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Egídio Viganò


PUEBLA: Evento pastoral e testemunho profético


Atos do Conselho Superior


Ano LX – ABRIL-JUNHO, 1979


N. 292



Introdução. – “Puebla” proclama fortemente a originalidade da missão da Igreja e, de modo particular, da vocação sacerdotal e religiosa. – “Puebla” esclarece evangelicamente a dignidade do homem e assume com coragem a atual virada antropológica. – “Puebla” lança ao Continente um apelo característico por uma “pastoral da cultura”. – “Puebla”, enfim, faz uma clara opção pelos jovens. – Observação conclusiva. PS: oração pelas vocações.



Roma, 1º de março de 1979.



Queridos Irmãos,



voltei ontem de longa viagem que me proporcionou a oportunidade de um serviço de animação à Família Salesia­na das Antilhas, do México, da América Central e Panamá e das duas Inspetorias francesas.

O contato com os numerosos grupos de Salesianos dessas regiões fez-me observar mais uma vez a vitalidade da nossa vocação e o amor sincero que por toda a parte se devota ao nosso querido Fundador.

O acontecimento central desse mês e meio de peregri­nações é a Conferência Episcopal de Puebla, decerto um evento salvífico para o futuro da América Latina e um tes­temunho profético para a Igreja universal e para o mundo.

A festa do nosso santo Fundador, celebrada nos primei­ros dias da grande assembleia, serviu também para manifes­tar o apreço e o reconhecimento dos Bispos pela nossa vocação e presença efetiva no Continente, e para destacar a atualidade e o equilíbrio dinâmico da nossa missão juvenil e popular.

Em Puebla pude verificar, todos os dias, pode-se dizer, a plena sintonia do nosso tema capitular (“Os Salesianos evangelizadores dos jovens”) com a vasta e concreta temá­tica episcopal centrada na “Evangelização no presente e no futuro da América Latina”.

Impressionou-me sobretudo a viagem pastoral do Santo Padre ao México e as suas orientações magisteriais, que ti­veram extraordinária ressonância pela concretitude e clareza doutrinal, a tal ponto que repassou depois todo o clima dos trabalhos da assembleia.

Permiti-me anotar aqui e comunicar-vos fraternalmente algumas reflexões sobre esse evento eclesial. Julgo útil ofe­recê-las à vossa meditação, porque podem iluminar e orientar em lugares quaisquer, mesmo fora da América Latina, o trabalho salesiano.

Escolho quatro.



PUEBLA” proclama fortemente a originalidade da missão da Igreja e, de modo particular, da vocação sacerdotal e religiosa



Foi essa para mim a primeira grande reflexão. Qual era o ponto de vista e a característica original da reunião? Que tinham a dizer pessoalmente o Papa e os Bispos? Os infor­madores da opinião pública (como vimos nos dois últimos Conclaves) partem de outras categorias e de outros interes­ses. Parece que não podem compreender a função própria de Cristo na história; certamente não costumam mostrar-se em perfeita sintonia com o seu Espírito.

As multíplices especializações humanas e as ideologias em moda não tendem a perceber nem a existência nem a natureza de uma indispensável atividade salvadora na his­tória. É essa uma função exclusiva de Cristo e da sua Igreja, que exige um espaço próprio para a “vocação pastoral”. Ser “pastores” comporta uma originalidade e um nível específico de intervenção no devir humano, que se distingue da ativi­dade econômica, política e cultural.

Com razão disse em Puebla o Santo Padre: “É uma grande consolação para o Pastor universal verificar que vos congregais aqui, não como num simpósio de peritos, não como num parlamento de políticos, não como num congresso de cientistas ou técnicos, por mais importantes que possam ser tais reuniões, mas sim num encontro fraterno de Pas­tores da Igreja”.

Antes, falando aos sacerdotes e aos religiosos, havia afirmado: “Este elevado e exigente serviço não poderá ser prestado sem uma clara e arraigada convicção acerca da vossa identidade como sacerdotes de Cristo, depositários e administradores dos mistérios de Deus, instrumentos de sal­vação para os homens, testemunhas de um reino que se inicia neste mundo, mas que se completa no além. Perante estas certezas da fé, como ter dúvidas acerca da própria identidade? Por que titubear acerca do valor da própria vida? Por que hesitar no caminho empreendido?”.

Portanto, queridos Irmãos, eis uma primeira reflexão, bastante atual para nós hoje: ter consciência da originali­dade da nossa vocação na história e cultivar a sua identidade é a primeira tarefa de renascimento e eficácia de um em­penho pastoral,

A vocação de Cristo, do Padre, do Religioso é indispen­sável para a libertação e promoção integral do homem; é uma vocação grande e urgente; é uma vocação generosa e bela; é uma vocação para o crescimento e para o futuro. Cristo não é nem um técnico, nem um cientista, nem um político, mas é o homem mais necessário à história porque é o seu único salvador.

Fazer “pastoral juvenil” é colocar-se nesse espaço de atividade original de Cristo e da Igreja: os jovens têm urgente necessidade dela!



PUEBLA” esclarece evangelicamente a dignidade do homem e assume com coragem a atual virada antropo­lógica



O Papa e os Bispos falaram com entusiasmo bíblico da dignidade do homem e da grandeza da sua pessoa. O novo documento episcopal critica os dois mais fortes secularismos politicamente opostos que hoje dominam a sociedade: o Capitalismo e o Marxismo, centrados num antropocentris­mo que exclui, de fato, a Deus e nega a radical influência cultural e social da religião.

Ninguém conhece melhor e faz compreender mais pro­fundamente a dignidade do homem do que Jesus Cristo, Deus feito homem.

Existe, pois, objetivamente (diz o Episcopado latino-americano) uma genuína antropologia cristã, centrada no homem “imagem de Deus”, que é proposta na fé e é ilumi­nada pelo magistério da Igreja particularmente mediante a sua “Doutrina social”. O rico patrimônio doutrinal dessa Doutrina deve ser mais conhecido pelos crentes e fazer parte de forma cada vez mais explícita da mensagem cotidiana de evangelização.

O Papa e os Bispos em Puebla insistiram sobre a urgên­cia de novamente considerar a fundo a Doutrina social do Magistério, na qual “A Igreja propõe o que possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade” (PP 13). Tal Doutrina se deixa interpelar e enriquecer pelas ideologias naquilo que têm de positivo, mas por sua vez as questiona, relativiza e critica. Nem o Evangelho, nem a Dou­trina ou Ensinamento social que dele provém, são ideolo­gias. Ao contrário, representam para elas poderosa fonte de questionamento dos seus limites e ambiguidades. A origina­lidade sempre nova da mensagem evangélica deve ser con­tinuamente esclarecida e defendida perante os intentos de ideologização” (Puebla n. 399-400).

Eis então, caríssimos, uma segunda conclusão parti­cularmente útil para nós: dar importância objetiva à Dou­trina social da Igreja, conhecê-la, aprofundá-la, comunicá-la, para que sejamos eclesialmente atuais e evangelicamente eficientes na nossa missão juvenil.



PUEBLA” lança ao Continente um apelo característico por uma “pastoral da cultura”



O fundamento dessa escolha importante deve ser colo­cada na posição autorizada assumida pela Exortação “Evangelii Nuntiandi”, na qual o pranteado pontífice Paulo VI chamava a evangelizar a cultura e as culturas (EN 20). Para tal fim o documento de Puebla apresenta um conceito reno­vado e vitalmente histórico da cultura, no significado indi­cado com exatidão pela “Gaudium et Spes”. E desenvolve todo o belo capítulo sobre a Evangelização, centrando-o na cultura; isso orientará a pastoral a solucionar o grave dra­ma da separação entre Evangelho e cultura. O texto acentua a vinculação íntima que existe entre as culturas latino-americanas e a religiosidade popular, e em geral, entre cultura e religião.

Parece-me interessante observar que mais recentemente, ainda que em outro nível, o Santo Padre insistisse sobre essa íntima vinculação. Isso me era recordado dias atrás pelo Reitor das Faculdades Católicas de Lyon. Falando aos responsáveis pelas Universidades Católicas europeias, o Papa insistia sobre a grave tarefa que têm os Pastores de “Evangelizar com ple­nitude e de forma duradoura o vasto mundo da cultura” lembrando que a Igreja sempre deu especial importância a uma “pastoral da inteligência”.

Há, nesse campo, caros Irmãos, todo um novo relevo e uma nova ênfase de presença para a nossa missão juvenil e popular, que nos recordam as origens históricas da nossa missão. Impregnar de valores religiosos a cultura para a construção de uma nova sociedade é uma das gran­des teses de Dom Bosco. O querido P. Ricceri na sua carta sobre a “responsabilidade política” dos Salesianos já nos havia feito notar esse ponto importante, dizendo que: “a nossa vocação de Salesianos comporta uma missão religioso-cultural especialmente entre os jovens pobres e nas classes populares, tendo precisamente em vista a nova So­ciedade... Numa hora de transição como a nossa devemos saber repensar a vocação salesiana sem, todavia, traí-la. A construção de uma nova sociedade tem decerto necessidade de cultura; e a cultura, se não quer trair o homem, tem ne­cessidade de religião” (ACS n. 284, out.-dez. de 1976, p. 15). Urge, então, a nossa renovada presença na área cultural da educação, à qual nos convidou o CG21. Com efeito, a nossa missão se realiza num compromisso apostólico de síntese vivida entre Evangelho e Promoção, pelo que “evangelizamos educando e educamos evangelizando”.

Puebla destaca de forma extraordinária o âmbito popu­lar que, no pluralismo cultural latino-americano, se apresen­ta profundamente impregnado de religiosidade cristã, de sabedoria e pedagogia católica. Por isso, insiste em favor de uma evangelização que faça da piedade e da religião popular uma das metas mais concretas da renovação pastoral.

Também aqui, podemos ver indicada de forma bem concreta uma dimensão característica do nosso empenho de evangelizadores renovados, p. ex., no aspecto sacramental, mariano e devocional.



PUEBLA”, enfim, faz uma clara opção pelos jovens



Trata-se de uma das grandes opções eclesiais a favor do Continente latino-americano. É uma escolha explícita de renovação pastoral pela qual a Igreja quer demonstrar par­ticular confiança nos jovens (cf. EN 72), considerando-os a energia do futuro, educando-os para as exigências e res­ponsabilidades da “participação” e da “comunhão”, dentro de um clima espiritual de esperança e alegria. Devem tornar-se, eles próprios, protagonistas da evangelização da ju­ventude.

Participação e comunhão” são o fio condutor, teologi­camente profundo e em sintonia com os sinais dos tempos, das orientações e diretrizes de Puebla; a sua aplicação à opção pelos jovens deverá caracterizar a renovação da pas­toral juvenil.

Podemos acrescentar com particular satisfação que a outra opção de Puebla, a opção pelos pobres (não exclusiva, mas claramente preferencial), repercute necessariamente também no tipo de jovens a preferir: dá-se, pois, prioridade ao nosso setor característico da juventude popular e mais necessitada. É uma urgência de conversão pastoral, esta últi­ma dos pobres, já proclamada em Medellín, mas renovada com força pelo Papa no México e pelos Bispos em Puebla “porque a imensa maioria dos nossos irmãos continua a viver numa situação de pobreza e de miséria que se agra­vou” (Puebla n. 898). Trata-se, porém, não de uma opção classista, mas de uma opção pastoral; ela enfrenta o fato social da pobreza concreta, sem dúvida para atingir também as fortes exigências da justiça, contudo, através da impregnação do Evangelho, que exorcizando o ídolo da riqueza faça amadu­recer os crentes no espírito das bem-aventuranças, a tal ponto que a sua pobreza possa tornar-se “no mundo atual, um desafio ao materialismo, e abrir as portas a soluções alternativas da sociedade de consumo” (Puebla n. 917).

Ou seja: a opção dos pobres mais o empenho pela supe­ração das injustiças, vivida e desenvolvida com critérios evangélicos, constitui uma espécie de posição estratégica para a invenção de uma sociedade alternativa aos dois gran­des materialismos atuais, que desfraldam os respectivos projetos históricos como os dois únicos polos de um dilema insolúvel.

Seria longo, caríssimos, expor aqui toda a riqueza de conteúdos e a audácia dessa opção dos pobres feita pelo Episcopado em Puebla. A atenta leitura desse ponto do documento nos ajudará a aplicar de maneira mais realista o nosso CG21, corroborará em nós a fidelidade às grandes in­tuições evangélicas de Dom Bosco e iluminará os nossos passos nos propósitos de uma genuína conversão pastoral.

Que o Senhor nos ajude a refletir e agir!



Observação conclusiva



Permiti-me, porém, antes de concluir, uma última ob­servação.

A assembleia de Puebla começou sábado, 27 de janeiro, no grande santuário da Virgem de Guadalupe, trabalhou sob a explícita e ininterrupta invocação e proteção de Maria, e encerrou-se com a entrega oficial do documento episcopal aos pés da efígie da Patrona da América Latina pelo cardeal presidente Sebastião Baggio, em Puebla, e pelos presidentes de cada Conferência episcopal nacional no principal santuá­rio mariano do próprio País.

Maria é a Mãe da Igreja que oferece a sua ajuda nas horas mais densas de futuro. Sentia-o vivamente João Paulo II na sua oração-homilia do dia inaugural: “Oh Mãe, ajuda-nos a ser fiéis dispensadores dos grandes mistérios de Deus. Ajuda-nos a ensinar a verdade que teu Filho anunciou e a difundir o amor, que é o principal mandamento e o pri­meiro fruto do Espírito Santo. Ajuda-nos a confirmar na fé os nossos irmãos, ajuda-nos a despertar a esperança na vida eterna. Ajuda-nos a guardar os grandes tesouros encer­rados nas almas do povo de Deus que nos foi confiado”.

Eis, caríssimos, como o Papa demonstra que Maria, Mãe da Igreja, é poderosa Auxiliadora! Invoquemo-la tam­bém nós constantemente para a renovação da pastoral juve­nil e do nosso projeto educativo da bondade.

Desejo a todos perspicácia e esperança.

Em comunhão de sentimentos,



P. Egídio Viganò

Reitor-Mor





P. S.: Recomendo com insistência que se reze todos os dias pelas vocações. É indispensável para a renovação. Quando o Bem-aventurado Miguel Rua se achava moribundo, o P. Cerruti compôs uma linda jaculatória, que a partir de então passou-se a rezar na Congrega­ção. O P. Rua mandou-a ler, depois beijou-a, fê-la colo­car debaixo do travesseiro, e assim morreu. Ei-la:



Cor Jesu sacratissimum, ut bonos ac dignos operários Piae Salesianorum Societati mittere et in ea conservare digneris: Te rogamus, audi nos!”



Rezemos muito e com confiança pelas vocações.

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