251-300|pt|297 - O nosso compromisso africano

Egídio Viganò


O NOSSO COMPROMISSO AFRICANO”


Atos do Conselho Superior


Ano LXI – julho-setembro, 1980


N. 297



A morte do P. Juvenal Dho e a sucessão. – “O NOSSO COMPROMISSO AFRICANO”. – O Reitor-Mor no continente africano. – A hora da África. – O “encontro” do Papa com a alma africana. – Uma “reserva’ de valores. – A “africanização” da Igreja. – A nova presença do Carisma de Dom Bosco. – O nosso Fundador viu-nos na África. – Estimulante apelo a toda a Família Salesiana. – Conclusão.


Roma, 24 de junho de 1980




Queridos irmãos

na tarde de 17 de maio p. p., ao voltar de Butare para Kigali, em Ruanda, recebi pelo rádio a triste notícia do falecimento repentino do Conselheiro para a Formação, o pranteado PADRE JUVENAL DHO. Podeis imaginar a surpresa e a dor. Com o Regional, P. Vanseveren, e meu colega de viagem, o coadjutor Renato Romaldi, regressamos a Roma, mal chegando a tempo para os solenes funerais na Casa Geral.

A morte do Conselheiro para a Formação é para nós uma grave perda. Fez-nos meditar muito!

Pensamos no testemunho que nos deixou o querido P. Dho: vocação missionária, consa­gração convicta e alegre, bom coração, sabedoria de discernimento espiritual, compe­tência nas ciências humanas, serviço constante na educação dos jovens especialmente no setor da pastoral vocacional, numerosos e qualificados serviços em vários setores da vida eclesial, dedicação prudente e generosa à formação dos irmãos segundo as últimas orientações capitu­lares. Nesse último campo de trabalho, deli­cado e exigente, para a animação a nível mun­dial da formação inicial e permanente foi que a morte o colheu, como para comprovar, dada a importância do cargo que ocupava, a cora­josa afirmação de Dom Bosco, que seria um dia memorável para a Congregação aquele em que um irmão tombasse no seu sacrificado posto de trabalho.

Pensamos no insondável pla­nos de Deus. Como diferem das nossas progra­mações, dos nossos cálculos e dos nossos desejos! A morte, sobretudo se repentina, e, sobretudo, se paralisa um setor vital do que estamos procurando realizar precisamente para o advento do Reino segundo os planos de Deus, faz-nos meditar com dolorosa profundidade na atitude genuína da nossa fé e no paradoxo da segurança que acompanha nossa esperança.

Pensamos na mamãe do P. Dho, nos seus parentes, nos seus amigos, em nós, colegas do Conselho, nos seus colaboradores do dicastério e em todos os irmãos, que o estimavam e amavam.

Pensamos sobretudo nele, no seu encontro com Cristo, no mistério do além.

E transformamos toda essa abundância de meditação numa prece de louvor, sufrágio e petição.

Convido-vos a todos a que ainda continueis a rezar pelo nosso inesquecível P. Juvenal Dho, pelos seus caros, pela Congregação.

Ele nos acompanhará e ajudará em Cristo a continuar o trabalho e a resolver os problemas que se criaram. De modo particular recordarei continuamente a ele o nosso projeto africano, porque a memória da sua morte está unida à primeira presença do Reitor-Mor na África. É, pois, lembrando o P. Dho, e um pouco tam­bém junto com ele, que desejo falar-vos agora brevemente do nosso “compromisso africano”.

Comunico-vos também a nomeação1 do novo Conselheiro para a Formação, o P. PAULO NATALI. Ele já pertencia ao Conselho Superior como Regional da Itália e do Oriente Médio. Em seu lugar, como Conselheiro Regional, foi nomeado o P. LUÍS BOSONI. A ambos as congratulações, a colaboração e a prece de todos os irmãos.



O nosso compromisso africano



Como vos ia dizendo, estive no grande continente africano (mais de 33 milhões de quilômetros quadrados!). Quis que me acom­panhasse como colaborador o Sr. Renato Romaldi, salesiano coadjutor. Desejava mostrar que chegavam juntos um “padre” e um “coadjutor”, para que dessa maneira se evidenciasse a complementaridade da vocação salesiana da nossa Congregação, que se empenha em fazer crescer o seu carisma naquele continente.

Antes de expor algumas reflexões sobre a viagem, deixai-me formular uma afirmação solene. Ei-la: O Projeto-África é hoje, para nós salesianos, uma graça de Deus!

Disso estou convencido. Queria fazer-vos participar desta convicção.



O Reitor-Mor no continente negro



Em meses passados (fevereiro e maio) pude fazer duas viagens à África. Levou-me a isso o mandato do Capítulo Geral 21: “O relan­çamento missionário requer objetivos concretos, exige a adoção de uma estratégia orientada para os países nos quais a ação missionária é mais urgente. Por isso, no início do segundo centenário da presença salesiana, recordando o desejo profético de Dom Bosco,2 os salesianos, sem excluir a possibilidade de iniciar e desen­volver sua ação missionária em outras regiões promissoras ou necessitadas, empenham-se em aumentar de maneira significativa sua presença na África”.3

No sul do continente, durante a primeira viagem, entrei em contato com os irmãos que já trabalham na república da África do Sul, no reino de Suazilândia e em Moçambique.

No centro do continente, durante a segun­da viagem, pude estar, em Libreville, com os irmãos do Gabão, de Camarões, da Guiné Equatorial e do Congo; depois, em Lubumbashi e em Kigali, com os irmãos do Zaire, de Ruanda e de Burundi. Estive também em Zâmbia e no Quênia.

Pude constatar a validez do trabalho que há anos realizam algumas Inspetorias generosa­mente missionárias: Irlanda, Portugal, França, Espanha, Bélgica.

E pude imaginar e saborear de antemão a novidade de presença exigido pelo Projeto pós-capitular para a África, tanto nas zonas já há tempo assumidas,4 como nas novas presenças que já começam a tornar-se realidade pelo menos em outras oito repúblicas: Angola, Be­nin, Libéria, Senegal, Sudão, Quênia, Tanzânia e Madagascar.

Há atualmente uma só Inspetoria salesiana em todo o continente: a da África Central (Zaire, Ruanda e Burundi) com duas casas de formação para irmãos africanos de vários países: o noviciado e o pós-noviciado em Butare (Ruanda) e a comunidade para os estudantes de teologia em Kansebula (no Zaire). Os que estiveram no último Capítulo Geral conhecem outrossim o primeiro irmão africano mestre de noviços, P. Jacques Ntamitalizo. Além disso, temos ainda dois irmãos africanos bispos: Dom Sebhatleab Worku, na Etiópia, e, recentemente, Dom Basile Mvé, no Gabão.



A hora da África



A África é uma explosão de novidade e futuro. Superada por fim a época colonialista, surgiram muitas novas nações, cujas popula­ções empenham-se em ser verdadeiros protago­nistas da própria história.

Dirigindo-se ao parlamento da Uganda, Paulo VI, onze anos atrás, havia descrito a África como já “emancipada do seu passado e madura para uma nova era”; e em maio passa­do, João Paulo II confirmou no Quênia que “essa nova era começou!”.5 “A África está para adquirir a dimensão que lhe é devida na ordem planetária”.6

Todavia, as multíplices nações africanas, exuberantes de juventude, veem-se assediadas por numerosos problemas, e sentem-se abala­das pelo difícil diálogo entre as suas culturas características, já seculares, e a “nova cultura”. Esse diálogo emerge em toda a parte sob os impulsos da técnica, das ciências e das ideolo­gias. O perigo de plágio e de domínio por parte de sistemas não abertos ao Evangelho é, infe­lizmente, ameaçador e o “materialismo, venha de onde vier, é uma escravidão da qual é pre­ciso defender o homem”.7

Há urgente necessidade de Cristo para que o homem africano cresça integralmente tal na sua realidade!

Uma viagem à África não é tão-somente um deslocamento geográfico e uma descoberta de costumes originais. É também uma espécie de voo na história aos primeiros séculos do cristianismo, quando os povos passaram, diga­mos assim, de uma espécie de Antigo Testamen­to para a Nova Aliança.

É verdade que do II ao IV século houve intensa vida cristã nas regiões mais setentrionais da África: “Vêm à memória os nomes dos grandes doutores e escritores, como Orígenes, S. Atanásio, S. Cirilo, luminares da Escola Alexandrina, e, na outra faixa da margem me­diterrânea africana, Tertuliano, S. Cipriano e sobretudo S. Agostinho, uma das luzes mais refulgentes da cristandade. Lembraremos os grandes santos do deserto, Paulo, Antônio, Pacômio, primeiros fundadores do monaquismo que, a seu exemplo, espalhou-se posterior­mente no Oriente e no Ocidente. E, entre tantos outros, não queremos omitir o nome de S. Frumêncio, Chamado Abba Salama, o qual, consagrado bispo por S. Atanásio, foi o apósto­lo da Etiópia. Esses luminosos exemplos, bem como as figuras dos santos Papas africanos Vítor I, Melquíades e Gelásio I, pertencem ao patrimônio comum da Igreja, e os escritos dos autores cristãos da África são ainda hoje fun­damentais para aprofundar, à luz da Palavra de Deus, a história da salvação. Na lembrança das antigas glórias da África cristã (... cumpre recordar também) a Igreja grega do Patriarca­do de Alexandria, a Igreja Copta do Egito e a Igreja Etiópica, que têm em comum com a Igreja Católica a origem e a herança doutrinal e espiritual dos grandes Padres e Santos, não somente de sua terra, mas de toda a Igreja antiga. Elas fizeram e sofreram muito para conservar vivo o nome cristão na África por entre as vicissitudes dos tempos”.8

Não devemos esquecer que tudo isso é história, e muito importante. A maior parte das jovens nações africanas, porém, está apenas celebrando o primeiro centenário do seu ingresso no cristianismo; se é que esse ingresso não é até mais recente. Portanto, pode dizer-se que há apenas algum decênio se está a realizar a inculturação africana do Evangelho de Cristo ressuscitado. Com velocidade, porém, bastan­te acelerada.

Durante os onze anos transcorridos da viagem de Paulo VI a Kampala à de João Paulo II a Kinshasa, o número dos católicos africanos praticamente dobrou, passando de cerca de 25 milhões a mais de 50 milhões. Cresce e amadurece na África uma novidade eclesial vasta e promissora, em consonância com as grandes perspectivas eclesiais e missiológicas do Vaticano II. Isso levou a rever toda a metodo­logia missionária.

Quase em toda a parte estabeleceram-se Igrejas locais com hierarquia autóctone. Hoje, mais do que “implantar a Igreja”, trata-se de incorporar colaboradores válidos às jovens Igrejas locais, com suas características cultu­rais, a fim de ajudá-las a crescer, fortificá-las na assunção do Evangelho, enriquecê-las dos carismas que o Espírito suscitou na Igreja Universal com vistas a uma vitalidade multifor­me em todos os povos.



O “encontro “ do Papa com a alma africana



O Santo Padre João Paulo II visitou, de 2 a 12 de maio, as Igrejas e as populações de seis países da África central que celebravam o cen­tenário do início da sua evangelização: Zaire, Congo, Quênia, Gana, Alto Volta e Costa do Marfim.

Foi uma viagem histórica para o futuro do cristianismo no continente. A nós salesianos ela é portadora de confirmação mui autorizada do nosso mandato capitular e de lisonjeiras promessas no nosso projeto africano já em andamento.

Nessa viagem apostólica e profética do Papa, queria salientar dois aspectos que sobre­tudo nos devem fazer refletir: a sensibilidade para com os muitos valores humanos da cultura africana e a vontade clara de inculturação do Evangelho e de africanização da Igreja.



Uma “reserva “ de autênticos valores humanos



O Papa constatou com alegria e salientou com profunda intuição a abundância de valores humanos e a extraordinária sensibilidade religiosa dos povos do continente negro. Por isso definiu a África como um grande “campo de trabalho”, “reservatório espiritual do mundo”.

No último dia, ao proferir apaixonadas pala­vras de despedida, em Abidjã, exclamou com comovente afeto: “Adeus agora a ti, África, continente já antes tão amado e que, desde a eleição para a Sé de Pedro, desejava com impa­ciência conhecer e percorrer. Adeus aos povos que me receberam, e a todos os outros aos quais muito me agradaria um dia, se a Provi­dência o permitisse, levar pessoalmente o meu afeto. Muitas coisas aprendi durante este péri­plo. Não podeis fazer ideia de quanto foi ins­trutivo (...). A África pareceu-me vasto campo de trabalho, de todos os pontos de vista, com as suas promessas e também, talvez, com os seus riscos (...). Há um patrimônio original, que é absolutamente necessário salvaguardar e promover harmoniosamente. Não é fácil controlar semelhante ebulição e fazer com que as forças vivas sirvam a um autêntico progresso (...). Não deveis imitar, queridos irmãos e irmãs africanos modelos estrangeiros basea­dos no desprezo do homem ou no lucro (...). Não deveis deixar-vos enganar com as vantagens de ideologias que fazem cintilar diante de vós uma felicidade completa, sempre adiada. Sede vós mesmos!”.9

Frente a esse campo de trabalho, também os outros povos deverão aprender a haurir alguns importantes valores humanos. O Papa enumera-os em várias ocasiões: “seu coração, sua sabedoria, (...) seu sentido do homem, seu sentido de Deus”;10 “forte sentido comuni­tário nos diferentes grupos que constituem a estrutura social”, “propensão inata ao diálogo”, “sentido de celebração expresso em alegria es­pontânea”, “reverência para com a vida”;11 va­riada diversidade “conservada intata pela inegá­vel unidade de cultura”, “concepção do mundo em que o sagrado ocupa lugar central”, “profun­da consciência do laço existente entre o Criador e a natureza”, “espontaneidade e alegria de viver expressas em linguagem poética, canto e dança”, “cultura rica de dimensão espiritual global”. Por isso, “a África é chamada a fazer surgir novos ideais e novas intuições num mundo que demonstra sinais de cansaço e egoísmo”.12

O Papa, entretanto, deve constatar tam­bém “com estupor cheio de tristeza13 as influên­cias provenientes do pecado, da ignorância, da superstição e da importação de sistemas mate­rialistas que adulteram a suspirada libertação do colonialismo e arruínam o verdadeiro cres­cimento cultural: “o materialismo sob todas as formas é sempre causa de escravização para o homem; seja escravização a uma busca sem alma dos bens materiais, seja escravização, pior ainda, do homem, corpo e alma, a ideologias ateias, sempre afinal escravização do homem ao homem”.14

Portanto, nem capitalismo consumista, nem marxismo. É sintomático ver como também em Puebla o Papa e o Episcopado latino-americano advertem o terceiro mundo que a luz do Evangelho não passa por esses dois caminhos mate­rialistas.

Vede como o Papa soube penetrar o “cora­ção” africano, estimulando a atenção e a sim­patia de todos os crentes do mundo.



A “Africanização “ da Igreja



O Santo Padre tratou dos valores da cultu­ra africana ao falar preferivelmente a Presidentes de Estados, Diplomatas, Intelectuais e Univer­sitários. Tratou, porém, da “africanização “ da Igreja sobretudo nos seus discursos aos bispos e aos seus estreitos colaboradores, mormente aos presbíteros.

São dois temas intimamente relacionados que exigem busca, estudo, coragem e fidelidade. A africanização do cristianismo abrange, disse o Papa, “campos vastos e profundos, que não foram ainda suficientemente explorados, quer se trate da linguagem para dar a conhecer a mensagem cristã de modo que atinja o espírito e o coração, quer se trate da catequese, da refle­xão teológica, da expressão mais apta na litur­gia ou na arte sacra, de formas comunitárias de vida cristã”.15

A missão da Igreja é, em toda a parte, fazer discípulos. Ela se esforça por suscitar na África, através do poder do Espírito do Senhor, cristãos autenticamente africanos; Ela tem a força, que lhe vem do Alto, de fazer com que os africanos sejam genuínos discípulos de Cristo ressuscitado, conservando, purificando, transfi­gurando e promovendo todas as riquezas do seu patrimônio cultural específico.

Falando da obra de africanização da Igreja, obra necessária e demorada, o Papa recordou frequentes vezes a ação fundamental e benemé­rita dos missionários, a misteriosa fecundidade dos mártires, a importância das vocações autóc­tones e a urgência de um laicato evangelicamente formado e empenhado nos problemas do desenvolvimento, a indispensabilidade da vida consagrada e religiosa na sua multiformidade de carismas, particularmente o cultivo das voca­ções femininas à consagração como parte viva da promoção da mulher na Igreja e na Socieda­de: “As mulheres africanas — disse o Santo Padre — têm sido, de boa vontade, portadoras de vida e guardas dos valores da família. De maneira semelhante, a consagração das mulheres numa doação radical ao Senhor em casti­dade, obediência e pobreza constitui um meio importante para transmitir às vossas Igrejas locais a vida de Cristo e um testemunho de mais ampla comunidade humana e de comu­nhão divina”.16

João Paulo II reconhece com complacência que a África já se acha a caminho neste pro­cesso, e atingiu certa maturidade: “essa matu­ridade é maturidade de juventude, de alegria, de força, de serem eles mesmos, de encontrar-se nesta Igreja como a sua Igreja. Não é a Igreja importada de fora, é a sua Igreja, a Igreja vivida autenticamente, africanamente”.17

O argumento da inculturação do Evange­lho é central na mensagem magisterial do Papa na África. Mas é um tema delicado e difícil, que exige reflexão contínua e perspicaz e discerni­mento sempre atento. Recordamos algumas afirmações do Santo Padre.

Primeiramente, trata-se de um processo que dura há séculos, que sempre acompanhou e caracterizou as grandes épocas da difusão do cristianismo, desde as origens, ou seja, a come­çar justamente pelos primeiros contatos com a cultura hebraica, com a helenista, com a latina e com as outras posteriores.

  • Deve-se, além disso, notar que a “fé” nunca se reduz simplesmente a uma “cultura”: “o Evangelho, por certo, não se identifica com as culturas e transcende-as todas”.18 De aí a necessidade de individuar os valores transcen­dentes e permanentes do Evangelho, de assegu­rar o primado do mistério de Cristo ressuscita­do frente as propostas de qualquer cultura. Isso tem em qualquer parte um valor definitivo, hoje, ontem e amanhã!

A identidade do Evangelho e o primado do Cristo no contato com cada cultura suscitam problemas novos que emergem do contexto cultural. Eles não são fáceis e requerem inten­sa e madura reflexão. É mister, em cada caso, enfrentá-los e resolvê-los à luz da fé comum da Igreja universal “idêntica para todos os povos e de todos os tempos e de todos os lugares”.19 “Neste processo, as próprias culturas devem ser elevadas, transformadas e imbuídas da ori­ginal mensagem cristã de divina verdade (...) de acordo com a inteira verdade do Evangelho e de harmonia com o Magistério da Igreja”.20

  • A preservação inalterada do conteúdo da fé católica une-se à preocupação de conservar a unidade da Igreja no mundo, passando através de um diálogo leal com a Igreja de Roma e com o Sucessor de Pedro. É esta “importante con­sequência da doutrina da colegialidade, em força da qual cada bispo participa na responsa­bilidade pelo resto da Igreja. Pela mesma razão, a sua Igreja, na qual por direito divino ele exerce a jurisdição ordinária, é também objeto de uma comum responsabilidade episcopal na dúplice dimensão da encarnação do Evangelho na Igreja local: 1º) preservar inalterado o con­teúdo da fé católica e conservar a unidade da Igreja no mundo; e 2º) extrair das culturas expressões originais de vida cristã, de celebra­ções e de pensamento, pelos quais o Evangelho se radica no coração dos povos e das suas culturas”.21

  • É preciso lembrar, portanto, que a inculturação é guiada por grandes critérios de autenti­cidade que implicam também limites concretos; eles excluem uma assunção indiscriminada de qualquer modalidade cultural e não permitem que a inculturação equivalha a um reducionismo de regionalização ou nacionalismo, ou seja, a um empobrecimento da universalidade da fé católica e da comunhão plena de todas as Igrejas com Roma e entre si.

  • Enfim, a propósito de africanização da Igreja, é indispensável constatar também a situação histórica concreta de hoje, que exige uma passagem da época missionária de funda­ção (“implantatio Ecclesiae”), para a hora das jovens Igrejas locais empenhadas numa pene­trante e íntima evangelização das próprias culturas. Passou-se da época “fundacional” das missões ao delicado trabalho de “evangelização íntima” por obra das Igrejas locais! Se é ver­dade que a fé católica não se identifica com nenhuma cultura, é também importante e urgente reconhecer que o “Reino que o Evan­gelho anuncia é vivido por homens profunda­mente ligados a uma cultura; a construção do Reino não pode deixar de haurir elementos das culturas humanas”.22 E isso se faz justamente através da mediação das Igrejas locais.

Essa última observação sobre a hora da Igreja local na África tem uma projeção concreta sobre os critérios de presença e ação dos missionários, hoje, e, em particular, sobre o nosso empenho pós-capitular de fazer-nos pre­sentes na África, como carisma eclesial para a evangelização da juventude.



A nova presença do carisma de Dom Bosco



Quis lembrar alguns aspectos mais caracte­rísticos do “encontro” do Papa com a África, porque eles fornecem bastante luz para o nosso modo de ir ao continente negro, de lá estar e trabalhar. Fazemo-nos presentes com o fito de colaborar com aquelas jovens Igrejas, inserindo nelas, em forma vital e estável, o carisma de Dom Bosco. Carisma muito adequado às necessidades daqueles povos. Pensei muitas vezes, em minha viagem, que a juventu­de africana, tão numerosa e necessitada, tem mesmo um urgente direito à vocação da Famí­lia Salesiana. Ouvi em Ruanda, durante a ho­milia de um bispo, que a África e Dom Bosco são feitos uma para o outro, e que a vocação salesiana deverá, no futuro, ser inseparável da pastoral juvenil africana.

Há no continente uma explosão demográ­fica de juventude vivaz, intuitiva e inteligente, dócil, feliz de viver, rica de sentimentos, incli­nada à música e à arte, profundamente impreg­nada de religiosidade, ansiosa de formação, descuidada por falta de estruturas sociais ade­quadas (vi, com muita pena, preso num cárcere para menores, e parecia-me inacreditável, um menino de 6 anos!). A juventude está exposta a muitos desvios, à ociosidade, à ignorância, à miséria material e moral. Tem muito urgente necessidade de ajuda.

O carisma de Dom Bosco é feito justamen­te, como dizia antes, para colaborar com as Igrejas locais na evangelização da juventude, formando “honestos cidadãos e bons cristãos”. Cem anos faz, a vocação salesiana rumava para a América Latina e lá se estabelecia de maneira vigorosa. Cinquenta anos depois, foi para a Ásia, onde se fixou frutuosamente em vários países. Volta-se agora para o continente negro e tenciona inserir-se nele humildemente, com fidelidade a Dom Bosco, para tornar-se vigorosa e genuinamente africana. Nosso projeto foi colocado sob a proteção especial e materna da Auxiliadora.

Será preciso que os irmãos que forem à África ou já lá trabalham se inspirem na missionologia renovada do Vaticano II, nas grandes orientações do Magistério e em particular do Papa nesta sua recente viagem pastoral e missionária.

Já iniciei a propósito, especialmente em Libreville, Kansebula e Butare, um diálogo com ­os jovens irmãos africanos e com os que há anos trabalham no continente. Queria lembrar aqui brevemente algumas linhas que se inspiram nos critérios conciliares e papais e aplicam suas orientações, em forma analogamente apropria­da, ao carisma da nossa Família.

  • Acima de tudo trabalhamos por um “Dom Bosco africano”, ou seja, por uma presen­ça vital e estável do nosso carisma no continen­te. Para que Dom Bosco seja genuína e integralmente ele próprio verdadeira e constitutivamente os traços e a fisionomia cultural da África. Nós não somos “missionários tempo­rários”, que passam por uma região para aí fundar a Igreja e depois ir embora. Teremos feito também esse trabalho difícil e fundamen­tal, onde era preciso, mas fizemo-lo com a intenção de ficar para sempre, encarnando dinamicamente na Igreja local a vocação salesiana.

  • Propomo-nos, na África, a cuidar com especial solicitude da índole própria do nosso carisma.23 Esta índole pertence ao âmbito dos dons que vêm do Alto e que, portanto, não se identificam na sua essência com cultura algu­ma, mas são concedidos pelo Espírito à Igreja universal, precisamente para que em momento oportuno sejam inculturados nos vários povos em benefício das Igrejas locais.

Nossa breve história de cem anos nos fala da adaptabilidade flexível da nossa vocação a diferentes culturas, bastante diversas da cultura em que nasceu e viveu Dom Bosco.

  • A “índole própria “, porém, não é uma teoria ou uma abstração, mas sim “uma experiência do Espírito Santo”, que “também comporta um estilo particular de santificação e aposto­lado;24 ela é vivida e transmitida vitalmente por pessoas que a realizam cotidianamente na fraternidade das comunidades salesianas. Con­tamos, pois, na base de tudo, com o testemunho de comunidades que vivam genuinamente os dois grandes Projetos sintéticos de Dom Bosco, ou seja, as “Constituições “ e o “Sistema Preventivo”, aprofundados ambos e atualizados nos últimos dois Capítulos Gerais (o Capítulo Geral Especial e o Capítulo Geral 21).

Na África, como na Europa, na América Latina, na Ásia e em toda a parte, é necessário garantir todos os grandes valores da “índole própria” com o seu “estilo particular de santi­ficação e apostolado”, enquanto se trabalha com criatividade e inteligência na inculturação da nossa vocação.

Para isso haverá a necessidade do confronto fraterno com todas as Inspetorias nos Capítulos Gerais, e da comunhão profunda e dialogante com o Reitor-Mor e o Conselho Superior, que desempenham justamente o ministério da uni­dade.

O testemunho de comunidades sale­sianas que reproduzam genuinamente a experi­ência do carisma de Dom Bosco exige de um lado, que os missionários levem ar puro e tenham a têmpera dos primeiros grandes expor­tadores do carisma (Cagliero, Fagnano, Costamagna, Lasagna, Cimatti, Braga, Mathias, etc.), mormente no que se refere à tradição viva da nossa vocação. Requer, por outra parte, que no delicado trabalho de formação das jovens gera­ções africanas a assunção dos valores culturais locais esteja harmoniosamente unida às exigên­cias qualitativas próprias da sequela de Cristo, da consagração religiosa, do espírito salesiano e da nossa missão juvenil e popular.



  • À raiz do salesiano de qualquer cultura está a santidade, com suas exigências reais, com sua audácia e humildade. Dom Bosco africano, asiático ou europeu que seja, não é ele mesmo se não é um santo. E se é verdade que a apresentação dos valores evangélicos de santidade sem conexão cultural seria uma espé­cie de “colonialismo angélico”, é igualmente verdade que a promoção dos valores culturais sem uma adequada impregnação dos valores da “índole própria” levaria à adulteração da vo­cação e à desagregação da nossa Família espi­ritual.

  • Não tendo ainda, até hoje, experiências comprovadas no campo da africanização do Carisma de Dom Bosco, será necessário um grande e prolongado trabalho de pesquisa, estudo, diálogo, confronto, verificação, numa atitude ininterrupta de confiante oração.

Os responsáveis pelos irmãos que tra­balham hoje e irão nos próximos anos tra­balhar entre os povos do continente negro de­verão ter iniciativas e saber mover-se mais para lá das atuais e indispensáveis estruturas inspetoriais, a fim de promover qualificados encon­tros interafricanos de reflexão e comunicação de experiências, em união com o Reitor-Mor e o seu Conselho, e assim chegar juntos a cri­térios homogêneos e apropriados de crescimen­to salesiano. Durante minha recente viagem, pude participar, com o P. Vanseveren e o Sr. Romaldi, de uma demonstração desse estilo de procura, que considero positivo e promissor.



O nosso Fundador viu-nos na África



De volta a Roma, procurei saber o que nosso querido Pai havia de desejar e sonhar sobre a presença salesiana nesse continente. É interessante e estimulante conhecer alguns dados.

Em 1886, já no fim da vida, Dom Bosco presidia uma reunião do Conselho Superior, dois dias após a festa de Maria Auxiliadora. Estava presente o procurador, P. Francisco Dalmazzo, portador de uma proposta de funda­ção salesiana no Cairo. Ouvida a exposição do procurador, Dom Bosco disse: “Estou inclina­do a aceitar, e, assim que puder, mandarei ao Cairo alguns salesianos (...). Entretanto, digo-vos francamente que essa missão é um plano meu, é um dos meus sonhos. Se eu fosse jovem, tomaria comigo o P. Rua e lhe diria: Vem, vamos ao Cabo da Boa Esperança, à Nigrícia, a Cartum, ao Congo. Ou melhor, a Suakin (no Sudão) como sugere Dom Sogaro, porque o clima lá é bom. Por esse motivo podia-se colocar um noviciado na região do Mar Vermelho.25

Dom Sogaro, Vigário Apostólico da África central, fora hóspede do Oratório de 14 a 15 de novembro do ano anterior, 1885,26 e estava preocupado em encontrar um jeito de garantir uma verdadeira permanência dos missionários nos países aonde iam. Dom Bosco indicava-lhe o método religioso do voto de obediência e a vontade de encarnação do seu Instituto no lugar. Com efeito, vemo-lo pensar logo, antes mesmo de ter um projeto definitivo para lá ir, na ereção de um noviciado local.

Queria que os Salesianos fossem à África para ficar e crescer africanamente, mesmo que já houvesse outros missionários no lugar.

Exprimia essa ideia também ao P. Cerruti durante uma viagem a Alassio, em março desse mesmo ano, 1886. “Na ida, por boa meia hora, não havia tocado em outro assunto que não missionários e missões, especificando os lugares da América, África e Ásia aonde os seus, com o passar do tempo, haveriam de ir e permanecer.

Direis, observava, que lá já estão outras con­gregações. É bem verdade. Mas, lembrai-vos bem, nós vamos ajudá-las, não lhes roubar o lugar! Geralmente elas se ocupam preferente­mente dos adultos, ao passo que nós nos de­vemos ocupar de modo especial da juventude, sobretudo da juventude pobre e abandonada.27 Diz-nos o seu biógrafo que com muita frequên­cia surpreendiam-no a olhar, no mapa da África, para Angola, Benguela e Congo. Falava muitas vezes de Angola, e dizia que essa missão devia ser aceita, caso fosse oferecida.28

Temos ainda conhecimento dos vários e importantes contatos do nosso querido Pai e da sua amizade com os grandes missionários da África no século passado, como o célebre con­terrâneo, o extraordinário frade capuchinho Card. Guilherme Massaia, que da África Orien­tal escrevia aos superiores de Turim, por ocasião da morte de Dom Bosco: “Oh! houvesse tido um homem assim como companheiro na missão!”;29 como o incansável Dom Daniel Comboni, fundador dos Filhos do Sagrado Coração e das Pias Madres da Nigrícia,30 propugnador convicto da hora da salvação da Nigrícia qual obra corresponsável de toda a Igreja; como o corajoso Card. Carlos Marcial Lavigerie, fundador dos Padres Brancos e de outros Institutos missionários, apóstolo do Nordeste da África e propulsor da luta contra a escravização;31 e outros.32

Já então se havia espalhado pelo mundo a fama do coração missionário de Dom Bosco: “Aconteceu destarte — diz-nos seu biógrafo — que também de países distantes se olhasse para o Oratório como para um viveiro de missioná­rios.33

Muito nos alegramos com essa constatação do P. Ceria, porque nos parece haver voltado hoje na Casa Geral, após o mandato capitular, ao clima das origens. Com efeito, chegam contínuos pedidos de muitos países, através de cartas ou de visitas pessoais, como se tivés­semos uma mina inexaurível de missionários.

A crise atual, porém, coloca-nos diante de grandes dificuldades!

Também para Dom Bosco apresentavam-se graves objeções. A mais vistosa era que “era preciso consolidar também a Congregação”.34

Sabemos que nem por isso se deteve o nosso santo Fundador. A magnanimidade de projeção e a coragem das suas iniciativas estavam também ligadas a certos sonhos famosos, cujas representações, no dizer de Walter Nigg em pequeno e interessante capítulo a respeito, “eram uma mensagem proveniente da vida interior do homem e ao mesmo tempo uma modalidade de relação com Deus (..). Existia (para Dom Bosco) uma realidade de sonho, sobre a qual não alimentava dúvidas”.35 Essa “realidade de sonho” infundia nele uma sintonia de segurança com os planos de Deus.

Conhecemos dois sonhos de Dom Bosco sobre a África: um de julho de 1885 e outro de abril de 1886.

No primeiro, se fala de longa e curiosa viagem, feita em companhia de Luís Colle: “o nosso amigo Luís — escrevia ao pai o próprio Dom Bosco — levou-me a uma excursão ao centro da África”.

Encontrara-se “diante de uma montanha muito alta” e durante toda a viagem “parecia-lhe ser elevado a enorme altura, como por sobre as nuvens, circundado de um espaço imenso”; em dado momento pôde reconhecer a sua posição: “Pareceu-me então estar no centro da África (... e ver) o Anjo de Cam, que dizia: Cessabit maledictum e a bênção do Senhor descerá’ (...)”.36

Eis, proclamada neste primeiro sonho, a atitude missionária de esperança e crescimento que Dom Bosco nutria no seu coração.

O outro sonho famoso é o de Barcelona. Nele, após haver lembrado o sonho dos nove anos, a pastorinha faz-lhe ver o desenvolvimen­to da Congregação: Valparaiso, Santiago, Pe­quim. Depois diz: “Agora traça uma linha de uma extremidade à outra, de Pequim a San­tiago, faz um centro no meio da África e terás uma ideia exata de quanto devem fazer os salesianos.

  • Mas como fazer tudo isso? (...)

  • Fá-lo-ão os teus filhos, os filhos dos teus filhos e dos filhos deles. (...) Vês lá cinquenta missionários preparados? Mais adiante vês outros e outros ainda? Traça uma linha de Santiago ao centro da África. Que é que vês?

  • Vejo dez centros.

  • Pois bem, os centros que vês terão casa de estudo e noviciado, e darão uma multidão de missionários (...). E agora vira-te para este outro lado. Vês aí dez outros centros, do meio da África até Pequim (...), mais adiante Madagascar. Estes e mais outros terão casas, colégios e noviciados”.37

Não há dúvida, pois, que Dom Bosco quis intensamente e com extraordinária esperança que os seus filhos estivessem generosamente presentes na África para aí crescerem como uma das realidades dinâmicas da Igreja no continente, “com casas, colégios e noviciados”.



Estimulante apelo a toda a Família Salesiana



Deixai-me agora repetir o que dizia no co­meço: O Projeto-África é, para nós, uma graça de Deus!

Para corroborar esta asserção, ofereço-vos alguns pontos autorizados que interpelam nossa fé, nossa esperança e nossa caridade.

O Concílio proclamou que “não pode crescer nas comunidades a graça da renovação, se não dilatar cada uma os espaços da cari­dade até os confins da terra, cuidando igualmente dos de longe como dos pró­prios membros.38

Paulo VI, na mensagem para o dia das missões de outubro de 1972, lançada no dia de Pentecostes, confirmou-o, dizendo: “A asfixia espiritual, na qual hoje tristemente se debatem dentro da Igreja católica tantos indivíduos e instituições, não terá talvez origem na prolon­gada ausência de um autêntico espírito missio­nário?”.39

E o nosso Capítulo Geral Especial, na mesma linha, assegura-nos que “o renovado impulso missionário será um termômetro da vitalidade da Congregação e um antibiótico contra o vírus do aburguesamento. Urge desper­tar a consciência missionária de todos os sale­sianos, repensar a metodologia atual, empenhar a fundo a Congregação a fim de que, a exemplo de Dom Bosco, venha a multiplicar-se o número dos evangelizadores”.40 E precisamente para atingir esse objetivo “o Capítulo Geral Especial lança um apelo a todas as Inspetorias, mesmo as mais pobres de pessoal, para que, em obe­diência ao convite do Concílio41 e consoante o ousado exemplo de nosso Fundador, contribuam com o pessoal próprio, definitiva ou tempora­riamente, para o anúncio do Reino de Deus”.42

A audácia missionária do nosso Pai e Fundador está bem sintetizada nas seguintes linhas capitulares: “Dom Bosco quis sua Socie­dade Salesiana francamente missionária. Em 1875 foi ele quem escolheu no grupo dos pri­meiros salesianos os dez para enviar à América. Antes de morrer já tinha ele feito dez expedi­ções missionárias. Paralelamente, também as Filhas de Maria Auxiliadora demandavam às Missões, onde desde então vêm trabalhando ombro a ombro com os missionários salesianos. Na morte de Dom Bosco, em 1888, os salesianos de além-mar eram 153, ou seja, quase 20% dos sócios de então.43

Pois bem, queridos irmãos, devemos cons­tatar e convencer-nos de que o Espírito Santo preparou e impulsiona hoje na África vasto movimento de evangelização daqueles povos. Por isso assumimos com alegria e esperança o mandato capitular para o continente africano. Não obstante as graves dificuldades da crise que atravessamos, pressentimos, nele, a aurora de uma renovação concreta da nossa dinâmica vocacional.

O que faria hoje Dom Bosco em hora tão propícia?

Havia por certo de estimular e entusiasmar toda a nossa Família: Salesianos, Filhas de Maria Auxiliadora, Voluntárias, Cooperadores, Ex-alunos e todos os vários grupos que nele se inspiram, a ouvir o apelo africano e de alguma maneira participar nele. De maneira especial havia de interessar, como fazia com o Boletim e outras iniciativas, os Cooperadores, os Ex-alu­nos e os Amigos da Obra Salesiana a fim de manter e executar tão importante projeto, e oportunamente contribuir para a africanização do seu carisma.

Vós todos, queridos irmãos, mas especial­mente os Inspetores e os Delegados inspetoriais, devereis saber animar com inteligência e cons­tância os vários grupos da Família Salesiana nesta nova arrancada missionária.

O corajoso Projeto-África não foi formu­lado por cálculo organizativo ou ingenuidade sentimental, mas prende-se à visita do Espírito do Senhor que nos foi feita no Capítulo Geral, ou seja, é fruto da perene juventude e da audaciosa magnanimidade que Deus comunica de tempos em tempos à sua Igreja através do ardor do seu amor criativo.

Sejamos, pois, destemidos no Espírito de Cristo!

E permiti-me fazer-vos ouvir ainda uma vez a palavra do Santo Padre João Paulo II, diri­gida agora aos próprios missionários e missio­nárias. No cemitério de Makiso, em Kisangani, no Zaire, o Papa formulou comovente oração sobre a tumba dos missionários falecidos: “Bendito sejais, Senhor, pelo testemunho dos vossos missionários! Fostes vós que lhes inspi­rastes o coração de apóstolos para deixarem para sempre a sua terra, a sua família e a sua pátria, e virem a este país, que até então des­conheciam, para proporem o Evangelho aos que eles já consideravam como irmãos. Bendito sejais, Senhor, (...) por lhes haverdes dado resistência e paciência nas fadigas, nas dificul­dades, nas penas e nos sofrimentos de toda a espécie”.44

Mais tarde, na visita à missão de São Gabriel, sempre em Kisangani no Zaire, o Papa dirigiu sua palavra de admiração e encoraja­mento a todos os missionários da África: “Aos meus olhos, o posto de missão evoca primeira­mente a modéstia dos inícios: muitíssimas vezes, modéstia dos efetivos missionários, mo­déstia das comunidades cristãs, modéstia dos meios pedagógicos e materiais. (...) Sim, que­ridos amigos, a fé e a caridade que habitam em vossas pessoas, eis o que primeiro constitui a vossa originalidade, a vossa riqueza e o vosso dinamismo. (...) Vós não vos contentais com passar. Ficais no meio daqueles cuja vida adotastes. Ficais pacientemente, mesmo se durante muito tempo precisais semear o Evangelho sem chegar a assistir à germinação e ao florescimento. A lâmpada da vossa fé e da vossa caridade parece então arder sem nenhum pro­veito. Mas nada é perdido do que é assim dado. Há misteriosa solidariedade que une todos os apóstolos. Vós preparais o terreno onde outros colherão. Permanecei servidores fiéis! (...) A Igreja reencontra-se a si mesma junto de vós, missionários, (...) porque ela própria deve ser, toda ela e a todo o momento, ‘missionária’. Assim se propaga ao longe e em profundidade a ação do ‘sal’ e do ‘fermento’ de que fala o Evangelho.45

Quis reproduzir essas palavras do Papa para que as leiam e meditem sobretudo os generosos que ouviram e haverão de ouvir o convite missionário do Senhor.



E concluo



Queridos irmãos, se além do Projeto-África pensarmos também nas outras muitas missões que temos na América Latina, na Ásia e, agora (graças às Inspetorias das Filipinas, da Índia e da Austrália) também na Oceania, e se conside­rarmos a penúria de pessoal em muitas delas e também nas muitas Inspetorias antes flores­centes, e a consequente angústia e o pedido de homens e de meios feitos pelos Inspetores e pelos Prelados responsáveis, devemos concluir que surgem graves dificuldades no nosso compromisso africano.

É verdade. Mas antes de diminuir o em­penho é preciso aumentar a generosidade! O futuro da Congregação não está na indiferen­ça para com certos aspectos vocacionais de fundo, como é a nossa dimensão corajosamente missionária, mas no incremento de uma “mís­tica” que se deve ligar a projetos concretos.

Já aludi às objeções que se faziam também a Dom Bosco em vista de uma indispensável consolidação da Congregação, que parecia amea­çada pelo grande impulso missionário. Pois bem, em dezembro de 1875, o próprio Dom Bosco, numa reunião do Conselho Superior, expôs assim a sua ideia: “Quanto à Congregação, eu vejo, embora se ande repetindo ser necessário nos consolidarmos, que se se trabalha muito, as coisas andam melhor. A con­solidação pode tornar-se mais lenta, mas será talvez mais duradoura. E nós o vemos mesmo de olhos fechados: enquanto houver esse grande movimento, esse grande trabalho, vai-se para a frente a toda velocidade e nos membros da Congregação há mesmo uma grande vontade de trabalhar”.

Então, às vezes, ouvindo propostas impor­tantes e de atuação difícil, exclamava:

  • Bem!... Só falta uma coisa.

  • Qual?

  • Tempo! A vida é muito breve. É preciso fazer apressadamente o pouco que se pode, antes que a morte nos surpreenda”.

Eis por que, não obstante a penúria de pessoal, sonhava sempre novos empreendimen­tos apostólicos e em vasta escala.

O P. Berto observava-o com o olhar fixo atentamente em mapas, a estudar as terras a serem conquistadas para o Evangelho. Ouviram-no exclamar:

Que belo dia será aquele em que os mis­sionários salesianos, subindo pelo Congo de estação em estação, se encontrarem com seus irmãos vindos pelo Nilo, e se apertarem as mãos, louvando o Senhor”.46

Assim responde Dom Bosco a certas di­ficuldades! Peçamos insistentemente ao Senhor que sejamos dignos continuadores do ardor missio­nário do nosso Pai e Fundador. Pratiquemos os seus “conselhos aos nossos primeiros missioná­rios”.47 E como temos necessidade de “milagres”, para ser-lhe fiéis na magnanimidade das iniciativas apoiemo-nos sempre nas duas grandes colunas indicadas por ele para o nosso cresci­mento: Jesus e Maria, os dois ressuscitados! Promovamos com mais entusiasmo e seriedade, na nossa vida, a centralidade da Eucaristia e a devoção a Nossa Senhora, Mãe da Igreja e Auxiliadora dos cristãos. E também nós have­mos de ver milagres!

Saúdo com especial afeto e agradeço com profundo reconhecimento aos irmãos missio­nários de ontem, de hoje e de amanhã. Digo aos Inspetores que os que partem para as missões não são uma perda de pessoal para a Comunidade inspetorial de origem, mas verda­deira semente de mais numerosas vocações. E lembro a todos que a dimensão missionária é parte viva e irrenunciável daquele “coração oratoriano” que palpita em todo bom salesiano.

Recomendo ainda uma vez o caríssimo P. Dho aos vossos fraternos sufrágios. Rezaremos por ele, lembrando que podemos também rezar junto com ele e pedir-lhe eficaz interces­são para o nosso compromisso africano.

A messe é grande. Que o Espírito Santo suscite numerosos operários em toda a nossa Família!

Cordialmente,



P. Egídio Viganò

Reitor-Mor



1 Const. 147

2 MB XVI, 254.

3 CG21 147 a.

4 Cf. Bollettino Salesiano, 1º de março de 1980, p. 20-23.

5 6 de maio de 1980, encontro com o Corpo Diplomático acreditado em Nairóbi.

6 10 de maio de 1980, ao presidente da Costa do Marfim.

7 João Pulo II.

8 Paulo VI, Africae terrarum, 3-4.

9 12 de maio de 1980, partida da África na Costa do Marfim.

10 2 de maio de 1980, discurso ao Presidente do Zaire.

11 6 de maio de 1980, encontro como os Diplomatas em Nairóbi.

12 8 de maio de 1980, ao Presidente de Gana.

13 4 de maio de 1980, aos Diplomatas em Kinshasa.

14 4 de maio de 1980, aos Universitários e Intelectuais em Kinshasa.

15 3 de maio de 1980, encontro com os Bispos do Zaire.

16 9 de maio de 1980, alocução aos Bispos de Gana, em Kumasi.

17 14 de maio de 1980, entrevista do Santo Padre a L’Osservatore Romano.

18 3 de maio de 1980, aos bispos do Zaire.

19 Cf., por exemplo, os problemas sobre o matrimônio cristão e o ministério sacerdotal nos discursos de 3 de maio à família e de 4 de maio aos sacerdotes, em Kinshasa.

20 9 de maio de 1980, aos bispos de Gana, em Kumasi.

21 9 de maio de 1980, aos bispos de Gana, em Kumasi.

22 3 de maio de 1980, aos bispos do Zaire em Kinshasa.

23 Cf. Mutuae Relationes.

24 Ib.

25 MB XVIII, 142.

26 Cf. MB XVII, 508.

27 MB XVIII, 49.

28 LEMOYNE-AMADEI, Vita di S. G. Bosco, 2º vol. p. 612-613, Turim SEI 1953.

29 MB XVIII, 820.

30 MB VII, 825; IX, 711.

31 MB IX, 471, 734, 770, 940; XVI, 252; XVII, 472.

32 Cf. por exemplo MB III, 568.

33 MB XI, 408.

34 MB XI, 409.

35 WALTER NIGG, Don Bosco un Santo per il nostro tempo, LDC 1980, p. 78-79.

36 MB XVII, 643-645.

37 MB XVIII, 71ss.

38 AG 37.

39 Acta Apostolicae Sedis LXIV, p. 449.

40 CGE 463.

41 AG 40.

42 CGE 477.

43 CGE 471.

44 6 de maio de 1980.

45 6 de maio de 1980, aos missionários de São Gabriel, em Kinsagani.

46 MB XI, 409.

47 MB XI, 389-390.

17