Egídio Viganò
COMO RELER HOJE O CARISMA DO FUNDADOR
Atos do Conselho Geral
Ano LXXVI – maio-agosto, 1995
N. 352
Introdução – Uma experiência vivida – Duas convicções básicas – Os caminhos a seguir – A reelaboração das Constituições – O espírito do Fundador – Da “missão “ à redescoberta do “carisma” – A duração e os autores da releitura – Pontos nevrálgicos no processo de discernimento – Urgência de concretitude metodológica – Animação e governo – Uma visita do Espírito do Senhor – Possuímos uma “carta de identidade” válida e atualizada.
Roma, 8 de fevereiro de 1995
Introdução – em Valdocco – da Causa
de beatificação e canonização de Mamãe Margarida
Queridos irmãos,
hoje, finalmente, teve início de forma solene, em Turim, na basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, o processo oficial de beatificação e canonização de Mamãe Margarida. Em Valdocco, onde ela testemunhou – pode-se dizer heroicamente por bem dez anos – a sua generosa colaboração com o filho João para dar vida ao providencial carisma salesiano da Obra dos oratórios. Sabe o nosso Pai e Fundador o quanto isso tenha custado à Mãe e o quanto ela mesma tenha contribuído para o sucesso, estilo, ambiente de família, espírito de bondade e sacrifício, que caracterizam ainda hoje toda a instituição salesiana de Dom Bosco. Agradeçamos ao Senhor e rezemos para que a causa possa caminhar positivamente e com rapidez.
Ofereço-vos, por ocasião de data tão significativa, a reflexão sobre um argumento que me foi solicitado para o 20º Encontro do Instituto de Teologia da Vida Religiosa “Claretianum”, aqui em Roma no dia 16 de dezembro de 1994. Deram-me o delicado e importante tema “A releitura fundacional feita pelos Salesianos”. O desenvolvimento não foi pensado diretamente para nós, mas, em certo sentido, pode resultar muito útil pensá-lo juntamente com outros consagrados.
Ao apresentar-vos os conteúdos dessa minha conversação entendo convidar-vos a fazer uma atenta consideração de síntese histórico-carismática que sirva para iluminar salesianamente os caminhos de renovação que estamos percorrendo depois do Concílio Vaticano II.
Uma experiência vivida
A ótica desta minha relação é substancialmente a de uma espécie de crônica histórica repensada. O tema de “como reler hoje” o carisma é desenvolvido com uma ótica “de fato”, não tanto para indicar “como” se deva fazer, quanto para dizer o que fez o meu Instituto. Trata-se de uma experiência que eu vivi pessoalmente desde o Concílio Vaticano II até hoje.
A experiência vivida não é tese a defender, mas realidade de vida – confortada por decênios de experimentação – que pode também oferecer sugestões (em parte comprovadas) para saber reler sempre melhor as próprias origens espirituais.
Duas convicções básicas
A releitura do carisma do nosso Fundador está nos empenhando já há bem trinta anos. Dois grandes fachos de luz nos ajudaram nesse trabalho: primeiro, o Concílio Ecumênico Vaticano II, segundo, a transformação epocal desta hora de aceleração histórica.
Partimos da convicção de que o Concílio é uma visita histórica do Espírito Santo à Igreja de Cristo para uma nova hora de sua missão no mundo: o maior acontecimento pastoral do século XX em vista de uma renovação autêntica. Nele devia-se buscar luzes e orientações também para a renovação da Vida Religiosa. Tratava-se de centrar-se sobre pontos estratégicos da grande mensagem conciliar, aprofundá-los, assumi-los e aplicá-los à releitura do nosso carisma.
Procurou-se aplicar, particularmente à luz de quanto dito na Lumen gentium, aquilo que o decreto Perfectae caritatis solicitava no n. 2: a “accommodata renovatio” com suas duas componentes de “retorno às fontes” e “adaptação às mudadas condições dos tempos”.
A complementaridade dos dois critérios devia evitar a ameaça de fixismo, esclerose e formalismo e, ao mesmo tempo, evitar a ruptura com as origens.
A aplicação desses dois critérios, simples e claros no enunciado, demonstrou-se, porém, muito complexa na prática.
A transformação epocal, já descrita com aguda percepção de perspectiva na Constituição conciliar Gaudium et spes, apresentara-se com vigor, sobretudo em algumas zonas ocidentais onde nosso Instituto atua com numerosas presenças. Enfrentava-se uma problemática crescente de novidades culturais que influíam fortemente na missão específica do Instituto e também, ao menos em parte, no estilo de vida religiosa. De outra parte, já se notavam impulsos de autenticidade duvidosa, que podiam fazer desviar ou esvaziar um sadio processo de renovação.
A renovação cultural não podia ser excluída e desconhecida, mas devia ser confrontada com a novidade evangélica inerente a um carisma verdadeiro. E isso abria um horizonte de trabalho muito vasto e delicado. Foi então que se formulou a famosa expressão: “Com Dom Bosco e com os tempos, e não com os tempos de Dom Bosco!”.
O fato de ter consciência clara desse inelutável desafio levou os responsáveis pelo Instituto a dar extraordinária importância ao Capítulo Geral Especial desejado pela Sé Apostólica. Houve o esforço de prepará-lo com seriedade verdadeiramente inédita, com a participação de todas as Províncias e de todos os irmãos. Organizaram-se equipes de especialistas para uma análise bem detalhada dos temas vitais a serem enfrentados e se predispôs também um esboço de reelaboração das mesmas Constituições. Foram redigidos acuradamente um conjunto de bem 20 pequenos volumes para uso dos capitulares. Pensava-se na grave responsabilidade, quase de “refundação”: aquilo que Dom Bosco tinha feito “pessoalmente” deveria ser repensado e reelaborado, em certo sentido, “comunitariamente”, em relação às exigências da transformação epocal e em plena fidelidade às origens.
Muito ajudou, ao lado de estudos históricos, uma análise séria, embora sintética, dos questionamentos das mudanças culturais (secularização, socialização, personalização, libertação, inculturação, aceleração da história, promoção da mulher etc.).
Jamais se fizera um trabalho tão vasto e realista.
Os caminhos a seguir
A releitura fundacional não podia ser simplesmente um estudo, mais ou menos científico, das fontes, mas discernimento espiritual, feito por discípulos empenhados a partir do interior da mesma experiência vocacional.
É a consideração de quem sabe perceber a alma do próprio Instituto, sua intencionalidade, seus dinamismos, seu modo de seguir Cristo e de trabalhar na Igreja, e de amar os jovens no mundo assim como eles são. O retorno às fontes não devia ser um passeio arqueológico através de documentos antigos, mas uma revisitação dos momentos de fundação e do coração do Fundador em sua experiência original de discípulo do Senhor. Devia ser uma releitura orgânica e dinâmica que implicasse autoconsciência de comunhão com o Fundador, mediante a experiência coletiva de todo um Instituto que, através dos tempos compartilhou seu espírito e missão. Era preciso saber harmonizar, com dosagem apropriada, tanto o momento histórico como o teologal e o cairológico.
Foi necessário percorrer caminhos complementares e interdependentes para encaminhar essa releitura procurando, em cada um deles, uma contribuição específica. Os principais caminhos seguidos foram:
a. O caminho histórico: o carisma é uma experiência vivida e não uma teoria abstrata. Fez-se, por isso, um sério estudo das fontes que se referem à pessoa do Fundador e à mesma fundação: o contexto cultural e social e seu influxo sobre o Fundador; sua vida e suas obras; as pessoas que tiveram influência sobre ele e com as quais teve especiais contatos; seus escritos, etc.
b. O caminho experiencial: adquire importância e concretitude na releitura fundacional, a experiência vivida pela grande comunidade dos discípulos, os valores que encarnaram a partir da consciência e da responsabilidade da mesma vocação. O caminho de fidelidade constitui uma espécie de “sensus fidelium” congregacional. Faltando a experiência perseverante e fiel dos seguidores do Fundador, arrisca-se
a ser sujeitos de contínuas mudanças de identidade, em busca de uma modernização forçada do carisma segundo a moda do tempo, confundindo o que é caduco com o que é essencial;
a deixar o fundador de lado, com o pretexto de que suas finalidades e objetivos já não são atuais.
c. O caminho dos sinais dos tempos: o caminho “histórico” e o “experiencial” permitem aproximar-se, com mais sensibilidade e tranquilidade, também da contribuição dos sinais dos tempos. Como já disse, ignorá-los seria condenar o carisma a permanecer fechado – contra sua natureza – em um museu. Se, de um lado os sinais dos tempos exigem aprofundamentos e adaptações por parte do Instituto, de outro permitem uma compreensão nova e de verdadeira atualidade do dom do Espírito. Ajudam a perceber até para quais horizontes o Senhor impele a sua Igreja e os seus carismas.
d. O caminho espiritual: é um caminho que não exclui nenhum dos anteriores, mas que os unifica e incorpora a partir de uma atitude e uma ótica fundamentais: discernimento da vontade do Senhor, obediência ao seu chamado ao longo da transformação da história. Podem percorrer esse caminho somente pessoas “espirituais”, que cultivem uma especial docilidade ao Espírito. Ele permite ultrapassar o contexto sociocultural vivido pelo Fundador, para fazer brotar no hoje suas intenções evangélicas com suas intuições fundantes, a ponto de realizá-las no contexto atual e nos novos tempos, e transformá-las em “cultura” de atualidade.
A reelaboração das Constituições
O empenho de reelaborar a fundo o texto constitucional teve um papel importante de concretitude e de guia dos trabalhos em nossa releitura fundacional. De início, houve resistências por vários motivos; e mesmo depois, com o trabalho já encaminhado, alguém pensava que bastasse retocar aqui e ali as Constituições anteriores. Resultou uma decisão muito sábia a audácia de, na fidelidade, embarcar no repensamento e na reelaboração de tudo.
Evidentemente o delicado trabalho foi organizado segundo as novas orientações conciliares.1 Devia-se trabalhar para se chegar a um “Código fundamental” no qual descrever com autenticidade a identidade, os valores evangélicos, a índole própria, a dimensão eclesial, as tradições sadias e, também, as indispensáveis normas jurídicas, necessárias para garantir o caráter, fins e meios do Instituto.
Diversamente da normativa anterior, o Ecclesiae Sanctae quis que as Constituições renovadas fossem ricas de princípios evangélicos, teológicos e eclesiais; não, contudo, como agregado artificial introduzido exteriormente e a nível teórico, mas como percepção e explicitação emanadas da mesma vivência do Fundador e de todo o seu projeto de vida. Elas deviam conter a síntese integral de um projeto original de vida consagrada, indicando os princípios substanciais com que o Fundador quer que os seus sejam discípulos de Cristo com um determinado senso eclesial.
Era preciso chegar nas Constituições a uma integração harmônica entre inspiração evangélica, criteriologia apostólica e concretitude estrutural, pondo à vista, para além das exigências institucionais, a experiência histórica de Espírito Santo vivida pelo Fundador e por ele transmitida ao Instituto.
Dom Bosco, nosso Fundador, esforçara-se ao máximo para transfundir a sua experiência pessoal nas Constituições (nos limites do que então se podia fazer), para deixar um “testamento vivo” que fosse como espelho refletor das linhas mais características de sua feição espiritual e apostólica. Ele mesmo, com razão, tinha podido afirmar que “amar Dom Bosco é amar as Constituições”; e, entregando uma cópia delas ao P. Cagliero de partida para a Patagônia como chefe de sua primeira expedição missionária, exclamou com comovida persuasão: “aqui está Dom Bosco que vai convosco”.
Na reelaboração das Constituições, procurou-se justamente, enviar o mais possível à realidade espiritual do Fundador, aos seus escritos mais carismáticos, à sua experiência comprovada, como “modelo” de onde deriva a ótica genuína e a chave indispensável de releitura fundacional.
Esse trabalho não foi fácil; durou mais de um decênio, mas constitui de fato a síntese mais clara e autorizada de nossa releitura fundacional. Tudo isso foi enriquecido com um “comentário” autorizado, artigo por artigo, como válido subsídio para a reta interpretação das Constituições. Elaborou-se, também, um “livro de governo”, em dois volumes – um para o Provincial e outro para o Superior local – em vista da renovação do exercício da autoridade. Pôde-se também redigir uma apropriada “Ratio institutionis” para a formação inicial e permanente dos irmãos.
O espírito do Fundador
Para a reelaboração das Constituições foi dada particular atenção à sua estruturação orgânica, numa visão global e unitária. Um projeto de vida não suporta rupturas que escondam ou prejudiquem o alcance de um plano que é, em si, vitalmente orgânico. Mas, para que isso fosse feito, era necessário que elucidássemos dois conceitos postos à base de tudo: “consagração “ e “missão “ e suas relações recíprocas. Pode-se dizer que se desencadeou então uma verdadeira batalha capitular; que não se resolveu muito facilmente, como veremos, mas, no fim, em sua solução, encontramos a chave da organicidade.
Entretanto, como elemento independente e basilar (pelo menos para o trabalho que se devia fazer), desejou-se garantir a descrição dos traços mais significativos da fisionomia espiritual do Fundador. No interior dos grandes valores evangélicos, comuns a todos os Institutos de vida consagrada, era preciso saber individuar o estilo quotidiano, as atitudes pessoais e comunitárias, as modalidades de convivência e de trabalho, ou seja aquele clima e atmosfera de casa, que constitui a fisionomia própria; decerto, mesmo nisso era preciso hierarquizar as componentes, porque se tratava de uma releitura em profundidade com um próprio centro propulsor, que não devia ser teoria lógica, mas permanecer descrição tipológica.
Foi colocado na importante 1ª Parte do novo texto constitucional um capítulo todo novo de 12 artigos (de 10 a 21) que condensam o que se considerou a substância do “espírito de Dom Bosco”.
O Vaticano II – como já dissemos – convidara os religiosos a concentrar a própria atenção na figura do Fundador, como expressão original da multiforme santidade e vida evangélica da Igreja. Cada Fundador nasceu d’Ela e para Ela viveu.
Paulo VI recordou a todos: “O Concílio insiste na obrigação, para religiosos e religiosas, de serem fiéis ao espírito de seus Fundadores, às suas intenções evangélicas, ao exemplo de sua santidade, vendo nisso um dos princípios da renovação em curso e um dos critérios mais seguros do que cada Instituto deve eventualmente realizar. Porque, se o chamado de Deus se renova e se diferencia de acordo com as circunstâncias de lugar e de tempo, exige, contudo, orientações constantes”.2
Usamos a terminologia “espírito” mais do que “espiritualidade”, por fidelidade à historicidade e à vivência do Fundador como “kairòs” que se fez modelo; a “espiritualidade”, diversamente, parece referir-se a conceitos mais abstratos.
O trabalho realizado constitui hoje certamente um dos valores de nossa releitura fundacional; estamos convencidos de agradar ao próprio Dom Bosco que, falando com humildade do texto constitucional por ele redigido segundo as normativas da época, dizia que o texto podia ser considerado como um “rascunho” daquilo que ele mesmo desejava, mas que seria “passado a limpo” pelos seus filhos.
Concentrar a atenção no espírito do Fundador significava privilegiar a interioridade e as atitudes do coração, ter os mesmos sentimentos com que ele recopiara os de Cristo.
Isso também faz entender o salto de qualidade desejado pelo Concílio na concepção das Constituições: de um texto mais normativo e jurídico à síntese genial e estimulante da experiência evangélica de um “chefe-de-escola” de santidade e de apostolado.
O espírito do Fundador está certamente ligado também à cultura do tempo; nela se manifesta, transcendendo-a, a ponto de constituir um conjunto de traços espirituais possíveis de encarnação em outras culturas. Ele pertence, por isso, à transcendência e à adaptabilidade do carisma. Sua transmissão, porém, não acontece simplesmente com palavras, mas com uma tradição continuada de vida ligada, de fato, a um longo e delicado processo de sadia inculturação.
Da “missão “ à redescoberta do “carisma”
Já acenei ao debate capitular sobre as noções fundamentais de “consagração “ e “missão”. O aprofundamento da relação recíproca entre esses dois aspectos vitais esteve no centro de nossa releitura e constituiu uma base para a síntese conclusiva. O Concílio bem interpretado levou-nos a uma convergência convicta e dinâmica.
Iniciados os trabalhos do Capítulo Geral Especial foi estabelecida, entre outras, uma comissão dedicada especificamente ao estudo do “carisma do Fundador”. Ela encontrou grandes dificuldades e, depois de certo tempo, foi dissolvida. Por que?
Os motivos fundamentais foram de duas espécies, entre si contrastantes. Alguns não queriam o estudo do carisma, que poderia abrir o futuro a aventuras arbitrárias; outros, diversamente, não o queriam porque poderia sacralizar elementos culturais e transitórios do século passado. A soma dos dois grupos prevaleceu numericamente; não havia ainda mentalidade suficientemente iluminada a respeito.
É útil recordar também que nos documentos do Concílio jamais se usa a expressão “carisma” do Fundador, embora sejam indicados os elementos característicos da índole própria. O primeiro uso oficial da expressão “carisma” do Fundador é encontrado na Exortação apostólica Evangelica testificatio de Paulo VI, de 1971.3 Encontra-se, depois, esclarecimento autorizado mais específico e descrição mais definida no documento Mutuae relationes de 1978.4
De outro lado, era convicção que, num momento de rápidas mudanças, o aspecto que se fazia mais sentir como questionamento era o da “missão”.
Mas, em que consiste a “missão”? Era muito fácil esquecer a sua natureza teológica para restringi-la ao âmbito operativo das atividades. E assim uma mentalidade de tipo “essencialista” afirmava o primado ontológico do tipo de “consagração” que não poucos pensavam que devia preceder e orientar todo o projeto.
Um problema nada fácil, alimentado entre os capitulares de concepções redutivas e impróprias tanto do conceito de “consagração “ como de “missão “.
O caminho que nos abriu o sentido autêntico da releitura do carisma foi o de entender o significado desejado pelos Padres conciliares no famoso verbo “consecratur” da Lumen gentium n. 44. Foi um trabalho longo e debatido para se chegar a mudar a mentalidade sobre o conceito de “consagração “ religiosa.
Antes, ela era identificada com os aspectos mais típicos da interioridade (oração, votos) e se considerava como seu sujeito agente o indivíduo religioso (“eu me consagro”). Isso levava a prescindir do verdadeiro conceito de carisma e a colocar em segunda linha a “missão” com suas exigências, como se se tratasse apenas da ação e das obras e não fosse teologicamente inerente à própria consagração. Isso tudo influía evidentemente no próprio modo de estruturar as Constituições. Houve um debate muito sofrido para superar esse dualismo entre “consagração” e “missão”, que atingia na raiz a identidade de nossa vocação apostólica.
Muito serviu o que afirma o Concílio no n. 8 do Decreto Perfectae caritatis e, sobretudo a consideração de que é Deus o agente ativo tanto da consagração como da missão. Dessa forma repensou-se o significado da Profissão e dela se elaborou uma nova fórmula.
Em particular, aprofundou-se o nexo teológico inseparável entre “consagração” e “missão”, dando um sentido renovado a todo o projeto da índole própria e abrindo a possibilidade de repensar a estrutura constitucional. Essa visão de nossa “consagração apostólica” foi sintetizada num artigo das Constituições que diz: “Nossa vida de discípulos do Senhor é uma graça do Pai que nos consagra com o dom do seu Espírito e nos envia para sermos apóstolos dos jovens. Com a profissão religiosa oferecemo-nos a nós mesmos a Deus para caminhar no seguimento de Cristo e trabalhar com Ele na construção do Reino. Missão apostólica, comunidade fraterna e prática dos conselhos evangélicos são os elementos inseparáveis da nossa consagração, vividos num único movimento de caridade para com Deus e para com os irmãos. A missão dá a toda a nossa existência o seu tom concreto, especifica a tarefa que temos na Igreja e determina o lugar que ocupamos entre as famílias religiosas”.5
Trata-se, então, de viver uma existência cristã, ao mesmo tempo consagrada e apostólica, ou melhor, apostólica porque consagrada. O dom do Espírito ao professo comporta nele uma “graça de unidade” que o torna capaz de uma síntese vital entre a plenitude da consagração e a autenticidade da operosidade apostólica. “Esse tipo de vida – afirma o Capítulo Geral Especial – não é algo de fixo e pré-fabricado, mas um projeto em construção permanente. Sua unidade não é estática, mas unidade em tensão e em necessidade contínua de equilíbrio, revisão, conversão e adaptação”.6
Essa graça de unidade, fruto da caridade pastoral, foi recentemente descrita também pelo Santo Padre na Exortação apostólica Pastores dabo vobis.7 E o mesmo João Paulo II numa alocução feita aos Capitulares do nosso CG23 a 1º de maio de 1990: “Agrada-me – disse – sublinhar, antes de tudo, como elemento fundamental, a força de síntese unitiva que brota da caridade pastoral. Ela é fruto da potência do Espírito Santo, que garante a inseparabilidade vital entre união com Deus e dedicação ao próximo, entre interioridade evangélica e ação apostólica, entre coração orante e mãos operantes. Os dois grandes Santos, Francisco de Sales e João Bosco, testemunharam e fizeram frutificar na Igreja essa esplêndida ‘graça de unidade’. Seu defeito abre um perigoso espaço para os ativismos ou intimismos, que constituem uma insidiosa tentação para os Institutos de vida apostólica”.8
Encontramos nessa visão de síntese vital a centelha inicial de nossa identidade, que brilha lá onde tudo começa, onde explode a amizade e se ratifica a aliança, onde palpita a graça de unidade. Trata-se do encontro de dois amores, de duas liberdades que se fundem: O “Pai que nos consagra” e “nos envia” e nós que “nos entregamos totalmente a Ele” na aceitação do “envio”. A iniciativa e a possibilidade mesma da aliança apostólica provêm de Deus nessa recíproca fusão de amizade, mas é confirmada por nossas respostas livres: foi Ele quem nos chamou, enviou e ajudou a responder, mas somos nós que nos entregamos e nos fazemos “missionários”.
Para nós, o termo “consagração” sublinhava sobretudo a iniciativa de Deus: é Ele quem consagra! Sabíamos bem que – em seus conteúdos – o próprio termo “consagração” não é de per si unívoco; diferencia-se efetivamente segundo vários níveis de vida eclesial. Não entramos de imediato na consideração dessas diferenciações, deixando para a elaboração das Constituições aquilo que o termo significaria para nós em concreto.
Interessava-nos evidenciar por primeiro o salto de qualidade da parte da iniciativa de Deus: “consecratur a Deo”!
Esse é o salto de qualidade que nos abriu os horizontes.
Fomos levados, nessa ótica de consagração apostólica, a contemplar também o Fundador: Deus, que o escolheu e guiou, fez da sua existência em missão uma “experiência de Espírito Santo” a ser continuada e incrementada no tempo da Igreja.
Eis-nos, assim, diante de uma visão teologal do “carisma do Fundador”: “uma experiência do Espírito”, transmitida e constantemente desenvolvida em sintonia com o Corpo de Cristo em contínuo crescimento... com uma índole própria que comporta também um particular estilo de santificação e de apostolado”.9
O elemento dinâmico que permitiu amadurecer a categoria teológica de “carisma” foi justamente o reconhecimento da iniciativa divina na “consagração” como ação específica de Deus. De fato, essa foi uma verdadeira reviravolta conciliar, que fez repensar o significado da Profissão e a obra específica do Fundador. Serviu também para dar o nome de “vida consagrada” aos Institutos, que eram antes chamados de “estados de perfeição”.
“Consagração apostólica” e “carisma” tornaram-se, para nós, duas categorias teológicas que se sobrepõem e se permutam reciprocamente. Trata-se com efeito, de uma iniciativa exclusiva de Deus, que não se enfraquece num genericismo descaracterizado, mas consiste numa intervenção peculiar que determina uma missão própria e um projeto evangélico de vida para dar uma fisionomia concreta (“estilo de santificação e apostolado”) ao Instituto.
Pode-se dizer que a visão conciliar de “consagração” comporta uma ótica de iniciativa do Espírito Santo que, aplicada à luta histórica da fundação, manifesta-nos a substância mesma do “carisma” dado, tanto ao Fundador como ao Instituto, que tem como fonte permanente de sua continuidade a profissão religiosa de cada um dos sócios.
Embora tenhamos partido com exclusão temporária da categoria “carisma” em nossa releitura fundacional, nela aproamos seguramente, através do aprofundamento providencial do acontecimento “consagração” segundo o Concílio.
A duração e os atores da releitura
Podemos considerar, “grosso modo”, quatro etapas pelas quais passou a nossa releitura: o Capítulo Geral Especial e os três sucessivos Capítulos Gerais; trata-se praticamente de duas intensas décadas de trabalho: dos anos ‘70 aos anos posteriores a 1990.
– O CG20 (10 de junho de 1971 a 5 de janeiro de 1972: sete meses!) foi o Capítulo “especial” desejado pelo Motu próprio Ecclesiae sanctae e a etapa mais longa e trabalhosa de repensamento e reelaboração dos elementos da identidade; continua o Capítulo fundamental de todo o trabalho realizado.
– O CG21 (31 de outubro de 1977 a 12 de fevereiro de 1978) foi um tempo ulterior de revisão e de consolidação. Completou alguns aspectos peculiares da nossa identidade (como o Sistema Preventivo, o papel do Diretor, a figura do Salesiano Coadjutor) em harmonia com a doutrina e as orientações do Vaticano II, e prolongou por outro sexênio a experimentação das Constituições renovadas.
– O CG22 (de 14 de janeiro a 12 de maio de 1984) constitui a última contribuição, que leva a termo a experimentação vivida ao longo de dois sexênios e entrega à Congregação as Constituições e Regulamentos de forma renovada e orgânica.
– O CG23 (de 4 de março a 5 de maio de 1990) diferencia-se dos três Capítulos Gerais anteriores porque propriamente “ordinário”. Os três anteriores pertencem, de algum modo, à categoria do Capítulo Geral “Especial”, por se referirem globalmente à identidade do carisma com variados argumentos a serem discernidos. O CG23, diversamente, trata só de um argumento concreto, escolhido para intensificar a caminhada de renovação. Pode ser interessante observar que, se os três Capítulos “Especiais” aproam com clareza numa identidade já descrita nas Constituições, o CG23 lança a identidade carismática no campo de uma acelerada evolução em vista de uma ortopráxis da missão, recorda-nos que a releitura da identidade não fecha, mas abre a porta com mais coragem, na busca de empenhos a serem inventados na nova evangelização. Portanto: uma releitura também em vista de uma melhor busca em favor da missão.
É interessante observar que as quatro etapas constituem, pode-se dizer, um único processo contínuo e complementar. Isso significa que o texto reelaborado transcende não só o empenho de grupos restritos de determinados irmãos, mas os de cada um dos quatro Capítulos Gerais. Em cada um deles, separados um do outro por seis anos, mudou de fato uma boa parte dos membros e, a cada vez, foi uma novidade de experiência vivida e refletida; pôde-se aquietar, nos Capítulos que se seguiram, o eventual influxo de elementos anteriores que tivessem sido fruto de consideração circunstancial; uma mais profunda e prolongada reflexão pôde corrigir imprecisões ou eventuais ambiguidades; o tempo fez amadurecer o aprofundamento de aspectos delicados, enquanto a aceleração das mudanças levou a saber distinguir mais claramente os valores permanentes dos caducos, aqueles de identidade dos de extração apenas cultural, aumentando a consciência da dimensão eclesial e mundial do projeto evangélico de Dom Bosco.
Pontos nevrálgicos no processo de discernimento
As Constituições, no horizonte conciliar do Ecclesiae sanctae, deviam ser a apresentação autorizada de um projeto de vida evangélica; pedia-se nelas indicação dos princípios fundamentais da sequela de Cristo, sua dimensão eclesial, sua originalidade carismática, as tradições sadias e as estruturas adequadas de serviço.
Elas apresentam, de fato, uma integração harmoniosa entre inspiração evangélica e concretitude estrutural. São um documento fundamental do Direito particular da Congregação. Mais do que estabelecer prioritariamente normas detalhadas a serem observadas, elas descrevem principalmente uma modalidade espiritual e apostólica a testemunhar segundo o espírito das Bem-aventuranças. Ajudam a reler o mistério de Cristo na ótica do Fundador, para nós, na ótica salesiana de Dom Bosco. Repensou-se a sua estrutura geral segundo ordenamento e estilo que convidam à leitura orante e estimulam ao empenho de vida. Se quem a medita o “faz na fé”, ou seja, com olhos “novos”, tira dela luz e força.
Foram seguidos alguns critérios orientadores, compartilhados – mesmo depois de sofridas discussões –, que podem ser considerados como pontos nevrálgicos do caminho percorrido. Além do senso vivo do Fundador, de que já falei, enumero os seguintes:
1. O alcance da profissão religiosa
A releitura do carisma despertou sobretudo a consciência de uma hora germinal para a vida consagrada, com um empenho global de reinício para lançar de novo o projeto do Fundador. Essa sensibilidade de relançamento trouxe consigo a recuperação do significado vital da Profissão religiosa.
Compreendeu-se que não se pode reduzir a profissão somente à emissão dos três votos, como se fossem idênticos em todos os Institutos de consagração. Não se tratava de escrever nas Constituições uma espécie de pequeno tratado genérico de vida consagrada, mas oferecer uma descrição tipológica daquilo que o Concílio chama de “índole própria” do projeto evangélico professado. Era preciso descrever os traços espirituais e as atitudes existenciais que nos devem distinguir e caracterizar no Povo de Deus. Esses aspectos supõem e exigem, sem dúvida, os elementos constitutivos de toda vida cristã, que temos necessariamente em comum com os demais fiéis e religiosos.
A índole própria é constituída por aspectos e colorações existenciais, descritos e precisados no texto constitucional e assumidos explicitamente na profissão como praxe da sequela de Cristo. Coisa, de fato, nem insignificante nem negligenciável para os professos. Para nós, o modo de ser discípulos e de viver o Batismo é o de praticar nossa “Regra de vida”. Para sermos bons cristãos devemos viver como bons salesianos. “Não existem dois planos – dizia-nos já o CGE –: o da vida religiosa, um pouco mais acima, e o da vida cristã, um pouco mais abaixo. Para o religioso, testemunhar o espírito das bem-aventuranças com a profissão é a sua única maneira de viver o batismo e de ser discípulo do Senhor”.
Na profissão religiosa descobrimos, em definitivo, o significado vivo e global da nossa especial Aliança com Deus.
2. O critério oratoriano
Refere-se igualmente ao problema dos destinatários: ponto crucial no Capítulo Geral Especial. Dom Bosco teve como prioridade, a obra dos Oratórios com seus destinatários privilegiados. Em nossa releitura do carisma, o primeiro Oratório de Valdocco foi assumido como modelo apostólico de referência. Esse modelo não se identifica com uma determinada estrutura ou instituição, mas comporta uma ótica pastoral específica para julgar as presenças existentes ou a serem criadas.
No centro deste “coração oratoriano” há a predileção pelos jovens, sobretudo os mais necessitados e das classes populares; antes e além das “obras” existem os “jovens”; o discípulo de Dom Bosco deve sentir-se missionário dos jovens.
A inspiração desse critério ilumina os empenhos eclesiais desejados por Dom Bosco para a Congregação. São eles: a evangelização dos jovens, sobretudo pobres e do mundo do trabalho; o cuidado pelas vocações; a iniciativa apostólica em ambientes populares, particularmente com a comunicação social; e as missões.
A fim de entender com fidelidade os limites desse critério convém ter presentes algumas exigências constitucionais em três diferentes níveis complementares:
escolha preferencial dos destinatários, jovens pobres e, ao mesmo tempo, aqueles que demonstram germes vocacionais;
experiência espiritual e educativa do Sistema Preventivo;
capacidade de convocação de numerosos corresponsáveis escolhidos sobretudo no laicato e entre os próprios jovens.
Trata-se, pois, de um critério complexo, mas concreto, que nos convida a transcender a materialidade das obras e entrar no coração de Dom Bosco para julgar e programar segundo a angulação específica da sua caridade pastoral.
Esse critério, de fato, desembocou, entre outros, num corajoso “Projeto África” que, depois de 15 anos, vê mais de 800 missionários salesianos em 36 países do continente.
3. A dimensão comunitária
Outro ponto nevrálgico da releitura foi o da dimensão comunitária, intrínseca à vida religiosa, embora – para nós – com estilo peculiar próprio.
Não se tratava, porém, de só intensificar um genuíno “espírito de família” entre os irmãos – muito sublinhado desde as origens –, mas de insistir na comunhão especial de responsabilidade na missão: ela é confiada primeiramente à comunidade, que é o seu sujeito responsável.
De aqui o modo peculiar de exercer a autoridade, o aspecto comunitário do projeto educativo-pastoral, o empenho de o formular, realizar e rever em comum, de aqui o estímulo para as contribuições pessoais fora de todo individualismo e de toda independência arbitrária. A comunidade é chamada a um contínuo discernimento pastoral para em seguida caminhar unida e fiel na realização apostólica do carisma.
Esse ponto nevrálgico resultou de grande influxo no longo caminho de renovação.
4. A “forma” do Instituto
A “forma” do Instituto (seja ele “clerical”, “laical”, “misto”, “indiferente”...) comporta alguns traços constitutivos que exprimem e garantem, também juridicamente, a índole própria e caracterizadora do carisma. Ela tem, de fato, uma importância teologal e espiritual na vitalidade e crescimento do carisma: “segundo a nossa tradição – afirmou-se no texto das Constituições – as comunidades são guiadas por um sócio sacerdote que, pela graça do ministério presbiteral e pela experiência sacerdotal, sustenta e orienta o espírito e a ação dos irmãos”.10
A missão, que dá o tom a toda a vida do Instituto, é de natureza pastoral, e todo o espírito do Fundador brota da caridade pastoral do seu coração sacerdotal.
Nosso Instituto não é nem estritamente “sacerdotal”, nem simplesmente “laical”, e nem mesmo propriamente “indiferente”. Os sócios são “clérigos” e “leigos” que vivem “a mesma vocação em fraterna complementaridade”; cada um tem consciência de ser membro corresponsável do “todo”, antes de considerar-se clérigo ou leigo. «As componentes “sacerdotal” e “laical” da Sociedade não comportam a adição extrínseca de duas dimensões confiadas cada uma a categorias de irmãos diferentes entre si, que caminham paralelamente e somam forças separadas, mas constituem juntos uma comunidade que é, como vimos, o sujeito verdadeiro da única missão salesiana. Isso exige uma formação original da personalidade de cada sócio, de modo que o coração do “salesiano-clérigo” se sinta intimamente atraído e envolvido na dimensão “laical” da comunidade, e o coração do “salesiano-leigo” sinta-se, por sua vez, intimamente atraído e envolvido naquela “sacerdotal”».11 Essa é uma característica unitária ligada à específica “dimensão secular” do Instituto. Por isso é verdadeiramente importante promover a um só tempo entre nós uma consciência e um crescimento harmônico dos sócios “clérigos” e dos sócios “leigos” no espírito da tradição salesiana.
Pois bem, o serviço da autoridade na Congregação está ligado a essa originalidade da “forma”. Desenvolve uma delicada função de identidade no espírito e de unidade na ação apostólica. Seu papel específico é o de promover e orientar a “caridade pastoral”, centro e síntese do espírito salesiano e alma de toda a nossa atividade. A graça da Ordenação sacerdotal (que é “o Sacramento da caridade pastoral”) enriquece e avaliza sua capacidade de serviço e faz com que um genuíno critério “pastoral” oriente toda a nossa participação na missão evangelizadora da Igreja, que compreende também a promoção humana e a incisividade na cultura.
Trata-se de uma contribuição a todos os sócios, porque intimamente unido ao critério oratoriano.
5. A descentralização
Estávamos convencidos da urgência de saber encarnar, com metodologia flexível, a identidade comum na diversidade das culturas locais. Essa é uma árdua tarefa: exige clareza da identidade na formação, e uma verdadeira sensibilidade e inteligência de discernimento para as diferenças culturais.
Nós nos sentíamos plenamente de acordo com o P. Voillaume: “Manifesta-se hoje uma tendência questionar a unidade de uma Congregação sob o pretexto de desenvolver as características regionais ou nacionais das fundações. Essa tendência é ambígua. Legítima enquanto reação contra o empenho uniforme de uma expressão unívoca de vida religiosa muito dependente de uma única mentalidade, arrisca-se de forma não menor a pôr em causa uma das características do Reino de Deus, que é o fato de situar-se além de toda cultura, na unidade fraterna do Povo de Deus, que não deveria conhecer nem fronteiras nem raças”.12
Um carisma fechado e inflexível diante dos valores das culturas esclerosa-se e marginaliza-se em relação ao futuro; mas uma cultura fechada ao desafio dos sinais dos tempos, ao intercâmbio com as demais culturas e à transcendência do mistério de Cristo e do seu Espírito, corre o risco de apresentar-se como simples museu do passado ou como interpretação redutiva da universalidade. Percebe-se aqui o quanto se tornou hoje delicada e trabalhosa a atividade formativa no Instituto.
E, ao mesmo tempo, percebe-se o quanto seja importante um exercício da autoridade adequadamente descentralizado para garantir nas Províncias e nos grupos de Províncias homogêneas uma concreta possibilidade de inculturação.
6. A Família Salesiana
Convencidos de que o Fundador lançara o seu espírito e a sua missão mais além do nosso Instituto, e que para ele deixara em herança responsabilidades particulares de animação e coordenação de muitas forças apostólicas, consideramos que o cuidado daquela que se chama “Família Salesiana” é um dos grandes caminhos da nossa renovação.
A “Família Salesiana” é composta de vários grupos instituídos (Institutos de vida consagrada, Associações laicais ou movimentos), que partilham – de formas diferenciadas – o espírito e a missão de Dom Bosco. Isso resulta um campo vasto e fecundo que vê hoje especiais possibilidades no âmbito do laicato empenhado. Já estamos caminhando decididamente, seguindo as pegadas do Fundador, e queremos intensificar e aperfeiçoar essa opção no próximo Capítulo Geral 24 (1996): “Salesianos e leigos: comunhão e participação no espírito e na missão de Dom Bosco”.
Urgência de concretitude metodológica
A releitura fundacional foi, em si mesma, uma intensa e não fácil busca da nossa identidade carismática. Ficamos contentes pelo que se fez e disso agradecemos ao Senhor.
Devemos acrescentar, porém, que essa tão longa releitura não fechou o período de busca: absolutamente. Ou melhor, abriu – ela mesma – uma modalidade de busca ainda mais acelerada e intensa. É como se a releitura fundacional tivesse desencadeado todas as energias a disposição para uma maior significatividade e criatividade apostólica.
Não, portanto, uma leitura terminada e já concluída, mas uma espécie de profecia que relança o processo de renovação iniciado num duplo trilho de novidade: o da assimilação por todos os irmãos em vista da renovação espiritual das pessoas e das comunidades, e o do envolvimento operativo no enfrentamento dos desafios da nova evangelização.
Sabendo com mais clareza e segurança “quem” somos hoje na Igreja (= releitura fundacional), sentimo-nos interpelados enquanto portadores de um “carisma de atualidade”. Isso exige a especial capacidade metodológica de projetação e de ação. O caminho que vai da identidade carismática à atualização da missão hoje (da ortodoxia à ortopráxis) é muito complexo. Aqui se concentra todo o grande problema pastoral da Igreja, “novo ardor, nova metodologia, novas expressões”, capacidade de projetação, seriedade da revisão.
Quanto mais clara for a própria identidade de consagrados, tanto mais exigente será a busca de uma dinâmica atualizada do carisma.
É por isso que o nosso primeiro Capítulo Geral “ordinário” de 1990 (CG23), depois dos “Especiais” para a releitura da identidade, teve como preocupação fazer reviver a missão de Dom Bosco hoje para “educar os jovens à fé”.
Percebemos que a estrada é longa e com inúmeras incógnitas, e que a constância nesse caminho pastoral será a melhor comprovação da autenticidade da releitura fundacional.
Sentimos a urgência de promover todo um setor de reflexão teológica que vá mais além das disciplinas da fé fundamentais e clássicas. Trata-se de um tipo de “teologia pastoral”, que se dobre sobre a vida real entrando em diálogo também com as ciências humanas (históricas, antropológicas, filosóficas, sociológicas, pedagógicas, políticas etc.), levando solidamente em conta as orientações do Magistério que acompanham a praxe eclesial animada pelo Espírito do Senhor: essa praxe também precede de per si a reflexão científica. Uma mentalidade pastoral precisa de muitas contribuições: ao lado da reflexão teológica de caráter bíblico, histórico, dogmático e litúrgico, deve saber desenvolver uma apropriada metodologia de abordagem, fruto da reflexão pedagógica e metodológica que comporta estratégia de ação, estudo e programação de tempos, modos, itinerário, meios, ou seja, elaboração de projetos nos quais se passe de uma situação desafiadora a uma solução positiva como meta a qual se tende.
Quem vive em missão apostólica sente a urgência de qualificar sempre melhor a sua mentalidade pastoral; olha com atenção para o nascimento de centros de séria “teologia pastoral”: teologia “particular”, que não pretende elevar-se como única interpretação do todo, mas que ilumina a praxe. Ela “insere-se na vasta área teológica como parte vital e importante, não, porém, como um todo ou como único critério válido do todo. A ‘pastoral’ não procura mudar a formalidade da teologia; sobretudo, não deve mudá-la quando volta sua atenção e reflexão para algo de concreto, urgentemente vital. Se a urgência de reflexão é precisamente teológica, ou seja, polarizada pela revelação e pela luz do mistério de Cristo sob a orientação do Magistério, seria um grave erro privá-la (como infelizmente aconteceu alguma vez) dessa sua conatural polarização, substituindo-a por uma ótica horizontalista que pretendesse manipular a seu prazer a interpretação do Cristianismo”.13
A nossa leitura fundacional levou-nos, assim, a rever e renovar também as estruturas acadêmicas da nossa Universidade Pontifícia, para que tivessem maior capacidade de proposta pastoral. Garantindo sempre uma séria reflexão teológica, porque é justamente no âmbito de certo entusiasmo dito “pastoral” que se corre também o risco de entrar por estradas não justas, desvinculando-se pouco a pouco da autenticidade do carisma.
Animação e governo
A concretude metodológica em vista de uma ação apostólica atualizada e mais incisiva fez surgir em primeiro plano a indispensabilidade de um empenho de formação permanente para todos os irmãos: assumir com clareza a releitura fundacional e estimular cada comunidade a uma capacidade de projetação concreta para a nova evangelização.
Esse amplo empenho mudou o estilo do exercício da autoridade no governo: o segredo desse exercício é a competência na animação. Quantas iniciativas surgiram a respeito! Não se trata de trabalho simples nem a breve termo, mas absolutamente indispensável; sem ele a releitura fundacional termina na biblioteca.
Constatou-se, assim, que nesta hora de profundas mudanças, o conceito de “formação “ tem o seu significado fundamental e prioritário (“princeps analogatum”) na formação permanente, que toda casa religiosa autêntica se torna centro de formação e que a formação inicial deve voltar-se para a permanente, a fim de preparar os formandos para serem sujeitos capazes e empenhados no embate com os variados e perseguidos desafios do futuro cultural e eclesial.
A mudança epocal chama todos os religiosos a se sentirem de certa forma inscritos num “segundo noviciado” para que renovem a própria profissão religiosa segundo a releitura pós-conciliar.
Com fidelidade ao espírito estimula-se a criatividade na missão com sensibilidade pela multiformidade das situações e levando o governo a se estruturar e caminhar em vista de um “pluralismo na unidade” e de uma “unidade no pluralismo”.
Uma visita do Espírito do Senhor
Estávamos e estamos convencidos – como já disse – que o Concílio Vaticano II foi uma visita do Espírito do Senhor à sua Igreja; ele veio provocar um salto de qualidade em toda a pastoral, partindo da identidade do mistério da Igreja, de suas relações com o mundo e de sua presença de fermento na história.
Preparamo-nos para a nossa releitura fundacional nesse clima de Pentecostes. Tivemos, sem dúvidas, lentidões, resíduos pré-conciliares, miopias e temores que prolongaram muito a releitura; quem sabe ainda ficaram cá e lá algumas zonas escuras a serem eliminadas em harmonia com o conjunto; consideramos, porém, com simplicidade de fé, que todo o trabalho feito não se poderia explicar sem a luz, a criatividade, a visão de futuro próprios de uma especial presença do Espírito do Senhor. Olhando para trás, relendo as Constituições renovadas, observando o desenvolvimento da vida do Instituto, suas transformações e sua vitalidade em todos os continentes, cremos que o Espírito Santo, com a intervenção materna de Maria, presenteou-nos com lentes apropriadas e límpidas para bem reler as nossas origens e relançar-nos para o futuro.
Sentimo-nos no Povo de Deus, chamados pelo Espírito a colaborar, através de nossa missão específica, no laborioso caminho eclesial em direção ao terceiro milênio.
Temos uma “carta de identidade” válida e atualizada
Caros irmãos, agradeçamos e exultemos. O Espírito do Senhor nos iluminou e acompanhou; indicou-nos a via mestra; enriqueceu-nos com um tesouro de vida; tirou-nos das penas da insegurança e dos desvios e garantiu-nos a nossa identidade no Povo de Deus; mas, justamente por isso, abriu-nos um imenso campo de trabalho, onde se deve buscar, labutar, criar, profetizar aquele espírito de iniciativa e de originalidade que caracterizaram as origens apostólicas da nossa missão. Maria nos guie, através da nossa releitura fundacional, ao relançamento do carisma de Dom Bosco em direção às imensas possibilidades e esperanças do terceiro milênio.
Com Mamãe Margarida olhemos para o futuro com intuição e fecundidade maternas.
Com votos de comprometimento.
Cordialmente,
P. Egídio Viganò
Reitor-Mor
1 Cf. ES II, 12 – 1966.
2 ET 11-12, 1971.
3 Cf. ET 11.
4 MR 11.
5 Const. 3.
6 CGE 127.
7 Cf. Pastores dabo vobis 23 e 24.
8 L’Osservatore Romano 25.5.90.
9 MR 11.
10 Const. 121.
11 CG22 80.
12 R. VOILLAUME, La vita religiosa: conversazioni di Béni-Abbès, Citta Nuova 1973, p. 95.
13 Cf. E. VIGANÒ, Per una teologia della vita consacrata, LDC Turim 1986, p. 21-22.