301-350|pt|329 - Dom Bosco Fundador


Viganò Egídio



Significado eclesial e social de Dom Bosco Fundador no hoje

da igreja e da sociedade



Simpósio da Família Salesiana Dom Bosco Fundador



Atos do Conselho Geral

Ano LXX – abril-junho, 1989

N. 329



De 22 a 26 de janeiro [1989], no “Salesianum” em “via della Pisana”, realizou-se o simpósio, organizado pelo Dicastério da Família Salesiana, com a colaboração dos vários Grupos, para um estudo aprofundado sobre “Dom Bosco Fundador”. O simpósio se apresentava como um compromisso dos responsáveis pela Família Salesiana de refletir sobre a pessoa do Santo Fundador, para tirar elementos válidos e atualizar seu carisma hoje. Pela sua característica, o en­contro foi reservado, em particu­lar, aos Conselhos Gerais dos Sa­lesianos e das Filhas de Maria Auxiliadora, aos responsáveis dos Cooperadores, Voluntários de Dom Bosco, Ex-alunos e Ex-alunas, e às Superioras e representantes dos vários Institutos religiosos perten­centes à Família. Esteve presente em todos os trabalhos também o Arcebispo de Shillong; Dom Hubert D'Rosario SDB, Fundador de um Instituto no Assam.

Após a apresentação dos traba­lhos pelo Conselheiro para a Fa­mília Salesiana, Pe. Sérgio Cuevas, foram feitas, nos vários dias, as relações programadas, intercaladas por comunicações e pelo debate entre os participantes, que contri­buíram para esclarecer com maior clareza os aspectos da figura do Fundador, encontrando-os seja nos fatos históricos seja na compreen­são do carisma.

Limitamo-nos aqui em assinalar a lista das relações. No primeiro dia estudou-se em geral o tema do “Fundador” com duas apresenta­ções do Pe. Mário Midali (“Análise avaliativa dos tipos de contato com a figura de Dom Bosco fundador, à luz da reflexão contemporânea”) e do Pe. Francis Desraumaut (“Dom Bosco fundador”). No se­gundo dia aprofundou-se mais es­pecificamente o tema da fundação da Sociedade Salesiana: o Pe. Ramon Alberti falou de Dom Bosco fundador dos Salesianos e o Pe. José Tuninetti apresentou as “Relações de Dom Bosco com os arcebispos de Turim sobre a fun­dação da família salesiana”. As re­lações foram completadas por co­municações do Pe. F. Motto e do Pe. C. Semeraro. Quinta-feira dia 25 de janeiro o tempo foi dedicado para aprofundar a fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora. Duas as relações: “Dom Bosco Fundador das Filhas de Maria Auxiliadora” (Ir. Ester Posada); “Dom Bosco e Madre Mazzarello na Fundação das FMA” (Ir. Anita Deleidi). O último dia foi dedicado ao estudo de “Dom Bosco Fundador dos cooperadores” (Pe. Francis Desramaut) e de “Re­ferências a Dom Bosco dos outros grupos da família salesiana” (Pe. J. Aubry).

O simpósio caracterizou-se, além do intenso empenho de reflexão, pela fraternidade salesiana e pela oração, que fez sentir vivo o clima de Família. Durante o Simpósio deve-se assinalar a bênção da pri­meira pedra da futura Biblioteca da UPS, que aconteceu na quarta-feira 25 de janeiro.

Reproduzimos aqui a relação conclusiva do Reitor-Mor, que apresenta uma síntese dos vários aspectos aflorados e uma indica­ção viva e atual ao Fundador.



.-. -.-.-.-.





Apresento algumas reflexões co­mo estímulo a ulteriores pesquisas.

O meu, não é um estudo científi­co, mas um conjunto de considera­ções feitas no contexto da minha tarefa de serviço à Família Sale­siana como seu centro de unidade.



1. Reflexões sobre um acontecimento de vida



O tema do Simpósio é, para nós, vital.

A falta de referência ao Funda­dor traria para a nossa Família um enfraquecimento da sua identidade e uma nociva dispersão na comunhão.

O Santo Padre João Paulo II re­conheceu, na Carta que nos escre­veu a 31 de janeiro de 1988, que Dom Bosco deve ser colocado na Igreja “entre os grandes Fundado­res” (IP, 5).

Esta afirmação nos faz pensar em algumas célebres figuras de “eminentes Homens e Mulheres” (LG, 45) que “fundaram Famílias religiosas” (PC, 1) e cujo “espírito e finalidade” asseguram “a índole própria e a missão” dos seus se­guidores (cf. PC, 2); lembremos por exemplo, S. Bento, S. Francis­co de Assis, S. Domingos de Gus­mão, Sto. Inácio de Loyola, S. João Batista de La Salle, Sta. Ângela Mérici, Sta. Teresa, etc.

O aparecimento de um Fundador na história da Igreja é propria­mente um “acontecimento de vida”. Na sua pessoa e na sua obra de fundação aparece uma especial in­tervenção de Deus. Assim, a consi­deração da tarefa do Fundador não pode ser reduzida simplesmente à análise dos dados históricos do passado — também se indispensá­veis —, porque se trata de uma ex­periência espiritual ainda viva hoje nas pessoas e nos grupos. Requer uma natural reflexão de fé (tam­bém com a ajuda de muitas ciên­cias) para individualizar as “mirabilia Dei” que se manifestaram na sua vida e permanecem como tra­dição genuína que se refere a ele.

Quero dizer que, com o estudo de um Fundador, tenta-se entrar no coração de uma realidade viva, que ultrapassa as constatações fenomenológicas. Quem, por exemplo, não seguiu atentamente a renovação do carisma permanente de um Funda­dor depois das orientações deixa­das pelo Concílio Ecumênico Vati­cano II, marginaliza-se de uma objetiva capacidade de interpretação integral.

Por isso não me parece fora de lugar a pergunta: qual possa ser “hoje” o significado eclesial e so­cial de Dom Bosco Fundador.

Certamente a resposta não é sim­ples. Se olharmos unicamente para a nossa Família espiritual, veremos que todo Grupo possui, nela, uma sua crônica das origens e uma sua peculiar visão para interpretar seu alcance.



2. Um olhar à história das Famílias religiosas



Se considerarmos a figura do “Homem (ou Mulher) eminente” a que se referem como “Fundador” inicial as várias Famílias espiri­tuais, encontraremos uma grande variedade de experiências.

Assim, por exemplo, enquanto S. Pacômio institucionalizava forte­mente a vida isolada do mundo (total ou suavizada, que permane­cerá sempre presente no Oriente) como forma de vida monástica — e o mesmo diga-se de S. Basílio —, Santo Antão abade nunca pensou em fundar uma instituição organi­zada. O mesmo S. Bento limitou-se a dar uma Regra a uma comunida­de local, que não está estritamente na origem do desenvolvimento pos­terior; são mais os monges vindos depois que se referem a ele como a um modelo e à Regra como a uma direção. Assim também vários Institutos olham para Santo Agos­tinho e sua Regra, sem que ele mesmo tenha nunca pensado em organizá-los.

Nos séculos anteriores a S. Fran­cisco de Assis no Ocidente foram declaradas intocáveis, por sua au­toridade e autenticidade, as Regras de S. Bento e de Sto. Agostinho, às quais deviam se inspirar os vários Institutos nascentes, como a orientações e modelos.

É só depois do século XIII (após o Concílio Lateranense IV) que se abre o caminho a um con­ceito mais ou menos definido de “Fundador” de uma Família reli­giosa (cf. Comentário ao projeto de vida dos salesianos de D. Bosco”, Roma 1986, vol. I, p. 12). E tam­bém aqui não é totalmente unívoco, mas existe uma variedade de dife­rentes modos de fundação (ou ao mesmo tempo também vários casos de “cofundação”).

É, portanto, uma tarefa que re­quer em cada Família uma indis­pensável consideração objetiva do tipo histórico, a ser aplicado ana­logicamente a todo grupo que lhe pertence. Assim os requisitos exi­gidos num Fundador resultam, de fato, diferenciados em vários ní­veis: iniciam por um denominador comum, que comporta, no mínimo, uma figura de “Homem (ou Mu­lher) eminente” (que muitas vezes será também um formal Santo), por quanto foi original e genial na interpretação do seguimento de Cristo e que traz consigo uma ins­piração particularmente intensa e atraente (qual ponto de referência de um peculiar espírito que o tor­na um modelo a ser admirado e que deixou uma certa metodologia para vivê-lo), até indicar, em outros casos, quem não só viveu uma pe­culiar experiência do Espírito Santo, mas cuidou também da ma­neira de transmiti-la esclarecendo e organizando, com maior ou menor definição, o específico patrimônio hereditário a ser conservado e de­senvolvido.

3. A figura de Dom Bosco “Fundador”



Quando nós falamos de Dom Bosco “Fundador” o discurso se torna mais concreto e refere-se inicial e explicitamente a três Grupos primitivos da nossa Família Salesiana: a Sociedade de S. Francisco de Sales (SDB), o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (FMA) e a Associação dos Cooperadores Salesianos (CCSS).

A aplicação aos outros Grupos da nossa Família tem um significado mais amplo a ser examinado Grupo por Grupo, considerando os ele­mentos comuns relacionados com ele, por quanto inspirou os suces­sivos “fundadores” influenciando de diferentes maneiras sobre a tra­dição de vida dos seus grupos. Por isso, a sua pertença à nossa Famí­lia deve se fundamentar sobre de­terminadas condições a ser avalia­das pela autoridade, também se a sua validade interna viveu constan­temente o patrimônio espiritual. Nestes casos deve-se sempre apro­fundar a relação espiritual entre o próprio fundador imediato e Dom Bosco.

Uma particular consideração merece a figura de Sta. Maria Domingas Mazzarello como “Co-fundadora” do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora. Já falei disso brevemente na Carta que escrevi às FMA por ocasião do centenário de sua morte (cf. Carta: “Redescobrir o Espírito de Mornese”, 24 de fe­vereiro de 1981). A Mazzarello entra com peculiar fulgor na constelação das origens do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora pela trans­missão viva nele do patrimônio salesiano.

Dom Bosco amadureceu pouco por vez na sua consciência uma percepção clara, e acima de qual­quer dúvida, da sua missão de Fun­dador a que foi chamado do alto para transmitir a sua experiência evangélica também através de me­diações organizativas e indicações normativas.

Como Fundador, a ele aplica-se o que diz Paulo VI na Exortação Apostólica “Evangelica testificatio” onde insiste sobre a importância de “ser fiéis ao espírito dos Fun­dadores, às suas intenções evangé­licas, ao exemplo da sua santida­de”. O patrimônio espiritual dos Fundadores, “longe de ser um im­pulso nascido da carne e do sangue (Jo 1,13), nem fruto de uma men­talidade que se conforma com o mundo presente (Rm 12,2) é fruto do Espírito Santo que sempre age na Igreja” (ET, 11; 21 de junho de 1971).

Neste sentido Paulo VI fala do “carisma dos Fundadores”, que mais tarde (14 de maio de 1978) o documento “Mutae Relationes” descreve como “uma experiência do Espírito, transmitida aos próprios discípulos para ser por eles vivida, guardada, aprofundada e constan­temente desenvolvida em sintonia com o Corpo de Cristo em perene crescimento” (MR, 11).



4. Gradualidade e convergência na obra de fundação



Dom Bosco, como Fundador, não iniciou com um projeto claro e pré-estabelecido, mas foi gradual­mente à procura, às vezes quase às apalpadelas, com indicações sugeridas ou impostas pelas circunstân­cias concretas (consideradas como sinais da Providência) e com a colaboração de pessoas, também as mais variadas, entre as quais se sobressai o Papa Pio IX, a quem Dom Bosco agradeceu — numa sua carta em latim datada em 1º de mar­ço de 1873 — pela sua participação e os seus conselhos no difícil perío­do da fundação, na orientação e na consolidação (cf. Atos CG21. p. 303-307: “opere et consilio fundasti, direxisti, consolidasti”. E se alguém for ler a dedicatória escrita no pedestal da estátua de Pio IX na basílica do Sagrado Coração em Roma, encontrará, dirigida a ele, a expressão “alteri Salesianorum parenti!”).

O período difícil de inserção da sua fundação nas estruturas ecle­siásticas e na sociedade civil apre­senta uma concreta gradualidade de busca na flexibilidade. Dom Bosco não almeja um ideal só ima­ginário, mas adapta-se inteligente­mente à realidade. O seu projeto vai-se modificando em conformida­de também com os acontecimen­tos, não aceitos passivamente, mas enfrentados com constância criati­va. Só nos primeiros anos de sa­cerdócio (especialmente nos anos 48-50) e gradualmente, sob o im­pulso das iluminações do alto e ur­gências que empurravam da base (de fato, só em Turim encontra os garotos dos seus sonhos!), con­frontadas com o seu diretor espiri­tual, S. José Cafasso, pode-se dizer que tinha já clara a meta: uma missão definida, um espírito pró­prio, uma metodologia peculiar, um envolvimento do maior número possível de colaboradores.

Podemos deduzi-lo de uma explí­cita afirmação: “A Virgem Maria tinha-me indicado em sonho o cam­po no qual eu devia trabalhar. Ti­nha, portanto o projeto de um pla­no, meditado, completo, do qual não podia e nem queria absoluta­mente me afastar. Eu era absoluta­mente responsável pelo sucesso dos mesmos. Via claramente o caminho que devia percorrer, os meios que devia utilizar para ser bem suce­dido no empreendimento; portanto, não podia correr o risco de esva­ziar esse plano submetendo-o ao juízo e à vontade dos outros. Apesar disso, neste mesmo ano de 1847 quis observar com maior in­teresse se existisse alguma Insti­tuição em que eu pudesse ter a segurança de executar o meu man­dato, mas não demorei a perceber que não havia. Apesar de ser santíssimo o espírito que os animava e a finalidade a que tendiam, todavia não correspondiam aos meus objetivos. Estes foram os motivos que me seguraram para não entrar nalguma Ordem ou Congregação de religiosos” (MB 3, 247).

No entanto, tudo estava ainda no estágio inicial, fechado como numa semente. Não tinha claro o cami­nho, não previa os passos do futu­ro dinâmico e imprevisível do seu projeto, nem conhecia o dia da chegada. Uma chegada, de qualquer maneira, sempre provisória, por­que aberta a um infinito adiamen­to no tempo.

Possuía a habilidade e a docilida­de de considerar o projeto iniciado como algo vivo, que está amadure­cendo, que pode ser melhorado e até sujeito a mudanças de curso. Não estava ligado aprioristicamente a um esquema, mas estava à procura da modalidade concreta para alcançar a meta que lhe fora apontada do alto.

E aqui não será inútil um parên­teses. Para compreender Dom Bosco Fundador devemos seguir todo o percurso de busca nas circunstân­cias concretas do seu tempo, mas devemos chegar também com ele à meta concreta alcançada. Nos ho­mens penetrados pelo Espírito de Deus o amadurecimento da vida tem uma importância decisiva. Também considerando as doenças dos últimos anos, não podemos simplesmente procurar explicações de possíveis inconvenientes psicos­somáticos: é necessário lembrar também as leis próprias do cres­cimento espiritual. Os componen­tes, de fato, dizem que quanto mais o homem se aproxima do seu fim mortal, tanto mais aumenta nele a intensidade mística, quase como uma aceleração de um corpo que cai pela gravidade sobre a terra.

Dom Bosco, guiado por uma excepcional constância e sem recriminações, deixou-se guiar pela Providência, não fechando ulteriores horizontes aos seus discípulos.

O Concílio Ecumênico Vaticano II, antes mesmo de falar da tarefa dos Fundadores, lembra a indis­pensabilidade de um discernimento adequado sobre a sua obra, auten­ticada pela autoridade da Igreja. O capítulo VI da “Lumen Gentium” preocupa-se antes de tudo em falar desta responsabilidade em discer­nir, interpretar e regulamentar a prática dos conselhos evangélicos, como tarefa específica dos Pasto­res, sob a orientação do Espírito Santo (cf. IG 43; também LG 12, e CDC can. 576).

Existe, portanto, sempre, na ge­nuinidade eclesial dos Fundadores, também se com modalidades dife­rentes através dos séculos, uma convergência de ao menos dois dinamismos complementares: os im­pulsos do Espírito Santo em “Ho­mens e Mulheres eminentes” (LG 45) e o discernimento e a autenti­cação da autoridade da Igreja. Afirmou-se corretamente: “A comu­nhão orgânica da Igreja não é exclusivamente “espiritual”, isto é, nascido como for, do Espírito Santo e assim anterior às ações eclesiais e criadora das mesmas, mas é simultaneamente “hierárquica”, enquanto derivada por impulso vital de Cristo-Cabeça. Os meus dons, infundidos pelo Espírito são exatamente desejados por Cristo e por sua natureza, dirigidos ao bem do Corpo para vivificar sua estrutura e suas atividades. Com razão o apóstolo Paulo muitas ve­zes afirmou em íntima e vital con­vergência, as expressões “em Cristo” e “no Espírito” (MR 5).

Portanto: ao menos dois dina­mismos convergentes; ambos indispensáveis, com diferentes tarefas, mas com objetiva influência sobre o patrimônio a ser deixado em herança.

Quanto tenha influenciado sobre Dom Bosco o discernimento e a contribuição dos Pastores, particu­larmente do Papa, e que importân­cia tenha tido a aprovação da Sé Apostólica (também se de acordo com os cânones da legislação ecle­siástica da época (cf. “Comentário às Constituições” SDB. p. 13-15), é um argumento particularmente importante e delicado, que não faz parte direta desta relação.

Aqui entendemos nos referir ao patrimônio espiritual de Dom Bos­co, que vivemos nós hoje, como fruto daquela dupla convergência que é ao mesmo tempo imulso do Espírito Santo em Dom Bosco e aprovação qualificada da sagrada Hierarquia, seja antes bem como depois do Concílio Vaticano II. Assim o seu patrimônio tornou-se e é “um bem especial para o in­teiro Povo de Deus” (cf. Constitui­ções SDB 192).





5.Seu significado eclesial



Para refletir sobre o significado eclesial de Dom Bosco Fundador no hoje do Povo de Deus, penso seja útil começar por alguns requi­sitos que o apontam iniciador e modelo do tipo de vida evangélica característico da sua Família Sale­siana.

Consideramos como requisitos a serem analisados os seguintes: a inspiração do alto, a original expe­riência de um tipo de santidade, a fisionomia do espírito próprio, a fecundidade de iniciador de uma escola de vida, a peculiar missão, a criteriologia pastoral e a pluralida­de de formas de participação.

Evidentemente não é possível, aqui, desenvolver profundamente os conteúdos. Penso seja, porém suficientemente útil apresentar brevemente o significado.



5.1. A inspiração do alto



É este um traço “profético” que caracteriza todo Fundador, suscita­do e guiado pelo Espírito do Se­nhor para dar início e orientar uma novidade carismática na Igreja. Dom Bosco procurou num primeiro momento endereçar as inspirações recebidas na busca concreta de per­tença a instituições eclesiais já existentes (por exemplo, com os Rosminianos MB 3,250), mas teve que se convencer que o plano de Deus era diferente. Através de me­diações (visões, “sonhos”, palavra interior), que consistiram também em conselhos de pessoas (desde S. José Cafasso até ao ministro anti­clerical Rattazzi), no discernimento e crédito de autenticidade da auto­ridade da Igreia e na percepção sempre mais viva e real da con­juntura social e eclesial em que se encontravam a juventude e o Povo, amadureceu aos poucos e com sempre maior clareza a sua especí­fica responsabilidade de Fundador. Ele mesmo dirá: “Como acontece­ram as coisas, eu apenas saberia dizê-lo. Isto eu sei, que Deus o queria” (MB 12,78). Eis porque “eu sempre fui adiante e este foi o único intuito pelo qual até agora trabalhei. Este é o motivo pelo qual nas adversidades, nas perseguições, entre os maiores obstáculos nunca me deixei amendrontar e o Senhor sempre esteve conosco” (MB 7,664).

Não é fácil encontrar um Funda­dor que tenha tido a clara cons­ciência deste seu especial papel quanto a teve Dom Bosco.

Portanto: um primeiro significa­do eclesial de Dom Bosco Funda­dor é o seu aspecto de “palavra pronunciada por Deus” para toda a Igreja (cf. uma minha conferência datilografada “O carisma de Dom Bosco” feita ao CG 16 das FMA, 20 de abril de 1975).



5.2. A original experiência de um tipo de santidade



Dom Bosco como Fundador tes­temunha e transmite um tipo pe­culiar de seguimento de Cristo como projeto de vida a ser deixa­do a tantos discípulos. A sua essên­cia consiste numa “nova síntese orgânica” dos elementos constitu­tivos do crescimento batismal. É preciso olhar à sua experiência de Espírito Santo como um ponto especial de referência: “um estilo particular de santificação e de apostolado, que estabelece uma determinada tradição, de maneira tal que podem ser convenientemen­te individualizados os elementos objetivos” (MB 11).

Trata-se de uma experiência pecu­liar, vivida e consolidada. Aqui com a palavra “experiência” (além dos diferentes significados que assume na cultura atual) quer-se indicar uma maneira de percepção vital e um modo típico de se relacionar com o mistério de Deus na própria vida, a não ser confundido com a metodologia “experimental” dos laboratórios científicos.

Como escreveu um pesquisador deste tema: “O estudo dos Funda­dores não é algo tão fácil também se temos à nossa disposição vários métodos científicos de pesquisa, porque os Fundadores são arredios a qualquer explicação unicamente histórica, sociológica e psicológica. Quando nos aproximamos deles, batemos contra algo que nos esca­pa; e também quando acreditamos conhecê-los bem, toda vez que os estudamos, descobrimos algo novo. Como explicar este mistério, esta riqueza inesgotável? Simplesmente com o fato que nos encontrando com um Fundador nos encontramos com o mistério de Deus: no Fundador e por meio dele é Deus quem age” (Thadée Grzeszczyk, e. c. “Il carisma dei Fondatori”, Coleção “Sanctitas in caritate” Roma 1974, p. 11).

Este aspecto comporta a trans­formação do Fundador em “Mode­lo” ao qual olhar para o seguimen­to de Cristo (cf. 1Cor 11,1) e o mo­tivo é exatamente a transcendên­cia da sua específica experiência espiritual, que manifesta concreta­mente uma peculiar inspiração e iniciativa de Deus. Com razão os Fundadores foram qualificados co­mo “homens do Espírito” (cf. o estudo de Fábia Viardi, OMI, “I Fondatori uomini dello Spirito — per una teologia dei carisma di Fondatore” Città Nuova, Roma 1982).

Assim com os Fundadores, a Igreja se enriquece com uma va­riada abundância de dons para que “apareça como uma esposa enfei­tada para o seu esposo e por meio dela se manifeste a. multiforme sabedoria de Deus” (PC 1).



5.3. A fisionomia do espírito próprio



O espírito dos Fundadores é uma original modalidade de viver o Evangelho que apresenta a rica e multiforme possibilidade de inter­pretar vitalmente o mistério do Cristo.

Distingue-se daquilo que se cos­tuma chamar “espiritualidade”. Sem dúvida: as duas palavras “espírito” e “espiritualidade” são parecidas, e muitas vezes são usa­das indiferentemente para indicar a mesma realidade. Mas para nós aqui é necessário distingui-las. Com “Espírito dos fundadores” enten­demos aquela síntese global e vivi­da que interpreta um estilo de “vida no Espírito Santo”, ou seja, um estilo de contemplação, de conduta e de ação, que constitui a alma da identidade de um tipo original de seguimento do Cristo. Não é propriamente um pequeno tratado de doutrina sobre os elementos próprios de um estado de vida ou de um ministério ou de um serviço. Trata-se, no entanto, de um estilo de testemunho de vida, aplicável a diferentes estados e ministérios, também em pessoas simples não acostumadas com a preocupação intelectual de analisar a vida. É uma atitude “existencial” que apre­senta uma fisionomia própria à maneira de viver e de agir e que qualifica cada um dos Institutos ou Famílias e os diferencia entre si na Igreja.

Por “Espiritualidade”, no entanto, entendemos o aprofundamento e a análise doutrinal que procura de­terminar as componentes espiri­tuais de um especifico estado de vida, de um ministério, de um ser­viço ou de uma tarefa. É um es­forço de reflexão para determinar a “essência” espiritual dos conteúdos presentes numa realidade, por exemplo na vida conjugal ou na vida consagrada, no ministério sa­cerdotal ou nos vários serviços ou tarefas (cf. E. Viganò: “II carattere ecclesiale della spiritualità reli­giosa apostolica”, Número especial do Bollettino UISG, n. 62, p. 37-38, Roma 1983).

Nós aqui falamos do “espírito de Dom Bosco como síntese existen­cial e como fisionomia evangélica da vida nas relações com Deus e com o próximo. É uma energia vital da caridade pastoral que une harmonicamente não só os vários temperamentos doutos e dons pes­soais, mas também as espirituali­dades de diferentes compromissos, como: a consagração na vida reli­giosa ou no mundo, a condição con­jugal, celibatária ou de determina­das tarefas eclesiais e sociais. De fato, na Família Salesiana vive-se o mesmo ‘espírito’ numa pluralida­de de condições de vida (cf. “La Famiglia Salesiana di Don Bosco”, aos cuidados de Joseph Aubry, LDC, Torino 1986, p. 65-66).

É preciso afirmar que Dom Bos­co, como Fundador, preocupou-se explicitamente de infundir nos seus (religiosos, religiosas, fiéis leigos) um “espírito característico”, que constitui a alma do seu patrimônio a ser transmitido.

Para descrever a tipologia e cap­tar os aspectos característicos fo­ram realizados, nas décadas depois do Concílio, importantes Capítulos Gerais e Assembleias mundiais que esclareceram os traços da identi­dade, autenticados depois pela aprovação da Sé Apostólica.

O “espírito salesiano”, assim des­crito sobretudo no bonito capítulo das Constituições dos SDB (art. 10-21), possui um particular signi­ficado eclesial porque apresenta uma original leitura evangélica em feliz sintonia com a renovada visão apontada pelo Concílio Ecumênico Vaticano II. (Seria interessante — e talvez seria desejável e frutuo­so, também se não é fácil, para os vários grupos que se inspiram a Dom Bosco — poder reunir os tra­ços fisionômicos nalguns artigos comuns a todos, juntamente com alguns outros aspectos especial­mente da missão, como uma “carteira de identidade espiritual” de toda a Família Salesiana de Dom Bosco).

A identidade deste “espírito” parece-me se baseia sobre duas co­lunas entre si complementares: Uma modalidade de íntima união com Deus contemplado como fonte inesgotável de bondade misericor­diosa (Pai), de iniciativa redento­ra (Filho), de poder transforma­dor dos corações (Espírito Santo). Modalidade que deve ser percebida nos simples particulares com que, como sabemos de sua vida, Dom Bosco soube entrelaçar o seu habitual encontro com a Trindade. Portanto, uma maneira original de união com Deus que faz dele, como Fundador, uma espécie de “patri­arca” de uma especial aliança com Deus. Ele, de fato testemunha e co­munica aos seus uma prática pecu­liar das “virtudes da aliança”, ou seja, da fé, da esperança e da cari­dade hauridas do mistério trinitário contemplado seguindo a sua inserção na história do homem; e, em segundo lugar, um con­junto harmonioso de atitudes mar­cadas por uma “ativa caridade pastoral”, que impulsiona a uma vida de criatividade apostólica, marca o sentido vivo da Igreja, de zelo missionário, de adesão ao cotidiano, de flexibilidade e atenção às urgências dos tempos.



5.4. A fecundidade de Iniciador de uma escola de vida



O espírito de Dom Bosco Funda­dor caracteriza-se por um dinamis­mo gerador de posteridade espiri­tual. Ele fora enriquecido com dons especiais que fizeram da sua exis­tência um centro fecundo de atração e de irradiação. A sua experiên­cia espiritual foi suscitada e guia­da do alto para ser transmitida e desenvolvida por tantos discípulos na Igreja.

O seu fascínio espiritual de Fun­dador o fez um portador de futuro, um Iniciador de escola com uma própria forma de santificação e de apostolado: doou-lhe uma “paterni­dade espiritual” que vem de Deus (cf. Ef 3,15) e que o torna guia experimentado para os seus. Fican­do com ele e olhando para ele aproximamo-nos com certeza de Deus. Dela pode-se repetir o que escrevia o Apóstolo: “sejam meus imitadores como eu o sou de Cris­to”

Não se trata de um perigoso culto da personalidade, no sentido ideológico da expressão. Devemos falar, no entanto, de uma mediação providencial desejada pelo Espíri­to de Deus por causa das especiais necessidades dos novos tempos: serve para facilitar a muitos o seu processo de santificação e ajuda a resolver com rapidez determinados problemas que aparecem.

Esta paternidade espiritual nos faz descobrir nele uma forte per­sonalidade cristã cuja modalidade de santidade foi suscitada pelo Es­pírito Santo para ser partilhada por muitos outros: não é uma san­tidade isolada, mas aquela de um verdadeiro Iniciador de escola. Não é que a sua santidade seja, em si, um produto novo, mas existe nele uma convergência orgânica de elementos, de fatos contingentes, de indicações e sugestões de outros, de revisões e de contribuições constantes da vida, que na sua mente dócil, equilibrada e prática aos poucos foram elaborando uma “índole própria”, testemunhada com humilde e perspicaz cons­tância, que se torna uma herança viva. Tudo isto supõe nele a pre­sença de uma especial criatividade “mística”, que o tornou pai espiri­tual de muitos.

Pode-se aplicar a ele com exatidão o que foi escrito de Montmorand: “Os verdadeiros místicos são pessoas práticas e ativas, não de raciocínios e de teorias. Possuem o sentido da organização, o dom de mandar e revelam-se providos com ótimos dons para os negócios. As obras por eles fundadas são váli­das e duradouras; em idealizar e dirigir as suas empresas dão provas de prudência e de coragem e daque­la justa ideia das possibilidades que é o caráter do bom senso. E de fato parece mesmo que o bom sen­so seja a sua qualidade mais dominante: um bom senso não perturbado nem por exaltações lânguidas, nem por imaginações desordenadas, e unido a uma rara faculdade de discernimento” (Citado por E. Ceria, em Dom Bosco com Deus, ed. SDB, Roma 1988, p. 299-300. Se­ria bom reler todo o cap. 18: “Dom de oração”). Sobre isso, também o exemplo de Sta. Teresa reformado­ra ensina do Carmelo.

A experimentação desta sua pa­ternidade espiritual é aquela “Esco­la de santidade” que deixou em herança à sua Família e que já enumera um número não pequeno de servos de Deus, bem-aventurados, de canonizados e de religio­sos/as exemplares, sacerdotes, mis­sionários/as e fiéis leigos (cf. ACG, SDB n. 319, outubro-dezembro 1986, carta circular do Reitor-Mor, p. 9-13). A sua experiência de Espí­rito Santo consta, podemos dizer, de um duplo elemento. Aquele estri­tamente “pessoal”, não transmissí­vel, e aquele “permanente”, destina­do a ser transmitido aos discípu­los. Dom Bosco, como indivíduo, teve muitos dons incomunicáveis por causa da sua missão pessoal. Trata-se de elementos privilegia­dos. Não é sempre fácil distinguir os dois aspectos. Estou convenci­do que o nosso Pai levou consigo muitos segredos e um tipo de vida penitente austera e heroica, à imi­tação do Cafasso, sempre escon­dendo e nunca comunicando aos seus.

Em todo caso é também verdade que não seria suficiente a santida­de pessoal de Dom Bosco para fa­zer dele o nosso Fundador. O que aqui é importante sublinhar é que a sua peculiar experiência espiri­tual foi por ele cuidadosamente transmitida numa espécie de “esco­la evangélica nova” aos seus dis­cípulos. São Bento Labre é santo, mas não tem discípulos, não é fun­dador, como não o foi o próprio Cafasso que foi mestre do nosso Fundador.

Os primeiros discípulos de Dom Bosco foram garotos e garotas formados nesta sua escola. E para compreender profundamente a sua tarefa de Fundador devemos olhar também aos seus primeiros e mais significativos “filhos e filhas” que, com outras pessoas sábias, consti­tuem uma espécie de constelação de colaboradores na fundação. Entre estes ocupam um lugar emi­nente (em níveis diferenciados) o Papa Pio IX (como já dissemos), os primeiros seus jovens consagra­dos (como o Pe. Miguel Rua, Dom Cagliero e outros), Sta. Maria Do­mingas Mazzarello, o Pe. Pestarino, etc. (cf. E. Viganò, “Redesco­brir o espírito de Mornese”, ACS n. 301, julho-setembro 1981, p. 20-22 e 29-33). E isso não só quando ele estava vivo, mas também na pri­meira hora de fiel transmissão e desenvolvimento.

Pensemos ao que disse o Papa Paulo VI do seu vicário e primeiro sucessor Pe. Miguel Rua, na homi­lia da sua beatificação: ele “fez do exemplo de Dom Bosco uma escola, de sua obra uma instituição ampla, pode-se dizer, sobre toda a terra; da sua vida uma história, da sua regra um espírito, da sua santidade um tipo, um modelo; fez da fonte, uma correnteza, um rio” (L’Osservatore Romano, 30-31 de outubro de 1972).



5.5. A peculiar missão



A típica santidade de um Funda­dor de vida ativa se traduz concre­tamente numa missão específica, qual viva participação na tarefa evangelizadora da Igreja.

Dom Bosco foi guiado pelo alto na realização de uma peculiar pastoral juvenil e popular. Ela situa-se na área da cultura como trabalho educativo. A caridade pas­toral do seu coração caracteriza-se por uma escolha preferencial da juventude necessitada unida a uma preocupação evangelizadora das classes populares. Dirige-se prefe­rencialmente a determinados desti­natários, mas não se caracteriza somente iniciando por eles, mas também pela peculiar modalidade com que é atuada, pela particular organização dos seus conteúdos e objetivos e pelo estilo da sua pre­sença de bondade, de diálogo e de amizade (cf. Atos CG 21, SDB, n. 80).

Deve-se observar que a missão dá a tonalidade a todo o patrimônio espiritual de Dom Bosco, influindo, portanto, fortemente sobre o seu significado eclesial. A realização da missão exige sensibilidade em rela­ção às culturas, às conjunturas históricas, às situações sociais, aos compromissos concretos da Igreja local, ou seja, está estritamente ligada ao movimento da história. Dela provém, portanto, um contí­nuo desafio de atualidade e de criatividade, que impõe um contí­nuo esforço de revisão, de progra­mação e de imaginação, enquanto dá continuamente juventude e atualidade ao seu patrimônio espi­ritual.

Hoje, numa Igreja comprometi­da em repensar toda a pastoral, é esta uma das notas mais exigentes do significado eclesial e da perspec­tiva de futuro do tipo da santidade de um Fundador.

Iuvenum Patris”, lembra a to­dos os sacerdotes que “no cuidado pastoral seja dada uma atenção prioritária à juventude: os jovens voltam a ter o cuidado principal dos sacerdotes! Está em jogo o futuro da Igreja e da sociedade” (IP, 20).



5.6. A criteriologia pedagógico-pastoral



Dom Bosco Fundador é um verdadeiro Mestre e Modelo porque soube encarnar a caridade pastoral numa eficaz ação educativa. Na carta que acabei de citar o Papa afirma que é reconfortável conside­rar nele “sobretudo o fato que ele realiza a sua santidade pessoal me­diante o empenho educativo, vivi­do com zelo e coração apostólico, e que sabe propor, ao mesmo tem­po, a santidade como meta concre­ta da sua pedagogia. Precisamente tal intercâmbio entre “educação” e “santidade” é o aspecto caracterís­tico da sua figura” (IP 5).

Ou seja, “Dom Bosco não é sim­plesmente um Santo que foi tam­bém educador; mas o é enquanto fundador de uma escola de santi­dade através da educação. A sua espiritualidade, a sua operosidade e a sua metodologia testemunham uma peculiar originalidade educati­va. (E. Viganò em “Dom Bosco, atualidade de um magistério pedagógico”, LAS, Roma 1987, p. 12).

Seguindo esta consideração apa­rece como aspecto particular do significado eclesial de Dom Bosco Fundador o de ter deixado em he­rança aos seus uma criteriologia pedagógico-pastoral, por ele defini­da “Sistema Preventivo”, que o aponta a todos como grande “Mes­tre para a educação”.

A carta “Iuvenum Patris” cons­titui um autorizado comentário a esse título: explicita a “mensagem profética” analisando na perspec­tiva da atualidade o famoso trinômio: “razão, religião, amabilidade”.

Esta criteriologia pedagógico-pas­toral “não está confinada ao passa­do. Sem dúvida, a mensagem peda­gógica de Dom Bosco exige que seja ainda aprofundada, adaptada, renovada com inteligência e cora­gem, precisamente em razão dos mudados contextos socioculturais, eclesiais e pastorais. Todavia, o essencial do seu ensinamento permanece, as peculiaridades do seu espírito, as intuições, o seu estilo, o seu carisma não perdeu valor, porque inspirados na transcenden­te pedagogia de Deus” (IP 13). Eis a razão pela qual a sua criterio­logia responde profeticamente aos urgentes desafios de educação cris­tã hoje.



5.7. A pluralidade de formas de participação



O que dissemos sobre o “espíri­to” está na base da admirável pluralidade de formas de partici­pação ao patrimônio evangélico de Dom Bosco Fundador na sua Fa­mília. Conhecemos (e as percebe­mos representadas também aqui) as múltiplas formas de participa­ção, enquanto também podemos fazer outras hipóteses possíveis. Na minha carta circular sobre a “Família Sa­lesiana” (cf. ACS n. 304, abril-junho de 1982) procurei aprofundar o as­pecto doutrinal, individualizando na caridade pastoral do “Da Mihi Animasa energia unificadora des­ta pluralidade.

Não se trata só da participação operativa numa mesma missão, mas de uma verdadeira comunhão de in­terioridade espiritual que faz viver o Evangelho segundo a índole pró­pria testemunhada por Dom Bosco. Exige, portanto, uma especial sin­tonia de vida no Espírito Santo, como estilo de pensamento, de ati­tudes, de preferências apostólicas e de prioridade de compromissos. Isto cria um certo parentesco ca­rismático que nos torna mais estri­tamente “familiares” uns aos ou­tros, entre nós, no Povo de Deus.

O significado eclesial desta plu­ralidade de formas manifesta-se seja em determinadas formas afins (de vida religiosa) ricas, cada uma a seu modo, de uma particular originalidade que realça alguns aspectos menos explícitos no patrimônio comum, seja em modalidades novas como a da “secularidade consagrada”, seja na importância dada pela eclesiologia conciliar no envol­vimento dos fiéis leigos, também se em níveis diferentes (Cooperado­res, Ex-alunos, Colaboradores).

É uma pluralidade de formas que assegura uma viva atualidade à Família, aplicando exatamente a tarefa de aprofundamento e de constante desenvolvimento do carisma “em sintonia com o Corpo de Cristo em perene crescimento” (MR 11). Assim cada um dos gru­pos testemunha, de maneira diver­sificada e convergente, aquilo que os documentos do Magistério (Con­cílio Vaticano II e intervenções posteriores) chamam “espírito do Fundador”, “inspiração primitiva”, “finalidades peculiares”, “índole própria”, “estilo particular de san­tificação e de apostolado”.



6. Seu significado social



Depois desta visão rápida sobre “o significado eclesial”, passemos ao social”.

Para fazê-lo podemos concentrar a atenção sobre alguns aspectos ca­racterísticos da herança deixada por Dom Bosco aos seus, como a especial sensibilidade da realidade humana no seu devir: a sensibili­dade aos sinais dos tempos, a aten­ção à dimensão histórica, a escolha educativa, a preocupação pela cul­tura popular, a intuição da laicidade, a política do Pater noster, o horizonte de internacionalidade e universalidade.



6.1. A sensibilidade aos sinais dos tempos



Nos Fundadores costuma-se encontrar uma particular sensibilidade às conjunturas dos tempos.

Em Dom Bosco isto está presente sem dúvida com uma intensidade muito viva, numa hora que preanunciava a aurora de uma mu­dança de época. Ele soube pensar criativamente a sua ação correta como resposta aos desafios sociais próximos. Apesar de ter sido for­mado no modelo aprendido no se­minário e no colégio eclesiástico, a sua caridade pastoral levava-o a transcendê-lo, sendo sensível e ver­sátil em captar os questionamentos das conjunturas. Não seguia uma fórmula pré-estabelecida, mas adaptava-se às circunstâncias, for­temente alicerçado nos grandes princípios evangélicos. Desenvolveu as suas iniciativas pastorais con­templando as situações sociais e procurando responder aos seus apelos.

É este um aspecto de particular significado social. Também João Paulo II, na carta “Iuvenum Patris”, afirma que ele é atual exata­mente por este motivo: porque “ele ensina a integrar os valores permanentes da Tradição com as ‘novas soluções’, para enfrentar de maneira criativa as instâncias e os problemas emergentes: neste nosso tempo difícil ele continua a ser mestre, propondo uma ‘nova educação’ que ao mesmo tempo é criativa e fiel” (IP 13).

Quando Dom Bosco escreveu o primeiro texto (1858) das Consti­tuições para os seus discípulos, afirmou explicitamente no Proêmio que “da boa ou da má educação da juventude depende um bom ou tris­te futuro para a sociedade” (F. Motto, “Testo critico delle Costituzioni della Società di S. Francesco di Sales”, LAS, Roma 1982, p. 58).

Trabalhou para a renovação da sociedade, convencido que a ambi­guidade, que sempre acompanha os sinais dos tempos, não pode ajudar positivamente a sociedade na direção de uma maior dignidade humana sem a presença de fermento do Evangelho de Cristo. As conquistas da “razão” necessitam historica­mente do fermento da “fé”.

E deixou em herança aos seus esta importante atitude que deve­ria torná-los sempre protagonistas valentes e atuais nos problemas juvenis da sociedade



6.2 A atenção à dimensão histórica



Uma das características da mo­dernidade é a renovada sensibili­dade da dimensão histórica, que ama privilegiar nos estudos, nas análises e nos critérios de orienta­ção, o primado da realidade dos fatos.

Portanto: apesar do clima forma­tivo de tipo essencialista, em que fora educado, Dom Bosco cultivou sempre uma pessoal predileção pe­los conhecimentos históricos. Leu muito e escreveu várias obras — para o povo e para os jovens — de história civil, de história sagrada, de história eclesiástica e de hagiografia. Sentia que o Cristianismo, mais que uma “religião”, que parte da iniciativa do homem, é uma “história de salvação” que compor­ta a iniciativa de Deus, que se ma­nifesta na criação e se torna pre­sente na história assumindo nossa humanidade, realizando aconteci­mentos e fatos e mandando o Es­pírito Santo em tantos Kairoido tempo. É, portanto, nas pessoas e nos acontecimentos dos séculos que convém procurar as intervenções de Deus. Dom Bosco não se sentia inclinado para as ideologias; e hoje, enquanto assistimos ao seu ocaso, admiramos mais o seu rea­lismo de fé. A sua dimensão mís­tica tem um tecido histórico.

Na leitura dos acontecimentos eclesiais e na análise das situações concretas, deixava-se guiar pela luz que lhe vinha do seu ministério eclesial e do seu quotidiano diálogo com Deus. Não julgava “iluministicamente”, com esquemas pre­conceituosos também se da moda, mas sempre “pastoralmente” em conformidade com a realidade dos fatos. Na história sabia perceber a presença e a ação da Providência e estava convencido da contínua aju­da maternal de Maria, de maneira particular na sua vida.

Por isso, os seus projetos em fa­vor das necessidades da juventude pobre e das classes populares ti­nham sempre uma grande flexibili­dade, que o levava a desenvolvê-los com audácia maior do que suas po­bres forças.

Não era um “historiador” de pro­fissão, possuía sim uma estrutura mental, que poderíamos chamar bí­blica (como aquela de Maria no “Magnificat”), porque procurava Deus na história, olhava para a evolução dos povos e da Igreja, enfrentava e discernia as situações de fato com uma atenta inteligên­cia guiada pela luz superior da fé.

É esta uma qualidade particular­mente significativa hoje, quando muitos analisam os fatos afastan­do metodologicamente a fé, não se interessando pela presença real do Espírito Santo e do seu poder, substituindo-a talvez com elemen­tos culturais, de maneira explícita ou tácita.



6.3. A escolha educativa



Como já acenei repetidamente, o trabalho pastoral de Dom Bosco com a Obra dos Oratórios (que está na origem de seu esforço de Fundador) constitui também uma clara escolha em favor da socie­dade. Esta ação o inseriu naquela área fundamental da cultura humana que se dedica ao cuidado e amadurecimento pessoal e social dos jovens através de um vasto compromisso educativo. Assim quis que os seus se habilitassem para intervir validamente neste específi­co campo da promoção humana.

Procurou os jovens pobres e das classes populares, que a sociedade a ele contemporânea, além das lou­váveis iniciativas e das boas inten­ções, costumava esquecer em seus anseios de progresso. Foi à pro­cura deles com uma metodologia pedagógica de presença, de bonda­de e de amizade que se caracteriza­va por uma preventividade rica, como afirma João Paulo II, de “profundas intuições, precisas op­ções e critérios metodológicos tais como: a arte de educar de modo positivo, propondo o bem em expe­riências adequadas e desafiadoras, capazes de atrair pela sua nobreza e beleza; a arte de fazer crescer os jovens ‘a partir de dentro’, fazen­do apelo à liberdade interior, con­trastando os condicionamentos e os formalismos exteriores; a arte de conquistar o coração dos jovens, para os estimular, com alegria e satisfação, para o bem, corrigindo os desvios e preparando os jovens para o futuro, por meio de uma sólida formação do caráter” (IP 8).

Preocupou-se em formá-los “ho­nestos cidadãos”; interessou-se em introduzi-los no mundo do traba­lho; seguiu-os, nos limites do possí­vel, também depois dos anos desta sua promoção, seja durante o ser­viço militar, seja nos seus defini­tivos compromissos sociais. Colo­cou numerosos e bons Ex-alunos nos vários setores da sociedade. Também no aspecto simplesmente humano, como cidadão do seu tem­po, foi, de fato, um dos homens do Ressurgimento que mais positiva­mente influiu sobre uma sociedade em rápida mudança. Alguém tam­bém afirmou que enquanto os políticos procuravam levantar uma nova pátria, ele educava validamente um grande número de cidadãos.

A escolha educativa em favor da juventude dá à figura de Dom Bos­co Fundador a sua tonalidade con­creta e especifica a sua contribui­ção cultural.



6.4. A preocupação pela cultura popular



Um aspecto do significado social de Dom Bosco Fundador é que a sua dedicação, criatividade corajosa e aberta também se revestida de sim­plicidade, voltada para elevar o ní­vel cultural das “classes popula­res”, privilegiando os aspectos da sabedoria religiosa, que constitui um verdadeiro fermento animador da sua cultura.

Graças à sua origem popular e camponesa e sua orientação no mi­nistério, tinha do “povo” um con­ceito não político, e muito menos ideológico (como às vezes é apresentado hoje), mas uma visão de simpatia natural (“rico das virtudes do seu povo” — cf. Constituições SDB, 21) quando se aproximava de tantas pessoas simples, dotadas de laboriosidade, de bom senso, de solidariedade, comprometidas nas dificuldades da existência, e talvez pouco atentas aos sinais dos tem­pos e fáceis de serem enganadas. Os seus jovens pertenciam a estas classes e corriam o risco de perder os valores mais importantes de uma cultura popular amadurecida através dos séculos. Dedicou-se a este setor com meios variados, so­bretudo com aqueles da comunica­ção social da época, especialmente a imprensa, o teatro, a música, etc. No interessante discurso feito na Universidade de Turim, João Paulo II sublinhou este aspecto: “apesar da sua incrível e vasta atividade, soube cultivar em si uma sólida preparação cultural, unida a qualidades positivas de escritor, que lhe permitiu realizar um notável apostolado. Ele sentiu fortíssimo o im­pulso para elaborar uma cultura que não fosse privilégio de poucos, ou uma abstração da realidade so­cial em evolução. Por isso foi incen­tivador de uma sólida cultura popular, formadora de consciên­cias civis e profissionais de cida­dãos comprometidos na sociedade” (L’Osservatore Romano, 5 de setem­bro de 1988).

A missão dele e da sua Família espiritual insere-se, portanto, no contexto vivo da sociedade civil, através de uma vasta e diversifi­cada obra de promoção cultural.



6.5. A intuição da “laicidade”



A escolha da ação entre os jovens necessitados e as classes populares, feita por Dom Bosco, fez-lhe expe­rimentar a necessidade de inserir sempre a comunicação do Evangelho num concreto desenvolvimento hu­mano. “Consegue assim estabelecer uma síntese entre atividade evan­gelizadora e atividade educativa. Situa-se no interior do processo de formação humana, cônscio das de­ficiências, mas também otimista a respeito da maturação progressi­va” (IP 15).

E a atenção aos valores humanos a serem promovidos levou-o a apre­ciar sua importância sem que nun­ca enfraquecesse nele a preocupa­ção de protegê-los contra os não-valores e as sugestões do mal. Numa genuína visão cristã do mundo — assegura-nos o Concílio — a reali­dade objetiva dos elementos cons­titutivos do homem e das coisas foi desejada pelo Pai Criador com uma própria bondade e finalidade (cf. AA 5 e 7). E a ação redentora de Cristo, como também a presença transformadora do Espírito, inserem-se vitalmente na criação e na história.

Sem querer fazer dele um antecipador do Concílio Vaticano II, podemos afirmar que esta visão de fé oferece à inteligência a capaci­dade de descobrir e avaliar a ver­dadeira “laicidade” da ordem tem­poral, sem a manipulação das ideo­logias e sem as distorções do lai­cismo.

O tema de uma genuína laicida­de não é estranha ao mistério cris­tão, aliás é o caminho correto que é preciso percorrer, convencidos da intrínseca continuidade que existe entre “criação” e “redenção”. Hoje é um tema de atualidade e pode-se já proclamar que sem a inteligên­cia do Evangelho deturpa-se mui­to facilmente a mesma laicidade.

Ora, se existe uma porção da hu­manidade que precisa ver conside­rada e promovida a autêntica di­mensão “leiga” das coisas e dos va­lores criados, é exatamente a ju­ventude, sobretudo pobre e neces­sitada. Como se poderia fazer cres­cer neles a plenitude do Cristo se não sabem o que é o mundo e quais são nele as tarefas do ho­mem? O Papa João Paulo II (espe­cialmente na encíclica Redemptor hominis”) repete constantemente a afirmação conciliar que o Verbo feito carne veio revelar ao homem o mistério total do homem.

Dom Bosco, portanto, foi empur­rado pela realidade a ter um sen­tido profundo dos valores criados e humanos; assim aprendeu a dia­logar também com quem olhava à condição juvenil somente de um ponto de vista secular; e se interes­sou muito concretamente pelas des­cobertas do progresso humano; considerou muitas invenções da técnica muito úteis para a realiza­ção do seu trabalho educativo.

E deixou esta atitude de inteligente visão do mundo em herança aos seus.



6.6. A política do “Pater noster



A intensa atividade educativa no seu trabalho, concretamente aber­ta à ordem temporal numa visão de eternidade, guiou Dom Bosco a fortalecer uma atitude de grande discernimento e de equilíbrio peda­gógico diante das intensas pressões das conjunturas políticas, tão atra­entes no Ressurgimento.

Ele estava convencido que preci­sava, de um lado, assegurar a sua missão entre os jovens, e, de outro, que entre os problemas práticos mais prementes existe aquele de educar para saber dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Hoje aprendemos a distinguir melhor entre as exigências sociais de promoção da ordem temporal (ou alta “Política” do bem comum) e os projetos históricos de intervenção em favor de um tipo de governo num País (ou “política” partidária do poder). Na época de Dom Bosco a palavra “política”, até 1848, num restaurado clima de aliança entre trono e altar e de uma teologia que a justificava, não tinha praticamente problema. De­pois, sim, porque a palavra “polí­tica” veio indicar sobretudo a ação e os programas de governo, das forças interessadas no poder e na unificação da Itália e dos grupos ligados a planos contingentes de transformação das estruturas exis­tentes; levados também pelos ideais patrióticos, mas, na prática, influenciados por claros preconcei­tos anticlericais.

Ele, porém, considerava o signi­ficado social do seu trabalho edu­cativo não numa visão fechada por uma prática política contingente, mas numa dimensão específica da sua própria missão, ou seja, por uma preocupação ministerial (em união com o Sucessor de Pedro) e religiosa, também se ela deve se tornar, na prática, fermento de uma laicidade comprometida na re­forma da sociedade.

Depois de cem anos este tema evoluiu muito, e a herança deixada neste campo por Dom Bosco Fun­dador necessita ser desenvolvida e adaptada oportunamente aos ensinamentos do Magistério eclesial: participação corresponsável, soli­dariedade, justiça, paz, etc., segun­do o ensinamento social da Igreja (cf. Egídio Viganò, mimeografado “La vocazione dei SDB e l'impegno per la giustizia nel mondo”, Gêno­va, abril de 1974).

Mas permanece viva e atual, em princípio, a ideia que a sua ação educativa não é um compromisso político partidário, também se deve ser marcada pela dimensão social. Ele testemunhou que a renovação da sociedade não necessita só da prática política, mas também, e mais ainda, de uma forte dimen­são cultural.

O homem é, como se afirma, um “animal político”, mas nele nem tudo é política; aliás a própria po­lítica precisa de outros valores fun­damentais, vividos numa cultura genuinamente e integralmente hu­mana. Assim podem ser prestados serviços indispensáveis à sociedade sem que o seu compromisso bási­co seja o da política; aliás, exatamente na dedicação plena e eficaz nalguns desses serviços torna-se necessário permanecer livre de po­sições políticas. “A que pode servir a política?” — afirmou um dia Dom Bosco em 1883 — “Com todos os nossos esforços o que podería­mos nós alcançar? Nada mais do que impossibilitar a continuação da nossa obra de caridade” (MB 16,291). E, de fato, se a sua escolha tivesse sido uma decisão política, o que teria sido da sua missão?

A tarefa “religiosa” da Igreja, afirma o Concílio Vaticano II, “não é de ordem política, econômica e social. No entanto, exatamente des­ta missão religiosa brotam algumas tarefas, uma luz e forças, que po­dem contribuir na construção e na consolidação da comunidade dos homens de acordo com a lei divi­na” (GS 42).

Dom Bosco afirmava jocosamen­te, mas também inteligentemente, que a sua era “a política do Pater noster”, ou seja, a construção do Reino de Deus na história (MB 8, 593-594). “Deve haver — dizia — também aqueles que se interessam pelas coisas políticas, mas esta tarefa não é para nós” (MB 16, 291).

O atual artigo 33 das Constitui­ções renovadas dos SDB expressa bem o significado social, desenvol­vido na realidade dos tempos, des­ta importante atitude deixada em herança aos seus por Dom Bosco Fundador.



6.7. O horizonte de internacionalidade e de universalidade



O significado social da educação da juventude e das classes popula­res promovida por Dom Bosco Fun­dador ultrapassa os limites geográ­ficos e políticos da sua diocese e de seu país. Ele sentiu-se como que investido pelo alto com uma tarefa juvenil e popular a ser levada a to­das as nações, a todas as culturas, por causa da indispensabilidade da presença do Evangelho de Cristo na vida para promover verdadeira­mente todo homem, em sua pessoa e em sua condição social. Assim, por exemplo, os grandes sonhos missionários de Dom Bosco (a serem lidos também com a visão crítica da fé) demonstram os horizontes a que olhava com o seu trabalho de Fundador. Hoje quem anda pelos cinco continentes e visi­ta neles a impressionante presença da Família Salesiana, deve mesmo repetir com admiração que “o Dom Bosco verdadeiro é maior que o Dom Bosco histórico”.

O número e a extensão dos seus discípulos (também se, num pri­meiro momento, pode parecer so­mente “quantidade”) é de fato a expressão concreta que evidencia uma “qualidade” determinante do seu patrimônio iniciado com ver­dadeira consciência de internacionalidade e universalidade.

Ele quis que a sua Família esti­vesse acima de “todo regionalis­mo”. Já o seu sucessor Pe. Rua (que conhecia muito bem as intenções do Fundador) convidava para não entender a “Inspetoria” (ou seja a necessária divisão em “provinciais” da Congregação que se expandia) como um “ser fechado em si” e a comunhão mundial como “federação de províncias” autônomas. “Regionalismo”, porém, é também nacionalismo, particularismo, men­talidade fechada, parcialidade ideo­lógica, infiltração de modismos passageiros, classismo, complexos socioculturais que atacam a fraternidade e a comunhão” (E. Viganò, “Relazione sulla 'Società di S. Fran­cesco di Sales' nel sessennio 1978-1983”, CG22, Editrice SDB, Roma 1983).

A “internacionalidade” não abafa o sentido vivo da própria cultura e da própria pátria, mas une-o e põe-no em relação com as outras realidades acostumando a mente e o coração a conhecer e apreciar as condições sociais de outros po­vos, com vistas à promoção da co­munhão.

A “universalidade”, ainda, é uma dimensão eclesial muito profunda, intimamente unida ao mistério de Cristo que assegura a unidade e a identidade dos elementos constitu­tivos e vitais da Igreja, também na variedade das modalidades de ma­nifestá-los nas comunidades parti­culares. A consciência da universa­lidade da sua Obra, mais além da própria diocese, provocou-lhe tam­bém não pequenos problemas e con­flitos (pode-se ler, por ex., nas MB 11, o cap. 3 sobre a Obra de Maria Auxiliadora para as vocações adul­tas).

Pensando o seu patrimônio numa dimensão universal, Dom Bosco colocava as bases para aquela uni­dade na descentralização que foi oportunamente relançada pela eclesiologia do Concílio Vaticano II. Descentralização, porém, não inde­pendência, mas imprescindivelmente dirigida ao Sucessor de Pedro e em permanente comunhão com ele, e fortemente ligada ao centro de unidade da Família Salesiana. A sintonia com o Espírito de Deus introduz os santos no mistério vivo da Igreja, além das posições doutrinais em discussão, quase anteci­pando a percepção de aspectos de verdade que talvez serão formula­das mais claramente em tempos posteriores. A universalidade do espírito de Dom Bosco sempre se alicerçou sobre a identidade de um mesmo espírito e de uma mesma missão.

O significado social destas duas qualidades complementares — in­ternacionalização e universalidade — está na origem desta rápida e admirável expansão da Obra de Dom Bosco, que o Papa Paulo VI não duvidou em chamar de “fenô­meno salesiano” neste último sé­culo da história da Igreja.

Portanto, se consideramos os vá­rios aspectos, seja do significado eclesial como daquele social de Dom Bosco Fundador no hoje da Família Salesiana, descobrimos mais claramente nele algo de vivo que transcende a sua mesma perso­nalidade: uma grandeza e fecundi­dade que nasce do alto e que foi colocada nele para que fosse profe­ticamente o sinal e o portador a muitos. Com razão podemos afir­mar: “Com sentimento de humilde gratidão cremos” que a Família Salesiana de Dom Bosco “não nas­ceu de simples projeto humano, mas por iniciativa de Deus”. De fato, “O Espírito Santo, com a maternal intervenção de Maria, suscitou S. João Bosco. Formou nele um cora­ção de pai e mestre; para prolon­gar no tempo a sua missão, guiou-o na criação de várias forças apostó­licas. A Igreja reconheceu nisso a ação de Deus” (cf. Constituições SDB, 1).



7. As energias para o desenvolvimento na fidelidade



Após ter tentado apresentar o significado eclesial e social de Dom Bosco Fundador, parece opor­tuno acrescentar uma rápida indi­cação de quais podem ser as ener­gias que hoje dão vitalidade ao seu patrimônio espiritual.

Fazemos isso a partir de sua ex­periência, sentindo-nos envolvidos numa hora privilegiada de renova­ção qualitativa.

Estou me referindo à releitura feita pelos filhos e pelas filhas do Fundador, e isto há mais de vinte anos, através de estudos, discus­sões, Capítulo Gerais e Assembleias mundiais, e que já foi testada pela aprovação — pela Sé Apostólica — dos textos fundamentais que reapresentam a identidade.

É um repensar o patrimônio es­piritual do Fundador a partir do seu desenvolvimento homogêneo “em sintonia, com o Corpo de Cristo em perene crescimento”. Alguém disse com razão que o Concílio soltou os freios e limpou tanta poeira que tinha escondido um pouco o verdadeiro rosto de Dom Bosco, devolvendo-lhe maior dinamismo para lançá-los em direção ao ter­ceiro milênio.

Penso seja, esta, a atitude melhor para perceber a identidade da sua realidade viva. É certamente indis­pensável conhecer os elementos históricos, pesquisar os documen­tos e o ambiente cultural e eclesial da época; mas sobre uma realidade viva não se pode fazer simplesmen­te uma autópsia, nem hoje e nem amanhã.

Aqui procuraremos indicar sinte­ticamente só alguns aspectos que sublinham simultaneamente a ori­ginalidade e a atualidade de Dom Bosco Fundador. Quando falamos de “originalidade” não queremos relacionar a estrutura das obras (como se tivessem sido inventadas assim como são por ele) ou a men­talidade cultural (como se ele ti­vesse sido uma exceção fora do ambiente), mas nos referimos a al­gumas energias inerentes à índole própria do seu particular estilo de santificação e de apostolado.

Examinemos as principais, sem pretensão de fazer uma lista com­pleta.



7.1. A graça de unidade do “da mihi animas



O segredo de Dom Bosco Funda­dor está, essencialmente, na pecu­liaridade da sua santidade; ela está toda voltada aos planos de Deus que o quis preparar como testemunha de uma peculiar caridade pasto­ral. O lema que expressa sintetica­mente os conteúdos desta santida­de é: da mihi animas”.

Através de uma atenta análise da caridade pastoral salesiana descobre-se a nascente primeira e borbulhante do patrimônio do Fundador. Investigando o seu coração encontramos nele a morada do Espírito Santo que lhe infunde uma vigoro­sa “graça de unidade”, como rica fonte de experiência mística, de in­tuições espirituais, de interesse eclesial, de dinamismo criativo.

Nesta “graça de unidade” vive a semente do espírito de Dom Bosco em sua origem, é uma semente de onde tudo nasce; contém a energia divina que mantém unidos de ma­neira inseparável os dois polos do amor: Deus e o próximo. A contem­plação salesiana do mistério da Trindade leva sempre até as neces­sidades do homem; e a atenção ao próximo precede e leva continua­mente a Deus: porque está sempre envolvida pelo seu amor.

Assim, a dimensão contemplativa é por essência uma interioridade apostólica. A oração, a ação e a paixão referem-se juntas e vital­mente aos dois polos: não existe Deus sem o homem; não existe o homem sem Deus.

Este único movimento da carida­de pastoral, vivido na modalidade e no estilo traçado por Dom Bosco, constitui o centro do “espírito sa­lesiano”, como síntese vital de participação na original experiência do Fundador. Para a transmissão des­te espírito, entre Deus e Dom Bosco estabeleceu-se (como dis­semos) aquela especial aliança que o tornou o “patriarca” da nossa já numerosa Família. Uma aliança consciente e renovada dia após dia. De fato a “graça da unidade” entre interioridade e trabalho provém do alto, supõe constante união com Deus, modela-se sobre o Cristo Bom Pastor, brota só da intimida­de com o Seu Espírito, é alimenta­da constantemente por uma consciente vida de fé, de esperança e de caridade em diálogo com a realidade viva do mundo. (Dois estudos que seria bom lembrar para aprofundar o tema da interioridade salesiana do nosso Fundador, são “Dom Bosco com Deus” de E. Ceria, reimpresso com prefácio de G. Gozzelino, ed. SDB. Roma 1988; e “Dom Bosco profundamente homem - profundamente santo” de Pe­dro Brocardo, LAS, Roma 1985, do qual está em prelo uma edição am­pliada e novo no título; “Dom Bos­co profundamente homem e santo: nós o conhecemos”).









7.2. A plena confiança em Maria e na Igreja



A dimensão contemplativa que nos foi ensinada por Dom Bosco não leva a abstrações conceituais, mas concentra-se sobre dados con­cretos de pessoas e de acontecimen­tos, que constituem a história da salvação. Ele manifestou aqui um dos aspectos característicos da sua personalidade.

A devoção à Virgem Mãe de Deus era fortemente viva no seu ambien­te; também a veneração d’Ela como “Auxiliadora” já era praticada nos séculos anteriores.

Incentivador de todos os títulos marianos, ele preocupou-se em per­ceber e comunicar a presença ativa da pessoa de Maria na história. Ela participa com Cristo da nova vida da ressurreição e prolonga a sua solicitude materna através dos séculos, especialmente nos tempos difíceis. Por isso, Dom Bosco nos deixou uma devoção que vê em Maria a Auxiliadora, não propria­mente para sublinhar o título, quanto para aprofundar a doutrina da realidade e eficácia da sua ma­ternidade universal.

São sobretudo dois os dados sobre os quais insistiu.

O primeiro é a intervenção de Nossa Senhora em sugerir e guiar a sua vocação de Fundador na Igreja. Vários “sonhos”, começan­do com aquele dos nove anos, asseguram-lhe a materna iniciativa. Justamente o Pe. Brocardo fala, referindo-se à sua obra de funda­ção, de “um trabalho a dois” (cf. o.c, cap. 5, p. 117-124). Em Trofarello, em 1868, ele afirmou que de todas as Famílias espirituais Maria SS. “pode-se dizer a Fundadora e a Mãe, começando do cenáculo até os nossos dias”, mas que ele estava pessoalmente convencido que em relação à nossa “Ela tudo fez”.

O segundo é a solicitude plurisse­cular de Maria para com a Igreja, da qual Ela é modelo profético. O Concílio Ecumênico Vaticano II desenvolveu profeticamente este aspecto. Portanto: Dom Bosco uniu indissoluvelmente a sua devoção mariana ao sentido de Igreja, ao ministério de Pedro, à fé simples do Povo de Deus, às necessidades urgentes da juventude.

O olhar e as atitudes de Dom Bosco para com Maria são forte­mente eclesiais, centralizados sobre Cristo que atua nos sacramentos e na administração do Espírito San­to através do Magistério do Papa e dos Pastores.

O ato de entrega à Auxiliadora é uma das fortes razões da nossa vi­talidade.



7.3. A qualidade “mística” da ação



O Concílio Vaticano II relançou em profundidade os grandes valo­res de interioridade da ação apostó­lica (cf. PC 8; AA, 4; PO, 13 e 14). Dom Bosco incentivou uma interio­ridade de caridade pastoral que santifica continuamente o traba­lho, que constitui para ele quase uma segunda natureza. Foi homem de ação porque se sentiu envolvido pela “mística” de Deus Salvador, imitando Jesus que “começou a fazer e a ensinar”. “Numa época em que se olhava para os religiosos como pessoas preguiçosas, inúteis ao progresso da sociedade, quis a sua instituição fundada sobre a grande lei do trabalho e dizia, não sem humorismo, que o uniforme dos seus religiosos teria sido aque­le das “mangas arregaçadas” (P. Brocardo, o.c, p. 91).

É tal nele a união com Cristo Redentor, a contemplação do seu amor para com o homem, o conhe­cimento das necessidades da salva­ção dos destinatários da sua mis­são, que o impulsiona continuamen­te a sair de si mesmo para se de­dicar a Deus nos outros. S. Fran­cisco de Sales, falando do Amor de Deus, distinguirá três tipos de êxtase místico: o intelectivo, o afetivo e o operacio­nal. “O primeira é luz, o segundo fervor, o terceiro ação; o primeiro é feito de admiração, o segundo de devoção, o terceiro de obras” (citado do P. Brocardo, o.c, p. 139).

O “êxtase da ação” é a místi­ca vivida na Família Salesiana; ele leva a sair continuamente de si para se identificar concretamente, por quanto seja possível, com o compromisso salvífico do Bom Pas­tor. Também o sofrimento, a paixão, as contrariedades, a inatividade nas doenças entram vital­mente nesta mística, que as eleva a misteriosas mediações apostóli­cas.

É por esse tipo de interioridade apostólica que a missão ocupa um lugar determinante em todo o seu patrimônio.



7.4. A humildade do “fazer-se amar”



Uma outra energia própria da herança de Dom Bosco Fundador é a equilibrada atitude de bondade traduzida em metodologia cotidiana: “não com pancadas, mas com a bondade”. O critério da presença, do diálogo, da partilha, da amizade, ele o resume no conselho de “fazer-se amar”.

Não é uma coisa fácil nem ligada a condescendências da concupis­cência, mas exige aliás um tipo de humildade pedagógica, própria pa­ra nos apresentarmos como amável mediação de Deus para os próprios destinatários. O método da ação salesiana não é simplesmente o de amar (coisa evidentemente indis­pensável), mas a capacidade pedagógica de “fazer-se amar”, porque o forte compromisso cultural da educação deve ser uma “obra do coração”. O “Sistema Preventivo” comporta exatamente o segredo de fazer-se amar. Este critério metodo­lógico “requer uma ascese muito exigente de maneira que o esvazia­mento de si mesmo chega a dar à própria vida uma transparência que a transforme em “exigência sacramental” porque propõe a si mesmos como sinais e portadores do amor de Cristo. É impossível uma santidade sem humildade; mas existe uma humildade alcançada com a prática de particulares vir­tudes especialmente de tipo social, que torna a existência do discípulo significativa e atraente pois con­tém o mistério de Cristo e o comu­nica através da própria vida” (E. Viganò, circular “Estuda de fazer-te amar”. ACG 326, julho-setembro de 1988, p. 13).

Os valores desse tipo de humil­dade adquiriram hoje uma extra­ordinária atualidade pastoral. É uma característica indispensável para quem encarna a benignidade e a humildade do Bom Pastor, so­bretudo com a juventude (Um estu­do, que apresenta uma visão documentada, sintética e largamente amadurecida em relação a esta experiência metodológica é a obra de Pietro Braido: “L’esperienza pedagogica di Don Bosco”, sobretudo os capítulos 11, 12, 13 e 14 (ed. LAS, Roma 1988).



7.5. A ascese do “trabalho e temperança”



A palavra “ascese” deriva do verbo grego “askeo” que signifi­ca exercitar-se ou treinar: uma concreta práxis de vida, observada sistematicamente e que tem como finalidade criar um hábito e uma disponibilidade constante para rea­lizar algumas atividades. Neste sen­tido é uma prática pré-cristã que se pode relacionar com o esporte, com o treinamento militar ou com um peculiar tipo de domínio de si. O Cristianismo dá um signi­ficado e uma modalidade peculia­res a este exercício prático. Pode­mos dizer que, na nova Aliança, o primeiro asceta é Cristo, e que deve sê-lo, por definição, todo cristão. Não se fundamenta sobre um dualismo de conceitos entre “corpo” e “espírito”, mas é — como foi falado — um “estudo deífico”, pela prática de virtudes corajosas que renunciam aos egoísmos do ser carnal de que fala S. Paulo, e oferecem o primado ao bem. É um esforço progressivo e uma purifi­cação constante que incide sobre os costumes para a purificação do coração. Trata-se de uma subordi­nação dos interesses humanos à fé que se compromete praticamen­te em traduzir o Evangelho na vida. Assim, não se pode pensar a uma espécie de “faquirismo”, mas a um método espiritual para um melhor serviço a Deus: são práti­cas não buscadas por si mesmas, mas particularmente úteis e subs­tancialmente indispensáveis.

Com razão, na radicalidade do seguimento de Cristo, “o mosteiro”, que reunia alguns generosos fiéis, era chamado também “ascetério”, como lugar de austeridade para assegurar a interioridade dos con­sagrados.

Na história da espiritualidade, encontram-se muitas formas de asce­se, com a qual se procura assegu­rar a vitalidade da presença de Deus tendo como meta essencial o crescimento da caridade. Todos os Fundadores foram também mestres da ascese; de fato não existe san­tidade sem uma luta espiritual que transforme a própria conduta do discípulo.

Dom Bosco Fundador é modelo e mestre de uma ascese original, no contexto do seguimento de Cristo. Ele mesmo resumiu o pro­grama da ascese salesiana no lema “trabalho e temperança”, ao ponto de afirmar que “o trabalho e a temperança” farão florescer a sua Família, enquanto a busca das comodidades e do bem-estar serão a sua morte (cf. MB 17,272). Não se trata só de “mortificações” in­dispensáveis, de penitências extra­ordinárias — ocasionais — ou de “estar pronto para suportar o calor e o frio, a sede e a fome, as fadi­gas e o desprezo, sempre que se trate da glória de Deus e da salva­ção das almas” (cf. Constituições SDB, art. 18): tudo isto entra cer­tamente na ascese salesiana.

Mas a peculiaridade desta ascese está no aspecto vital dado à mis­são, ou seja, no primado daquela caridade pastoral que deve infla­mar o coração do educador e colo­cá-lo generosamente ao serviço dos jovens e das classes populares. Neste sentido, a prática ascética, vivificada pela mística da graça de unidade, se traduz numa conduta cotidiana de “trabalho” e de “tem­perança”.

O trabalho obtém a mútua compenetração de duas energias: o amor de caridade que desce de Deus e a elevação até Cristo das necessidades da promoção humana, assim que se possa testemunhar que a atividade é uma manifestação da união com Deus. S. Gregó­rio de Nissa, falando do mistério de Cristo, tem esta belíssima ex­pressão: “demonstrou quanto seja natural o sobrenatural e quanto seja sobrenatural o natural”.

A temperança, depois, é entendi­da como uma expressão da “reale­za” batismal que se dedica em guiar a “custódia do coração” atra­vés de múltiplas virtudes práticas — individuais e sociais — que as­segurem o domínio de si, e das paixões, o equilíbrio do julgamento, as atitudes de bondade e de com­preensão, o sentido da pobreza evangélica, uma certa austeridade feita de simplicidade e de espírito de família.

A constância no trabalho e na temperança endereçam pelo cami­nho daquele “martírio incruento” que Dom Bosco chamava “martí­rio de caridade e de sacrifício para o bem dos outros”: se alguém su­cumbe e morre pelas almas — di­zia —, então a nossa Família al­cança um grande triunfo e sobre ela descerão copiosas as bênçãos do céu.



7.6. O cuidado com a identidade



Na realização da missão salesia­na, Dom Bosco procurou infundir o mesmo “espírito” a muitas for­ças apostólicas; assim, no projeto da sua Família, ele quis unir em comu­nhão vários grupos diferenciados como sublinhamos: alguns com vida religiosa de comunidade e, outros, de acordo com as situações normais de vida no mundo. Visou, porém, a identidade do espírito.

Esta preocupação de envolver muitas forças representa hoje um aspecto de atualidade em plena sintonia com a eclesiologia conci­liar.

A identidade do espírito vê em Dom Bosco um grande modelo e um líder carismático que aponta com modernidade um projeto de autenticidade evangélica. Evidente­mente, isto exigiu dele e exige de nós o conhecimento dos conteúdos deste espírito, o esforço constante de formação para a sua interio­rização, a busca de estruturas de orientação, estudos de discernimen­to, encontros de diálogos e um centro de referência autorizado.



7.7. A abertura de fé aos valores da secularidade



Aludimos acima às intuições de Dom Bosco com relação aos valo­res da laicidade. Ele soube, nas suas iniciativas, adequar-se ao que estava aflorando da realidade dos tempos. Deixou em seu patrimônio pedagógico-pastoral uma original abertura diante de não poucos va­lores da secularidade. Um aspecto, este, que teria se desenvolvido, an­tes lentamente e depois de maneira acelerada no complexo processo de secularização que percebemos hoje.

Aos grupos religiosos da sua Família deixou uma modalidade de organização e uma maneira de existir nova perante a maneira ecle­sial tradicional de entender a vida religiosa: agilidade de estruturas, modalidade de possuir os bens, há­bitos, facilidade de adaptação, ma­neira familiar de convivência; foi original na idealização do Salesia­no coadjutor (cf. circular do RM em “A componente laical da comu­nidade salesiana”, ACS n. 298, outubro-dezembro de 1980); penso na possibilidade de dar vida a uma consagração secular com traços de “salesianos externos” (hoje temos na Família o Instituto secular das VDB); utilizou para as suas insti­tuições palavras seculares; foi sensível às áreas sociais novas; teve especial interesse em relação ao mundo do trabalho; praticou um estilo evangélico adaptado ao mun­do secular.

O Papa Pio IX disse-lhe em 1877: “não há dúvida ser a mão de Deus aquela que guia a vossa Congrega­ção. Ela é de uma modalidade nova, que surgiu nestes tempos de modo que possa ser Ordem religio­sa e secular, que tenha voto de po­breza e ao mesmo tempo possuir, que participe do mundo e do claustro, cujos membros sejam re­ligiosos, claustrais e livres cida­dãos. Foi instituída para que seja vista e manifeste a maneira de dar a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César. Ela flo­rescerá, dilatar-se-á milagrosamen­te, e perdurará nos séculos” (MB 13,82).

A chegada da Sociedade de S. Francisco de Sales a um tipo de­finido (também se só em parte novo) de Congregação religiosa, não exclui, seguindo as tentativas por ele feitas e então não aprova­das, outros grupos que entrem, na identidade de espírito e de missão, nalgumas destas duas aspirações e desejos que demonstram, de fato, uma corajosa abertura a novas mo­dalidades.

Hoje, várias possibilidades desse tipo são reconhecidas como váli­das pela eclesiologia conciliar e nós podemos olhar para ele, como um antigo inspirador que intuiu ao menos a oportunidade histórica e pelas quais deixou em herança um patrimônio espiritual parti­cularmente adequado.



8. O carisma e a comunhão



Na Relação final do Sínodo extraordinário dos Bispos após vinte anos do Concílio Vaticano II (1985), afirma-se que a “eclesiologia de co­munhão é a ideia central e fundamental nos documentos do Concí­lio”. Esta “eclesiologia de comu­nhão não pode ser reduzida só a questões organizativas ou a proble­mas que se relacionam simplesmente com o poder, mesmo se isto também é fundamental para a ordem na Igreja e sobretudo para uma correta relação entre unidade e pluralidade” (RP II, C, 1).

Hoje, toda verdadeira renovação deve ser projetada e realizada na comunhão. Trata-se de uma pers­pectiva profundamente exigente que comporta uma mudança de mentalidade.

Nós a podemos considerar seja em relação à Igreja, Corpo de Cristo e Sacramento universal de salvação, seja nas relações mútuas dos vários Grupos que constituem a Família Salesiana de Dom Bosco.



  1. Em nível de Igreja



O carisma permanente de Dom Bosco Fundador está destinado a inserir-se vitalmente nas dioceses e nas paróquias. De fato, não é propriedade particular de nenhum dos Grupos salesianos. Esta pers­pectiva faz repensar a herança do Fundador de acordo com a síntese doutrinal e os critérios diretivos do documento “Mutuae relationes” (14 de maio de 1978). Por isso, é importante aprofundar a sua “na­tureza eclesial” e o verdadeiro al­cance da sua “índole própria” den­tro da missão comunitária da Igre­ja, em sintonia com a coordenação dos Pastores e na mútua colabora­ção com os outros carismas.



  1. Em nível de Família Salesiana



É preciso evitar todo perigo de involução nas mentalidades e na concepção da justa autonomia de todo Grupo.

Vimos que o papel de Dom Bosco Fundador não se aplica uni­vocamente: cada Grupo tem dife­renças históricas com característi­cas próprias. Todavia cada um tem ligações com ele no espírito e na missão. Vivemos juntos uma comunhão espiritual e nos ajudamos mutuamente a conhecer e testemunhar juntos os elementos constitutivos. Disto aparecem, entre outras, duas consequências verda­deiramente importantes.

A primeira é aquela de juntos guardar a fidelidade a Dom Bosco Fundador, sabendo olhar com par­ticular interesse aos três Grupos fundados diretamente por ele (SDB, FMA, CCSS) como primeiras tes­temunhas da sua herança, mesmo se com diferentes especificações.

É, depois, importante para todos saber considerar a Sociedade de S. Francisco de Sales como porta­dora de “particulares responsabili­dades, por vontade do Fundador” que são: “manter a unidade do es­pírito e estimular o diálogo e a colaboração fraterna para mútuo enriquecimento e maior fecundi­dade apostólica” (Constituições SDB, 5).

Eis porque o “sucessor de Dom Bosco” é chamado, com o seu mi­nistério, a ser como que “o pai e o centro de unidade da Família Sa­lesiana” (Constituições SDB, 126). Não se trata de uma tarefa de go­verno, mas sim de um serviço vi­tal de animação, respeitando as justas autonomias de cada Grupo e interessado no enriquecimento de todos através da contribuição peculiar de cada um.

A segunda consequência, prática e obrigatória para todos, é a de saber cultivar e incrementar as recíprocas relações entre nós; pensemos, por exemplo, nas tantas possibilidades no campo dos estudos, dos critérios de formação, das orientações pastorais com vista dos destinatários, das programa­ções missionárias, da convergência nas iniciativas apostólicas, da sin­ceridade na fraternidade e paciente compreensão, etc.

Certamente, neste campo pode-se e deve-se fazer mais; nisto terá vantagem toda a Família e servirá à Igreja inteira, que perce­berá com maior clareza as válidas contribuições e a fecundidade do carisma permanente do Fundador.



9. Dilatar o espaço da paternidade de Dom Bosco



Dom Bosco é Fundador porque deixou uma herança viva e dinâ­mica. Procuramos sublinhar o sig­nificado eclesial e social no hoje, individuando também as suas prin­cipais fontes de vitalidade.

A eclesiologia de comunhão nos questiona no nosso sentido mais concreto de Igreja e em uma maior união e colaboração mútua.

Juntos, justamente como Família, somos um dom precioso para o Povo de Deus.

Isto significa que seremos mais fiéis às origens e que trabalhare­mos mais e melhor se soubermos crescer juntos na comunhão. Pode ser um sinal promissor o fato de estarmos aqui reunidos neste sim­pósio, no ano centenário do “dies natalis” de Dom Bosco, exatamente para lhe prestar uma particular homenagem e para aprofundar a compreensão do seu título de Fun­dador.

No Capítulo Geral Especial dos SDB (1971) compreendeu-se me­lhor que a plenitude do carisma permanente de Dom Bosco fora confiada por Deus não só a um grupo, mas a uma grande Família. No documento que esclarece o seu sig­nificado, lemos: a fidelidade dinâ­mica a Dom Bosco na intercomunicação e na colaboração fará di­latar o espaço da sua intuição pas­toral e da paternidade, que apare­cerá mais luminosa porque todo aumento de sentimentos fraternos, de união e de compromisso entre aqueles que se reconhecem seus ‘filhos’ vai exaltar a sua dimen­são. Esta paternidade adquire dimensões eclesiais: Dom Bosco, de fato, está na origem de religiosos, religiosas, leigos comprometidos e consagrados seculares que são a direta emanação do seu trabalho ou nascidos da santidade dos seus filhos. Através da corresponsabilidade e do diálogo, as incompreensíveis qua­lidades de cada um e as indispen­sáveis variedades dos ministérios, de um lado ajudarão a superar a uniformidade, de outro realizarão e reforçarão a unidade. Aqueles que têm o serviço da autoridade, têm o dever de estimu­lar essa contribuição útil na edifi­cação do Corpo de Cristo (Atos CGE 174).

Agradeçamos juntos a Deus e à Auxiliadora por nos ter dado como Fundador S. João Bosco, e proponhamo-nos uma fidelidade de co­munhão!



29