1. CARTA DO REITOR-MOR
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«Para que tenham a vida, e a tenham em abundância» (Jo 10,10)
CINCO FRUTOS DO BICENTENÁRIO
Roma, 25 de julho de 2015.
Festa de São Tiago, Apóstolo
1. Um ano de graça com muitos frutos. – 2. Para que, quase sem se perceber, se vá conhecendo a Congregação com maior profundidade. – 3. São estes os frutos maduros do Bicentenário. – 3.1. Sonho uma Congregação de Salesianos felizes. – 3.2. Sonho uma Congregação com Homens de Fé e cheios de Deus. 3.2.1. Um caminho de fé e de busca de Deus. - 3.2.2. Permanecer, Amar, Produzir fruto. – 3.3. Sonho uma Congregação de Salesianos apaixonados pelos jovens, os mais pobres. 3.3.1. Porque ao longo dos anos sempre dissemos e recordamos qual é o caminho da nossa fidelidade - 3.3.2. Procurando sempre servir, jamais o poder ou o dinheiro. – 3.4. Sonho uma Congregação de verdadeiros Evangelizadores e Educadores na Fé. – 3.5. Sonho uma Congregação sempre missionária. 3.5.1. Porque é algo de constitutivo que nos caracteriza. - 3.5.2. Porque os tempos que vivemos o exigem fortemente.
1. UM ANO DE GRAÇA COM MUITOS FRUTOS
Meus caros irmãos,
É possível que quando esta carta chegar até vocês, já tenhamos celebrado no Colle Don Bosco, com vários milhares de jovens, o encerramento deste ano do Bicentenário do nascimento de Dom Bosco, que abríramos de forma oficial, também no Colle Don Bosco, no passado 16 de agosto de 2014.
Certamente, no que resta deste ano de 2015, ainda se viverão momentos e celebrações nos mais diversos lugares do nosso mundo salesiano.
Eu escrevera na carta do n. 419 dos ACG que o ano que inaugurávamos como celebração dos 200 anos do nascimento de Dom Bosco teria um duplo aspecto: um exterior, mais público e oficial, e outro interior, mais íntimo.
Em sintonia com o que escreve o Papa Francisco como mensagem para a abertura do Ano da Vida Consagrada, o primeiro objetivo é “olhar com gratidão o passado”,1 e poder-se-ia dizer que nós o aplicamos textualmente à nossa celebração do Bicentenário, porque quisemos vivê-lo como “uma oportunidade de nos sentirmos agradecidos ao Senhor porque, duzentos anos depois do nascimento de Dom Bosco, estamos aqui, como dom de Deus para os jovens”.2 E, neste aspecto exterior, oficial e público das centenas de celebrações de todos os tipos que se deram nos países onde há uma casa salesiana, pudemos reconhecer e agradecer por este dom de Deus que é Dom Bosco para a Igreja e para o mundo.
Entretanto, desejo referir-me neste momento mais àquele outro aspecto do Bicentenário, mais interior, mais íntimo, e que me leva a pensar, desejar e sonhar que marca profunda estará deixando o fato de ter vivido este evento único, realmente histórico, em nossa vida, no coração de cada um dos meus irmãos SDB, e no meu próprio coração.
Isto é o que me leva a sonhar. E sonho alguns frutos da celebração do Bicentenário, como exporei a seguir.
2. PARA QUE, QUASE SEM SE PERCEBER, SE VÁ CONHECENDO A CONGREGAÇÃO EM MAIOR PROFUNDIDADE.
Permito-me sonhar alguns frutos do Bicentenário que considero geradores de vida, porque vou tomando ciência de que, muito antes de poder visitar todos os países e todas as Inspetorias, já vou conhecendo, com aproximação razoável, a realidade da nossa Congregação.
Desde que se concluíram o CG27, em 12 de abril de 2014, e a primeira sessão plenária do Conselho Geral, pude visitar, até hoje, 27 nações – 8 em 2015 e 19 no período passado deste ano de 2015 – chegando ao total de 32 neste ano e meio, se o Senhor o permitir. Certamente, não foi uma casualidade, mas deliberadamente programado, consciente de que o esforço era quase excessivo, mas necessário devido à singularidade deste ano.
À visão que me permite ter cada uma das visitas às Inspetorias, acrescenta-se o conhecimento derivado das “radiografias” que são, de fato, as consultas feitas nas Inspetorias para a nomeação dos novos Inspetores e todas as informações e visões que os próprios irmãos oferecem a respeito da Inspetoria nessas consultas. Foram 21 os novos Inspetores nomeados nestes quinze meses.
Tive também a oportunidade, com o Conselho Geral, de aprofundar o conhecimento de algumas Inspetorias depois das sete Visitas extraordinárias que foram feitas e o estudo profundo que fizemos de duas Regiões, as da Ásia Sul e Ásia Leste e Oceania.
Por tudo isso, lhes direi, meus caros irmãos, que com tudo o que pude visitar, conhecer, ver pessoalmente, ler e escutar de quantos me aconselham, sinto-me capaz de sonhar uma Congregação, a nossa, em que o Senhor e Dom Bosco, sempre com o olhar materno de nossa Mãe Auxiliadora, nos dão estes frutos do Bicentenário do nascimento de Dom Bosco.
3. SÃO ESTES OS FRUTOS MADUROS DO BICENTENÁRIO
3.1. Sonho uma Congregação de Salesianos felizes
Convido-os desde este momento a superar a tentação, por outro lado muito humana, de pensar negativamente, de pensar que digo isto porque nós salesianos não somos felizes.
Tudo ao contrário! Não se trata disso. Estou convencido de que a maioria de nós SDB somos felizes, muito felizes em viver a nossa vocação. Incluo a mim mesmo, porque também sou muito feliz. Contudo, creio que devemos chegar a uma felicidade maior, e da parte de todos, sem que nenhum irmão fique à margem do caminho sentindo que não pode ser feliz, ou que esta meta não seja para ele. Esta meta é para todos, dado que, humanamente, este profundo desejo ressoa no coração de cada homem e mulher, desde quando fomos chamados à vida.
É por isto que me permito comunicar-lhes este meu grande sonho. O de uma Congregação, a nossa, em que cada salesiano possa dizer a si mesmo, no mais profundo do seu ser, do seu coração, na sua verdade mais íntima: “sou feliz e sinto-me muito vivo e muito cheio de alegria vivendo como Salesiano de Dom Bosco”.
O Papa propõe-nos, como religiosos, este programa: “sede felizes. Demonstrai a todos que seguir Cristo e pôr em prática o Evangelho enche o vosso coração de felicidade. Contagiai com esta alegria os que se aproximam de vós”.3
Creio, meus caros irmãos, que se trata disto: de viver a nossa vida mais intensa e alegremente. Posso dizê-lo com as minhas palavras, mas já o dissemos no nosso último Capítulo Geral no qual dávamos graças a Deus “pela fidelidade de tantos irmãos e pela santidade reconhecida pela Igreja a alguns membros da Família Salesiana. Entramos todos os dias em contato com adultos e jovens, com irmãos jovens e anciãos, em plena atividade ou enfermos, que testemunham o fascínio da busca de Deus, a radicalidade evangélica vivida na alegria e a viva paixão por Dom Bosco”.4 É o dom que temos em nossa Congregação: os milhares e milhares de irmãos que todos os dias dão vida e dão a própria vida com admirável generosidade. Fico descontente com o sofrimento de irmãos que não se sentem assim. Há irmãos salesianos que arrastam feridas em sua vida e em seu coração, irmãos que se sentem condenados, que manifestam sofrimento! Quão agradável me seria que, com a força que vem do Senhor e com o afeto e a proximidade de algum irmão, pudessem ter confiança e esperar novamente algo de bom na própria vida. Há irmãos que atravessam situações difíceis ou perderam a paixão do primeiro Amor que todos sentimos no chamado do Senhor; há, quem sabe, irmãos que caminham em alguma direção que não lhes trará nada de bom como Salesianos de Dom Bosco! Quão agradável me seria se estes irmãos se deixassem tocar por Deus para “ir mais além”; quão agradável me seria se se deixassem surpreender por Deus, que sem dúvida sempre nos conduz a situações de vida que estão mais além dos nossos cálculos!
Caros irmãos, por maior ou menor que seja o nosso conhecimento de Dom Bosco, todos nós temos a certeza do quanto era importante para Dom Bosco a alegria e a felicidade dos seus salesianos e dos seus jovens, não isentos de sacrifícios e, certamente, com aquele ponto central e essencial que é viver em Deus e de Deus. Nós tomamos as mais importantes e transcendentais decisões em nossa vida, chegando ao cume com o nosso Sim ao Senhor e, isto posto, tudo o mais deve servir de ajuda para viver a “plenos pulmões”, para viver em maior plenitude, para viver sentindo-nos mais cheios de significado e felizes.
Já o CGE 20, citando a Evangelica Testificatio, há mais de 30 anos, dizia-nos que “a alegria de pertencer a Deus para sempre é um fruto incomparável do Espírito Santo, que vós já saboreastes. Animados por esta alegria... saibais olhar o futuro com confiança”.5
Na verdade, caros irmãos, aquilo que estou expressando com este sonho de felicidade para cada um de nós é que a nossa bela vocação e dedicação não seja apenas um trabalho, às vezes muito marcado por transbordamentos, ou por uma atividade extrema que toca ou chega ao “ativismo”, e que pode apagar em nós a chama acesa e levar-nos ao “pragmatismo cinzento” de que fala o Papa Francisco. Sonho para cada um de nós uma vocação vivida como a viveu Dom Bosco, esquecendo-se de si e cheio de paixão por Deus e pelos jovens.
De fato, Dom Bosco teve, entre as suas genialidades, a grande capacidade de oferecer “aos jovens marginalizados do seu tempo a possibilidade de experimentar a vida como festa e a fé como felicidade”.6
Como podem imaginar, este meu sonho para cada um de nós tem muito a ver com aquilo que já pude viver nestes 15 meses como Reitor-Mor, pensando em cada um dos nossos caros irmãos. Não lhes posso esconder, por exemplo, que o meu coração se entristece sempre que um irmão salesiano sacerdote me escreve pedindo para iniciar a sua inserção numa Diocese, tendo procurado antes o Bispo adequado às suas expectativas. Pergunto-me: nestes casos, o que resta do amor a Dom Bosco e do entusiasmo com que nos fizemos salesianos? O que se viveu até agora foi apenas um trabalho pastoral que se pode trocar facilmente por outro? E vem-me à mente a cena do jovem João Cagliero debatendo intensamente em seu interior enquanto caminhava no pátio de Valdocco diante da proposta que Dom Bosco lhe fizera pouco antes. A proposta, como sabemos, era a de formar uma sociedade religiosa na qual seriam chamados salesianos. Depois do debate pessoal exclama a bem conhecida frase: “frade ou não frade, eu estou com Dom Bosco”.
Penso naquele 14 de maio de 1862, dia da primeira profissão salesiana emitida, com Dom Bosco, por 22 jovens (MB VIII, 161). Eram simples meninos crescidos ao lado de Dom Bosco. Eles tiveram a coragem de iniciar uma nova Congregação Religiosa e fazer a sua profissão com grande entusiasmo, com confiança naquilo que Dom Bosco lhes dava a conhecer.
Não deixa de comover-me pensar em nossas origens, confirmando minha forte convicção de que dando a Deus o Primado em nossa vida e tendo os jovens em nosso coração, especialmente os mais pobres e aqueles que mais precisam de nós, somos devorados – quase me permitiria dizer “deterministicamente” – pela felicidade como salesianos de Dom Bosco. Eu creio realmente nisso porque é certo, como se diz no documento de ‘Aparecida’ que “a vida se acrescenta dando-a, e se enfraquece no isolamento e na comodidade. De fato, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar vida aos demais”.7
3.2. Sonho uma Congregação com Homens de Fé e cheios de Deus
Por que este sonho? Será que não somos assim? – poderiam perguntar-me.
Devo dizer-lhes novamente que estou convencido da profunda fé e sentido de Deus de milhares e milhares de nossos irmãos salesianos. E por que, então, este sonho? A resposta é esta: pensando na totalidade da nossa Congregação, difundida no mundo todo, algo de delicado a que, sem dúvida, devemos dar atenção, é que em muitas partes, em muitos dos países onde vivemos e trabalhamos com tanta dedicação e generosidade, somos conhecidos pelos trabalhos que realizamos, mas ignora-se ou desconhece-se o motivo pelo qual fazemos o que fazemos e onde está a motivação profunda da nossa vida. Somos admirados pelo trabalho com os jovens, apreciam imensamente as nossas redes de escolas, e entre elas a formação profissional e ao trabalho. Vê-se com muito respeito e adesão a nossa ação com os meninos de rua, louva-se a dedicação e a criatividade de muitos dos nossos oratórios, dá-se grande atenção à realidade das nossas casas-família, casas e residências para meninos pobres etc. Entretanto, muitas vezes, não sabem dizer quem somos e ainda menos o motivo pelo qual fazemos aquilo que fazemos e porque vivemos como vivemos. E este é o meu sonho: quem quer que se encontre com um religioso salesiano, ou quem entrar em relação com uma de nossas comunidades, possa sentir-se tocado pela presença de homens de fé, de profunda e comprovada fé que, em seu simples viver e agir, quase sem o querer, deixam transparecer a sua condição de religiosos, de homens consagrados por e para Deus, e por Ele consagrados aos jovens.
3.2.1. Um caminho de fé e de busca de Deus
Creio, irmãos, que esta preocupação e sensibilidade não é nova. Podemos ver nos documentos da nossa Congregação como a ‘grande batalha’ do CGE 20 foi, precisamente, a tensão entre consagração e missão. E completou-se um magnífico trabalho, à luz do Vaticano II, para ver de maneira nova e em profundidade a identidade do nosso carisma e descobri-lo na riqueza das nossas novas Constituições. Foram muitos os anos de discernimento, ao longo de três Capítulos Gerais. O CGE 20 e, depois, o CG 21 que, com sabedoria, considera insuficiente o tempo de experimentação de seis anos para as novas Constituições e o prolonga por mais seis, e o CG 22 no qual já se dera um profundo amadurecimento do conceito de consagração como “Ação de Deus”.
Creio que em nossa Congregação não temos nenhum problema em relação à nossa identidade carismática e à harmonia entre todos os elementos que a integram. Das nossas Constituições a muitos outros textos, encontramos um arco abundante de elementos que nos iluminam e nos enriquecem.
A chave está em viver a nossa identidade de maneira harmoniosa. Dissemos e recordamos muitas vezes que nós não somos agentes sociais, nem as nossas obras são agências de serviços sociais, mesmo que seja grande o bem que fazemos nelas e através delas. Somos, antes de tudo, crentes, consagrados por Deus em nossa condição de religiosos, e “como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova! Sucede então que, em última análise, ‘o que nós vimos e ouvimos, isso anunciamos’ (1Jo 1,3)”.8
Estou imensamente convencido, irmãos, de que este é o caminho mais necessário para nós hoje. O caminho de cuidar da nossa fé, de alimentá-la e aprofundá-la (sermos homens de fé), que fazemos tudo o que fazemos porque nos sentimos atraídos e fascinados por Jesus, e sentimos livremente a profunda alegria de dizer sim a Deus Pai, que nos consagra também na profissão religiosa (homens cheios de Deus).9
Ao ler há algum tempo algumas páginas sobre a vida religiosa, causou-me profunda impressão a narração de uma religiosa; ela contava que numa determinada ocasião, em Viena, um superior falara sobre certo ateísmo da velhice em alguns religiosos e religiosas; e a irmã afirmava ter receio de que todos nós conhecêssemos alguma religiosa (e também religioso, devemos dizer para sermos justos10), que tão logo abre a boca demonstra desgosto..., e poderíamos dizer que isso representa uma secreta decepção em relação a Deus... E se perguntava: “será que o nosso pensar, julgar e agir não são determinados, frequentemente, por uma fé adormecida, por uma relação sem amor com o nosso Deus?”.11
Diante deste testemunho ressoa em mim a pergunta do Salmo: “Onde está o teu Deus?” (Sl 42,4), ou aquela que nós podemos fazer: onde posso te encontrar, meu Deus? E esta, me parece a questão e situação vital à qual devemos dar muita atenção, tanto pessoal como comunitariamente, porque nem mesmo o trabalho entre os meninos e os jovens nos torna imunes de uma vida sem amor a Deus, ou com uma “secreta decepção em relação a Deus”.
3.2.2. Permanecer, Amar, Produzir fruto
Estes três verbos, no contexto do Ícone da Videira e dos Ramos (Jo 15,1-11), que esteve tão presente em nosso último Capítulo Geral, convidam-nos a tomar ciência da necessidade de viver profundamente enraizados em Jesus para permanecer profundamente n’Ele, e a partir d’Ele viver uma fraternidade que seja realmente atraente, e que nos leve a servir os jovens.
Por isso, sonhar-nos como uma Congregação de homens que realmente vivemos de Fé e cheios de Deus, é pensar-nos com este desejo de tornar realidade o Primado de Deus em nossas vidas sem jamais nos esquecermos de que devemos ser, acima de tudo, “buscadores de Deus”,12 e testemunhas do Seu Amor entre os jovens e os mais pobres.
As nossas preciosas Constituições, qual Evangelho lido em chave salesiana, são atravessadas por este sentido de Deus e por este apelo à fé, como o foi, de maneira totalizante, na vida e na missão de Dom Bosco.
Nelas, lemos que trabalhando pela salvação dos jovens fazemos experiência da paternidade de Deus (cf. C. 12), mantendo-nos em diálogo simples e cordial com Cristo Vivo e com o Pai, que sentimos próximo. E assim, cada um de nós, ciente do chamado de Deus a fazer parte da Sociedade Salesiana (cf. C. 22) e vivendo o sinal do encontro do amor entre o Senhor que chama e o discípulo que responde, realiza uma opção entre as mais elevadas que um crente pode fazer (cf. C. 23). Ao mesmo tempo, imerso no mundo e nas preocupações da vida pastoral, o salesiano aprende a encontrar Deus através daqueles aos quais é enviado (cf. C. 95).
Irmãos, com a energia que as nossas Constituições nos dão, não creio necessário acrescentar mais a respeito deste sonho. Repito apenas o convite que lhes fazia no encerramento do Capítulo Geral. Com profunda convicção em minha primeira intervenção – no assim chamado discurso final, que tem uma clara intenção programática – dizia-lhes que me recuso a crer que a “fragilidade que constatamos na vivência do primado de Deus em nossa vida faça parte do nosso DNA salesiano”. Não, dizia-lhes naquele momento, e o repito agora. Não o é, porque não o foi para Dom Bosco; ao contrário, ele viveu toda a sua vida com profunda fé, cheio de Deus, e por essa razão, dando a sua vida até o último respiro, sempre em favor dos seus jovens. Viveu radicalmente envolvido na trama de Deus.13 Este é o meu sonho, hoje, para a nossa Congregação e para cada um de nós, salesianos de Dom Bosco.
3.3. Sonho uma Congregação de Salesianos apaixonados pelos jovens, os mais pobres
Este é outro dos sonhos, fruto evidente da vivência deste Bicentenário.
Estou convencido de que é precioso o testemunho de muitos irmãos que dão a vida todos os dias com verdadeira paixão educativa e evangelizadora em favor dos jovens; estou convencido de que são muitas as presenças salesianas que olham com predileção para os mais pobres.
Dou graças ao Senhor por isso e digo-lhes, como anteriormente: Irmãos, devemos “ir mais além”. Devemos ser, todos os salesianos, aqueles que, com um coração como o de Dom Bosco, com o coração como o do Bom Pastor, damos o melhor de nós em favor dos jovens. E devem causar-nos dor as casas salesianas que, de maneira direta ou indireta, não estão a serviço dos mais pobres. Devemos ser criativos para que tudo o que fazemos, pensamos e decidimos, chegue de algum modo até aqueles que têm maiores necessidades.
O Papa Francisco diz na mensagem já citada: “Despertai o mundo, iluminando-o com o vosso testemunho profético e contracorrente”.14
Creio, realmente, que a nossa maneira salesiana de iluminar o mundo de modo profético e contracorrente é com a radicalidade em todos nós e em todas as nossas presenças. E não tenham a menor dúvida de que vivendo e trabalhando assim, ainda que sem necessidade de palavras, a mensagem é interpelante e tem grande força testemunhal; e não tenham dúvidas de que não faltarão os meios para chegar aos mais pobres. Recordemos a confiança sólida de Dom Bosco na Divina Providência quando, certamente, dermos os motivos para que ela se demonstre.
3.3.1. Porque ao longo dos anos sempre dissemos e recordamos qual é o caminho da nossa fidelidade
Com este título quero realçar como sempre houve na Congregação um Magistério que nos orientou para a opção preferencial pelos jovens mais pobres. Depois, cada irmão, cada comunidade local ou inspetorial, e no centro mesmo da Congregação devemos torná-lo realidade. O Papa Francisco recorda-nos que a esperança à qual nos convida não se fundamenta em números ou obras, mas n’Aquele em quem depositamos a nossa fé (cf. 2Tm 1,12) e nos convida a não ceder à tentação dos números ou da eficiência e menos ainda confiar em nossas próprias forças.15
São sete em nossas Constituições os artigos que se referem aos jovens mais pobres como nossos destinatários preferenciais, e outros cinco que voltam o olhar para a necessidade de sermos solidários com os pobres. Encontramos em nossos Capítulos Gerais, ao longo do tempo, uma sucessão de apelos a esta “opção fundamental” (como é chamada na Assembleia de Puebla dos Bispos da América Latina). O CGE 20 falou-nos para canalizar as nossas forças aos jovens mais pobres e aos adultos com maiores necessidades, isto é, aqueles que têm menos possibilidades de viver a vida segundo os desígnios de Deus.16 O CG 21 convida a iniciar novas presenças em ambientes de marginalização,17 e o CG 22 pede numa deliberação inspetorial para “retornar aos jovens, ao seu mundo, às suas necessidades, à sua pobreza. Deem a eles uma verdadeira prioridade, manifestada numa renovada presença educativa, espiritual e afetiva. Procurem fazer a opção corajosa de ir em direção aos pobres, realocando eventualmente as nossas presenças onde maior for a pobreza”.18 Igualmente, o CG 23, centrado na educação dos jovens à fé, pede a cada Inspetoria que individualize novas e urgentes frentes, tendo alguma presença como “sinal” do nosso ir em direção dos jovens mais distantes.19
É belo constatar que se deram passos em muitas Inspetorias integrando e incorporando neste caminho irmãos de muitas e variadas sensibilidades. Sendo assim, o que nos resta ainda a fazer? A resposta é continuar este caminho de ascensão até..., até que seja desagradável para cada salesiano que um jovem pobre, uma jovem pobre, não encontre o seu lugar na casa salesiana, nas casas de Dom Bosco! Até que seja desagradável ao espírito de cada salesiano deixar de cuidar de um jovem ou uma jovem pobre que precise de nós. Se o nosso coração sentir isso, não duvidemos de que sempre encontraremos soluções e sempre seremos muito fiéis a esta opção pelos jovens mais pobres.
3.3.2. Procurando sempre servir, jamais o poder ou o dinheiro
Imagino, irmãos, que a maioria de vocês terá lido e meditado a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Se ainda não o puderam fazer, encorajo-os à sua leitura e meditação. Não duvido que tirarão muito fruto dela. Meditei recentemente o seu segundo capítulo, no que se refere à busca do poder e à idolatria do dinheiro.
Com grande beleza, as nossas Constituições exprimem quais são os jovens aos quais somos enviados: “O Senhor indicou a Dom Bosco os jovens, especialmente os mais pobres, como primeiros e principais destinatários da sua missão... [e] Com Dom Bosco reafirmamos a preferência pela ‘juventude pobre, abandonada, em perigo’, que tem maior necessidade de ser amada e evangelizada, e trabalhamos especialmente nos lugares de mais grave pobreza” (C. 26).
À luz desta expressão também fundamental e essencial do nosso carisma, digo-lhes, irmãos, que percorrendo esta estrada não nos devemos preocupar com a identidade da nossa missão e a nossa fidelidade. Estamos na estrada certa. Se, ao contrário, não nos preocuparmos em estar com os jovens pobres, aqueles que mais precisam de nós, e vivermos comodamente por ter poder e meios econômicos, deveremos ficar temerosos. E devo dizer-lhes que eu me sinto preocupado diante de casos de irmãos que vivem a autoridade não como serviço, mas como poder, não como serviço, mas como força que permite ter e fazer coisas, muito mais se tiver nas mãos recursos econômicos, ou se tiver isso em vista. Mais adiante vou me referir novamente a isto para explicar o que quero dizer.
O Papa, na Evangelii Gaudium, cita com grande força um texto clássico. É um Padre da Igreja, São João Crisóstomo, quem diz: “Não compartilhar os próprios bens com os pobres significa roubá-los e privá-los da vida. Os bens que possuímos não são nossos, mas deles”.20 O Papa evoca a globalização da indiferença que torna incapazes de provar compaixão diante do grito de dor dos outros, numa cultura de bem-estar que nos anestesia (EG 54). Com grande intensidade, chama a nossa atenção para a cultura do “descartável” à qual socialmente demos início, na qual os excluídos não são “explorados”, mas repelidos, são “sobras” (EG 53), e adverte-nos quanto à nova idolatria do dinheiro que chama de uma versão nova e desapiedada da adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35), chegando a afirmar que “a ambição do poder e do ter não conhece limites” (EG 56). Chega a dizer de forma clara que “o dinheiro deve servir e não governar” (EG 58).
O Papa pensa na Igreja no mundo. Eu volto o olhar para algo muito menor, como a nossa Congregação, e estou convencido de que a nossa força está no serviço e na busca do bem dos nossos jovens e das nossas jovens, especialmente os mais pobres. É humano cair na tentação de fundar a nossa esperança nos números, nas obras, na eficiência, mas não é a nossa estrada. “Não vos fecheis em vós mesmos – diz o Papa, não vos deixeis asfixiar por pequenas brigas de casa, não fiqueis prisioneiros dos vossos problemas... A humanidade inteira aguarda: pessoas que perderam toda a esperança, famílias em dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado qualquer futuro, doentes e idosos abandonados, ricos saciados de bens, mas com o vazio no coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino”.21
Que grande e específico desafio para nós! É por isso que sonho a nossa Congregação depois do Bicentenário de Dom Bosco como aquela porção da Igreja que vê a si mesma fiel no serviço, na humildade, na pobreza e nos meios econômicos unicamente a serviço da missão educativa e evangelizadora. Por isso, só peço que nos ajudemos reciprocamente. Que nos ajudemos quando alguma vez a autoridade é vivida mais como poder do que como serviço. Que nos ajudemos quando se vai em busca de cargos, de ser dirigente; ajudemo-nos quando se corre o perigo de buscar, quase como finalidade que dá significado à própria vida, o ‘gerencialismo’, o ser executor de obras (embora digamos que é pelo bem dos outros). Devemos ajudar-nos quando o dinheiro serve para ter força, poder de decisão sobre coisas ou pessoas; devemos ajudar-nos quando o uso e o manejo do dinheiro e dos meios econômicos da comunidade e da obra não são claros nem transparentes... Ajudemo-nos, irmãos, ajudemo-nos sempre na verdade e na liberdade evangélicas, porque estes perigos existem também entre nós.
3.4. Sonho uma Congregação de verdadeiros Evangelizadores e Educadores na Fé.
Esta é outra das preocupações, irmãos, e um verdadeiro sonho que sei não ser apenas meu. E, também, atravessa toda a nossa história congregacional, e temos centenas de páginas de nossos documentos, desde as Constituições, os Capítulos Gerais e muitas intervenções dos Reitores-Mores, que fizeram intensas chamadas de atenção para cuidar da nossa dimensão evangelizadora e de educadores à fé.
Por que este sonho? Porque realmente não gostaria que fossem proféticas as palavras do Padre Vecchi quando, referindo-se ao primado da evangelização, dizia: “Pode acontecer que, levados por uma multidão de atividades, preocupados com as estruturas e atarefados na organização, corramos o risco de perder de vista o horizonte da nossa ação e aparecer como ativistas ou “agitadores” pastorais, gestores de obras ou estruturas, benfeitores admiráveis, mas pouco como testemunhas explícitas de Cristo, mediadores da sua ação salvífica, formadores de almas, guias na vida da graça”.22
Lendo esse texto, sentia que esta era absolutamente a mesma convicção que fui amadurecendo nos meus anos de vida salesiana e, ao mesmo tempo, me surpreendia, agradavelmente, de encontrar-me com muitas reflexões do P. Pascual Chávez que manifestava a sua convicção e empenho para animar-nos nesta direção,23 como já o fizera anteriormente o P. Egídio Viganò24 e também o P. Juan E. Vecchi.25
O que cito é uma demonstração de como a dimensão da evangelização e educação à fé é, certamente, uma preocupação que atravessa toda a nossa história de Congregação, como já disse.
Muitos outros apelos essenciais e motivadores nos vêm das nossas Constituições. Nelas, encontramos textos que nos dizem que “fiéis aos compromissos que Dom Bosco nos transmitiu, somos evangelizadores dos jovens, especialmente dos mais pobres” (C. 6), e assim como Dom Bosco nos comunicou que a Congregação iniciou com uma catequese, “também para nós a evangelização e a catequese são a dimensão fundamental da nossa missão” (C. 34), missão esta que realizamos assim: “Educamos e evangelizamos segundo um projeto de promoção integral do homem, orientado para Cristo, homem perfeito” (C. 31), e isto, também porque acreditamos realmente que “Deus nos está esperando nos jovens para oferecer-nos a graça do encontro com Ele e dispor-nos a servi-lo neles, reconhecendo a sua dignidade e educando-os à plenitude de vida”.26
Eu me arriscaria a dizer que todos nós salesianos, de uma ou de outra maneira, recebemos esta formação e informação. Creio, realmente, que se temos dificuldades para realizar a nossa missão evangelizadora não é, em geral, por ignorar qual seja o constitutivo do nosso ser salesianos, missionários dos jovens. Creio que acreditamos realmente que “é necessário anunciar Cristo. Conhecê-lo é um direito de todos”27 e que como evangelizadores e educadores da fé “desejamos que (os jovens) sintam Deus como Pai e conheçam Jesus Cristo. Estamos convencidos de que a proposta do Evangelho traz energias insuspeitáveis para a construção da personalidade e o desenvolvimento integral que todo jovem merece.28
Acredito que são outros os desafios e outras as dificuldades. Um grande desafio é o esforço para assumir esta tarefa e missão, apesar de ser difícil muitas vezes, quando os jovens não estão propriamente esperando nem se sentem motivados diante dela. Existem continentes – e o mais marcado neste sentido, parece-me ser a Europa – onde o anúncio explícito do Evangelho, embora feito com as metodologias e pedagogias adequadas, nem sempre encontra um campo adequado de cultivo. E a reação de nos retirarmos é muito humana, ou ainda mais humana a de ficarmos pelo meio do caminho, e passar o tempo nos preâmbulos que permitam uma iniciação à fé. Por isso, o primeiro grande desafio é estarmos convencidos da suma importância da nossa missão, e encontrar as energias suficientes para colocar-nos plenamente nela, embora sabendo que não seremos recebidos nem com aplausos, nem com deferência. Devemos estar cientes, por outro lado, de que estas situações de dificuldade, indiferença e, às vezes, oposição, acompanharam a ação evangelizadora desde os primeiros tempos. Também a diversidade dos contextos religiosos nos trava, não poucas vezes, no anúncio de Jesus Cristo, e podemos ficar com uma ação social e humanitária, que é boa em si mesma, mas se nela faltar a evangelização e a educação à fé, paramos no meio do caminho.
E ao desafio da frieza, da indiferença, inclusive da recusa da necessidade de Deus, nos vários contextos em que vivemos, acrescentam-se outras dificuldades que ouso chamar de custos elevados que pagamos devido a algumas ações ou decisões: a preocupação com as estruturas, os encargos administrativos que sentimos o dever de levar adiante, a gestão, o crescimento e sobreposição de atividades, e muitas outras coisas, nos limitam em determinadas ocasiões. Consomem energias, diminuem ou suprimem a alegria vocacional e a felicidade como salesianos e, sobretudo, podem afastar-nos da vivência entre os jovens, e se não estivermos com eles, entre eles e sempre a serviço deles, a evangelização não será possível.
Meus caros irmãos: desejaria de verdade, de todo o coração, que nenhum de vocês pudesse interpretar estas minhas palavras como sendo pessimistas. Não sou pessimista. Ao contrário, eu continuo a afirmar, como faço há muito tempo, que temos uma belíssima Congregação, na qual, embora com as dificuldades que possam existir, fazemos muitíssimo bem, e por isso devemos agradecer imensamente ao Senhor; contudo, o que apresentei como riscos, temores, dificuldades e limitações não é uma novidade para vocês. Todos nós o conhecemos e todos nós o ouvimos muitas vezes. A questão decisiva será o nosso modo de agir depois da análise e da diagnose adequadas.
Neste sentido, desejo dizer-lhes que lendo as cartas do Padre Rua, do Padre Albera e do Padre Rinaldi, endereçadas à Congregação nas suas primeiras décadas de vida, muito me alegrei pelo sentido que eles davam a elas. São cartas simples, muito familiares, que procuram colher o impulso do crescimento, desenvolvimento e sistematização da Congregação, com suas luzes e sombras e com os grandes desafios que iam surgindo, e entre eles a primeira guerra mundial. São cartas que percebem o risco de “descuidar” daquilo que fora central em Dom Bosco. Ou seja, o “Da mihi animas cetera tolle”, o nosso Evangelizar e Educar hoje, sendo totalmente dos jovens e para eles. E diante desses desafios, não duvidamos de tornar simples, mas muito vivas as chamadas de atenção para não descuidar da razão fundamental pela qual Dom Bosco deu vida à Sociedade Salesiana.
Em sintonia com este sentir dos Reitores-Mores, primeiros e últimos, eu lhes estou expondo nestas páginas o que trago profundamente no coração. Creio firmemente que naquilo que desejei chamar de “Meu sonho – em suas cinco partes” estou projetando muito da vida e riqueza da nossa Congregação, e tenho a grande esperança de que continuaremos neste caminho, crescendo, avançando no que é fundamental, no que realmente nos faz ser o que somos. Encontrando-me com os Inspetores em vários momentos, disse-lhes que jamais devem permitir-se que os problemas que podem encontrar obscureçam o olhar sobre o muito de bom e belo que cada um tem na própria Inspetoria. As dificuldades deverão ser enfrentadas, mas é muito mais belo animar cada salesiano a continuar dando o melhor de si mesmos, do que somos, isto é, viver demonstrando que somos, como educadores e evangelizadores, apaixonados pelos jovens, envolvidos na ‘trama de Deus’ e que, com nossos irmãos salesianos, em nossas comunidades, e com tantos educadores, educadoras, amigos leigos empenhados, queremos continuar a tornar realidade este sonho de Dom Bosco, com o mesmo entusiasmo com que ele conseguiu transmiti-lo aos seus primeiros salesianos e leigos para merecer a qualificação que nos deu Paulo VI, chamando-nos de “missionários dos jovens”.
3.5. Sonho uma Congregação sempre missionária
3.5.1. Porque é algo de constitutivo que nos caracteriza
Assim lemos em nossas Constituições: “Os povos ainda não evangelizados foram objeto especial dos cuidados e do ardor apostólico de Dom Bosco. Eles continuam a solicitar e a manter vivo o nosso zelo; reconhecemos no trabalho missionário um traço essencial da nossa Congregação.29 Com a ação missionária realizamos um trabalho de paciente evangelização e fundação da Igreja num grupo humano” (C. 30).
Permito-me recordar aqui o que bem sabemos: Dom Bosco, desde jovem, acariciou o desejo de ser missionário. Padre Cafasso, acompanhando-o em seu discernimento vocacional, “obstruiu” o seu caminho, dizendo-lhe que não devia ir às missões (cf. MB 2,203-204), mas ele sempre teve este pensamento no coração e realizou-o mediante os seus filhos, desde aquele 11 de novembro de 1875, escolhendo do grupo dos seus primeiros salesianos aqueles que enviará à América para prover às necessidades espirituais dos emigrantes e levar o Evangelho aos povos que não o conheciam. Desde aquela primeira expedição até a do próximo 27 de setembro de 2015, terão sido 146. Pouco depois do primeiro envio dos salesianos, também as Filhas de Maria Auxiliadora, ano após ano, foram às terras de missão. Atualmente, este envio conta também, frequentemente, com a presença de leigos missionários e missionárias.
Não devemos descurar um dado que fala por si mesmo e que já recordei numa carta anterior (ACG 419). À morte de Dom Bosco, os salesianos já eram 153 na América, ou seja, 20% dos salesianos de então, como resulta do catálogo da Congregação daquele ano.
E o Padre Paulo Albera escreve numa de suas cartas de 1912, referindo-se a Dom Bosco: “As missões eram o assunto predileto das suas conversas, e sabia infundir nos corações um vivo desejo de chegar a ser missionários, de modo que parecesse a coisa mais natural do mundo”.30
Estive sempre convencido de que a dimensão missionária é um traço essencial e constitutivo da nossa identidade como Congregação. Quanto mais me aproximo dos nossos documentos, tanto mais firme é esta convicção, e sirva como demonstração o que segue. O CG 19 pedia à Congregação para reviver “o ideal de Dom Bosco, que desejou que a obra das Missões fosse a aspiração permanente da Congregação, de tal modo que fizesse parte da sua natureza e da sua finalidade”,31 e o Padre Vecchi escreve a seu tempo: “Uma vez que o sentido missionário não é um traço opcional, mas pertence à identidade do espírito salesiano em todas as épocas e situações, na programação do Reitor-Mor e do seu Conselho nós o propusemos a todas as Inspetorias como área de atenção”.32
Bem sabemos o quanto Dom Bosco, que não foi a nenhuma terra distante, trabalhou com seus meninos em Valdocco acendendo neles e nos seus jovens salesianos esta paixão missionária, este zelo pela difusão do Evangelho. As diversas leituras, o Boletim Salesiano e tudo quanto parecia útil e oportuno era empregado para difundir este sonho missionário.
3.5.2. Porque os tempos que vivemos o exigem intensamente
Não pretendo ilustrar com estas linhas nada de novo a respeito deste tema. Temos muita documentação, preciosa; desejo, contudo, sublinhar algumas coisas que trago comigo, neste que chamei de meu sonho:
A dimensão missionária deve ser algo característico de cada um de nós, porque faz parte do espírito salesiano em si mesmo. Ou seja, não se trata de algo acrescentado para alguns. É parte essencial do nosso coração pastoral. Depois, certamente, muitos dos nossos irmãos sentem este convite especial e pessoal do Senhor para ser missionário ‘ad gentes’.
A nossa Congregação, mais do que nunca e por fidelidade ao Evangelho, à Igreja e a Dom Bosco, deve continuar a ser missionária. Enumerei outras vezes alguns desafios missionários que temos no horizonte e os campos nos quais devemos fortalecer a missão.
Renovo neste momento o meu convite a todos os que se sentem chamados à “missio ad gentes et ad vitam” que acolham este apelo e possamos realizar, no tempo oportuno, o discernimento adequado. Recebi cartas de irmãos, em geral jovens, que me diziam desejarem ser missionários, mas que o seu superior (às vezes o diretor, às vezes o inspetor) os dissuadia ou simplesmente lhes proibiam ou não os autorizavam.
Contemplando com o coração de Dom Bosco, creio poder dizer que ninguém deveria colocar empecilhos a estes apelos vocacionais que o Senhor faz, e as próprias dificuldades locais ou das Inspetorias não devem entrar nestes desejos generosos. Irmãos, jamais nos esqueçamos de que o Senhor é muito mais generoso do que nós possamos ser.
Acrescento, enfim, que os tempos sejam maduros, e a necessidade da missão o aconselhe, para que, de maneira coordenada e com conhecimento do Reitor-Mor por meio do Conselheiro Regional e do Conselheiro para as Missões, possamos oferecer a ajuda de irmãos das Inspetorias que têm mais vocações, de maneira temporária, por um determinado tempo, a outros lugares e Inspetorias da Congregação. Caros irmãos Inspetores, sejam generosos! Dom Bosco o foi de modo excepcional.
Concluo esta carta, que desejei compartilhar com vocês com vivo afeto e convicção, apelando aos meus irmãos salesianos, fazendo-lhes presente o momento de pensar na nossa Congregação, na nossa Consagração e Missão, e agradecendo sempre o Senhor pela vida de cada um.
Foram muitas as visitas deste ano a Valdocco. Em poucos dias estarei ali de novo. Prometo a minha oração ao Senhor com a intercessão de Dom Bosco e da nossa Mãe Auxiliadora. Ela é não só Aquela que fez tudo com Dom Bosco, mas também Aquela que nos acompanha como Evangelizadores e Educadores na fé dos nossos jovens, como Mãe da Igreja e Auxiliadora do Povo de Deus, neste momento histórico especial que nos cabe viver.
A Ela dirijamos a nossa oração com a mesma oração feita pelo Papa Francisco na “Lumen Fidei”:
Ajudai, ó Mãe, a nossa fé.
Abri o nosso ouvido à Palavra,
para reconhecermos a voz de Deus e a sua chamada.
Despertai em nós o desejo de seguir os seus passos,
saindo da nossa terra e acolhendo a sua promessa.
Ajudai-nos a deixar-nos tocar pelo seu amor,
para podermos tocá-Lo com a fé.
Ajudai-nos a confiar-nos plenamente a Ele, a crer no seu amor,
sobretudo nos momentos de tribulação e cruz,
quando a nossa fé é chamada a amadurecer.
Semeai, na nossa fé, a alegria do Ressuscitado.
Recordai-nos que quem crê nunca está sozinho.
Ensinai-nos a ver com os olhos de Jesus,
para que Ele seja luz no nosso caminho.
E que esta luz da fé cresça sempre em nós
até chegar aquele dia sem ocaso
que é o próprio Cristo, vosso Filho, nosso Senhor.
Um grande abraço a cada um, com a Bênção do Senhor e os meus votos de felicidades a todos vocês, Irmãos. Com todo o meu afeto
Ángel Fernández Artime, sdb
Reitor-Mor
1 Papa Francisco: Carta Apostólica a todos os consagrados por ocasião do Ano da Vida Consagrada, 10, 21 de novembro de 2014, I, 1.
2 ACG 419, 27
3 Papa Francisco, Mensagem para a abertura do Ano da Vida Consagrada, 30 de novembro de 2014.
4 CG27, n. 4
5 ET 55 citada em CGE 20, n. 22
6 CG 23, n. 165
7 V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Documento de Aparecida (29 de junho de 2007), n. 360
8 Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n. 264
9 O Padre Vecchi expressa esta experiência de vida consagrada nesta bela maneira: “A experiência pessoal de quem se sentiu chamado a este modo de vida: a luminosidade única com que Cristo se faz presente a nós e o fascínio que exerceu sobre nós, a riqueza das perspectivas que se abrem à existência quando se concentra em Deus, a paz que se experimenta ao amar a Deus com coração indiviso, a alegria da entrega na missão, o privilégio de gozar da intimidade de Cristo e participar da Vida Trinitária”; in J. E. Vecchi, Educatori appassionati esperti e consacrati per i giovani. Roma, LAS 2013, 112
10 Este acréscimo é meu.
11 M. Beatrix Mayrhofer, ssnd: Paradigma innovador en la Vida Consagrada. Revista Vida Religiosa – Monográfico -. Madri, 5/2014/Vol 116, p. 65/(513).
12 CG 27, n. 32
13 Cf. CG27. Discurso do RM no encerramento. Ponto 2.2.1
14 Papa Francisco. Mensagem para a abertura do Ano da Vida Consagrada.
15 Cf. Papa Francisco, Carta apostólica a todos os consagrados..., I, 3
16 Cf. CGE 20, n. 181, e também nn. 70,71,76,181,596,603 e 612
17 Cf. CG 21, n. 158,159 que se refere ao CG 20 nn. 39-44, 181,515 e 619
18 Cf. CG 22, n. 6
19 Cf. CG 23, n. 230
20 São João Crisóstomo, citado em EG 57.
21 Papa Francisco: Carta Apostólica a todos os consagrados..., II, 4.
22 J. E. VECCHI, ACG 373 [seção: ‘A ação pastoral na comunidade’]
23 P. CHÁVEZ, ACG 379, “Caros Salesianos, sede santos”, 14,15ss, 19ss; ACG 383, 70 ss; ACG 384, 19-20 e 26-28; ACG 386, 16-19 e 44ss;
24 Cf.. Cartas circulares: Projeto Educativo Salesiano (ACG 290); Nova Educação (ACG 337); Educar à fé na escola (ACG 344); Somos Profetas-Educadores (ACG 346) 4ss. (3504ss.)
25 J. E. VECCHI, ACG 357, 19ss; ACG 362, 12-15;
26 CG23, n. 95, citato também in DICASTÉRIO PARA A PASTORAL JUVENIL SALESIANA, A pastoral juvenil salesiana. Quadro referencial. Roma, 2014, 52
27 J. E. VECCHI, ACG 364, 17
28 DICASTÉRIO PARA A PASTORAL JUVENIL, Ibid, 56
29 O cursivo é uma ênfase minha.
30 Lettere circolari di Don Paolo Albera ai salesiani. Direzione Generale Opere Don Bosco, Turim, 1965, 133
31 ACG n. 244, 209
32 J. E. VECCHI, ACG 362, 7