“ÉS TU O MEU DEUS, FORA DE TI NÃO TENHO BEM ALGUM” (Sl 16,2) |
1. Carta do Reitor-Mor
1. “Dou graças ao meu Deus por todos vós” (Rm 1,8) –2. “Prometi a Deus que até ao meu último respiro...” (MB XVIIII, 258) – 3. O mal-estar da vida consagrada hoje – 4. A excelência objetiva da vida consagrada – 5. Um modelo em crise – 6. CG25, um convite a orientar-se nessa linha – 7. Para concluir.
8 de junho de 2003
Solenidade de Pentecostes
Caríssimos irmãos,
No início da sessão estival do Conselho Geral ponho-me em comunicação convosco, seguindo o ritmo trimestral das cartas que habitualmente envio a toda a Congregação. Faço-o na festa de Pentecostes, que celebra a irrupção do Espírito Santo no Cenáculo, onde se encontravam reunidos os discípulos de Jesus com Maria. Segundo o relato dos Atos dos Apóstolos (cf. At 2,1-11), foi um evento que abalou profundamente o coração de cada um deles, justamente “como um vento que sopra violento”. O Espírito Santo que é o poder com que Deus intervém na história envolveu-os e “como fogo” penetrou-os profundamente. O medo se desfez e deu lugar à coragem, a indiferença deixou espaço à compaixão, o fechamento se dissolveu pelo calor, o egoísmo foi suplantado pelo amor. A Igreja começava destarte seu caminho na história. Desejo que o Espírito Santo, qual vento e fogo, atualize a experiência de Pentecostes na Igreja e na nossa querida Congregação, para que possamos tornar-nos testemunhas cada vez mais convictas, corajosas e críveis de Jesus e do seu Evangelho.
Em minha última carta encontrastes a relação das atividades do meu primeiro ano de serviço a toda a Congregação. Por isso, agora me conheceis um pouco melhor e estais informados do que o Reitor-Mor faz e pensa. A vida certamente não pára; nos últimos três meses tive uma agenda muito cheia de compromissos: o dia no Borgo Ragazzi de Roma, os Exercícios Espirituais em Fátima, a visita à Inspetoria de Portugal, a viagem à Terra Santa, a reunião intermédia do Conselho Geral, a visita à Grã-Bretanha, os dias em Treviglio e Chiari, a visita às Inspetorias da Sicília, Bilbao e Múnique na Baviera, o dia em Bonn e Colônia, a visita à Inspetoria de Verona, a reunião da União dos Superiores Gerais, a visita à Inspetoria Adriática.
Posso dizer-vos que conheço cada vez melhor a realidade da Congregação, seus recursos, seus problemas, seus desafios, suas potencialidades. Além disso, aprendo cada vez mais as tarefas que se deve cumprir como Reitor-Mor. É uma missão muito bonita e exigente, diante da qual me sinto inadequado em relação às necessidades e expectativas. Sinto, pois, a necessidade da vossa compreensão e sobretudo das vossas orações, para que possa tornar-me, como desejo, um Sucessor de Dom Bosco paterno e de longa visão, fiel e dinâmico.
1. “Dou graças ao meu Deus por todos vós” (Rm 1,8)
Antes de partilhar convosco algumas reflexões sobre a vida religiosa, esperando vos sejam úteis como estímulo espiritual, pastoral e vocacional, quereria agradecer a cada um de vós a doação de sua vida a Deus nas pegadas de Dom Bosco.
Sinto-me na obrigação de agradecer-vos; faço-o de boa vontade com esta carta, como também o faço pessoalmente quando vos encontro ao visitar as inspetorias e as comunidades. Por um lado, todo irmão é um tesouro para a Congregação; não me cansarei nunca de repeti-lo e de procurar fazê-lo sentir. Por outro, a vocação salesiana, seja laical seja presbiteral, é um dom extraordinário para cada um de vós. Esta é a minha experiência e imagino seja também a vossa. Parece-me rezar alguns salmos nessa luz, como por exemplo o Salmo 16 (15), no qual lemos: “Eu digo ao Senhor: És tu o meu Senhor, fora de ti não tenho algum bem... O Senhor é a minha parte da herança e o meu cálice que me dá alegria... Esplêndida é a sorte que me coube, magnífica a herança que recebi” (vv. 2.6). E não me refiro ao fato de ser Reitor-Mor, que é um ministério a ser desempenhado temporariamente, mas o dom inestimável da vocação como projeto de vida centrado em Jesus, que nos chama pelo nome, escolhe-nos para estar consigo e para partilhar a sua paixão por Deus e pelo homem (cf. Mc 3,13-15). Ter uma vocação significa haver descoberto que a vida tem sentido: um “sonho” bonito – o de Deus – a ser realizado, uma missão – concedida por Deus – a desempenhar, um meta – pessoas que nos foram confiadas – por atingir. Isto enche de força e de alegria toda uma vida, que resulta unificada como foi a de Dom Bosco (cf. Const. 21). Esta é a vocação salesiana.
Ela é um dom do Senhor tão precioso que deve ser cuidadosamente cultivado e deve ser proposto decididamente aos jovens porque queremos que eles sejam felizes como nós. Convenço-me cada vez mais que o problema maior e mais espalhado entre os jovens não é o que chama a atenção, como a droga e o álcool, e nem mesmo a confusão no campo da sexualidade, ainda que infelizmente muitíssimos jovens estejam neles envolvidos – e isto é um problema que não nos pode deixar indiferentes. O verdadeiro problema é a falta de rumo, de horizonte, de sentido, de projeto de vida. Isto os leva a viver superficialmente, consumindo coisas e experiências, sem um elemento que unifique e dinamize sua vida. Agradeço-vos, pois, pela vossa vocação, que será sempre mais rica da melhor biografia. Como poder, com efeito, recolher no fim da vida, num livro ou numa carta mortuária, uma história de fidelidade a Deus pelos jovens, tecida de alegria e tristezas, sonhos e desilusões, esperanças e frustrações, suor, lágrimas e sorrisos?
Permiti-me, então, faça minhas as palavras de Paulo para agradecer a Deus tudo o que sois – consagrados por Deus aos jovens – e por aquilo que Deus é para vós – o único e supremo bem. Como o Apóstolo, também eu “primeiramente dou graças ao meu Deus, através de Jesus Cristo, por todos vós, pois no mundo inteiro se faz o elogio de vossa fé. Deus, a quem presto um culto espiritual, servindo ao evangelho do seu Filho, é testemunha de que constantemente faço menção de vós, pedindo sempre em minhas orações que eu possa, enfim, fazer uma boa viagem até vós, de acordo com a vontade de Deus. Pois desejo vivamente estar convosco, para vos comunicar algum dom espiritual, a fim de serdes confirmados, ou melhor, a fim de que todos nós sejamos reconfortados, eu por vós e vós por mim, graças à fé que nos é comum.” (Rm 1,8-12).
2. “Prometi a Deus que até meu último respiro...” (MB XVIII, 258)
Como lembrais, já na minha primeira carta eu vos expressei o desejo de querer fazer da santidade um programa de vida, uma opção de governo, uma proposta educativa. Desse ponto de vista havia-me animado a dizer que aquela primeira carta não era uma entre outras, mas que queria tornar-se o texto programático do sexênio.
E quando falo de santidade, não penso em algo genérico ou num ideal a ser proposto indistintamente a todos; estou pensando em nós salesianos. Por isso, quando falo de santidade, penso numa vida de santidade que nos é própria: a santidade salesiana,vivida segundo o modelo do nosso amado pai Dom Bosco. Refiro-me precisamente à santidade que somente se pode alcançar e viver na qualidade de consagrados por Deus à missão salesiana: “Nossa vida de discípulos do Senhor é uma graça do Pai que nos consagra com o dom do seu Espírito e nos envia para ser apóstolos dos jovens” (Const. 2).
A nossa é, pois, uma santidade consagrada, um dom específico que Deus nos faz para os jovens aos quais somos enviados. Tudo isso tem conseqüências. Quereria deter-me convosco sobre este aspecto da santidade salesiana, que julgo totalmente estratégico, porque “nós Salesianos de Dom Bosco” entendemos “realizar o projeto apostólico do fundador numa forma específica de vida religiosa” e porque “no cumprimento desta missão, encontramos o caminho da nossa santificação” (Const. 2).
Não raro, visitando a Congregação, aconteceu-me encontrar irmãos transbordantes de energias e coragem apostólica, que trabalham em obras estupendas dedicadas aos meninos, que, entretanto, não parecem estar sustentados e animados por igual paixão por Deus. De modo que, se por um lado só se pode apreciar tal doação, de outro não se pode deixar de perguntar qual o motor real de tamanha atividade. Nós sabemos que a missão salesiana e a Congregação, que surgiu a seu serviço, nasceram de Deus e em Deus renascem: o salesiano, com efeito, foi “enviado aos jovens por Deus” (Const. 15); a Sociedade à qual pertence “não nasceu apenas de projeto humano, mas por iniciativa de Deus” (Const. 1); além disso, o traço mais característico da nossa vocação, o que nos é mais caro, “a predileção pelos jovens”, “é um dom especial de Deus” (Const. 14). Deus está na origem, como fonte e fundamento, da nossa missão salesiana; e assim deve permanecer. Essa realidade objetiva é vivida por cada um e transparece através da própria vida.
Não foi diferente a experiência pessoal de Dom Bosco. Padre pastor dos jovens por vocação, torna-se para eles e com eles educador solícito; e o educador-pastor dos jovens faz-se fundador de institutos religiosos, “religioso ele próprio, formador de consagrados e, mais tarde, de consagradas... O problema jovens, com efeito, se lhe manifestara muito complexo e comprometedor para se julgar-se resolvido tão-somente com o envolvimento ocasional e voluntarista de colaboradores flutuantes”.1
“A experiência demonstrava que o pessoal voluntário não garantia estabilidade, continuidade, homogeneidade de ação, quando, ao invés, o planeta jovens se revelava sempre mais complexo e o abandono e a pobreza mais vastos e articulados. Era conseqüencial o repensamento radical do problema dos operadores, do seu status espiritual e jurídico e da sua organização. Dom Bosco teria escolhido enfim a forma da sociedade religiosa, ladeada de outras forças associadas.”2
Assim sendo, consciente de que a missão entre os jovens, especialmente os mais pobres, abandonados ou em risco, exigia “um vasto movimento de pessoas” (Const. 5), Dom Bosco teve de buscar entre os próprios jovens os seus colaboradores melhores, os que compartilhavam com ele uma mesma experiência espiritual e apostólica, a de Valdocco, e que, convidados por Dom Bosco a “ficar com ele”, tornaram-se os primeiros salesianos.
“Ele partira de meninos, que não tinham nenhuma idéia de vida religiosa... Por estarem na casa de Dom Bosco, ele os induziu gradualmente ao desejo de viver e de trabalhar de maneira estável, em comunidade, com Dom Bosco, à decisão, enfim, de partilhar sua missão e ligar-se a ela mediante os votos religiosos, tornando-se membros de uma verdadeira sociedade de consagrados.”3
É verdade que, ao menos para nós salesianos, foi a missão que exigiu um grupo de consagrados: os jovens nos levaram a Deus, e não por divertimento ou como passatempo, mas como meta e motivo. Para garantir o trabalho com os jovens, Dom Bosco descobriu que tinha necessidade de pessoas doadas por inteiro a Deus; para ter colaboradores completamente consagrados aos seus jovens, Dom Bosco tornou-se fundador. Não sei se foi uma opção pragmática do nosso amado pai, quando se deu conta de que os colaboradores ordinários não garantiam o esforço cotidiano do trabalho apostólico, ao longo das vinte e quatro horas do dia, todos os dias da semana, ou antes uma conclusão lógica da sua própria experiência, marcada pelo “sonho” dos nove anos, que o levou a pensar que Deus tem um “sonho” para cada um de nós, uma vocação especial que irrompe na consagração por parte de Deus para uma missão específica. A partir da própria experiência espiritual e pastoral, Dom Bosco descobriu assim as potencialidades de uma vida religiosa, nascida a serviço da missão salesiana.
3. O mal-estar atual da vida consagrada
É evidente que hoje existe certo mal-estar em relação à vida religiosa, do qual se ressente também a nossa Congregação. O declínio numérico e o aumento da idade média dos irmãos, pelo menos em algumas regiões, são disto um sinal, além do fato da fragilidade vocacional que é um fenômeno recorrente em todas as ordens, congregações e institutos. Esse mal-estar é tanto mais difícil de compreender e de assumir, quando se julga que a Congregação tenha sido fiel aos pedidos da Igreja, às exigências do mundo e da cultura, às necessidades sempre novas dos jovens, e que ela tenha procurado responder a isso com fidelidade e criatividade.
Deve-se também admitir que certo mal-estar resulta conatural à vida consagrada de hoje, que tendo sempre como sua primeira tarefa “a afirmação do primado de Deus e dos bens futuros”, deve viver hoje num mundo “onde parecem muitas vezes perdidos os traços de Deus” (VC 85). Além disso, experimentar Deus, sujeito ao além do provável e até do narrável, é sempre uma tarefa muito árdua; por conseguinte pode tornar-se heróico, caso seja possível, testemunhar Deus onde Ele não é mais sentido ou onde Ele foi silenciado; e isso acontece muitas vezes. Mas o mal-estar que a vida religiosa hoje sofre não nasce apenas do exterior, da sua natural incompatibilidade com o mundo,4 mas brota também do seu interior, porque, entre outras coisas, improvisamente ela se viu privada das tarefas sociais que lhe deram por tanto tempo segurança e importância social.5
O modo com que hoje se fala de “re-novação”, “re-criação”, “re-fundação” da vida religiosa não é certamente cômodo nem agradável, mas nos obriga a verificar se realmente a esperada renovação realizada pelo Concílio Vaticano II não se tenha tornado uma “accommodata renovatio” de formas, sem ter atingido em profundidade a mente e o coração das pessoas.
É muito comum afirmar que nos dias que precederam o Concílio Vaticano II era fácil “identificar” os religiosos, sua forma de vida e seu lugar na Igreja. A vida religiosa era uma forma de vida caracterizada pela profissão dos conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência, segundo as constituições de uma congregação, aprovadas pela autoridade da Igreja. Os religiosos moravam em casas religiosas, mosteiros ou conventos, e se distinguiam, dentro e fora de seus institutos, pelo seu hábito e maneira usual de ser. O estilo de vida e a clara visibilidade de seus membros separavam-nos realmente do “mundo” e tornavam-nos diferentes dos “leigos” dentro da mesma Igreja.
O Concílio deu início a uma mudança copernicana, na qual todas as instituições foram envolvidas e evidentemente modificadas, por terem sido convidadas a recolocar-se dentro da Igreja “no” mundo (GS), com uma nova eclesiologia de comunhão (LG), segundo a qual todos os batizados formam um único povo de Deus com diversidade de vocações, papéis e carismas.
É verdade que, depois de feito todo o processo de renovação, a vida religiosa ficou de tal modo transformada que hoje não é fácil “identificá-la” e definir o seu lugar na Igreja, coisa que ao invés acontece com os leigos e com os pastores (bispos, padres e diáconos). É óbvio que a dificuldade não provém de fora, do fato, por exemplo, de ter sido deixado o hábito e ter sido adotada uma forma burguesa de trajar; vem, antes, de uma interpretação do chamado universal à santidade e de uma série de fatores externos e internos que cancelaram, ou quando menos ofuscaram, os traços característicos do seu verdadeiro rosto. Isto explica a insistência de hoje sobre a sua “excelência objetiva” (VC 32), a sua “visibilidade” (VC 25), e, pois, a sua significatividade, a sua credibilidade, o seu primeiro fascínio.
Podemos, então, dizer que a vida religiosa entrou em crise, externamente pela secularização e internamente pela perda de identidade.
Crise externa
O fenômeno mais grave do nosso tempo não é mais o ateísmo (GS 19),6 mas a secularização da sociedade, que atingiu níveis de secularismo exacerbado e conseguiu criar uma cultura da não-crença, uma cultura a-religiosa, praticamente a-téia. Vive-se num clima de indiferença e relativismo. Não se nega a existência de Deus, nega-se-Lhe, porém, um espaço onde sobreviver; não se discute a razoabilidade da fé, mas se vive praticamente desinteressando-se por ela; agora não se deve justificar a incredulidade, mas a fé. Deus já não é problema, porque a sua presença já não é evidente.7 A prática religiosa torna-se menos visível; o evangelho não ecoa numa sociedade desgastada por novas mensagens; Deus e o sagrado, se persistem entre nós, é porque foram interiorizados. O profano conquista terreno, tornou-se dono do social e se está assenhoreando do privado; a consciência individual e a própria intimidade já não são o lar de Deus.
Poderia parecer excessivo o diagnóstico. Cito neste ponto um texto do Pe. Viganó que, escrevendo em termos semelhantes no fim do ano 1991, continua a ser válido e eloqüente:
Até há pouco, muitas expressões sociais e culturais achavam-se impregnadas por uma dimensão religiosa. Foi crescendo, ao contrário, a irrelevância social do que é religioso, que torna mais difíceis e longos os ritmos da maturação da fé, como conhecimento dos seus conteúdos e, ainda mais, como prática de vida. E isto tanto nos jovens das nossas obras como nos jovens salesianos em formação.
Ser cristãos – ou seja viver a opção batismal – numa sociedade pluralista, torna-se uma modalidade social entre tantas outras, com o mesmo direito de cidadania. Pode aflorar assim um clima de relativismo, de ofuscamento dos ideais tradicionais, de perda do sentido da vida: muitos jovens parecem flutuar à deriva numa embarcação sem bússola. Perdem a perspectiva do transcendente, que é o alvo da fé, e se fecham em pequenas respostas sobre o sentido da vida, absolutamente insuficientes para os grandes anseios do coração humano. As mesmas respostas que a ciência entende oferecer-lhes resultam carentes na ótica da busca de significado, porque não se referem à finalidade última da vida e ao sentido global da história.8
Esta secularização pode ter uma tríplice fisionomia na vida consagrada. Com efeito, pode manifestar-se em forma de:
Perda de transcendência, que se torna evidente quando se enfraquece ou se perde a fé como horizonte da vida e da vocação, que se tornam destarte um puro projeto humano; torna-se mais difícil, ou até desaparece, a motivação de viver como consagrado a Deus e centrado na missão por Ele confiada.
Antropocentrismo, que não mais coloca Deus como centro da vida ou como último ponto de referência, mas o Homem, a tal ponto que a vida é modelada conforme as exigências e pelo desenvolvimento dos dinamismos próprios da natureza, sem nenhuma margem de espaço para os valores do Reino.
Práxis sócio-econômica, que leva a sentir com paixão o fato que o homem se desenvolve no trabalho criador, no domínio do mundo e no acompanhar outros em seu amadurecimento pessoal e sucesso social; a missão apostólica se reduz a trabalho social ou se identifica com o empenho pela mudança.
No meu entender, nessa perspectiva secularizada da vida religiosa influiu também – e muito – uma leitura teológica redutiva do princípio da encarnação, que insiste de tal modo no primeiro termo, o do “quod non assumptum” de Irineu, que coloca em segunda ordem ou deixa absolutamente a novidade que nos vem de Deus através da encarnação. Atraídos pela decisão de Deus de se tornar homem, esquece-se muitas vezes o fato fundamental que jamais o Deus-homem deixou de ser Deus, e por conseguinte não é o homem que se tornou divino, mas Deus que se fez homem e, ainda que verdadeiro homem, permanece também verdadeiro Deus.
Crise interna
Naturalmente, a crise da vida religiosa não tem nem exclusiva nem preponderantemente uma origem de fatores externos, embora devamos reconhecer que eles a condicionem fortemente; ela surge, antes, de dentro dela e se manifesta sobretudo por alguns sintomas:
O enfraquecimento da identidade eclesial da vida religiosa. Estávamos habituados a definir a vida religiosa como estado de perfeição; o Concílio Vaticano II afirmou que a vocação à santidade é de todos os batizados. Como definir o significado e a tarefa da vida religiosa dentro da vocação universal à santidade?
Ainda mais radical se torna o enfraquecimento no aspecto da missão. Nós crescemos num clima em que se julgava que a dúplice tarefa do anúncio do evangelho e da diaconia da caridade era uma exclusividade dos presbíteros e pessoas consagradas. Lembrou-nos o Vaticano II que a missão é responsabilidade de todos os batizados, cada um segundo a própria vocação; o crescimento do laicato em todos os níveis é um sinal que o confirma. Qual pode ser então o significado da presença da vida religiosa?
Percebemos até que nem mesmo o carisma, com a espiritualidade e a missão que nele estão incluídas, pode ser possuído de forma exclusiva, como propriedade do Instituto. Ele tem por destinatários todos os que entram em contato com ele e atinge sua meta quando também é vivido por eles. Que tarefa têm os consagrados em relação ao carisma?
Tais perguntas, ainda que nem sempre propostas explicitamente, tornam menos clara e menos forte a consciência da própria identidade e função na Igreja.
A visão da vida religiosa centrada na função, isto é, a visão funcionalista mais que ontológica da vida consagrada. A vida religiosa do século XIX era definida, e muito mais era vivida, como um meio para a missão. Exigiam-no os tempos, e os serviços oferecidos eram evangelicamente significativos. Mas a evolução das nossas sociedades modernas fez com que o Estado ou os grupos sociais assumissem muitos serviços criados e realizados pela vida religiosa. Hoje nas próprias obras que as comunidades religiosas têm, os leigos participam sem mais na gestão e na responsabilidade de direção.
As obras dos religiosos funcionam bem, geralmente muito melhor que as públicas; mas há ainda algo que causa profunda inquietação: não somente continuam a não aparecer as vocações, mas se constata que o povo vem tomar de nós prestações e serviços, enquanto procura alhures as razões para viver. Então começa a insinuar-se uma pergunta que se vai intensificando: que sentido tem a nossa presença em tal situação?
A superação das estruturas passadas. A vida consagrada correu o risco de fechar os seus membros numa rede de preceitos e normas que nem sempre ajudaram as pessoas a amadurecer e a viver segundo a liberdade dos filhos de Deus. Mais ainda, as formas de vida religiosa, mesmo as renovadas, nem sempre correspondem às novas situações nas quais devemos hoje realizar a nossa vida e missão: basta pensar nos esquemas de vida comunitária ou nas formas de oração. Por outro lado, essas formas e estruturas tradicionais não conseguem exprimir os novos valores, como os da autonomia pessoal, do sentido do diálogo e da participação.
Há a sensação de que bem sabemos o rumo parra o qual devemos caminhar, mas na realidade ainda não encontramos um modelo de vida e ação que facilite e apóie este caminho. Encontramo-nos numa situação muito incômoda; abandonamos as estruturas passadas e inadequadas, mas ainda não alcançamos e definimos as novas.9 Os Superiores Gerais (USG) exprimiram isso com uma afirmação um pouco forte mas verdadeira: dizem eles que um modelo de vida religiosa chegou à exaustão e já não consegue motivar nem mesmo os que se acham dentro. Padre Maccise acrescenta que hoje não estamos capacitados a saber qual será o modelo de vida religiosa de amanhã.
Estes sintomas já haviam sido identificados pelo Pe. Viganó10 e pelo Pe. Vecchi,11 que procuraram indicar-nos a solução mediante o desenvolvimento do sentido da consagração apostólica, da graça da unidade, da especificidade da espiritualidade salesiana. Hoje talvez nos encontramos em condições melhores para fazer o diagnóstico das causas mais profundas e por conseqüência encontrar as soluções.
4. A excelência objetiva da vida consagrada
Confirma o que disse acima, isto é, que a vida consagrada atravessa um “período delicado e penoso”, o testemunho de João Paulo II, que escreve: “Houve um período rico de esperanças, de tentativas e propostas inovadoras visando a revigorar a profissão dos conselhos evangélicos. Mas houve também um tempo não isento de tensões e angústias, no qual experiências embora generosas nem sempre foram coroadas de resultados positivos” (VC 13).
Essas dificuldades não conseguem obscurecer “o valor especial da vida consagrada” na Igreja, antes, tornam mais urgente uma elucidação da identidade teológica, também em relação aos demais estados de vida (cf. VC 31-32).
Nesta linha, na última reunião da Conferência Episcopal Italiana de maio passado, por ocasião dos 25 anos da Mutuae Relationes, um dos Bispos escreveu: “À luz das indicações acima mencionadas, o carisma da vida consagrada deve ser compreendido e vivido com maior clareza teológico-pastoral, seja em relação às outras expressões vocacionais na Igreja, seja em relação à missão no mundo. A interpretação mais difundida, também dentro da comunidade cristã, evoca mais uma visão funcionalista que ontológica da vida consagrada... A consagração não é meio para garantir a funcionalidade dos serviços nas obras, mas é o conteúdo fundamental da missão dos consagrados: a bem dizer, o primado de Deus, o valor das realidades últimas, no mundo do esquecimento de Deus, para um homem muito curvado sobre as coisas penúltimas”.12
Como lembrava o Pe. Tillard, “na raiz de toda vida religiosa autêntica encontramos como motivação primeira e abrangente não um “para” mas um “por causa de”. E o objeto desse “por causa de” não é outro senão Jesus Cristo. Não nos fazemos religiosos “para” alguma coisa, mas “por causa de” alguém: de Jesus Cristo e da atração que ele exerce”.13 Não há espaço para nos determos neste ponto. Geralmente é tido como evidente, ao passo que se existe algo que não o é, é justamente isto. O verdadeiro desafio atual da vida consagrada é o de restituir Cristo à vida religiosa e a vida religiosa a Cristo, sem dá-lo como garantido.
Penso que parte do problema surgiu quando uma compreensão redutiva da Lumen Gentium levou a cancelar justamente a identidade específica da vida religiosa, anulando, ou pelo menos diminuindo, a excelência objetiva da “seqüela Christi” que ela representa. Repensar o “status” teológico da vida religiosa “é um dos desafios maiores que os religiosos e as religiosas devem enfrentar hoje”.14
Sem prejudicar a santidade subjetiva de tantos leigos e padres, devemos insistir decididamente em que a “seqüela Christi” e a “imitatio Christi” encontram na vida religiosa seu campo mais favorável; ela é, precisamente, “memoria viva do modo de existir e de agir de Jesus como Verbo encarnado diante do Pai e diante dos irmãos” (VC 20). “Os conselhos evangélicos, com os quais Cristo convida alguns a partilhar a sua experiência de virgem, pobre e obediente, exigem e manifestam, em que os acolhe, o desejo explícito de total conformação a Ele... A sua forma de vida casta, pobre e obediente, mostra-se, com efeito, o modo mais radical de viver o Evangelho nesta terra, um modo – pode-se dizer – divino¸ porque abraçado por Ele, Homem-Deus, qual expressão da sua relação de Filho Unigênito com o Pai e com o Espírito Santo. Este é o motivo pelo qual na tradição cristã sempre se falou da excelência objetiva da vida consagrada.” (VC 18)
No harmonioso conjunto de dons que formam a Igreja, “está confiado a cada um dos estados de vida fundamentais o encargo de exprimir, no próprio nível, ora uma ora outra das dimensões do único mistério de Cristo. Se, para fazer ressoar o anúncio evangélico no âmbito das realidades temporais, tem uma missão particular a vida laical, no âmbito da comunhão eclesial um ministério insubstituível é desempenhado por aqueles que estão constituídos na Ordem sagrada, de modo especial pelos bispos... Na manifestação da santidade da Igreja, há que reconhecer uma objetiva primazia à vida consagrada, que reflete o próprio modo de viver de Cristo. Por isso mesmo, nela se encontra uma manifestação particularmente rica dos valores evangélicos e uma atuação mais completa do objetivo da Igreja que é a santificação da humanidade” (VC 32).
Não há dúvida que a missão da vida religiosa é a de ser sinal, metáfora:
Sinal da memória viva de Jesus, que prolonga a sua presença reveladora através da vida dos que trazem no próprio corpo “os estigmas” da paixão do Senhor (Gl 6,17). Cabe à vida consagrada viver e exprimir publicamente “a adesão ‘conformativa’ a Cristo da existência inteira” (VC 16), que leva à configuração com o Senhor Ressuscitado. “Isto implica uma particular comunhão de amor com Ele, que se tornou o centro da vida e a fonte contínua de toda iniciativa” (RdC 22).
Com efeito, a vida consagrada é em si mesma uma “progressiva assimilação dos sentimentos de Cristo” (RdC 15; cf. VC 65). “É necessário, pois, aderir sempre mais a Cristo, centro da vida consagrada, e retomar com vigor um caminho de conversão e renovação que, como na experiência primeira dos apóstolos, antes e depois da sua ressurreição, foi um re-partir de Cristo. Sim, é preciso re-partir de Cristo.” (RdC 21)
Sinal da presença e da primazia de Deus no mundo, do Deus de Jesus, fonte de vida e de humanidade, que se manifesta na estultice e fraqueza da cruz (cf. 1Cor 1,22-31), que denuncia o pecado e abre à ação vivificante do Espírito na Ressurreição. É necessário, por conseguinte, dar verdadeiramente a Deus a primazia que lhe compete, como valor absoluto da nossa vida, pessoal e comunitária, íntima e institucional.
Fazer experiência de Deus não é para nós uma ocupação irregular nem tarefa secundária, mas nossa razão de ser na Igreja e nossa primeira missão: “na simples cotidianidade, a vida consagrada cresce em progressivo amadurecimento para tornar-se anúncio de uma maneira de viver alternativa à do mundo e da cultura dominante. Com o estilo de vida e a busca do Absoluto, sugere quase uma terapia espiritual para os males do nosso tempo” (RdC 6).
Sinal da novidade do Reino de Deus que está no mundo, mas que não é deste mundo (cf. Jo 18,36), que assume os valores humanos, mas também os transcende e redime, introduzindo neles uma verdadeira e absoluta novidade. “A própria vida consagrada, sob a ação do Espírito Santo, torna-se missão. Quanto mais os consagrados se deixam conformar a Cristo, tanto mais o tornam presente e operante na história para salvação dos homens”(RdC 9).
Isso implica viver com alegria e radicalidade as Bem-aventuranças como programa de vida e como fermento capaz de transformar o mundo. Missão peculiar da vida consagrada é “manter viva nos batizados a consciência dos valores fundamentais do Evangelho, graças ao seu magnífico e privilegiado testemunho de que não se pode transfigurar o mundo e oferecê-lo a Deus sem o espírito das Bem-aventuranças” (VC 33).
Sinal da comunhão eclesial, que é vivida por quem faz profissão de viver profundamente o mandamento de Jesus na vida de comunidade, onde se faz “de algum modo palpável que a comunhão fraterna antes de ser instrumento para uma determinada missão, é espaço teologal, onde se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado (cf. Mt 18,20)” (VC 42). A contribuição dos consagrados e das consagradas para a evangelização “consiste, primariamente, no testemunho de uma vida totalmente entregue a Deus e aos irmãos, à imitação do Salvador” (VC 76; cf. RdC 34).
Isso acontece graças ao amor recíproco dos que compõem a comunidade, que, antes de se tornar projeto humano, é parte do projeto divino (cf. VFC 7). “A vida de comunhão representa o primeiro anúncio da vida consagrada, pois é sinal eficaz e força persuasiva que leva a crer em Cristo. A comunhão, então, torna-se ela própria missão, antes, a comunhão gera comunhão e se configura essencialmente como comunhão missionária” (RdC 33; cf. ChL 31-32): “quem realmente encontrou Cristo, não pode guardá-lo para si, deve anunciá-lo” (NMI 40).
“A vida consagrada hoje tem necessidade sobretudo de um relançamento espiritual, que ajude a passar para a vida concreta o sentido evangélico e espiritual da consagração batismal e da sua nova e especial consagração. A vida espiritual deve ocupar o primeiro lugar no programa das famílias de vida consagrada, de modo que cada instituto e cada comunidade se apresentem como escolas de verdadeira espiritualidade evangélica.” (RdC 20; cf. VC 93)
Chamados a ser sinais da novidade profética do Evangelho, novidade que deve iluminar e ser ponto de referência para todo batizado, temos uma grande responsabilidade na Igreja: se todos são chamados à santidade, devemos fazer da santidade um estilo de vida, a nossa verdadeira “profissão”, para nos tornarmos para os cristãos um chamado vivente. Viver consagrados a Deus é a nossa primeira missão apostólica.
E isso é muito mais urgente para nós como educadores dos jovens, os quais procuram e têm necessidade de pessoas que sejam para eles estímulo e proposta de vida, pessoas que com a própria forma de vida dêem a eles razões de vida e de esperança e os acompanhem em seu desenvolvimento humano e cristão.
5. Um modelo em crise
A partir dessa identidade podemos individuar melhor as raízes da crise atual da vida religiosa, da qual a falta de vocações, a pouca visibilidade e a fraca significatividade não passam de um sintoma.
Foi uma concepção – diria – “liberal” e redutiva de vida religiosa que julgou que a renovação devia ser uma adequação à modernidade, assumindo o melhor do Iluminismo, da emancipação, dos direitos humanos. Assim se passou a colocar no centro a pessoa, sua consciência, sua dignidade, o próprio projeto. Isto contribuiu para suscitar uma salutar libertação, consistente num amadurecimento humano mais rico e respeitoso da pessoa, mas também introduziu elementos de sinal negativo:
A recusa de qualquer distintivo particular da vida consagrada; foram sendo abandonados os traços sociais de pertença, como o hábito, as estruturas, os costumes, a linguagem, um modo característico de apresentar-se diante do povo; evitava-se ser reconhecidos e mostrar-se diferentes. Julgava-se importante a invisibilidade e o deixar sepultado o tesouro (cf. Mt 13,44).
Mas, se a própria vida consagrada nega ser sinal visível de alguma coisa, então que sentido tem? Justamente por isso, hoje tanto se fala da necessidade de recuperar um lugar no mundo e na Igreja através da sua visibilidade, por meio da qual aparecem “os traços característicos de Jesus” (VC 1).
O desejo ardente de tornar-nos normais, como todo o mundo, sem que haja alguma coisa que nos possa distinguir dos outros, sem trazer conosco o nosso sinal característico de haver sido conquistados pelo Cristo e de estar enamorados por Ele, isto é empenhados “em viver com amor apaixonado a forma de vida de Cristo” (RdC 8).
Mas se a vida consagrada não se destaca por nada a mais, se não desperta sentimentos mais profundos e recursos menos comuns, por que nos tornarmos religiosos? Se os votos não têm nada de extraordinário, de insólito, de “louco”, não será talvez porque foram reduzidos à nossa estatura? Se a vida consagrada se instalou na normalidade quer dizer que perdeu toda a sua força profética;15 se faz de tudo, mas nada de especial, se não antecipa nada de melhor, nem anuncia nem denuncia algo, para que é que serve?
Junta-se a isso a reafirmação da profissionalização. Antes, talvez, queria-se que a graça da vocação viesse a substituir a nossa incompetência profissional; “a obediência faz milagres”, dizia-se muitas vezes. Hoje, ao invés, a necessária preparação profissional se torna muitas vezes um pretexto para não ser disponíveis para a missão. Estamos perdendo o frescor da disponibilidade evangélica, a espontaneidade do apóstolo, para nos tornarmos simples profissionais da educação. Pergunto-me se todos os salesianos estariam dispostos a deixar a própria profissão para um serviço à Congregação. Minha experiência convence-me de que são muitos os que o fazem, e de boa vontade; mas, infelizmente, não somos todos.
Mas se a vida consagrada conta somente com profissionais da saúde, da educação, da marginalização, deve-se também admitir que errou, mudando tragicamente o fim pelo meio. O fazer leva vantagem sobre o ser; mas, é justo privilegiar o trabalho das nossas mãos mais que a vontade de Deus sobre nós?
Introduziu-se, assim, um grande dose de individualismo, que torna a obediência quase impossível. O fato é tanto mais grave quanto menos consciente ele é; ou se resulta notório, então é mais refletido. Diante dos próprios direitos, do próprio projeto, da realização da vocação pessoal, nada há que fazer: não são postos em questão nem sequer apreciados.
Mas se a vida consagrada interpreta-se a si mesma pela perspectiva da auto-realização, perdeu o caminho do evangelho. Lembremos as palavras decisivas de Jesus: quem quer conservar a própria vida, perde-a (cf. Mc 8,35; Jo 12,25). A auto-realização coloca no centro o próprio eu e os próprios interesses. O evangelho, ao contrário, nos descentra, pondo no centro Deus e o próximo. A cultura da auto-realização perverte o discernimento comunitário; ele é tomado não tanto como um processo de desapego e de purificação para sintonizar com a vontade de Deus, mas como uma estratégia para impor uma decisão pessoal, muitas vezes já tomada. Onde está, então, a seqüela Christi, onde o fazer, como Jesus, da vontade de Deus o próprio alimento (Jo 4,34)?
Fazendo assim, perde-se o sentido da missão comunitária, porque a primazia do eu implica a perda da missão comum. Mas se a vida consagrada consente e deixa espaço para esta visão individualista de vocação e de missão, ela se orienta para a autodestruição. O risco não é imaginário; é tão real que hoje se tornou um problema para a formação e para o governo.
A redução da oração é outro elemento desse modelo de vida consagrada “liberal”. As práticas de piedade se reduzem “ad usum privatum”, perdem freqüência, visibilidade e obrigatoriedade; fazem-se quando há tempo, porque não há outra coisa mais urgente para fazer; ou quando se sente necessidade dela, porque há algo que pedir. É verdade que antes podia haver certa rotina e formalismo e podia faltar espontaneidade e autenticidade; mas é também verdadeiro que sem praticar a oração, que exige disciplina e método, regularidade de vida e fidelidade cotidiana, produz-se um esvaziamento interior e uma profunda fragmentariedade na pessoa que crê.
Mas é um contra-senso a vida consagrada afastar-se de Deus, porque não o freqüenta. Com efeito, “das pessoas consagradas se difunde pela Igreja um convite persuasivo a considerar a primazia da graça e a responder a ela mediante um generoso empenho espiritual” (RdC 8; cf. NMI I38). Como explicar que haja para um salesiano ocupações mais importantes que Deus? Deste modo produz-se o que já tinha sido dito dos latinos: Corruptio optimi péssima; nada pior que um religioso secularizado. Para que serve o sal, se se torna insípido (Mt 5,13)?
O tipo de comunidade que se promove nesse modelo é visto como um espaço de tranqüilidade, de respeito mútuo, de bem-estar pessoal, de estar bem sem se sentir incomodado. Para chegar a isso preconiza-se o valor de comunidades homogêneas, formadas por iguais; e se isso não é possível, recorre-se ao pluralismo e à tolerância, como o ideal a ser atingido. A coisa mais importante seria a falta de conflitos, de desencontros, ou simplesmente de diversidade de vistas; e, então, deixa-se correr, fazendo com que cada um se sinta bem, não indo além do que todos estão dispostos a dar, nem pedindo o que exige o evangelho. Aumentam destarte o número de carros, as salas de TV, a independência econômica dos irmãos, a autonomia para viagens e férias, a abertura para o relacionamento com pessoas de outro sexo; a pobreza se relaxa, o superior torna-se um facilitador, não mais o animador e o pai, e a casa se transforma numa residência de indivíduos.
Mas se a vida consagrada não forma personalidades robustas, homens de comunhão que vêem o irmão como “alguém que me pertence” (NMI 43), não tem razão de existir, porque a comunhão vivida e testemunhada é um dos elementos que a tornam significativa, luminosa e evangélica. Hoje, com efeito, “a Igreja confia às comunidades de vida consagrada a missão particular de fazerem crescer a espiritualidade da comunhão, primeiro no seu seio e depois na própria comunidade eclesial e para além dos seus confins, iniciando ou retomando necessariamente o diálogo da caridade, sobretudo nos lugares onde o mundo de hoje aparece dilacerado pelo ódio étnico ou por loucuras homicidas” (VC 51).
Talvez o elemento mais fraco e mais doloroso desse modelo é a dificuldade de despertar vocações. Dá muito que pensar o fato de serem justamente os novos movimentos e as congregações recém-fundadas que mais sucesso conseguem neste campo. Algo, sem dúvida, nos faltou. Quem sabe se o modelo “liberal” de vida consagrada, que se impôs aqui e ali e indubitavelmente tem aspectos antivocacionais, não explica a situação! Com efeito, os grupos que obtêm mais sucesso vocacional apresentam três elementos fundamentais: uma espiritualidade forte, visível, partilhada; uma vida de comunidade intensa, alegre, atraente; um compromisso seguro, claro, forte em favor dos pobres, que leva a viver para eles e como eles.
Eis aí: penso que o maior problema do modelo “liberal” seja o de pretender evangelizar a cultura moderna, assumindo-a em prejuízo das opções e valores evangélicos. A conseqüência é que dessa maneira somos transformados pela lógica do mundo, em vez de nos tornarmos evangelizadores da cultura. Deveríamos ser como o sal, que tem a virtude de poder imergir-se até dissolver-se, mas sem jamais perder sua identidade, sua eficácia, podendo assim voltar de novo ao seu estado original.
Este é o modelo de vida consagrada que se acha em crise. Nós salesianos temos razão de ser se nos mantivermos fiéis à nossa vocação e missão: ser sinais e portadores de Deus. Refundar a vida religiosa não quer dizer outra coisa senão voltar ao essencial, ao absoluto de Deus, aos valores do evangelho, às bem-aventuranças e aos conselhos evangélicos, à força da comunidade, à presença em meio aos meninos, como nos exortava Dom Bosco na sua carta de Roma de maio de 1884.
6. CG25, um convite a orientar-se nessa linha
Lendo o CG25, dou-me conta de que a Congregação quis responder a esses desafios ao enfrentar a realidade da Comunidade Salesiana Hoje, apresentando uma visão de conjunto de toda a nossa vida consagrada. O tema é a comunidade, mas o conteúdo compreende a experiência e o testemunho de Deus, a comunidade fraterna e a presença entre os jovens. Assim sendo, missão, fraternidade e vida evangélica são postas na perspectiva do tipo de comunidade que a Congregação sente-se chamada a promover, procurando sua renovação mais profunda.
A comunidade, com efeito, não foi vista com um “clube de amigos” ou como uma equipe de trabalho, ainda que importe – e muito, porque pertence ao espírito salesiano – que haja uma atmosfera cordial e atraente do ponto de vista humano e uma eficácia profissional do ponto de vista educativo pastoral. Ela foi apresentada primeiramente como uma comunidade consagrada, de apóstolos, com uma clara identidade carismática, herdeira de um patrimônio espiritual no qual abastecer-se para poder responder com competência aos novos desafios.
A segunda ficha, que traz o título Testemunho Evangélico, tratou explicitamente este tema inspirando-se no “Sonho dos dez diamantes”, onde se descreve o modelo do verdadeiro salesiano. Estando pelas palavras do comentário do Pe. Viganó, podemos afirmar que justamente o próprio Dom Bosco “foi sempre em toda a sua vida a encarnação viva desse personagem simbólico”.16 Contemplado de frente, o personagem faz ver a vida salesiana primeiramente “na sua atividade” (os diamantes do lado anterior); contemplado pelas costas, o personagem nos faz ver a vida salesiana “na sua espiritualidade interior” (os diamantes nas costas). Se se quiser, à frente, a sua figura social, o rosto, o “da mihi animas”; nas costas, o segredo de constância e de ascese, a nervura e o fundamento, o “cetera tolle”.17
Aplicando essas características fundamentais à comunidade salesiana, o CG25 afirma: “Toda comunidade é formada de homens, imersos na sociedade, que exprimem a paixão evangélica do “da mihi animas, cetera tolle” com o otimismo da fé, com a dinamicidade e criatividade da esperança, com a bondade e doação total da caridade. Este compromisso é apoiado por uma estrutura espiritual forte e essencial, caracterizada em particular pela dimensão ascética dos conselhos evangélicos e por um estilo de vida trabalhador e temperante” (CG25 20).
Tem-se consciência de que o ambiente cultural de hoje, marcado pelo secularismo, pelo individualismo e pelo hedonismo, não favorece muito a estima, a assunção pessoal e o amadurecimento de uma vida consagrada; e assim se tornam mais claros os desafios a serem enfrentados. Mas também se compreende a força profética que pode ter a vida religiosa vivida em plenitude, como forma de vida alternativa que manifeste novos caminhos de humanismo segundo o Evangelho.
“Os conselhos evangélicos não devem ser considerados como uma negação dos valores inerentes à sexualidade, ao legítimo desejo de usufruir de bens materiais, e de decidir autonomamente sobre si próprio. Estas inclinações, enquanto fundadas na natureza, são boas em si mesmas. Mas a criatura humana, enfraquecida como está pelo pecado original, corre o risco de as exercitar de modo transgressivo. A profissão de castidade, pobreza e obediência torna-se uma admoestação a que não se subestimem as feridas causadas pelo pecado original, e, embora afirmando o valor dos bens criados, relativiza-os pelo simples fato de apontar Deus como o bem absoluto. Desta forma, aqueles que seguem os conselhos evangélicos, ao mesmo tempo que procuram a santidade para si mesmos, propõem, por assim dizer, uma “terapia espiritual” para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam de algum modo visível o Deus vivo. A vida consagrada, especialmente em tempos difíceis, é uma bênção para a vida humana e para a própria vida eclesial.” (VC 87; cf; CG25, 33)
Não há admirar, pois, que se fale da primazia de Deus, “que entrou na nossa vida, nos conquistou e colocou a serviço do seu Reino, como sinais e portadores do seu amor” (CG25, 22); do valor humanizante e profético do seguimento de Cristo como resposta à idolatria do poder, do ter e do prazer; da graça da unidade, “que é dom do Espírito Santo e síntese vital entre união com Deus e doação ao próximo, entre interioridade evangélica e ação apostólica, entre coração orante e mãos operosas, entre exigências pessoais e compromissos comunitários. Dessa maneira integram-se harmonicamente, na aliança com Deus, a missão apostólica, a comunidade fraterna e a prática dos conselhos evangélicos” (CG25, 24).
Tudo isso se deveria traduzir na centralidade da Palavra de Deus na vida pessoal e comunitária, na celebração da Eucaristia, na qualidade da vida de oração até fazer da comunidade uma “escola de oração”, na revisão de vida, na direção espiritual, no projeto de vida pessoal e comunitário. Ainda uma vez, o ponto sobre o qual se deve insistir é a comunidade local e a vida fraterna da comunidade presente na vida dos jovens.
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