdb@yahoo.com.br
O que há de errado com o prazer? (...) Vemos um belo pôr-do-sol, uma linda árvore, um rio que
flui num movimento largo e sinuoso, um rosto bonito, e isso nos dá prazer, um deleite. O que há de
errado nisso? Parece-me que a confusão e a infelicidade começam quando aquele rosto, aquele rio,
aquela nuvem, aquela montanha, tornam-se memória, e essa memória, então, exige maior
continuidade de prazer. Queremos que estas coisas se repitam. (...) Seja algo sexual, artístico,
intelectual ou qualquer outra coisa, queremos que o momento se repita, e eu penso que é aí que o
prazer começa a obscurecer a mente e a criar valores que são falsos, não-reais. (...) Pois se a vida for
apenas prazer, se desejarmos apenas isso, o prazer se torna infelicidade, confusão, ilusão, falsos
valores que criamos e, assim, não há clareza4
Iniciando a conversa
A nossa vida humana é mesmo uma construção contínua. Hoje volto para os primeiros
meses de vida quando eu vivia no mundo muito especial, mundo só meu e este mundo foi
o ventre de minha mãe. Lá eu fui sendo tecido pedaço por pedaço, dia após dia... Estava
bem protegido. Eu gostava!
Um dia tive que deixar este mundo que era só meu. Como dizem os meus avôs deixei o
Banco da Vida [útero materno; Banco de Leite: Õpekõ kumurõ (em tuyuka)] para os meus
1 Trata-se de das observações feitas na região do Triângulo Tukano (Iauareté, Taracuá e Pari-
Cachoeira), município de São Gabriel da Cachoeira/AM.
2 Utilizo a expressão bebida alcoólica para referir: caxiri (com todas as denominações que
recebem, com diversos graus de fermentação), bebidas alcoólicas (diversas) que vêm de fora.
3 O autor é indígena da etnia Tuyuka, do distrito de Pari-Cachoeira, município de São Gabriel da
Cachoeira/AM. É sacerdote da Sociedade de São Francisco de Sales (Salesianos), desde o ano de
1994. É Mestre em Educação [2007] pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo
Grande – MS [Área de concentração: Educação Escolar e Formação de Professores; Linha de
pesquisa 3: Diversidade cultural e educação indígena]. Como sacerdote já atuou nas Missões
Salesianas do Rio Negro, particularmente na Missão Salesiana de Iauareté nos anos: 1994-1996;
2004; 2007-2008. Este artigo foi produzido no período de 06/02/2009-24/02/2010. É um assunto
bem complicado para escrever, mas importante.
4 J. Krishnamurti. O que você está fazendo com a sua vida?- Passagens selecionadas sobre as
grandes questões que nos afligem. Rio de Janeiro, Nova Era, 2007, p. 62-63.
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irmãos e irmãs que começaram viver depois de mim. Eu nasci para o mundo maior.
Espantei-me vendo um mundo muito maior do que o ventre da minha mãe. Diversas
pessoas cuidaram de mim. Envolvido pelos seus cuidados, carinhos e afetos eu crescia e
percebia que existiam muitas pessoas ao redor de mim que sorriam, elogiavam,
admiravam, incentivavam... Fui crescendo e aprendendo a viver com os meus parentes,
irmãos maiores e menores, tios e tias, avôs e avós, primos e primas... Com as crianças de
minha idade brincávamos, chorávamos, brigávamos, corríamos, caíamos e levantávamos
juntos! Tudo isso aconteceu num lugar chamado Onça-Igarapé, um lugar bonito!
Por diversos anos a minha vida foi vivida nesse lugar: casa-família, convivência com os
meus parentes da aldeia; acompanhar a minha mãe na roça; acompanhar o meu pai na
pescaria e caça; convivência com os meus colegas... Com colegas da mesma idade nos
horários de brincadeiras transitávamos nos areais para correr, cair e rolar; banhávamos
nas águas frias e transparentes de Onça-igarapé; brincávamos juntos no pátio grande
localizado no centro da aldeia e os nossos pais e parentes acompanham as nossas corridas,
quedas, superação... Eles ficavam torcendo e achavam graça de nossas brincadeiras de
crianças. Suávamos e ficávamos com os corpos cheios de terra. E, os nossos pais nos
diziam: agora vão ao banho! Corríamos juntos e disputávamos para ver quem chegaria
primeiro ao porto e quem cairia primeiro na água. Nadávamos entre correntezas de nossas
belas cachoeiras. Voltávamos para casa e tomávamos o chibé ou manicoera [líquido de
mandioca bem cozido] antes de deitar na rede que nos esperava dia inteiro. E, dormíamos!
Belas e exuberantes árvores envolvem o nosso povoado. Nelas os pássaros cantam suas
melodias: tucano, papagaios, bem-te-vi, japiim, rouxinol... Corujas, sapos da noite, grilos,
inambus fazem ressoar suas melodias que nos ajudam a dormir e também nos assustam às
vezes. Os vaga-lumes produzem suas pequenas luzes que se movimentam de um lugar
para outro.
Pouco a pouco fui conhecendo outros lugares, outros parentes, primos, primas... O mundo
não era só nosso povoado. Existiam outras línguas, riquezas, práticas culturais...
Aos nove anos conheci nova realidade: escola! Através dela conheci novas culturas
humanas indígenas e não-indígenas. Comecei a aprender outros conhecimentos, tive
contato com outras informações, outras técnicas, outros fatos, outras habilidades...
Aprendi outros conteúdos, outras realidades, outras pessoas. Por isso, em minha mente
cada vez mais se fortalecia a ideia de tornar-se “outro” e esta mente fazia-me esquecer de
mim mesmo e eu vivia me projetando para o futuro: “civilizado” [não-índio], especialista
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profissional, técnico, conhecedor das culturas ocidentais, com emprego [dinheiro],
vivendo em cidades etc.
Mais tarde, esta projeção futurista, foi reforçada pela minha saída da aldeia para cidade.
Passei por algumas cidades e frequentei algumas escolas e universidades5.
Por alguns anos trabalhei no meio de meus parentes e conterrâneos indígenas do alto rio
Negro... Conheci outras regiões geográficas e outros povos indígenas. São muitas riquezas
que existem neste mundo! Muitas coisas boas continuam surgindo, outras desaparecendo
e outras ressurgindo com novas formas...
Hoje eu sei dizer que existe um dinamismo muito forte no processo da construção
histórica de nossas identidades indígenas. A vida indígena é dinâmica e complexa [rica,
variada, desafiante, poderosa...]. As nossas culturas indígenas são os nossos espelhos! Elas
são aquilo que nós somos!
Nós indígenas estamos passando por rápidas mudanças. Hoje criamos dentro de nós
novas mentalidades a respeito de nossa vida, trabalho, costume, religião, educação, escola,
ritos, danças, dinheiro... Muitas mudanças mexem muito com as nossas vidas. Muitos
conhecimentos e valores recebidos de nossos pais [avôs; antepassados], dos primeiros
professores [missionários] e conhecimentos religiosos que nos foram ensinados pelos
missionários, hoje, passam pelo processo de descontrução e ressignificação, isto é, nós
compreendemos [valores, práticas culturais, conhecimentos do passado] de outra maneira
para a nossa vida, hoje. Desconstruir e ressignificar não significam apagar da nossa
história, isto é, devemos evitar dizer: tudo o que nos ensinaram no passado não presta e,
por isso, vamos apagar!
Vejamos as nossas vidas, hoje! Apesar de sentirmos fortes mudanças em nós, nós temos
também forte apego às nossas anteriores crenças, ideias, dogmas que os nossos avôs
criaram. Elas sim, se apresentam como estáticas, nem sempre acompanham o dinamismo
do mundo, das histórias, das pessoas.
5 Fui para Manaus porque eu entrei no Centro Vocacional Salesiano em 1980. Se não tivesse sido
isso, a minha vida teria seguido outros caminhos e outros parâmetros educativos. Já estou
peregrinando muitos anos fora de minha aldeia: CVS [Manaus: 1980-1982], Noviciado [São
Carlos/SP: 1983], Pós-noviciado [Manaus: 1984-1986], Tirocínio [Porto Velho: 1987, Pari-
Cachoeira: 1988], Teologia [São Paulo: 1989; Manaus: 1990-1992; Guatemala: 1993]. A partir do
diaconato, Iauareté: 1994-1996 – ordenação sacerdotal [02/06/94], São Paulo: 1997-1999,
Manaus: 2000-2003; Iauareté: 2004; Campo Grande/MS: 2005-2006, Iauareté: 2007-2008,
Curitiba: 2009 e Marauiá: 2010...
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Os nossos diversos estilos de vida estão exigindo novas abordagens para entender a vida
humana. Nós ao contrário, tentamos respondê-los com instrumentos estáticos,
acumulados em nossas mentes (crenças, idéias, dogmas, tradições...) e livros.
As famílias, as comunidades, lideranças, os educadores, professores, alunos, pais, gestores
de escolas, administradores [coordenadores, associações...] procuram interagir em seus
processos educativos [metodologias, pedagogias, conteúdos...] com os bens das heranças
culturais étnicas e os das heranças culturais ocidentais.
O foco principal desta reflexão é a bebida alcoólica na prática pedagógica de
escolas indígenas. O objetivo da reflexão é entender como uma das práticas culturais
indígenas que é a bebida [em tukano: sri’sehe; em tuyuka: sinir†] usada pelas
comunidades indígenas pode ultrapassar os limites ao ponto de dificultar o seguimento de
programa educacional e sua qualidade.
Entre os povos indígenas do Triângulo Tukano [Taracuá, Pari-Cachoeira e Iauareté]
utiliza-se a palavra bebida [em tukano: s•ri’sehe niapšto (tem bebida); em tuyuka: sinir†
niaw£to (tem bebida)] para se referir à bebida caxiri e outras bebidas fermentadas,
alucinógenas [caapi] e alcoólicas [cachaça...].
A sua origem está mesmo na origem humana, por isso, possui seu sentido mitológico,
social... A bebida é compreendida a partir de Canoas e Casas de Transformações
[casas de origens; de surgimento], por isso, nos rituais de cantos-danças na Casa de
Canto-Dança [Basawi; Basariwi]6 o caxiri passa pelo benzimento como um dos
elementos que facilitará a boa interação dos participantes da festa.
Atualmente a bebida merece uma atenção e reflexão7 sobre a sua compatibilidade e
incompatibilidade com as práticas educativas indígenas e, principalmente, com as
práticas educativas escolares indígenas dos distritos de Pari-Cachoeira, Taracuá e
Iauareté, município de São Gabriel da Cachoeira/AM8.
A reflexão baseia-se: a) na minha pertença-participação nas culturas indígenas do
Triângulo Tukano; b) na observação, descrição e interpretação do modo de beber e as
6 Os não-indígenas denominavam de Maloca.
7 Não é fruto de uma pesquisa de campo. É uma descrição, interpretação e reflexão a partir da
minha própria vida de Tuyuka.
8 Estes três distritos são denominados de Triângulo Tukano, por motivos de seus habitantes
compreenderem e falarem a língua tukana: Tukano, Tuyuka, Tariano, Piratapuia, Desano, Arapaso,
Wanano, Kubeu, Carapanã, Mirititapuia, Hupda, Yeba-masa, Barasana...
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consequências que causam em nós pessoas [pais, mães, líderes, padres, professores,
presidentes de associações indígenas...] que bebemos demais e nos nossos trabalhos
[escolas, qualidade de ensino-aprendizagem, disciplina, presença e freqüência às aulas;
organização social: comunidades, organizações indígenas...].
1. Memórias das narrativas de meu avô9
Tratar do assunto de bebida [caxiri e seus derivados] é importante entender o valor e a
prática de trabalho indígena: para fazer caxiri a pessoa tem que ter roça, pois na roça que
se planta, maniwa [mandioca] e outras frutas que servirão de misturas. O caxiri é um dos
resultados dos trabalhos.
Algumas memórias presentes em minha vida sobre os modos de beber caxiri são
aquelas que meu avô10 me contava. Ele contava-me que os nossos avôs bebiam em
diversos momentos da vida: dias de trabalho, festa com os irmãos da comunidade; festa de
acolhida/despedida às visitas de parentes e primos; festas de ofertas [dabucuri] de frutas,
animais [carne de caça], peixes, insetos... Dizia meu avô que, principalmente, bebia-se nas
cerimônias rituais de iniciação masculina e feminina; cerimônias de cantos-danças.
Bebiam os homens e mulheres, rapazes e moças.
Os adultos possuíam modos próprios de beber: algumas pessoas ofereciam o caxiri para
que a pessoa bebesse quanto conseguisse; outras obrigavam a beber tudo; quem bebia, por
sua vez, retribuía com a mesma quantidade obrigando outra pessoa a beber tudo o que
tinha na cuia; outras pessoas ofereciam duas e até três cuias em seguida. Todas estas
práticas eram realizadas entre risos e gargalhadas. O modo de oferecer o caxiri acontece de
forma circular: todas as pessoas que tem caxiri oferecem às pessoas [homens e mulheres]
sentadas de forma circular. Desta maneira o número de cuias que a pessoa sentada recebe
depende de quantas famílias prepararam o caxiri. Em algumas comunidades a primeira
rodada é de duas cuias para cada pessoa. Eu já vi também que em alguns momentos já
9 Meu avô Tuyuka era chamado de Higino Barreto Rezende [nome de benzimento: Buá]. Ele era
Baya [mestre de cantos-danças], Kumu [pensador; entoador de mito; discursos cerimoniais],
Baseg¡ [benzedor]. Meu avô faleceu no ano de 1983.
10 Utilizo o termo avôs seguindo a lógica do pensamento indígena do Triângulo que em língua
tukana se diz: mar• ñek¡s¡m¡ã = nossos avôs, para se referir ao que em língua portuguesa se
costuma dizer antepassados.
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oferece o caxiri na hora de cumprimentar... Existem muitas outras formas de oferecer o
caxiri.
Estas realidades faziam com que cada família preparasse o seu próprio caxiri. As mulheres
continuamente buscavam aprimorar o grau de fermentação do caxiri. O caxiri bem forte
dava uma boa conceituação [mulher do caxiri forte] para a mulher e caxiri fraco diminuía
tal conceituação. Os exímios bebedores do caxiri procuravam o caxiri mais forte. Para eles
o significado da festa boa era a festa onde as pessoas se embriagavam.
As festas cerimoniais duravam até três dias [entre acolhida/chegada, festa e final]. As
bebidas [caxiri com diversas denominações: caxiri de cana, caxiri vivo, caxiri doce,
caxiri de milho, caxiri de cará, caxiri de abacaxi, caxiri de batata, caxiri de
cucura, caxiri de jambo...] estavam bem presentes nestes dias [dia e noite]. Bebiam à
vontade e até vomitavam. Muitas pessoas ficavam embriagadas. Dormiam, acordavam e
tornavam a beber.
Os sábios, benzedores, cantores e dançarinos eram aqueles que aguentavam mais. Eles
tinham que acompanhar cada momento da cerimônia. Os sábios benzedores pouco se
levantam de seus lugares, permanecem sentados horas e horas. Sentar num mesmo lugar
durante a festa é sinônimo de maturidade. Maduro é aquele que quando lhe dão um lugar
ele permanece. Quem não é maduro fica mudando de lugar toda hora.
Os mestres de cantos e danças estavam bem ornamentados [plumas de japu, garças,
arara..., braceletes, chocalhos...], por isso, mantinham certo controle. Por outro lado, eram
eles que bebiam a bebida alucinógena caapi [sabor amargo], consumida em pequenas
quantidades, reservada para eles e aos outros já iniciados.
O efeito da bebida caapi era de provocar visões [kapi bauare (em tuyuka) visão
espiritual; inspiração, iluminação] sobre cantos, danças, benzimentos, discursos
mitológicos e outros saberes aos consumidores. Para atingir tal nível, seguiam rituais de
preparação: jejuns, abstinências de certos alimentos [betire (em tuyuka)], abluções com
água [oko ¡sotire (em tuyuka)] para purificação interior. Para que o caapi produzisse
efeito esperado um benzedor especializado [kapi doag¡ (em tuyuka)] preparava a bebida
caapi. Ele era pessoa idônea para tal serviço. Os conhecedores afirmam que cada momento
de preparação é benzido por ele: na hora de cortar o ramo [kapi-dari (em tuyuka)] de
caapi, hora de buscar a água [benzimento da água], benzimento na hora de socar o caapi...
Assim é que o caapi traz consigo muitas forças imateriais [espirituais] capazes de levar o
consumir para outro patamar [nível das divindades de danças; entoadores de mitos...] ou,
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que as realidades divinas [luzes, iluminações, inspirações...] desçam para pousar em cima
do indivíduo preparado [ele é como terreno bem fértil, onde é semeada a semente dos
saberes de canto-dança, benzimento, mitos, cerimônias...] e ele através do seguimento
disciplina estabelecida fará com esses saberes recebidos cresçam.
O benzedor do caapi é que determina, pela força dos benzimentos, os efeitos que aquele
caapi e naquele tipo de canto-dança produza nos consumidores. É ele, que também
conforme o andamento pode cortar o efeito do caapi. Assim é que o meu avô dizia.
É muito importante observar que nas festas rituais todos os elementos utilizados,
ambientes e pessoas são benzidos. O espaço da casa de canto-dança [Basawi; Basariwi ou
vulgarmente denominado de Maloca] era benzido; o ipadu, breu, cigarro [são elementos
mitológicos que dão origem à humanidade, vida humana], o caxiri [com suas
diversidades] eram benzidos. Todas essas forças imateriais [benzimentos; forças
espirituais] geravam um contexto muito profundo para os participantes.
Após a participação de rituais os homens passavam um tempo determinado pelo
benzedor, de abstinência e jejum de certos alimentos. Os homens casados que
participavam diretamente de rituais de cantos, danças e utilização de ornamentos
sagrados, também seguiam um tempo de abstinência sexual.
Estas disciplinas favoreciam a continuidade das revelações [divinas, espirituais, superiores
sobre os cantos, danças, benzimentos, discursos mitológicos...] recebidas durante rituais.
Por outro lado, serviam de prevenção de doenças que poderiam ser provocadas pelos
espíritos de cantos-danças, ritmos, caapi, pinturas, cigarro, ipadu e que poderiam atingir
fisicamente à pessoa [emagrecimento, dores de cabeça, tonturas; mordida de jararaca,
ataque de onças...] caso não obedecessem às normas rituais.
Pelas memórias que eu tenho das narrativas de meu avô as festas não aconteciam
semanalmente. Porém, sei que as festas tinham relações estreitas aos calendários solares e
lunares [verão, rios enchentes, época de piracemas, caças; insetos, coleta de frutas...];
calendários do ciclo da vida: nascimento da pessoa [ritos de nominação, banho,
alimentação], ritos de iniciação masculina e feminina; rito de alimentação; calendários de
relacionamentos interétnicos: visitas, acolhidas, despedidas, ofertas...
Com disse acima algumas festas duravam dois a três dias e com muita bebida. Depois das
festas eles tinham um tempo de descanso. Ficavam dormindo durante um dia para
recobrar as forças. Tal descanso estava previsto pelas tradições tuyuka. Por isso, a comida
também estava prevista para acontecer neste dia. Durante as festas eles/as só [adultos]
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bebiam e depois no dia de “dormir” [descanso] que juntavam a comida para a alimentação
comunitária.
1.1. As forças positivas das festas
Essas são algumas observações minhas e não pretende ser completa. O leitor indígena e
aqueles não-índios que conhecem as culturas indígenas desta região podem e devem
ampliar os benefícios da bebida alcoólica. Os bons conhecedores das culturas indígenas
podem recuperar o sentido da bebida alcoólica desde a narração do mito da origem do ser
humano até aos dias de hoje.
Eu aponto algumas forças, mas dependendo do tempo de vida, da sua posição na
hierarquia étnica [líder, benzedor, mestre de dança, mestre de discursos mitológicos,
curador de doenças...] a lista de benefícios será bem maior. Não quero fazer entender que
só no momento de bebida e festas que se transmitiam os conhecimentos. Muitos
conhecimentos são transmitidos no dia-a-dia, fora das festas e sem bebidas alcoólicas:
durante a madrugada, no caminho de roça, durante a pescaria/caça, durante as viagens,
no final do dia – comendo o ipadu etc.
Veja alguns benefícios que se transmitiam durante as festas:
1. Transmissão de saberes étnicos: discursos de cumprimentos [acolhida, despedida],
discursos mitológicos, discursos sobre os relacionamentos de parentesco...
2. Transmissão de benzimentos sobre o ciclo da vida: gravidez, nascimento, banho,
alimentação, bebida, iniciação [masculina e feminina]; benzimentos para
apaziguamento das doenças do tempo [chuva, trovões...]; apaziguamento das
forças das florestas; apaziguamento das forças de animais [jararaca, onças...],
insetos; benzimentos das doenças emergentes [gripes...]; benzimentos preventivos
de acidentes de trabalho, convivência interetnica; benzimentos curativos;
benzimentos das Casas de Canto-Dança; benzimentos da alma [nome; nominação];
benzimento do envio do espírito do falecido para casa dos mortos...
3. Transmissão e prática de cantos e danças: cantos e danças relacionados ao tempo
de fazer a roça [começo e fim]; cantos e danças para iniciação masculina e
feminina; cantos e danças de apaziguamento das doenças; cantos e danças de
apaziguamento das doenças do tempo...
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4. Transmissão e prática de diversos ritmos de danças: diversos ritmos de danças
mitológicos [popularmente: danças dos velhos]; inúmeros ritmos de dança do
cariço; dança do japurutu; dança da cabeça do veado, caracol, osso de onça, tocar o
jabuti, flautinha...
5. Cantos de improvisação de cantos de agradecimentos, pedidos [hãde hãde]...
6. Transmissão e aprendizagem das técnicas de fazer o caxiri: utilização de diversas
misturas para a fermentação...
7. Fortalecimento da unidade étnica: o irmão maior pedia que as suas cunhadas
fizessem caxiri; todos bebiam juntos; manter e fortalecer a consciência étnica...
8. Funcionamento do espírito organizativo: convidar e acolher as pessoas; preparar a
farinha e beiju; organizar as caçadas e pescaria para alimentar as pessoas durante
os dias de festas e pós-festa...
9. Prática e aprendizagem de práticas de pinturas corporais [jenipapo, urucum...],
utilização de ornamentações...
A organização e o acontecimento destas festas envolviam viagens (ida e volta), festas,
bebidas, comidas [caça e pesca; roça: farinha, beiju, caxiri], descanso... Intercalavam com
o ritmo de vida do cotidiano e dias de festa.
1.2.As fraquezas das festas
A observação de nossas práticas culturais relacionadas à bebida mostra a modificação de
nossos comportamentos nas áreas de saúde física, mental, emocional (espiritual).
Embora, o nosso modo de ingerir bebida alcoólica pertença às nossas crenças culturais
historicamente construídas, é importante observá-lo como algo que prejudica a nossa
pessoa e nossa convivência social.
Nas últimas décadas a bebida alcoólica tornou-se um elemento insubstituível nos eventos
programados pelos indígenas. Parece que nós indígenas não concebemos uma festa sem
bebida, e muita bebida. Ter ou fazer bastante caxiri é sinônimo de poder, domínio sobre
aquelas pessoas que não podem fazer bastante caxiri. As relações de poder funcionam
muito bem aqui. Talvez, por isso, que todos querem fazer o caxiri para não demonstrar
que são fracas [ou mais pobres] diante de outras pessoas. Diante desta relação de poder é
comum ouvir dizer: “aquela pessoa não tem nem roça para fazer beiju, fazer farinha..., mas
para fazer o caxiri tem!”
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Hoje estou cada vez convencido de que nós indígenas, somos desde a nossa infância,
condicionados [até mesmo sofrer, passar mal] pelos nossos dogmas, crenças, teorias
construídas pelos nos avôs. Nós que ingerimos exageradamente11 bebida alcoólica sabemos
que gera diversos prejuízos, como estes que anoto:
1. Embriagar-se; perder forças; ficar caído dentro e fora da casa; ficar vomitando... É
uma realidade bem antiga. Antigos viajantes [antropólogos não-índios;
missionários] já faziam suas anotações sobre estas situações humanas [desumanas
e degradáveis].
2. Desentendimento e briga por parte de algumas pessoas: relembrar os fatos
passados; discussões, raiva, ressentimentos, vergonha, fuga...
3. Descuido das crianças durante as festas: as crianças ficam relegadas aos cuidados
dos irmãos/irmãs [também crianças]; as mães oferecendo caxiri nas Casas de
Canto-Danças [hoje: centros comunitários] e embriagando-se; algumas crianças
chorando em casa querendo se alimentar; bebezinhos querendo mamar no peito da
mãe, mas a mãe embriagada sem condição de cuidar da criancinha...
4. Roubos: enquanto a maioria está na Casa de Dança acontecem roubos nas casas
[objetos de uso pessoal, alimentação...].
5. “Roubo” de mulheres e homens: alguns rapazes que levam as meninas para a
escuridão para a relação sexual ou vice-versa; surgimento da gravidez indesejada;
abortos; desentendimento de pais da menina o rapaz que “roubou” ou com os pais
dele...
6. Surgimento de algumas doenças graves após festas: envenenamento por ervas e
“sopros” venenosos...
7. Em muitas ocasiões: vergonha, medo, culpa por atos cometidos conscientemente
[gritarias, grosserias, agressão...]; culpa por não saber o que se fez durante o
“apagamento” [outros contam: você fez isso, não se lembra?].
8. Indisposição para o trabalho e para a alimentação durante e depois das festas:
ressaca, ânsia de vômitos, diarréias...
2. As influências das práticas culturais não-indígenas
As culturas são construções históricas e se modificam ao longo do processo histórico de
cada povo. As culturas dos povos que habitam o Triângulo Tukano passaram por diversas
11 A preocupação não é com as pessoas que sabem se controlar.
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mudanças na medida em que se ampliaram contatos com outros povos, indígenas e não-
indígenas. Algumas práticas culturais mantêm sua semelhança com as do passado.
Algumas diferentes práticas culturais surgiram através de contatos com outras culturas
não-indígenas. É importante entender que os homens e as mulheres são seres históricos,
possuidores de riquezas e fraquezas. Quem trouxe as práticas culturais entre nós não são
exceção. Vejamos:
1. As práticas evangelizadoras dos cristãos católicos entraram nas culturas indígenas
e contribuíram para a modificação de algumas práticas culturais indígenas. As
práticas culturais foram ressignificadas, desconstruídas, reconstruídas...
2. Hoje, a maioria dos povos desta região é cristã. O contato com cultura cristã
proporcionou a assimilação com outros dogmas, crenças, ideias, filosofias,
teologias...
3. As práticas educativas escolares entraram nas culturas indígenas e contribuíram
para transmitir conhecimentos ocidentais através de diversas disciplinas escolares:
português, matemática, história, ciências, religião, geografia...
4. No início [1915] da prática evangelizadora [salesianos e salesianas] entre os povos
do Triângulo Tukano, os não-indígenas eram agentes de evangelização e os
indígenas éramos destinatários.
5. Com o passar dos anos e décadas nós indígenas fomos assumindo diversas tarefas
de evangelizadores. Hoje somos evangelizadores de nossos parentes: catequistas
[pregadores da Palavra de Deus, dirigentes de Cultos Dominicais...], preparadores
de Sacramentos [Batismo, 1ª Eucaristia (confissão), Crisma, Matrimônio], temos
Ministros Extraordinários da Eucaristia [homens e mulheres], temos padres e
irmãs [freiras]. Em algumas coisas levamos vantagens em relação aos missionários
não-indígenas: conhecemos a Palavra de Deus através de seus ensinamentos;
conhecemos nossas culturas e culturas não-indígenas; falamos a nossa própria
língua e entendemos a língua portuguesa... Temos muitos instrumentos para
utilizarmos nesse campo.
6. As práticas educativas escolares surgiram conjuntamente com as práticas
evangelizadoras. Por isso, seguiram a mesma dinâmica da evangelização.
Inicialmente, os próprios missionários [salesianos e salesianas] não-indígenas
eram professores, educadores, administradores, gestores, diretores. Os ex-alunos
mais antigos até hoje se orgulham de terem estudado com os missionários.
Afirmam: “nós não estudamos com “gente” [gente aqui é indígena] como vocês
estudantes de hoje”. Esta afirmação quer dizer: “nós estudamos com donos do
saber” [fontes dos saberes escolares]; ainda: “o verdadeiro saber escolar é
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transmitido pelos não-indígenas, pois a Escola é uma instituição ocidental
[entendida como não-indígena]”.
7. Com o passar dos anos e décadas nós indígenas fomos aprendendo conhecimentos
e técnicas ocidentais: conteúdos, didáticas, metodologias, pedagogias, filosofias...
Fomos assumindo diversas tarefas no campo da educação escolar. Iniciamos como
alunos, depois algumas pessoas passaram a ser professores para transmitir os
saberes escolares [cultura escolar] aos nossos parentes. Hoje muitos parentes
nossos estão assumindo funções de gestão escolar. Existem outros setores sendo
assumidos pelos indígenas: Conselhos de Educação Escolar [estadual e federal] e
Secretarias Municipais de Educação. Já percorremos um longo caminho e
construímos nossas histórias no campo da educação escolar. Somos educadores de
nossos parentes. Em algumas realidades levamos vantagens aos não-índios:
conhecemos [devemos ter domínio] os conteúdos das disciplinas [matérias];
conhecemos [devemos ter domínio] nossas culturas e culturas não-indígenas;
muitos falam a própria língua ou pelo menos se fala a língua tukana; porém,
poucos professores manuseiam este meio de comunicação na sala de aula, a língua
preferida é a língua portuguesa... Temos muitos instrumentos das culturas
indígenas para utilizarmos nesse campo, porém, não aproveitamos. E, temos que
utilizá-los, pois não temos mais como colocar culpa nos não-indígenas pela falta de
qualidade de ensino em nossas escolas. Se os filhos de nossos parentes indígenas [e
nossos filhos] não conseguem aprender os conteúdos escolares vamos ensiná-los
com as línguas que eles possam compreender melhor; se eles quiserem que lhes
ensinemos em língua nacional vamos ensiná-los com a língua portuguesa etc.
Hoje, quantos mais línguas o professor tiver domínio será melhor, pois numa
mesma sala existem alunos provindos de diferentes etnias. A filosofia intercultural
de nossas escolas deve promover a utilização de instrumentos educativos
interculturais.
3. Práticas educativas escolares e bebida alcoólica
O espaço escolar é um espaço novo em nossas culturas indígenas, embora, constatemos
que muitos programas educacionais “(...) estabelecem relações estreitas com projetos
familiares e comunitários. (...), entrelaçam, confundem, dificultando a percepção de onde
começa e termina uma prática escolar etc. (...). Algumas atividades se distinguem como
12

2.3 Page 13

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atividades escolares, porém, a maioria é comunitário-escolar. Os projetos envolvem
pessoas da comunidade e da escola. Há uma intensa negociação de espaços, tempos,
agentes, líderes comunitários, pais, professores, anciãos, coordenador e alunos. Em outros
momentos os professores e coordenador interferem com maior intensidade na vida
comunitária do que lideranças comunitárias. (...). As práticas individuais (familiares)
parecem perder um pouco de sua autonomia, no sentido de que em alguns momentos as
comunidades acabam se envolvendo mais com o projeto escolar, deixando de lado os
trabalhos pessoais” (REZENDE, J. S., 2007, p.189-190)12.
Nestes últimos anos, principalmente, quando nós indígenas assumimos os programas
educacionais para recuperar e revitalizar os nossos saberes/conhecimentos e práticas
culturais, incluímos o nosso caxiri nas nossas práticas educativas escolares. Como já
acenei o caxiri não se resume apenas na bebida [beber], mas é um evento social com todas
as suas riquezas e limitações. Mas o caxiri nas últimas décadas está provocando algumas
preocupações e incômodos e disso os gestores, pais, alunos, professores, administradores,
secretários, assessores escolares já devem ter percebido.
Esta reflexão não é nova. Em nossa região já foram realizadas diversas assembleias para
estabelecerem novos objetivos e estratégias para aumentar a qualidade da vida dos povos
indígenas.
Também sobre o alcoolismo alguns pesquisadores já realizaram trabalhos em suas
dissertações de mestrados e teses de doutorados13; publicação de artigos em revistas
científicas... Os resultados destas dissertações e teses não são de domínio público [a
maioria do povo não tem acesso, não conhece] e muito menos de conhecimento de nós
indígenas, mesmo que as pesquisas tenham sido realizadas no meio de nós.
Hoje, dentro da educação indígena e educação escolar indígena na região do Triângulo
Tukano, é importante organizar programas educacionais que ensinem a viver e lidar
com a vida. Estes e outros problemas estão bem presentes em nossa região: os
sofrimentos da vida [falta de dinheiro, falta de emprego, falta de perspectivas melhor
para a vida...], solidão [os velhinhos vivendo sozinhos sem amparo familiar; os filhos
12 JUSTINO S. REZENDE. Escola Indígena Municipal ¢tãpinopona-Tuyuka e a
Construção da Identidade Tuyuka. Campo Grande/MS, Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB), (Dissertação de mestrado), 2007.
13 O mais recente trabalho é (pesquisa feita em Iauareté): MAXIMILIANO LOIOLA PONTE DE
SOUSA. Juventude, uso do álcool e violência em um contexto indígena em
transformação. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Fernandes Figueira, (Tese de
Doutorado – Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher), outubro/2009.
13

2.4 Page 14

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crescem, casam e deixam só os pais...], confusão perante os desafios da vida
[insegurança, medo...], sentimentos de fracasso, ansiedades [dependência do
passado (do êxito e do fracasso)], medo do presente e futuro [não se arriscar, não
apostar...]; viver no futuro [não ter os pés no chão; viver sonhando...]; desespero
[suicídios, enforcamentos, beber veneno, beber timbó...], violências [tornar-se agressivo;
pensar e agir como se todos estivessem contra]; criar brigas para se mostrar [ser visto, ser
respeitado; auto-exclusão social], doença emocional [tristeza, frustração, não ser
amado, ciúmes...]; lidar com a alegria, dinheiro, sucesso, conquistas [desequilíbrio
após atingir vitórias, sucessos: desvio de dinheiro; não prestar contas; entregar a vícios...],
cargos, funções... [poder mexe com as nossas cabeças; pensar que é dono do mundo;
dono da verdade; não ouvir os conselhos...] e dependências à bebida [vontade louca
para beber, todo dia e toda hora; tremedeiras, visões, alucinações (fantasmas, macacos...;
cirroses, diarréias, emagrecimentos, barriga da água...].
Estas realidades novas desafiam as nossas culturas indígenas atuais. Como lidar com estas
novas realidades? As sociedades não-indígenas possuem instituições para atender essas
realidades humanas [hospitais, psicólogos (as), psiquiatra, grupos de auto-ajuda, centro
de tratamentos; acompanhamentos profissionais personalizados e grupais. Nossas escolas
não possuem estas oportunidades. Mas como poderiam ser pensadas estas realidades?
Os educadores, professores, alunos, pais, gestores, administradores, assessores
pedagógicos indígenas [APIs] das escolas dos distritos acima citados estão interagindo
bem com os bens das heranças culturais étnicos e os das heranças culturais ocidentais.
Estão construindo seus projetos político-pedagógicos.
Temos algumas realidades que ultrapassam os nossos esforços e práticas. Neste contexto
que a matéria da bebida alcoólica deve tornar-se um assunto a ser repensado com
urgência, sobretudo sobre as forças negativas que estão surgindo e atingindo alguns
educadores (as), professores (as), alunos (as) e, pessoas em geral.
Nesta região poucas pessoas [indígenas] podem se considerar não-bebedoras. Para falar
deste elemento cultural baseio-me na minha própria experiência com a bebida
[sofrimento, vergonha, medo, insegurança, falta de credibilidade...] e no conhecimento
que tenho sobre as realidades dos povos indígenas desta região. Alguns de nós não
queremos estar nestas situações degradantes, mas não temos forças suficientes para sair
delas sozinhos. Algo superior a nós e até mesmo pessoas corajosas devem surgir em nossas
vidas para salvar as nossas vidas, tirar do fundo de poço, surgir como salva-vidas [temos
que segurar nelas para não morrer afogados].
14

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Quando a bebida começa tomar conta de nossa vida, nossa vontade, nossa liberdade,
nosso dinheiro, nossas roças... é hora de desconfiar que algo muito sério está acontecendo
conosco. Quem bebe demais sabe que quando estamos bem mal [ressaca, bebendo água,
querendo vomitar, sem vontade de comer, tremendo, com preguiça, endividados, com
medo, vergonha...] após as festas, nos comprometemos a não beber mais, a beber menos,
não fazer mais caxiri e até mesmo não ir mais para festas. Basta que passe as nossas
malditas ressacas, tristezas e vergonhas, lá estamos de novo bebendo! Ou para superar a
vergonha continuamos bebendo mais. Assim para muitos de nós vira uma rotina [beber-
passar mal, recuperar-beber]. Perdemos a moral diante da família, filhos, alunos,
povo, das instituições... Outras pessoas continuam gozando de nós, explorando a nossa
dependência, perdemos dinheiro, criamos dívidas, os comerciantes não querem mais
atender [vender] porque está devendo demais [ficamos com a fama de maus pagadores].
Quem é casado leva xingamento da esposa porque o marido nada traz para casa, a não ser
o porre... Não compra as coisas para as necessidades dos filhos...
No início deste artigo eu recuperei algumas memórias presentes na minha vida/história
sobre o significado da bebida [caxiri, caapi...]. A herança histórica que herdamos nos leva
a afirmar: “nós somos netos dos que beberam em diversos momentos da vida, história;
beber faz parte de nossa cultura”. Falando assim, estamos decididos a continuar com este
modo de beber. A decisão menos adequada para nós, hoje, seria: saber que está nos
prejudicando e continuar com aquilo e cada vez pior!
Você já imaginou alguma vez parar de beber? Quantos ganhos você teria na sua vida se
não bebesse e/ou bebesse normalmente? Muitos de nós temos medo de parar de beber por
imaginarmos que se não bebermos os nossos amigos não vão mais gostar de nós, que não
vai poder mais ir para festas e que se sentiria estranho no mundo... São as nossas
racionalizações, justificativas para continuar bebendo!
Hoje em dia alguns sentidos vividos (dogmas, crenças, teorias) pelos nossos avôs
permanecem e recebem as variações próprias que cada pessoa vai criando num contexto
bem determinado [tempo, espaço, pessoas...]. Mas podemos criar outras crenças, ideias
sobre a nossa vida e nossos trabalhos.
Algumas características se assemelham com as características apontadas no início, porém,
surgem novas características [quem é da região irá se identificar]:
15

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3.1.As forças positivas das festas atuais
As inúmeras mudanças das realidades indígenas apontam características próprias.
Algumas características culturais de nossos avôs estão acontecendo nos espaços escolares
denominados “escolas indígenas” com a finalidade de revitalizar as práticas culturais
atuais. Existem outras práticas culturais recentes relacionadas às práticas culturais
ocidentais. Vejamos algumas características:
1. Transmissão de saberes étnicos: discursos de cumprimentos [acolhida, despedida],
discursos mitológicos, discursos sobre os relacionamentos de parentesco,
principalmente onde funcionam as escolas indígenas.
2. Transmissão de benzimentos do ciclo da vida: gravidez, nascimento, banho,
alimentação, bebida, iniciação [masculina e feminina]; benzimentos para
apaziguamento das doenças do tempo; apaziguamento das forças das florestas;
apaziguamento das forças de animais, insetos; benzimentos das doenças
emergentes; benzimentos preventivos; benzimentos curativos; benzimentos das
Casas de Dança; benzimentos da alma [nome; nominação]; benzimento do envio
do espírito do falecido para casa dos mortos, principalmente onde existem as
escolas indígenas.
3. Transmissão de cantos e danças: cantos e danças relacionados ao tempo de fazer a
roça [começo e fim]; cantos e danças para iniciação masculina e feminina; cantos e
danças de apaziguamento das doenças; cantos e danças de apaziguamento das
doenças do tempo...
4. Transmissão de diversos ritmos de danças: diversos ritmos de danças mitológicos
[popularmente: danças dos velhos]; inúmeros ritmos da dança do cariço; dança da
japurutu; dança da cabeça do veado...
5. Cantos de improvisação de cantos de agradecimentos, pedidos [hãde hãde]...
6. Transmissão das técnicas de fazer o caxiri: utilização de diversas misturas para a
fermentação...
7. Unidade dos moradores: o irmão maior [atualmente é o líder da comunidade com
sua equipe de animadores] pedia que as suas cunhadas fizessem caxiri; todos
bebiam juntos; manter e fortalecer a consciência étnica...
8. O espírito organizativo: convidar e acolher as pessoas; preparar a farinha e beiju;
organizar as caçadas e pescaria para alimentar as pessoas durante os dias de festas
e pós-festa...
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2.7 Page 17

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9. Aprendizagem de práticas de pinturas corporais (jenipapo, urucum...), utilização
de ornamentações...
10. Organização das festas ligadas à cultura cristã [Batizados, 1ª Eucaristia, Crisma,
Casamento, Aniversário, Casamento; festa de padroeiros]: aprende a convidar e
acolher os convidados; aprender a participar dos banquetes como convidados;
levar presentes; participar dos bailes; contribuir com alimentos, caxiri e outras
bebidas...
11. Festas conclusivas: assembléias de associações indígenas (dabucuri...); finais de
cursos: agradecimentos aos formadores.
12. Festas de tomadas de posses: agradecimento às lideranças que saem e posse aos
novos líderes das comunidades e seus animadores...
3.2. As fraquezas das festas atuais
O consumo de bebida alcoólica nas últimas décadas atinge muitas pessoas, e também
pessoas envolvidas com o processo de educação escolar. Em Iauareté, por exemplo, em
diversas assembleias, reuniões das comunidades e reuniões de pais, se tratou de diminuir
o caxiri e dias de festas para que os alunos não sejam prejudicados. Porém, poucas vezes,
tais discussões se tornaram ações efetivas e positivas. Na mesma proporção de indiferença
perante as propostas não assumidas para diminuir a bebida nas comunidades se viu o
aumento de algumas características, como estas:
1. Aumento do caxiri: muitas famílias e comunidades fazem caxiri todos os finais de
semana. Está havendo uma obsessão pela bebida [pensamento muito ligado pela
bebida; um bom final de semana é quando tem caxiri].
2. É bem visível a dependência dos compulsivos [vontade incontrolada para beber]
pela bebida. Com a aproximação do final de semana aumenta a ansiedade [falta de
concentração no trabalho; só esperando que termine logo o trabalho; alguns até
abandonam o trabalho, aulas...] pela bebida: procurar quem tem a bebida para
vender/comprar; quanto custa...
3. Há pessoas que vivem do comércio de caxiri: interesse é vender e lucrar; não pensa
nos prejuízos...
4. Para fazer a bebida com mais rapidez algumas pessoas até utilizam o fermento de
pão para fermentar mais rápido.
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5. Para que o caxiri fique mais forte [compradores comprem mais e ganhar mais],
comenta-se que algumas pessoas colocam um pouco de líquido de timbó [raiz
venenosa].
6. Em outros lugares servem caxiri misturando com cachaça (álcool). Hoje, o que
interessa mesmo é atingir o mais rápido possível ao estado de embriaguez. Quando
mais a bebida se apresenta mais forte é mais procurada pelos consumidores.
7. Aumenta o número de consumidores (bebedores) adolescentes e jovens, meninos e
meninas.
8. Quem prepara o caxiri, geralmente, não são os jovens, mas os adultos. Os
adolescentes e jovens bebem em grupos. Passam nas casas de amigos para beber;
bebem juntos meninos e meninas; maioria deles quando chega aos Centros
Comunitários já está embriagada.
9. O consumo de açúcar aumentou entre a população, mas não é para tomar com café
(leite) ou suco, e, sim para fazer o caxiri.
10. Antigamente completado aqueles dias de festa, o caxiri que sobrava era jogado
fora. Hoje, as pessoas saem de casa em casa juntando o que sobrou, vão coando
para aproveitar até as últimas gotas, nada se perde.
11. Devido ao exagero de bebida muitos jovens e adultos criam problemas: perder
forças; ficar caído; ficar vomitando; criar brigas nos Centros Comunitários; brigar
em grupos contra outros grupos de outras vilas [gangs, mascarados, encapuzados,
carregando facas nas cinturas...]; ferimentos, esfaqueamentos e até mortes
[assassinatos, afogamentos, enforcamentos].
12. É difícil ver uma festa que acaba bem. Geralmente, as lideranças acabam as festas
antes do horário previsto devido às brigas...
9. Descuido das crianças durante as festas: as crianças ficam relegadas aos cuidados
dos irmãos/irmãs (também crianças); as mães oferecendo caxiri nos centros
comunitários e embriagando-se; algumas crianças chorando em casa querendo se
alimentar; bebezinhos querendo mamar no peito da mãe, mas a mãe embriagada
sem condição de cuidar da criancinha...
10. Roubos nas residências, nos comércios, nos galinheiros, nos lagos de peixe,
enquanto a família toda está nos Centros Comunitários.
11. “Roubo” de mulheres e homens: alguns rapazes que levam as meninas para a
escuridão para a relação sexual; surgimento da gravidez indesejada; aumento de
mães e pais solteiros; desentendimento de pais da menina o rapaz que “roubou” ou
com os pais dele... Hoje surgem as doenças sexualmente transmissíveis. Aumenta
quantidade de abortos entre as jovens.
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12. Surgimento de algumas doenças graves após festas: envenenamento por ervas e
“sopros” venenosos...
13. Mortes durante as viagens por excesso de consumo de bebidas.
4. Até que ponto a bebida alcoólica é compatível e incompatível com as
práticas educativas escolares na região do Triângulo Tukano?
Em Iauareté eu convivi com as pessoas de diversas comunidades, pessoas de diversas
etnias e de diferentes idades. Quem mora neste lugar já deve ter notado que o nosso modo
de beber e a frequência com a qual fazemos festas desestabiliza o funcionamento normal
das comunidades e escolas14: agressões físicas, arrombamentos de comércios, brigas,
esfaqueamentos, enforcamentos, roubos de motores de popas, rabetas, voadeiras... Tira a
tranquilidade do povo, geram desconfianças, medos, inseguranças, revoltas, contrabando
de bebidas...
Na escola São Miguel, por exemplo, era comum, na segunda-feira, muitos alunos
chegarem atrasados à escola e, serem dispensados [pode ser que já tenha mudado] das
aulas. Os alunos saíam satisfeitos porque era o bom motivo para continuar bebendo [mais
um dia]. Da mesma forma alguns professores (homens). Assim para esses alunos (as) e
professores o dia letivo iniciava-se na terça-feira e acabava na quinta-feira, pois na sexta-
feira alguns já escapavam para beber já no intervalo de aulas [já existiam pessoas
vendendo o caxiri]. A bebida atinge também outras programações: reuniões comunitárias,
programações religiosas, programações esportivas [diversas vezes eu vi uma equipe inteira
não comparecer durante o jogo marcado].
Aquelas pessoas que já ingeriram a bebida alcoólica, principalmente, quem bebeu demais
já sentiram na vida algumas dessas situações:
a) Em nível físico: ressaca: indisposição para se alimentar; dores de cabeça, tonturas,
tremedeiras; dores de estômago, diarréias, ânsia de vômitos; insônias ou
sonolências; cansaço, fraqueza, olhos avermelhados; marcas de brigas
[ferimentos]; marcas das quedas...
b) Em nível mental: diminuição da vontade de trabalhar e estudar; diminuição da
motivação para fazer coisas boas; desatenção e desconcentração impedem o
14 Essas minhas observações foram feitas nos anos de 2007-2008. Já estou fora a um ano desta
realidade, por isso, peço ao leitor que confira a atual realidade.
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2.10 Page 20

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exercício de ensinar e de aprender; inquietação, ansiedade; não lembrar as coisas;
não organizar as ideias...
c) Em nível emocional (espiritual): vergonha, medo, raiva, culpa (culpar a si mesmo e
aos outros), auto-piedade, auto-condenação; aguentar gozação dos outros;
irritabilidade, hiper-sensibilidade, mentiras, acusações, arrependimentos,
promessas; apagamentos (não lembrar-se do que fez e do que falou)...
A partir destas características apresentadas por algumas pessoas de nossas comunidades
poderíamos nos perguntar. Será que a nossa bebida, nosso caxiri já não está nos deixando
doentes e dependentes?
Os especialistas em alcoolismo afirmam que o alcoolismo é uma doença progressiva,
incurável e fatal. O alcoolismo é uma doença física, mental e emocional (espiritual). Entre
a população indígena do Triângulo Tukano, alguns têm predisposição para desenvolver o
alcoolismo. É fácil encontrar pessoas em estágios avançados de alcoolismo, dependentes
do álcool para viver, trabalhar... E, muitas mortes já aconteceram e a causa da morte foi o
consumo da bebida alcoólica: cirrose hepática, assassinatos, enforcamentos,
envenenamentos, afogamentos... Como aconteceu com muitas pessoas pode acontecer
comigo e com outros, se continuarmos bebendo...
No espaço escolar diminui a qualidade no processo (momento) de ensino-aprendizagem.
Alguns professores em alguns dias não estão em condições para ensinar [física, mental e
emocional]. Muitos alunos não conseguem assimilar os conteúdos, o rendimento dos
alunos é baixo.
A bebida atrapalha a presença dos alunos e professores em salas de aula. Os professores
não dedicam o tempo para preparar aulas nem alunos para fazer as tarefas. O poder de
concentração do aluno diminui à medida que se encaminha no caminho de bebedeiras. A
sonolência impede a atenção e a aprendizagem. A ansiedade tira a concentração nos temas
da aula, pois leva a pessoa estar presente mentalmente em outros espaços... É bem certo
que no final de semana os estudantes [adolescentes, jovens, adultos] dificilmente
dedicarão tempo para estudar, fazer tarefas. E, o que dizer do professor? Será que ele/ela
dedica o tempo de final de semana para preparar suas aulas, corrigir tarefas dos alunos,
concentrar-se para transmitir bem os conhecimentos?
Nas semanas que não têm festas é visível o entusiasmo dos educadores, professores e
alunos. A alegria está estampada em seus rostos, sorrisos são diferentes, o interesse pelos
temas de aulas aumenta [eles vêm perguntar, consultar]. Também os professores ficam
20

3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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animados, sem aquela ressaca emocional [vergonha, desconfiança...]. Sabem que estão
fazendo o seu melhor e sabe que está certo o que está fazendo. Os gestores e
administradores, também ficam tranquilos, sem necessidade de ficar com medo de alguns
alunos e professores que não estão seguindo o projeto de educação da instituição. Assim, é
fácil perceber a capacidade indígena para educação escolar e a qualidade que isso gera.
Basta ter bebida para estragar este cenário bonito. Já aconteceram casos, em algumas
escolas levarem bebidas na sala de aula e brigar. E, o que dizer com os bafos de caxiri que
se espalham e atrapalham os alunos que gostaria de ter um ambiente tranquilo para
aprender? E o que dizer dos roubos de litros de álcool das escolas? Quem pode ser? Alunos
e professores irritados circulam pelo espaço escolar! A agressividade e raiva são utilizadas
como defesas diante do gestor (a) ou coordenar (a). E, muitas vezes nós indígenas temos
medo um do outro. Chamar atenção de um professor e aluno é correr risco de ser
agredido! Assim aparecem as consequências de nossos consumos exagerados de bebidas.
Por outro lado, há esforços de muitas pessoas para cumprir bem com os compromissos:
liderar uma reunião, lecionar, estudar... Estas pessoas estão dentro da porcentagem de
pessoas que sabem beber.
Uma pessoa que tem predisposição para se tornar alcoólatra (ou alcoólico; dependente) no
início de sua carreira alcoólica é sempre mais forte, bebe mais, aguenta mais... E, até leva
os outros para casa e volta a beber. Ele se considera forte. E, no entanto este pode se
tornar um alcoólatra. Até certo estágio de sua bebedeira a tolerância de seu físico é grande,
por isso, bebe mais, aguenta mais... Mas com o tempo da progressão de seu alcoolismo a
tolerância diminui, ele se torna fraco e vai sendo destruído progressivamente. Por isso, se
afirma que o alcoolismo é doença progressiva, incurável e fatal. De fato a Organização
Mundial de Saúde classificou o alcoolismo como uma doença que causa um transtorno
mental e comportamental. A doença do alcoolismo não tem cura, mas pode ser
estacionada. Para isso, não deve ingerir nenhum tipo de álcool, quantidade nenhuma e em
nenhuma ocasião. É importante dizer que quando alguém pára de beber (deixa de beber),
caso venha a recair (voltar a beber) ele começa beber donde parou [não vai começar do
zero].
Essa constatação com o progressivo agravamento de alcoolismo em algumas pessoas da
nossa região serve como alerta para começarmos reflexão séria e comprometida. Porém,
não significa acabar com a bebida alcoólica. Nem toda a população é alcoólica. Seria
apenas alguma porcentagem (10%) da população. Uma grande porcentagem não tem
predisposição para se tornar um alcoólatra.
21

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Entre nós indígenas do Triângulo Tukano, o caxiri que é a bebida mais tradicional está se
tornando uma bebida cada vez mais intensa. Em alguns distritos, como disse acima, o
caxiri tornou-se um produto de venda-compra-lucro. Quem faz o caxiri entrando dentro
dessa dinâmica não se preocupa tanto com os prejuízos que estão causando para os seus
filhos e parentes.
Sendo um elemento importante das culturas indígenas da nossa região o caxiri torna-se
um elemento que move parte da educação indígena e educação escolar indígena.
Afirmamos que durante a bebida que se ensina algumas práticas culturais indígenas. É
verdade. Por outra parte, os discursos de defesa do nosso caxiri e outras bebidas alcoólicas
são mecanismos de defesa para continuar bebendo. Muitas vezes só paramos para refletir
com mais profundidade sobre as consequências negativas diante das mortes: afogamento,
suicídio [enforcamento; tomar timbó...], assassinatos, brigas... Também são sentimentos
de dor e de revolta, bem passageiros. No fundo de nossa alma perguntamos e buscamos
alguma saída melhor. “Por que queremos mudar o que é, ou causar transformação? Por
quê? Porque o que somos não nos satisfaz. Isso cria conflito, distúrbios, e não gostando
dessa situação, queremos algo melhor, mais nobre, mais idealista. Então, desejamos
transformação porque há dor, desconforto, conflito” (KRISHNAMURTI, J., 2007, p. 67-
68).
Se olharmos bem para as nossas histórias indígenas, elas nos mostrarão que nas épocas
de nossos antepassados não existiam escolas. Hoje temos escolas com todas as suas
exigências: disciplinas, presenças, pontualidade, participação, calendários, avaliação
(provas...). Estamos vivendo e construindo outras histórias. As histórias nós que as
fazemos. Elas são do jeito que nós somos e do jeito que fazemos.
Já construímos muitas realidades bonitas desde os nossos avôs até aos dias de hoje. As
escolas estão aí. Nós queremos e fazemos as escolas. Queremos continuar indígenas, mas
também queremos aprender riquezas culturais de outros povos não-indígenas. Quais
práticas culturais indígenas devem ajudar a construir nossas escolas? Será que as escolas
são Escolas de Transformação [nas mitologias de nossa região: Casas de
Transformação] Como vamos lidar com a bebida alcoólica e suas consequências nas
pessoas com as quais trabalhamos? Falar dessa realidade é preocupar-se com a vida das
pessoas em geral: pai, mãe, lideranças (políticas, religiosas, civis), filhos, netos; jovens e
adultos. A bebida alcoólica gera para as pessoas, prejuízos financeiros... Poderíamos nos
perguntar: quanto dinheiro eu gastei comprando caxiri e outras bebidas alcoólicas desde
que comecei a beber? Quantas vezes eu fui roubado porque estava bem passado em
bebida? Quais materiais de necessidade pessoal, familiar e comunitária eu deixei de
22

3.3 Page 23

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comprar? Que prejuízos eu dei para minha comunidade, minha associação por estar
bebendo? É bem verdade que não podemos lamentar pelo que já passou, mas não é
proibido imaginar que se não fosse a bebida tirar o nosso dinheiro, muitas pessoas teriam
adquirido muitas coisas para suas casas, famílias e comunidades!
Na nossa região do Triângulo Tukano muitas pessoas ganham o dinheiro: funcionários
públicos; professores, enfermeiros, militares; aposentados, recebem dinheiro dos
programas de Governo; ganham dinheiro porque são pescadores; que vendem cipó; são
serradores... Certa importância em dinheiro é gasta com a bebida [cerveja, cachaça,
caxiri...]. É comum ver que quem não é controlado pela bebida, constrói casas melhores,
compra móveis para casa, compra motor de popa, voadeira; monta comércio; compra
roupas...
Vendo com mais atenção a bebida alcoólica atrapalha a vida dos povos indígenas da nossa
região. Destrói [divide, geram brigas, abandonos das comunidades...] as comunidades.
Destrói a sociedade [brigas, gangs, assassinatos, violência...].
Essas realidades repercutem nos espaços escolares. Devemos, de fato, refletir como
comunidades comprometidas com o bem das nossas sociedades indígenas, com as nossas
escolas, com os nossos alunos, professores; qualidade de ensino-aprendizagem...
Enquanto ficar reduzido como um esforço de gestores de escolas e lideranças continuará
sem a sua força necessária para modificar o estilo de vida. Quando assumirmos decisões
mais práticas com certeza as nossas vidas, comunidades e escolas vão respirar um novo ar.
Em muitas assembléias e em muitas escolas muito se fala que a escola é da comunidade, a
escola é comunitária; a escola age conforme o que a comunidade decide. Então como
podemos fazer diante da realidade posta? Fica evidente, porém, que devemos fazer escolha
e tomar decisões. No caso específico de escolas indígenas do alto rio Negro/AM, o
consumo excessivo de bebida alcoólica deverá ser assumido como política pública
(campanhas, conscientização, disciplinas, normas...).
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3.4 Page 24

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Fechando a conversa!
“O homem ignorante não é o inculto, mas o que não conhece a si mesmo, e o homem culto é
estúpido quando confia que livros, conhecimento e autoridade lhe darão entendimento. É através
do conhecimento de si mesmo, que é a percepção de seu total processo psicológico, que o homem
adquire entendimento. Assim, educação, no verdadeiro sentido, é a compreensão de nós mesmos,
pois é dentro de cada um de nós que se encontra o todo da existência (KRISHNAMURTI, 2007,
167-168).
Este tema de bebida [fermentada, alcoólica...] e suas consequências há tempo provocam
discussões freqüentes em reuniões de comunidades e comunidades educativas.
A previsão é de que tal realidade será modificada quando as comunidades e escolas
decidirem dar um novo direcionamento para suas vidas, seus trabalhos, suas escolas.
Nós indígenas somos inteligentes e, aprendemos e ensinamos com facilidade o que
aprendemos. A prova desta constatação está ai: professores, professoras, gestores (as),
militares, enfermeiros, profissionais, lideranças, comerciantes, ministérios eclesiais
[padres, ministros extraordinários, catequistas...]; desportistas, músicos... Muitos
professores formados em cursos superiores e outros tantos estudando nas cidades. E,
tantas realidades que nós indígenas assumimos e somos confiados pelas autoridades.
Somos capazes de gerar comunidades criativas, alegres, entusiasmadas. Assumir com
alegria, entusiasmo e capacidade nos nossos espaços escolares a tarefa de ensinar/educar
com certeza vai gerar muita qualidade do ensino-aprendizagem. As nossas crianças,
adolescentes, jovens e adultos estudantes merecem receber ensino de qualidade pelos
bons profissionais.
Quando estamos sóbrios [física, mental e emocionalmente] nós fazemos muitas coisas
maravilhosas. O que estraga, para alguns profissionais, é a bebida. Ai cai o nosso
entusiasmo, alegria, capacidade de ensinar, capacidade de motivar etc.
A decisão de viver melhor a vida, antes de tudo é uma decisão pessoal. A comunidade
[educativa] pode nos ajudar, mas vai funcionar se a pessoa decidir e aceitar a ajuda.
As nossas escolas são estruturas materiais, mas nós [professores, professoras,
funcionários (as), gestores (as), alunos e alunas] somos pessoas humanas, precisamos
cuidar de nós. Merecemos viver melhor!
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