Vocacao indigenas


Vocacao indigenas

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JUVENTUDE E VOCAÇÕES INDÍGENAS
Pe. Justino Sarmento Rezende1
Abrindo a conversa!
Agradeço o convite que vocês, missionários2, fizeram para que eu pudesse estar nesse
Encontro. Para mim é motivo de alegria estar com pessoas experientes na vida vocacional e
missionária.
Eu deposito nas Mãos e no Coração de Deus a partilha que eu realizo com vocês sobre o tema
da juventude indígena e indígenas no seguimento da vocação salesiana/sacerdotal.
O texto que eu lhes ofereço é narrativo. A intenção é de que lendo o texto você descubra as
diversas experiências humanas indígenas, cristãs e vocacionais.
As narrativas expressam os meus sentimentos, alegrias, preocupações, medos, esperanças,
conhecimentos, reflexões e desafios que exigem respostas e compromissos de muitas pessoas
envolvidas: leigos, religiosos e sacerdotes. Essas histórias foram tecidas por inúmeras mãos em
diversas décadas.
1. De onde estou falando?
A leitura antropológica e teológica sobre a juventude indígena e os indígenas no seguimento
da vocação salesiana/sacerdotal, fundamenta-se no convívio com os povos indígenas3 da bacia do Rio
Uaupés/AM4; convívio com os salesianos5; participação na construção da história da presença
salesiana no Rio Negro–AM (1914/15) como salesiano6 e como sacerdote7.
2. Nascendo indígena
Para nós indígenas, nossa existência começa dentro de uma família e comunidade indígena8.
Nascemos de uma relação de amor de nosso papai e nossa mamãe. O ventre materno é o primeiro
espaço de vida, onde somos acolhidos desde início da nossa existência; aqui crescemos durante vários
meses pela ação criadora do Divino-Artesão que constrói cada parte de nosso ser com carinho,
paciência, amor, formando a nossa originalidade, individualidade e especificidade.
Após esse período nascemos para ver e viver no mundo maior. Somos cuidados pelas pessoas
que têm muita delicadeza para nos cuidar, acompanhar, incentivar, motivar... No início da existência só
sabíamos chorar para expressar nossos gostos, nossas vontades, nossos sentimentos, etc. A nossa
mamãe compreende-nos em nossas inúmeras necessidades. A nossa alimentação era somente leite
materno. Com o passar do tempo aprendemos a tomar mingau de tapioca, banana... Continuamos
crescendo. Começamos engatinhar. Aprendemos a sorrir e reconhecer as pessoas. Aprendemos
escolher pessoas que nos são simpáticas e excluímos outras, que não gostavamos.
1 É indígena do povo Tuyuka. É mestre em Educação.
2 Encontro de Missionários: 15-17 de maio/2012, aldeia São Pedro, município Campinápolis - MT
3 Nasci numa aldeia indígena: Onça-Igarapé (Yai-ñiriya), no dia 30 de junho de 1961.
4 Arapaso, Desano, Barasano, Hupda, Karapanã, Kubeo, Miriti-tapuia, Piratapuia, Siriano, Tariano, Tatuyo, Tukano, Tuyuka,
Wanano, Yebamasa, etc.
5 Eu estudei no colégio salesiano em Pari-Cachoeira no período de 1970-1979.
6 Primeira profissão religiosa: 06/01/1984; profissão perpétua: 06/01/1991.
7 Fui ordenado diácono no 23/01/1994; ordenação presbiteral: 02/06/1994.
8 Atualmente muitas pessoas já nascem fora das aldeias, nas cidades.

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As nossas aventuras humanas continuavam e nós crescíamos a cada dia. Fomos criando
forças, equilíbrios... Nós queríamos andar e um dia conseguimos, com nossos esforços e com a ajuda de
pessoas próximas de nós. No início caíamos bastante, chorávamos, levantávamos inúmeras vezes.
Diversas vezes as pessoas estenderam seus braços para nos levantar. Outras vezes só nos
incentivavam para que levantássemos sozinhos. Hoje vemos que tanto uns e outros nos ajudaram
muito.
Com nossos familiares, parentes e amigos nós aprendemos a viver e conviver; partilhar
nossos sonhos, brincadeiras, alegrias, trabalhos, comida; falar nossas línguas, narrar nossas histórias,
nossas tradições (cantos, ritmos, danças, pinturas; comidas; comportamentos, modos de
relacionamentos com parentes, com homens e mulheres; comportamentos no cotidiano e nas festas...);
aprendemos nossas crenças, moral...
Continuamos ampliando nossos conhecimentos, conhecemos novas pessoas, interagimos
criando companheirismo, amizade, admiração, motivação, correção dos erros etc. Crescendo tornamo-
nos fortes. Criamos certa autonomia, não dependemos toda hora de outras pessoas. Assim nós
entramos e estamos dentro de muitas realidades históricas, culturais... Nós estamos continuamente
construindo nossas histórias pessoais e comunitárias.
3. Educando a pessoa indígena
Um dos objetivos desse nosso Encontro é a compreensão sobre a juventude indígena.
Atualmente eu compreendo a juventude da bacia do rio Uaupés-AM dentro de três momentos
históricos bem definidos: 1. Educação/formação da juventude para o mundo indígena (antes das
escolas). 2. Educação/formação das juventudes para o mundo de fora, olhar para longe (a partir das
escolas, pessoas que vão e não voltam mais). 3. Retorno para o mundo indígena (pessoas que saem
para estudar, formar, qualificar e retornam como profissionais na região).
Descrevo algumas características do primeiro modelo de educação. As características de
outros modelos aparecerão quando eu estiver tratando da vida cristã, escolas, etc.
a) Educação do recém-nascido
A convivência com os pais e parentes é importante para a vida de uma criança indígena.
Educar é cuidar da fragilidade de uma pessoa. Quem a cuida melhor é própria mãe com sua sabedoria
materna. Ela entende os comportamentos de sua criança. A própria pessoa que educa se reeduca
diante das ações da criança: paciência, criatividade, dedicação, atenção, delicadeza...
b) Educação do menino (infância, adolescência)
O menino é educado todos os dias com palavras, gestos, carinho e atividades próprias da
identidade masculina. Aprende a pensar, falar e agir do jeito de menino. Os jogos são identificados com
as atividades dos homens. Aprende muitas coisas a partir de suas curiosidades e no convívio com seus
parentes: andando em grupos, brincando, correndo... Aprende com os pais durante os trabalhos na
roça, em casa, nos passeios, com as refeições, visitas aos parentes... Vendo, ouvindo e fazendo ele está
aprendendo e construindo a sua identidade.
c) Educação da menina (infância, adolescência)
A menina é educada todos os dias com diversos pensamentos, palavras, gestos e atividades
próprias da formação de sua identidade feminina. É educada, principalmente pela mãe e outras
mulheres da família. Ela aprende os saberes do seu povo. Desde cedo começa pensar, falar e agir como
mulher. Aprende as atividades que as identificam com o ser/fazer de mulher. A mãe, irmãs, tias, avó e
outras mulheres influenciam em suas atividades: falas [palavras], gestos, brincadeiras, trabalhos... Os
jogos estão identificados com a vida e os trabalhos da mulher: cozinhar peixe, torrar a farinha, carregar
o aturá (cesto de cipó), preparar e oferecer o caxiri (bebida fermentada) no dia da festa, cantar, etc.
d) Educação dos jovens: rapaz e moça

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A passagem da fase de infância/adolescência para a da juventude não acontece como uma
ruptura, mas é continuidade do crescimento de uma pessoa.
O jovem cada vez mais assume responsabilidades pelas atividades masculinas: pescar, fazer
roça, participar da vida comunitária etc. Assim demonstra seu crescimento e amadurecimento. Ele se
capacita para viver bem consigo mesmo e com outros através do domínio de diversas atividades.
Aprende a interagir com as pessoas de sua comunidade nas festas, jovens, trabalho... Aprende o valor
do casamento: como tratar bem a mulher e o que deve ser evitado; como sustentar a sua mulher, como
tratar os sogros, cunhados e parentes da sua mulher, como se comportar como homem casado, como
participar da comunitária, como viver com os filhos, como tratar a sua mulher durante a festa, etc.
A jovem é preparada para o casamento. Com o casamento ela deixa a sua família e seus
parentes. Durante a educação familiar adquire o domínio do mundo do trabalho (indígena): queimar a
roça, cuidar do plantio, conhecer os diversos tipos de pé de maniva ou mandioca brava; da utilização
das ervas medicinais, escolha de fruteiras, das técnicas de cultivo da roça; preparação do mingau, beiju
e a quinhapira; dos segredos familiares sobre o trabalho; segredos da vida feminina; técnicas de ralar
mandioca, preparar a manicoera, o caxiri, a farinha, preparar o peixe e caça. A mãe, o pai, as tias, avós e
os parentes a educam, acompanham, avaliam o crescimento e amadurecimento dos filhos e filhas,
dentro do ritmo de trabalho, convivência com as pessoas etc.
As características principais das juventudes indígenas são: disponibilidade para diversas
atividades, coragem, alegria, esperteza, superação. Essas qualidades os jovens conquistam com
empenho pessoal, seguimento das disciplinas exigidas pelos pais, etc. Para a construção dessa vida
juvenil estão presentes muitos educadores interagindo: os pais, irmãos, irmãs, tios, tias, avó, avô,
parentes, etc. As pessoas adultas são responsáveis pela educação, acompanham como eles falam e
fazem; como tratam as pessoas e as coisas; corrigem quando algo está errado, etc.
Eu destaco a importância dos velhos sábios. Diariamente fortalecem a vida e cultura do povo
com suas conversas, trabalhos, ensinamentos... Sentam-se na casa de ancião-mestre de danças e
cerimônias, para conversar; ali ficam até altas horas da noite. Nestas conversas narram histórias dos
antepassados, histórias da vida e do mundo (geográfico, mítico, religioso, político etc.); fazem
previsões do futuro do povo. No final, fazem o discurso de conclusão do dia e anunciam o novo dia que
virá. Depois, cada ancião medita deitado em sua rede.
Os anciãos faziam jejum, a abstinência de certos alimentos para cultivar a sabedoria, saúde
etc. Assim, desabrochava neles a capacidade de aprender cantos, danças, benzimentos, discursos etc. O
ipadu (pó da folha de coca), elemento importante dos rituais e cerimônias, tem um lugar e sentido
mitológico. Os anciãos sábios são guardiões dos saberes de cada povo. Transmitem saberes para as
pessoas conforme a fase de crescimento da pessoa. Eles mantêm segurança, equilíbrio e harmonia;
ajudam unidos os membros de uma comunidade; protegem as vidas e curam as doenças.
As práticas educativas acontecem no ritmo da vida e todos os momentos. Porém, destaco
alguns espaços importantes para os indígenas de nossa região.
A Casa é o espaço da explicação sobre os sentidos da vida, trabalho, casamento, convivência
com as pessoas. Os pais, irmãos, tias, tios, avós, mostram como praticar os saberes dos pais e do povo;
respeitar os outros; serem bons com os parentes e amigos; partilhar a comida; convidar/participar de
diversos momentos da vida: jogos, trabalhos... acolher/cumprimentar as pessoas em casa e fora;
aprender/viver a obediência aos pais, aos líderes.
A Roça é uma das práticas mais importante da nossa vida. Ter roça significa ter dignidade, ser
respeitado... Os pais e mães assumem com muita responsabilidade o trabalho de ensinar a trabalhar na
roça. O pai ensina ao filho a fazer a roça e ensina a conhecer tipos de terrenos etc. A mãe ensina para a
filha a fazer o beiju, quinhapira, mingau e farinha; a cozinhar peixe e caça; plantar fruteiras, cuidar da
roça e cuidar das crianças. Assim a menina aprende a trabalhar com outras pessoas, a ser criativa nas
diversas atividades, etc.

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A Pesca/Caça são atividades comuns entre os povos indígenas da bacia do rio Uaupés para
conseguir alimentos para família e a comunidade. Os pais ensinam aos filhos as diversas técnicas de
pescaria e da caça, técnicas que variam de acordo com o ambiente e com o tempo; técnicas para os rios
grandes e igarapés; uso de arco e flecha, caniço de pesca e outras armadilhas de pesca, como amarrar
no galho a linha com anzol e isca; amarrar na varinha a linha com anzol e isca e fincar no fundo do rio;
matapi, uso do timbó. Os tipos de isca, que variam muito, como gafanhotos, ovos de cabas, minhocas de
vários tipos, peixinhos, camarões, frutinhas, etc.
Para fazer uma boa caça é necessário conhecer os diversos tipos de florestas, a geografia da
região; conhecer o ciclo de frutas; tipos de alimentos de cada animal etc. Existem inúmeras técnicas de
caça. Vendo a prática dos pais, os filhos aprendem e fazem, são herdeiros das sabedorias dos pais. No
convívio com outros pescadores e caçadores, aprendem outros segredos que se confidenciam um ao
outro. A pesca e a caça exigem também o cultivo da espiritualidade de pescador/caçador.
A Comunidade é o lugar onde se vive e mostra o que se aprende, onde a pessoa aprende
outros ensinamentos. A educação prepara a pessoa para viver em comunidade. Cada pessoa é
responsável pela educação da pessoa. A educação valoriza e fortalece as riquezas de cada povo. A
comunidade dá continuidade à educação familiar. As crianças e os jovens veem e aprendem como viver
com um povo. Aprendem os comportamentos e atitudes fundamentais no convívio social.
A Festa é um espaço educativo importante entre as populações indígenas. Na festa é que
muitos valores aprendidos na educação do cotidiano aparecem melhor, pois uma festa envolve
caçadas, pescarias, preparação de bebidas, alimentos, etc. Cada família procura fazer o melhor, para
mostrar a qualidade de sua aprendizagem. Na festa, acolhem as pessoas de outras comunidades;
aprendem as pinturas corporais, cantos, danças, rituais, cerimônias, discursos, etc. Muitas práticas
culturais que não acontecem no cotidiano, acontecem na festa. A festa fortalece a identidade do povo e
a marcação de diferenças. Aprendem os discursos sobre a origem humana, origem do mundo,
significados políticos, econômicos, éticos, míticos, sagrados, as histórias de nossos avôs, a veneração
do tempo, do espaço, os seres divinos.
4. Como nos sentimos e vemos nossas histórias indígenas hoje?
De nossos antepassados nós mantemos vivas muitas tradições, costumes, saberes,
conhecimentos, práticas culturais... Também construímos novas culturas, histórias, sonhos, desejos e
esperanças... Somos bem diferentes de nossos antepassados. Estamos continuamente transitando
pelos contextos de mudanças. Nas últimas oito/nove décadas as mudanças históricas começaram a
acelerar muito. Porém, nas últimas três décadas algumas lideranças começaram criar resistência ao
novo no campo da evangelização, catequese, educação escolar. Apesar disso, eu vejo que não é uma
luta totalizante, totalitária. As forças externas (Igreja, Estado, Escolas) são muito fortes, têm grandes
poderes de convencimento, tornar atraentes seus projetos.
Através do movimento de resistência liderada pelo Movimento Indígena nossos pais e
lideranças a voltaram seus olhares para o passado e começaram a sentir saudades de tempos
passados; do jeito como viviam nossos avós, etc. Começamos nos preocupar: o que acontecerá conosco
no futuro? O que está acontecendo conosco agora? Essas preocupações, essas leituras e reflexões não
acabaram com o funcionamento dos programas eclesiais, escolares...
Atualmente muitas preocupações ocupam nossas mentes, nossos corações e nossas vidas:
estudo, emprego, dinheiro, benefícios, viver na cidade, ter uma vida mais fácil, etc... Quando não
conseguimos tais realidades ficamos frustrados, decepcionados, ansiosos, deprimidos... Em muitos
lugares essas realidades provocam mortes de muitos jovens gradativamente [alcoolismo, drogas],
mortes rápidas: enforcamento, envenenamento, suicídio juvenil e de adultos. Também os assuntos da
Igreja e atitudes de missionários deixam as pessoas muito preocupadas: batizados, negação aos
pedidos de batizados, primeira comunhão, crisma; não querer realizar os casamentos, etc. Essas
realidades tiram a tranquilidade e paciência das pessoas.

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Nessa mesma história vemos muitos jovens e adultos concretizando seus sonhos em diversos
campos: emprego, professores, gestores de escolas, agentes de saúde, enfermeiros (as), líderes de
movimentos juvenis, de associações, militarização de algumas regiões que fascina muitos jovens,
recrutam centenas de jovens para quartéis, enquanto estão na ativa ganham dinheiro, esbanjam e
quando terminam o serviço militar ficam sem nada; no campo da política temos vereadores, prefeitos,
secretários (educação...). Temos muitos universitários indígenas espalhados pelas universidades
federais, estaduais e particulares, desses alguns encontram empregos e outros não. Surgem
comerciantes indígenas, gerentes em diversos setores de trabalho. No âmbito eclesial também vemos
crescer os ministérios: catequistas, ministérios extraordinários da eucaristia, jovens na vida religiosa:
salesianos, salesianas, franciscanas, capuchinhos... Ministros ordenados: sacerdotes diocesanos,
salesianos, capuchinhos.
5. Nascer cristão
A cultura cristã veio de fora, trazida pelos missionários. Inicialmente, eram todos
estrangeiros [italianos, espanhóis, alemães...]. Através da evangelização e catequese tornaram os
nossos antepassados em cristãos. Eu tive um pai e mãe cristãos católicos. Após nove dias9 do meu
nascimento levaram-me à Igreja para ser batizado em nome de Deus Trindade. Esse dia para mim
significou novo nascimento. Tornei-me filho de Deus, irmão de todos os batizados. Tornei-me um
consagrado, ungido para ser seguidor de Jesus. Tudo isso aconteceu sem que eu escolhesse.
As famílias e comunidades cristãs são responsáveis para mostrar, ensinar e acompanhar aos
filhos durante o processo de iniciação à vida cristã. A oração familiar e comunitária são momentos que
nos ensinam a rezar, cantar, ouvir a Palavra de Deus e no cotidiano colocar em prática o que
aprendemos. Vendo nossos pais rezar, nós aprendemos rezar, vendo-os cantar aprendemos cantar;
vendo-os fazer silêncio aprendemos a ficar em silêncio... Para nossos pais cristãos não bastavam
apenas isso, com o passar do tempo, pediam algo mais de nós: zelar e manter limpa a capela;
ornamentar o altar; colocar flores aos santos padroeiros das comunidades; preparar e ensaiar os cantos
etc.
Com o passar dos anos nós mesmos tornamo-nos leitores da Palavra de Deus, entoadores de
cantos, responsáveis para preparar as celebrações etc. A vida cristã é uma construção histórica feita
pelas pessoas humanas. É algo que exige escolha, decisões, esforços e superações de acomodações,
preguiça, indiferença... A nossa vocação cristã fortaleceu-se ali, com nossos pais e parentes.
Os nossos pais são cristãos participantes e praticantes do jeito como aprenderam de antigos
missionários: oração da manhã diária, culto dominical, frequentadores de missas, dos sacramentos da
confissão; casados na Igreja e fieis até o fim da vida.
As indiferenças com essas realidades começaram também com o passar dos anos, com a
escolarização, com a saída de estudantes para longe das comunidades indígena, com a liberdade de ir e
não ir (sem controle externo). Hoje temos um quadro diferente, pois as pessoas concebem
diferentemente do passado sobre muitas realidades indígenas, religiosas, eclesiais, sacramentos,
educação, etc.
6. Estudando na escola
No início da nossa vida nós pensávamos que para viver bem precisaria somente aprender o
que os nossos pais nos ensinavam: trabalhar na roça, pescar, participar dos trabalhos e festas
comunitárias. Sabendo fazer esses afazeres já poderíamos formar a família, ter filhos e levar a vida de
adulto. O objetivo principal da educação visava atingir essas metas.
9 Dia do batismo: 09/07/1961. Meu pai era catequista da comunidade Nossa Senhora da Assunção – Onça-Igarapé.

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Com os missionários salesianos também chegou entre nós a educação escolar (1915ss.) e
muitos estudaram nas escolas salesianas. Quando completamos certa idade os nossos pais nos levaram
para escola nas sedes das Missões Salesianas.
Até o ano de 1975 todos os estudantes estudavam sendo alunos internos. A partir desse
mesmo começava a surgir o externato. Na segunda metade da década de 1970 começaram a surgir
escolinhas em algumas aldeias e persistem até hoje. Eu comecei a viver no internato da Missão
Salesiana de Pari-Cachoeira (1970-1979). Os últimos internatos fecharam no ano de 1988. Nos
internatos a dinâmica da educação era muita ampla: educação para civilidade, educação de novos
comportamentos, educação escolar (alfabetização...), educação para o trabalho (profissionalização),
educação para o esporte, educação para a vida cristã, etc.
Nas escolas pós-internatos a dinâmica é diferente. De maneira geral ao redor da escola
concentram-se muitas pessoas. Há uma interação complexa entre pessoas de diferentes povos, de
diferentes gêneros e de diferentes gerações. Há uma forte vivência comunitária: trabalhos
comunitários, orações comunitárias, missas comunitárias, reuniões comunitárias, festas comunitárias,
participação em grupos juvenis etc. Os jovens são avaliados pelos comunitários: condução de nossa
vida, compromisso com a comunidade. Quando não assumem as responsabilidades são corrigidos.
Sendo estudantes constroem muitos sonhos: casar e formar família; tornar-se professor, professora;
viajar para outros lugares [cidades]; ter vida fácil, longe dos trabalhos pesados, longe da roça etc.
Também criam medos, inseguranças, incertezas do que farão da vida depois do Ensino Fundamental e
depois do Ensino Médio; onde viverão; com quem viverão; criam medos de sair de casa, deixar a nossa
família; medos de não satisfazer as vontades e desejos dos pais...
No espaço escolar aprendemos diversos conhecimentos estudamos diversas disciplinas
escolares. Aprendemos os conhecimentos e saberes da cultura escolar. Aprendemos a contribuir com
nossas culturas. Aprendemos muitas práticas culturais: artes, danças, cursos profissionalizantes etc.
No período escolar que aprendemos os ensinamentos sobre religião cristã. Recebemos os sacramentos
da iniciação cristã: Eucaristia e Crisma. Muitos jovens de catequizandos tornam-se catequistas. Alguns
se tornam animadores de comunidades, coordenadores de grupos de jovens, coordenadores de
oratórios, coordenadores de atividades esportivas etc.
7. Surgimento da Vocação para vida religiosa e sacerdotal
Em diferentes ambientes religioso-cristãos nós sentimos desabrochar em nós o “nosso querer
ser padre; querer ser irmã”. Esses desejos não surgiram do nada. Surgiram de nossa convivência com
os padres, com os salesianos e salesianas.
Em nossas culturas indígenas antes à chegada dos missionários nós não tínhamos as figuras
de religiosos consagrados como entende a Igreja. Nós somos descendentes de povos que têm figuras
religiosas próprias: mestres de cantos/danças, mestres de cerimônias, entoadores de mitos, discursos,
benzedores, pajés... Para a formação dessas personalidades existiam disciplinas, jejuns, abstinências,
dietas alimentares, benzimentos da alma, do corpo, da casa; exigências para aprender os
comportamentos adequados; desenvolvimento da capacidade de reflexão e meditação; capacidade de
orientação às pessoas; proteção com as forças de benzimentos etc. Essas funções, de maneira geral,
passavam de pais para filhos. As mulheres também possuíam suas funções específicas: pintoras de
corpos, cantadoras, mestras de respostas aos cantos de mestres de danças... Essas funções exigiam
educação específica. É isso que os filhos sonhavam ser quando crescessem. Os meus pais, por exemplo,
sabiam muito bem o que eles queriam que eu fosse: mestre de danças/cantos rituais...
Para nós indígenas religiosos e padres também daria para exercer algumas funções de nossas
tradições indígenas mesmo assumindo as funções do ministério sacerdotal. A dificuldade que eu vejo
dentro de nossas culturas da região do Rio Negro-AM é mais disciplinar. Para assumir com seriedade
tais funções nós teríamos que conseguir tempo para passar pelos rituais de iniciação (tuyuka,
tukano...) e passar por necessários tempos de formação, fazer jejuns, abstinências, vomitar água nas
madrugadas para a purificação interior, de comer ipadu para fomentar a assimilação dos saberes

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tradicionais de nossos povos (saberes dos avôs); capacidade de reflexão, meditação, aprendizagem de
benzimentos; de beber bebidas alucinógenas seguidas por dias de jejuns etc. Meu pai certa vez me disse:
“esses rituais indígenas não são para brincar, teatralizar...” E, completou: “vocês padres não têm
disciplina”.
Para nós indígenas os próprios salesianos e salesianas nos disseram que também nós
poderíamos chegar a ser salesianos, salesianas e padres. Essas ideias entravam em nossas cabeças, em
nossas mentes e mexiam com os nossos sentimentos e emoções. Mexeu com as nossas estruturas
humanas e culturais.
Como alguns sonhos esse sonho era bem distante de nós: índio pode ser padre? Eu fazia essa
pergunta comigo mesmo, ainda adolescente/jovem. Eu percebia que nem todos salesianos e salesianas
incentivavam a seguir a esse tipo de vocação. Até hoje é assim, mesmo que se diga que todas as
comunidades salesianas devam ser centros de animação vocacional. Enquanto alguns salesianos e
salesianas nos incentivavam outros diziam o contrário: esse caminho não é para vocês! Comigo
também disseram assim. Certa vez um salesiano disse que de Iauareté nunca se surgiria um padre a não
ser quando uma galinha criasse dentes; alguns décadas depois, no dia em que foi ordenado um indígena
padre, uma senhora foi dizer a este salesiano: parece que a galinha já criou dentes em Iauareté!
As histórias de jovens no campo vocacional são longas. Já na década de 1960 os primeiros
missionários salesianos já haviam enviados alguns rapazes para os centros vocacionais em
Ananindeua (PA) e em Manaus (AM). Desses alguns se tornaram salesianos e outros saíram. Dos que
saíram alguns retornaram para suas famílias e outros nunca mais retornaram. Essas histórias nos dão
a entender que os primeiros salesianos estavam interessados que tivessem indígenas salesianos e
padres. Dessas gerações de indígenas, ainda hoje podemos encontrar em suas comunidades como
lideranças e catequistas. Alguns deles sempre contam suas histórias.
Outro grupo começou a surgir no final da década de 1970. Muitos jovens indígenas do Rio
Negro foram encaminhados para Centros Vocacionais. Maioria desistiu por diversos motivos:
dificuldades na convivência com jovens não indígenas; dificuldades nos estudos; incompreensão dos
formadores; problemas com bebidas alcoólicas; resultados e discernimentos vocacionais etc.
A partir da década de 1980 aumentou muito o número de vocacionados, porém a desistência
foi muito alta. Se contássemos, o número dos que entraram em centros vocacionais é superior a cento
e cinquenta jovens indígenas. Dessa etapa histórica já faço parte. Quando eu entrei no Centro
Vocacional em Manaus já encontrei indígenas como pré-noviços, outros no noviciado e pós-noviciado...
Tais realidades mostravam-me que era possível seguir para frente.
A nossa presença indígena em centros vocacionais tornou-se desafio também para os nossos
salesianos formadores. Nós éramos jovens como outros, porém nós éramos jovens indígenas de
diferentes povos: Piratapuia, Tariano, Wanano, Tukano, Tuyuka, Baniwa, etc. Os nossos superiores não
conheciam bem os indígenas nem nossas culturas. Apesar disso, é importante dizer que alguns deles
foram de muita importância em nossa caminhada vocacional: eram pacientes, respeitavam nosso ritmo
de abertura, de criar confiança, de perder os medos etc.; encorajaram-nos, motivaram, ajudaram a
aprofundar e fortalecer a nossa caminhada vocacional. Nós indígenas estávamos trazendo para dentro
das estruturas salesianas outros desafios que provocam a desconstrução de esquemas e conteúdos
formativos.
Hoje nós indígenas somos salesianos, salesianas, padres e temos que contribuir melhor na
compreensão das culturas indígenas, valores indígenas, conhecimentos, saberes; limitações, fraquezas
das culturas indígenas. Nós também estamos aprendendo as novas culturas e a vida religiosa e
sacerdotal são novas culturas. Por isso, vemos tais realidades como sonhos. Sentimos nossos medos.
Temos nossas boas vontades e desejos de fazer bem feito. Na maioria das vezes são realidades que nós
abafamos, escondemos e não abrimos nem com nossos orientadores espirituais. Estes são alguns dos
desafios dos religiosos jovens e também de religiosos de mais caminhada.
Para muitos indígenas antes de iniciarmos o caminho vocacional foi uma etapa de vida
delicada: contar o nosso desejo de ser salesiano, salesiana e ser padre. Alguns de nós sentíamos medo

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de contar aos nossos pais e amigos. Na minha família foi muito difícil contar a minha decisão. Lembro-
me que quando eu expressei aos meus pais esse desejo a minha mãe logo disse que não foi para isso
que ela me educou. O desejo dela era de que eu formasse a família; sempre sonhou em me ver mestre
de cantos/danças cerimoniais tuyuka como o meu avô e meu pai. Meu avô também disse: em nossas
tradições não existe padre; ser padre é coisa do “branco”. Somente o meu pai que era catequista
concordou que eu fosse experimentar a vida de seminário.
Com nossas escolhas e decisões nós fazemos uma ruptura com os esquemas tradicionais de
nossas culturas. Estávamos construindo novas personalidades dentro de nossas culturas indígenas:
salesianos, padres. Hoje já podemos dizer que se antes em nossas culturas indígenas não existiam as
figuras de padres e irmãs, hoje podemos dizer que em nossas culturas indígenas existem padres e
irmãs. Ao contrário de nossas tradições indígenas a nossa vida religiosa salesiana não é uma realidade
que passaremos para nossos filhos biológicos.
Muitos jovens na década de 1980ss chegaram a ingressar nas etapas iniciais da formação
para vida religiosa. Alguns jovens chegavam a realizar as primeiras profissões religiosas. Maioria
deixava essa caminhada nas fases seguintes. Alguns chegaram a fazer profissão perpétua. Alguns
estudaram alguns anos na Teologia.
Nessa mesma época também (1980ss.) as jovens indígenas iniciaram suas experiências
vocacionais nas comunidades salesianas e em seguida eram enviadas para casas de formação. Foi,
principalmente, na década de 1990 que aumentou o número de jovens indígenas fazendo as
experiências vocacionais. Muitas delas chegaram a fazer a profissão religiosa. Outras também
desistiram.
8. Centro de Formação Indígena (CFI) – Iauareté (1994s.)
A ideia inspiradora desse Centro é a experiência do Pe. Jorge Potempura (indiano),
missionário salesiano que trabalha entre os povos indígenas numa região de Guatemala (América
Central). Eu passei uma temporada lá, no ano de 1993. Esse padre fundou uma congregação religiosa
com as indígenas (Irmãs de Ressurreição) e ao mesmo tempo cuidava de um Centro de Formação
Indígena com objetivo de formar liderança indígena, catequistas e encaminhamento vocacional...
Na nossa inspetoria (Inspetoria Salesiana Missionária da Amazônia – ISMA) havia naqueles
anos desejo de iniciar um seminário para os jovens indígenas. A ideia de ter um seminário para
indígenas era favorecer uma formação específica, atenta às culturas indígenas, ajudar a superar as
grandes diferenças existentes com os não indígenas quando entrassem na etapa seguinte (Filosofia,
Teologia); diminuir o choque cultural; aumentar a perseverança, etc.
Já com um pouco de conhecimento da experiência do padre Jorge, iniciamos na Missão
Salesiana de Iauareté o Centro de Formação Indígena. Tanto inspetor (Pe. Franco Dalla Valle) e o bispo
(Dom Walter Ivan de Azevedo) da época denominavam de seminário indígena. O povo de Iauareté
acolheu essa experiência como seminário mesmo. Os jovens que ali chegaram de diferentes regiões
eram vistos e conhecidos como seminaristas. Eu mesmo dizia para as comunidades que este Centro de
Formação Indígena era de todos os indígenas e que as comunidades eram responsáveis: manutenção
material, indicação de jovens para entrar nesse Centro e o acompanhamento/avaliação da caminhada
vocacional dos jovens. Nem todos os salesianos da comunidade apostavam nessa iniciativa. Mas um
grupo de salesianos junto com o povo estávamos bem animados para fazer acontecer essa novidade e
estávamos apostando que futuramente teríamos nossos salesianos, padres.
Iniciamos com poucos jovens e depois fomos recebendo mais jovens. A experiência passou
por diversos modos: um tempo nós acolhíamos como internos quem vinha de longe, de outras
paróquias; os de Iauareté ficavam em suas casas, mas passavam o dia com outros jovens; em outra
época todos eram acolhidos como internos; em outra época queríamos deixar todos externos; em
outra época a inspetoria queria acabar com essa experiência, mas a comunidade não queria; nos
Capítulos Inspetoriais várias vezes se discutiu sobre sua continuidade ou não; discutia-se se era

1.9 Page 9

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[9]
seminário ou não; no fundo havia diversos preconceitos e descrença nas vocações indígenas; mais
recentemente quem passava naquele centro tinha passar mais algum ano em outro centro vocacional
antes de ir para o pré-noviciado; agora está vivendo outra época...
Nesse Centro desde seus inícios (1994) até hoje passaram diversos diretores, vários
tirocinantes, vários salesianos e muitos jovens. Cada salesiano dedicou mesmo para que esse Centro
encontrasse um caminho certo. Graças aos dedicados trabalhos dos salesianos e apostas das
comunidades indígenas nós como Inspetoria nos amadurecemos e somos bem sensíveis/abertos para
acolhermos os jovens indígenas vocacionados à vida salesiana e sacerdotal.
Somente de três anos para cá é que estamos vendo os resultados: até esse momento temos
dois sacerdotes que passaram por esse centro (Pe. Reginaldo Lima Cordeiro e Pe. José Jacinto Sampaio
Alves) e temos um diácono: Gilson Araújo. Temos alguns na teologia, no tirocínio, pós-noviciado, pré-
noviciado, etc.
O Centro de Formação Indígena está ajudando a construir uma cultura vocacional entre as
comunidades indígenas cristãs, para a paróquia, para inspetoria (ISMA) e para a Igreja. Nós
aprendemos muito com as histórias desse Centro, com os jovens que passaram por aqui, com as
comunidades. Não conseguimos acertar em tudo, não conseguimos acompanha-los bem, não
conseguimos orientá-los bem... Acertamos em outros pontos. São dezoito anos de aprendizagem, de
busca e de conquista.
Muitos salesianos que trabalharam aqui deixaram a vida salesiana. Muitos jovens indígenas
que passaram por esse Centro não continuaram, mas estão exercendo os trabalhos como profissionais
na área de saúde, na educação escolar como professores; nas comunidades como lideranças,
animadores, catequistas; na vida política.
Nós salesianos aprendemos muito com essas histórias, sentimos de perto nossas resistências
e preconceitos; mas quebramos, superamos e aprendemos confiar mais nas vocações indígenas.
Aprendemos trabalhar vocacionalmente e materialmente com as comunidades indígenas. Aprendemos
acompanhar esses jovens como salesianos conjuntamente com os membros das comunidades.
Pelas suas histórias, superação de dificuldades e sua continuidade nós podemos dizer que o
Centro de Formação Indígena é projeto de Deus para nossa região, para a inspetoria e para a Igreja.
9. As exigências na formação religiosa e sacerdotal
Sonhar com o caminho vocacional é um sonho muito bonito. Sonhamos sendo religiosos (as)
e sendo padres. Normalmente começamos ter esses sonhos estando em nossos lugares de origem, nas
comunidades indígenas. Foi lá que vimos muitas pessoas rezando pelo surgimento das vocações
religiosas e sacerdotais. Nós mesmos rezamos para que surgissem vocações religiosas. Ouvimos dizer
que alguns dos jovens de nossas comunidades indígenas algum dia chegariam a ser religiosos (as) e
serem padres.
Um dia chegou a nossa vez. Quando chegamos às comunidades formativas distante de nossos
familiares e longe de nossas terras de origem, sentimos muitas dificuldades. Havíamos nos afastado de
nossos pais, nossas comunidades, amigos e amigas. Sentimos saudades e às vezes choramos. Outras
vezes nos sentimos impotentes perante as dificuldades e exigências do processo formativo.
Diversas vezes pensamos em desistir do desejo de ser religioso (a) e ser padre. Antes do início
da caminhada vocacional não imaginávamos encontrar tais dificuldades. Para alguns de nós, esses
desânimos nos fizeram entrar no íntimo de nossa vida, dentro do nosso coração e ouvir uma voz forte e
suave, voz motivadora dizendo: siga em frente, você vai conseguir!
As dificuldades são muitas. A vida religiosa salesiana não é para quem quer nem para quem
pode. Acredito que seja para quem recebeu essa vocação e procura responder, superando inúmeras
dificuldades. Nós indígenas salesianos e salesianas passamos por algumas dificuldades como essas: não
conseguir expressar nossos sentimentos, nossas motivações vocacionais, nossas dificuldades,

1.10 Page 10

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[10]
problemas... Algumas dificuldades que temos hoje já nos acompanham antes de sermos salesianos e
salesianas. Nós vamos levando certos problemas para frente. Até quando aguentaremos?
Os jovens indígenas quando entram numa comunidade religiosa para fazer experiência
vocacional encontram estruturas boas, mas elas mesmas tornam-se dificuldades: vida comunitária,
horários, pontualidades, disciplinas, vida de oração, regras da casa; as posturas de salesianos (as) às
vezes desumanas... Muitas vezes eu, por exemplo, vejo que alguns salesianos não gostam de indígenas,
me dá impressão de que “somos intrusos.”
Os jovens indígenas encontram dificuldades nos relacionamentos com os jovens não-
indígenas e ali sofrem os chamados “choques culturais”, “estranhamentos” [calam-se, ficam mudos, se
aborrecem, ficam com raiva...]. É um período necessário de adaptação, de vencer os medos, de criação
de coragem, desarmar-se culturalmente de seus preconceitos etc. Alguns superam com pouco tempo,
outros demoram ultrapassar essa fase e alguns nem superam.
Nós indígenas salesianos carregamos nossas limitações. Sendo religiosos temos outras
vantagens, conquistas, preocupações, limitações, fraquezas etc. As reflexões que fazemos sobre nossas
caminhadas vocacionais nos ajuda a desconstruir nossas histórias, descobrir nossos medos escondidos,
nossas capacidades e qualidades escondidas, assumir nossos preconceitos, estereótipos para construir
conceitos mais positivos, mais humanos sobre nós mesmos e sobre outras pessoas, outras culturas,
nossas histórias salesianas.
Muitos de nós gastamos muitas energias protegendo nossos medos, inseguranças, nossos
problemas emocionais e afetivo-sexuais etc. Muitas vezes já pensei comigo mesmo: se tivéssemos mais
coragem de decidir seríamos salesianos e salesianas hoje? Será que alguns de nós somos salesianos por
medo de decidir por outro estilo de vida? Por medo de entrar no mundo novo? Por medo de fracassar em
outros espaços sociais? Esse é o nosso lugar mesmo?
Esse tipo de reflexão avança muito na atualidade. Muitas comunidades possuem seu quadro
de profissionais para acompanhamento dos vocacionados: psicólogos, orientadores vocacionais,
diretores espirituais... Existem técnicas especializadas para acompanhar o amadurecimento dos jovens
vocacionados.
Apesar de tudo isso os tabus continuam bem fortes. Nós salesianos, salesianas nem sempre
queremos admitir que estejamos apaixonados por esta mulher, por aquele homem; queremos mostrar
que somos fortes e que superaremos tais situações, sozinhos; sentimos medos sobre nós mesmos, sobre
nossas escolhas e sobre nossas atrapalhadas. Essas realidades nos deixam cegos, individualistas,
egoístas e muitas vezes nos levam para caminhos sem volta.
Outras vezes nos aconselhamos com pessoas que nos levam cada vez mais para o fundo do
poço. Quem vai admitir sua impotência perante essas situações sendo um religioso e uma religiosa?
Nós imaginamos que somos imunes aos problemas sociais, afetivos, sexuais. Hoje vejo que nós
devemos aprender admitir nossas impotências perante inúmeras dificuldades, devemos admitir perda
de domínio sobre nossa vida, nossas decisões, nossas paixões. Devemos aceitar que outros irmãos
salesianos e irmãs salesianas nos ajudem a ultrapassar nossas dificuldades.
A vocação que um dia sentimos desabrochar em nós, quando estávamos nos lugares simples,
nos lugares necessitados com o passar dos anos nós a complicamos. Acredito que Deus que nos deu a
vocação não complica a nossa vocação e nossa vida.
Até hoje eu não sei dizer com clareza o que é ter vocação. Para mim, é uma construção
histórica, construção de uma nova identidade, novas práticas culturais. Do mesmo como nós passamos
vários meses sendo gestados no ventre materno, assim são os anos que passamos em centros
vocacionais. Aí o Poder Divino trabalha com paciência na vida do jovem e dos formadores.
Ter vocação não é como alguém carregar um objeto debaixo do braço, trazer algo nas mãos e
dizer, eu tenho esse material. É muito diferente. Desse modo, precisa-se de formadores com seus
sensos apurados e aguçados para entender e acompanhar a vida vocacional de um jovem para além da
aparência, para além da teatralização vocacional que acabamos fazendo. Digo teatralização porque

2 Pages 11-20

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2.1 Page 11

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[11]
enquanto estamos nas fases iniciais de formação salesiana, durante os votos temporários, geralmente
vivemos numa “pressão” interna e externa bem forte. Fazemos ações que não concordamos. Talvez
tornamo-nos “mentirosos”, “falsos”; passamos uma imagem que nem nós estamos concordando. Sabem
por quê? Para sermos admitidos em nossos pedidos de renovação dos votos e seguir vivendo na vida
religiosa. Não é à toa que muitos salesianos e salesianas depois de terem feitos votos perpétuos e
depois da ordenação sacerdotal deixam a vida religiosa: perderam o medo que vinham carregando,
criaram coragem para decidirem o que sonharam fazer na vida.
Compreender as linguagens vocacionais juvenis é um desafio para os formadores. Há muitos
acertos no acompanhamento vocacional. Diversos salesianos e salesianas seguem o caminho de vida
religiosa salesiana com serenidade, alegria, equilíbrio... Surgem também alguns enganos tanto na
escolha de formadores e escolhas de formandos para prosseguirem seu caminho vocacional e no
aconselhamento para deixarem o caminho vocacional. Não são suficientes as fichas avaliativas e de
acompanhamento em diversas áreas da pessoa do religioso.
Eu mesmo tive experiências “desafiadoras e desafiantes” nas casas de formação [CFI: 1994-
1996; Pós-noviciado: 2000; CFI: 2004; 2007-2008]. Também trabalhei com jovens indígenas
vocacionados. Os meus inspetores acreditavam que sendo um indígena padre poderia compreendê-los
melhor. E, eles poderiam ter mais abertura comigo, pois éramos parentes, etc. Muito pouco disso
aconteceu.
A partir da minha própria experiência hoje eu digo que o bom estado de saúde mental, física,
emocional, espiritual do formador é muito necessário para fazer um bom trabalho com os jovens
vocacionados. Confesso: eu tinha vontade louca para realizar o bom trabalho com os formandos; mas eu
não estava bem emocional e espiritualmente. Acredito que a vocação é dom de Deus mesmo. Nós
humanos “formadores” estamos continuamente com possibilidades de acertar e errar, de permitir que
siga na vocação alguém que não poderia seguir e aconselhar a deixar, quem deveria seguir.
Entre nós indígenas a não continuidade de um vocacionado no caminho que ele iniciou,
algumas vezes não é aceita pelos próprios pais e parentes. Certa vez [2011] eu encontrei um jovem
indígena em sua casa numa determinada paróquia do Rio Negro eu perguntei: você está por aqui?
Como você está? O jovem não tinha nem respondido ainda o irmão mais velho respondeu: ele está aqui
porque você não quis que ele se tornasse padre. Na maioria das vezes ficam marcados pelos membros
das comunidades como um “fracassado” vocacionalmente.
O seguimento no caminho vocacional apresenta dificuldades próprias para cada pessoa.
Algumas delas decorrem das realidades externas: estudos, dificuldades pastorais, dificuldades de
relacionamentos humanos com colegas e padres etc. Outras dificuldades originam-se de dentro da
própria pessoa: falta de esforço, falta de confiança nos formadores, indiferença e frieza espiritual,
sacramental, vontade de desanimar, falta de disciplina religiosa, falta de coerência, desonestidade; para
muitos indígenas a bebida alcoólica ocupa grande parte da história e eles sofrem e deixam preocupados.
Essa última, eu a vivenciei muito profundamente. Por isso, tive que passar um Centro
especializado (Comunidade Vida Nova – Curitiba) para cuidar/tratar/recuperar dos religiosos (as) e
padres vítimas de alcoolismo. Passei nove meses nessa Comunidade. Ela com toda a equipe de
profissionais qualificados ajudaram-me a começar uma nova etapa de minha vida humana, religiosa e
sacerdotal. Acredito que foi Deus mesmo que me conduziu até a essa Comunidade para que eu
redescobrisse a minha dignidade humana, religiosa e sacerdotal.
O esforço para ultrapassar essas realidades é que nos faz abrir o coração para Deus, para pedir
ajuda de nossos formadores e aceitar as ajudas de nossos irmãos salesianos. A partir da nossa boa
vontade podemos abrir coração para que as realidades boas operem transformações em nossas vidas. A
partir da abertura da mente e do coração nós começamos uma nova história.
Hoje com vinte e oito (28) anos de vida salesiana e dezoito (18) anos de padre eu vejo que as
dificuldades não acabaram, continuam em graus diferentes e com outras intensidades. Continuamos
com nossos medos, inseguranças... Esse é o outro desafio: como vamos lidar com as diferenças e

2.2 Page 12

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[12]
diversidades culturais, com diferenças de idades, formação. Um dos instrumentos deve ser a paciência
conosco mesmos, com nossa história; com os membros de nossas comunidades.
10. Nossas Histórias e Esperanças
As nossas inspetorias depositam muita confiança em nós indígenas salesianos e salesianas.
Elas esperam de nós algo mais nos trabalhos com os nossos parentes indígenas. Nós temos mais
recursos humanos para trabalhar com os povos indígenas: sabemos falar as línguas indígenas,
conhecemos nossas culturas, conhecemos os costumes, conhecemos as qualidades dos povos indígenas,
conhecemos as realidades negativas que nós indígenas carregamos. Por outra parte conhecemos as
exigências de nossos Institutos, principalmente, da inculturação do carisma salesiano, inovação dos
trabalhos missionários etc.
Um dos desafios entre nós indígenas salesianos é que alguns não gostam de trabalhar com
nossos parentes indígenas. Pedem para trabalhar em outros espaços não-indígenas, colégios,
paróquias etc. Nós mesmos podemos refletir: o que está acontecendo com os indígenas salesianos e
salesianas? Quais tipos de preconceitos nós carregamos com relação aos nossos parentes? Quais são os
medos que nos impedem de trabalhar entre as populações indígenas?
A busca pela vida fácil é uma grande tendência, hoje. E, nós indígenas salesianos não
escapamos dessa realidade bem forte. Percebemos que os sacrifícios que fazemos não são maiores do
que os dos primeiros salesianos nas primeiras décadas das Missões Salesianas. Hoje temos tudo em
casa, o que queremos e o que não teríamos se não fôssemos salesianos. Nós realizamos os estudos sem
grandes sacrifícios. Nós somos diferentes do que outros jovens indígenas que trabalham, estudam e às
vezes passam fome. Às vezes querem estudar e não conseguem. .
11. Indígenas salesianos e salesianas e suas culturas
Para nós indígenas salesianos as raízes que dão sustentabilidade à nossa existência, histórias
e vida salesiana estão localizadas no chão de nossas culturas indígenas, lá onde está enterrado nosso
umbigo. Para estes lugares nós precisamos visitar e revisitar. Lá bebemos as sabedorias de nossas
culturas, nossas riquezas, convivemos com os nossos parentes que vão e vêm das roças todos os dias;
que comem a quinhapira e beiju; que tomam mingau e chibé (farinha com água). Lá podemos sentar no
final do dia com os nossos parentes, andar pelas casas e olhá-los com amor de salesiano e salesiana. Lá
podemos ir à roça com nossa família. Podemos tomar banho com nossos sobrinhos e sobrinhas. Lá
podemos deixar que os nossos parentes nos olhem, toquem, conversem conosco. Para muitos de nós,
nossos parentes não nos conhecem. Nós parecemos grandes personalidades. Eles só ouviram falar de
nós, mas nunca nos viram. Por que alguns de nós evita passar um tempo com os familiares, inventam
ficar distante desses lugares de origem? Inventa fazer um curso?
As nossas raízes vocacionais também estão lá, nas comunidades de origem. Foi lá que Deus
nos olhou com carinho e nos convidou para que O seguíssemos. As nossas comunidades são lugares
onde enamoramos com o Invisível que falava em nosso coração e nos nossos ouvidos, nós O ouvíamos
e saboreávamos em nosso coração.
Ao enamorarmo-nos com o estilo de vida salesiana estávamos começando um caminho longo
de sair de nossos lugares. Deixamos para trás nossas famílias, nossas culturas, nosso povo e lugares
onde nascemos, crescemos.
Esta saída nos apontou para terras bem distantes, terra onde os nossos fundadores sentiram o
chamado de Deus - Itália. Foi naquelas terras dos Becchi que Joãozinho Bosco tão humano quanto nós
teve um sonho [9 anos] que transformou a sua vida, sua história, história da juventude e história
mundial. Foi lá que Maria Domingas Mazzarello inicia um trabalho com as meninas. Juntos João Bosco
e Mazzarello constroem uma nova história com a juventude mais necessitada de sua época. As nossas
referências salesianas estão nessas duas pessoas, João Bosco e Mazzarello. E, nós também sonhamos

2.3 Page 13

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[13]
em dedicar nossas vidas pela juventude mais necessitada? Estamos dispostos a começar caminho de
sacrifício, de dedicação, etc.?
As nossas raízes salesianas estão bem perto e distante ao mesmo tempo. Perto, quando somos
e encontramos salesianos que vivem o espírito salesiano e distante quando nós pensamos nos lugares
onde nasceu a nossa congregação, e mais distante quando não vivemos o espírito salesiano.
Quando tivermos possibilidades devemos conhecer esses lugares. Eu tive oportunidade de
conhecer alguns lugares [2008]. Só em pisar nesses lugares, visualizar os ambientes, casas, capelas,
pátios onde os nossos fundadores (as) caminharam, suaram camisas, passaram necessidades,
superaram perseguições, mexe profundamente com a nossa vida. Faz-nos pensar e refletir: sou
herdeiro dessa simples história? Sou herdeiro dessa linda história? Como eu estou continuando a
construir essa bela história? Sentimo-nos pequenos diante da grandeza de nossos santos fundadores. A
nossa indianidade sente-se tocada. Numa na sacristia de uma igreja quando nós nos preparávamos
para uma celebração eucarística o padre responsável pelo santuário nos disse: aqui que Dom Bosco se
arrumava, celebrava... Estar na mesma sacristia onde o nosso fundador se preparava para celebrar a
Eucaristia é impressionante e emocionante.
12. Salesianos e espiritualidades indígenas
Nós indígenas salesianos buscamos forças bebendo nas fontes de nossas espiritualidades
indígenas que nascem na vida comunitária, na partilha, nos trabalhos comunitários, nas festas; nascem
nas cachoeiras, nos portos, nas curvas dos rios, nas serras, nos igarapés, nos igapós, lagos etc. Nesses
ambientes nós fomos consagrados pelos nossos sábios, através de seus benzimentos para que
vivêssemos em harmonia com divindades-humanidades-vidas. As espiritualidades dão
sustentabilidade à nossa vida, nossa história e para nossos projetos de vida.
As nossas identidades, nossas espiritualidades e teologias são bem dinâmicas. Para nós
indígenas salesianos e salesianas as nossas espiritualidades indígenas são enriquecidas pelas teologias,
espiritualidades e práticas de vida cristãs. As nossas teologias e espiritualidades indígenas acolhem e
enriquecem as teologias, espiritualidades e práticas de vida cristã.
As nossas identidades e diferenças indígenas são resultados de processos contínuos de
construção de nossas histórias. Os diversos espaços culturais que nos envolvem são espaços híbridos e
de mestiçagem. Nós estamos continuamente dentro das diversidades culturais. Para nós indígenas
salesianos e salesianas a compreensão da existência multicultural deve nos levar a construir
instrumentos de interação com os diferentes povos e suas culturas [interculturalidade].
As nossas espiritualidades indígenas favorecem contatos vitais e íntimos com os seres vivos
não-humanos, com as águas, florestas, gentes-peixes, gentes-florestas, gentes-mundos etc. Dos bons
relacionamentos com eles depende: a vida com saúde, bem-estar das pessoas e comunidades; garantia a
produtividade dos animais, caças, peixes... Semelhante processo histórico acontece com a construção
de vida cristã: conhecemos Deus de Jesus Cristo. Deus Trino e Uno; aprendemos a aceitar existência de
outras personalidades superiores a nós [anjos] que dão sustentabilidade a nossa vida cristã; existem
outros sacramentos, sacramentais, ritos, cerimônias, cantos, orações que sustentam a nossa existência.
No campo da vida religiosa salesiana onde nós indígenas nós transitamos nas últimas
décadas, é importante entendermos que os diversos espaços religiosos e suas práticas cristãs estão em
contínua construção histórica, passam pelos processos de ressignificação de valores e práticas
culturais: como nós indígenas poderíamos repensar, reconstruir e ressignificar esses desafios?
As congregações religiosas promovem em diversos lugares os encontros inter-
congregacionais. A filosofia do inter nos abre caminho em direção aos outros, não para impor, mas para
dialogar, agir juntos, buscar juntos, tolerância... É a chamada filosofia intercultural. Ali nós devemos
interagir com maturidade, serenidade...
A CRB [Conferência dos Religiosos do Brasil] cultiva vários grupos específicos de reflexão
sobre vida religiosa. Alguns anos atrás nós indígenas fazíamos parte do GRENI - Grupo formado pelos

2.4 Page 14

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[14]
Negros e Indígenas para refletirmos sobre a vida religiosa. Eu participei poucas vezes. Os grupos
específicos quase todos têm como fundamentos: autodeterminação, fortalecimento da
identidade/diferenças, libertação, resistência...
No início da década de 2000 eu participei (Manaus) da criação de um grupo específico para
indígenas religiosos (as) – GIPRAB [Grupo Indígena de Padres e Religiosos da Amazônia Brasileira].
Nesse grupo refletimos muitos temas que nos ajudaram compreender nossas histórias indígenas,
sonhar como nós indígenas padres e religiosos (as) poderíamos contribuir com a caminhada da Igreja
e com a caminhada de nossas congregações religiosas.
Eu assessorei alguns encontros no início da década de 2000 e sentia que tínhamos
possibilidades para seguir fazendo. Vieram outros padres e leigos indígenas da América Latina e nos
ajudaram em nossa caminhada. Porém, estávamos lidando com temas muito sérios e “perigosos” para
a época: teologia índia, espiritualidades indígenas, padres e religiosos (as) indígenas... Despertavam
muita suspeitas, medos, inseguranças diante das estruturas eclesiais e congregacionais.
O nosso grupo GIPRAB não teve sua continuidade por diversos fatores: não levar a sério tais
reflexões; não despertar confiança de nossos superiores; algumas assessorias não despertavam
confiança de nossos superiores (ex-padres; padres casados); exageros de bebida alcoólica por parte de
alguns padres e religiosos indígenas; falta de articulação; falta de responsabilidade; má prestação de
contas às entidades financiadoras; falta de interesse mesmo por parte de alguns indígenas padres e
religiosos (as).
Passados alguns anos sem funcionamento do GIPRAB eu avalio que para participar desse
modelo de movimento sócio-religioso temos que ter ideais, apostar nesses ideais, disputar por esses
ideais. Dentro de minhas limitações e fragilidades como um ser humano-salesiano-padre, digo que eu
mesmo me empenhei em aprofundar em questões indígenas. Muita coisa que eu sei hoje e vivencio é
fruto de busca pessoal e de ter tido irmãos salesianos que me proporcionaram: participar dos eventos;
curso de Missiologia (SP: 1997-1999); mestrado em Educação Indígena (UCDB/Campo Grande: 2005-
2006); ter trabalhado muitos anos entre povos indígenas.
Desde o tempo de meu de tirocínio [1987-1988] eu tive muitas oportunidades. Eu participei
do Movimento Indígena. No início da década de 1990, ainda como estudante de Teologia eu participei
de diversas Assembleias de Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira [COIAB]
e do Movimento Estudantil Indígena do Amazonas [MEIAM]. Estive em espaços multiculturais, com
outros povos indígenas. Participei ativamente desses movimentos indígenas, suas lutas, viagens,
superação de medos, superei os preconceitos que os outros tinham comigo por eu ser salesiano. Hoje
consigo transitar dentro desses movimentos indígenas como tuyuka-salesiano-padre com certo
respeito.
Nós indígenas salesianos consagrados segundo os rituais das Igrejas devemos saber que cada
povo indígena possui próprios modos de relacionar-se com o Deus da vida (Deuses das vidas). Estes
relacionamentos com as divindades expressam-se de diversas maneiras (milenares, renovadas...). Deus
da vida é conhecido com diversos nomes e imagens diferentes. Porém, é o mesmo e único Deus da vida.
Cada povo indígena transmite sua experiência de Deus com explicações próprias. A educação
para saber relacionar com Deus e com pessoas é feita seguindo a lógica de vida de cada povo. É a
vivência histórica e única de um povo. Cada povo tem sua própria experiência, história e vivência
religiosa de estar envolvido pelas mãos de Deus, na sua presença divina. Cada povo se sente guiado por
Deus na sua história: salvação, libertação dos fatos de dominação, luta contra o poder do mal.
Para os povos indígenas Deus está presente na criação. A criação é a manifestação da ação de
Deus. Cada comunidade indígena vive sua própria relação com Deus, porque a experiência de vida é
própria e única. A natureza “é a nossa casa e é a própria casa de Deus”. O Deus providente cuida da
pessoa e a pessoa ajuda a cuidar da criação de Deus. Por isso, dizemos que cada povo cria e recria,
constrói e reconstrói seus próprios conteúdos e práticas culturais religiosas. De maneira geral esses
conteúdos estão presentes nos mitos, lendas, histórias, ritos, etc. Neles se encontra a história sagrada

2.5 Page 15

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[15]
de cada povo. Essas histórias sagradas são transmitidas pelos anciãos da comunidade e conservadas
por cada um dos membros da comunidade.
A educação dos filhos e netos sobre a relação com o Deus da vida é feita no cotidiano de cada
povo. É a vivência do coração. Os indígenas possuem profundas religiosidades: comunicação com a
natureza, com cantos, danças, com sonhos, relacionamentos com pessoas etc.
As teologias indígenas passam pela retomada das religiosidades indígenas. Da mesma forma
que não existe uma única teologia da Igreja Cristã, assim também entre os povos indígenas existem
muitas teologias e espiritualidades. Com todas elas, nós indígenas, devemos estabelecer diálogos
maduros. Estes diálogos podem favorecer a construção de instrumentos universais e sínteses de todas
as religiões das culturas indígenas: construção da vida, qualidade de vida, bem-estar. Assim
chegaremos a compreender e vivenciar a figura de um Deus universal.
Festas são expressões simbólicas e a leitura dos acontecimentos. Percebemos o projeto de
Deus no seu processo de fazer-se Deus. Relacionamo-nos com os antepassados. Conversamos e
invocamos com os parentes que já morreram. O espírito dos antepassados está sempre presente na
vida do povo. A escuta aos sábios cultiva os valores mais fundamentais da vida. Importância da festa:
todo acontecimento da vida é motivo da celebração.
A mulher é aquela que guarda a vida, gesta a vida, dá sentido à vida. A mulher é referência
teológica. Fortalece a consciência indígena. A mulher indígena salesiana deve assumir essa dimensão
da espiritualidade indígena. Atualmente muitas indígenas vivem longe de seus ambientes indígenas.
Muitas deixam de praticar e participar de rituais e cerimônias de seus antepassados. Por outro lado é
importante dizer que nesses lugares de fronteiras os indígenas redescobrem seus valores, suas
práticas culturais, danças, pinturas, discursos. Desse modo nós entendemos que as espiritualidades
indígenas não se separam dos indivíduos e grupos indígenas. As espiritualidades estão entrelaçadas no
estilo de vida das pessoas, corre no sangue indígena, na emoção, no coração e na mente.
Embora afastados geograficamente de nossas origens, é muito importante para nós indígenas,
retornarmos às nossas casas, nossas culturas e vivenciar nossas espiritualidades com os nossos avôs,
nossos pais e parentes. Aqui nós nos reconhecemos diferentes de aquilo que vivemos diariamente
longe de nossas culturas, nas comunidades religiosas. Nós indígenas já fomos consagrados quando
nascemos através de rituais que os nossos pais fizeram quando nascemos; na primeira alimentação
etc. Por estarmos já bem envolvidos com o cristianismo muitos de nós não passamos pelos rituais de
tornar-se adulto: iniciação masculina, iniciação feminina (primeira menstruação, banho, festa...). São
realidades importantes que nos fazem falta em nossas espiritualidades.
Quando nós indígenas entramos na vida religiosa nós sabíamos que a nossa vida indígena
sofreria mudanças profundas (conversão). Através das diferentes etapas formativas nós estamos sendo
moldados para atingir aquele perfil desejado pelos nossos Institutos.
Aqui é que nós indígenas resistimos silenciosamente. Não se trata de revoltarmos com as
regras de vida religiosa que abraçamos livremente, mas nós indígenas podemos com paciência,
criatividade enriquecer a vida religiosa consagrada com os dons que Deus nos deu como indígenas.
O nosso trabalho não deve ser de impor a outros para que vivam à nossa maneira. Devemos
aprender a interagir com diferentes povos, onde toda pessoa saiba viver a sua própria vida. Devemos
privilegiar o diálogo, enriquecimento contínuo, paciência, compreensão, tolerância...
13. Salesianos e seus estudos
Eu quando estudava em Pari-Cachoeira [1970-1979] eu não pensava continuar os meus
estudos. O que eu tinha bem claro naqueles anos era de que concluindo a 8ª série [1979] eu voltaria
para casa, com meus pais e parentes. Formaria a família e continuaria fazendo aquilo que os meus
antepassados sempre fizeram: comer ipadu, aprender diversos conhecimentos e saberes com meu avô
Higino; aprenderia com ele os cantos e danças de nossos antepassados; aprenderia a benzer e curar os
doentes.

2.6 Page 16

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[16]
Porém, já vivi numa época somente alguns alunos e algumas alunas iam estudar o 2º grau em
São Gabriel. Estudar não era comigo nem era meu objetivo. Eu consegui passar por diversos graus de
estudo pelo fato de eu ter entrado no seminário, por motivo de eu ser salesiano e ser padre.
Os indígenas salesianos desde que terminam o noviciado entram no curso superior –
Filosofia. Depois estudam a Teologia. Outros enquanto frequentam esses cursos já estão cursos de
especialização, pós-graduação. Hoje os indígenas em geral, querem continuar estudando. Nós
salesianos e salesianas temos os mesmos pensamentos: queremos estudar, especializar, qualificar;
fazer graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado etc. Os nossos desejos de estudar mexem
demasiadamente com nossos sentimentos, nossas emoções, nossa identidade indígena, nossa identidade
salesiana. Dá impressão de que todos querem estudar tudo, adquirir todos os graus acadêmicos. Quando
alguém é convidado para fazer um curso outro já se sente triste, menosprezado, injustiçado. Alguns
chegam até entrar em crise vocacional quando não acontecem seus desejos. Por isso, digo que essa
tendência de querer estudar, estudar, nos faz sofrer... Não ficamos satisfeitos com pouco. Como
lidamos com isso? Com quem conversamos sobre estas questões? Com quem partilhamos nossas
angústias? Quem são os nossos conselheiros?
Como se não bastasse os nossos estudos muitas vezes mexem com a nossa mente. Não
queremos mais trabalhar nos lugares simples, nos lugares periféricos, incluindo as Missões entre os
povos indígenas.
14. Salesianos nos espaços universitários
Durante o tempo em que eu sou salesiano vejo que os cursos acadêmicos nem sempre ajudam
na formação vocacional religiosa e sacerdotal. Nós temos formação específica para construção de vida
religiosa. O estudo da Filosofia deveria ajudar-nos no desenvolvimento da capacidade de reflexão,
questionamentos, busca de outros conhecimentos, saberes... Constantemente vemos que diversos
salesianos deixam a vida religiosa durante esses cursos e nos períodos posteriores. Nós entramos
nessa vida acadêmica no início de nossa vida religiosa. Os próprios conceitos filosóficos, sociológicos,
antropológicos, psicológicos etc. desconstroem cada conceito religioso que aprendemos no noviciado.
Maioria de nós carrega no íntimo o desejo de frequentar algum curso superior. Esse desejo
atinge em diversas áreas de nossa vida: espírito, corpo, sentimentos, motivações vocacionais, religiosas,
trabalho, vida comunitária, vida de oração, vida sacramental etc. Quem ainda não começa um curso
superior vendo outros (as) cursarem já expressa sua vontade de estudar. Quando não surgem
oportunidades criam outros sentimentos: não valorização de sua pessoa; ser discriminado (a); cai na
auto-piedade: nunca tive chance! Não tenho sorte! Só outros (as) têm oportunidades e eu não! Assim
que um religioso e uma religiosa veem sua baixa auto-estima crescer. Diante dessas situações alguns
religiosos (as) começam a pensar em deixar a vida religiosa por achar que continuando dentro da
congregação está sendo injustiçado e que estando fora da vida religiosa terá mais possibilidade de
estudar, trabalhar e fazer sua vida. A nossa mente é capaz de deixar uma pessoa doída. Os estudos que
fazem também mexem com a pessoa, suas crenças, seus projetos de vida...
Nós salesianos somos herdeiros de longa história das Missões Salesianas. Muitas coisas foram
escritas sobre a ação dos salesianos, principalmente das primeiras décadas das Missões Salesianas.
Descreviam práticas boas segundo a visão daquelas épocas. Em outras épocas as mesmas práticas
foram interpretadas como negativas e destrutivas dos povos indígenas, suas práticas culturais,
conhecimentos, língua...
Nós salesianos e salesianas atuais escrevemos muito pouco ou nada sobre a nossa ação
pastoral, promoção social nas Missões Salesianas. Por isso, perpetuam as visões de muitas décadas
atrás nos espaços universitários onde nós transitamos, principalmente, nos cursos de ciências
[antropologia, filosofia, sociologia, educação, questão indígena...] nós somos mal-vistos historicamente:
destruidores das culturas indígenas, etnocidas...
Muitos professores (as) nos intimidam. O nosso silêncio frente tais visões não contribui
positivamente para construção de novos saberes, visões dinâmicas da história. É importante nós

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indígenas salesianos e salesianas entendermos que nós somos construtores de histórias e somos filhos
de outras histórias anteriores a nós.
De alguns anos para cá eu tenho vivenciado esse tipo de discussões em diferentes espaços:
Seminários, Simpósios, Mesas Redondas, Entrevistas. No início eu ficava bastante irritado com aquelas
pessoas que quiseram me colocar como se eu fosse salesiano de sessenta e oitenta anos atrás. Mas
depois eu fui entendendo que não adiantava eu ficar rebatendo as visões deles. Eu mesmo criei um
novo modo de ver as realidades históricas salesianas. Procurei saber mais como foi nossa história
salesiana no Rio Negro. Aprendi a enxergar as práticas positivas construídas pelos salesianos e pelas
salesianas. Aprendi a aceitar como salesiano as práticas negativas, também. Tanto umas e outras
servem para nós como sinaleiros: positivas nos indicam como podemos agir; negativas nos indicam
que aqueles caminhos devem ser evitados. Outro elemento que eu adquiri é discutir com maturidade e
equilíbrio diversas questões. Hoje eu me vejo como indivíduo que pode possibilitar e facilitar outras
visões também para esses professores universitários que são contra os salesianos, salesianas e ações
realizados por eles (as). É sinal de maturidade, serenidade enxergar as coisas boas que qualquer
instituição realiza. Compreender que qualquer instituição pode não atingir suas metas, pode errar.
Atualmente eu participo de grupos de pensa sobre o ensino superior indígena e
continuamente jogam esses chavões: salesianos como destruidores de culturas [língua, saberes...]. De
algum tempo para cá eu percebo que está diminuindo, não porque querem, mas porque muitos
projetos implantados por eles, também não estão dando certos. Por isso, é importante é entender que
a construção histórica tem pontos altos e pontos baixos.
Cada espaço universitário vê os indígenas de diferentes maneiras. Quando eram poucos
indígenas na universidade era uma novidade. Agora que são muitos indígenas nas universidades, já
não é novidade. Nesses espaços gradualmente nós vamos influenciado na construção de novas
histórias. Contribuímos com novos pensamentos, saberes, conhecimentos. Para isso devemos produzir
textos, artigos. Uma nova maneira de contribuir com novos pensamentos é a veiculação de nossos
escritos, entre nossos amigos, admiradores, professores etc. Nem todos têm facilidade para escrever,
mas quem tiver facilidade aventure-se no mundo da escrita. Para algumas pessoas é difícil escrever.
Outros andam muito ocupados com atividades. Nós temos boas práticas pedagógicas, mas não escreve.
Possuímos boas reflexões, mas não temos facilidades para escrever. É importante saber que os nossos
escritos provocam outros saberes, outras reflexões para nós mesmos e para outros.
15. Salesianos e diante dos recentes acontecimentos: abandono da vida religiosa e sacerdotal
As nossas histórias pessoais são bem diversificadas também como salesianos. Eu sou mais
velho dos indígenas salesianos e que continua. Eu construí minha história. Sou indígena salesiano e
padre. O meu contato e influência com os povos indígenas tem sido maior.
Eu tenho um carisma pessoal próprio de interagir com os povos indígenas. Penso que pelo
fato de eu estar muito ligado às questões indígenas eu me torno muito próximo deles. Eu me envolvo
com suas histórias de alegria, de preocupações, de busca de dias melhores, de lutas... Crio sonhos
novos para nossas vidas indígenas. Mas eu fui percebendo também muitas limitações em mim: falta de
coragem nos momentos mais difíceis, por isso, aprendi estar com outras lideranças; sei que sou
inseguro em algumas questões; eu frágil em algumas questões bem culturais: bebida alcoólica; isso me
proporcionou construir outras perspectivas de vida; carrego diversos medos positivos que me ajudam
buscar coisas boas e existem outros medos que me paralisam [sem ação]; em momentos de
dificuldades tive muitas vontades e uma delas: querer largar a vida religiosa e sacerdotal.
Se nós fôssemos narrar nossas histórias passaríamos dias e dias e não acabaríamos. Eu conto
minhas próprias histórias para que você faça leitura de sua própria história. Você vai perceber que
existem histórias suas que você não quer tocar nem mexer. Deixa-as em seu lugar, mas aceite-as como
suas histórias, suas misérias...
Recentemente aconteceram muitas realidades antes nunca vistas pelos nossos parentes e
parentas. Alguns indígenas sacerdotes deixaram o ministério sacerdotal. Algumas indígenas salesianas

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com votos temporários e perpétuos deixaram a vida religiosa por motivos diferentes. Essas realidades
nós a vivenciamos. Fizeram-nos refletir profundamente as nossas histórias: o que estamos fazendo e o
que vamos fazer? Eu já tenho um pouco mais de idade, conheço um pouco mais outras realidades de
sacerdotes e religiosos (as) que deixaram tudo para seguir outros caminhos.
Os nossos parentes e parentas que antes não tinham visto essas realidades eles sentiram
muito, sentiram-se enganados, traídos... Eles têm razão de expressar seus sentimentos de dor, de perda,
de vergonha, de descrédito... Para nós indígenas padres, o dia da ordenação sacerdotal foi grande festa
religiosa e social. Estávamos desconstruindo centenas de histórias, rompendo com os preconceitos de
que o índio era incapaz etc. Por isso, era maneira de afirmar nossas identidades indígenas, afirmar
nossas identidades cristãs, afirmar nossas diferenças. Nas ordenações introduzimos danças, pinturas,
cocares, benzimentos, defumação no dia da ordenação. O povo participou ativamente dos tríduos
preparatórios. Participou da ornamentação de ambientes. Ensaiou cantos e danças indígenas.
Presenteou os seus artesanatos. Abraçou-nos e disse que estava orgulhoso de nós... Tudo isso
aconteceu com todos os indígenas padres. Eu participei e ajudei a preparar celebrações de alguns deles.
Por estas cenas e por outras que o povo ficou chateado, revoltado, descrente...
A saída de parentas salesianas também teve suas repercussões. Teriam sido menores se não
fosse por motivos “graves”, principalmente, a gravidez; casamento com padre. Para nossos parentes
indígena são realidades impensáveis e inaceitáveis. Que lições podemos tirar de todas essas realidades
que nós já conhecemos, vivenciamos, sofremos e até hoje sentimo-nos suspeitos pelo povo. Brincamos
de sermos padres, salesianos e salesianas? Hoje não dá para sair dizendo por aí: eu sou padre, eu sou
irmã salesiana...
As feridas abertas nos sentimentos dos povos ainda não estão cicatrizadas. O importante é
viver bem a vida cristã e levar a sério o que assumimos como religiosos e sacerdotes; sermos mais
prudentes, coerentes e honestos. Não adianta ficar discutindo com pessoas que nos falam mal por
causa de histórias de nossos parentes e parentas que deixaram o sacerdócio e vida religiosa. Não
podemos entrar no clima de medo e desespero por causa desses deslizes. Pode acontecer comigo e com
qualquer pessoa se não levarmos a sério a nossa vida salesiana.
Essas realidades nos proporcionaram entender e rever os nossos conceitos, crenças, apostas...
Vamos criar outras crenças, outros objetivos, outros conceitos sobre nós mesmos, individualmente e
como indígenas salesianos e salesianas. Temos mais possibilidades para acertar do que errar. E, vamos
acertar!
Do lado masculino eu vejo que apesar dessas realidades continuam surgindo diversos jovens
para o seguimento da vocação salesiana. Deus continua convocando jovens para o seu seguimento.
Deus não desanima como nós. Como indígenas tivemos fracassos. Mas temos construído história
vitoriosa. Veja quantas salesianas e quantos salesianos estão em nossas inspetorias, São Domingos
Sávio (sdb) e Santa Terezinha (fma).
Vendo os indígenas salesianos eu fico admirado. Cada ano aumenta o número de salesianos.
Estamos vendo algumas ordenações sacerdotais. A tendência é cada vez mais fortalecer essas
vocações. Nos últimos anos, na nossa inspetoria, temos tido mais vocações indígenas. Este é um desafio
para todos para possamos criar modos mais apropriados para trabalhar na formação desses novos
salesianos, destes novos padres.
Concluindo a conversa
Muitos temas poderiam ter sido aprofundados, pesquisados, rezados, acolhidos por nós.
Como eu propus, no início, concluindo dizendo que nós indígenas salesianos e salesianas estamos em
construção. Nós não somos seres acabados, completos.

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Os povos indígenas continuarão existindo e cada vez mais com outras mentalidades, outras
práticas de vida, outras crenças, conceitos... E, nós indígenas salesianos e salesianas devemos
acompanhar esse ritmo de crescimento de nossos parentes indígenas.
Continuarão surgindo vocações indígenas. E, nós de mais caminhada precisamos estar bem
para poder ajudar os mais jovens. Eles (as) olham para nós como aqueles (as) salesianos e salesianas
que os podem ajudar.
Dificuldades continuarão surgindo. É necessário que tenhamos humildade necessária para
procuramos orientações, acompanhamentos e ultrapassar nossas dificuldades.
Agradeçamos a Deus, fonte da nossa vocação. Com Ele nós vamos continuar na vida religiosa,
no trabalho com a juventude em todo lugar onde nós formos destinados (as).