Solenidade da Imaculada Conceição de Maria |
1. CARTA DO REITOR-MOR
«Um amor sem limites a Deus e aos Jovens»1
1. A castidade pelo Reino. O que professamos. – O clima cultural. – A certeza inspiradora: um amor que anuncia o Ressuscitado e o espera. – 2. Castidade e carisma salesiano. No sulco de uma tradição. – A serviço do amor educativo. – Sinal de doação total. "Como um postulado da educação". – Complementaridade enriquecedora. 3. O caminho para a maturidade. Uma emergência que desafia e interpela. – Um caminho a assumir. – Discernimento vocacional e formação inicial. – A parte da comunidade. Conclusão: a força de uma profecia.
Roma, 8 de dezembro de 1998
Queridos irmãos,
Estou escrevendo no início do ano jubilar dedicado ao Pai, do qual provêm todos os dons. Entre os dons maiores recebidos em nossa existência está, depois do Batismo e da vida cristã, a graça especial da consagração sobre a qual vos convidei a refletir na carta anterior.
Nela «sobressai o precioso dom (…) dado pelo Pai a alguns (cf. Mt 19,11; 1Cor 7,7) de votar-se a Deus somente, mais facilmente e com coração indiviso (cf. 1Cor 7,32-33) na virgindade e no celibato»2.
Pareceu-me oportuno continuar, então, o discurso iniciado propondo-vos algumas idéias sobre esta dimensão da nossa consagração.
As Constituições apresentam a manifestação singular que este dom tem em nosso carisma, quando afirmam que é «um amor sem limites a Deus e aos jovens»3. Ele inclui a doação total de si e dispõe a enfrentar com maior liberdade e prontidão também o risco de vida nas fronteiras da missão ad gentes, a solidariedade com os pobres, as situações em conflito.
Enquanto estou concluindo a redação desta carta, tornaram-se públicos os nomes dos missionários e missionárias mortos em 1998 em contextos de guerra, fundamentalismo religioso e conflitos étnicos: um total de trinta e um, que se somam aos numerosíssimos que formam o martirológio do século XX.
Sobre esse fundo, marcado pela história de irmãs e irmãos que não hesitaram em dar a vida, gostaria de colocar a minha reflexão sobre «um modo intensamente evangélico de amar a Deus e aos irmãos»4 realizado através do voto de castidade. Proponho-me, com esta reflexão, evidenciar «o valor educativo da nossa consagração religiosa na vida cotidiana»5, segundo quanto nos propusemos na programação do sexênio.
1. A castidade pelo Reino
O que professamos.
A Exortação Apostólica Vita Consecrata não trata cada um dos conselhos evangélicos em separado. Une-os na graça única da seqüela, limitando-se a explicitar cá e lá significados, valores ou exigências particulares de cada um deles. Sublinha, assim, o caráter de relação pessoal com o Senhor que tem a profissão e a dimensão mística dos votos. Cada conselho compreende atitudes e empenhos específicos, mas acaba por compreender os outros dois. É difícil pensar numa castidade coerente e luminosa destacada da pobreza, que consiste na oferta total dos próprios bens materiais e pessoais, ou de uma obediência do coração, que coloca a si mesmo a qualquer custo à disposição da missão. E vice-versa.
Vita Consecrata não apresenta nem mesmo um discurso extensivo sobre o conjunto dos conselhos, mas insere algumas idéias sobre eles quando trata da consagração, da missão e da comunidade fraterna. Os conselhos são condições para a realização serena e coerente desses aspectos fundamentais da nossa vida e refletem-se em cada um deles.
A clareza com que o evangelho fala da castidade, a freqüência com que os documentos da Igreja e da Congregação, mesmo em tempos recentes, estudaram o argumento ajudaram-nos a adquirir um quadro suficientemente seguro sobre o sentido da castidade consagrada: é um dom do Pai e, da nossa parte, uma resposta livre de amor que nos leva a conformar-nos ao gênero de vida virginal escolhido por Jesus. E são assim também alguns compromissos que ela comporta: o celibato como estado de vida e a prática da continência própria de tal estado, a vontade de doação sem limites a Deus e aos jovens. Doutrinalmente adquirida é também a ascese exigida pela prática da castidade, expressa quase sempre numa série de indicações que compreendem meios humanos e sobrenaturais.
O clima cultural em que vivemos sugere, contudo, que se faça uma reflexão pessoal e contextualizada sobre este conselho6.
Estamos, de fato, quase submersos por imagens, mensagens, opiniões e explicações que se referem à sexualidade, enquanto o silêncio sobre a castidade é quase total.
Isso leva a interrogar-se sobre a atual prática da castidade, sobre as condições a serem exigidas e criadas para que seja amadurecedora e serena, sobre a sua força de testemunho, sobre os percursos pedagógicos e espirituais que nos possam levar à sua significativa realização num mundo que parece não levá-la em consideração.
O clima cultural,
Um certo silêncio sobre a castidade cristã, também de nossa parte, pode derivar da mudança cultural que torna mais difícil hoje do que ontem perceber o seu significado humano e falar, em termos realísticos e delicados, sobre alguns problemas que ela suscita, como as expressões legítimas do amor, a forma do casal, as práticas que se referem à vida, a culpabilidade ou não de determinados comportamentos pessoais.
A reflexão católica è submetida a esforços particulares pela complexidade das questões e pela variedade das opiniões. Procura respostas às interpelações, aprofundando o caráter da pessoa, o papel da consciência, o influxo da situação, a orientação existencial. Juízos sumários, portanto, também formalmente corrigidos mas sem suficiente análise ou aprofundamento, acabam por não resolver interrogativos urgentes levantados pela castidade.
Entre os elementos que marcam a presente evolução está, sem dúvida, a valorização da sexualidade. Ela é complexa. A ela é reconhecido um influxo determinante no desenvolvimento da personalidade. É considerada uma riqueza a explorar, mais do que um instinto a debelar. É colocada em relação com aspectos muito sentidos da pessoa como a maturidade, a realização completa, a capacidade de relação, o prazer, o equilíbrio interior que sabe superar complexos, sentimentos de culpa e inseguranças. Essa perspectiva positiva é assumida também pelo pensamento da Igreja, como demonstram a abundante catequese de João Paulo II e a vasta literatura moral e espiritual.
Por outro lado, caíram os controles sociais e, às vezes, também os familiares. Há tolerância pública e defende-se o direito de opções diversas; antes, imprensa, literatura, espetáculos exaltam muitas vezes a transgressão e apresentam os desvios como opções possíveis, conseqüências de condições pessoais. Qualquer dimensão ética, mesmo apenas humanística, é desvalorizada quando não ignorada, até em programas oficiais amplamente difundidos. Existe a preocupação de viver a sexualidade apenas de modo gratificante e seguro de riscos para a saúde física ou psíquica, separada de componentes que lhe dão sentido transcendente e dignidade humana.
O corpo é valorizado e quase exaltado em suas diversas possibilidades: saúde, forma, beleza, expressão artística, prazer. Está no centro de muitas preocupações e relativas indústrias que respondem e estimulam a novos interesses: ginástica, esporte, cosmética, dança. O pensamento cristão sublinha que o corpo é chamado a integrar-se sempre mais no projeto vocacional, que o homem não tem só um corpo, mas é corpo capaz de exprimir o que o espírito sente e quer comunicar: amor e alegria, ânsia e raiva, atenção pelo outro ou exclusivo interesse por si.
A evolução cultural em seu conjunto e as contribuições de um feminismo equilibrado colocaram às claras a originalidade da mulher, as riquezas do seu gênio e a complementaridade recíproca com o homem. As intervenções de João Paulo II a respeito são sinal também de uma mudança eclesial. A conseqüência, para nós, é uma maior proximidade à mulher, que se expressa na presença comum em todos os âmbitos, na colaboração, na relação mais livre, que não poucas vezes leva à confidência, à familiaridade e à amizade.
Nossas sociedades tornaram-se, ainda, alérgicas a controles e leis que pretendam adentrar-se naquela que é tida a esfera do privado, e, por isso, as mesmas normas morais suscitam reações e têm dificuldade de encontrar espaço em âmbito civil para expressar nele o seu profundo valor humano e religioso. A sexualidade, o amor e, em certo sentido, a família são privatizadas. Não poucos comportamentos e opções pessoais sobre isso deixaram de ser avaliados a partir de uma consideração moral, aceita de modo comum, mas dos direitos da pessoa, considerada ora em sua irredutível dignidade ora confundida com uma liberdade arbitrária.
A transformação cultural em ato comporta desenvolvimentos positivos e custos pesados. Entre os primeiros, podemos enumerar a maior liberdade no viver as próprias opções, a percepção de vazios que pedem para ser preenchidos, sendo-o de fato através da volta do desejo de um amor autêntico, da busca e da oferta do gratuito, isto é, do que não pode ser comprado, mas descoberto e vivido fora dos intercâmbios.
Entre os custos pesados, existe uma insistência exagerada da subjetividade em matéria sexual; o enfraquecimento ou desaparecimento do liame matrimonial e o temor de assumi-lo, com as conseqüentes "adolescências prolongadas"; a proliferação de imagens e material sexual de baixo teor, praticamente à mão de todos, através dos canais e redes autorizadas ou clandestinas.
Tudo isso produz uma ambigüidade que desafia, não só a capacidade de avaliação, mas também o controle dos desejos. Se, de um lado, defende-se tenazmente a dignidade da mulher, que é bem mais do seu corpo, de outro, continua-se a apresentá-la como objeto erótico na publicidade e no cinema. Estimula-se a expressão livre da sexualidade, mas reage-se com dureza quando, descontrolada, ela não reconhece limites. Insiste-se na "emoção", particularmente dos jovens, através de imagens e slogans, e pretende-se deles constância e fidelidade, fruto de capacidade reflexiva e projetual. A conquista dos mercados leva a mídia a voltar-se para a eficácia comunicativa, quando não sobre a esperteza tecnológica, mais do que sobre a oferta de uma visão verdadeira e profunda da realidade.
O clima envolve os jovens aos quais a primeira informação sobre a sexualidade e a castidade chega confusa e ambígua. E não poupa os religiosos, nem sequer aqueles que anteriormente tinham interiorizado a sua visão cristã. Pode derivar daí, também para nós, um queda de sensibilidade, que nos torna quase indiferentes quanto às avaliações ou comportamentos e diminui o valor específico da nossa opção consagrada. Pode desaparecer o rigor da vigilância, que evita expor-se em ocasiões negativas, por parte de quem escolheu colocar Jesus no centro do próprio coração. Podem ser geradas, nos pastores e educadores, uma incerteza na orientação das consciências em comunhão com a Igreja, e na proposição, de modo convincente, da castidade como valor essencial na construção do homem e do cristão.
Isso pode tornar-se muito arriscado, se a educação recebida por nós, que teve seus limites ao lado de inegáveis méritos, não nos tenha munido suficientemente dos instrumentos necessários de avaliação, de atitudes consolidadas de vida, de honestidade interior capaz de desmascarar as racionalizações de que o mal freqüentemente se reveste.
Vita Consecrata convida a responder às provocações da cultura com «a prática alegre da castidade perfeita, como testemunho do poder do amor de Deus na fragilidade da condição humana»7.
Nós Salesianos advertimos a necessidade de uma mobilização interior, pessoal e comunitária, para viver, com mais alegria e com transparência mais irradiante, esta virtude que configura os membros de Cristo à total liberdade e capacidade de dom de sua Cabeça.
Só com o olhar voltado para ele, seremos capazes de perceber o significado da castidade, sobretudo na forma profética e peculiar que brilha no dom da virgindade, professada pelo Reino dos céus, nas comunidades religiosas.
A certeza inspiradora: uma amor que anuncia o Ressuscitado e o espera.
É impossível enfrentar qualquer questão específica da castidade cristã sem buscar suas raízes mais profundas na palavra de Deus. E, mais do que em textos particulares, que certamente não faltam, o fundamento da castidade consagrada e o seu significado devem ser buscados na pessoa mesma de Jesus, Palavra total e definitiva de Deus. Ele é celibatário pelo Reino, para manifestar visivelmente o amor de Deus por todos e cada um. Inaugura assim um outro modo de ser pessoa, em quem a sexualidade realiza, com total liberdade, a pertença plena ao Pai e a doação até o extremo pelos homens.
Tomo da Bíblia apenas algum estímulo que julgo particularmente adequado ao nosso presente. Servirá como convite a aproximardes da Palavra de forma pessoal e tranqüila para colocar a reflexão toda em seu contexto pleno de luz e graça.
O Antigo Testamento entrevê a revelação futura da virgindade pelo Reino quando Jeremias, colocando o seu celibato a serviço da missão profética8, introduz a imagem da virgem de Israel9. A expectativa normal do Antigo Testamento, porém, é a fecundidade, abençoada por Deus com filhos que chegam, de geração em geração, para confirmar as promessas de Javé e a esperança de dar condições, na própria carne e no próprio sangue, à vinda do Messias.
O dom da virgindade pertence ao Novo Testamento e traz em seu cerne – como dizíamos – a memória de Jesus, que a viveu com simplicidade e exprimiu seus conteúdos com a própria existência, entregue ao Pai e ao serviço dos irmãos.
É fácil perceber no Novo Testamento uma acentuação da relação personalíssima que liga o discípulo a Jesus: aparece particularmente forte e propositiva no evangelho de João; desenvolve-se no diálogo de Jesus com Nicodemos e com a Samaritana; torna-se familiaridade na casa de Lázaro, Marta e Maria; demonstra-se fiel na hora da cruz, num entrelaçamento de recíproca entrega e paixão, que vê como protagonistas Jesus, a Virgem Maria, o discípulo predileto.
É justamente o ícone do discípulo que Jesus amava10 que demonstra a centralidade do amor pessoal. O "discipulado" tem sua origem e expressão no amor crente e obediente. Ele é o fundamento do "apostolado". É esse o sentido do diálogo com Pedro no capitulo 21 do evangelho de São João: nele, o amor pessoal pelo Mestre é exigido como condição imprescindível, em vista da entrega do ministério pastoral: «Amas-me mais do que estes?»11.
Trata-se de um amor marcado pela intimidade imediata entre Jesus e o discípulo predileto, que, na última ceia, repousa a cabeça sobre o coração do Mestre. É amor contagioso, que lhe fica ao lado na prova. É amor iluminado, que no dia da Ressurreição "crê sem ver", e mantém o olhar aguçado, capaz de reconhecer o Ressuscitado à margem do lago, mesmo em meio às brumas da manhã. É amor que dura «até que Ele venha»12.
Acredita-se, hoje, que o discípulo que Jesus amava seja também o "tipo" do cristão maduro, que fez de Cristo o centro, a causa, o "primeiro amor" da própria vida. Existe também uma tradição eclesial, antiga e sempre viva, que vê no discípulo predileto o "símbolo" da virgindade e do "coração indiviso", como uma premonição da vida consagrada, que faz de Cristo o amor único e soberano da própria existência, capaz de dar vigor e regra a todos os outros amores. Sua casa é com Maria, no coração da Igreja. Sua família é a companhia dos irmãos e das irmãs, aos quais é dado o dom do mesmo chamado. Seu destino é durar "até o Seu retorno", escrevendo, de modo sempre novo, a longa história dos amigos e seguidores de Jesus.
A compreensão dessa novidade não foi fácil. A mudança introduzida por Jesus no costume corrente, em homenagem ao plano originário de Deus – «no princípio não era assim»13 – era por demais radical. Jesus mesmo afirma – respectivamente diante da fidelidade matrimonial e do celibato pelo Reino – que «nem todos entendem este ensinamento, mas somente aqueles aos quais Deus dá a capacidade de fazê-lo»14: «outros, depois, não se casam para melhor servir o reino de Deus. Quem puder entender procure entender»15.
«O que é, então, este Reino de Deus que habilita até mesmo a renunciar ao matrimônio? É o amor paterno, materno, esponsal de Deus pelo homem, de que fala toda a Escritura; o doce senhorio do Pai, através de Cristo, no Espírito, sobre quem se decide a responder com amor filial e esponsal. É a percepção da irrupção do Reino: essa é a raiz da virgindade cristã»16.
Se Jesus prega o Reino, os apóstolos pregam Cristo, que incarna a sua plenitude definitiva. A virgindade faz memória dele. Ele é o Reino que, em espírito e verdade, reinicia a humanidade no destino de Graça, preparado pelo Pai.
O Apocalipse vê na virgindade o sinal da esposa, "que desce do céu, de Deus"17 e que, da terra, sobe até Ele. Ela significa, pois, proximidade a Cristo Senhor, a felicidade de acompanhá-lo em comunidades alegres, que se exprimem com um cântico novo, carregado de beleza e de mistério, tensão sustentada pela esperança de um encontro definitivo. Pela entusiasmante descoberta de Cristo, «o estado religioso mais fielmente imita e continuamente representa na Igreja a forma de vida, que o Filho de Deus abraçou, quando veio ao mundo para fazer a vontade do Pai, e que propôs aos discípulos que o seguiam»18.
O nosso voto é um sinal indicativo de Cristo: vivo, ressuscitado, presente na Sua Igreja, capaz de enamorar os corações, com aquele "amor", que a Igreja canta há séculos em sua história e na liturgia.
Pela castidade, o religioso faz-se imagem e primícias da Igreja, entregue toda – só e para sempre – ao Seu Senhor. A sua identificação com a Igreja acontece e expressa-se sobretudo no dom total de si. «Não há virgindade que seja fecunda e cheia de significado em si (…); ela adquire o seu sentido e a sua fecundidade unicamente a partir da total entrega na Igreja»19.
A virgindade cristã surge com o mistério da cruz, com a abertura da ferida no peito de onde nasce a Igreja, como "corpo e esposa de Cristo". Esta expressividade eclesial é a razão pela qual em cada voto se recapitulam também os outros dois. «A obediência é a pobreza do espírito por amor, e a virgindade, que é a pobreza do corpo por amor, torna-se fecunda somente lá onde tem cono pressuposto o sacrifício espiritual»20. A castidade – também nesta linha – configura-nos a Cristo que, "de rico que era, fez-se pobre por nós"21. O religioso – a exemplo de Cristo, morto nu numa cruz – encontrar-se-á no final da sua existência, como homem sem família e sem fortuna, que não construiu nada por própria conta, cujos olhos estão fixos em Deus, que, unicamente, dá significado à sua existência.
A castidade exprime assim uma forma madura de liberdade, que é a opção de doar-se sem economia, de realizar de forma insólita a dimensão pessoal, de entregar-se totalmente à própria missão sem nada buscar nem reter para si. Esse é o testemunho que tantos missionários de ontem e de hoje – e muitos irmãos salesianos entre eles – deram e dão à Igreja, quando, nos postos avançados da missão, entregam continuamente tudo, também a própria vida, exposta com freqüência a riscos mortais, pela fidelidade ao povo a eles confiado. Descobre-se dessa forma a presença operosa do Mistério Pascal no coração da Congregação e de nosso irmãos melhores. A história da Igreja, especialmente nos países de missão, e as crônicas dramáticas dos últimos anos confirmam amplamente que não estamos brincando com palavras, mas apenas esforçando-nos por ler "fatos de Evangelho".
A totalidade incondicional da oblação é o âmago da castidade de Maria, que – no ato de dizer Ecce ancilla Domini, «Eis aqui a serva do Senhor»22 – entrelaça a castidade mais alta com a autoentrega total ao projeto de Deus.
2. Castidade e carisma salesiano.
No sulco de uma tradição.
Basta recordar a atenção de Dom Bosco pela virtude da pureza, em que ele via um componente essencial do crescimento cristão do jovem, a garantia do clima educativo da casa salesiana, a premissa da autoentrega do salesiano e do jovem a Cristo e à Igreja.
É unânime o testemunho dos contemporâneos sobre o fascínio que o exercício dessa virtude conferia a Dom Bosco, tornando-se um dos mais límpidos lineamentos da sua santidade. Não causa estupor, portanto, que o nosso santo Fundador sonhe os Salesianos caracterizados pela castidade e coloque essa virtude na encruzilhada de exigências educativas, de caminhos de santificação pessoal na seqüela de Cristo, de urgências proféticas ao serviço dos jovens e do povo de Deus.
Nosso Pai gozou certamente de um dom extraordinário para ajudar os jovens a viver a castidade com alegria. Em uma nota pessoal o P. Giovanni Bonetti, falando de Dom Bosco, observa: «Ouvi-o falar muitas vezes do púlpito sobre o assunto, mas confesso que, sempre, cada vez mais do que as outras, experimentava a força de suas palavras, e sentia-me impelido a qualquer sacrifício por amor de tão inestimável tesouro»23.
Relendo a práxis de Dom Bosco24, chega-se à convicção de que a qualidade global do ambiente educativo, a paternidade amorável do próprio Dom Bosco, educador e confessor, a contínua proposta serena dos meios sobrenaturais (Eucaristia, Penitência, amor a Maria), o espírito de mortificação e a fuga das ocasiões, um estilo de vida cheio de alegria, vivido e proposto positivamente eram as pistas sobre as quais o nosso Fundador insistia de preferência e indicava com convicção aos educadores, para formar os jovens à castidade.
Não foi apenas um traço da sua santidade pessoal, mas elemento do carisma. Dom Bosco inaugura uma tradição. No 20º aniversário da sua morte, o Bem-aventurado Miguel Rua escreve uma das suas cartas mais acaloradas, intitulando-a Vigilância. Sua preocupação é dar a conhecer «aquilo que aos poucos a experiência nos ensina ou que as necessidades dos tempos presentes nos sugerem»25. A carta foi publicada no dia seguinte à difícil prova, conhecida na história da Congregação como os fatos de Varazze26. «Uma avalanche de calúnias e de acusações horríveis fundiu-se num instante como névoa ao sol» – escreve o P. Rua – evocando as palavras de Dom Bosco: Est Deus in Israel. Niente ti turbi. Fazendo tesouro da dolorosa experiência, o Bem-aventurado acrescenta, porém, com sereno realismo: «Não podemos ter ilusões: os nossos pensamentos são escrutados, as nossas ações são recolhidas e avaliadas». Parece claro o propósito de infundir coragem num momento de prova, ma também de prevenir fatos que pudessem dar lugar a críticas e acusações num campo tão delicado, como o juvenil e educativo.
Sob esse aspecto, é preciso dizer que – desde então até hoje, em muitas partes do mundo – o clima tornou-se ainda mais sensível e exigente.
O P. Paulo Albera, igualmente, em 1916, achou oportuno escrever uma carta Sobre a castidade27,densa de elementos, derivados da tradição salesiana, e atenta em fornecer os grandes meios de fidelidade: Eucaristia e Penitência, oração e devoção a Maria, mortificação, humildade e prudência. A carta é também colocada num determinado contexto. Iniciava-se então a propor, como parte da educação dos jovens, uma informação mais sistemática e fundada sobre as questões sexuais. Nada mais natural que recordar a delicadeza de Dom Bosco e apresentar as expressões usadas por ele ao propô-la e os caminhos que indicava para desenvolvê-la.
P. Alberta insiste no caráter ofertorial da castidade, com referência à Carta de São Paulo aos Romanos: «Exorto-vos, pois, irmãos, que ofereçais os vossos corpos como oferta viva, santa e agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto espiritual»28.
Seu segundo sucessor – tido como caríssimo por Dom Bosco – colheu bem o fundamento evangélico da castidade, que o nosso Fundador anunciava mais com o estilo de vida, totalmente entregue aos jovens, do que com os discursos: a oferta eucarística prolonga-se na vida, que repete humilde, mas firmemente: «Este é o meu corpo dado por vós»29.
O P. Pedro Ricaldone, com o coração ainda muito cheio das celebrações da Páscoa de 1934, que vira a canonização de Dom Bosco, oferecia a sua carta Santidade é pureza, como coroação daquele ano inesquecível. Tratava-se de uma escolha calculada e radicada na certeza de tocar um dos pontos mais nevrálgicos do espírito salesiano. P. Ricaldone dizia-se convencido de não fazer a Dom Bosco «coisa mais agradável do que exortar todos os Salesianos a refletirem sem trégua que a nossa santidade deve manifestar-se especialmente com um vida de candura e pureza virginal»30.
Em 1977, o P. Luigi Ricceri, com a carta Viver hoje a castidade consagrada, propunha de novo, «obedecendo a um preciso ditame» da consciência, «o testemunho típico da castidade salesiana». É uma carta interessante, ainda de grande atualidade, que vos convido a reler como complemento desta. Coloca-se no contexto do clima dos inícios destes anos que estamos vivendo plenamente: contexto novo e desafios novos por parte do mundo e interpelações por parte da Igreja: um contexto marcado no interior da Congregação pelo doloroso problema das defecções freqüentemente tocadas, embora não unicamente, por vazios, por faltas de fundamento, por imprudências ou descuido neste campo.
Talvez, muito sumariamente, as severas palavras de Dom Bosco sobre a castidade, tenham sido atribuídas ao contexto cultural e ascético da sua época, certamente não sem limitações igualmente sérias. Hoje compreendemos melhor que somos chamados a ler, também nelas, a sabedoria de um santo, profundo conhecedor do coração humano, que via com preocupação as conseqüências negativas, mesmo distantes, de algumas tendências e atitudes. Tornam-se atuais – à luz de quanto, com freqüência, é publicamente denunciado hoje – as reflexões de Dom Bosco durante o terceiro Capítulo Geral de 1883: «Faltando contra a moralidade, perde-se diante de Deus a alma, diante do mundo a honra»31. «O Senhor – observa em outra ocasião – dispersaria a Congregação, caso faltássemos à castidade»32.
Os dramas educativos da nossa época, os abusos contra menores dentro e fora da família, a prostituição de menores, organizada e transformada em nova escravidão no contexto de um turismo depravado, as formas atrozes de pedofilia, o renovado "tráfico de escravos" em relação a mulheres indefesas, jovens adultos e adolescentes, confirma-nos que esse não é um problema apenas de religião, mas de urgência ética, não é uma questão de virtude privada, mas de necessidade de justiça pública, não é problema exclusivo da Igreja, mas responsabilidade de uma sociedade civil que se preocupe com o próprio futuro e dignidade.
1 A serviço do amor educativo. |
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2 Sinal de doação total. |
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3 Um caminho a assumir. |
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4 Conclusão: a força de uma profecia. |
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5 Juan E. Vecchi |
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