CARTA DO REITOR-MOR
MISERICORDIOSOS COMO O PAI
Leitura salesiana do Ano Jubilar
1. O Jubileu Extraordinário da Misericórdia. – 2. Misericórdia: Palavra-chave no Pontificado do Papa Francisco. – 3. Deus rico em Misericórdia. 3.1. “O meu coração se comove no meu peito e minhas entranhas se agitam de compaixão”. 3.2. Jesus Cristo, Rosto da Misericórdia do Pai. – 4. Dom Bosco, evangelizador e educador sensível à Misericórdia de Deus. O Deus que Dom Bosco apresenta aos seus jovens. – 5. A Misericórdia na Casa Salesiana. 5.1. Anúncio da Misericórdia de Deus numa geografia de dor. 5.2. Vivendo a experiência pessoal da Misericórdia de Deus: Reconciliados e criadores de ambientes educativos que reconciliam. 5.3. Reconciliados significa ter o ‘Coração do Bom Pastor’. 5.4. Misericórdia significa fazer a experiência espiritual e educativa chamada “Sistema Preventivo”. 5.5. Uma misericórdia que se realiza na justiça. 5.6. Maria, Mãe da Misericórdia.
Roma, 15 de julho de 2016
1. O Jubileu Extraordinário da Misericórdia
“Não deve apresentar os teus louvores, Senhor, quem não reconhecer a tua misericórdia”.1 A afirmação provocatória de Santo Agostinho convida a ficar calado e a não louvar a Deus se, ao mesmo tempo, não reconhecermos a sua misericórdia. Com linguagem atual, o teólogo e cardeal Walter Kasper escreve: “Se não formos capazes de anunciar de forma nova a mensagem da misericórdia divina às pessoas que passam por sofrimentos corporais e espirituais, deveríamos ficar calados em relação a Deus”.2
O Papa Francisco ofereceu à Igreja Universal o Jubileu Extraordinário da Misericórdia como um “tempo favorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes”.3
O Ano Santo foi aberto no dia 8 de dezembro de 2015, Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, e será concluído na Solenidade litúrgica de Cristo Rei do Universo, 20 de novembro de 2016. Na Bula de Proclamação do Jubileu, o Papa faz notar que precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia, porque é “fonte de alegria, de serenidade e de paz”; porque somo “chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foi por isso que proclamei um Jubileu ”.4
Esta proposta está em sintonia com a tradição do Concílio Vaticano II que inaugurou um novo tempo na vida da Igreja. Na abertura do Concílio, o Papa João XXIII, hoje Santo, indicou o caminho a percorrer, um tempo no qual a Igreja, “Esposa de Cristo, prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade”.5 E na mesma perspectiva coloca-se o Papa Paulo VI, hoje Beato, na conclusão do Concílio, ao dizer que toda a riqueza doutrinal do Concílio se orientara numa única direção: “servir o homem, em todas as circunstâncias da sua vida, em todas as suas fraquezas, em todas as suas necessidades”.6
Portanto, tudo parece indicar que nos encontramos num momento muito favorável na vida pastoral da Igreja: um momento em que as palavras da citação de Santo Agostinho parecem escritas para hoje, com toda a força desafiadora da misericórdia divina que nos obriga a uma opção: ou reconhecer a misericórdia de Deus ou fazer silêncio. Pareceria não existir outros meios do homem e da mulher aproximar-se do Evangelho e do próprio Jesus Cristo, nem outros caminhos a explorar. Há somente este caminho: a Misericórdia divina como essência da mensagem sobre Deus.
Com esta sensibilidade e certeza, pode-se entender perfeitamente porque o Papa Francisco se expresse assim no início da sua mensagem: “Quanto desejo que os anos futuros sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoas levando-lhes a bondade e a ternura de Deus! A todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós”.7
O título escolhido à luz da Palavra de Deus “Misericordiosos como o Pai” exprime plenamente o que o Senhor Jesus nos ensinou sobre o Pai: “sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36), e tem para cada cristão o caráter de um verdadeiro programa de vida. Portanto, este Ano Santo apresenta-se como uma esplêndida ocasião para descobrir, no modo mais vital e atual possível, a misericórdia que desde sempre nos é oferecida pelo Pai. É uma oportunidade admirável para que “nos deixemos surpreender por Deus”.8
2. Misericórdia: Palavra-Chave no Pontificado do Papa Francisco
“O nome de Deus é misericórdia” é o título de um livro-entrevista ao Papa Francisco.9 Nele, o Papa responde a muitas questões sobre o Ano Jubilar e a tudo que o motivou. Diante da pergunta: o que é a misericórdia para o Papa? Ele responde: “A misericórdia é a carta de identidade do nosso Deus, Deus de misericórdia, Deus misericordioso”.10
São muitos os autores que fazem referência ao fato de o Papa ter escolhido a misericórdia como palavra-chave do seu pontificado, palavra que recorre com maior frequência11 em suas intervenções e em seus discursos, em suas mensagens pastorais e homilias, mas também em seus gestos porque – bem o sabemos – o Papa Francisco comunica muito com os seus gestos.
Num mundo complexo e com sociedades tão diversas, em muitas das quais se corre o risco de desfigurar ou não reconhecer o rosto de Deus, o Papa quer comunicar que ninguém pode ser excluído da misericórdia de Deus. E isso tem uma força especial, porque Misericórdia é a identidade própria de Deus; e porque este homem ou mulher, fraco que é como cada um de nós, tem a profunda necessidade de ouvir que a misericórdia pode alcançar também a nossa frágil pessoa reconhecendo felizmente que ‘a lógica de Deus’ não é a nossa lógica.
Quando na revelação do Antigo Testamento Deus se “auto-apresenta”, além de revelar-se como “Eu sou aquele que sou” (Ex 3,1), apresenta-se também como “JHWH JHWH, Deus de misericórdia e de graça”:12 palavras que são o núcleo da revelação de Deus. É na misericórdia que resplende a soberania de Deus, afirmavam os Padres Sinodais na Relação final da XIV Assembleia Geral Ordinária para que, em seguida, o Papa chegasse a dizer na Eucaristia conclusiva que “hoje é tempo de misericórdia”. E, como a Igreja crê e confia nesta misericórdia, o ano jubilar é, antes de tudo, um convite a cada pessoa e à Igreja inteira, à conversão do coração e da mente. É uma mudança de ‘lógica’. A ‘lógica’ de que fala o Papa Francisco é a lógica de Deus: o seu modo de olhar o mundo, a história, a humanidade e cada ser humano. Numa das homilias, tidas como programáticas no seu Pontificado, o Papa exprime esta lógica com intensa convicção e a define como “lógica do amor, que não se baseia no temor, mas na liberdade... O temor de perder os já salvos e o desejo de salvar os perdidos. Ainda hoje acontece, às vezes, que nos encontramos na encruzilhada destas duas lógicas: a dos doutores da Lei, ou seja, fugir do perigo afastando a pessoa contagiada; e a lógica de Deus que, com a sua misericórdia, abraça e acolhe, reintegrando e transfigurando o mal em bem, a condenação em salvação e a exclusão em anúncio. Estas duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: ‘marginalizar’ e ‘reintegrar’”.13
Sem dúvida, com estas fortes e firmes convicções, percebe-se com grande clareza o motivo deste tempo de graça jubilar, que o Papa quis apresentar como um dom para todos os crentes e um convite aos homens e às mulheres de boa vontade para que possam sentir que estas palavras chegam ao seu coração.
3. Deus Rico em Misericórdia
Conhece a Deus quem fez experiência da sua misericórdia – escrevem unanimemente muitos exegetas ao refletirem sobre a realidade da Misericórdia Divina – e, nas muitas pesquisas sobre a Palavra de Deus (Antigo e Novo Testamento), a misericórdia aparece como o atributo por excelência próprio de Deus. “Suas vísceras de misericórdia definem-no como autêntico Deus (Es 20, 5.6; Dt 5, 9.10; 2Cr 30,9; Ne 9, 17.31; Jo 4,2; Gl 2,13; Is 55,7; Sl 145,8.9)”.14 Jesus mesmo não enuncia uma doutrina sem comunicar a própria experiência do Pai, experiência que traduz no mandamento que nos deu: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36), ou seja, um convite a fazer experiência da misericórdia de Deus em si mesmo, um convite a deixar-se conquistar pela misericórdia, a deixar-se converter pala misericórdia de Deus.
3.1. “O meu coração se comove em mim, o meu íntimo agita-se de compaixão”.
A carta do Reitor-Mor não é um tratado acadêmico no qual resume a riqueza encontrada nos muitos estudos exegéticos que se fizeram e se fazem sobre o tema da Misericórdia, especialmente neste ano. Entretanto, é oportuno, servindo-se de tanta abundância, fazer notar, por exemplo, que no Gênesis a misericórdia de Deus se apresente antes de tudo como Criadora e Salvadora, e é o modo com que Deus realiza o seu projeto de Amor que salva a sua criatura e toda a criação na relação de aliança gratuita com o seu Povo.15
No Êxodo, a misericórdia de Deus é, primeiramente, experiência de libertação da escravidão e guia através do deserto. O Povo da Aliança experimenta continuamente esta Presença de Deus em seu meio; e é uma experiência de liberdade.
Nos escritos dos Profetas, a misericórdia de Deus é anunciada para que o Povo eleito cresça até chegar a ser uma sociedade fraterna e justa. Contudo, Deus não pode ser encerrado em nenhum esquema, em nenhuma lógica humana, porque o seu amor e o seu perdão superam qualquer imaginação humana. A misericórdia revelada nas S. Escrituras é o grande atributo do Deus de Israel, que o diferencia de qualquer outra divindade ou ídolo (cf. Sb 9,1).
A misericórdia divina revelada no Antigo Testamento transcende todos os parâmetros, especialmente os da justiça humana. Muitos autores estão de acordo ao dizerem que o vértice da revelação da misericórdia divina está no livro do profeta Oseias. É conhecida esta autêntica revelação do ‘louco’ amor pelo seu Povo. O Povo violou a Aliança e transformou-se numa prostituta, e Deus decide não demonstrar mais a sua compaixão (Os 1,6-9). Tudo parece terminar com a acusação desta traição e deste pecado, entretanto, o Deus apaixonado pela sorte do seu povo, da Sua Esposa exclama: “O meu coração se comove no meu peito e minhas entranhas se agitam de compaixão” (Os 11,8) e perdoa o seu Povo (Os 14).
É belo constatar que Deus é rico em misericórdia (Sl 51,3; 69,17; Sl 9,1; 2Cor 1,3; Ef 2,4; 1Pd 1,3). Isso tem algumas consequências no que se refere à nossa imagem de Deus. Finalmente, os nossos olhos e o nosso coração podem conhecê-Lo em profundidade e verdade, como sensível, delicado, vulnerável. O seu afeto, revestido de ternura materna (Is 49,14-15), leva-o a comover-se, a “ter compaixão”.16
3.2. Jesus Cristo, Rosto da Misericórdia do Pai
Com esta estupenda e radical afirmação começa o anúncio do Ano da Misericórdia na Misericordiae Vultus: “O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré. Jesus, com a sua palavra, com os seus gestos e com toda a sua pessoa revela a misericórdia de Deus”.17
Se expressei brevemente nas páginas precedentes que Deus vai se revelando misericordioso ao longo de toda a História da Salvação, em Jesus esta misericórdia apresenta-se em toda a sua luminosidade. A misericórdia anunciada por Jesus encerra uma novidade em relação ao Antigo Testamento: ela é para todos,18 qualquer que seja sua condição de vida. Porque ela vem sempre da profundeza do coração de Deus: a compaixão.
No Antigo Testamento Deus já se revela compassivo. Contudo, só nas narrações evangélicas contemplamos um Deus que, em Jesus de Nazaré, se comove porque “tocado”, movido por uma profunda compaixão. É este o sentimento de Jesus diante do leproso (cf. Mc 1,41), do bom samaritano diante do ferido (cf. Lc 10,33). Compaixão é o que demonstra Jesus diante das multidões que o seguem, cansadas e como ovelhas sem pastor (cf. Mt 9,36). Compaixão é o que o leva a curar os doentes que lhe são apresentados (cf. Mt 14,14). Compaixão é a agitação interior suscitada nele pelas lágrimas de dor da mãe que leva à sepultura o seu filho único e a quem Ele dá novamente a vida (cf. Lc 7,15).
Nas parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como a de um Pai que não se dá por vencido enquanto não anular o pecado, com a compaixão e a misericórdia. Nestas parábolas Jesus apresenta Deus como um Pai feliz por ter podido perdoar. Elas são, de fato, o núcleo do Evangelho e da nossa fé, porque aqui a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, que enche de amor o coração e consola com o perdão.19
Enfim, as parábolas de Jesus mostram que a ação de Deus pelos seus filhos e filhas caracteriza-se pelo fato de ser sem medida na gratuidade que Ele tem para conosco. Isso exprime que o modo de Jesus se colocar no momento do anúncio do rosto de Deus é sempre existencial e pessoal; mesmo se isso não é aceito pelos “piedosos” e por aqueles que são rigorosos e rigoristas na observância da lei e do seu cumprimento.
Embora seja certíssimo que entre os atributos de Deus também haja a santidade e a justiça, que nós humanos separamos, como também no caso da relação entre misericórdia e justiça, pensando que a misericórdia é o que corrige a justiça, em Jesus de Nazaré fazemos a alegre descoberta de que em Deus não é assim. De fato, a misericórdia é concebida como a justiça específica de Deus e como a sua santidade; que a misericórdia é, antes de tudo, o lado visível e eficaz ao extremo da essência de Deus, que é Amor (1Jo 4,8.16).20 De aqui, pode-se concluir que a misericórdia é um dos nomes do Amor de Deus. Poderíamos dizer que é o nome divino do Amor.
4. Dom Bosco, Evangelizador e Educador sensível à Misericórdia de Deus
Com esta carta, desejo evidenciar a importância deste ano de Graça da Misericórdia (Ano Jubilar) em nossos ambientes salesianos. Como teria sido para Dom Bosco, este ano é uma oportunidade para compartilhar, com verdadeira adesão filial, esta iniciativa do Papa para toda a Igreja, e nós, Família Salesiana, somos e sentimo-nos parte viva da nossa Igreja; e, igualmente, como acontecia com Dom Bosco no seu tempo, nós acolhemos este dom de Deus que hoje nos vem da mão do Papa Francisco.
A segunda intenção é mostrar algumas evidências e oferecer alguma concretização salesiana ao nosso ser educadores e pastores dos jovens. E, com suma alegria, volto o olhar para Dom Bosco a fim de perceber como ele se comportava, em sua condição de pastor e educador dos seus jovens. Dom Bosco era, acima de tudo, um sacerdote com o coração cheio de Deus. Um coração de educador que sempre buscava suscitar nos seus jovens o sentido de Deus e a confiança n’Ele. Naturalmente, não podemos imaginar um Dom Bosco fora do seu tempo, nem da visão religiosa e teológica daquela época. Em todo caso, é certo que a representação de Deus à qual chega Dom Bosco na sua maturidade como sacerdote e educador é fruto de um longo caminho percorrido.
Sabemos pela história salesiana21 que na sua infância predomina a imagem de um Deus severo. Mamãe Margarida, autêntica catequista, inculcava em Joãozinho o sentido da presença universal de Deus e da sua justiça rigorosa. “Deus te vê era o lema com que recordava aos seus filhos que estavam sempre sob os olhares daquele grande Deus que, um dia, os haveria de julgar”.22 Ao mesmo tempo, transmitia-lhes o sentido da gratidão ao Deus criador, onipotente, que dava os bens das colheitas, mas também a tempestade e a perda das mesmas. Quando perdia uma colheita devido ao granizo ou outros fenômenos naturais, Mamãe Margarida dizia aos seus em casa: “O Senhor no-las concedeu, o Senhor no-las tirou. Ele é o seu senhor. Tudo para o melhor; saibam, porém, que para os maus são castigos e com Deus não se brinca”.23
A mesma convicção está presente em Dom Bosco nos anos do seminário de Chieri, sobretudo por ocasião da doença e morte do amigo Luís Comollo. Nos lábios do jovem próximo à morte, as palavras que Dom Bosco lhe atribui dão uma visão tremenda de Deus, que chega a ser implacável na sua justiça: “Não é o mal físico que me preocupa – diz o doente Comollo ao amigo Bosco – mas ter que apresentar-me diante do juízo de Deus (...). Não estou inquieto nem nervoso; apenas penso que devo comparecer àquele grande julgamento, como a um juízo inapelável, e é isso que me agita interiormente (...). A cada vez que o visitava repetia sempre as mesmas palavras: Aproxima-se o momento em que devo apresentar-me ao juízo de Deus”.24
Em algumas meditações da obra O Jovem instruído, Dom Bosco refere-se ao quanto pode ser terrível o juízo de Deus. Portanto, a alma recorrerá à misericórdia de Deus, descobrindo que a morte é o ponto final para experimentar a misericórdia de Deus.25
Esta, sem dúvida, não é a única visão nem a única fonte da formação de Dom Bosco. No Colégio eclesiástico, Dom Bosco aprendeu a ser ‘curado’, sob a guia do P. Cafasso e do P. Guala, pela moral inspirada em Santo Afonso Maria de Ligório, que era mais equilibrada e tendia a superar o rigorismo da época. Dom Bosco, jovem sacerdote, descobre que o caminho para aproximar as almas de Deus, especialmente os seus jovens, não é o rigor, mas a bondade, a benignidade e a misericórdia.
É com esta convicção que redige a obra Exercício da Misericórdia de Deus, escrita em 1846, depois de sair da doença e da convalescença, nos inícios da atividade do Oratório em Valdocco, pouco depois de deixar as obras da Marquesa Júlia di Barolo.
É interessante a história desta obra.26 A Marquesa di Barolo levava muito a sério a difusão da devoção à misericórdia divina. Nas obras de beneficência sob o seu patrocínio, nas quais Dom Bosco realizara o seu ministério nos primeiros anos, vivia-se uma prática devocional que durava sete dias para implorar a misericórdia divina. A Marquesa queria que fosse uma prática estável e comum em todas as paróquias e igrejas públicas, mas o Arcebispo de Turim não queria dar a autorização sem o beneplácito da Santa Sé. A Marquesa, então, dirigiu-se diretamente ao Papa Gregório XVI, que a permitiu, inclusive com indulgência plenária para aqueles que participavam dessa prática devota.
A segunda parte desta história refere-se à redação do livreto. A Marquesa queria que algum teólogo competente escrevesse uma obra sobre a Misericórdia de Deus, que fosse utilizada naquela prática devocional. O seu secretário, Silvio Pellico, sugeriu-lhe o nome de Dom Bosco; mas ela logo o descartou. Silvio Pellico, porém, grande amigo de Dom Bosco, convencido de que fosse o homem adequado, voltou ao assunto. Dom Bosco aceitou de imediato. Publicou a obra, pagando a impressão com seus próprios meios e – diz-se – por delicadeza e cortesia para com a Marquesa não quis que o seu nome figurasse como autor. Publicou-o como livro anônimo. Depois de impresso, presenteou com um exemplar cada menina do Refúgio entregando o restante à superiora daquele centro educacional. A Marquesa, porém, leu e aprovou o livro, mas nunca permitiu que se dissesse, na sua presença, que a obra fora escrita por Dom Bosco.
O Deus que Dom Bosco apresenta aos seus jovens
Como acenado, Dom Bosco foi homem do seu tempo e conheceu uma teologia em que a severidade do juízo e o temor da condenação eterna estavam muito presentes. Em diversos textos, Dom Bosco refere-se sobre como possa ser terrível o juízo de Deus. Porém, escreve e comunica também abundantemente aos seus jovens que Deus é, antes de tudo, Criador e Senhor e que, aonde quer que se queira dirigir o olhar, os Seus benefícios são percebidos.
Diante dos seus jovens, Deus é chamado com muita frequência de Senhor: “O Senhor adverte-vos que se começarem a ser bons desde a infância, o sereis enquanto viverdes neste mundo, recebendo depois o prêmio das vossas boas-obras com a felicidade eterna”;27 “o Senhor garante-nos que distribui os seus dons indistintamente aos bons e aos pecadores”;28 “à primeira lágrima, ao primeiro balbucio de arrependimento, o Senhor se comove imediatamente com piedade”.29
A vida de Dom Bosco, os seus escritos e aquilo que se diz dele nas Memórias Biográficas, estão cheios de sinais da sua visão educativa e pastoral, que convida muito a confiar no Senhor e abandonar-se a Ele e à sua Misericórdia. Seria possível recolher centenas de citações. Considerando, porém, apenas algumas, elas nos mostram como ele percebia a misericórdia e proteção divina, na Congregação Salesiana e no Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, e também como a presença de Jesus nos sacramentos, especialmente na Eucaristia e na Confissão, fossem os pilares fundamentais da ação educativa.
Referindo-se ao primeiro aspecto: “Pude reconhecer com certeza que o Senhor usa de grande misericórdia para conosco”30 e “aproxima-se o tempo em que os bons e maus ficarão surpresos com as maravilhas que acontecerão com muita rapidez; tudo é misericórdia e todos serão consolados”.31
Quanto ao aspecto específico dos sacramentos, podemos ler em Dom Bosco expressões conhecidas: “Diga-se o quanto se quiser sobre os vários métodos de educação, mas eu não encontro nenhuma base segura a não ser na frequência da confissão e da comunhão, e creio não dizer muito afirmando que, se estes elementos forem omitidos, bane-se a moralidade”.32
Podemos dizer que nesta visão educativa, com a finalidade de orientar os seus jovens num caminho de fé e piedade cristã, não existem contrastes em Dom Bosco. Dilui, mitiga a visão e a representação do Deus justiceiro e procura levar os seus jovens à contemplação de um Deus que os ama, que é misericordioso. Mas espera deles uma vida cristã autêntica: “Deus é misericordioso e justo. É misericordioso com quem quer se servir da sua misericórdia, mas descarrega o rigor da sua justiça com quem não quer servir-se da sua misericórdia”.33
Concluo esta breve referência a Dom Bosco recordando ainda que os sacramentos eram, para ele, canais da misericórdia divina, e que Maria era o canal preferido da graça e da misericórdia de Deus. Seria impensável uma ação educativa e pastoral em Dom Bosco sem referir-se à presença de Maria Imaculada e Auxiliadora.
5. A Misericórdia na Casa Salesiana
Talvez possa surpreender um pouco o título que dou a esta parte da carta. Será porque desejo, o quanto possível, chamar a atenção para a mensagem deste ano jubilar e pensá-lo como uma realidade eclesial dirigida também a nós e ao carisma que conservamos, traduzindo-o em vida. Gostaria de evitar que este ano da misericórdia fosse apenas um slogan do qual muitos falam, mas que passasse sem deixar marcas. Não, não o podemos permitir; antes, ao contrário, é e deve ser um apelo intenso à conversão e à autenticidade.
5.1 Anúncio da Misericórdia de Deus numa geografia de dor
No atual panorama social, em que contemplamos uma geografia da dor jamais imaginada, o apelo eclesial à misericórdia assume um forte sentido evangélico. Neste clima, é necessário assumir como Igreja, com serena e sincera autocrítica, o que diz o Papa Francisco: “Talvez, por demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia... Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos”.34
Estamos cientes de que ler os sinais dos tempos não é fácil, mas à luz do discernimento conduzido sob a guia do Espírito Santo é possível e necessário. Por isso, devemos perguntar-nos o que significa e como devemos fazer este anúncio da Misericórdia nas casas salesianas do mundo onde nos encontramos; nos lugares onde se mata em nome de Deus e, nesse mesmo nome, se colocam bombas e se fazem atentados; nas presenças salesianas perto das quais há guerra e onde há uma grande concentração de refugiados; mas também nas partes do mundo onde proliferam mensagens racistas e xenófobas.
Diante desta realidade, poderemos ficar neutros ou olhar para o outro lado como se tudo isso não nos dissesse respeito? Não! Não há nem pode haver uma ‘neutralidade salesiana’ diante destas situações, e as nossas respostas só podem ser as do Evangelho, no esforço de viver o convite do Papa Francisco de buscar e viver a Misericórdia de Deus com todas as suas consequências: um esforço que não seja algo limitado no tempo, mas tenha continuidade e longa duração. O Papa convida-nos a escutar a palavra de Jesus que “colocou a misericórdia como um ideal de vida e como critério de credibilidade para a nossa fé: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7)”,35 diz o Papa.
Há um desejo de procurar viver a misericórdia de Deus da nossa parte e da parte das presenças salesianas do mundo na geografia da dor, para abrir o coração a tantas pessoas que vivem em situação de precariedade e sofrimento, para estar próximos daqueles que não têm voz, para fazer valer a justiça que merecem, para curar as feridas da vida com a fraternidade e a solidariedade, e para ficar distantes daquela indiferença que, além de não ajudar, humilha.
“Abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade”.36 Que o seu grito se torne nosso e possa ressoar em cada casa de Dom Bosco o anúncio da misericórdia mediante ações concretas a favor dos mais pobres.
5.2. Vivendo a experiência pessoal da Misericórdia de Deus
Pensar em como viver de maneira plena a misericórdia neste ano especial e no futuro em nossas presenças salesianas, não significa primeiro projetar o que podemos fazer para acolher os outros e melhor servi-los. Também isto, certamente, mas em primeiro lugar exige que nos coloquemos na disposição de acolher e desejar viver a experiência da misericórdia.
Por ocasião do novo milênio, no ano 2000, e do jubileu proclamado pelo Papa João Paulo II, que apresentava aquele Ano Santo como um momento de apelo à conversão, dada a natureza do mesmo ano jubilar, o P. Vecchi escreveu uma carta sobre a reconciliação, na qual escrevia: “Dá-se, também a nós, uma oportunidade extraordinária de reviver a experiência da Reconciliação segundo a nossa condição de consagrados salesianos, compreendendo com a sua dimensão teologal, também a humana e educativa”.37
Renova-se o mesmo apelo para mim e para todos. Antes de ir ao encontro de quem possa precisar de nós, façamos a profunda experiência da misericórdia de Deus em nós. Corremos o risco de ser ‘funcionários’ se não formos os primeiros a viver humildemente, mas com profundidade, este dom que nos é oferecido.
O apelo do jubileu do ano 2000 renova-se hoje para nós com as palavras do Papa Francisco, que nos diz: “onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia”.38
Sobre este apelo à reconciliação e ao encontro misericordioso com o Pai, o Evangelho apresenta muitos encontros de perdão que sempre são iniciativa de Jesus. Não é o homem ou a mulher que encontra Jesus, aquele ou aquela que pede o perdão, mas é Jesus mesmo que o oferece. Estas pessoas sofrem, às vezes, uma condenação social, ou estão doentes, ou experimentam o peso de uma culpa; Jesus toca o seu coração e provoca a mudança de vida. Assim é com Levi, com Zaqueu, com o paralítico, com Pedro que o renega...
Muito diferente, entretanto, é a relação com Simão o Fariseu (Lc 44b-47) e com muitos outros. Nesta situação, ele, embora sendo homem religioso que conhece a doutrina da Sagrada Escritura, não percebe o olhar de perdão que Deus tem para com ele e, justamente por isso, não consegue amar, nem reconhecer o amor. Conhece a religião e a lei, é seu observante escrupuloso, irrepreensivelmente ortodoxo, mas definitivamente não conhece a Deus.
Ao contrário, a experiência de perdão do Evangelho é uma experiência de graça que transborda; é experiência de alegria; é festa grande no céu por quem se converte, que escandaliza as pessoas que se creem boas e justificadas. É um banquete ao qual todos são convidados deixando desgostosas as pessoas que se consideram ‘gente boa’. À luz da revelação que Jesus nos faz do Pai, “a misericórdia não é só o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para conosco”.39
Reconciliados e criadores de ambientes educativos que reconciliam
Isto me parece muito importante. Disse anteriormente que, como educadores de todos os jovens, não somos funcionários ou dispensadores de um serviço. Somos, antes de tudo, crentes e precisamos sentir-nos reconciliados, tendo experimentado a Misericórdia de Deus. O olhar dirigido a Dom Bosco, para o seu modelo educativo-pastoral, e como evangelizadores, leva-nos a confirmar em primeiro lugar a grande importância dada à reconciliação sacramental na educação dos jovens: por experiência pessoal, ele a considerava um elemento fundamental para o desenvolvimento humano e cristão.
A experiência ininterrupta de Dom Bosco, desde os primeiros anos como adolescente, depois como seminarista, mais tarde como jovem sacerdote e, por último, como o Dom Bosco conhecido por todos, é apresentada pelo P. Eugênio Céria com estas palavras: “Dom Bosco afeiçoou-se à confissão desde sua mais tenra idade, nem qualquer alteração na vida serviu para atenuar nele a amorosa propensão a aproximar-se dela com frequência... Quando iniciou seus estudos em Chieri, totalmente senhor de si mesmo, pensou resolutamente em buscar um confessor estável... Padre em Turim, confessava-se a cada oito dias com o beato Cafasso. Morto o Servo de Deus, recorreu ao ministério de um piedoso sacerdote já seu condiscípulo, que ia receber todas as segundas-feiras pela manhã a sua confissão na sacristia de Maria Auxiliadora, confessando-se, depois, por sua vez, com o próprio Dom Bosco. Durante as viagens, na ausência do próprio confessor ordinário, mantinha-se fiel à sua estimada prática, dirigindo-se a algum salesiano ou outro, segundo o caso: por exemplo, durante uma permanência de dois meses em Roma em 1867, confessava-se semanalmente como o Padre Vasco, jesuíta por ele conhecido em Turim. Seus filhos, de início, hesitavam, mas ele: – Vamos, vamos, dizia, faz esta caridade a Dom Bosco e deixa que se confesse”.40
Tudo isso nos fala de como ele entendia o que podia pacificar, serenar interiormente um jovem, e como podia falar da acolhida paterna e incondicional de Deus. Era possível, porque ele mesmo o tinha experimentado e vivido como algo de mais importante do que “uma prática de piedade ocasional ou um serviço ministerial. Vivera-o como espaço onde se coloca a totalidade da vida, vivido pela fé. O que é verdade também para nós. Pela graça de unidade, a experiência pessoal de Reconciliação e a práxis pedagógica e pastoral reforçam-se reciprocamente. Reconciliados tornamo-nos artífices e mediadores de reconciliação”,41 e coloca-nos no empenho, ou melhor ainda, no desafio educativo de pôr os jovens em contato com um circuito de graça.
5.3 Misericórdia significa ter o ‘Coração do Bom Pastor”
Um aspecto distintivo do nosso ser salesianos é a sensibilidade pela figura de Cristo Bom Pastor (Jo 10,3-4), dado que o espírito salesiano tem o seu modelo e a sua fonte no coração mesmo de Cristo, Apóstolo do Pai, no qual sobressai o seu estilo de Bom Pastor.
Com este modelo que é o Senhor Jesus, nós cremos verdadeiramente que a caridade é a maneira mais adequada do nosso serviço aos jovens, e o fazemos com a “amabilidade ‘incansável’ e a ‘familiaridade’, nomes salesianos da caridade aplicada aos jovens”.42
Nesta moldura eclesial e espiritual, a Misericórdia deve traduzir-se e concretizar-se intensamente para mostrar ao máximo estes aspectos que nos definem carismaticamente. Participando da paternidade de Deus, as expressões da paternidade devem ser as mesmas que resplendiam em Jesus: gratidão ao Pai pela vocação divina que deu a todos os seus filhos e filhas, sua predileção pelos pequenos e pobres, sua solicitude no pregar, curar e salvar, assim como a sua mansidão e entrega de si mesmo,43 e também os aspectos de Dom Bosco, como seus gestos de bondade, o afeto que fazia os filhos sentirem, um afeto e bondade inspirados no amor de Deus e na mansidão de Cristo. A sua bondade é a de quem busca a felicidade dos outros. O seu afeto, bondade e acolhida são o resultado de uma adequada combinação de amizade e responsabilidade: bondade amável e compreensiva, e ao mesmo tempo responsável e exigente em relação à vida dos seus jovens. E, como com a bondade se sente pai dos seus jovens, deseja uni-los ao mistério de Deus e pô-los em contato com Ele até a eternidade.44
Viver a misericórdia de Deus em nossas presenças com esta sensibilidade deve significar que acreditamos que ainda hoje, como Jesus no Evangelho (Lc 7,50; Mt 9,22; Mc 5,34; Lc 8,48), são experiências reais de amor humano que aliviam o peso da existência e que realmente tiram da humilhação. Para fazer, mediante o encontro humano e a fé, a experiência da Misericórdia de Deus, também através das mediações tão pobres e humanas como podem ser as nossas é uma autêntica e verdadeira cura, muito mais profunda do que a da saúde física. É fazer experiência de que somos amados e podemos amar, apesar de tudo. E é nisso que consiste ser cristão, crer no amor de Deus por nós (cf. 1Jo 4,16).
E quando o adolescente, o jovem, a jovem vive o encontro com um verdadeiro educador, que está dando vida e dando a vida todos dias empenhando-se no seu serviço, faz experiência de que Deus o ama de maneira especial e única. Nisto consiste encarnar o coração de Cristo Bom Pastor: se alguém quiser arruinar ‘as ovelhas do rebanho’, deverá antes confrontar-se com aquele que as guia com verdadeiro amor de educador, irmão, irmã, amigo... É interessante neste sentido a narração de um exegeta que apresenta o exemplo moderno do pastor que se põe a dormir atravessado na soleira da porta, de tal modo que faz as vezes ao mesmo tempo de pastor e de porta para os animais. Poderíamos colocar na boca do pastor e também nos lábios de Dom Bosco estas palavras: “se quiserem chegar até as minhas ovelhas, deverão passar por cima de mim”.45
5.4. Misericórdia significa fazer a experiência espiritual e educativa chamada “Sistema Preventivo”
A experiência espiritual e educativa vivida por Dom Bosco com os jovens do primeiro Oratório, que ele chamou Sistema Preventivo, era para ele um amor que se entrega gratuitamente, inspirando-se na caridade de Deus. Recebido como herança de Dom Bosco, é para nós o modo de viver e trabalhar para comunicar o Evangelho e salvar os jovens, com eles e por meio deles.46
A vida de Dom Bosco com os jovens do primeiro Oratório, vivida na alegria e no estilo de família, é o cerne do espírito salesiano, no qual “a ‘bondade’ (o nosso ‘quarto voto’, ligado ao mesmo nome de ‘salesiano’!), não é senão a prática do Sistema Preventivo, vivido entre os jovens: ele não é apenas “o sistema da bondade”, mas “a bondade erigida em sistema”.47
Chamo naturalmente em causa o Sistema Preventivo, intimamente vinculado ao espírito salesiano (visto que este se manifesta e se encarna de modo único no primeiro). E o faço não para um desenvolvimento pedagógico do mesmo, mas para recordar-nos que, no espírito salesiano e na sua manifestação, temos muitíssimos elementos e aspectos característicos que, vividos com convicção e autenticidade, tornam real a misericórdia em cada casa salesiana do mundo. São estes os elementos e aspectos de misericórdia que devemos viver:
a presença educativa que persuade e suscita confiança;
a praxe que, orientada pelo coração, busca tão somente o bem do adolescente, do jovem ou da jovem;
a amor que se doa gratuitamente;
o exercício permanente da caridade que se faz amar, porque o amor constrói a pessoa;
a presença educativa aberta, cordial, que dá o primeiro passo para acolher sempre com bondade, respeito e paciência;
a opção de predileção pelos jovens, porque este é um elemento de ‘fé salesiana: nós cremos realmente que Deus ama os jovens’;
“a linguagem do coração que aceita os jovens como são, que manifesta prazer em compartilhar os seus gostos e os seus assuntos, que demonstra confiança neles, tolerância e perdão”.48
Creio, por isso, que jamais nos devemos cansar de aprofundar, interiorizar e valorizar sempre mais esta realidade do espírito salesiano, que se concretiza no modo de agir, de viver, num sistema sobre o qual o próprio Dom Bosco, numa carta a Tiago Costamagna, Inspetor na Argentina, escreve em 10 de agosto de 1885: “Ficaria contente em ter ao meu lado todos os meus filhos e as nossas irmãs da América... Gostaria de fazer a todos... uma conferência sobre o espírito salesiano que deve alimentar e guiar as nossas ações e todas as nossas palavras. Que o nosso sistema seja o preventivo... que nas salas de aula ressoe a palavra doçura, caridade, paciência... Que cada salesiano se torne amigo de todos, e jamais busque vingar-se; seja fácil em perdoar, sem nunca recordar as coisas já perdoadas... A doçura no falar, no agir e avisar conquista tudo e todos”.49
Devo reconhecer, enfim, que não resisto em deixar passar a oportunidade de recordar àqueles que já o conhecem, e mostrar aos outros, este precioso testemunho do P. Duvallet, colaborador do Abbé Pierre por vinte anos no apostolado de reeducação dos jovens, que nos fala do tesouro mais precioso que temos em relação ao nosso espírito e praxe educativa e evangelizadora. Diz ele: “Tendes obras, colégio, oratórios para os jovens, mas de tesouros tendes apenas um: a pedagogia de Dom Bosco. Num mundo em que os jovens são traídos, desfrutados, esmagados e instrumentalizados, o Senhor pôs em vossas mãos uma pedagogia em que reina o respeito ao jovem, à sua grandeza e fragilidade, à sua dignidade de filho de Deus. Conservai-a, renovai-a, rejuvenescei-a, adaptai-a a estas criaturas do século XX e aos seus dramas, que Dom Bosco não pôde conhecer. Mas, por favor, conservai-a. Mudai tudo, perdei, se fosse o caso, as vossas casas; mas conservai este tesouro, fazendo surgir em milhares de corações o modo de amar e de salvar os jovens, a herança de Dom Bosco”.50
5.5. Uma misericórdia que se realiza na justiça
Desenvolvo o título deste cabeçalho. Trata-se da misericórdia que, em nossas presenças salesianas no mundo, se concretiza na justiça, porque a misericórdia que recebemos de Deus neste ano jubilar e sempre, também contém para nós uma leitura salesiana da justiça que se vive e está e deve estar presente em nossas casas.
Para nós, a Misericórdia de Deus deve ser traduzida principalmente na justiça que devemos buscar, fazer e também exigir, especialmente em relação àquelas pessoas que, de algum modo, ‘dependem’ de nós.
O Sínodo dos Bispos de 1971 já proclamava: “O problema da justiça é um dos mais amplos, graves e urgentes da sociedade contemporânea. É o problema central da sociedade mundial de hoje”.51 Bem sabemos que este continua a ser um dos grandes dramas do nosso mundo. O Papa Francisco, no texto da proclamação do ano jubilar, chamando todos à conversão no encontro com o Senhor, fala do mal cometido, também com graves crimes, e pede para “ouvir o pranto das pessoas inocentes espoliadas dos bens, da dignidade, dos afetos, da própria vida”.52
Esta realidade de sofrimento pede-nos, com a sensibilidade de filhos e filhas de Dom Bosco, e como consagrados, que continuemos a estar ao lado dos pobres diante de toda forma de injustiça, trabalhando para despertar as consciências próprias e alheias, diante de toda realidade de pobreza ou miséria, compreendendo o valor evangélico do trabalho pela justiça. E cabe a nós, neste receber e oferecer misericórdia, fazer com que a prática da justiça seja o distintivo das casas salesianas no mundo, confrontar-nos com a existência da justiça ou injustiça e responder com verdadeiro ‘escrutínio’, perguntando-nos se, para nós, isso é fundamento e princípio irrenunciável.
Isto se traduz em coisas muito simples, mas ao mesmo tempo decisivas, como, por exemplo, garantir que os contratos existam e sejam respeitados, defendendo os direitos das pessoas; significa que nas nossas presenças se pagam os salários justos; significa que somos sempre honestos na gestão do dinheiro, especialmente quando é destinado às pessoas; significa que se escolhem as pessoas para os diversos serviços e trabalhos em nossas presenças segundo os critérios da preparação, idoneidade e identidade, nunca de modo obscuro ‘por amizade’ ou troca de favores; significa que aceitamos enfrentar as situações que surgem diariamente, mesmo quando incômodas, se o que está em jogo são a justiça ou os direitos de outras pessoas, especialmente se são menores e, por isso, mais frágeis e menos protegidos.
Tudo isso e muito mais é expressão e manifestação da Misericórdia de Deus pelas pessoas, novamente por meio da nossa humilde mediação. Esta realidade tão concreta, que desejo para todos, tem uma forte conotação teológica em si mesma. Quando busco a justiça, isso me faz amar com o mesmo amor de Deus e me leva, ao mesmo tempo, a amar a Deus, porque a justiça tem Deus como seu destinatário último. Reconhecer os direitos da outra pessoa é reconhecer os direitos de Deus que se faz presente no rosto do outro (1Cor 11,7); é reconhecer “o direito que se torna exigente no sacramento do irmão... pelo qual o Senhor considera feito a si mesmo tudo o que fizermos ao irmão (cf. Mt 25,34-40)”. E é por isso que “a injustiça atualmente, em suas diversas formas, negando a dignidade dos direitos do homem, imagem de Deus e irmão de Cristo, constitui um ateísmo prático, uma negação de Deus”.53
5.6. Maria, Mãe da Misericórdia
O Papa conclui o documento ‘Misericordiae Vultus’ dirigindo o seu pensamento a Maria Mãe da Misericórdia, desejando para nós que a doçura do seu rosto materno nos acompanhe neste Ano Santo, para que possamos descobrir novamente a alegria da ternura de Deus.
Maria é reconhecida como Aquela que experimentou a Misericórdia de Deus desde o início da sua existência; uma misericórdia vivida na profundidade do seu coração, que reconhece a gratuidade da sua vida, da sua eleição e da proteção permanente de Deus que ‘a cobre com a sua sombra’, apesar de Ela ter-se sentido uma verdadeira peregrina da fé.
“Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor”.54
Somos convidados a descobrir e reconhecer a Misericórdia de Deus na nossa vida e, por isso, agradecer. Somos convidados a experimentar que tudo em nós é dom de Deus e que o seu Amor por nós é totalmente gratuito e de modo algum, ‘resposta para os nossos méritos’. Isso exige de nós simplicidade e humildade para abandonar as nossas possíveis prepotências e continuar a viver como Maria um autêntico itinerário de fé, que significa aceitar Deus incondicionalmente em nossa vida e caminhar descobrindo, aos poucos, muitas vezes sem entendê-lo, como a sua vontade e a sua Misericórdia acompanharam e abençoaram a nossa vida.
Foi assim em Maria e “se poderia dizer que só à luz resplendente da ressurreição Maria pôde acolher plenamente o Mistério do seu Filho, mesmo se para tanto já dissera sim ao projeto do Pai e se deixara conduzir pelo Espírito”.55
Concluo este texto confiando a Maria, Mãe da Misericórdia, a realidade deste mundo que sofre e de uma Igreja peregrina que deve seguir as pegadas do Senhor, e, de modo especial, recomendando à Mãe toda a nossa Família Salesiana que procura trilhar um caminho de Misericórdia e fidelidade.
Ó Mãe de infinita Misericórdia,
que te dignaste vir em nosso auxílio,
ajuda-nos a viver livres de tudo que possa aprisionar.
Fortifica a nossa fé,
para que possamos ser sempre Misericordiosos
como tu o foste, e possamos seguir o chamado recebido do Senhor.
Protege dia e noite
o caminhar dos nossos passos
e livra-nos totalmente do mal!
Cuida das nossas famílias e comunidades,
da nossa Família Salesiana
e dos jovens que nos confiaste.
Ó Mãe de infinita Misericórdia,
faze com que a tua presença
renasça em nossos corações.
Que o teu olhar benévolo de Mãe
guie o caminho interior que devemos percorrer.
Que as Tuas mãos benditas abençoem
a missão que devemos concretizar.
Ó Mãe de infinita Misericórdia,
que o Teu Coração nos una
ao Coração de Cristo
e que nada nos separe d’Ele e de Ti.
Amém.
P. Ángel Fernández A., SDB
Reitor-Mor
1 Agostinho de Ipona, Confissões, VI 7,12
2 W. Kasper, La Misericordia, Chiave del Vangelo e della Vita Cristiana. Sal Terrae, Santander 2013, 4a edição, citado por J. J. Bartolomé, Jesús Compasivo, Jesús de Nazareth, testigo de la misericordia del Padre, CCS, Madri 2016, 5
3 Misericordiae Vultus (MV), 3.
4 Cf. MV, 2-3.
5 MV 4, citando o Discurso de abertura do Concílio Vaticano II, ‘Gaudet Mater Ecclesia’ 11 de outubro de 1962, 2-3.
6 MV 4, citando a Alocução da última sessão pública, 7 de dezembro de 1965.
7 MV 5.
8 MV 25.
9 Fancisco, Il nome di Dio è misericordia. Una conversazione con Andrea Tornielli, Piemme, Milão 2015.
10 Ibid., 24.
11 Cf. A. Grün, Le sette opere di Misericordia, Queriniana, Brescia, 20162, 5; Ch. Albini, L’arte della Misericordia, Qiqajon, Magnano (BI) 2015, 93; G. Buono, Misericordia, missione della Chiesa, Libreria Editrice Redenzione, Marigliano 2016, 5.
12 Ex 34,6 in G. Barbiero, Misericordia è il nome di Dio, in Consacrazione e Servizio, 3 (2016), 33.
13 Francisco, Homilia, 13 de março de 2015.
14 J. J. Bartolomé, o.c. 14
15 Cf. R. González Ponce, Dio è misericordia, in http://www.comboni.org/es/contenuti/107647-apropi-ndonos-la-utop-a-de-papa-francisco.
16 J. J. Bartolomé, o.c., 14.
17 MV, 1.
18 W. Kasper, Misericordia. Concetto fondamentale del Vangelo-Chiave della vita Cristiana, Queriniana (= Giornale di teologia 361), Brescia 20156, 103.
19 Cf. MV, 9.
20 Cf. W. Kasper, o. c. 26, 34,70,86.137.155 e 136.
21 Cf. E. Alburquerque, Don Bosco y la Misericordia de Dios, CCS, Madri 2016, 22-23.
22 MB I, 44.
23 MB I, 45.
24 Rasos biográficos del clérigo Luis Comollo, in J. Canals (ed.) San Juan Bosco. Obras Fundamentales, BAC, Madri 1978, 96-97, citado por E. Alburquerque, o. c., 22.
25 Cf. O jovem instruído, 57.
26 Cf. E. Alburqurque, o. c. 16-17.
27 O jovem instruído, 13.
28 Exercício de devoção, 56.
29 Exercício, 71 in Ibidem.
30 “Sonho dos 10 diamantes”, in MB XV, 171, citado por E. Albuquerque, o. c. 24
31 “Sonho de Lanzo e do jardim salesiano” in MB XV, 171 citado por Albuquerque, Ibidem.
32 O pastorzinho dos Alpes ou vida do jovem Besucco de Argentera, in Vidas de jóvenes, Editorial CCS, Albuquerque, o. c. 27.
33 O mês de maio consagrado a Maria SS.ma para uso do povo, Turim 1858, dia 20, pag. 131. In E. Albuquerque, o. c. 27.
34 MV, 10.
35 MV, 9.
36 MV, 15.
37 J.E. Vecchi, ACG 369, 4.
38 MV 12.
39 MV 9.
40 E. Ceria, Don Bosco con Dio. Citado in Vecchi J. E, ACG 369, 38-39.
41 J. E. Vecchi, o. c. 45.
42 CGE, 93.
43 Cf. Cost. 11.
44 Cf. J. E. Vecchi, Spiritualità salesiana. Elle Di Ci, Turim, 2001, 175-177.
45 Cf. P. Chávez, ACG n° 384, 2003, 26-27
46 Cf. Cost. 20
47 A. Caviglia, La pedagogia di Don Bosco, Roma, 1935, 14-15. Cf. ACS n° 290, 1978, citado in O Projeto de Vida dos Salesianos de Dom Bosco, Brasília: EDB, 2016, 213. Cf. A Pastoral Juvenil Salesiana. Quadro Referencial. Capítulo IV, O sistema preventivo, uma experiência espiritual e educativa, Roma 2014, 78-107.
48 Cf. P. Chávez, ACG n 400, 2007, 14
49 E. Ceria, Epistolario IV, Turim 1959, 332, citato in Projeto de vida… 256.
50 AA.VV. Il sistema preventive di Don Bosco tra pedagogia antica e nuova, documenti del Congresso europeo salesiano sul sistema educativo di Don Bosco. Elledici, Turim, 1974, 314
51 Sínodo dos Bispos: A justiça no mundo. Cidade do Vaticano, 1971. Citado in CGE, 67.
52 MV, 19.
53 XXXII Congregação geral da Companhia de Jesus, Decreto IV, n. 29, citado in Nuovo Dizionario di Teologia Morale, Paoline, Milão, 1990, 510.
54 MV 24
55 Chávez P., Testimoni del Dio vivente, LEV, Roma 2012, 328.