301-350|pt|337 - Nova Educação

Egídio Viganò


NOVA EDUCAÇÃO”


Atos do Conselho Superior


Ano LXXII – julho-setembro, 1991


N. 337



Introdução: emergência do fato educativo – Urgência de uma “nova educação” – A interpelação dos jovens – Distinção entre “educação” e “evangelização”, enquanto tais – Antes educar e depois evangelizar? – A opção de Dom Bosco e o exemplo de sua prática - Educar evangelizando – Relendo o “Sistema Preventivo”: a criatividade do artista; solidários com os jovens; com o olhar fixo no Homem novo; para uma obra de prevenção; unindo num único feixe de luz “razão” e “religião”; com atenção criativa voltada para o tempo livre; em direção ao realismo da vida – Santificar-se educando - Estimulados pela maternidade eclesial de Maria.





Roma, 19 de maio de 1991

Solenidade de Pentecostes



Queridos irmãos,



pude verificar, nas várias Inspetorias que visitei nestes meses, que se trabalha com interesse para pôr em prática as orientações e as diretrizes do Capítulo Geral. Trata-se de encarnar operacionalmente as riquezas acumuladas na Con­gregação em todos os anos do pós-concílio.

É uma tarefa que, para nós, faz parte daquela “nova evangelização”, exigida pelos tempos, para a qual nos convi­dam insistentemente o Papa, os Bispos e o CG23.

Os próprios jovens pedem ser, de vários modos, ilumi­nados e acompanhados no difícil caminho de suas vidas. Os pais e tantos responsáveis civis e eclesiásticos dirigem-se aos membros da Família de Dom Bosco como a peritos em educação.

Também vários irmãos me pediram ultimamente para apresentar algumas reflexões sobre a modalidade educativa de nossa missão.

Percebe-se hoje uma emergência do “educar”, quer na sociedade civil, quer na Igreja. Levantam-se, também, algumas objeções às quais é conveniente dar uma resposta.

Em longa conversa com um ministro de Fidel Castro, em Havana, ouvia impressionado sua afirmação sobre a “juventude da revolução”: a imoralidade e a falta de mística entre os jovens constitui uma das preocupações mais sérias do regime.

Em outro contexto, em Praga, num encontro com o vice primeiro-ministro do atual governo, ouvia avaliar a situação eclesial assim: a Igreja foi obrigada a viver durante 40 anos num canto, e agora se não sair em campo aberto não poderá influir sobre uma juventude desligada da paróquia e de outras instituições eclesiais, totalmente ignara do Evange­lho, desviada por uma ideologia ateia e crescida com uma mentalidade carente de ética pessoal.

Em quase todas as sociedades, atualmente, a educação já não é considerada uma atividade orientada à formação do cristão; seu ambiente cultural é laicista ou de antigas religiões.

A Igreja com o Concílio Vaticano II tomou conhecimento do fim se assim se pode dizer de uma época de “cristanda­de” para propor outra modalidade de relacionamento com o mundo; fala, por isso, de nova evangelização e de repensamento pastoral. Tudo isso, pois, atinge profunda­mente o âmbito da educação.

Se olharmos, em particular, para os numerosos povos de ou­tras religiões, encontraremos modelos pedagógicos diferen­ciados, permeados por uma religiosidade concreta com es­pecíficos valores positivos, mas que têm em comum o fato não indiferente para nós de não levar em conta, em sua antropologia, o mistério de Cristo e, portanto, não possuir uma visão integral do homem e um conjunto de mediações concretas e misteriosamente eficazes que concorrem para o pleno crescimento da pessoa.

A objeção que está por baixo e que procede de variadas e complexas situações é que a educação da juventude, tão fundamental e indispensável em toda sociedade, não só não está de fato vinculada com a evangelização, mas vem sendo separada dela, porque considerada como setor cultural com um campo de desenvolvimento autônomo.

Esta emergência do fato educativo está em relação sobre­tudo com a afirmação da centralidade do homem no cosmo e na história: uma maciça “guinada antropológica”.

Refere-se ao homem em si mesmo, em sua subjetividade aberta a mil possibilidades. É uma das expressões daquele grande sinal dos tempos que se chama “processo de personalização”.

Nasce, pois, uma problemática inédita que atinge diretamente e põe em discussão o significado e as modalidades da nossa ação educativa. O CG23 convida-nos a saber assumir os valores apresentados pelos sinais dos tempos, discernindo-os à luz da fé. Penetrando, portanto, na atual guinada antropológica, é preciso, com clareza, evitar cair no antropocentrismo redutivo que o caracteriza culturalmente.

Nas reflexões a seguir não pretendemos aprofundar os vastos aspectos do atual fenômeno educativo, estudado pelas ciências do homem. Nem é possível um exame das múltiplas exigências das situações concretas e das diferen­ças culturais. Para nós, aqui, interessa refletir sobre o problema da mútua relação de nossa atividade educativa com a evangelização. O esclarecimento que vier, exigirá ulteriores esforços de discernimento e estudo. Terá, de fato, uma sua modalidade de aplicação nas sociedades secularizadas; outra nos povos que lutam no difícil processo de libertação; outra ainda nas culturas ligadas às grandes religiões do Oriente etc.

A reflexão sobre a mútua relação entre amadurecimento humano e crescimento cristão deve ser considerada para nós básica e indispensável em todas as situações. De sua correta interpretação depende a justa e eficaz aplicação de nossas próprias Constituições (art. 31a 43).

Portanto, guinada antropológica, sim; mas tendo no vér­tice Cristo, o Homem novo.



Urgência de uma “nova evangelização”



Na carta Iuvenum Patris, João Paulo II afirmava que “S. João Bosco é atual... porque ensina a integrar os valores permanentes da Tradição com as ‘novas soluções’, para enfrentar criativamente as instâncias e os problemas emer­gentes: nestes nossos tempos difíceis ele continua a ser mestre, propondo uma Nova Educação que é a um tempo criativa e fiel”.1

E no discurso aos Capitulares (1º de maio de 1990) exortou-nos neste sentido: “Escolhestes bem: a educação dos jovens é uma das grandes instâncias da nova evangelização”.2

Com razão, o CG23 lembrou que as pessoas e a sociedade estão sendo transformadas por uma cultura emergente,3 e isso comporta necessariamente uma “nova educação”: de fato, a educação é o setor fundamental da cultura.

Por isso eu mesmo afirmava, no discurso de encerramento do Capítulo, que “a formação dos jovens na fé” apresenta hoje tantos aspectos peculiares a ponto de exigir uma “nova educação”.4

Vivemos um tempo de mudanças e somos convidados, como discípulos de Cristo, a fermentar a atual cultura com uma fé viva. Isto requer atento discernimento, capacidade de perceber em profundidade os problemas colocados pela mudança em ato.

Olhemos rapidamente os principais aspectos que emer­gem do tempo: secularização e progresso das ciências e da técnica; democratização e desenvolvimento do sentido social; libertação e busca da justiça; personalização e consciência da dignidade de cada pessoa; promoção da mulher e valorização da feminilidade; protagonismo e corresponsabilidade numa sociedade cada vez mais complexa; hierarquia dos valores e pluralismo de opiniões; educação à “cidadania” e presença formativa de muitas agências paralelas e discordantes; veiculação de novos temas geradores: paz, ecologia, solidariedade, direitos humanos etc.

É um vasto âmbito de hori­zontes em expansão, ricos de valores e, de fato, também de não valores, que influenciam profundamente na maneira de pensar e agir e que atingem as modalidades de vida das pessoas, das famílias e das instituições sociais.

Infelizmente, à primeira vista, pareceriam mais fortes os desvalores. O sofisticado sistema da comunicação, com ênfase mais para o que é agradável e efêmero do que para o que é importante e verdadeiro, traz o perigo de estimular o culto às aparências, afastando da interioridade e dos verdadeiros ideais. Na cabeça e no coração das pessoas, sobretudo jovens, há o perigo não imaginário de que penetre cada vez mais forte a pressão do materialismo e do hedonismo com tantas mensa­gens subliminares veiculadas pelos mass media. Os ritmos psicológicos do tempo privilegiam o presente, em contraste ou sem muita memória do passado e com impaciente pressa de futuro. O devir empurra; avança velozmente. É preciso ter consciência disso.

A emergência do fato educativo traz consigo ao menos dois tipos de novidades que incidem sobre o nosso trabalho. Por um lado, os valores positivos dos sinais dos tempos representam um verdadeiro crescimento em humanidade. Afirmam a centralidade do homem, sublinhando a subjetividade (a autoconsciência, a liberdade, o protagonismo). O jovem apresenta-se, deste ponto de vista, como o primeiro autor do seu crescimento enquanto é pessoa consciente e livre, e, portanto, capaz não só de assimilar e receber, mas também de criar e modificar, formando-se convicções e ideias próprias.

Por outro lado, porém, esta guinada antropológica é hoje pensada e apresentada como uma realidade que não tem necessidade de ser relacionada com Cristo, porque o homem teria em si mesmo (prescindindo do mistério do Verbo encar­nado) todas as razões de sua dignidade e todas as capacida­des para dar sentido à história.

Esta dupla novidade (valores positivos e prescindência de Cristo), que na atualidade incide fortemente no fato educativo, interpela-nos diretamente, exigindo de nós uma “nova edu­cação”.

A nossa missão de evangelização passa através da opção educativa; arriscamos perder nossa identidade se não evangelizarmos “educando”. É urgente sermos peritos no conhecimento dos novos valores culturais para promovê-los superando com sabedoria a tragédia da separação entre Evangelho e cultura, restabelecendo uma ligação válida e ampla entre fato educativo e fato pastoral. A insistência do Papa para uma “nova evangelização” significa dedicar-nos a compreender e aprofundar a atual mudança antropo­lógica, assumindo os valores do crescimento humano e do processo de personalização, à luz de uma centralidade do homem que só é verdadeira e integral se relacionada objetivamente ao acontecimento histórico de Cristo.5

Neste sentido falamos de “nova educação”. Sem ela nós não participaremos validamente da “nova evangelização”.





A interpelação dos jovens



O CG23 apresentou-nos uma visão sintética da situação da juventude atual,6 suas atitudes diante da fé;7 e os desafios mais urgentes que nos interpelam.8

Mas há um desafio afirma o Capítulo que é síntese e matriz de todos os outros e atravessa todos: o desafio da ‘vida’”.9

Este desafio global não interessa só este ou aquele aspec­to da vida, porque são as bases profundas do viver pessoal (e coletivo) que não são consideradas ou são mutiladas e rebai­xadas; porque são esquecidos ou desviados os valores formativos básicos. O desafio da vida exige uma clara busca de sentido e de identidade para a nova compreensão dos próprios fundamentos do ser e do agir humano.

O Capítulo concentrou a atenção sobre três objetivos qualificadores: a formação da consciência pessoal até o ponto alto de sua dimensão religiosa;10 a autenticidade do amor como máxima expressão humana nas relações interpessoais;11 a dimensão social da pessoa para uma cultura de solidarie­dade.12 Ou seja, convida-nos a promover o processo de personalização, considerando os jovens como verdadeiros autores de sua formação.

É, portanto, mais do que evidente que a “nova educação” não pode ser reduzida a simples método de instrução, erudição e doutrinação, ou unicamente ao saber científico-técnico, mas deve ter como objetivo o crescimento e o amadu­recimento da pessoa nos critérios de juízo, no sentido ético da vida, nos horizontes da transcendência, nos modelos de comportamento concreto, juntamente com uma positiva avaliação do progresso das ciências e das técnicas para uma humanização da convivência social.

Na cultura atual fala-se muito da chegada de um “homem novo”; existe um conjunto de expressões culturais que teste­munham uma não indiferente originalidade. Mas se obser­varmos as indicações concretas que estão assumindo essas novidades, percebemos que estão carentes de uma visão superior e facilmente levam ao subjetivismo. A aceleração das mudanças faz intuir, juntamente com a superação de um determinado modelo cultural do cidadão de ontem, que o “homem novo” desta cultura necessita de valores que ultrapassem o bem-estar, uma visão antropocêntrica e voltada para a eficiência, a indefinida capacidade criativa da liberdade do in­divíduo para assegurar as fontes inspiradoras de uma mais genuína personalidade humana. A fé nos faz descobrir que as mudanças em curso e a transcendência da pessoa exigem a presença de Cristo, sua condição histórica de único verdadei­ro “Homem novo”.

Compreende-se neste contexto a atualidade daquilo que muitas vezes repete o Santo Padre: “O homem é o caminho da Igreja. Seu único objetivo tem sido o cuidado e responsabili­dade pelo homem, a ela confiado pelo próprio Cristo, por este homem que é a única criatura que Deus tinha querido por si mesma e para a qual Deus tem o seu projeto. Não se trata do homem ‘abstrato’, mas do homem real, ‘concreto’ e ‘histórico’: trata-se de cada homem, porque cada um foi incluído no mistério da redenção e Cristo uniu-se com cada um para sempre, mediante este mistério”.13

Torna-se evidente, portanto, para nós a urgência de entrar na guina­da antropológica com a mesma preocupação pastoral com que a Igreja se voltou para o homem no Concílio Ecumênico Vaticano II.

Não devemos partir observa o card. Ballestrero da ide­ia de o homem ser como é, mas do princípio de o homem dever ser como Deus o fez. Este princípio é importantíssimo... Eu acredito no homem não porque o conheça em seu dia-a-dia, em sua caminhada cotidiana, em seus caprichos, em suas fantasias, em suas revoltas. Quando vejo uma pessoa, digo para mim mesmo: este, apesar de tudo, é criatura de Deus, e isso sustenta em mim a confiança nele... A irremediabilidade de ser criatura de Deus deve ser valorizada por mim no plano educativo. Diria que a educação se torna uma arte, porque a aplicação deste princípio está unida ao respeito da identidade histórica de cada um”.14

O “desafio da vida” obriga-nos a individualizar as áreas de intervenção e procurar e traçar novos caminhos, redefinindo com atualidade os grandes critérios do nosso trabalho educativo.



Distinção entre “educação” e “evangelização”, enquanto tais



Hoje, portanto, procura-se apresentar o fato educativo, preferivelmente, de maneira laicista.

Por outro lado, quem não viu mais de um salesiano “professor” se esquecer que é evangelizador ou, ao contrário, algum outro que, ensinando “catequese, liturgia e religião”, deixa de lado as oportunas dimensões pedagógicas, porque não preparado nas ciências e técnicas da educação e, portanto, incapaz de responder às interpelações culturais? Infelizmente, o perigo da separação entre tarefa cultural e compromisso pastoral também entre nós não é imaginário.

Educar” e “evangelizar” são duas ações, de per si, dife­rentes, que se podem separar. Mas a unidade mesma da pessoa do jovem requer que não sejam separadas. Nem basta uma simples justaposição, como se fosse normal ignorarem-se mutuamente.

Vale a pena deter-nos aqui para esclarecer a específica distinção entre estes dois polos.

Certamente, a intencionalidade da “ação educativa” distingue-se, em si mesma, da “ação evangelizadora”. Cada uma possui finalidade própria e caminhos e conteúdos peculiares. Devemos saber distingui-las, não para separá-las, mas para uni-las harmoniosamente numa complementaridade orgâ­nica.



A educação, em si mesma enquanto atividade que educa, situa-se no âmbito da cultura e faz parte das realidades terrestres; refere-se ao processo de assimilação de um con­junto de valores humanos em evolução, com uma meta específica. Neste sentido pode-se falar também da sua “laicidade”, vistos os conteúdos relativos à criatura universalmente aceitáveis por todos os homens de boa vontade. Lembremos, a esse respeito, o que meditamos na circular sobre a “nova evangelização” a respeito da necessidade de conhecer e aprofundar hoje a “teologia da criação”.15

A atividade educativa tem uma legitimação intrínseca própria que não deve ser instrumentalizada, nem manipulada. Sua intencionalidade é promover o homem, ou seja, fazer o jovem aprender a “profissão de ser pessoa”. Trata-se de um processo feito com uma longa e gradual caminhada de crescimento. Mais do que impor normas, preocupa-se em tornar mais responsável a liberdade e desenvolver os dina­mismos da pessoa, fazendo referência à sua consciência, à autenticidade de seu amor, à sua dimensão social. É um verdadeiro processo de personalização a ser amadurecido em cada um.

A atividade educativa comporta dois pressupostos a se­rem atentamente considerados. O primeiro refere-se à sua natureza de “processo”, ou seja, àquele longo itinerário de crescimento que leva necessariamente consigo uma justa e calibrada gradualidade. O segundo lembra-nos que a educação não pode ser reduzida a simples metodologia. A atividade educativa está vitalmente unida à evolução do sujeito. É uma espécie de paternidade e maternidade, uma como cogeração humana para o desenvolvimento de valores fundamentais, como a consciência, a verdade, a liberdade, o amor, o trabalho, a justiça, a solidariedade, a participação, a dignidade da vida, o bem comum, os direitos da pessoa. E por isso, preocupa-se também para que seja evitado o que é desvio e degradação, idolatria (riquezas, poder, sexo), margi­nalização, violência, egoísmo etc. Dedica-se a fazer crescer o jovem a partir de seu interior para que se torne homem responsável e se comporte como cidadão honesto.

Educar quer dizer, portanto, participar com amor pater­no e materno no crescimento do indivíduo enquanto se cuida também, para esta finalidade, a colaboração com os outros: a relação educativa, de fato, supõe várias agências coletivas.



A evangelização, no entanto em seu conceito mais amplo , tem como finalidade transmitir e cultivar a fé cristã; pertence à ordem daqueles acontecimentos de salvação que nascem da presença de Deus na história; dedica-se a torná-los conhecidos e comunicá-los fazendo-os viver na liturgia e no testemunho. Não se identifica simplesmente com normas éticas, porque é revelação transcendente; não parte da natureza ou da cultura, mas de Deus e de seu Cristo.

Transcendendo embora o contexto das realidades terrestres, ela visa objetivamente a se encarnar nas pessoas e nas culturas; é uma atividade própria da ordem da encarnação; apoia-se na presença viva do Espírito Santo; comporta algo que está além do humano; refere-se, enfim, ao próprio mistério do Verbo feito homem; é consciente de que, neste mistério, Cristo não se apresentou como alternativa, mas como assunção, promoção e salvação de toda a realidade humana. Deve-se notar, pois, que o ponto de referência último da evangelização não é formado por um conjunto de valores, mas por uma Pessoa viva, Cristo, alfa e ômega do universo.

A intencionalidade da ação educativa não é simplesmen­te uma instrução religiosa sobre determinadas verdades cristãs; ela consiste propriamente na formação do “crente”, ou seja, de uma pessoa que vive a fé em Cristo e que se compro­mete com Ele nos problemas da vida. Assim, a atividade evangelizadora não é só “anúncio”, mas comporta também “testemunho”, dedicação (também aqui) paterna e materna, serviço gradual e adequado, que exige sensibilidade educativa, fundamentada numa perspectiva antropológica; uma ação, portanto, em si mesma aberta e voltada para a educação.

Dessa forma, a Igreja, “perita em humanidade”, torna-se também “perita em educação”, porque tudo nela está ordenado para o cresci­mento do homem.



As duas ações, portanto, são em si distintas, mas ambas trabalham sobre a unidade orgânica da pessoa do jovem: são duas maneiras complementares de se preocupar com o ho­mem; nascem de fontes diferentes, mas se unem com a intenção de “gerar” o homem novo; são feitas para colaborar em plenitude no crescimento unitário do jovem.

Não esqueçamos uma consideração que vai mais além. Entre educação e evangelização existe, por sua própria natureza, um nexo orgânico mais profundo. O Papa sublinhou isso na famosa encíclica Redemptor hominis. Descobre esse nexo relacionando o mistério da criação com o da redenção. A redenção afirma o Papa é uma criação renovada.16

O Verbo não se encarnou numa natureza estranha a Deus, mas na “imagem” de si mesmo projetada no homem criado. O Verbo, portanto, não se encarnou para acrescentar valores parciais novos, mas para purificar, aperfeiçoar e elevar os valores humanos da criação (mirabilius reformasti!). Cristo é o “segundo Adão”, o “Homem novo”; Ele é mais “homem” do que todos, exatamente porque é Deus. Não é alternativa como dizíamos , mas plenitude: é o Senhor da história. O Concílio afirmou-o claramente: “Na realidade, somente no mistério do Verbo encarnado encontra verdadeira luz o mistério do homem. Adão, de fato, o primeiro homem, era figura do homem futuro Rm 5,14 , isto é, do Senhor Jesus. Cristo, que é o novo Adão, revelando o mistério do Pai e de seu amor, mostra também plenamente o homem ao ho­mem e lhe indica sua altíssima vocação”.17

A fé é feita para viver no homem; e o homem é feito para viver de fé: fé e vida são o binômio do futuro. “Uma fé que se colocasse à margem daquilo que é cultura, seria uma fé que não espelha a plenitude daquilo que a Palavra de Deus manifesta e revela; seria uma fé decapitada; pior ainda, uma fé em processo de autodestruição”.18

Quando o CG23 fala de “educar os jovens na fé” não entende, certamente, promover uma forma antropocêntrica qualquer de educação.

A expressão do Capítulo “educar na fé” significa propri­amente “educar evangelizando”. O verbo “educar”, portanto, não é algo a se; seu significado relaciona-se com a palavra “fé”. Se o verbo “educar” estivesse desligado, indicaria só um compromisso de dimensão cultural; a expressão capitular, ao invés, quer significar um compromisso de dimensão pastoral; dizer “educar”, em sua compreensão só cultural, não é, então, o mesmo que dizer “educar na fé”, no sentido capitular.

Para incidir na realidade viva do indivíduo devemos fazer penetrar com reciprocidade de influência as contribuições da educação e as riquezas da evangelização, em mútua circu­laridade, sem que se confundam conceitualmente um com o outro, e fazê-los convergir harmoniosamente na atividade pedagógico-pastoral voltada para a unidade da pessoa que cresce.

Afinal de contas, o verdadeiro fim último do homem novo é um só. E a ele tendem operativamente as duas preocupações: trata-se de levar a sério a história.



Antes educar e depois evangelizar?



Supondo embora uma mútua reciprocidade entre educa­ção e evangelização, podemos ainda perguntar-nos se, em nosso trabalho, devamos começar por uma ou por outra.

Na realidade a pergunta é artificiosa; o Capítulo exige simultaneamente a interação das duas.

Poderíamos lembrar que existem algumas realidades que vêm antes da atividade educativa: primeiramente o jovem, assim como é, na integridade orgânica de sua pessoa e do sentido total de sua vida: “Imitando a paciência de Deus afirmam as Constituições , encontramos os jovens no ponto em que se acha sua liberdade”.19

Há, depois, a contribuição dos atuais valores da cultura emergente com seu contexto essencial, que exige sentido crítico e inteligência criativa.

Enfim, outra realidade, que deverá necessariamente anteceder, é a habilidade pedagógico-pastoral do educador, movido por uma forte espiritualidade pedagógica: aqui está o verdadeiro segredo da inseparabilidade dos dois polos.

Aceitas estas premissas, devemos nos convencer de que a educação deve ser evangelicamente inspirada desde o início; e que a evangelização requer já desde o primeiro momento ser oportunamente adaptada à condição evolutiva dos jovens. A educação encontra seu significado integral e uma razão de força a mais na mensagem do Evangelho; e a evangelização está toda orientada para o homem vivo e encontra sua eficácia nos aspectos pedagógicos.

Desde sempre, pois, o Evangelho, que por si transcende a evolução humana, encarnou-se nas diferentes culturas, as­sumindo os valores, purificando-as e aperfeiçoando-as com a apresentação de horizontes mais amplos, influenciando também nas diferentes modalidades de suas expressões (arte, literatura, ciência, direito, política, economia, etc.).

Há necessidade hoje de confrontar a promoção do homem com as riquezas do mistério de Cristo.

Assim, a prática educativa sugerida pelo Capítulo apresenta-se simultaneamente como participação e continuação, seja da obra redentora do Pai, seja da redentora do Filho.

É verdade que numa mudança tão profunda como aquela que vivemos às vésperas do terceiro milénio, a evangelização não conta mais como no passado com um contexto social de religiosidade cristã. Mas exatamente por isso deverá ouvir os sinais dos tempos, considerar com atenção profética os pres­supostos da resposta humana a Deus e utilizar os recursos naturais e culturais, que apresentam uma abertura à transcendência pessoal (busca de religiosidade), à transcendência social (busca da solidariedade), à transcendência de sentido da existência (busca de valores), à transcendência de espi­ritualidade (busca profunda, ainda que nem sempre explíci­ta do mistério de Cristo).

Intui-se aqui a inseparabilidade, a atenção recíproca e a necessidade de mútua e simultânea interação dos dois polos.



A opção de Dom Bosco e o exemplo de sua prática



Um elemento que ilumina para nós o significado da expressão capitular “educar os jovens na fé” é pensar que o nosso Fundador foi suscitado por Deus para os jovens, como destinatários privilegiados de sua atividade evangelizadora; exatamente por isso ele escolheu, como campo de atuação, o da educação. Colocou assim sua missão apostólica na área da cultura humana. Traduziu sua ardente caridade pastoral em modalidades concretas de atuação educativa, tornando-se “pai, mestre e amigo” dos jovens.

Ele deu, com sua original experiência, uma contribuição própria à prática educativa; infundiu uma alma de perma­nente validade; sentiu a exigência de dar ordem e organicidade às intervenções pedagógicas; empenhou-se por uma renovação concreta da sociedade a partir de uma renovação global do trabalho formativo entre a juventude das classes popula­res. Sua prática pedagógica apresenta-se como uma inter­venção operacional convergente, em vários níveis: culturalmente, movendo-se entre tradição e modernidade; soci­almente, mediando entre sociedade civil e clara pertença eclesial; pedagogicamente, unindo instrução, treina­mento educativo e evangelização; metodologicamente, in­tervindo ao mesmo tempo sobre os indivíduos, os grupos, as massas. Divisões muito rígidas não se adequavam à sua prática viva.

Interessa-nos aqui, em particular, uma reflexão sobre a integração harmoniosa e o relacionamento recíproco entre edu­cação e evangelização.

A prática educativa é uma “arte”; e é realizada por um “artista”. Na arte e no artista não se separam os distintos aspectos que intervêm na ação, mas são unidos numa energia de síntese viva que sabe fazer convergir harmoniosamente as contribuições dos vários aspectos na expressividade da obra que produz.

Evidentemente, no fato educativo não se trata de esculpir em pedaço de mármore, mas de saber acompanhar um sujeito livre ao longo do processo de crescimento. O conceito de “arte” aplicado à educação deve ser interpretado analogamente, como na ordem espiritual e ascética, onde é descrito como “arte das artes”.

Em anatomia distingue-se e separa-se; nas ciências, a ótica da distinção fundamenta a identidade e a autonomia de cada uma das disciplinas. Na vida, no entanto, prevalece a organicidade que une múltiplas diferenças; e assim na arte triunfa a genialidade de quem sabe concentrar mais aspectos enriquecedores na elaboração da obra-prima.

Não só o trabalho educativo é uma arte; mas também a atividade evangelizadora, em seu impulso intrínseco de inculturação, comporta de fato também uma dimensão de arte, embora suponha vitalmente a intervenção direta do Espírito do Senhor que transcende, em si, toda metodologia humana. Ela, de fato, é uma atividade que não prescinde da colaboração humana; por isso, Cristo enviou os Apóstolos às diferentes culturas e povos: “ide, pois, e fazei de todos os povos discípulos, ensinando-os a observar tudo o que vos mandei”.20

A prática pedagógica de Dom Bosco une inseparavelmente entre si educação e evangelização, não de qualquer maneira, mas com uma peculiar compenetração harmoniosa. A obra-prima à qual chega é “o honesto cidadão porque bom cristão”.

Para poder descobrir o segredo da compenetração entre os dois polos, devemos penetrar no interior da personalidade do “artista” para procurar compreender em que tenha con­sistido a sua habilidade.

Após o CG21 já fizemos uma reflexão sobre este tema, tão vital para nós, na circular “o projeto educativo salesiano” do mês de agosto de 1978.21 Agora retomamos o assunto, convencidos que o CG23 nos impulsiona para a sua maior realização.

O nosso compromisso educativo é ao mesmo tempo peda­gógico e pastoral; a nossa pastoral respira e age na área educativa; e a nossa atividade educacional abre-se com constante e competente inteligência ao Evangelho de Cristo.

Dom Bosco sempre excluiu, em sua atividade pedagógico-pastoral, toda separação entre os dois polos. O CG21 afirmou claramente que nós “somos conscientes de que educação e evangelização são atividades distintas em sua ordem. São, porém, estritamente ligadas no plano prático da vida”.22

Qual é, pois, a característica pedagógico-pastoral de Dom Bosco? Insere-se na inesgotável tradição cristã que sempre, mas sobretudo a partir do humanismo, encontrou na educação a via mestra da pastoral juvenil: não se pode separar Dom Bosco desta tradição da Igreja. Ele, porém, certamente agiu com estilo próprio, deixando-o a nós em herança como com­ponente concreto de seu carisma.

As Constituições falam da herança do “Sistema Preven­tivo” em dois artigos 20 e 38 colocados em distintos níveis ainda que, evidentemente, complementares: o primeiro é expressão do “espírito salesiano” que permeia toda a pessoa do educador; o segundo indica o “critério metodológico” da nossa missão para acompanhar os jovens no delicado proces­so de crescimento de sua humanidade na fé.

Podemos afirmar que estes dois artigos nos revelam o segredo que procuramos. No santuário mais íntimo da per­sonalidade de Dom Bosco, como seu primeiro e fecundo dinamismo inspirador, encontra-se “a caridade pastoral” (o “da mihi animas” vivido segundo a índole própria original e inconfundível do Oratório de Valdocco); ela é o “centro e a síntese” do espírito salesiano.23 E na perspicácia e praticidade criativa de Dom Bosco, visando a ação, encontramos também a “inteligência pedagógica” que encarna sua cari­dade pastoral na área cultural da educação, com todas as exigências próprias de uma adequada pedagogia.

A “caridade pastoral” impulsiona e anima continuamente em direção à meta; a “inteligência pedagógica” orienta o método, na escolha das áreas, na elaboração dos itinerários e na prática diária. “Entre ‘impulso pastoral’ e ‘método pedagógico’ escrevia na circular de 1978 pode-se perceber uma delicada distinção útil para a reflexão e o estudo de aspectos setoriais, mas seria ilusório e perigoso esquecer a íntima ligação que os une tão radicalmente entre si a ponto de tornar impossível a separação. Querer separar o método pedagógico de Dom Bosco da sua alma pastoral seria destruir a ambos”.24

Poder afirmar que a arte educativa de Dom Bosco comporta em sua pessoa a união profunda entre “caridade pastoral” e “inteligência pedagógica”, é assegurar para nós a clareza e as prioridades dos compromissos a serem assumidos para realizar as deliberações capitulares e, em particular, para indicar-nos o que pressupõe em nós uma “nova educação”.

Mas procuremos ir além.



Educar evangelizando



Em nossos discernimentos pós-conciliares expressamos a escolha de Dom Bosco com a frase: evangelizar educando e educar evangelizando.25 É uma fórmula que considero feliz e muito expressiva. Todavia requer que seja bem entendida, para não alimentar aspectos separatistas que exaltam um aspecto e esquecem de fato o outro, ou que reduzem um a outro, sem dar importância à dinâmica que há entre os dois e seu relacionamento recíproco.

Faltando este estudo, corre-se o risco de cair em modalida­des de naturalismo (deixando de lado a ação interior da graça e da intervenção do Espírito Santo), ou cai-se no sobrenaturalismo (esquecendo o trabalho humano e a necessária competência pedagógica que requer a arte de educar na fé).

E aqui é bom lembrar uma consideração da Exortação apostólica Catechesi tradendae, onde se convida a refletir sobre a pedagogia original da fé: “Dentre as numerosas e prestigiosas ciências humanas escreveu o Papa , nas quais se manifesta em nossos dias um imenso progresso, a pedagogia é certamente uma das mais importantes. As conquistas de outras ciências biologia, psicologia, sociologia oferecem-lhe elementos preciosos. A ciência da educação e a arte de ensinar são objeto de contí­nuos estudos, para se conseguir uma melhor adaptação e uma melhor eficácia, com resultados também diversos. Ora, há também uma pedagogia da fé, e nunca será demais o que se disser a respeito de que uma tal pedagogia pode contribuir para a catequese. É normal, com efeito, que se adaptem em benefício da educação na fé as técnicas aperfeiçoadas e comprovadas da educação em geral. No entanto, importa ter em conta em cada momento a origina­lidade própria da fé”.26

Penso que esta citação de João Paulo II seja sem dúvida útil para iluminar a nossa prática pastoral e pedagógica e que nos deve acompanhar na releitura de algumas exigênci­as do “Sistema Preventivo”.

Vimos que a educação nunca pode ser estática, porque é chamada a se adequar continuamente às mudanças, tanto do sujeito, quanto da cultura. Ela deve poder oferecer à evangelização uma leitura existencial dos valores humanos a serem permeados; aprofundar a natureza específica desejada pelo Criador com consistência e finalidade próprias; fazer perceber o sentido realista da gradualidade do caminho e ajudar na programação dos itinerários. Deve saber assumir uma postura crítica positiva em relação a certas modalidades de evangelização que podem pecar por ingenuidade e abstração; saber estimular, na progra­mação pastoral, uma indispensável consciência pedagógica para nunca prescindir da fundamental positividade dos valores humanos, ainda que feridos pelo pecado.

Mas educar evangelizando” significa sobretudo nunca esquecer a unidade substancial da pessoa do jovem. A ati­vidade educativa deverá, portanto, manter-se inteligente­mente aberta a quem lhe indica com clareza e objetividade a finalidade suprema da vida humana e ser fundamentada sobre uma antropologia que não exclua o acontecimento histórico de Cristo.

Sabemos, além disso, que a atividade evangelizadora es­tá endereçada à formação do fiel, ou seja, a cuidar da fé deste homem redimido por Cristo, na consciência que a revelação “não é propriamente maturação humana ou resposta de explicação a uma situação problemática; é, ao invés, inicia­tiva de Deus, dom, interpelação, vocação, pergunta. O Evan­gelho, antes mesmo de responder, interroga”.27

O evangelizador não pode renunciar a ser, antes de tudo, “profeta” da Palavra de Deus. Contudo, o Evangelho deve ser inculturado; nunca existiu abstratamente; a Palavra de Deus é chuva que fecunda a terra; a fé não existe como algo separado do resto; o fiel é um ser vivo que inclui na “profissão de ser pessoa”, como dimensão-vértice de sua existência, o de relacionar-se com o irmão Cristo, novo Adão.

Hoje insiste-se em promover o crescimento de uma fé ativa caracterizada pela dimensão social da caridade para o advento de uma cultura da solidariedade; cuida-se de consolidar, em cada um dos crentes, a comunhão e participação eclesial com particular interesse pela Igreja local e uma convicta ade­são ao ministério de Pedro; prioriza-se o envolvimento ativo do laicato privilegiando os jovens para que sejam verdadei­ramente “protagonistas da evangelização e artífices da reno­vação social”;28 estimula-se o aumento da sensibilidade em direção aos últimos (pobres, marginalizados, migrantes e mais necessitados em geral); e alimenta-se um maior conhecimento e corresponsabilidade na ação missionária. São todos aspectos que injetam na pastoral uma vivíssima urgência de encarnação concreta na atual condição humana; em outras palavras, trata-se de saber “evangelizar educando”.

A atividade educativa, por sua vez, encontra no Evange­lho uma ajuda formativa para o amadurecimento da liberda­de e da responsabilidade, um apoio na busca de identidade e de sentido, um guia sábio para a formação da consciência, um modelo sublime para a autenticidade do amor, um horizonte mais claro e trabalhoso para a dimensão social da pessoa, uma mais vasta modalidade de intervenção e de serviço no comum caminho para o Reino.

A dignidade da pessoa é elevada, na interação com a fé, ao vértice de seu caráter criatural de “imagem de Deus” com um destino transcendente que dá novo impulso a todos os direi­tos humanos.

Além disso, o educador, no próprio processo de crescimen­to da pessoa, torna mais consciente a atividade pastoral; aliás, poder-se-ia dizer que a “educa” para oferecer oportuna­mente ao crescimento pessoal “um suplemento de alma”. Assim as específicas contribuições da evangelização (escuta da Palavra de Deus, oração e liturgia, partilha da comu­nhão eclesial, participação ativa nos compromissos da cari­dade) podem ser vividos, sem serem desviados, também como “mediações educativas” que estimulam, promovem e sustentam o autêntico crescimento da pessoa.

A experiência pedagógica de Dom Bosco, que lhe mereceu o título de Educator princeps, demonstrou na prática que tantos elementos eclesiais da fé (frequência aos sacramen­tos, devoção a Nossa Senhora, compromisso apostólico), além de serem meios para viver cristãmente, são também media­ções altamente educativas, que podem levar a “saborear” as riquezas da liberdade e da responsabilidade. Eles res­pondem magnificamente à busca de sentido e de identidade que ajudam a desvendar os verdadeiros valores no emara­nhado do pluralismo.

A preocupação evangelizadora de Dom Bosco, escreveu-nos o Papa, “não se reduz à só catequese, ou à só liturgia, ou àqueles atos religiosos que pedem um explícito exercício da fé e a ela conduzem, mas atinge todo o vasto setor da condição juvenil. Situa-se, pois, no interior do processo de formação humana, consciente das falhas, mas também otimista em relação ao progressivo amadurecimento, na convicção de que a palavra do Evangelho deve ser semeada na realidade do viver cotidiano para levar os jovens a se comprometerem generosamente na vida. Por viverem eles uma idade peculiar em sua educação, a mensagem salvífica do Evangelho deverá sustentá-los ao longo do processo educativo, e a fé tornar-se elemento unificador e iluminador de sua personalidade”.29

O nosso Fundador estava convencido de que a educação do “honesto cidadão” está alicerçada na formação do “bom cristão”; aliás, afirmava que “só a religião (ou seja, a fé cristã) é capaz de iniciar e completar a grande obra de uma verda­deira educação”.30

Sem dúvida sua mensagem pedagógica escreveu-nos o Papa requer ainda ser aprofundada, adaptada, renovada com inteligência e coragem, por causa das mudanças dos contextos socioculturais, eclesiais e pastorais... Todavia o essencial de seu ensinamento permanece, as peculiaridades de seu espírito, suas intuições, seu estilo, seu carisma não desaparecem, porque inspirados na transcendente peda­gogia de Deus”.31



Relendo o “Sistema Preventivo”



O CG23 é, em sua totalidade, um insistente convite para aprofundar os critérios pedagógico-pastorais do “Sistema Preventivo”, concentrando a atenção em alguns elementos fundamentais na busca daquilo que deverá ser para nós a “nova evangelização”. O Papa lembrou-nos que o trabalho de Dom Bosco “representa, em certo sentido, o resumo de sua sabedoria e constitui aquela mensagem profética, que ele deixou aos seus e a toda a Igreja”.32

Educação e evangelização interagem, no “Sistema Pre­ventivo”, em íntima e harmoniosa reciprocidade. Encontramos a explica­ção disso na intuição de que o trabalho de Dom Bosco é uma “arte pedagógico-pastoral”. Ele traduziu a ar­dente caridade do seu ministério sacerdotal num projeto concreto de educação dos jovens na fé.

A arte, como dizíamos, precisa atingir diretamente a realidade objetiva para incidir sobre ela na busca de sentido, de beleza, de sublimação. É uma forma de atividade do homem genial; exalta seu talento criativo e a sua expressividade; por ela, o artista modifica também a si mesmo enquanto realiza seu trabalho. O que o leva a agir assim é um fogo interior, uma inspiração ideal, uma paixão de seu coração, iluminado pelo toque da genialidade. Com justiça João Paulo II chamou Dom Bosco-Educador “gênio do coração”.

Vimos que este fogo interior chama-se “caridade pasto­ral”: um amor apostólico marcado pela predileção aos jovens; um amor que estimula a “inteligência pedagógica” a se traduzir concretamente em itinerários educativos.

Deste estímulo interior e desta intuição pedagógica nas­ceu o “Sistema Preventivo”. Não se trata de uma fórmula estática e quase mágica, mas de um conjunto de condições que habilitam à paternidade e maternidade educativa. Veja­mos algumas das mais significativas, alicerçadas na fideli­dade ao Fundador, cujo carisma é por natureza permanente e dinâmico, portanto em crescimento vital. Na verdade, um dos importantes princípios-orientações de Dom Bosco diz: “É preciso conhecer os nossos tempos e adaptar-nos a eles”.33

Hoje estamos envolvidos na guinada antropológica, mas não nos afoguemos num antropocentrismo empobrecedor.



a. A criatividade do “artista”. A tarefa de educar evangelizando” supõe em quem a realiza uma condição básica absolutamente indispensável. Percebemo-la clara­mente em Dom Bosco: ela é ao mesmo tempo “impulso pastoral” e “inteligência pedagógica”, intimamente interli­gadas pela “graça de unidade”. Trata-se de uma espécie de paixão apostólica, uma genialidade pastoral, visando a fé dos jovens. O clima atual de secularização, em que também o desenvolvimento das ciências da educação segue mais de uma vez o itinerário minado por infiltrações ideológicas, é uma provocação para a nossa consagração apostólica.

Como na arte, os princí­pios metodológicos têm extraordinária importância; a inteligência pedagógica é chamada a dar um tom especial, a imprimir uma fisionomia própria à carida­de pastoral. Em Dom Bosco, o princípio metodológico básico pa­ra a ação do “artista” da educação foi “a amabilidade”: construir os alicerces da confiança e da amizade mediante a exigente ascese do “fazer-se amar”. O “Sistema Preventivo” comporta a mística” da caridade pastoral e a “ascese” da amabilidade.

De aí nasce o sentido de “paternidade espiritual” que, embora se dirija a muitos, preocupa-se com cada um com interesse e orientação pessoais em clima de família.

O Capítulo lembra-nos que esta caridade pedagógica não é só individual, mas deve ser característica da comunidade local, porque ela é afinal o sujeito primeiro da nossa missão. Portanto, é condição fundamental para o sucesso da “nova evangelização” que cada comunidade seja verdadeiramente “sinal de fé” e “ambiente de família” para se tornar “centro de comunhão e participação”.34

A criatividade do “artista” está, portanto, alicerçada numa vivida espiritualidade salesiana!



b. Em solidariedade com os jovens. O apelo para “ir ao encontro dos jovens” é a “primeira e fundamental urgência educativa”,35 realizada por uma convivência que é expressão de solidarie­dade real. O jovem (já o repetimos várias vezes) é “sujeito ativo” do trabalho educativo e deve sentir-se verdadeiramente envolvido como protagonista na obra de arte a ser executada.

A experiência de Dom Bosco com Domingos Savio (a obra-prima), ou com Miguel Magone e Francisco Besucco, é tam­bém sugestiva e estimulante. Ele não agia com eles com intento de “sedução educativa”, mas por corresponsabilidade. Nisto guiava-o a convicção do primado da pessoa do jovem; portanto, do valor essencial de sua liberdade e da importância de seu protagonismo. Na integridade harmoniosa da pessoa via a indispensá­vel interação entre educação e evangelização; e na liberdade fundamentava a convicção que a obra do educador não pode substituir a do educando, mas sim motivá-la e fortalecê-la.

É nesta espécie de pacto educativo compartilhado que se formava o ambiente sereno e alegre, tornando fecunda toda atividade. Hoje, mais do que nunca, torna-se necessária esta solidariedade educativa, quando o ambiente da família, da escola, da sociedade e da paróquia não está suficiente­mente em consonância com as exigências formativas do crescimento juvenil.



c. Com o olhar fixo no Homem novo. A arte educativa, como toda arte, visa pela própria natureza à plena realização da finalidade pela qual age. Não se faz arte sem uma finalidade; seu dinamismo vivo está concentrado na energia com que se vai para a meta, sem cansar-se e desistir nas etapas intermediárias. O esquecimento do fim último, o desvio em sua escolha tira o sentido de toda obra de arte. Na ordem prática, o fim último tem tanta importância quanto a de um princípio absoluto e evidente na ordem especulativa.

Ora, objetivamente por convicção de fé o fim ou a meta que visa a obra educativa é Cristo, o “Homem novo”; todo jovem é chamado a crescer n’Ele e à sua imagem. O CG23 indica com clareza qual é a “meta global”, ou seja, “o tipo de homem e de cristão que deve ser promovido nas concretas circunstâncias da nossa vida e da nossa sociedade... A meta é a de construir a própria personalidade tendo Cristo como ponto de referência no plano da mentalidade e da vida.36

Nunca entenderá Dom Bosco educador nem sua pedagogia (costumava afirmar o P. Alberto Caviglia) quem não partir deste princípio metodológico da consciência clara do fim último e de sua presença constante ao longo do caminho a ser percorrido.

Surgem hoje de diferentes posições, renovadas contes­tações a esta finalidade última; de laicistas, é fácil ouvir que a educação humana não precisa de nenhum adjetivo que a qualifique, nem do adjetivo “cristão”; ou, no campo das grandes religiões, faz-se notar que cada uma delas tem a sua palavra a dizer sobre a finalidade última do homem.

Não se trata de polemizar, mas de estar convencidos de que o acontecimento-Cristo não é simplesmente a expres­são de uma formulação “religiosa”, mas um fato objetivo da história humana que se refere concretamente a um indivíduo da espécie e que dá sentido definitivo à própria história. Toda pessoa precisa de Cristo e vai em direção a Ele, ainda que o não saiba. É direito fundamental de cada um chegar até Ele; impedi-lo de realizar isso é, de fato, ferir um direito humano. A direção para Cristo consciente ou incons­ciente, entendida ou não é intrínseca à natureza do homem, criado objetivamente para a ordem sobrenatural, para a qual o projeto-homem foi pensado com vistas ao mistério de Cristo, e não o contrário.

Esta consideração deve ser uma convicção irrenunciável no coração e na mente de todo educador que se inspira no “Sistema Preventivo”; sustentá-lo e o iluminará também nas situações de contexto adverso.

O eficientismo de hoje e o relativismo religioso costumam concentrar-se mais sobre os meios do que sobre a finalidade, e isto pode prejudicar a personalidade dos jovens.



d. Para uma obra de preventividade. João Paulo II lembrou-nos que a “preventividade” em Dom Bosco é “a arte de educar positivamente, propondo o bem com experiências adequadas e envolventes, capazes de atrair por sua nobreza e beleza; a arte de fazer crescer os jovens em seu interior, apoiando-se sobre a liberdade pessoal, enfrentando os condicionamentos e os formalismos exteriores; a arte de conquistar o coração dos jovens para incentivá-los com alegria e com satisfação para o bem, corrigindo os desvios e preparando-os para o futuro através de uma sólida formação do caráter”.37

Trata-se de chegar aonde nascem e se fundamentam os comportamentos para desenvolver uma personalidade capaz de decisões próprias e de discernimento do mal para não se deixar envolver pelos desvios ambientais e pelas inclina­ções das paixões. Nesta obra preventiva, acompanhada por uma cordial e constante convivência com os jovens, intervêm simultaneamente a pedagogia e a fé de maneira concreta e operacional, não retórica e palavrosa; com insistência gradu­al, com revisões e estímulos, com humildade e realismo, com ajudas de ordem natural e sobrenatural, considerando com paciência pedagógica que “o ótimo é inimigo do bom”.



e. Unindo num único foco de luz “razão” e “religião”. Impulsionado pela caridade pastoral e guiado pela metodologia da amabilidade, o educador-pastor coordena pedagogicamente as grandes luzes formativas que brotam tanto da razão como da fé. Elas devem convergir juntas para fazer crescer a personalidade do jovem, assegurando luzes para a inteligência e meios de ajuda concreta para a vontade; “iluminar a mente para tornar bom o coração”.38

Aqui, desenvolve um papel especial a interação entre educação e evangelização, a convergência entre natureza e graça, entre cultura e Evangelho, entre vida e fé. E aqui insere-se também a peculiar eficácia educativa do conheci­mento e frequência dos Sacramentos. É bom acrescentar uma breve reflexão sobre isso.

De maneira alguma, os sacramentos são rebaixados da ordem do mistério ao de simples meios pedagógicos; pensa-se, porém, que a eficácia divina do acontecimento-Cristo possui uma dimensão também no trabalho educativo. Cristo não é só meta global e vértice do homem novo, mas é também “o caminho e a vida”, cuja intrínseca eficácia entra também no nível metodológico das mediações de crescimento da pessoa.

Na verdade, o “Sistema Preventivo” é todo permeado pelo cuidado de pôr em consonância a atividade do sujeito (“opus operantis”) com a eficácia intrínseca do sacramento (“opus operatum”). E como o educador-pastor está convencido, pela fé, da eficácia da liturgia cristã, ele cuida pedagogicamente da qualidade e dos comportamentos humanos que predispõem adequadamente a participar da mesma.

Dom Bosco considerou sempre a Eucaristia e a Penitência como as duas colunas de sua atividade pedagógico-pastoral.



f. Com atenção criativa voltada para o tempo livre. O Capítulo afirma que “a experiência de grupo é elemento fundamental da tradição pedagógica salesiana”.39 A obra educativa de Dom Bosco está marcada pela iniciativa oratoriana; ela comporta sentir-nos solidários com os jovens, começando a dar valor educativo ao seu tempo livre. É uma experiência formativa típica que não vai contra a educação formal e suas instituições, mas as precede, muitas vezes as requer, e neste caso as permeia infundindo nelas um pecu­liar caráter de envolvimento juvenil. A criatividade oratoriana permanece ainda hoje para nós “critério perma­nente de discernimento e renovação de toda atividade e obra”.40

Nesta praxe oratoriana ocupam um espaço privilegiado os grupos juvenis com sua variedade de manifestações; neles se favorece a comunicação interpessoal e o protagonismo; de fato, eles constituem muitas vezes o único elemento estrutural para chegar aos valores da educação e da evangelização.

O Capítulo falou-nos do “Movimento Juvenil Salesiano”, formado por grupos e associações “que, embora mantenham sua autonomia organizativa, se inserem na espiritualidade e na pedagogia salesiana”.41

Também o Papa lançara um vibrante apelo, em 1979, lembrando-nos a urgente necessidade de renascimento dos válidos modelos de associações juvenis católicas.42

Eis uma maneira bem concreta para reler o “Sistema Preventivo” à luz do critério oratoriano. A experiência demonstra-nos que o trabalho com os grupos e associações é uma iniciativa a ser incrementada e coordenada, “aberta, de círculos concêntricos, que une muitos jovens: dos mais distantes, para os quais a espiritualidade é uma referência apenas percebida mediante um ambiente em que se sentem acolhidos, até aos que, de maneira consciente e explícita, fazem própria a proposta salesiana. Estes últimos constitu­em um ‘núcleo animador’ de todo o movimento”.43

Evidentemente, sobretudo para o “núcleo animador”, será necessário aprofundar e explicitar os valores da es­piritualidade juvenil tão querida ao coração de Dom Bosco.



g. Em vista do realismo da vida. Uma das caracte­rísticas da atividade pedagógica de Dom Bosco é sua praticidade, ou seja, querer habilitar os jovens ao realismo da vida, seja social, seja eclesial. Na prática educativa a teoria não é suficiente. É preciso unir à formação da mente e do coração, a aquisição de habilidades práticas e de relacionamento, espírito de iniciativa, sincera capacidade de pequenos e grandes sacrifícios, inclinação pessoal para o trabalho responsável, aprendizagem de serviços e profissões, afinal, um treinamento ao realismo da existência com crescente sentido de solidariedade e colaboração.

Tudo isso para a formação do “honesto cidadão”, ligada ao interesse pelas atitudes de comunhão e participação nos compromissos da comunidade eclesial (associações, grupos, serviços apostólicos).

A praticidade, portanto, interessa-se em treinar os jovens em atitudes sociais e eclesiais concretas, favorecendo o crescimento da pessoa, com modalidades vividas, na dire­ção do bem comum e da experiência de Igreja.



Em todas estas exigências e condições pedagógicas que indicamos, continua central a força da “graça da unidade” que faz convergir harmoniosamente em mútua interação o educar e o evangelizar.

Para tentar compreender cada vez melhor os dinamis­mos, a fé nos impulsiona a penetrar o mistério de Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus; nele vibra uma mis­teriosa unidade entre a ordem da criação (com o dinamismo próprio dos valores humanos) e a encarnação do Verbo com as riquezas próprias de sua essência divina. Há em Jesus Cristo uma harmoniosa organicidade existencial que se apoia sobre duas naturezas inseparáveis. S. Tomás de Aquino soube analisar profundamente esta inefável convergência unitária: aprofundou o princípio da unidade da pessoa distinguindo os dinamismos qualificadores das duas naturezas.44

Não é que no nosso caso se aplique univocamente o que é próprio e exclusivo de Jesus Cristo; porém o mesmo Concílio Vaticano II compara, segundo “uma não leve analogia”, as realidades eclesiais dos fiéis ao mistério sublime do Verbo encarnado.45



Santificar-se educando



Refletimos em outra circular sobre a espiritualidade salesiana para a “nova evangelização”.46 O “novo ar­dor”, de que falou o Papa, significa um forte impulso da “interioridade apostólica”, que está na raiz da nossa índole própria na Igreja.47 Aqui devemos acrescentar que a espiri­tualidade salesiana representa para nós também a força da síntese santificadora da “nova educação”.

O CG23 nos assegura que a educação é “o lugar privile­giado do nosso encontro com Deus”.48 Comporta uma especial espiritualidade apostólica, que é simultaneamente pastoral e educativa, “sempre atenta ao contexto do mundo e aos desafios da juventude: exige flexibilidade, criatividade e equilíbrio, e procura com seriedade as competências pe­dagógicas apropriadas. Na raiz, está aquela consagração apostólica”49 “que, no interior de seu respiro pelas almas, assume os valores pedagógicos e vive-os como expressão concreta de espiritualidade”.50 É não são espiritualidade para a educação em geral, mas verdadeira espiritualidade da educação na fé!

Recordemos o que nos escreve João Paulo II: “Gosto de considerar em Dom Bosco sobretudo o fato de que ele realiza sua pessoal santidade através do trabalho educativo vivido com zelo e coração apostólico, e que sabe propor, ao mesmo tempo, a santidade como meta concreta de sua pedagogia. Exatamente este intercâmbio entre ‘educação’ e ‘santidade’ é o aspecto característico de sua figura: ele é um ‘educador santo’, inspira-se num ‘modelo santo’ Francisco de Sales , é discípulo de um ‘mestre espiritual santo’ José Cafasso , e sabe formar entre seus jovens um ‘aluno santo’ Domingos Savio”.51

As Constituições falam, de fato, do “Sistema Preventivo” como “uma experiência espiritual e educativa”, que nos foi transmitida por Dom Bosco “como modo de viver e trabalhar para comunicar o Evangelho e salvar os jovens, com eles e por meio deles. Impregna o nosso relacionamen­to com Deus, as relações pessoais e a vida de comunidade no exercício de uma caridade que sabe fazer-se amar”.52

O Fundador ensina-nos que devemos santificar-nos edu­cando!

A ação educativa salesiana pede que se dedi­quem amplos espaços e tempos adequados à convivência com os jovens, sobretudo hoje pela complexidade e problematicidade de seu contexto. Experimentar esta convi­vência a mais contínua e intensa possível é elemento básico em nosso trabalho de santificação e também a razão princi­pal do nascimento e crescimento das vocações.

O P. Auffray, autor da conhecida biografia de Dom Bosco (que mereceu o aplauso da prestigiosa Academia francesa), sintetizava esta modalidade pedagógica com a frase: “estar­mos lá (com os jovens) todos e sempre: tous et toujours!”.

Isto exige um coração repleto de “caridade pastoral” e uma mente rica de “inteligência pedagógica”, uma solidariedade espiritual e educativa vivida nos momentos comuns, cotidianos, como nos momentos difíceis, críticos ou na­queles cheios de glória. O amor educativo pede que existam válidas competências profissionais e de relacionamento para realizar a obra de promoção humana e cristã. Compreende-se aqui todo o sentido ascético-místico de quanto Dom Bosco dizia de si: “por vós estudo, por vós trabalho, por vós eu vivo, por vós estou disposto até a dar a vida”; “basta que sejais jovens para que eu vos ame muito”.53 Ele “não deu passo, não pronunciou palavra, não pôs mão a empreendimento que não visasse à salvação da juventude”.54

Na mente do Fundador seus filhos não deveriam ser pessoas dedicadas só “profissionalmente” aos jovens, mas deveriam fazer do seu trabalho educativo o “espaço espiritu­al” e o “centro pastoral” da própria vida, da própria oração, do próprio profissionalismo, da vivência cotidiana. Estão convidados a formarem uma espiritualidade que não separe o próprio ser do próprio agir, a finalidade evangelizadora da edu­cativa e vice-versa, e una o crescimento da própria santidade com uma qualificada atividade pedagógica. Aqui está o segredo da genialidade do “artista” educador cristão. A caridade pastoral do espírito salesiano traz consigo a muitas vezes citada e preciosa “graça de unidade”, da qual nos disse o Papa que “é fruto do poder do Espírito que assegura a inseparabilidade vital entre união com Deus e dedicação ao próximo, entre interioridade evangélica e ação apostólica, entre coração orante e mãos operantes... A sua divi­são abre um perigoso espaço para aqueles ‘ativismos’ ou ‘intimismos’ que constituem uma tentação insidiosa para os Institutos de Vida Apostólica. No entanto, as secretas rique­zas, que esta ‘graça de unidade’ traz consigo, são a confirma­ção explícita... que a união com Deus é a verdadeira fonte do amor operoso em favor do próximo”.55

Nesta perspectiva de espiritualidade, não só se chega à fundamental confiança do “nada te perturbe”, mas também se vive cotidianamente com aquela esperança que “acredita nas qualidades naturais e sobrenaturais” dos jovens e que sabe colher “os valores do mundo” e sabe afastar o “lamentar o próprio tempo”.56 Uma espiritualidade feita de otimismo e de alegria, vivida no trabalho e na temperança, que reproduz uma fisionomia de “pessoas em festa”, muito laboriosa e ativa, criativa e flexível, firme muna tradição, mas dinamicamente moderna, fiel à suprema novidade do Cristo e aberta aos valores culturais emergentes.57

Sem dúvida, essa espiritualidade é fruto de empenho, dedicação, reflexão, estudo, busca, cuidado contínuo e vigilante, mas está vinculada à constante união com Deus, que se traduz em oração e ação, que é mística e ascese. Assim leva a santificar não só a si próprio, mas também os jovens. As Constituições nos dizem que o testemunho da nossa espiritualidade “revela o valor único das bem-aventuranças, e é o dom mais precioso que podemos oferecer aos jovens”.58

Entretanto, a nossa santificação é também dom que nos vem dos jovens, porque “nós acreditamos que Deus ama os jovens... que o Espírito se torna presente nos jovens e por meio deles quer edificar uma autêntica comunidade humana e cristã... Nós acreditamos que Deus nos espera nos jovens para oferecer-nos a graça do encontro com Ele e para nos dispor a servi-Lo neles, reconhecendo sua dignidade e educando-os à plenitude da vida”.59

Com eles poder-se-á percorrer o caminho da fé com uma espiritualidade educativa comum aos educadores e jovens, ainda que em níveis e graus diferentes; ela traduzir-se-á “numa pedagogia realista da santidade... A originali­dade e a audácia da proposta de uma ‘santidade juvenil’ é intrínseca à arte educativa de Dom Bosco, que pode com exatidão ser definido ‘mestre de espiritualidade juvenil’.60

É nesta espiritualidade que o Capítulo concentra a atenção de todos, salesianos e jovens, para juntos serem artífices da síntese vital entre cultura e Evangelho, entre vida e fé, entre promoção humana e testemunho cristão. Precisamos saber santificar-nos levando em conta as novidades dos tempos, dedicando-nos com interesse à “nova evangelização” exatamente porque peritos da “nova educação”, com a arte de Dom Bosco que soube coordenar felizmente sua mútua interação.

Dom Bosco convida-nos a fazer da educação dos jovens na fé a nossa própria razão de ser na Igreja, ou seja, nosso modo de participar de sua santidade e ação: nela seremos santos se formos “missionários dos jovens”!



Estimulados pela maternidade eclesial de Maria



Queridos irmãos, quando cada um de nós pensa no nascimento e crescimento da própria fé pessoal, constata que ela é historicamente ligada a concretas mediações pedagógi­cas: a família, alguma pessoa amiga, a comunidade cristã de sua terra. Certamente a fé é um dom do Espírito do Senhor; sem a iniciativa divina não teria surgido em nós a fé. Mas se pensarmos em nosso batismo e, em geral, naquele das crian­ças ao longo de toda a tradição da Igreja, então ficamos logo convencidos de que o dom da fé está normalmente acompa­nhado pela atividade educativa e pelo testemunho vivo da mãe e do pai, daquele padre, daqueles fiéis, daqueles religi­osos e religiosas.

É um presente que passa através da colaboração humana para assegurar o nascimento e o desenvolvimento de uma linfa vital muito preciosa.

Tal reflexão nos faz perceber, por um lado, a interação entre solicitude humana e dom da fé, e, por outro, destaca a importân­cia da presença de um oportuno e válido cuidado pedagógico-pastoral que poderíamos qualificar sobretudo “materno”.

Na conclusão da várias vezes citada carta que nos escre­veu em 1988, o Papa afirma: “Com a vossa obra, caríssimos educadores, vós estais cumprindo um maravilhoso exercício de maternidade eclesial”.61

Eis uma feliz expressão que traduz plasticamente em que consiste a “arte” de educar na fé: um exercício de “materni­dade eclesial”!

Na encarnação do Verbo, Maria não é a causa da união hipostática de Cristo, mas é verdadeiramente a Mãe de Jesus; gera-o, ajuda-o a crescer como homem na história e educa-o segundo a cultura de seu país. Deve-se distinguir, em Jesus e na ação maternal de Maria, aspectos bem diferentes entre si, mas existe uma unidade orgânica de vida que faz a Igreja proclamar que Maria é “Mãe de Deus”.

Há muito que meditar sobre esta verdade.

Nós nos entregamos a Maria e agora nos dirigimos a Ela para impetrar seu solícito auxílio nos trabalhos da arte educativa. Ela sugeriu a Dom Bosco o “Sistema Preventivo”.

O itinerário de fé nos disse o Capítulo inicia com a proteção maternal de Maria”.62 Afirma ainda que “a presença maternal de Maria inspira intensamente todo o percurso (do longo caminho) em seu conjunto: em cada área... Nela os caminhos do homem se cruzam com aqueles de Deus”;63 e lembra também que a espiritualidade salesiana “dá um lugar privilegiado à pessoa de Maria... No termo de sua vida, Dom Bosco pôde afirmar com certeza: ‘Maria fez tudo’”.64

Pois bem, se vivemos com sinceridade a nossa entrega a Ela, acontecerá o mesmo em cada um de nós, em cada comu­nidade local, em cada Inspetoria. O importante é saber viver com sinceridade o aspecto mariano da nossa espiritualidade.

O Santo Padre faz votos para que isso aconteça: “Invoco sobre todos vós a contínua proteção de Maria Auxiliadora, Mãe da Igreja; Ela seja para vós, como o foi para S. João Bosco, Mestra e Guia, a Estrela da nova evangelização!”.65

É Maria que nos convida a vivermos e testemu­nharmos aquela interioridade apostólica que caracteriza o Salesiano na Igreja; da força de unidades dessa espiritualidade brotarão tantas iniciativas felizes e fecundas para “educar os jovens”.

Fraternais saudações a todos e a cada um, na alegria de nos sentirmos unidos num comum grande empenho. Dom Bosco interceda.

Cordialmente no Senhor,

P. Egídio Viganò

Reitor-Mor



1 IP 13.

2 CG23 332.

3 Cf. CG23 4.

4 Cf. CG23 348.

5 Cf. Const. 31.

6 Cf. CG23 45-63.

7 Cf. CG23 64-74.

8 Cf. CG23 75-88.

9 CG23 87.

10 Cf. CG23 182-191.

11 Cf. CG23 192-202.

12 Cf. CG23 203-314.

13 Centesimus annus 53.

14 A. BALLESTRERO, Dio, l’uomo e la preghiera, SEI, Turim, 1991, p. 14-15.

15 Cf. ACG 331, p. 14-15.

16 RH 8.

17 GS 22.

18 JOÃO PAULO II, Constituição apostólica sobre as universidades católicas: ECE 44.

19 Const. 38.

20 Mt 28,19-20.

21 ACS 290.

22 CG21 14.

23 Cf. Const. 10.

24 ACS 290, p. 12.

25 Cf. CGE 274-341; CG21 80-104.

26 CT 58.

27 ACS 290, p. 35.

28 ChL 46.

29 IP 15.

30 MB III, 605. Cf. VII, 762.

31 IP 13.

32 IP 13.

33 MB XVI, 416.

34 Cf. CG23 215-218.

35 IP 14.

36 Cf. CG23 112-113.

37 IP 8.

38 JOÃO BOSCO, Storia Sacra per uso nelle scuole, Prefácio, Turim, Speirano e Ferrero, 1847 – Opere Edite, v. III, p. 7.

39 CG23 274.

40 Const. 40.

41 Cf. CG23 274-275.

42 Cf. ACS 294.

43 CG23 276.

44 Cf. Summa theologica IIIa, qq. 18 e 19.

45 Cf. LG 8.

46 Cf. ACG 334.

47 Cf. ACG 331, p. 27-32.

48 CG23 95.

49 Const. 3.

50 ACG 334, p. 35.

51 IP 5.

52 Const. 20.

53 Cf. Const. 14.

54 Cf. Const. 21.

55 CG23 332.

56 Cf. Const. 17.

57 Cf. Const. cap.

58 Const. 25.

59 CG23 95.

60 IP 16.

61 IP 20.

62 CG23 121.

63 CG23 157

64 CG23 177.

65 CG23 335.

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