301-350|pt|310 - Dom Bosco Santo


Egídio Viganò


DOM BOSCO SANTO


Atos do Conselho Superior


Ano LXIV – OUTUBRO-DEZEMBRO, 1983


N. 310





Introdução – A canonização de Dom Bosco – A nossa consagração religiosa – Os grandes valores da santidade salesiana: servir o Senhor na alegria; ter um coração oratoriano: saber fazer-se amar; ser ascetas no quotidiano. – A intimidade com Jesus Cristo “Redentor”. – Os dois mais danosos inimigos da nossa santidade. – Saudação final.





Roma, 24 de setembro de 1983



Queridos Irmãos,



estamos já na vigília do Capítulo Geral. Intensifiquemos a adoração e a oração para que desçam abundantes sobre a assembleia capitular e cada um dos seus membros a luz e os dons do Espírito Santo. O Ato de Entrega de toda a Congregação a Nossa Senhora Auxiliadora, pre­cisamente no início do Capítulo, quer lembrar a atitude de Dom Bosco para com Ela, como Mãe e Guia, a fim de que o Espírito Santo nos faça intérpretes e testemunhas fiéis e atuais do patrimônio espiritual e apostólico do Fundador.

Está para encerrar-se o sexênio do mandato de serviço do Reitor-Mor e do Conselho Supe­rior, um Conselho muito ativo e fraterno. Em nome de cada um dos colegas e em meu nome, quero agradecer aos Inspetores e a todos os Irmãos a comunhão e colaboração que juntos experimentamos nestes anos de intenso trabalho e esperança. É também o momento, de minha parte, para um exame de consciência, pedindo perdão a Deus e a todos pelas inevitáveis defi­ciências e pela incapacidade no ministério de animação e governo da Congregação, bem como no diálogo com os Irmãos.

Todos nós precisamos crescer muito mais no que constitui a energia da vitalidade e a eficácia da missão da herança de Dom Bosco, ou seja, no crescimento segundo o seu tipo de santidade.

O próximo ano, 1984, oferece-nos a oportu­nidade de comemorar o cinquentenário da ca­nonização do nosso Pai e Fundador (01.04.1934). Consideremo-lo como um apelo que “nos leve – como diz a Lembrança – a renovar propósitos de santidade tipicamente salesiana”.



A canonização de Dom Bosco



Quis o Papa Pio XI que Dom Bosco fosse canonizado no dia de Páscoa de 1934, encerramento do Ano Jubilar da Redenção.

Relendo os Atos do Conselho e o Boletim Salesiano da época, revive-se o clima de extraor­dinária emoção, alegria festiva e aprofunda­mento vocacional. O Reitor-Mor de então, Pe. Pedro Ricaldone, escrevia: “O dia da Canoniza­ção será certamente o mais glorioso de quantos teve até agora a Congregação e, diria, de quantos haverá de ter no futuro”.1 Depois aproximava a Páscoa de 1934 à de 1846, quando nosso Pai “passando de tribulação em tribulação, expulso de todas as partes da cidade onde havia tentado iniciar sua obra, ficara sem um pedaço de terra, do qual pudesse livremente dispor em proveito dos seus jovens. Naquela Páscoa, a Providência fazia-o entrar na posse da quantidade de espaço suficiente para armar as tendas e começar, com um princípio de estabilidade, a própria missão... As duas Páscoas abrem e fecham um primeiro ciclo histórico da Obra Salesiana e o fazem ocupar de maneira estável seu lugar nos anais da Igreja”.2

A canonização do Fundador assume certa­mente uma importância especial e um signifi­cado eclesial concreto para uma Família reli­giosa. Ele é proclamado diante de todos como expressão original da vitalidade e santidade da Igreja. O canonizado já não é simples “proprie­dade privada”, mas porção eleita do patrimônio universal do Povo de Deus. Por isso o Fundador adquire incontestável autoridade no campo es­piritual face aos seus seguidores. Numa Família religiosa, a canonização do Fundador tem mais importância eclesial do que a própria aprova­ção das Regras. O procedimento seguido pela Sé Apostólica, nos dois casos, comprova a dife­rença. O primeiro artigo das nossas Constitui­ções no-lo recorda: a canonização de Dom Bosco é uma das principais intervenções com que a Igreja reconhece oficialmente as iniciativas do Espírito do Senhor na fundação da nossa Socie­dade; por isso, com razão e com sentimento de humilde gratidão, cremos que ela não nasceu apenas de projeto humano, mas por iniciativa de Deus”.3

Como já lembrava às FMA na minha carta comemorativa do centenário da morte de S.ta Maria Domingas Mazzarello, a santidade do Fundador tem uma configuração peculiar, dife­rente da do canonizado que não é fundador, não só por notas pessoais e históricas, mas precisa­mente por sua índole própria de “estilo original na santificação e no apostolado” e de experiên­cia de Espírito Santo a “serem transmitidas a discípulos que a vivam, guardem, aprofundem, desenvolvam constantemente, em sintonia com o Corpo de Cristo em perene crescimento”.4

O ser Santo e o ser Fundador fundem-se na vida de Dom Bosco, a ponto de torná-lo pai e modelo para todos nós. O Espírito Santo plasmou-o para tal fim com um tipo concreto de santidade, enriquecida por uma capacidade ge­radora de filhos espirituais que o faz repetir com o Apóstolo: “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo”.5

As vicissitudes históricas nos mostram como ele não encontrou outro caminho para realizar a sua vocação e a sua santidade senão o de Fundador. A Providência levou-o e, de certa maneira, “quase forçou a dar início – como escrevia eu às FMA – a uma experiência inédita de santificação e de apostolado, isto é, a uma releitura do Evangelho e do mistério de Cristo em chave própria e pessoal, com especial ductilidade aos sinais dos tempos. Essa originalidade comporta essencialmente uma ‘síntese nova’, equilibrada, harmônica e à sua maneira orgânica, dos elementos comuns à santidade cristã, onde as virtudes e os meios de santificação têm uma colocação própria, uma dosagem, uma simetria e uma beleza que os caracterizam”.6

Bem sabemos que o que distingue, na Igreja, uma família espiritual de outra não é o cristianismo, mas uma maneira especial de viver-lhe o conteúdo e a missão. Assim a Famí­lia Salesiana relê o Evangelho com os olhos da santidade de Dom Bosco.

Isso é sumamente importante para nós. Mostra que a nossa santidade é intimamente relativa à do Fundador, ao qual nos achamos vinculados mediante uma consagração religiosa que culmina na profissão perpétua. A consagra­ção religiosa deve, com efeito, crescer e manifestar-se na santidade salesiana.



A nossa consagração religiosa



O rito da Profissão perpétua está centrado, por parte do Ministro celebrante, numa solene bênção ou consagração litúrgica, com a qual a Igreja marca os candidatos com o dom do Espí­rito, confirmando assim sua Profissão religiosa.

Olhai, ó Pai, estes vossos eleitos – invoca o ministro da Igreja com os braços estendidos –; infundi neles o Espírito de santidade, para que possam cumprir com vossa ajuda o que por vosso dom com alegria prometeram”.7

Nós vos pedimos humildemente, ó Pai: mandai o vosso Espírito sobre estes vossos filhos... reforçai-lhes o propósito... para que se tornem sinal e testemunho de que vós sois o único verdadeiro Deus e amais a todos os homens com infinito amor”.8

Ora, o que os candidatos “prometeram com alegria” e constitui “o propósito deles” está expresso na fórmula da Profissão emitida nas mãos do Superior. Querem praticar os conse­lhos evangélicos seguindo o caminho traçado nas Constituições salesianas, empenhando-se assim a viver o espírito e a missão do Fundador, em comunhão com os irmãos de toda a Con­gregação.9

O selo do Espírito Santo implica sua espe­cial assistência, um conjunto de dons, de graças e de conjunturas providenciais, que ajudam o Salesiano a fazer-se santo, vivendo com fideli­dade o espírito e a missão de Dom Bosco.

A consagração religiosa, pois, está toda ela orientada para tornar possível o tipo de santi­dade prometido na emissão dos votos e descrito nas Constituições.

Por uma parte, ela é (como no sonho dos dez diamantes) a estrutura de apoio e estímulo, a ossatura quase oculta, mas indispensável e sustentadora, da nossa santidade.

Por outra parte, ela é título autêntico que garante aos professos a mediação da Igreja para impetrar eficazmente sobre eles que vivam como sinais e portadores válidos do amor de Deus, incorpora-os num estado de vida eclesial selado pelo Espírito através de sua ação, e proporciona-lhes meios e forças para testemu­nhar, em alegre fidelidade, o espírito das bem-aventuranças.

Assim a consagração religiosa alimenta, de­senvolve e defende em nós a santidade salesiana. É um selo do Espírito Santo, impresso, através da Igreja, no coração de todos os irmãos, para que saibam ser testemunhas preclaras da santi­dade que Deus iniciou em Dom Bosco.

Mas aqui é interessante observar que o Concílio Vaticano II recuperou em profundidade a consagração religiosa peculiar dos Institutos de vida ativa. É um gênero especial de aliança com Deus, no qual a ação do Espírito Santo imprime nos corações uma modalidade de doa­ção que bem pode chamar-se “consagração apos­tólica”, ou seja, uma consagração “religiosa” que é simultaneamente “apostólica”, portadora de uma “graça de unidade” que se efunde em “caridade pastoral”.

O Concílio renovou antes de tudo o próprio conceito de consagração religiosa, como ação de Deus através da sua Igreja,10 mas depois des­creveu a originalidade da vida ativa no famoso n. 8 do Perfectae Caritatis. Nestes anos pós-conciliares progrediu-se na reflexão sobre as pe­culiaridades da “consagração apostólica”. Dentro desse tipo de consagração religiosa vibra o selo divino de um instinto e de uma genialidade apostólicos que permeia toda a vida religiosa de zelo pastoral e informa toda a atividade e ini­ciativa apostólica de espírito religioso.11

Assim os dons e as graças que o Espírito une a esta consagração concorrem para expri­mir todos os dias, em atitudes peculiares de vida, a “graça de unidade” entre o amor de Deus e o amor do próximo, para ser portadores de um testemunho original do mistério da Redenção. Neste sentido, através da nossa consagração apostólica, vivida na fidelidade às Constituições, o Espírito do Senhor nos convida e impele a aprofundar e a reatualizar continuamente a santidade característica do nosso Fundador e Pai.

O cinquentenário da sua canonização oferece-nos uma feliz e extraordinária oportunidade.



Os grandes valores da santidade salesiana



Na circular do ano passado, “Reprojetemos juntos a santidade”, eu vos lembrava que “só Deus é santo”. Para nós, a santidade não é senão a própria vida de Deus inserida intimamente na nossa existência. Somos santos por aquilo que de Deus há em nós.

Quando olhamos para a santidade de Dom Bosco, queremos perceber o que há nele de Espírito Santo, e sabemos que Ele entende forjar também em nós um coração com o mesmo tipo de fé, esperança e caridade, forta­lecido e defendido por peculiar ascese de esva­ziamento de si.



Servir o Senhor na alegria



O primeiro aspecto que nos impressiona na santidade de Dom Bosco, e aí está como a es­conder o prodígio da intensa presença do Espí­rito, é a sua atitude de simplicidade e alegria, que faz parecer fácil e natural o que na realidade é árduo e sobrenatural.

É a alegria de viver, testemunhada no quotidiano; é a aceitação dos eventos como ca­minho concreto e ousado para a esperança; é a intuição das pessoas com seus dons e limites para formar família; é o sentido agudo e prá­tico do bem, na íntima convicção de que ele (em nós e na história) é mais forte que o mal; é o dom de predileção para com a idade juvenil, que abre o coração e a fantasia ao futuro e infunde uma maleabilidade inventiva para saber assumir com equilíbrio os valores dos tempos novos; é a simpatia do amigo que se faz amar para cons­truir pedagogicamente um clima de confiança e diálogo que leva a Cristo; é um caramanchão de rosas que se percorre a cantar e sorrir, ainda que munidos de sapatos e de defesa contra os muitos espinhos.

Aquele “nós fazemos consistir a santidade em estar sempre alegres” é fruto de um toque especial do Espírito Santo. Um tesouro divino, pois, revestido de simplicidade e alegria como a esconder o prodígio.



Ter um coração oratoriano



Sob a aparência de simplicidade e afabilidade, o segredo de tudo é o coração de Dom Bosco, que palpitou sempre ao impulso do “da mihi animas”.

Seu ânimo está marcado por uma peculiar e intensa “consagração apostólica”. O Espírito Santo infundiu nele uma “graça de unidade” característica, que sublinha, na sua atitude con­templativa, o mistério da Redenção. O seu cora­ção admira e ama ininterruptamente um “Deus-que-salva”. Por isso o seu amor de caridade é incansavelmente operoso.

Ensinou-nos o próprio Dom Bosco que deve­mos saber fazer “andar a par e passo a vida ativa e contemplativa, a vida dos Apóstolos e a dos Anjos”.12

Descrevendo a sua santidade, o Pe. Albera garante-nos que nele “perfeição religiosa e apos­tolado foram uma só coisa”.13

Ele testemunhou o absoluto de Deus, viven­do inteiramente disponível à missão de Cristo e da sua Igreja.

Na minha circular sobre a Família Salesia­na,14 procurei aprofundar o tipo de amor sobre­natural próprio do coração de Dom Bosco, ori­ginalidade que acompanha a nossa consagração religiosa e a fonte viva da nossa santidade.

É necessário, para nós, fazer palpitar o cora­ção, como ele, ao impulso do “da mihi animas”. Não é esta uma simples expressão verbal, mas a intuição da “primeira centelha” que explica toda a nossa santidade: viver de caridade pas­toral, encarnada no dom de predileção para com a juventude e caracterizada pela “bondade”.

Eis a veia de água cristalina e salutar da santidade salesiana logo ao brotar!



Saber fazer-se amar



Acabo de lembrar a bondade. É parte substancial da santidade de Dom Bosco. Uma santidade simpática e atraente. Mas é tal, não por ingênuo afã de popularidade (que contra­diria a santidade), mas, sim, porque a caridade pastoral, da qual brota, é intrinsecamente orien­tada ao dom da predileção para com os jovens; torna-se, pois, por exigência pastoral, uma “ca­ridade pedagógica”.

A bondade é um conjunto de atitudes, de razão, de estilo de convivência, dom de si, hu­mildade, paciência, de justos e vivos sentimen­tos, de amorabilidade, alegria, comunicabilidade, contágio no bem, que cria a atmosfera da confiança.

Na Lembrança para 1984, quis que todos tivessem presente o centenário da famosa carta de Dom Bosco, de Roma, para que “nos leve a renovar propósitos de santidade tipicamente salesiana”. O advérbio “tipicamente” ocupa, aqui, um lugar estratégico: deve explicar e justi­ficar a afirmação inicial, de per si paradoxal, que o amor não basta.

Sim: o “não basta amar!” da carta de Roma poderia, à primeira vista, escandalizar alguém. Pois não havia proclamado o grande Agostinho de Hipona: “Ama, e faze o que quise­res”? Mas para um santo “pedagogo”, como Dom Bosco, está experiencialmente provado que não basta amar. A “caridade pedagógica” exige que se acrescente algo mais: “fazer-se amar!”, ou seja, saber traduzir o amor em atitudes de bondade, em metodologia de amizade, em fami­liaridade de diálogo e em alegria de convivência. Releiamos juntos algumas afirmações da carta de Roma:

  • o afeto é que nos servia de regra”;

  • ser considerados como pais, irmãos, amigos”;

  • fazer crescer a confiança cordial”;

  • quem quer ser amado deve mostrar que ama”;

  • quem é amado alcança tudo, especialmente dos jovens”;

  • esse amor faz suportar fadigas, aborrecimentos, ingratidões, desordens, faltas, negligências”;

  • quando o amor se fragiliza, então é que as coisas não vão bem”;

  • o melhor prato de uma refeição é o bom humor!”;

  • e, enfim, o insistente apelo de Dom Bosco: “Sabeis o que deseja de vós este pobre velho que gastou toda a vida por seus caros jovens?... que voltem os dias do amor e da confiança cristã, do espírito de condescendência e tolerância por amor de Jesus Cristo; os dias dos corações abertos com toda simplicidade e candura, os dias da caridade e da verdadeira alegria para todos”.15

Numa palavra: o segredo da nossa caridade pastoral e pedagógica, ou seja, do nosso coração oratoriano, está na “bondade” que sabe fazer-se amar.

É justamente por isso que nos chamamos “salesianos”, em virtude da doçura e amabili­dade de São Francisco de Sales.



Ser ascetas do quotidiano



Viver alegres e fazer-se amar é bonito e simpático, mas pode não ser santidade. Para revestir sua santidade com as atraentes caracte­rísticas pedagógico-pastorais que temos lem­brado, fez enormes e ininterruptos esforços ascéticos. Cultivou sempre, para si e para os outros, uma forte pedagogia do domínio de si. Exprimiu-a no mote realista “trabalho e tempe­rança”.

Esse binômio, para nós inseparável, implica um sentido espiritual e prático do “quotidiano”, em cuja concretude se encarnam, hora após hora e dia após dia, os ideais e os dinamismos da nossa fé, da nossa esperança e da nossa ca­ridade. Dentro da realidade de todos os dias, nas exigências do próprio dever, das pessoas com as quais convivemos, das situações de fato, encontram-se os elementos práticos para amor­tecer o próprio egoísmo e chegar a um verda­deiro domínio de si. O trabalho e a temperança, sempre juntos, exprimem assaz positivamente todo o vasto campo da disciplina ascética sale­siana. Como disse Dom Bosco, eles é que “farão florescer a Congregação”.16

No sonho do caramanchão de rosas, tão significativo a respeito, o nosso Pai anota: “Todos os que (e eram muitíssimos) me viam caminhar por aquele caramanchão diziam: ‘Oh! Dom Bosco caminha sempre sobre rosas. Ele vai para a frente bem tranquilo, tudo corre bem para ele!’ Mas não viam os espinhos que lace­ravam minhas pobres pernas. Muitos padres, clérigos e leigos por mim convidados haviam-se posto em meu seguimento, atraídos pela beleza das flores, mas quando se deram conta de que era preciso caminhar sobre espinhos pungentes, que despontavam de todas as partes, come­çaram a gritar: ‘Fomos enganados’. Eu respondi: ‘Quem quer caminhar gostosamente sobre as rosas, volte para trás. Os outros me sigam’”.17

E nós o seguimos, convencidos de que sem disciplina ascética não havemos de construir a santidade salesiana.

A caridade pastoral traduzida num incansá­vel trabalho apostólico, e a bondade do fazer-se amar amparada por inteligente e permanente temperança (que supõe humildade, mansidão, pureza, equilíbrio, santa esperteza, sobriedade e alegre austeridade) nos farão evitar os perigos do comodismo, do conforto, do sentimentalismo, da sensualidade, próprios de quem se vai secularizando e aburguesando.

Na praticidade ascética do trabalho e da temperança. o nosso Pai e Fundador nos deixou uma comprovada metodologia para a nossa santidade. Sem ela não poderemos ser fiéis à consagração apostólica que nos marcou com o sinete do Espírito Santo e atrai para nós os dons e as graças para nos tornarmos salesianos santos.



A intimidade com Jesus Cristo “Redentor”



A canonização de Dom Bosco se deu na Páscoa de um Ano Santo da Redenção. No dis­curso da audiência solene que Pio XI concedeu, em 3 de abril de 1934, na basílica de São Pedro a toda a Família Salesiana presente em Roma para a proclamação da santidade do Fundador, o Papa quis sublinhar a conexão desse fausto evento com os valores do Ano Santo da Reden­ção. Disse Pio XI: Jesus Cristo “indicou expres­samente o fruto de toda a sua obra de Reden­ção (afirmando: ‘Eu vim para que tenham vida, uma vida verdadeira e completa’ (Jo 10,1) (...) Essa é a vida cristã, porque foi Cristo que a deu ao mundo. (...)

Dom Bosco hoje nos diz: ‘Vivei a vida cristã, assim como eu a pratiquei e vos ensi­nei’. Mas parece-nos que Dom Bosco, a vós seus filhos, e assim particularmente seus, acrescenta uma palavra mais especificamente indica­dora (...). Ensina-vos um primeiro segredo, (que é) o amor a Jesus Cristo, a Jesus Cristo Redentor! Dir-se-ia até que foi esse um dos pen­samentos, um dos sentimentos dominantes de toda a sua vida. Ele o revelou com a palavra de ordem: ‘da mihi animas’. Eis um amor que está na meditação contínua, ininterrupta, do que são as almas, não consideradas em si mesmas, mas no que são no pensamento, na obra, no Sangue, na morte do divino Redentor. Aí Dom Bosco viu todo o inestimável, o inatingível tesouro que são as almas. Disso a sua aspiração, a sua oração: ‘da mihi animas’! Ela é uma expressão do seu amor pelo Redentor; expressão sobre a qual, por muito feliz necessidade de coisas, o amor do próximo se torna amor do divino Redentor, e o amor do Redentor se torna amor das almas redimidas, as almas que no pensamento e na estima d’Ele se revelam não pagas a muito alto preço, se pagas com o seu Sangue. É justamente aquele amor do divino Redentor – conclui o Papa –, que viemos recordando, agradecendo, em todo este Ano de multiplicada Redenção”.18

Por feliz coincidência, também nós come­moramos o cinquentenário da canonização do nosso Pai, no encerramento de um outro Ano Santo extraordinário da Redenção. As palavras de Pio XI de comentário do “da mihi animas” proclamam claramente que o segredo do cora­ção de Dom Bosco é a íntima amizade com Jesus Cristo contemplado na sua missão de Redentor.

Será, pois, indispensável cultivar as nossas relações de amizade pessoal com Jesus Cristo, de modo a sermos seus discípulos, como foi o nosso Fundador.

Ora, para ser um “verdadeiro discípulo”, exigem-se duas condições fundamentais. Primei­ramente ter os mesmos sentimentos de Cristo. Depois, carregar generosamente a sua cruz.



A primeira condição, a de sentir como Cristo, é fruto de meditação e de oração, isto é, daquela dimensão contemplativa que, ao fixar o olhar sobre o Redentor, enche o próprio cora­ção dos mesmos ideais e propósitos que Ele tinha. Trata-se de cultivar uma união com Cristo que faça submergir o próprio espírito no mis­tério da salvação. Um testemunho e uma missão que são ao mesmo tempo amor de Deus e zelo de redenção. É um mistério situado no centro da intimidade da nossa pessoa, que a move como fonte e alimento da caridade pastoral e pedagógica.

Eis porque o Salesiano que quer fazer-se santo cuida de seu encontro constante com Cristo. O encontro quotidiano com Cristo – eu vos escrevia no ano passado – “supõe uma amizade permanente; mas aqui me refiro também a um espaço concreto de tempo inse­rido em cada dia, que se chama meditação e oração pessoal, horas litúrgicas, Eucaristia. O sacramento do memorial da sua Páscoa, que encerra o amor maior de toda a história, deve tornar-se vitalmente o centro propulsor de cada oração e de cada casa”.19



A segunda condição para ser verdadeiro discípulo é a do espírito de sacrifício, de domí­nio de si e renúncia: ou seja, saber aceitar e assumir na própria existência o mistério da Cruz.

Ser ‘discípulo’ sem renúncias e sem sofri­mentos – escreve um exegeta protestante – é uma contradição aberta, como o sal que perdeu sua consistência essencial. A qualidade consti­tutiva do discípulo é inseparável da função que ele deve exercer em favor do mundo e vice-versa. Ser ‘discípulo’ é sempre ser discípulo para o mundo. E dado que para ser ‘discípulo’ se requer espírito de sacrifício, o mundo tem ne­cessidade de um discípulo que saiba sofrer, re­nunciar, sacrificar-se”.20

Dom Bosco, já o vimos, ensinou-nos a su­portar os espinhos: “quem quer caminhar gostosamente sobre as rosas, volte para trás. Os outros me sigam!”.

Neste sentido meditamos, há alguns meses, sobre as contribuições profundas do martírio e da paixão para o espírito apostólico salesiano.21

Quem procura uma vida cômoda, uma vida confortável – deixou-nos escrito Dom Bosco – não entra na nossa Sociedade visando uma boa finalidade. Nós colocamos como base a palavra do Salvador que diz: ‘Quem quer ser meu dis­cípulo... siga-me com a oração, com a penitên­cia, e especialmente renuncie a si mesmo, tome a cruz das tribulações quotidianas e me siga’... até a morte e, se necessário, também a uma morte de cruz. Isto é o que faz na Sociedade quem gasta suas forças no sagrado ministério, no ensino ou outro exercício (apostólico), até, quem sabe, uma morte violenta de cárcere, exílio, espada, água, fogo, até que, após haver sofrido e morrido com Jesus Cristo na terra, possa ir gozar com Ele no céu”.22



Os dois mais danosos inimigos da nossa santidade



A natureza da consagração religiosa é toda voltada para levar-nos à santidade; em caso contrário, se não a vivemos com vistas à santi­dade, ela se adulteraria e perderia, de fato, toda a sua razão de ser.

É uma afirmação terrível, mas pode constatar-se, no seu aspecto negativo, também na vida; a crise destes anos oferece-nos elementos concretos e numerosos.

Na minha experiência deste sexênio, pude individuar aqui e ali os inícios de duas deficiên­cias que considero, no seu grau mais elevado, os dois mais perigosos inimigos da santidade sale­siana. Primeiro, o esvaziamento da originalidade pastoral; depois, o desmantelamento da disci­plina religiosa.



  • Vimos, em primeiro lugar, que a cari­dade pastoral está no centro do nosso espírito e, pois, da nossa santidade.

A “pastoral” é uma invenção de Jesus Cristo. Ele a introduziu na história da humanidade. Procede do seu mistério da Redenção; toca tudo o que é humano, mas não se identi­fica com nenhum dos seus aspectos (cultura, ciência, política, promoção, economia, ideolo­gias etc.). É absolutamente original. Supõe uma “forma mentis” e um modo de agir totalmente próprio e singular, alimentado e julgado somente pela fé e pela caridade sobrenaturais. Não basta ser trabalhadores, generosos, corajo­sos, atualizados e atuais; é indispensável ter, como motor de tudo, um “coração pastoral”. Há, porém, no ar, em não poucas regiões, um sentido de horizontalismo que provoca verda­deira superficialidade espiritual; esta, então, esvazia facilmente a pastoral de sua excelsa originalidade, fazendo cair seus cultores nas modas das ideologias ou no ativismo de um simples fazer.

Para derrotar esse inimigo, urge cultivar uma atitude de reflexão e de contemplação, pela qual se torne a dar lugar central ao “da mihi animas”. Somente dessa posição é que se sobe à santidade salesiana.



  • O outro inimigo é o desmantelamento da disciplina religiosa. Para ser fiéis à doação de si na profissão religiosa, é preciso cuidar de uma metodologia prática, feita de grandes e pequenas renúncias, de sensibilidade para algu­mas mediações qualificadas, de convicções ascé­ticas, de valorização de determinados sinais, de meios disciplinares, de tradições comprovadas no próprio Instituto, de iniciativas pessoais de mortificação etc. É impossível viver os ideais religiosos sem uma pedagogia ascética.

Ora, não é difícil encontrar hoje um modo de raciocinar e de julgar que se acredita elevado a um nível ideológico do qual se pode olhar, do alto para baixo, as exigências concretas de uma metodologia de fidelidade. Sobretudo para nós Salesianos que tendemos a uma santidade ca­racterizada precisamente por uma especial di­mensão pedagógica, essa petulante superficiali­dade tornar-se-ia uma contradição flagrante. Que tipo de santo poderá ser o salesiano que, querendo testemunhar uma caridade pastoral e pedagógica, desprezasse ou não considerasse as renúncias inerentes aos votos, as mediações do Magistério eclesial, as orientações e as diretrizes dos Capítulos Gerais e dos Superiores, o exer­cício quotidiano do esvaziamento do próprio eu, os sinais eclesiais da sagrada liturgia, a disci­plina da vida comunitária, as exigências ascéti­cas de certos artigos das Constituições e dos Regulamentos, o esforço mortificante do domí­nio de si? O aburguesamento, o secularismo, a camuflagem mundana, a pressão da moda, não prestam evidentemente um bom serviço à san­tidade salesiana.

Dom Bosco Santo nos interpela e exorta a nunca desmantelar as exigências da profissão religiosa: “O primeiro objetivo da nossa sociedade – deixou-nos escrito – é a santificação dos seus membros (...). Cada um imprima bem isso na mente e no coração, a começar do Superior Geral até o último dos sócios, ninguém é necessário na Sociedade. Somente Deus deve ser o Chefe, o Patrão absolutamente necessário. Por isso os seus membros devem dirigir-se ao seu Chefe, ao seu verdadeiro Patrão, ao Remunerador, a Deus, e por amor d’Ele inscrever-se na Sociedade; por amor d’Ele trabalhar, obede­cer, abandonar quanto se possuía no mundo para poder dizer no fim da vida ao Salvador que escolhemos por modelo: ‘Eis, nós deixa­mos tudo para estar contigo. Que podemos es­perar?’”.23

Mova-nos, portanto, a canonização de Dom Bosco, como diz a Lembrança para 1984, a “renovar propósitos de santidade tipicamente salesiana”.



***



Agora, a última saudação.

Queridos irmãos, os nossos encontros de animação nos “Atos do Conselho Superior”, neste sexênio, foram 22, sobre temas de impor­tância para a nossa renovação. Iniciamo-los com o apelo mariano a trazermos Nossa Senhora para casa e a relançar, de forma renovada e conciliar, nossa devoção a Nossa Senhora Auxi­liadora.24 Agora encerramo-los com estas breves considerações e exortações sobre a santidade de Dom Bosco.

A nossa vocação e missão salesiana está toda ela impregnada de consagração religiosa para o testemunho de uma peculiar santidade apostólica. Somos filhos de santos e vivemos para ser sinais e portadores de santidade. Não desanimemos. A conversão e a penitência para combater e superar nossos defeitos fazem parte também da nossa santidade.

Dom Bosco no seu testamento saúda-nos afetuosamente assim: “Adeus, queridos filhos, adeus. No céu eu vos espero. Lá falaremos de Deus, de Maria, Mãe e sustentadora da nossa Congregação; lá bendiremos por todo o sempre a nossa Congregação, cujas regras por nós observadas contribuíram poderosa e eficazmente para a nossa salvação. Bendito seja o nome do Senhor agora e para sempre. Esperei em vós, Senhor, jamais serei confundido”.25

Que Dom Bosco Santo alcance-nos sempre a assistência materna de Maria, para que saiba­mos dar aos jovens o mais ambicionado e fecundo presente salesiano para eles: a nossa san­tidade pastoral e pedagógica!

Peçamos fervorosamente a Deus pelo bom êxito do próximo Capítulo Geral.

Cordiais saudações a todos.

Com fraterna esperança e gratidão,


P. Egidio Viganò

Reitor-Mor

1 ACS, 21 de janeiro de 1934, p. 143.

2 ACS, 8 de dezembro de 1933, p. 116.

3 Const. 1.

4 MR 11.

5 1Cor 11,1.

6 ACS 301, p. 24.

7 1º formulário do Ritual.

8 2º formulário do Ritual.

9 Cf. Const. 74.

10 Cf. LG 44. 45; MR 8.

11 PC 8.

12 Cf. Const. FMA 1885, c. XIII.

13 D. ALBERA, Carta de 18 de outubro de 1920, in Lettere circolari di D. Paolo Albera, Turim 1965, p. 366.

14 Cf. ACS 304.

15 MB XVII, 107-114.

16 Cf. Const. 42.

17 MB III, 34.

18 ACS 66, p. 181-182.

19 ACS 303, p. 18.

20 O. CULMANN, La fe y el culto en la Iglesia primitiva, Studium, Madri 1971, p. 308.

21 Cf. ACS 308.

22 Carta circular, 0 de junho de 1867; MB VIII, 828-830.

23 Ib.

24 Cf. ACS 289.

25 MB XVII, 258-259.

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