Viganò Egídio
Significado eclesial e social de Dom Bosco Fundador no hoje
da igreja e da sociedade
Simpósio da Família Salesiana Dom Bosco Fundador
Atos do Conselho Geral
Ano LXX – abril-junho, 1989
N. 329
De 22 a 26 de janeiro [1989], no “Salesianum” em “via della Pisana”, realizou-se o simpósio, organizado pelo Dicastério da Família Salesiana, com a colaboração dos vários Grupos, para um estudo aprofundado sobre “Dom Bosco Fundador”. O simpósio se apresentava como um compromisso dos responsáveis pela Família Salesiana de refletir sobre a pessoa do Santo Fundador, para tirar elementos válidos e atualizar seu carisma hoje. Pela sua característica, o encontro foi reservado, em particular, aos Conselhos Gerais dos Salesianos e das Filhas de Maria Auxiliadora, aos responsáveis dos Cooperadores, Voluntários de Dom Bosco, Ex-alunos e Ex-alunas, e às Superioras e representantes dos vários Institutos religiosos pertencentes à Família. Esteve presente em todos os trabalhos também o Arcebispo de Shillong; Dom Hubert D'Rosario SDB, Fundador de um Instituto no Assam.
Após a apresentação dos trabalhos pelo Conselheiro para a Família Salesiana, Pe. Sérgio Cuevas, foram feitas, nos vários dias, as relações programadas, intercaladas por comunicações e pelo debate entre os participantes, que contribuíram para esclarecer com maior clareza os aspectos da figura do Fundador, encontrando-os seja nos fatos históricos seja na compreensão do carisma.
Limitamo-nos aqui em assinalar a lista das relações. No primeiro dia estudou-se em geral o tema do “Fundador” com duas apresentações do Pe. Mário Midali (“Análise avaliativa dos tipos de contato com a figura de Dom Bosco fundador, à luz da reflexão contemporânea”) e do Pe. Francis Desraumaut (“Dom Bosco fundador”). No segundo dia aprofundou-se mais especificamente o tema da fundação da Sociedade Salesiana: o Pe. Ramon Alberti falou de Dom Bosco fundador dos Salesianos e o Pe. José Tuninetti apresentou as “Relações de Dom Bosco com os arcebispos de Turim sobre a fundação da família salesiana”. As relações foram completadas por comunicações do Pe. F. Motto e do Pe. C. Semeraro. Quinta-feira dia 25 de janeiro o tempo foi dedicado para aprofundar a fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora. Duas as relações: “Dom Bosco Fundador das Filhas de Maria Auxiliadora” (Ir. Ester Posada); “Dom Bosco e Madre Mazzarello na Fundação das FMA” (Ir. Anita Deleidi). O último dia foi dedicado ao estudo de “Dom Bosco Fundador dos cooperadores” (Pe. Francis Desramaut) e de “Referências a Dom Bosco dos outros grupos da família salesiana” (Pe. J. Aubry).
O simpósio caracterizou-se, além do intenso empenho de reflexão, pela fraternidade salesiana e pela oração, que fez sentir vivo o clima de Família. Durante o Simpósio deve-se assinalar a bênção da primeira pedra da futura Biblioteca da UPS, que aconteceu na quarta-feira 25 de janeiro.
Reproduzimos aqui a relação conclusiva do Reitor-Mor, que apresenta uma síntese dos vários aspectos aflorados e uma indicação viva e atual ao Fundador.
.-. -.-.-.-.
Apresento algumas reflexões como estímulo a ulteriores pesquisas.
O meu, não é um estudo científico, mas um conjunto de considerações feitas no contexto da minha tarefa de serviço à Família Salesiana como seu centro de unidade.
1. Reflexões sobre um acontecimento de vida
O tema do Simpósio é, para nós, vital.
A falta de referência ao Fundador traria para a nossa Família um enfraquecimento da sua identidade e uma nociva dispersão na comunhão.
O Santo Padre João Paulo II reconheceu, na Carta que nos escreveu a 31 de janeiro de 1988, que Dom Bosco deve ser colocado na Igreja “entre os grandes Fundadores” (IP, 5).
Esta afirmação nos faz pensar em algumas célebres figuras de “eminentes Homens e Mulheres” (LG, 45) que “fundaram Famílias religiosas” (PC, 1) e cujo “espírito e finalidade” asseguram “a índole própria e a missão” dos seus seguidores (cf. PC, 2); lembremos por exemplo, S. Bento, S. Francisco de Assis, S. Domingos de Gusmão, Sto. Inácio de Loyola, S. João Batista de La Salle, Sta. Ângela Mérici, Sta. Teresa, etc.
O aparecimento de um Fundador na história da Igreja é propriamente um “acontecimento de vida”. Na sua pessoa e na sua obra de fundação aparece uma especial intervenção de Deus. Assim, a consideração da tarefa do Fundador não pode ser reduzida simplesmente à análise dos dados históricos do passado — também se indispensáveis —, porque se trata de uma experiência espiritual ainda viva hoje nas pessoas e nos grupos. Requer uma natural reflexão de fé (também com a ajuda de muitas ciências) para individualizar as “mirabilia Dei” que se manifestaram na sua vida e permanecem como tradição genuína que se refere a ele.
Quero dizer que, com o estudo de um Fundador, tenta-se entrar no coração de uma realidade viva, que ultrapassa as constatações fenomenológicas. Quem, por exemplo, não seguiu atentamente a renovação do carisma permanente de um Fundador depois das orientações deixadas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, marginaliza-se de uma objetiva capacidade de interpretação integral.
Por isso não me parece fora de lugar a pergunta: qual possa ser “hoje” o significado eclesial e social de Dom Bosco Fundador.
Certamente a resposta não é simples. Se olharmos unicamente para a nossa Família espiritual, veremos que todo Grupo possui, nela, uma sua crônica das origens e uma sua peculiar visão para interpretar seu alcance.
2. Um olhar à história das Famílias religiosas
Se considerarmos a figura do “Homem (ou Mulher) eminente” a que se referem como “Fundador” inicial as várias Famílias espirituais, encontraremos uma grande variedade de experiências.
Assim, por exemplo, enquanto S. Pacômio institucionalizava fortemente a vida isolada do mundo (total ou suavizada, que permanecerá sempre presente no Oriente) como forma de vida monástica — e o mesmo diga-se de S. Basílio —, Santo Antão abade nunca pensou em fundar uma instituição organizada. O mesmo S. Bento limitou-se a dar uma Regra a uma comunidade local, que não está estritamente na origem do desenvolvimento posterior; são mais os monges vindos depois que se referem a ele como a um modelo e à Regra como a uma direção. Assim também vários Institutos olham para Santo Agostinho e sua Regra, sem que ele mesmo tenha nunca pensado em organizá-los.
Nos séculos anteriores a S. Francisco de Assis no Ocidente foram declaradas intocáveis, por sua autoridade e autenticidade, as Regras de S. Bento e de Sto. Agostinho, às quais deviam se inspirar os vários Institutos nascentes, como a orientações e modelos.
É só depois do século XIII (após o Concílio Lateranense IV) que se abre o caminho a um conceito mais ou menos definido de “Fundador” de uma Família religiosa (cf. Comentário ao projeto de vida dos salesianos de D. Bosco”, Roma 1986, vol. I, p. 12). E também aqui não é totalmente unívoco, mas existe uma variedade de diferentes modos de fundação (ou ao mesmo tempo também vários casos de “cofundação”).
É, portanto, uma tarefa que requer em cada Família uma indispensável consideração objetiva do tipo histórico, a ser aplicado analogicamente a todo grupo que lhe pertence. Assim os requisitos exigidos num Fundador resultam, de fato, diferenciados em vários níveis: iniciam por um denominador comum, que comporta, no mínimo, uma figura de “Homem (ou Mulher) eminente” (que muitas vezes será também um formal Santo), por quanto foi original e genial na interpretação do seguimento de Cristo e que traz consigo uma inspiração particularmente intensa e atraente (qual ponto de referência de um peculiar espírito que o torna um modelo a ser admirado e que deixou uma certa metodologia para vivê-lo), até indicar, em outros casos, quem não só viveu uma peculiar experiência do Espírito Santo, mas cuidou também da maneira de transmiti-la esclarecendo e organizando, com maior ou menor definição, o específico patrimônio hereditário a ser conservado e desenvolvido.
3. A figura de Dom Bosco “Fundador”
Quando nós falamos de Dom Bosco “Fundador” o discurso se torna mais concreto e refere-se inicial e explicitamente a três Grupos primitivos da nossa Família Salesiana: a Sociedade de S. Francisco de Sales (SDB), o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (FMA) e a Associação dos Cooperadores Salesianos (CCSS).
A aplicação aos outros Grupos da nossa Família tem um significado mais amplo a ser examinado Grupo por Grupo, considerando os elementos comuns relacionados com ele, por quanto inspirou os sucessivos “fundadores” influenciando de diferentes maneiras sobre a tradição de vida dos seus grupos. Por isso, a sua pertença à nossa Família deve se fundamentar sobre determinadas condições a ser avaliadas pela autoridade, também se a sua validade interna viveu constantemente o patrimônio espiritual. Nestes casos deve-se sempre aprofundar a relação espiritual entre o próprio fundador imediato e Dom Bosco.
Uma particular consideração merece a figura de Sta. Maria Domingas Mazzarello como “Co-fundadora” do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora. Já falei disso brevemente na Carta que escrevi às FMA por ocasião do centenário de sua morte (cf. Carta: “Redescobrir o Espírito de Mornese”, 24 de fevereiro de 1981). A Mazzarello entra com peculiar fulgor na constelação das origens do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora pela transmissão viva nele do patrimônio salesiano.
Dom Bosco amadureceu pouco por vez na sua consciência uma percepção clara, e acima de qualquer dúvida, da sua missão de Fundador a que foi chamado do alto para transmitir a sua experiência evangélica também através de mediações organizativas e indicações normativas.
Como Fundador, a ele aplica-se o que diz Paulo VI na Exortação Apostólica “Evangelica testificatio” onde insiste sobre a importância de “ser fiéis ao espírito dos Fundadores, às suas intenções evangélicas, ao exemplo da sua santidade”. O patrimônio espiritual dos Fundadores, “longe de ser um impulso nascido da carne e do sangue (Jo 1,13), nem fruto de uma mentalidade que se conforma com o mundo presente (Rm 12,2) é fruto do Espírito Santo que sempre age na Igreja” (ET, 11; 21 de junho de 1971).
Neste sentido Paulo VI fala do “carisma dos Fundadores”, que mais tarde (14 de maio de 1978) o documento “Mutae Relationes” descreve como “uma experiência do Espírito, transmitida aos próprios discípulos para ser por eles vivida, guardada, aprofundada e constantemente desenvolvida em sintonia com o Corpo de Cristo em perene crescimento” (MR, 11).
4. Gradualidade e convergência na obra de fundação
Dom Bosco, como Fundador, não iniciou com um projeto claro e pré-estabelecido, mas foi gradualmente à procura, às vezes quase às apalpadelas, com indicações sugeridas ou impostas pelas circunstâncias concretas (consideradas como sinais da Providência) e com a colaboração de pessoas, também as mais variadas, entre as quais se sobressai o Papa Pio IX, a quem Dom Bosco agradeceu — numa sua carta em latim datada em 1º de março de 1873 — pela sua participação e os seus conselhos no difícil período da fundação, na orientação e na consolidação (cf. Atos CG21. p. 303-307: “opere et consilio fundasti, direxisti, consolidasti”. E se alguém for ler a dedicatória escrita no pedestal da estátua de Pio IX na basílica do Sagrado Coração em Roma, encontrará, dirigida a ele, a expressão “alteri Salesianorum parenti!”).
O período difícil de inserção da sua fundação nas estruturas eclesiásticas e na sociedade civil apresenta uma concreta gradualidade de busca na flexibilidade. Dom Bosco não almeja um ideal só imaginário, mas adapta-se inteligentemente à realidade. O seu projeto vai-se modificando em conformidade também com os acontecimentos, não aceitos passivamente, mas enfrentados com constância criativa. Só nos primeiros anos de sacerdócio (especialmente nos anos 48-50) e gradualmente, sob o impulso das iluminações do alto e urgências que empurravam da base (de fato, só em Turim encontra os garotos dos seus sonhos!), confrontadas com o seu diretor espiritual, S. José Cafasso, pode-se dizer que tinha já clara a meta: uma missão definida, um espírito próprio, uma metodologia peculiar, um envolvimento do maior número possível de colaboradores.
Podemos deduzi-lo de uma explícita afirmação: “A Virgem Maria tinha-me indicado em sonho o campo no qual eu devia trabalhar. Tinha, portanto o projeto de um plano, meditado, completo, do qual não podia e nem queria absolutamente me afastar. Eu era absolutamente responsável pelo sucesso dos mesmos. Via claramente o caminho que devia percorrer, os meios que devia utilizar para ser bem sucedido no empreendimento; portanto, não podia correr o risco de esvaziar esse plano submetendo-o ao juízo e à vontade dos outros. Apesar disso, neste mesmo ano de 1847 quis observar com maior interesse se existisse alguma Instituição em que eu pudesse ter a segurança de executar o meu mandato, mas não demorei a perceber que não havia. Apesar de ser santíssimo o espírito que os animava e a finalidade a que tendiam, todavia não correspondiam aos meus objetivos. Estes foram os motivos que me seguraram para não entrar nalguma Ordem ou Congregação de religiosos” (MB 3, 247).
No entanto, tudo estava ainda no estágio inicial, fechado como numa semente. Não tinha claro o caminho, não previa os passos do futuro dinâmico e imprevisível do seu projeto, nem conhecia o dia da chegada. Uma chegada, de qualquer maneira, sempre provisória, porque aberta a um infinito adiamento no tempo.
Possuía a habilidade e a docilidade de considerar o projeto iniciado como algo vivo, que está amadurecendo, que pode ser melhorado e até sujeito a mudanças de curso. Não estava ligado aprioristicamente a um esquema, mas estava à procura da modalidade concreta para alcançar a meta que lhe fora apontada do alto.
E aqui não será inútil um parênteses. Para compreender Dom Bosco Fundador devemos seguir todo o percurso de busca nas circunstâncias concretas do seu tempo, mas devemos chegar também com ele à meta concreta alcançada. Nos homens penetrados pelo Espírito de Deus o amadurecimento da vida tem uma importância decisiva. Também considerando as doenças dos últimos anos, não podemos simplesmente procurar explicações de possíveis inconvenientes psicossomáticos: é necessário lembrar também as leis próprias do crescimento espiritual. Os componentes, de fato, dizem que quanto mais o homem se aproxima do seu fim mortal, tanto mais aumenta nele a intensidade mística, quase como uma aceleração de um corpo que cai pela gravidade sobre a terra.
Dom Bosco, guiado por uma excepcional constância e sem recriminações, deixou-se guiar pela Providência, não fechando ulteriores horizontes aos seus discípulos.
O Concílio Ecumênico Vaticano II, antes mesmo de falar da tarefa dos Fundadores, lembra a indispensabilidade de um discernimento adequado sobre a sua obra, autenticada pela autoridade da Igreja. O capítulo VI da “Lumen Gentium” preocupa-se antes de tudo em falar desta responsabilidade em discernir, interpretar e regulamentar a prática dos conselhos evangélicos, como tarefa específica dos Pastores, sob a orientação do Espírito Santo (cf. IG 43; também LG 12, e CDC can. 576).
Existe, portanto, sempre, na genuinidade eclesial dos Fundadores, também se com modalidades diferentes através dos séculos, uma convergência de ao menos dois dinamismos complementares: os impulsos do Espírito Santo em “Homens e Mulheres eminentes” (LG 45) e o discernimento e a autenticação da autoridade da Igreja. Afirmou-se corretamente: “A comunhão orgânica da Igreja não é exclusivamente “espiritual”, isto é, nascido como for, do Espírito Santo e assim anterior às ações eclesiais e criadora das mesmas, mas é simultaneamente “hierárquica”, enquanto derivada por impulso vital de Cristo-Cabeça. Os meus dons, infundidos pelo Espírito são exatamente desejados por Cristo e por sua natureza, dirigidos ao bem do Corpo para vivificar sua estrutura e suas atividades. Com razão o apóstolo Paulo muitas vezes afirmou em íntima e vital convergência, as expressões “em Cristo” e “no Espírito” (MR 5).
Portanto: ao menos dois dinamismos convergentes; ambos indispensáveis, com diferentes tarefas, mas com objetiva influência sobre o patrimônio a ser deixado em herança.
Quanto tenha influenciado sobre Dom Bosco o discernimento e a contribuição dos Pastores, particularmente do Papa, e que importância tenha tido a aprovação da Sé Apostólica (também se de acordo com os cânones da legislação eclesiástica da época (cf. “Comentário às Constituições” SDB. p. 13-15), é um argumento particularmente importante e delicado, que não faz parte direta desta relação.
Aqui entendemos nos referir ao patrimônio espiritual de Dom Bosco, que vivemos nós hoje, como fruto daquela dupla convergência que é ao mesmo tempo imulso do Espírito Santo em Dom Bosco e aprovação qualificada da sagrada Hierarquia, seja antes bem como depois do Concílio Vaticano II. Assim o seu patrimônio tornou-se e é “um bem especial para o inteiro Povo de Deus” (cf. Constituições SDB 192).
5.Seu significado eclesial
Para refletir sobre o significado eclesial de Dom Bosco Fundador no hoje do Povo de Deus, penso seja útil começar por alguns requisitos que o apontam iniciador e modelo do tipo de vida evangélica característico da sua Família Salesiana.
Consideramos como requisitos a serem analisados os seguintes: a inspiração do alto, a original experiência de um tipo de santidade, a fisionomia do espírito próprio, a fecundidade de iniciador de uma escola de vida, a peculiar missão, a criteriologia pastoral e a pluralidade de formas de participação.
Evidentemente não é possível, aqui, desenvolver profundamente os conteúdos. Penso seja, porém suficientemente útil apresentar brevemente o significado.
5.1. A inspiração do alto
É este um traço “profético” que caracteriza todo Fundador, suscitado e guiado pelo Espírito do Senhor para dar início e orientar uma novidade carismática na Igreja. Dom Bosco procurou num primeiro momento endereçar as inspirações recebidas na busca concreta de pertença a instituições eclesiais já existentes (por exemplo, com os Rosminianos — MB 3,250), mas teve que se convencer que o plano de Deus era diferente. Através de mediações (visões, “sonhos”, palavra interior), que consistiram também em conselhos de pessoas (desde S. José Cafasso até ao ministro anticlerical Rattazzi), no discernimento e crédito de autenticidade da autoridade da Igreia e na percepção sempre mais viva e real da conjuntura social e eclesial em que se encontravam a juventude e o Povo, amadureceu aos poucos e com sempre maior clareza a sua específica responsabilidade de Fundador. Ele mesmo dirá: “Como aconteceram as coisas, eu apenas saberia dizê-lo. Isto eu sei, que Deus o queria” (MB 12,78). Eis porque “eu sempre fui adiante e este foi o único intuito pelo qual até agora trabalhei. Este é o motivo pelo qual nas adversidades, nas perseguições, entre os maiores obstáculos nunca me deixei amendrontar e o Senhor sempre esteve conosco” (MB 7,664).
Não é fácil encontrar um Fundador que tenha tido a clara consciência deste seu especial papel quanto a teve Dom Bosco.
Portanto: um primeiro significado eclesial de Dom Bosco Fundador é o seu aspecto de “palavra pronunciada por Deus” para toda a Igreja (cf. uma minha conferência datilografada “O carisma de Dom Bosco” feita ao CG 16 das FMA, 20 de abril de 1975).
5.2. A original experiência de um tipo de santidade
Dom Bosco como Fundador testemunha e transmite um tipo peculiar de seguimento de Cristo como projeto de vida a ser deixado a tantos discípulos. A sua essência consiste numa “nova síntese orgânica” dos elementos constitutivos do crescimento batismal. É preciso olhar à sua experiência de Espírito Santo como um ponto especial de referência: “um estilo particular de santificação e de apostolado, que estabelece uma determinada tradição, de maneira tal que podem ser convenientemente individualizados os elementos objetivos” (MB 11).
Trata-se de uma experiência peculiar, vivida e consolidada. Aqui com a palavra “experiência” (além dos diferentes significados que assume na cultura atual) quer-se indicar uma maneira de percepção vital e um modo típico de se relacionar com o mistério de Deus na própria vida, a não ser confundido com a metodologia “experimental” dos laboratórios científicos.
Como escreveu um pesquisador deste tema: “O estudo dos Fundadores não é algo tão fácil também se temos à nossa disposição vários métodos científicos de pesquisa, porque os Fundadores são arredios a qualquer explicação unicamente histórica, sociológica e psicológica. Quando nos aproximamos deles, batemos contra algo que nos escapa; e também quando acreditamos conhecê-los bem, toda vez que os estudamos, descobrimos algo novo. Como explicar este mistério, esta riqueza inesgotável? Simplesmente com o fato que nos encontrando com um Fundador nos encontramos com o mistério de Deus: no Fundador e por meio dele é Deus quem age” (Thadée Grzeszczyk, e. c. “Il carisma dei Fondatori”, Coleção “Sanctitas in caritate” Roma 1974, p. 11).
Este aspecto comporta a transformação do Fundador em “Modelo” ao qual olhar para o seguimento de Cristo (cf. 1Cor 11,1) e o motivo é exatamente a transcendência da sua específica experiência espiritual, que manifesta concretamente uma peculiar inspiração e iniciativa de Deus. Com razão os Fundadores foram qualificados como “homens do Espírito” (cf. o estudo de Fábia Viardi, OMI, “I Fondatori uomini dello Spirito — per una teologia dei carisma di Fondatore” Città Nuova, Roma 1982).
Assim com os Fundadores, a Igreja se enriquece com uma variada abundância de dons para que “apareça como uma esposa enfeitada para o seu esposo e por meio dela se manifeste a. multiforme sabedoria de Deus” (PC 1).
5.3. A fisionomia do espírito próprio
O espírito dos Fundadores é uma original modalidade de viver o Evangelho que apresenta a rica e multiforme possibilidade de interpretar vitalmente o mistério do Cristo.
Distingue-se daquilo que se costuma chamar “espiritualidade”. Sem dúvida: as duas palavras “espírito” e “espiritualidade” são parecidas, e muitas vezes são usadas indiferentemente para indicar a mesma realidade. Mas para nós aqui é necessário distingui-las. Com “Espírito dos fundadores” entendemos aquela síntese global e vivida que interpreta um estilo de “vida no Espírito Santo”, ou seja, um estilo de contemplação, de conduta e de ação, que constitui a alma da identidade de um tipo original de seguimento do Cristo. Não é propriamente um pequeno tratado de doutrina sobre os elementos próprios de um estado de vida ou de um ministério ou de um serviço. Trata-se, no entanto, de um estilo de testemunho de vida, aplicável a diferentes estados e ministérios, também em pessoas simples não acostumadas com a preocupação intelectual de analisar a vida. É uma atitude “existencial” que apresenta uma fisionomia própria à maneira de viver e de agir e que qualifica cada um dos Institutos ou Famílias e os diferencia entre si na Igreja.
Por “Espiritualidade”, no entanto, entendemos o aprofundamento e a análise doutrinal que procura determinar as componentes espirituais de um especifico estado de vida, de um ministério, de um serviço ou de uma tarefa. É um esforço de reflexão para determinar a “essência” espiritual dos conteúdos presentes numa realidade, por exemplo na vida conjugal ou na vida consagrada, no ministério sacerdotal ou nos vários serviços ou tarefas (cf. E. Viganò: “II carattere ecclesiale della spiritualità religiosa apostolica”, Número especial do Bollettino UISG, n. 62, p. 37-38, Roma 1983).
Nós aqui falamos do “espírito de Dom Bosco como síntese existencial e como fisionomia evangélica da vida nas relações com Deus e com o próximo. É uma energia vital da caridade pastoral que une harmonicamente não só os vários temperamentos doutos e dons pessoais, mas também as espiritualidades de diferentes compromissos, como: a consagração na vida religiosa ou no mundo, a condição conjugal, celibatária ou de determinadas tarefas eclesiais e sociais. De fato, na Família Salesiana vive-se o mesmo ‘espírito’ numa pluralidade de condições de vida (cf. “La Famiglia Salesiana di Don Bosco”, aos cuidados de Joseph Aubry, LDC, Torino 1986, p. 65-66).
É preciso afirmar que Dom Bosco, como Fundador, preocupou-se explicitamente de infundir nos seus (religiosos, religiosas, fiéis leigos) um “espírito característico”, que constitui a alma do seu patrimônio a ser transmitido.
Para descrever a tipologia e captar os aspectos característicos foram realizados, nas décadas depois do Concílio, importantes Capítulos Gerais e Assembleias mundiais que esclareceram os traços da identidade, autenticados depois pela aprovação da Sé Apostólica.
O “espírito salesiano”, assim descrito sobretudo no bonito capítulo das Constituições dos SDB (art. 10-21), possui um particular significado eclesial porque apresenta uma original leitura evangélica em feliz sintonia com a renovada visão apontada pelo Concílio Ecumênico Vaticano II. (Seria interessante — e talvez seria desejável e frutuoso, também se não é fácil, para os vários grupos que se inspiram a Dom Bosco — poder reunir os traços fisionômicos nalguns artigos comuns a todos, juntamente com alguns outros aspectos especialmente da missão, como uma “carteira de identidade espiritual” de toda a Família Salesiana de Dom Bosco).
A identidade deste “espírito” parece-me se baseia sobre duas colunas entre si complementares: Uma modalidade de íntima união com Deus contemplado como fonte inesgotável de bondade misericordiosa (Pai), de iniciativa redentora (Filho), de poder transformador dos corações (Espírito Santo). Modalidade que deve ser percebida nos simples particulares com que, como sabemos de sua vida, Dom Bosco soube entrelaçar o seu habitual encontro com a Trindade. Portanto, uma maneira original de união com Deus que faz dele, como Fundador, uma espécie de “patriarca” de uma especial aliança com Deus. Ele, de fato testemunha e comunica aos seus uma prática peculiar das “virtudes da aliança”, ou seja, da fé, da esperança e da caridade hauridas do mistério trinitário contemplado seguindo a sua inserção na história do homem; e, em segundo lugar, um conjunto harmonioso de atitudes marcadas por uma “ativa caridade pastoral”, que impulsiona a uma vida de criatividade apostólica, marca o sentido vivo da Igreja, de zelo missionário, de adesão ao cotidiano, de flexibilidade e atenção às urgências dos tempos.
5.4. A fecundidade de Iniciador de uma escola de vida
O espírito de Dom Bosco Fundador caracteriza-se por um dinamismo gerador de posteridade espiritual. Ele fora enriquecido com dons especiais que fizeram da sua existência um centro fecundo de atração e de irradiação. A sua experiência espiritual foi suscitada e guiada do alto para ser transmitida e desenvolvida por tantos discípulos na Igreja.
O seu fascínio espiritual de Fundador o fez um portador de futuro, um Iniciador de escola com uma própria forma de santificação e de apostolado: doou-lhe uma “paternidade espiritual” que vem de Deus (cf. Ef 3,15) e que o torna guia experimentado para os seus. Ficando com ele e olhando para ele aproximamo-nos com certeza de Deus. Dela pode-se repetir o que escrevia o Apóstolo: “sejam meus imitadores como eu o sou de Cristo”
Não se trata de um perigoso culto da personalidade, no sentido ideológico da expressão. Devemos falar, no entanto, de uma mediação providencial desejada pelo Espírito de Deus por causa das especiais necessidades dos novos tempos: serve para facilitar a muitos o seu processo de santificação e ajuda a resolver com rapidez determinados problemas que aparecem.
Esta paternidade espiritual nos faz descobrir nele uma forte personalidade cristã cuja modalidade de santidade foi suscitada pelo Espírito Santo para ser partilhada por muitos outros: não é uma santidade isolada, mas aquela de um verdadeiro Iniciador de escola. Não é que a sua santidade seja, em si, um produto novo, mas existe nele uma convergência orgânica de elementos, de fatos contingentes, de indicações e sugestões de outros, de revisões e de contribuições constantes da vida, que na sua mente dócil, equilibrada e prática aos poucos foram elaborando uma “índole própria”, testemunhada com humilde e perspicaz constância, que se torna uma herança viva. Tudo isto supõe nele a presença de uma especial criatividade “mística”, que o tornou pai espiritual de muitos.
Pode-se aplicar a ele com exatidão o que foi escrito de Montmorand: “Os verdadeiros místicos são pessoas práticas e ativas, não de raciocínios e de teorias. Possuem o sentido da organização, o dom de mandar e revelam-se providos com ótimos dons para os negócios. As obras por eles fundadas são válidas e duradouras; em idealizar e dirigir as suas empresas dão provas de prudência e de coragem e daquela justa ideia das possibilidades que é o caráter do bom senso. E de fato parece mesmo que o bom senso seja a sua qualidade mais dominante: um bom senso não perturbado nem por exaltações lânguidas, nem por imaginações desordenadas, e unido a uma rara faculdade de discernimento” (Citado por E. Ceria, em Dom Bosco com Deus, ed. SDB, Roma 1988, p. 299-300. Seria bom reler todo o cap. 18: “Dom de oração”). Sobre isso, também o exemplo de Sta. Teresa reformadora ensina do Carmelo.
A experimentação desta sua paternidade espiritual é aquela “Escola de santidade” que deixou em herança à sua Família e que já enumera um número não pequeno de servos de Deus, bem-aventurados, de canonizados e de religiosos/as exemplares, sacerdotes, missionários/as e fiéis leigos (cf. ACG, SDB n. 319, outubro-dezembro 1986, carta circular do Reitor-Mor, p. 9-13). A sua experiência de Espírito Santo consta, podemos dizer, de um duplo elemento. Aquele estritamente “pessoal”, não transmissível, e aquele “permanente”, destinado a ser transmitido aos discípulos. Dom Bosco, como indivíduo, teve muitos dons incomunicáveis por causa da sua missão pessoal. Trata-se de elementos privilegiados. Não é sempre fácil distinguir os dois aspectos. Estou convencido que o nosso Pai levou consigo muitos segredos e um tipo de vida penitente austera e heroica, à imitação do Cafasso, sempre escondendo e nunca comunicando aos seus.
Em todo caso é também verdade que não seria suficiente a santidade pessoal de Dom Bosco para fazer dele o nosso Fundador. O que aqui é importante sublinhar é que a sua peculiar experiência espiritual foi por ele cuidadosamente transmitida numa espécie de “escola evangélica nova” aos seus discípulos. São Bento Labre é santo, mas não tem discípulos, não é fundador, como não o foi o próprio Cafasso que foi mestre do nosso Fundador.
Os primeiros discípulos de Dom Bosco foram garotos e garotas formados nesta sua escola. E para compreender profundamente a sua tarefa de Fundador devemos olhar também aos seus primeiros e mais significativos “filhos e filhas” que, com outras pessoas sábias, constituem uma espécie de constelação de colaboradores na fundação. Entre estes ocupam um lugar eminente (em níveis diferenciados) o Papa Pio IX (como já dissemos), os primeiros seus jovens consagrados (como o Pe. Miguel Rua, Dom Cagliero e outros), Sta. Maria Domingas Mazzarello, o Pe. Pestarino, etc. (cf. E. Viganò, “Redescobrir o espírito de Mornese”, ACS n. 301, julho-setembro 1981, p. 20-22 e 29-33). E isso não só quando ele estava vivo, mas também na primeira hora de fiel transmissão e desenvolvimento.
Pensemos ao que disse o Papa Paulo VI do seu vicário e primeiro sucessor Pe. Miguel Rua, na homilia da sua beatificação: ele “fez do exemplo de Dom Bosco uma escola, de sua obra uma instituição ampla, pode-se dizer, sobre toda a terra; da sua vida uma história, da sua regra um espírito, da sua santidade um tipo, um modelo; fez da fonte, uma correnteza, um rio” (L’Osservatore Romano, 30-31 de outubro de 1972).
5.5. A peculiar missão
A típica santidade de um Fundador de vida ativa se traduz concretamente numa missão específica, qual viva participação na tarefa evangelizadora da Igreja.
Dom Bosco foi guiado pelo alto na realização de uma peculiar pastoral juvenil e popular. Ela situa-se na área da cultura como trabalho educativo. A caridade pastoral do seu coração caracteriza-se por uma escolha preferencial da juventude necessitada unida a uma preocupação evangelizadora das classes populares. Dirige-se preferencialmente a determinados destinatários, mas não se caracteriza somente iniciando por eles, mas também pela peculiar modalidade com que é atuada, pela particular organização dos seus conteúdos e objetivos e pelo estilo da sua presença de bondade, de diálogo e de amizade (cf. Atos CG 21, SDB, n. 80).
Deve-se observar que a missão dá a tonalidade a todo o patrimônio espiritual de Dom Bosco, influindo, portanto, fortemente sobre o seu significado eclesial. A realização da missão exige sensibilidade em relação às culturas, às conjunturas históricas, às situações sociais, aos compromissos concretos da Igreja local, ou seja, está estritamente ligada ao movimento da história. Dela provém, portanto, um contínuo desafio de atualidade e de criatividade, que impõe um contínuo esforço de revisão, de programação e de imaginação, enquanto dá continuamente juventude e atualidade ao seu patrimônio espiritual.
Hoje, numa Igreja comprometida em repensar toda a pastoral, é esta uma das notas mais exigentes do significado eclesial e da perspectiva de futuro do tipo da santidade de um Fundador.
“Iuvenum Patris”, lembra a todos os sacerdotes que “no cuidado pastoral seja dada uma atenção prioritária à juventude: os jovens voltam a ter o cuidado principal dos sacerdotes! Está em jogo o futuro da Igreja e da sociedade” (IP, 20).
5.6. A criteriologia pedagógico-pastoral
Dom Bosco Fundador é um verdadeiro Mestre e Modelo porque soube encarnar a caridade pastoral numa eficaz ação educativa. Na carta que acabei de citar o Papa afirma que é reconfortável considerar nele “sobretudo o fato que ele realiza a sua santidade pessoal mediante o empenho educativo, vivido com zelo e coração apostólico, e que sabe propor, ao mesmo tempo, a santidade como meta concreta da sua pedagogia. Precisamente tal intercâmbio entre “educação” e “santidade” é o aspecto característico da sua figura” (IP 5).
Ou seja, “Dom Bosco não é simplesmente um Santo que foi também educador; mas o é enquanto fundador de uma escola de santidade através da educação. A sua espiritualidade, a sua operosidade e a sua metodologia testemunham uma peculiar originalidade educativa. (E. Viganò em “Dom Bosco, atualidade de um magistério pedagógico”, LAS, Roma 1987, p. 12).
Seguindo esta consideração aparece como aspecto particular do significado eclesial de Dom Bosco Fundador o de ter deixado em herança aos seus uma criteriologia pedagógico-pastoral, por ele definida “Sistema Preventivo”, que o aponta a todos como grande “Mestre para a educação”.
A carta “Iuvenum Patris” constitui um autorizado comentário a esse título: explicita a “mensagem profética” analisando na perspectiva da atualidade o famoso trinômio: “razão, religião, amabilidade”.
Esta criteriologia pedagógico-pastoral “não está confinada ao passado. Sem dúvida, a mensagem pedagógica de Dom Bosco exige que seja ainda aprofundada, adaptada, renovada com inteligência e coragem, precisamente em razão dos mudados contextos socioculturais, eclesiais e pastorais. Todavia, o essencial do seu ensinamento permanece, as peculiaridades do seu espírito, as intuições, o seu estilo, o seu carisma não perdeu valor, porque inspirados na transcendente pedagogia de Deus” (IP 13). Eis a razão pela qual a sua criteriologia responde profeticamente aos urgentes desafios de educação cristã hoje.
5.7. A pluralidade de formas de participação
O que dissemos sobre o “espírito” está na base da admirável pluralidade de formas de participação ao patrimônio evangélico de Dom Bosco Fundador na sua Família. Conhecemos (e as percebemos representadas também aqui) as múltiplas formas de participação, enquanto também podemos fazer outras hipóteses possíveis. Na minha carta circular sobre a “Família Salesiana” (cf. ACS n. 304, abril-junho de 1982) procurei aprofundar o aspecto doutrinal, individualizando na caridade pastoral do “Da Mihi Animas” a energia unificadora desta pluralidade.
Não se trata só da participação operativa numa mesma missão, mas de uma verdadeira comunhão de interioridade espiritual que faz viver o Evangelho segundo a índole própria testemunhada por Dom Bosco. Exige, portanto, uma especial sintonia de vida no Espírito Santo, como estilo de pensamento, de atitudes, de preferências apostólicas e de prioridade de compromissos. Isto cria um certo parentesco carismático que nos torna mais estritamente “familiares” uns aos outros, entre nós, no Povo de Deus.
O significado eclesial desta pluralidade de formas manifesta-se seja em determinadas formas afins (de vida religiosa) ricas, cada uma a seu modo, de uma particular originalidade que realça alguns aspectos menos explícitos no patrimônio comum, seja em modalidades novas como a da “secularidade consagrada”, seja na importância dada pela eclesiologia conciliar no envolvimento dos fiéis leigos, também se em níveis diferentes (Cooperadores, Ex-alunos, Colaboradores).
É uma pluralidade de formas que assegura uma viva atualidade à Família, aplicando exatamente a tarefa de aprofundamento e de constante desenvolvimento do carisma “em sintonia com o Corpo de Cristo em perene crescimento” (MR 11). Assim cada um dos grupos testemunha, de maneira diversificada e convergente, aquilo que os documentos do Magistério (Concílio Vaticano II e intervenções posteriores) chamam “espírito do Fundador”, “inspiração primitiva”, “finalidades peculiares”, “índole própria”, “estilo particular de santificação e de apostolado”.
6. Seu significado social
Depois desta visão rápida sobre “o significado eclesial”, passemos ao social”.
Para fazê-lo podemos concentrar a atenção sobre alguns aspectos característicos da herança deixada por Dom Bosco aos seus, como a especial sensibilidade da realidade humana no seu devir: a sensibilidade aos sinais dos tempos, a atenção à dimensão histórica, a escolha educativa, a preocupação pela cultura popular, a intuição da laicidade, a política do Pater noster, o horizonte de internacionalidade e universalidade.
6.1. A sensibilidade aos sinais dos tempos
Nos Fundadores costuma-se encontrar uma particular sensibilidade às conjunturas dos tempos.
Em Dom Bosco isto está presente sem dúvida com uma intensidade muito viva, numa hora que preanunciava a aurora de uma mudança de época. Ele soube pensar criativamente a sua ação correta como resposta aos desafios sociais próximos. Apesar de ter sido formado no modelo aprendido no seminário e no colégio eclesiástico, a sua caridade pastoral levava-o a transcendê-lo, sendo sensível e versátil em captar os questionamentos das conjunturas. Não seguia uma fórmula pré-estabelecida, mas adaptava-se às circunstâncias, fortemente alicerçado nos grandes princípios evangélicos. Desenvolveu as suas iniciativas pastorais contemplando as situações sociais e procurando responder aos seus apelos.
É este um aspecto de particular significado social. Também João Paulo II, na carta “Iuvenum Patris”, afirma que ele é atual exatamente por este motivo: porque “ele ensina a integrar os valores permanentes da Tradição com as ‘novas soluções’, para enfrentar de maneira criativa as instâncias e os problemas emergentes: neste nosso tempo difícil ele continua a ser mestre, propondo uma ‘nova educação’ que ao mesmo tempo é criativa e fiel” (IP 13).
Quando Dom Bosco escreveu o primeiro texto (1858) das Constituições para os seus discípulos, afirmou explicitamente no Proêmio que “da boa ou da má educação da juventude depende um bom ou triste futuro para a sociedade” (F. Motto, “Testo critico delle Costituzioni della Società di S. Francesco di Sales”, LAS, Roma 1982, p. 58).
Trabalhou para a renovação da sociedade, convencido que a ambiguidade, que sempre acompanha os sinais dos tempos, não pode ajudar positivamente a sociedade na direção de uma maior dignidade humana sem a presença de fermento do Evangelho de Cristo. As conquistas da “razão” necessitam historicamente do fermento da “fé”.
E deixou em herança aos seus esta importante atitude que deveria torná-los sempre protagonistas valentes e atuais nos problemas juvenis da sociedade
6.2 A atenção à dimensão histórica
Uma das características da modernidade é a renovada sensibilidade da dimensão histórica, que ama privilegiar nos estudos, nas análises e nos critérios de orientação, o primado da realidade dos fatos.
Portanto: apesar do clima formativo de tipo essencialista, em que fora educado, Dom Bosco cultivou sempre uma pessoal predileção pelos conhecimentos históricos. Leu muito e escreveu várias obras — para o povo e para os jovens — de história civil, de história sagrada, de história eclesiástica e de hagiografia. Sentia que o Cristianismo, mais que uma “religião”, que parte da iniciativa do homem, é uma “história de salvação” que comporta a iniciativa de Deus, que se manifesta na criação e se torna presente na história assumindo nossa humanidade, realizando acontecimentos e fatos e mandando o Espírito Santo em tantos “Kairoi” do tempo. É, portanto, nas pessoas e nos acontecimentos dos séculos que convém procurar as intervenções de Deus. Dom Bosco não se sentia inclinado para as ideologias; e hoje, enquanto assistimos ao seu ocaso, admiramos mais o seu realismo de fé. A sua dimensão mística tem um tecido histórico.
Na leitura dos acontecimentos eclesiais e na análise das situações concretas, deixava-se guiar pela luz que lhe vinha do seu ministério eclesial e do seu quotidiano diálogo com Deus. Não julgava “iluministicamente”, com esquemas preconceituosos também se da moda, mas sempre “pastoralmente” em conformidade com a realidade dos fatos. Na história sabia perceber a presença e a ação da Providência e estava convencido da contínua ajuda maternal de Maria, de maneira particular na sua vida.
Por isso, os seus projetos em favor das necessidades da juventude pobre e das classes populares tinham sempre uma grande flexibilidade, que o levava a desenvolvê-los com audácia maior do que suas pobres forças.
Não era um “historiador” de profissão, possuía sim uma estrutura mental, que poderíamos chamar bíblica (como aquela de Maria no “Magnificat”), porque procurava Deus na história, olhava para a evolução dos povos e da Igreja, enfrentava e discernia as situações de fato com uma atenta inteligência guiada pela luz superior da fé.
É esta uma qualidade particularmente significativa hoje, quando muitos analisam os fatos afastando metodologicamente a fé, não se interessando pela presença real do Espírito Santo e do seu poder, substituindo-a talvez com elementos culturais, de maneira explícita ou tácita.
6.3. A escolha educativa
Como já acenei repetidamente, o trabalho pastoral de Dom Bosco com a Obra dos Oratórios (que está na origem de seu esforço de Fundador) constitui também uma clara escolha em favor da sociedade. Esta ação o inseriu naquela área fundamental da cultura humana que se dedica ao cuidado e amadurecimento pessoal e social dos jovens através de um vasto compromisso educativo. Assim quis que os seus se habilitassem para intervir validamente neste específico campo da promoção humana.
Procurou os jovens pobres e das classes populares, que a sociedade a ele contemporânea, além das louváveis iniciativas e das boas intenções, costumava esquecer em seus anseios de progresso. Foi à procura deles com uma metodologia pedagógica de presença, de bondade e de amizade que se caracterizava por uma preventividade rica, como afirma João Paulo II, de “profundas intuições, precisas opções e critérios metodológicos tais como: a arte de educar de modo positivo, propondo o bem em experiências adequadas e desafiadoras, capazes de atrair pela sua nobreza e beleza; a arte de fazer crescer os jovens ‘a partir de dentro’, fazendo apelo à liberdade interior, contrastando os condicionamentos e os formalismos exteriores; a arte de conquistar o coração dos jovens, para os estimular, com alegria e satisfação, para o bem, corrigindo os desvios e preparando os jovens para o futuro, por meio de uma sólida formação do caráter” (IP 8).
Preocupou-se em formá-los “honestos cidadãos”; interessou-se em introduzi-los no mundo do trabalho; seguiu-os, nos limites do possível, também depois dos anos desta sua promoção, seja durante o serviço militar, seja nos seus definitivos compromissos sociais. Colocou numerosos e bons Ex-alunos nos vários setores da sociedade. Também no aspecto simplesmente humano, como cidadão do seu tempo, foi, de fato, um dos homens do Ressurgimento que mais positivamente influiu sobre uma sociedade em rápida mudança. Alguém também afirmou que enquanto os políticos procuravam levantar uma nova pátria, ele educava validamente um grande número de cidadãos.
A escolha educativa em favor da juventude dá à figura de Dom Bosco Fundador a sua tonalidade concreta e especifica a sua contribuição cultural.
6.4. A preocupação pela cultura popular
Um aspecto do significado social de Dom Bosco Fundador é que a sua dedicação, criatividade corajosa e aberta também se revestida de simplicidade, voltada para elevar o nível cultural das “classes populares”, privilegiando os aspectos da sabedoria religiosa, que constitui um verdadeiro fermento animador da sua cultura.
Graças à sua origem popular e camponesa e sua orientação no ministério, tinha do “povo” um conceito não político, e muito menos ideológico (como às vezes é apresentado hoje), mas uma visão de simpatia natural (“rico das virtudes do seu povo” — cf. Constituições SDB, 21) quando se aproximava de tantas pessoas simples, dotadas de laboriosidade, de bom senso, de solidariedade, comprometidas nas dificuldades da existência, e talvez pouco atentas aos sinais dos tempos e fáceis de serem enganadas. Os seus jovens pertenciam a estas classes e corriam o risco de perder os valores mais importantes de uma cultura popular amadurecida através dos séculos. Dedicou-se a este setor com meios variados, sobretudo com aqueles da comunicação social da época, especialmente a imprensa, o teatro, a música, etc. No interessante discurso feito na Universidade de Turim, João Paulo II sublinhou este aspecto: “apesar da sua incrível e vasta atividade, soube cultivar em si uma sólida preparação cultural, unida a qualidades positivas de escritor, que lhe permitiu realizar um notável apostolado. Ele sentiu fortíssimo o impulso para elaborar uma cultura que não fosse privilégio de poucos, ou uma abstração da realidade social em evolução. Por isso foi incentivador de uma sólida cultura popular, formadora de consciências civis e profissionais de cidadãos comprometidos na sociedade” (L’Osservatore Romano, 5 de setembro de 1988).
A missão dele e da sua Família espiritual insere-se, portanto, no contexto vivo da sociedade civil, através de uma vasta e diversificada obra de promoção cultural.
6.5. A intuição da “laicidade”
A escolha da ação entre os jovens necessitados e as classes populares, feita por Dom Bosco, fez-lhe experimentar a necessidade de inserir sempre a comunicação do Evangelho num concreto desenvolvimento humano. “Consegue assim estabelecer uma síntese entre atividade evangelizadora e atividade educativa. Situa-se no interior do processo de formação humana, cônscio das deficiências, mas também otimista a respeito da maturação progressiva” (IP 15).
E a atenção aos valores humanos a serem promovidos levou-o a apreciar sua importância sem que nunca enfraquecesse nele a preocupação de protegê-los contra os não-valores e as sugestões do mal. Numa genuína visão cristã do mundo — assegura-nos o Concílio — a realidade objetiva dos elementos constitutivos do homem e das coisas foi desejada pelo Pai Criador com uma própria bondade e finalidade (cf. AA 5 e 7). E a ação redentora de Cristo, como também a presença transformadora do Espírito, inserem-se vitalmente na criação e na história.
Sem querer fazer dele um antecipador do Concílio Vaticano II, podemos afirmar que esta visão de fé oferece à inteligência a capacidade de descobrir e avaliar a verdadeira “laicidade” da ordem temporal, sem a manipulação das ideologias e sem as distorções do laicismo.
O tema de uma genuína laicidade não é estranha ao mistério cristão, aliás é o caminho correto que é preciso percorrer, convencidos da intrínseca continuidade que existe entre “criação” e “redenção”. Hoje é um tema de atualidade e pode-se já proclamar que sem a inteligência do Evangelho deturpa-se muito facilmente a mesma laicidade.
Ora, se existe uma porção da humanidade que precisa ver considerada e promovida a autêntica dimensão “leiga” das coisas e dos valores criados, é exatamente a juventude, sobretudo pobre e necessitada. Como se poderia fazer crescer neles a plenitude do Cristo se não sabem o que é o mundo e quais são nele as tarefas do homem? O Papa João Paulo II (especialmente na encíclica “Redemptor hominis”) repete constantemente a afirmação conciliar que o Verbo feito carne veio revelar ao homem o mistério total do homem.
Dom Bosco, portanto, foi empurrado pela realidade a ter um sentido profundo dos valores criados e humanos; assim aprendeu a dialogar também com quem olhava à condição juvenil somente de um ponto de vista secular; e se interessou muito concretamente pelas descobertas do progresso humano; considerou muitas invenções da técnica muito úteis para a realização do seu trabalho educativo.
E deixou esta atitude de inteligente visão do mundo em herança aos seus.
6.6. A política do “Pater noster”
A intensa atividade educativa no seu trabalho, concretamente aberta à ordem temporal numa visão de eternidade, guiou Dom Bosco a fortalecer uma atitude de grande discernimento e de equilíbrio pedagógico diante das intensas pressões das conjunturas políticas, tão atraentes no Ressurgimento.
Ele estava convencido que precisava, de um lado, assegurar a sua missão entre os jovens, e, de outro, que entre os problemas práticos mais prementes existe aquele de educar para saber dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Hoje aprendemos a distinguir melhor entre as exigências sociais de promoção da ordem temporal (ou alta “Política” do bem comum) e os projetos históricos de intervenção em favor de um tipo de governo num País (ou “política” partidária do poder). Na época de Dom Bosco a palavra “política”, até 1848, num restaurado clima de aliança entre trono e altar e de uma teologia que a justificava, não tinha praticamente problema. Depois, sim, porque a palavra “política” veio indicar sobretudo a ação e os programas de governo, das forças interessadas no poder e na unificação da Itália e dos grupos ligados a planos contingentes de transformação das estruturas existentes; levados também pelos ideais patrióticos, mas, na prática, influenciados por claros preconceitos anticlericais.
Ele, porém, considerava o significado social do seu trabalho educativo não numa visão fechada por uma prática política contingente, mas numa dimensão específica da sua própria missão, ou seja, por uma preocupação ministerial (em união com o Sucessor de Pedro) e religiosa, também se ela deve se tornar, na prática, fermento de uma laicidade comprometida na reforma da sociedade.
Depois de cem anos este tema evoluiu muito, e a herança deixada neste campo por Dom Bosco Fundador necessita ser desenvolvida e adaptada oportunamente aos ensinamentos do Magistério eclesial: participação corresponsável, solidariedade, justiça, paz, etc., segundo o ensinamento social da Igreja (cf. Egídio Viganò, mimeografado “La vocazione dei SDB e l'impegno per la giustizia nel mondo”, Gênova, abril de 1974).
Mas permanece viva e atual, em princípio, a ideia que a sua ação educativa não é um compromisso político partidário, também se deve ser marcada pela dimensão social. Ele testemunhou que a renovação da sociedade não necessita só da prática política, mas também, e mais ainda, de uma forte dimensão cultural.
O homem é, como se afirma, um “animal político”, mas nele nem tudo é política; aliás a própria política precisa de outros valores fundamentais, vividos numa cultura genuinamente e integralmente humana. Assim podem ser prestados serviços indispensáveis à sociedade sem que o seu compromisso básico seja o da política; aliás, exatamente na dedicação plena e eficaz nalguns desses serviços torna-se necessário permanecer livre de posições políticas. “A que pode servir a política?” — afirmou um dia Dom Bosco em 1883 — “Com todos os nossos esforços o que poderíamos nós alcançar? Nada mais do que impossibilitar a continuação da nossa obra de caridade” (MB 16,291). E, de fato, se a sua escolha tivesse sido uma decisão política, o que teria sido da sua missão?
A tarefa “religiosa” da Igreja, afirma o Concílio Vaticano II, “não é de ordem política, econômica e social. No entanto, exatamente desta missão religiosa brotam algumas tarefas, uma luz e forças, que podem contribuir na construção e na consolidação da comunidade dos homens de acordo com a lei divina” (GS 42).
Dom Bosco afirmava jocosamente, mas também inteligentemente, que a sua era “a política do Pater noster”, ou seja, a construção do Reino de Deus na história (MB 8, 593-594). “Deve haver — dizia — também aqueles que se interessam pelas coisas políticas, mas esta tarefa não é para nós” (MB 16, 291).
O atual artigo 33 das Constituições renovadas dos SDB expressa bem o significado social, desenvolvido na realidade dos tempos, desta importante atitude deixada em herança aos seus por Dom Bosco Fundador.
6.7. O horizonte de internacionalidade e de universalidade
O significado social da educação da juventude e das classes populares promovida por Dom Bosco Fundador ultrapassa os limites geográficos e políticos da sua diocese e de seu país. Ele sentiu-se como que investido pelo alto com uma tarefa juvenil e popular a ser levada a todas as nações, a todas as culturas, por causa da indispensabilidade da presença do Evangelho de Cristo na vida para promover verdadeiramente todo homem, em sua pessoa e em sua condição social. Assim, por exemplo, os grandes sonhos missionários de Dom Bosco (a serem lidos também com a visão crítica da fé) demonstram os horizontes a que olhava com o seu trabalho de Fundador. Hoje quem anda pelos cinco continentes e visita neles a impressionante presença da Família Salesiana, deve mesmo repetir com admiração que “o Dom Bosco verdadeiro é maior que o Dom Bosco histórico”.
O número e a extensão dos seus discípulos (também se, num primeiro momento, pode parecer somente “quantidade”) é de fato a expressão concreta que evidencia uma “qualidade” determinante do seu patrimônio iniciado com verdadeira consciência de internacionalidade e universalidade.
Ele quis que a sua Família estivesse acima de “todo regionalismo”. Já o seu sucessor Pe. Rua (que conhecia muito bem as intenções do Fundador) convidava para não entender a “Inspetoria” (ou seja a necessária divisão em “provinciais” da Congregação que se expandia) como um “ser fechado em si” e a comunhão mundial como “federação de províncias” autônomas. “Regionalismo”, porém, é também nacionalismo, particularismo, mentalidade fechada, parcialidade ideológica, infiltração de modismos passageiros, classismo, complexos socioculturais que atacam a fraternidade e a comunhão” (E. Viganò, “Relazione sulla 'Società di S. Francesco di Sales' nel sessennio 1978-1983”, CG22, Editrice SDB, Roma 1983).
A “internacionalidade” não abafa o sentido vivo da própria cultura e da própria pátria, mas une-o e põe-no em relação com as outras realidades acostumando a mente e o coração a conhecer e apreciar as condições sociais de outros povos, com vistas à promoção da comunhão.
A “universalidade”, ainda, é uma dimensão eclesial muito profunda, intimamente unida ao mistério de Cristo que assegura a unidade e a identidade dos elementos constitutivos e vitais da Igreja, também na variedade das modalidades de manifestá-los nas comunidades particulares. A consciência da universalidade da sua Obra, mais além da própria diocese, provocou-lhe também não pequenos problemas e conflitos (pode-se ler, por ex., nas MB 11, o cap. 3 sobre a Obra de Maria Auxiliadora para as vocações adultas).
Pensando o seu patrimônio numa dimensão universal, Dom Bosco colocava as bases para aquela unidade na descentralização que foi oportunamente relançada pela eclesiologia do Concílio Vaticano II. Descentralização, porém, não independência, mas imprescindivelmente dirigida ao Sucessor de Pedro e em permanente comunhão com ele, e fortemente ligada ao centro de unidade da Família Salesiana. A sintonia com o Espírito de Deus introduz os santos no mistério vivo da Igreja, além das posições doutrinais em discussão, quase antecipando a percepção de aspectos de verdade que talvez serão formuladas mais claramente em tempos posteriores. A universalidade do espírito de Dom Bosco sempre se alicerçou sobre a identidade de um mesmo espírito e de uma mesma missão.
O significado social destas duas qualidades complementares — internacionalização e universalidade — está na origem desta rápida e admirável expansão da Obra de Dom Bosco, que o Papa Paulo VI não duvidou em chamar de “fenômeno salesiano” neste último século da história da Igreja.
Portanto, se consideramos os vários aspectos, seja do significado eclesial como daquele social de Dom Bosco Fundador no hoje da Família Salesiana, descobrimos mais claramente nele algo de vivo que transcende a sua mesma personalidade: uma grandeza e fecundidade que nasce do alto e que foi colocada nele para que fosse profeticamente o sinal e o portador a muitos. Com razão podemos afirmar: “Com sentimento de humilde gratidão cremos” que a Família Salesiana de Dom Bosco “não nasceu de simples projeto humano, mas por iniciativa de Deus”. De fato, “O Espírito Santo, com a maternal intervenção de Maria, suscitou S. João Bosco. Formou nele um coração de pai e mestre; para prolongar no tempo a sua missão, guiou-o na criação de várias forças apostólicas. A Igreja reconheceu nisso a ação de Deus” (cf. Constituições SDB, 1).
7. As energias para o desenvolvimento na fidelidade
Após ter tentado apresentar o significado eclesial e social de Dom Bosco Fundador, parece oportuno acrescentar uma rápida indicação de quais podem ser as energias que hoje dão vitalidade ao seu patrimônio espiritual.
Fazemos isso a partir de sua experiência, sentindo-nos envolvidos numa hora privilegiada de renovação qualitativa.
Estou me referindo à releitura feita pelos filhos e pelas filhas do Fundador, e isto há mais de vinte anos, através de estudos, discussões, Capítulo Gerais e Assembleias mundiais, e que já foi testada pela aprovação — pela Sé Apostólica — dos textos fundamentais que reapresentam a identidade.
É um repensar o patrimônio espiritual do Fundador a partir do seu desenvolvimento homogêneo “em sintonia, com o Corpo de Cristo em perene crescimento”. Alguém disse com razão que o Concílio soltou os freios e limpou tanta poeira que tinha escondido um pouco o verdadeiro rosto de Dom Bosco, devolvendo-lhe maior dinamismo para lançá-los em direção ao terceiro milênio.
Penso seja, esta, a atitude melhor para perceber a identidade da sua realidade viva. É certamente indispensável conhecer os elementos históricos, pesquisar os documentos e o ambiente cultural e eclesial da época; mas sobre uma realidade viva não se pode fazer simplesmente uma autópsia, nem hoje e nem amanhã.
Aqui procuraremos indicar sinteticamente só alguns aspectos que sublinham simultaneamente a originalidade e a atualidade de Dom Bosco Fundador. Quando falamos de “originalidade” não queremos relacionar a estrutura das obras (como se tivessem sido inventadas assim como são por ele) ou a mentalidade cultural (como se ele tivesse sido uma exceção fora do ambiente), mas nos referimos a algumas energias inerentes à índole própria do seu particular estilo de santificação e de apostolado.
Examinemos as principais, sem pretensão de fazer uma lista completa.
7.1. A graça de unidade do “da mihi animas”
O segredo de Dom Bosco Fundador está, essencialmente, na peculiaridade da sua santidade; ela está toda voltada aos planos de Deus que o quis preparar como testemunha de uma peculiar caridade pastoral. O lema que expressa sinteticamente os conteúdos desta santidade é: “da mihi animas”.
Através de uma atenta análise da caridade pastoral salesiana descobre-se a nascente primeira e borbulhante do patrimônio do Fundador. Investigando o seu coração encontramos nele a morada do Espírito Santo que lhe infunde uma vigorosa “graça de unidade”, como rica fonte de experiência mística, de intuições espirituais, de interesse eclesial, de dinamismo criativo.
Nesta “graça de unidade” vive a semente do espírito de Dom Bosco em sua origem, é uma semente de onde tudo nasce; contém a energia divina que mantém unidos de maneira inseparável os dois polos do amor: Deus e o próximo. A contemplação salesiana do mistério da Trindade leva sempre até as necessidades do homem; e a atenção ao próximo precede e leva continuamente a Deus: porque está sempre envolvida pelo seu amor.
Assim, a dimensão contemplativa é por essência uma interioridade apostólica. A oração, a ação e a paixão referem-se juntas e vitalmente aos dois polos: não existe Deus sem o homem; não existe o homem sem Deus.
Este único movimento da caridade pastoral, vivido na modalidade e no estilo traçado por Dom Bosco, constitui o centro do “espírito salesiano”, como síntese vital de participação na original experiência do Fundador. Para a transmissão deste espírito, entre Deus e Dom Bosco estabeleceu-se (como já dissemos) aquela especial aliança que o tornou o “patriarca” da nossa já numerosa Família. Uma aliança consciente e renovada dia após dia. De fato a “graça da unidade” entre interioridade e trabalho provém do alto, supõe constante união com Deus, modela-se sobre o Cristo Bom Pastor, brota só da intimidade com o Seu Espírito, é alimentada constantemente por uma consciente vida de fé, de esperança e de caridade em diálogo com a realidade viva do mundo. (Dois estudos que seria bom lembrar para aprofundar o tema da interioridade salesiana do nosso Fundador, são “Dom Bosco com Deus” de E. Ceria, reimpresso com prefácio de G. Gozzelino, ed. SDB. Roma 1988; e “Dom Bosco profundamente homem - profundamente santo” de Pedro Brocardo, LAS, Roma 1985, do qual está em prelo uma edição ampliada e novo no título; “Dom Bosco profundamente homem e santo: nós o conhecemos”).
7.2. A plena confiança em Maria e na Igreja
A dimensão contemplativa que nos foi ensinada por Dom Bosco não leva a abstrações conceituais, mas concentra-se sobre dados concretos de pessoas e de acontecimentos, que constituem a história da salvação. Ele manifestou aqui um dos aspectos característicos da sua personalidade.
A devoção à Virgem Mãe de Deus era fortemente viva no seu ambiente; também a veneração d’Ela como “Auxiliadora” já era praticada nos séculos anteriores.
Incentivador de todos os títulos marianos, ele preocupou-se em perceber e comunicar a presença ativa da pessoa de Maria na história. Ela participa com Cristo da nova vida da ressurreição e prolonga a sua solicitude materna através dos séculos, especialmente nos tempos difíceis. Por isso, Dom Bosco nos deixou uma devoção que vê em Maria a Auxiliadora, não propriamente para sublinhar o título, quanto para aprofundar a doutrina da realidade e eficácia da sua maternidade universal.
São sobretudo dois os dados sobre os quais insistiu.
O primeiro é a intervenção de Nossa Senhora em sugerir e guiar a sua vocação de Fundador na Igreja. Vários “sonhos”, começando com aquele dos nove anos, asseguram-lhe a materna iniciativa. Justamente o Pe. Brocardo fala, referindo-se à sua obra de fundação, de “um trabalho a dois” (cf. o.c, cap. 5, p. 117-124). Em Trofarello, em 1868, ele afirmou que de todas as Famílias espirituais Maria SS. “pode-se dizer a Fundadora e a Mãe, começando do cenáculo até os nossos dias”, mas que ele estava pessoalmente convencido que em relação à nossa “Ela tudo fez”.
O segundo é a solicitude plurissecular de Maria para com a Igreja, da qual Ela é modelo profético. O Concílio Ecumênico Vaticano II desenvolveu profeticamente este aspecto. Portanto: Dom Bosco uniu indissoluvelmente a sua devoção mariana ao sentido de Igreja, ao ministério de Pedro, à fé simples do Povo de Deus, às necessidades urgentes da juventude.
O olhar e as atitudes de Dom Bosco para com Maria são fortemente eclesiais, centralizados sobre Cristo que atua nos sacramentos e na administração do Espírito Santo através do Magistério do Papa e dos Pastores.
O ato de entrega à Auxiliadora é uma das fortes razões da nossa vitalidade.
7.3. A qualidade “mística” da ação
O Concílio Vaticano II relançou em profundidade os grandes valores de interioridade da ação apostólica (cf. PC 8; AA, 4; PO, 13 e 14). Dom Bosco incentivou uma interioridade de caridade pastoral que santifica continuamente o trabalho, que constitui para ele quase uma segunda natureza. Foi homem de ação porque se sentiu envolvido pela “mística” de Deus Salvador, imitando Jesus que “começou a fazer e a ensinar”. “Numa época em que se olhava para os religiosos como pessoas preguiçosas, inúteis ao progresso da sociedade, quis a sua instituição fundada sobre a grande lei do trabalho e dizia, não sem humorismo, que o uniforme dos seus religiosos teria sido aquele das “mangas arregaçadas” (P. Brocardo, o.c, p. 91).
É tal nele a união com Cristo Redentor, a contemplação do seu amor para com o homem, o conhecimento das necessidades da salvação dos destinatários da sua missão, que o impulsiona continuamente a sair de si mesmo para se dedicar a Deus nos outros. S. Francisco de Sales, falando do Amor de Deus, distinguirá três tipos de êxtase místico: o intelectivo, o afetivo e o operacional. “O primeira é luz, o segundo fervor, o terceiro ação; o primeiro é feito de admiração, o segundo de devoção, o terceiro de obras” (citado do P. Brocardo, o.c, p. 139).
O “êxtase da ação” é a mística vivida na Família Salesiana; ele leva a sair continuamente de si para se identificar concretamente, por quanto seja possível, com o compromisso salvífico do Bom Pastor. Também o sofrimento, a paixão, as contrariedades, a inatividade nas doenças entram vitalmente nesta mística, que as eleva a misteriosas mediações apostólicas.
É por esse tipo de interioridade apostólica que a missão ocupa um lugar determinante em todo o seu patrimônio.
7.4. A humildade do “fazer-se amar”
Uma outra energia própria da herança de Dom Bosco Fundador é a equilibrada atitude de bondade traduzida em metodologia cotidiana: “não com pancadas, mas com a bondade”. O critério da presença, do diálogo, da partilha, da amizade, ele o resume no conselho de “fazer-se amar”.
Não é uma coisa fácil nem ligada a condescendências da concupiscência, mas exige aliás um tipo de humildade pedagógica, própria para nos apresentarmos como amável mediação de Deus para os próprios destinatários. O método da ação salesiana não é simplesmente o de amar (coisa evidentemente indispensável), mas a capacidade pedagógica de “fazer-se amar”, porque o forte compromisso cultural da educação deve ser uma “obra do coração”. O “Sistema Preventivo” comporta exatamente o segredo de fazer-se amar. Este critério metodológico “requer uma ascese muito exigente de maneira que o esvaziamento de si mesmo chega a dar à própria vida uma transparência que a transforme em “exigência sacramental” porque propõe a si mesmos como sinais e portadores do amor de Cristo. É impossível uma santidade sem humildade; mas existe uma humildade alcançada com a prática de particulares virtudes especialmente de tipo social, que torna a existência do discípulo significativa e atraente pois contém o mistério de Cristo e o comunica através da própria vida” (E. Viganò, circular “Estuda de fazer-te amar”. ACG 326, julho-setembro de 1988, p. 13).
Os valores desse tipo de humildade adquiriram hoje uma extraordinária atualidade pastoral. É uma característica indispensável para quem encarna a benignidade e a humildade do Bom Pastor, sobretudo com a juventude (Um estudo, que apresenta uma visão documentada, sintética e largamente amadurecida em relação a esta experiência metodológica é a obra de Pietro Braido: “L’esperienza pedagogica di Don Bosco”, sobretudo os capítulos 11, 12, 13 e 14 (ed. LAS, Roma 1988).
7.5. A ascese do “trabalho e temperança”
A palavra “ascese” deriva do verbo grego “askeo” que significa exercitar-se ou treinar: uma concreta práxis de vida, observada sistematicamente e que tem como finalidade criar um hábito e uma disponibilidade constante para realizar algumas atividades. Neste sentido é uma prática pré-cristã que se pode relacionar com o esporte, com o treinamento militar ou com um peculiar tipo de domínio de si. O Cristianismo dá um significado e uma modalidade peculiares a este exercício prático. Podemos dizer que, na nova Aliança, o primeiro asceta é Cristo, e que deve sê-lo, por definição, todo cristão. Não se fundamenta sobre um dualismo de conceitos entre “corpo” e “espírito”, mas é — como foi falado — um “estudo deífico”, pela prática de virtudes corajosas que renunciam aos egoísmos do ser carnal de que fala S. Paulo, e oferecem o primado ao bem. É um esforço progressivo e uma purificação constante que incide sobre os costumes para a purificação do coração. Trata-se de uma subordinação dos interesses humanos à fé que se compromete praticamente em traduzir o Evangelho na vida. Assim, não se pode pensar a uma espécie de “faquirismo”, mas a um método espiritual para um melhor serviço a Deus: são práticas não buscadas por si mesmas, mas particularmente úteis e substancialmente indispensáveis.
Com razão, na radicalidade do seguimento de Cristo, “o mosteiro”, que reunia alguns generosos fiéis, era chamado também “ascetério”, como lugar de austeridade para assegurar a interioridade dos consagrados.
Na história da espiritualidade, encontram-se muitas formas de ascese, com a qual se procura assegurar a vitalidade da presença de Deus tendo como meta essencial o crescimento da caridade. Todos os Fundadores foram também mestres da ascese; de fato não existe santidade sem uma luta espiritual que transforme a própria conduta do discípulo.
Dom Bosco Fundador é modelo e mestre de uma ascese original, no contexto do seguimento de Cristo. Ele mesmo resumiu o programa da ascese salesiana no lema “trabalho e temperança”, ao ponto de afirmar que “o trabalho e a temperança” farão florescer a sua Família, enquanto a busca das comodidades e do bem-estar serão a sua morte (cf. MB 17,272). Não se trata só de “mortificações” indispensáveis, de penitências extraordinárias — ocasionais — ou de “estar pronto para suportar o calor e o frio, a sede e a fome, as fadigas e o desprezo, sempre que se trate da glória de Deus e da salvação das almas” (cf. Constituições SDB, art. 18): tudo isto entra certamente na ascese salesiana.
Mas a peculiaridade desta ascese está no aspecto vital dado à missão, ou seja, no primado daquela caridade pastoral que deve inflamar o coração do educador e colocá-lo generosamente ao serviço dos jovens e das classes populares. Neste sentido, a prática ascética, vivificada pela mística da graça de unidade, se traduz numa conduta cotidiana de “trabalho” e de “temperança”.
O trabalho obtém a mútua compenetração de duas energias: o amor de caridade que desce de Deus e a elevação até Cristo das necessidades da promoção humana, assim que se possa testemunhar que a atividade é uma manifestação da união com Deus. S. Gregório de Nissa, falando do mistério de Cristo, tem esta belíssima expressão: “demonstrou quanto seja natural o sobrenatural e quanto seja sobrenatural o natural”.
A temperança, depois, é entendida como uma expressão da “realeza” batismal que se dedica em guiar a “custódia do coração” através de múltiplas virtudes práticas — individuais e sociais — que assegurem o domínio de si, e das paixões, o equilíbrio do julgamento, as atitudes de bondade e de compreensão, o sentido da pobreza evangélica, uma certa austeridade feita de simplicidade e de espírito de família.
A constância no trabalho e na temperança endereçam pelo caminho daquele “martírio incruento” que Dom Bosco chamava “martírio de caridade e de sacrifício para o bem dos outros”: se alguém sucumbe e morre pelas almas — dizia —, então a nossa Família alcança um grande triunfo e sobre ela descerão copiosas as bênçãos do céu.
7.6. O cuidado com a identidade
Na realização da missão salesiana, Dom Bosco procurou infundir o mesmo “espírito” a muitas forças apostólicas; assim, no projeto da sua Família, ele quis unir em comunhão vários grupos diferenciados como já sublinhamos: alguns com vida religiosa de comunidade e, outros, de acordo com as situações normais de vida no mundo. Visou, porém, a identidade do espírito.
Esta preocupação de envolver muitas forças representa hoje um aspecto de atualidade em plena sintonia com a eclesiologia conciliar.
A identidade do espírito vê em Dom Bosco um grande modelo e um líder carismático que aponta com modernidade um projeto de autenticidade evangélica. Evidentemente, isto exigiu dele e exige de nós o conhecimento dos conteúdos deste espírito, o esforço constante de formação para a sua interiorização, a busca de estruturas de orientação, estudos de discernimento, encontros de diálogos e um centro de referência autorizado.
7.7. A abertura de fé aos valores da secularidade
Aludimos acima às intuições de Dom Bosco com relação aos valores da laicidade. Ele soube, nas suas iniciativas, adequar-se ao que estava aflorando da realidade dos tempos. Deixou em seu patrimônio pedagógico-pastoral uma original abertura diante de não poucos valores da secularidade. Um aspecto, este, que teria se desenvolvido, antes lentamente e depois de maneira acelerada no complexo processo de secularização que percebemos hoje.
Aos grupos religiosos da sua Família deixou uma modalidade de organização e uma maneira de existir nova perante a maneira eclesial tradicional de entender a vida religiosa: agilidade de estruturas, modalidade de possuir os bens, hábitos, facilidade de adaptação, maneira familiar de convivência; foi original na idealização do Salesiano coadjutor (cf. circular do RM em “A componente laical da comunidade salesiana”, ACS n. 298, outubro-dezembro de 1980); penso na possibilidade de dar vida a uma consagração secular com traços de “salesianos externos” (hoje temos na Família o Instituto secular das VDB); utilizou para as suas instituições palavras seculares; foi sensível às áreas sociais novas; teve especial interesse em relação ao mundo do trabalho; praticou um estilo evangélico adaptado ao mundo secular.
O Papa Pio IX disse-lhe em 1877: “não há dúvida ser a mão de Deus aquela que guia a vossa Congregação. Ela é de uma modalidade nova, que surgiu nestes tempos de modo que possa ser Ordem religiosa e secular, que tenha voto de pobreza e ao mesmo tempo possuir, que participe do mundo e do claustro, cujos membros sejam religiosos, claustrais e livres cidadãos. Foi instituída para que seja vista e manifeste a maneira de dar a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César. Ela florescerá, dilatar-se-á milagrosamente, e perdurará nos séculos” (MB 13,82).
A chegada da Sociedade de S. Francisco de Sales a um tipo definido (também se só em parte novo) de Congregação religiosa, não exclui, seguindo as tentativas por ele feitas e então não aprovadas, outros grupos que entrem, na identidade de espírito e de missão, nalgumas destas duas aspirações e desejos que demonstram, de fato, uma corajosa abertura a novas modalidades.
Hoje, várias possibilidades desse tipo são reconhecidas como válidas pela eclesiologia conciliar e nós podemos olhar para ele, como um antigo inspirador que intuiu ao menos a oportunidade histórica e pelas quais deixou em herança um patrimônio espiritual particularmente adequado.
8. O carisma e a comunhão
Na Relação final do Sínodo extraordinário dos Bispos após vinte anos do Concílio Vaticano II (1985), afirma-se que a “eclesiologia de comunhão é a ideia central e fundamental nos documentos do Concílio”. Esta “eclesiologia de comunhão não pode ser reduzida só a questões organizativas ou a problemas que se relacionam simplesmente com o poder, mesmo se isto também é fundamental para a ordem na Igreja e sobretudo para uma correta relação entre unidade e pluralidade” (RP II, C, 1).
Hoje, toda verdadeira renovação deve ser projetada e realizada na comunhão. Trata-se de uma perspectiva profundamente exigente que comporta uma mudança de mentalidade.
Nós a podemos considerar seja em relação à Igreja, Corpo de Cristo e Sacramento universal de salvação, seja nas relações mútuas dos vários Grupos que constituem a Família Salesiana de Dom Bosco.
Em nível de Igreja
O carisma permanente de Dom Bosco Fundador está destinado a inserir-se vitalmente nas dioceses e nas paróquias. De fato, não é propriedade particular de nenhum dos Grupos salesianos. Esta perspectiva faz repensar a herança do Fundador de acordo com a síntese doutrinal e os critérios diretivos do documento “Mutuae relationes” (14 de maio de 1978). Por isso, é importante aprofundar a sua “natureza eclesial” e o verdadeiro alcance da sua “índole própria” dentro da missão comunitária da Igreja, em sintonia com a coordenação dos Pastores e na mútua colaboração com os outros carismas.
Em nível de Família Salesiana
É preciso evitar todo perigo de involução nas mentalidades e na concepção da justa autonomia de todo Grupo.
Vimos que o papel de Dom Bosco Fundador não se aplica univocamente: cada Grupo tem diferenças históricas com características próprias. Todavia cada um tem ligações com ele no espírito e na missão. Vivemos juntos uma comunhão espiritual e nos ajudamos mutuamente a conhecer e testemunhar juntos os elementos constitutivos. Disto aparecem, entre outras, duas consequências verdadeiramente importantes.
A primeira é aquela de juntos guardar a fidelidade a Dom Bosco Fundador, sabendo olhar com particular interesse aos três Grupos fundados diretamente por ele (SDB, FMA, CCSS) como primeiras testemunhas da sua herança, mesmo se com diferentes especificações.
É, depois, importante para todos saber considerar a Sociedade de S. Francisco de Sales como portadora de “particulares responsabilidades, por vontade do Fundador” que são: “manter a unidade do espírito e estimular o diálogo e a colaboração fraterna para mútuo enriquecimento e maior fecundidade apostólica” (Constituições SDB, 5).
Eis porque o “sucessor de Dom Bosco” é chamado, com o seu ministério, a ser como que “o pai e o centro de unidade da Família Salesiana” (Constituições SDB, 126). Não se trata de uma tarefa de governo, mas sim de um serviço vital de animação, respeitando as justas autonomias de cada Grupo e interessado no enriquecimento de todos através da contribuição peculiar de cada um.
A segunda consequência, prática e obrigatória para todos, é a de saber cultivar e incrementar as recíprocas relações entre nós; pensemos, por exemplo, nas tantas possibilidades no campo dos estudos, dos critérios de formação, das orientações pastorais com vista dos destinatários, das programações missionárias, da convergência nas iniciativas apostólicas, da sinceridade na fraternidade e paciente compreensão, etc.
Certamente, neste campo pode-se e deve-se fazer mais; nisto terá vantagem toda a Família e servirá à Igreja inteira, que perceberá com maior clareza as válidas contribuições e a fecundidade do carisma permanente do Fundador.
9. Dilatar o espaço da paternidade de Dom Bosco
Dom Bosco é Fundador porque deixou uma herança viva e dinâmica. Procuramos sublinhar o significado eclesial e social no hoje, individuando também as suas principais fontes de vitalidade.
A eclesiologia de comunhão nos questiona no nosso sentido mais concreto de Igreja e em uma maior união e colaboração mútua.
Juntos, justamente como Família, somos um dom precioso para o Povo de Deus.
Isto significa que seremos mais fiéis às origens e que trabalharemos mais e melhor se soubermos crescer juntos na comunhão. Pode ser um sinal promissor o fato de estarmos aqui reunidos neste simpósio, no ano centenário do “dies natalis” de Dom Bosco, exatamente para lhe prestar uma particular homenagem e para aprofundar a compreensão do seu título de Fundador.
No Capítulo Geral Especial dos SDB (1971) compreendeu-se melhor que a plenitude do carisma permanente de Dom Bosco fora confiada por Deus não só a um grupo, mas a uma grande Família. No documento que esclarece o seu significado, lemos: “a fidelidade dinâmica a Dom Bosco na intercomunicação e na colaboração fará dilatar o espaço da sua intuição pastoral e da paternidade, que aparecerá mais luminosa porque todo aumento de sentimentos fraternos, de união e de compromisso entre aqueles que se reconhecem seus ‘filhos’ vai exaltar a sua dimensão. Esta paternidade adquire dimensões eclesiais: Dom Bosco, de fato, está na origem de religiosos, religiosas, leigos comprometidos e consagrados seculares que são a direta emanação do seu trabalho ou nascidos da santidade dos seus filhos. Através da corresponsabilidade e do diálogo, as incompreensíveis qualidades de cada um e as indispensáveis variedades dos ministérios, de um lado ajudarão a superar a uniformidade, de outro realizarão e reforçarão a unidade. Aqueles que têm o serviço da autoridade, têm o dever de estimular essa contribuição útil na edificação do Corpo de Cristo (Atos CGE 174).
Agradeçamos juntos a Deus e à Auxiliadora por nos ter dado como Fundador S. João Bosco, e proponhamo-nos uma fidelidade de comunhão!