Ejercísios espirituais CG26

Capítulo Geral 26 (2008)


EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS 1


José Luiz Plascencia Moncayo, SDB





Introdução: Exercícios do Espírito no Espírito



Os exercícios espirituais são uma aventura em que, com os nossos dinamismos pessoais, entram em jogo as iniciativas da graça de Deus, as propostas fascinantes de Cristo, as motivações do Espírito. Perguntemo-nos, por isso, com quais atitudes estamos iniciando esta aventura spiritual: com cansaço ou desejo? Com tristeza ou alegria? Com perturbação ou serenidade? Qual é o grau da nossa abertura à graça de Deus, da nossa coragem diante das propostas do Senhor Jesus, da disponibilidade ao Espírito? Estamos prontos para iniciar esta experiência com abertura, coragem, disponibilidade?

Os exercícios espirituais são um caminho gradual e progressivo, que apresenta etapas e horizontes. A vida espiritual é um caminho de aprendizagem; ela exige exercício. Para adquirir uma habilidade, uma atitude ou uma capacidade, é preciso aplicação metódica, exercício repetido, esforço paciente. Por exemplo, a oração é uma arte que se aprende. O atleta e o artista devem treinar, experimentar e experimentar de novo, repetir movimentos e gestos, para chegar a rendimentos elevados. "Cristão não se nasce, se torna", dizia Tertuliano. A vida espiritual comporta a prova e o combate espiritual.

Fala-se de exercícios no plural, porque esta experiência sugere-nos diversos exercícios espirituais a serem praticados. A vida espiritual exige ascese, exercício, portanto. Não se trata de voluntarismo, mas de abertura à graça de Deus, de acolhida das propostas de Cristo, de disponibilidade ao Espírito; e isso exige exercício e prática. Sugiro-vos agora alguns importantes exercícios do espírito.

1. O primeiro exercício consiste em criar as condições de atenção: concentrar-se, repousar, convergir. Segundo a etimologia latina, atenção deriva de "ad-tendere", isto é, "tender para"; trata-se de um movimento do espírito para alguma coisa. Se descobristes o sentido, o centro e a finalidade dos exercícios espirituais, a atenção é a conduta unificada dessa meta, é a tensão para esse centro, é a dedicação a essa finalidade. Criar capacidade de atenção é crescer na unificação pessoal. Os exercícios já começaram; é preciso "entrar neles", logo, deixando-nos envolver sem distração, sem superficialidade, sem dispersão. A vida espiritual desenvolve-se no coração, ou seja, no lugar das opções, das decisões, dos desejos. Ela pede-nos para ir em profundidade, descer ao coração, entrar na interioridade. Por isso, é preciso concentrar-nos no nosso coração sem incertezas e sem demoras!

2. A tradição ascética reconhece a essencialidade do silêncio para uma autêntica vida espiritual. "A oração tem por pai o silêncio e por mãe a solidão", dizia Girolamo Savonarola. Só o silêncio torna possível a escuta, isto é, a acolhida não só da Palavra, mas também d'Aquele que fala. Na experiência amorosa, o silêncio é frequentemente muito mais eloquente, comunicativo e intenso do que uma palavra. Infelizmente, o silêncio em nossos dias é raro, surdos que somos pelo rumor, bombardeados por mensagens sonoras e visíveis, submersos pelas tagarelices. A vida espiritual ressente-se dessa carência. "É inerente ao silêncio um admirável poder de observação, de clarificação, de concentração sobre as coisas essenciais", escrevia Dietrich Bonhoeffer. Do silêncio pode nascer uma palavra arguta, comunicativa, luminosa. O silêncio é o guardião da interioridade. Esta é, antes de tudo, sobriedade, disciplina e abstenção de palavras; ela pede, pois, que se façam calar os pensamentos, as imagens, os ressentimentos, as murmurações. O silêncio é o caminho para "habitare secum". Façamos juntos, pois, o exercício do silêncio atendo-nos aos tempos propostos. Não nos entretenhamos com outros em distrações inúteis. Procuremos os lugares do silêncio. Ele nos ajudará a alcançar aquele silêncio interior que acontece no nosso coração, lugar da luta espiritual.

3. Na vida espiritual, a capacidade de falar a Deus depende do escutá-Lo. A fé nasce da escuta. A oração é, antes de tudo, escuta: escuta de Deus através do sacramento da sua Palavra que são as Escrituras; escuta de Deus na história e no cotidiano; escuta de Deus através do discernimento para o qual a frequentação do evangelho nos educou. A vida cristã, e, portanto, a vida espiritual, pode ser chamada de a ascese da escuta, a arte da escuta. É preciso prestar atenção em quem se escuta, no que se escuta, como se escuta. Isso exige a ação esforçada de reconhecimento da Palavra de Deus nas palavras humanas e o discernimento contínuo da sua vontade nos eventos históricos. A escuta leva o crente a repetir com Jacó: "O Senhor está aqui e eu não o sabia" (Gn 18,16).

4. A alma da vida espiritual é a oração. "A ação mais difícil é a oração" ouviam dizer os jovens monges do ancião interrogado por eles. A oração é a nossa resposta à decisão gratuita de Deus de entrar em relação conosco. Segundo a Sagrada Escritura é Deus que busca, interroga e chama. A nossa resposta é a oração em suas formas fundamentais: a ação de graças, ou seja, o louvor, a bênção, a adoração; e o pedido, ou seja, a invocação, a súplica, a intercessão. A Revelação atesta também a dimensão da oração como busca de Deus, como abertura ao evento do encontro com Ele. Os salmos demonstram-no de modo evidente: "Ó Deus, desde a aurora eu te busco" (Sl 63). Esta dimensão relacional é o que melhor exprime a identidade da oração cristã; ela insere-nos no vivo do diálogo com Deus. Nestes exercícios não nos contentemos com a oração litúrgica; encontremos tempo para a oração pessoal, para este diálogo íntimo com Deus.



* * *



As Constituições falam dos exercícios espirituais como de uma experiência de conversão. Eles "são tempos de retomada espiritual, que Dom Bosco considerava como parte fundamental e síntese de todas as práticas de piedade Para a comunidade e para cada salesiano são ocasiões especiais de escuta da Palavra de Deus, de discernimento de sua vontade e de purificação do coração. Tais momentos de graça restituem ao nosso espírito profunda unidade no Senhor Jesus e mantêm viva a espera da sua volta" (Const. 91).

A vida do salesiano está sujeita aos riscos da superficialidade, do ativismo e da usura. É fácil deixar-se prender pela ação e não conseguir encontrar tempo para a vida espiritual. A nossa Regra convida-nos a dar importância a esses tempos fortes do espírito. Não cedamos à tentação de transformá-los em dias de estudo ou discussões. Demos importância à escuta da palavra de Deus, que nos permite discernir a Sua vontade no momento presente e nos chama à purificação do coração.

Dom Bosco escrevia a um clérigo que examinasse durante os retiros espirituais "quid sit addendum, quid corrigendum, quid tollendum, ut sis bonus miles Christi". Depois não hesitava em afirmar: "Os exercícios espirituais podem chamar-se sustento das Congregações religiosas e tesouro dos sócios que lhe pertencem". E na primeira redação do Regulamento dos exercícios escrevia: "A nossa humilde Sociedade deve ser devedora a eles do seu maior desenvolvimento, e muitos dos seus membros devem fazer depender de algum curso de exercícios o início de uma vida melhor".

Convido-vos, por isso, a viverem estes dias intensos de vida espiritual com as palavras do Papa Bento: "Durante estes dias, podereis refazer a experiência tocante da oração como diálogo com Deus, por quem nos sabemos amados e a quem, por nossa vez, desejamos amar. A todos gostaria de dizer com insistência: abri o vosso coração a Deus, deixai-vos surpreender por Cristo". Concedei-lhe o direito de vos falar durante estes dias! Abri as portas da vossa liberdade ao seu amor misericordioso! Apresentai a Cristo as vossas alegrias e as vossas penas, deixando que Ele ilumine com a sua luz a vossa mente e toque com a sua graça o vosso coração" (Discurso aos jovens à beira do Reno, Colônia 18 de agosto de 2005).



1. A ESPERANÇA



1.- O que podemos esperar?



A exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, em que João Paulo II retoma os trabalhos e as conclusões do Sínodo dos Bispos em preparação ao grande Jubileu de 2000, diz: "Ao longo do Sínodo, pouco a pouco se foi evidenciando um forte pendor para a esperança. Embora aceitando as análises da complexidade que caracteriza o continente, os padres sinodais individuaram como sendo provavelmente a urgência maior que o atravessa de Leste a Oeste, a necessidade cada vez mais sentida de esperança, que torne possível dar sentido à vida e à história e caminhar de mãos dadas" (EiE, n. 4).

O Magistério pontifício mais recente assumiu justamente a esperança como tema central. A Encíclica de Bento XVI Spe Salvi oferece-nos elementos preciosos para enriquecer a nossa reflexão sobre esta virtude teologal, e é claro que, entre outras intenções, uma das mais importantes é oferecer uma resposta, desde a perspectiva da identidade cristã, a essa necessidade não só europeia, como mundial. Citemos, entre outros textos: "Encontramo-nos assim novamente diante da questão: o que é que podemos esperar? É necessária uma autocrítica da idade moderna feita em diálogo com o cristianismo e com a sua concepção da esperança" (Spe Salvi, 22); mesmo ao indicar, igualmente que, "é preciso que, na autocrítica da idade moderna, conflua também uma autocrítica do cristianismo moderno" (ibidem).

A olhar para a Congregação em nível mundial, não podemos negar que a "aumentada necessidade de esperança" é constatada também em nossos ambientes: de modo, sem qualquer dúvida, diversificado. A escassez das vocações, com a exceção de alguma região da geografia salesiana; a fragilidade formativa das novas gerações; a problemática da juventude atual, estimulada ainda mais por fatores externos como a violência, a droga, as antigas e novas pobrezas; e, ainda mais em profundidade, também muitas vezes, o enfraquecimento da paixão apostólica e a acolhida de modelos de vida religiosa nem sempre segundo o ideal evangélico, são alguns dos elementos que não nos permitem ver o futuro com muita clareza e entusiasmo. O Reitor-Mor apresenta, em diversas partes da Carta de convocação ao Capítulo, algumas dessas realidades preocupantes da situação da Congregação (ACG 394, pp. 9-11. 17-20. 25-26, et passim).

Constata-se, durante a preparação do CG 26, um pouco em todos os lugares (talvez com algumas exceções), uma sensação semelhante. A própria insistência da Congregação em "partir de Dom Bosco para despertar o coração de cada salesiano" ao redor da identidade carismática e a da paixão apostólica pressupõe esta problemática, e quer colocar-nos em alerta diante dela.

Bem sabemos que a esperança é gerada pela fé, e sustenta o amor. Apesar disso, pode acontecer também que a fé, justamente porque se funda numa realidade histórica concreta, pode, paradoxalmente, bloquear-se diante da esperança, fechando-se na dor da recordação (etimologicamente: nostalgia) e na lamentação do passado.

Parece-me que essa situação pode ser vista claramente "pintada" na narração bíblica da vocação de Gedeão:

Veio então o anjo do Senhor e sentou-se debaixo de um carvalho em Efra que pertencia a Joás, da família de Abiezer. Gedeão, seu filho, estava debulhando e tirando o trigo da eira, para escondê-lo dos madianitas. Apareceu-lhe então o anjo do Senhor e disse: "O Senhor está contigo, valente guerreiro!" Gedeão respondeu: "Meu senhor, por favor, se o Senhor está conosco, por que nos aconteceu tudo isso? Onde estão aquelas suas maravilhas que nossos pais nos contaram, dizendo: 'O Senhor os tirou do Egito'? Mas agora o Senhor nos abandonou e nos entregou às aos dos madianitas". Então o Senhor voltou-se para ele e disse: "Vai, e com essa força que tens livra Israel da mão dos madianitas. Sou eu que te envio". Gedeão replicou: "Por favor, meu Senhor, como poderei eu libertar Israel? Minha família é a mais humilde de Manassés, e na casa de meu pai sou o último". O Senhor lhe respondeu: "Eu estarei contigo, e tu derrotarás os madianitas como se fosse um só homem" (Jz 6,11-16)

Podemos, também, sentir-nos como o Povo de Israel no exílio, recordando as maravilhas divinas do passado (e talvez esquecendo muito depressa a própria responsabilidade, como fez o povo de Israel):

Deus, ouvimos com nossos ouvidos, os nossos pais nos contaram os feitos que realizaste nos tempos deles, nos tempos antigos (...). Porém nos rejeitaste, cobrindo-nos de vergonha, não saís mais à frente das nossas fileiras (...). Tudo isso aconteceu, sem que nos tenhamos esquecido de ti nem traído a tua aliança. Nosso coração não voltou para trás, nem nossos passos se desviaram do teu caminho (Sl 44, 2.10.18-19).



2.- A Esperança perante a "Pós-modernidade"



A situação atual, em nível mundial, e, sobretudo na "cultura juvenil" não facilita, sem dúvida, a esperança.

Do ponto de vista fenomenológico, podemos sublinhar, entre outros, três traços fundamentais da esperança, como atitude humana:

* ela tende sempre para o futuro, mostrando assim o dinamismo próprio do ser humano, sempre voltado para frente: "enquanto houver vida, haverá esperança"; sem esquecer o mito do "vaso de Pandora", podemos dizer, com Aristóteles, que a esperança é "o sonho do homem acordado";

* vive-se sempre diante de um horizonte positivo; nem tudo o que virá, porém, é "digno de esperança": pode ser, ao contrário, objeto de temor ou de angústia;

* inclui um elemento de "passividade" (esperar), mas também uma atitude de quem vive esta expectativa (esperar).2

Devemos reconhecer que, com esta dinâmica de futuro, inerente ao mais profundo do ser humano, há também um perigo: não viver, no sentido mais positivo, o momento presente. Sobre isso, diz Pascal:

Nunca nos atemos ao tempo presente. Antecipamos o futuro como se ele demorasse a chegar, como se quiséssemos apressar o seu curso, ou relembramos o passado como se quiséssemos detê-lo, como se ele fosse muito fugaz. Somos tão imprudentes que erramos em tempos que não são os nossos e não pensamos no único que nos pertence; e somos tão vaidosos que pensamos em tempos que não são os nossos e fugimos sem pensar no único que existe... Quase não pensamos no presente: e, quando pensamos, é só para tirar dele a luz para dispor do futuro. O presente nunca é o nosso fim. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que jamais o sejamos (Pensamentos, n. 172)3

Infelizmente, na pós-modernidade, a experiência humana da temporalidade tornou-se particularmente problemática.

O Reitor-Mor, numa conferência aos Superiores Gerais, fazia esta análise:

O ser humano, embora vivendo sempre no presente (é uma verdade lapalissiana), é um "ser de futuro" (E. Bloch W. Pannenberg): pela sua natureza, é colocado diante do utópico, àquilo que ainda não "tem lugar" em nosso mundo e na história. Isso se pode dizer, a fortiori, das gerações jovens, que carregam essa orientação para o futuro a partir da sua identidade psicossomática, inscrita até na célula mais "humilde"

Constatamos, então, uma tragédia na situação pós-moderna: a ameaça do futuro, que domina sobre a humanidade, coloca diante de uma contradição existencial, sobretudo a geração jovem. De um lado, a exigência irresistível de um horizonte de futuro e, de outro, a falta desse horizonte. Se acrescentarmos a isso a recusa ao passado por parte da cultura juvenil atual, podemos entender a sua sensação de estar "encerrada" no mínimo espaço que o presente lhe permite, sem outra solução senão tentar "viver o instante que escapa" (o momento que foge).

Esta ameaça se manifesta duplamente: de um lado, o que J. Moltmann chamou de "a perda da inocência atômica" a partir de Hiroshima. Sabemos – e as notícias mais recentes no-lo recordam ainda – que desde algumas décadas, e pela primeira vez na história do mundo e do homem nele (daquilo que sabemos), existe a possibilidade real (que depende, em concreto, da decisão de algumas pessoas) que toda a humanidade desapareça, como conseqüência de uma conflagração nuclear. O fato de os chefes das nações chegarem a eventuais acordos a respeito, não elimina o perigo. Como diz o mesmo Moltmann, jamais recuperaremos a inocência perdida. "A época em que vivemos é, mesmo se tivesse que durar infinitamente, a última época da humanidade... Vivemos no tempo do fim, ou seja, daquela época em que a cada dia podemos provocar o seu fim".

Por outro lado – e não de todo desligado do anterior – encontramos esta ameaça na deterioração ecológica, universal e irreversível; pensemos na poluição atmosférica, na diminuição da água doce, na destruição das florestas, no abuso vertiginoso de energias não renováveis. Como disse o mesmo Moltmann, "somos todos iguais... diante do buraco de ozônio".

Esta "supressão a partir de fora" do horizonte de futuro é um fator típico do nosso tempo, e é fundamental para compreender o obsessivo apego ao presente, e a necessidade de "satisfações" imediatas que caracteriza a era pós-moderna, pois não á mesma coisa "querer viver o hoje" na perspectiva do amanhã e ter que se ancorar no hoje, porque talvez o amanhã não exista... Há alguns dias, um jornal, a respeito da recensão de um livro do Prêmio Nobel de Literatura, o escritor húngaro Imre Kertész, usava esta expressão: "Será possível ter filhos depois de Auschwitz"? (evocação da célebre frase: "Será possível crer em Deus depois de Auschwitz"?). É a pergunta que hoje se colocam tantos jovens diante do matrimônio e da família, não com a ilusão de outros tempos, mas com a angústia diante do futuro no qual lhes caberá viver; vale à pena, pois, trazer novos seres ao mundo?

Não resta dúvida de que esta "privação de futuro", num sentido muito diferente, atinge também a vida consagrada, particularmente as novas gerações (Para uma vida consagrada fiel. Desafios antropológicos à formação, USG 21-23 de maio de 2006).

A "modernidade" pode ser descrita, a esse respeito, como a atitude de quem, ao recusar o passado, projeta-se para o futuro, e coloca todas as suas expectativas no futuro; a pós-modernidade, porém, seria como uma reação diante do ingênuo otimismo moderno, como um situar-se, o mais serenamente possível, no presente, e viver o "carpe diem". Um dos textos bíblicos mais "atuais", segundo meu modo de ver, é o testemunho do velho Eleazar, durante a guerra dos Macabeus:

"Não é digno da nossa idade o fingimento. Isto levaria muitos jovens a se persuadirem de que Eleazar, aos noventa anos, passou para os costumes pagãos. E por causa do meu fingimento, por um pequeno resto de vida, eles seriam enganados por mim, enquanto, de minha parte, eu só ganharia mancha e desprezo para minha velhice (...). Por isso, partindo da vida agora, com coragem, eu me mostrarei digno da minha velhice. E aos jovens deixarei o exemplo de como se deve morrer honrosamente, com prontidão e valentia, pelas veneráveis e santas leis". Dito isto, encaminhou-se decididamente para o suplício (...). Foi assim que ele partiu desta vida, deixando sua morte como exemplo de coragem e memorial de virtude, não só para os jovens, mas para a grande maioria do seu povo (2Mc 6,24-25.27-28.31).



3.- A Esperança na Revelação Bíblica



Diversamente de outras concepções de vida e de história, a experiência de Israel plasmada na Bíblia apresenta Deus como um "Deus de êxodos", que faz sempre sair da segurança do presente para um futuro prometedor, garantido (no sentido mais pleno da palavra, enquanto objeto da promessa), mas sempre inseguro: se não houver fé, não terá sentido nem mesmo este dinamismo de futuro e de êxodo. "Se estivessem referindo-se à terra que deixaram, teriam a oportunidade de voltar para lá. Mas, agora, eles desejam uma pátria melhor, isto é, a pátria celeste. Por isto, Deus não se envergonha deles, ao ser chamado 'o seu Deus', pois até preparou uma cidade para eles" (Hb 11,15-16).

Toda a história de Israel pode ser vista, a partir da fé em Deus, como tensão constante para o futuro, com uma clara configuração: confiança no cumprimento das promessas do Deus fiel (fides – fidelitas – confiança – spes) centrada na Aliança.

A falta de fé traduz-se, simetricamente, na desesperança e no desespero, as duas faces opostas da mesma moeda e, consequentemente, no querer retornar ao passado: "Quem dera que tivéssemos morrido pela mão do Senhor no Egito, quando nos sentávamos junto às panelas de carne e comíamos pão com fartura! Por que nos trouxestes a este deserto? Para matar de fome toda esta gente? (Ex 16,3 et passim).

Toda a história do Povo de Israel se vê "atravessada" pela promessa de Deus. Apesar da infidelidade e da ingratidão dos israelitas, os profetas pré-exílicos, sobretudo Jeremias, que ameaçam o castigo de Deus e a destruição da Aliança por causa dessa infidelidade (cf. Jr 13; 19), anunciam sempre uma Nova Aliança (Jr 31,31ss.; Ez 36,24ss.; Deutero-Isaias...).

Na extraordinária visão de Ez 37, os ossos ressequidos são o símbolo mais expressivo: «Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. Eles dizem: 'Nossos ossos estão secos, nossa esperança acabou, estamos perdidos!' Por isso, profetiza e dize-lhes: 'Assim diz o Senhor Deus: Ó meu povo, vou abrir as vossas sepulturas. Eu vos farei sair de vossas sepulturas e vos conduzirei para a terra de Israel'» (Ez 37,11-12).

No Novo Testamento, mais do que buscar uma citação pontual, o acontecimento Cristo é, em si mesmo, o cumprimento definitivo ("escatológico") da promessa de Deus. A morte de Jesus mostra-nos, infelizmente de modo dramático, como os pensamentos de Deus não são os pensamentos humanos (cf. Is 55,8ss.),

Para quem crê no "Deus de Jesus Cristo", porém, "a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Com efeito, quando éramos ainda pecadores, foi então, no devido tempo, que Cristo morreu pelos ímpios (...). Pois bem, a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores" (Rm 5,5-6.8). Por isso, "bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua grande misericórdia, pela ressurreição dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo para uma esperança viva, para uma herança que não se desfaz, não se estraga nem murcha, e que é reservada para vós nos céus. Graças à fé, e pelo poder de Deus, estais guardados para a salvação que deve revelar-se nos últimos tempos" (1Pd 1,3-4).

Encontramos aí, significativamente, os três tempos: o passado da fé, o futuro da esperança e o presente da fidelidade de Deus e do nosso empenho cristão no amor (cf. os versículos seguintes, 1Pd 1,6-9).

Bento XVI diz que "Paulo lembra aos Efésios que, antes do seu encontro com Cristo, estavam 'sem esperança e sem Deus no mundo' (Ef 2,12)" (Spe Salvi, 2). Este é, talvez, o texto bíblico mais citado na Encíclica; o tema ainda está ao menos nos números 3, 5, 23 e 27, evidentemente em contextos diversos.

Um dos livros do NT que mais claramente desenvolve a relação entre as três virtudes teologais é a Carta aos Romanos; temos, concretamente sobre a esperança, alguns textos fundamentais:

* Em primeiro lugar, apresenta-nos a figura de Abraão sob esta perspectiva: "Esperando contra toda esperança, ele firmou-se na fé e, assim, tornou-se pai de muitos povos" (Rm 4,18).

* O segundo texto apresenta uma concatenação, em certo sentido, "invertida", de diversas virtudes típicas do cristão: "a tribulação gera a constância, a constância leva a uma virtude provada e a virtude provada desabrocha em esperança. E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5,3b-5).

* No capítulo 8, recorda-nos que a esperança mira ao futuro: "Pois é na esperança que fomos salvos. Ora, aquilo que se tem diante dos olhos não é objeto de esperança: como pode alguém esperar o que está vendo? Mas, se esperamos o que não vemos, é porque o aguardamos com perseverança" (Rm 8,24-25).

* Pelo final, há sobre isso dois textos muito belos no capítulo 15: "Tudo o que outrora foi escrito, foi escrito para nossa instrução, para que na constância e consolação que nos dão as Escrituras, sejamos firmes na esperança" (Rm 15,4). E, enfim: "O Deus da esperança vos encha de toda alegria e paz, em vossa vida de fé. Assim a vossa esperança transbordará, pelo poder do Espírito Santo" (Rm 15,13).

Outro livro do Novo Testamento muito rico a respeito da esperança é a carta aos Hebreus. Também aqui o Papa aprofunda na Encíclica, sobretudo dois textos: 10,34 e 11,1 (a este último, ele dedica uma ampla – e polêmica – exegese) (Spe Salvi, 7-9).

Gostaria de completar esta pequeníssima reflexão bíblica com uma expressão muito bela de S. Paulo: "O amor é paciente (...) espera tudo" (1Cor 13,4.7). Recorda-nos, enfim, que o amor vai mais além da esperança, justamente porque... é a única atitude que pode esperar tudo e sempre. Neste sentido, podemos dizer parafraseando Hans Urs von Balthasar, que "só o amor é digno de esperança".



4.- Dom Bosco, homem de esperança



É muito significativo constatar que encontramos uma inclusão linguística a este respeito em nossa Regra de Vida, e que abraça as nossas Constituições em seu conjunto. O artigo 1º indica-nos como certeza de fé que a nossa Missão não é só obra humana, mas primeiramente Vontade de Deus, e constitui "o apoio da nossa esperança" (C 1). E o último artigo não fala da iniciativa de Deus, mas da nossa colaboração com Ele, na realização da Missão que nos foi confiada: a nossa fidelidade torna-se "penhor de ESPERANÇA para os pequenos e para os pobres" (C 196).

Mesmo que não seja explicitamente mencionada, a esperança está muito presente na seção que delineia a identidade e o espírito salesiano, sobretudo nos artigos 17-19. No contexto dos conselhos evangélicos, conclui-se a sua apresentação global com uma frase que inclui, ao mesmo tempo, visão de fé e compromisso presente: o salesiano é um "educador que anuncia aos jovens 'novos céus e nova terra', estimulando neles os compromissos e a alegria da esperança" (C 63).

Manifesta-se, em tudo isso, a nossa "filiação" em relação ao nosso Pai Dom Bosco, homem de extraordinária "capacidade de esperança"; ou melhor, homem que soube integrar à perfeição as três dimensões da atitude teologal do cristão: fé-esperança-caridade.

Para não ficar em afirmações genéricas, sublinharemos, de maneira muito breve e quase esquemática, três aspectos da maneira com que o nosso Pai viveu a esperança: "temperamental" – educativa – teologal.

- Ao buscar, como sempre, a união entre natureza e graça (cf. C 21), sem esquecer que ambas são dons de Deus, podemos encontrar nele uma tendência temperamental à esperança: ele demonstra uma capacidade extraordinária de transformar as dificuldades em desafios que o estimulam e impelem a ir avante; encontram-se nele, até o último momento da sua vida, o entusiasmo e a ilusão que derivam do seu amor apaixonado e apostólico pelos jovens. Não foram tempos fáceis aqueles nos quais ele viveu (em nenhum sentido); apesar disso, jamais se lamentou deles, nem recordou com nostalgia o tempo passado (cf. C 17).

- Em Dom Bosco, a esperança é uma virtude educativa: quem trabalha com meninos e jovens, precisa talvez mais do que todos, da esperança, mesmo tendo, também nós, a experiência mencionada no salmo 126,6:

Quando vai, vai chorando, levando a semente para plantar;

mas quando volta, volta alegre, trazendo os seus feixes.

Na educação, porém, este "voltar" não acontece depois de alguns dias, ou meses, mas, no melhor dos casos, depois de muitos anos... Por isso, é indispensável, no trabalho educativo, a espera e a esperança.

Encontramos novamente, neste campo, a relação entre esperança e amor: só quem ama pode esperar (em seu sentido mais profundo) na pessoa amada: ressoa aqui o eco da frase paulina: "o amor tudo espera" (1Cor 13,7). Ficaria feliz em aprofundá-lo, ao menos somente com uma frase, que não é um simples jogo de palavras, mas expressão de uma maravilhosa realidade: só quem nos ama pode acreditar que somos melhores do que somos, e é capaz de "esperar" em nós; mas só podemos ser melhores do que somos se alguém nos ama... E Dom Bosco fez disso uma realidade, de maneira extraordinária.

- Enfim, e não podia ser diferente num santo como ele, encontramos no mais profundo do seu ser uma atitude de esperança que não se limita a este mundo e a esta vida. A esperança, apesar de tudo, não o impedia de viver intensamente o presente: com o olhar fixo no céu, mas com os pés bem plantados na terra. Parecem inspiradas no exemplo do nosso Pai, as palavras do Servo de Deus João Paulo II na Exortação Apostólica Vita consecrata: "É preciso confiar em Deus como se tudo dependesse dele e, ao mesmo tempo, empenhar-se generosamente como se tudo dependesse de nós" (VC 73).

Em seu Testamento Espiritual, encontramos palavras comoventes: "Adeus, queridos filhos, adeus. Espero-vos no céu (...). Eu vos deixo aqui na terra, mas apenas por pouco tempo. Espero da infinita misericórdia de Deus que um dia nos possamos encontrar todos na feliz eternidade. Lá vos espero" (Constituições, Apêndice, p. 295-296). Também aqui encontramos a dimensão comunitária da vida eterna, na qual tanto insiste o Santo Padre: "A nossa esperança é sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é verdadeiramente esperança também para mim" (Spe Salvi, 48).







5.- Conclusão

Encontrei uma narração muito simples, mas simpática e significativa. Uma velha senhora estava diante da morte, mas conservava toda a sua lucidez. Sua melhor amiga, sempre ao lado dela, perguntava-lhe: "Você quer alguma coisa especial, para conservar com você depois da morte?" Ela respondeu: "Gostaria que me enterrassem com um garfo nas mãos". "Um garfo?", perguntou, com espanto, a amiga. "Sim, um garfo. Quando ia, às vezes, a uma festa sempre conservava o garfo, depois dos primeiros pratos, porque sabia: ainda falta o melhor... Assim, todos os que vierem rezar e ver o meu corpo, quando perguntarem: por que o garfo? você poderá responder em meu nome: Porque ela sabia que o melhor... ainda estava para chegar!"

No fundo, é esta também a motivação última e mais profunda da nossa vida e do nosso trabalho (aquilo que Dom Bosco chamava, com encantadora simplicidade, o "pedaço de paraíso" no jardim salesiano): "Para o salesiano, a morte é iluminada pela esperança de entrar na alegria do seu Senhor" (C 54).

O hino espanhol do Ofício de Leituras, na memória dos salesianos defuntos, exprime-o de maneira comovente, simples e, ao mesmo tempo, profunda:



¡Piensa lo que será!

Saltar a tierra, ¡y ver que es cielo ya!

Pasar de la borrasca de la vida

¡a la paz sin medida...!

De un brazo asirte y ver, al irle en pos,

¡que es el brazo de Dios!

Beber a pulmón pleno un aire fino…

¡y es el aire divino!



Ebrios de dicha, oir a un querubín:

¡”Es la dicha sin fin!”

Abrir los ojos, inquirir qué pasa,

Y oir decir a Dios:

¡Ya estás en casa!”

¡Oh, el inmenso placer

De abismarse en tu mar!

Cerrar los ojos, y empezar a ver;

Pararse el corazón, ¡y echarse a amar!

Pensa como vai ser!

Descer à terra, e ver que já é o céu!



Passar da tempestade da vida

à paz sem limites!

Dar o braço e, ao segui-lo,

ver que é o braço de Deus!

Aspirar plenamente o ar fresco…

e é o hálito divino!



Ébrios de alegria, ouvir um querubim:

É a felicidade sem fim!”

Abrir os olhos, perguntar o que se passa,

e ouvir Deus, que diz:

"Já estás em casa!"

Oh! imenso prazer

de imergir no teu mar!

Fechar os olhos, e começar a ver;

parar o coração, e lançar-se no amor!



ORAÇÃO – A ESPERANÇA



Maria, Mãe da Esperança,

Caminha conosco!

Ensina-nos a proclamar o Deus vivo,

Ajuda-nos a dar testemunho de Jesus, o Único Salvador;

Faze de nós servidores do próximo,

acolhedores dos necessitados, agentes de justiça,

construtores apaixonados de um mundo mais justo;

intercede por nós enquanto trabalhamos na história

certos de que o plano do Pai será cumprido.



Aurora de um mundo novo,

mostra-te Mãe da esperança e cuida de nós.



Cuida de todos os jovens, esperança do futuro,

para que responderem generosamente ao chamado de Jesus.

Cuida dos responsáveis das nações:

que eles se empenhem na construção da casa comum

em que a dignidade e os direitos de cada um sejam respeitados.



Nós te pedimos pela Congregação e pela Família Salesiana:

ajuda-nos a ser sempre um penhor de esperança

para os pequenos e os pobres,

especialmente para os jovens mais necessitados do amor de Deus.



Ensina-nos a amá-los, como ensinaste a Dom Bosco:

instila em nós uma firme esperança na resposta deles,

mesmo que muitas vezes não vejamos o fruto do nosso trabalho.



Maria, dá-nos Jesus!

Faze com que o sigamos e o amemos!

Ele é a esperança da Igreja e da humanidade.

Ele vive conosco, em nosso meio,

na sua Igreja.

Contigo, dizemos:

"Vem, Senhor Jesus":

que a esperança da glória

derramada por Ele em nossos corações

dê frutos de justiça e de paz!



2 – A MÍSTICA DO CARISMA: DA MIHI ANIMAS...



Ao iniciar a Carta de Convocação do CG 26, o Reitor-Mor escreve: «Amadureci há algum tempo a convicção de que hoje a Congregação precisa despertar o coração de cada irmão com a paixão do "Da mihi animas"» (ACG 394, p. 7). Este será o cerne da nossa reflexão.



1.- “Da mihi animas”: mística e ascese salesianas



Pouco mais adiante, na mesma Carta, o P. Pascual recorda-nos um texto relevante da nossa Tradição salesiana:

«O lema de Dom Bosco é a síntese da mística e da ascética salesiana, como é expressa no "sonho dos dez diamantes". Aqui se cruzam duas perspectivas complementares: a do rosto visível do Salesiano, que manifesta a sua audácia, a sua coragem, a sua fé, a sua esperança, a sua entrega total à missão, e a do seu coração escondido de consagrado, cuja nervura é constituída pelas convicções profundas, que o levam a seguir Jesus em seu estilo de vida obediente, pobre e casto (p. 9); a razão de sua incansável ação para 'a glória de Deus e a salvação das almas» (p. 8).

Embora distinguindo as duas partes do lema, tomado da Sagrada Escritura (Gn 14,21; não entramos aqui em discussões exegéticas), convém não as separar: mística e ascese não podem deixar de ser entendidas juntas. Recordemos a imagem apresentada em relação a isso pelo documento sobre a Vida fraterna em comunidade: «a comunidade, sem mística (comunhão) não tem alma, sem ascese (vida comum) não tem corpo» (n. 23). Retomemos, pois, esta relação entre mística e ascese em sua mais plena união, que se torna também o seu autêntico ponto de partida: o amor.

Primeiramente, do ponto de vista formal, este lema é uma oração. "Justamente por ser oração, ela faz compreender que a missão não coincide com as iniciativas e as atividades pastorais. A missão é dom de Deus, mais do que trabalho apostólico; a sua realização é oração em ato" (ACG, p. 8). Recordemos, ainda, as expressões de Jesus, no discurso do Pão da Vida: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrair (...). É por isso que eu vos disse que ninguém pode vir a mim, a não ser que lhe seja concedido pelo Pai» (Jo 6,44.65). Neste sentido, é uma oração de impetração: pedimos a Deus que nos entregue os jovens a fim de salvá-los. Temos consciência daquilo que ousamos pedir ao Senhor, da enorme responsabilidade que o nosso lema implica? Nada menos que Lhe pedir que nos confie «a porção mais delicada e preciosa da sociedade humana» (C 1), os jovens... Estamos à altura desse pedido?





2.- "... A Glória de Deus e a Salvação das almas..."

Fundamentalmente: o que pedimos a Deus, quando rezamos: Da mihi animas? Esta pergunta não nos leva a uma mentalidade espiritualista, dicotômica, desligada da realidade integral e histórica dos jovens?

Esta objeção poderia ter algo de legítimo, mas é desmentida na prática, torna-se puramente teórica em nosso tempo, sobretudo à luz do trabalho realizado pela Congregação nas diversas partes do mundo. Pedir as "almas" ao Senhor foi sempre entendido pela Congregação como expressão metonímica para designar a pessoa integral: qualquer jovem e todos os jovens, em sua realidade corpóreo-espiritual são, "em potência", destinatários da nossa Missão. Por isso, o nosso trabalho é essencialmente educativo-pastoral, concretizando a Missão, que «participa da missão da Igreja, que realiza o plano salvífico de Deus, o advento do seu Reino, levando aos homens a mensagem do Evangelho, intimamente unida ao desenvolvimento da ordem temporal» (C 31).

Pessoalmente, considero que o problema continua a ser outro. Dito sinteticamente, e retomando o caráter metonímico da expressão, a questão sobre a especificidade da palavra "alma" ainda continua sem uma resposta satisfatória.

E jamais se terá esta resposta ao esquecermos que a promoção integral, que Dom Bosco buscou em todos os momentos para os seus jovens, tem a salvação deles como horizonte último e definitivo. Se esta não for também a nossa meta no trabalho educativo e pastoral, não iremos além de uma organização mais ou menos eficaz para o desenvolvimento da juventude, mas neste caso não seremos mais um movimento carismático, cuja missão não é outra que ser «sinais e portadores do Amor de Deus aos jovens, especialmente aos mais pobres» (C 2).

Procurando exprimi-lo num esquema muito simples, diria:

Condenação eterna




Expressões”

da

condenação

SITUAÇÃO

CONCRETA

DOS

JOVENS

Mediações

da

salvação


Salvação

eterna



O centro, como é evidente, representa a realidade juvenil atual; os extremos correspondem a uma visão cristã "tradicionalista" da situação humana diante de Deus, como se tudo fosse "jogado" apenas na salvação e condenação eterna; os textos em cursivo, nos espaços intermediários, exprimem uma visão mais "atual" da situação, mas, torna-se exclusiva, arrisca-se a ser também excludente, e pode conter o perigo de esquecer as "realidades últimas", os "novíssimos". O conjunto corresponde à visão integral, a única que anima e resulta em justiça plena ao nosso trabalho salesiano.

Só quando procuramos «trabalhar pela salvação da juventude» (cf. C 12), o nosso trabalho se torna experiência de Deus. «A glória de Deus e a salvação das almas foram a paixão de Dom Bosco. Promover a glória de Deus e a salvação das almas equivale a conformar a própria vontade à de Deus, que comunica a si mesmo como Amor, manifestando dessa forma a sua glória e o seu imenso amor pelos homens, que deseja que todos sejam salvos. Num fragmento como que único da sua "história da alma" (1854), Dom Bosco confessará o próprio segredo quanto às finalidades da sua ação:"'Quando me entreguei a esta parte de sagrado ministério, entendi consagrar todo o meu trabalho para a maior glória de Deus e a vantagem das almas, entendi dedicar-me a fazer bons cidadãos nesta terra, para que depois fossem, um dia, dignos habitantes do céu. Deus ajude-me a poder continuar assim até o último respiro da minha vida. Assim seja"» (ACG 394, 36-37).

Convém recordar ainda uma vez que a "salvação" não significa, utilizando uma imagem simples, "apenas chegar ao paraíso". Para Dom Bosco, o ideal da educação salesiana é a santidade, a "medida elevada" que o Santo Padre João Paulo II nos apresenta como meta e programa da ação total de toda a Igreja na Novo Millenio Ineunte (n. 30-31).

Mesmo para os seus meninos, a maioria dos quais não provinha de ambientes "privilegiados" (nem do ponto de vista sócio-econômico, nem religioso), Dom Bosco propôs um programa de espiritualidade tal que todos pudessem segui-lo concretamente na vida cotidiana. Estava convencido de que somos todos chamados à santidade, também os jovens, que podem fazer um caminho espiritual análogo ao dos santos adultos. Esse caminho, orientado pelo guia espiritual, leva ao engajamento oblativo e alegre de si no cotidiano, e encontra os seus momentos de força na oração, nos Sacramentos e na devoção mariana. Exprime-se na atenção caridosa ao próximo, numa vivência alegre e dinâmica: «nós fazemos consistir a santidade em estar sempre alegres».

Por isso, ele procurou tornar mais acessível o ensinamento tradicional da Igreja, adaptando-o de modo concreto e conveniente à idade juvenil. Domingos Sávio, Miguel Magone, Francisco Besucco são testemunhas da espiritualidade juvenil de Dom Bosco. Embora nem todos tenham chegado à santidade de altar, são todos, sem dúvida, exemplos de vida cristã com pleno sucesso. A narração de suas vidas e, sobretudo, de suas mortes exemplares mostra como Dom Bosco os tenha como adentrados no Reino de Deus, no Paraíso.

Justamente aquele menino em quem menos se podia imaginar esse ideal de santidade, Miguel Magone, é um exemplo de vida virtuosa e santa, e Dom Bosco escreve: «Nós teríamos certamente desejado que aquele modelo de virtude tivesse permanecido no mundo até a mais tarda velhice: quer no estado sacerdotal, ao qual se mostrava inclinado, quer no estado laical, ele teria feito muito bem à pátria e à religião». Encontramos aqui, com plena clareza, o ideal humano e cristão do jovem, segundo Dom Bosco.



3.- Paixão do homem, de Cristo, de Deus...



É muito interessante e significativo encontrar a palavra "paixão" na apresentação que o Reitor-Mor fez do lema de Dom Bosco. É, sem dúvida, um termo que se introduziu de maneira progressiva na linguagem do nosso tempo; não saberia dizer se também acontece o mesmo no pensamento. Há poucos anos tinha só um significado positivo relativo à "paixão de Cristo", e nesse caso, só porque se considerava equivalente ao seu sofrimento e morte na cruz (cf., por exemplo, o filme de Mel Gibson). À pergunta: Quando começa a paixão de Cristo? a resposta era unânime e imediata: "no dia da sua morte".

Um escritor russo, D. Merezhkovsky, diz a propósito: «È muito estranho que a Igreja ao considerar "as paixões" como algo ruim e a sua ausência como sinal de santidade, tenha tido a bravura de chamar de "paixão" o seu maior Mistério».4

Podemos aprofundar progressivamente na análise da paixão através de três momentos: antropológico, cristológico e teológico.

1.- A paixão (e as paixões), no sentido antropológico, era algo considerado como negativo, ligado ao pecado ou, de qualquer modo, à imperfeição da concupiscência; muitas vezes, o modelo de homem consistia na ausência absoluta das paixões ou, ao menos, no seu equilíbrio e controle, procurando o "caminho mediano" (aurea mediocritas), mesmo se a palavra que, literalmente, exprimia esse ideal não fosse muito agradável: a apatia. Diante dessa mentalidade, vale a pena recordar as belas palavras, intencionalmente provocatórios, de S. Kierkegaard: «Perde menos quem se perde na própria paixão do que quem perde a própria paixão».

Particularmente, gostaria de fazer uma referência à temática relacionada ao amor humano e, concretamente, ao eros. Como Josef Pieper sublinha em seu extraordinário livro Sobre o Amor, o eros foi objeto de uma campanha difamatória e caluniosa, entendido como sinônimo de sexualidade e, às vezes, até mesmo, da sua expressão doentia. Talvez já não seja mais assim; em todo caso, porém, essa reivindicação do eros está muito ligada, ainda hoje, à valorização da sexualidade, sendo no fundo, duas realidades completamente diversas. Parece-me que nem mesmo a extraordinária Encíclica de Bento XVI Deus Caritas Est, e a Mensagem para a Quaresma de 2007, ainda mais "avançada", penetraram de maneira suficiente no pensamento cristão.

É indispensável que, como educadores-pastores, sejamos capazes de formar pessoas apaixonadas, que saibam amar e ser amados/as. Recordemos que uma das prioridades da nossa educação humana e cristã, no discernimento feito em 1990 no Capítulo Geral 23 foi justamente esta: a educação ao amor e no amor. Creio que essa preocupação continua a ser mais atual do que nunca.

2.- Em perspectiva cristã, falar hoje da "paixão" de Jesus Cristo, na linguagem teológica e espiritual5 refere-se sempre mais ao seu Amor como razão última da entrega de sua vida por nós: «Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos» (Jo 15,13).

Podemos dizer, nessa direção, sem cair numa tautologia, que a paixão de Jesus leva à sua paixão. Muito se caminhou ao procurar tirar de Jesus, Filho de Deus feito Homem, a "apatia" que durante muitos séculos impediu uma compreensão plena da sua Humanidade, e defendeu um monofisismo disfarçado. Como diz o Reitor-Mor, «no programa de Dom Bosco ecoa a expressão 'tenho sede', pronunciada por Jesus na cruz, enquanto entrega a própria vida para realizar o plano do Pai (Jo 19,28). Quem faz própria esta invocação de Jesus, aprende a compartilhar a sua paixão apostólica "até o fim"» (p. 8).

Pressupondo tudo isso, não podemos, porém, deter-nos aqui; seria ficar no meio do caminho, pois poderia parecer que a "paixão" de Jesus seja apenas conseqüência da Encarnação, do seu «amar com coração de homem», como diz de maneira muito bela o Concílio Vaticano II (GS 22); no fundo, porém, nada nos diria sobre como Deus é em Si mesmo. Neste caso, não seria a revelação de Deus, mas a sua ocultação.

3.- O sentido mais profundo desta paixão é teológico: como diz Moltmann, de maneira sintética, «a paixão de Cristo revela-nos a paixão de um Deus apaixonado».

No fundo, o ideal humano da apatia era um reflexo do anseio de "tornar-se Deus", de ser o mais possível semelhante a Ele. Esse desejo não é, em absoluto, negativo ou pecaminoso: fomos criados à Sua imagem e semelhança! Como diz Santo Tomás de Aquino, de maneira extraordinária, «prius intelligitur deiformis quam homo»! (devemos entender o ser humano, antes de tudo, não como homem, mas como deiforme). O erro fundamental está na imagem não adequada de Deus, ao crer que ele está além dos sentimentos e das paixões; que se trata, afinal de contas, de um "Deus apático", e este seria o sentido da sua Onipotência: "Deus lá, no seu Céu, gozando da felicidade plena; e eu com vontade de ser semelhante a esse Deus, aqui na terra".

A respeito disso, o mesmo Moltmann afirma: «O homem desenvolve a própria humanidade sempre em relação à divindade do seu Deus. Experimenta o próprio ser em relação ao que lhe aparece como ser supremo. Endereça a própria vida para o Valor último. Decide-se, fundamentalmente, por aquilo que lhe diz respeito de modo absoluto (...). A teologia e a antropologia encontram-se numa relação de intercâmbio recíproco (...). O Cristianismo primitivo não foi absolutamente capaz de opor-se ao conceito de apátheia que o mundo antigo propunha como axioma metafísico e ideal ético. Nele condensavam-se a veneração pela divindade de Deus e a aspiração à salvação do homem».6

O Reitor-Mor refere-se também a esta raiz da nossa paixão apostólica quando, ao falar da formação, indica: «É preciso formar pessoas apaixonadas. Deus nutre uma grande paixão pelo seu povo; a vida consagrada olha com atenção para este Deus apaixonado. Ela deve, pois, formar pessoas apaixonadas por Deus e como Deus» (p. 27). Em sua Mensagem da Quaresma, Bento XVI afirma: «Ezequiel (...) ao falar da relação de Deus com o povo de Israel, não teme servir-se de uma linguagem ardorosa e apaixonada (cf. Ez 16,1-22). Os textos bíblicos indicam que o eros faz parte do coração mesmo de Deus: o Onipotente espera o 'sim' de suas criaturas como um jovem esposo o da sua esposa».



4.- A paixão apostólica de Dom Bosco



Tentemos concretizar, em perspectiva salesiana, esta "nova imagem de Deus": será, decerto, um enriquecimento extraordinário, também do ponto de vista teológico, mas, sobretudo, na práxis concreta da nossa Missão.

É necessário dizer que, obviamente, não é apenas uma questão de palavras: corremos o risco de versar vinho novo (e ótimo!) em odres velhos. Por outro lado, porém, também devemos dizer que os cristãos autênticos – em primeiro lugar, os santos e as santas – "intuíram" isso, talvez sem ter as categorias conceituais e lingüísticas mais adequadas para exprimi-lo: a experiência autêntica do Deus de Jesus Cristo não se esgota nas idéias ou nas palavras!

Podemos acertadamente caracterizar Dom Bosco como homem apaixonado, cheio da paixão do Amor, o que, no fundo, significa do ponto de vista cristão, cheio de Deus. Entretanto, para além dessa bela expressão, a fim de que não fique puramente retórica, queremos perguntar-nos: Quais os elementos que esta nova visão pode oferecer para a renovação, também teológica, da paixão de Dom Bosco?

* Em primeiro lugar, podemos dizer que nosso Pai compartilha a paixão de Deus pela salvação da humanidade, concretamente, dos jovens: em particular os mais pobres, abandonados e em perigo (cf. C 26). Este seria o sentido mais profundo da "compaixão com Deus". Deixar de levar isso a sério, leva-nos de novo à apatia teológica, ou somente à preocupação intramundana pela promoção humana dos jovens. Como dizíamos anteriormente: pedir a Deus que nos conceda os jovens é levar muito a sério o fato de querermos colaborar com Ele, sentir com Ele, sofrer com Ele, por causa deles...

* Em segundo lugar, Dom Bosco é particularmente sensível à manifestação do Amor de Deus: o «não basta amar...», além de ser uma expressão admirável do seu imenso coração e, também, um elemento formidável na educação, possui extraordinária densidade teológica. No fundo, todo o plano de salvação de Deus pode ser sintetizado numa única palavra: epifania. Consiste, não só em amar-nos, mas em manifestar-nos o seu Amor em Cristo (cf. Rm 8,39). Dedicaremos uma das reflexões seguintes a este tema.

* A paixão educativo-pastoral de Dom Bosco sublinha, de maneira absoluta, a gratuidade do seu amor, como expressão da Graça de Deus, que não é "alguma coisa", mas é Deus mesmo, que se nos entrega plenamente em sua Realidade trinitária, sem nenhum mérito da nossa parte. Também isso será objeto de um aprofundamento posterior.

* De outro lado, na vida e no sistema educativo de Dom Bosco, a resposta do jovem ocupa um lugar fundamental. Melhor ainda, o "não basta amar..." leva nesta direção: «Quem sabe que é amado, ama; e quem é amado alcança tudo, especialmente dos jovens» (Carta de Roma, Const. e Reg. p. 275). Ecoa em nosso coração o «procura fazer-te amar...». Talvez possamos colocar aqui a pergunta: esta resposta não ameaça a gratuidade absoluta do nosso amor e da nossa doação total?

O mesmo Bento XVI, a respeito disso (além do texto citado antes) aprofunda este traço fundamental do amor, ao falar do próprio Deus: «A fim de reconquistar o amor da sua criatura, Ele aceitou pagar um preço altíssimo: o sangue do seu Filho Unigênito (...). Na cruz, é Deus mesmo quem mendiga o amor da sua criatura: Ele tem sede do amor de cada um de nós (...). Na verdade, só o amor no qual se unem o dom gratuito e o desejo apaixonado de reciprocidade infunde um êxtase que torna leves os sacrifícios mais pesados» (Mensagem para a Quaresma de 2007).

À base dessa maneira de pensar está a idéia de que o amor é mais "puro" se, na sua total gratuidade, não se encontrar nenhuma correspondência, porque, neste caso, pareceria um amor "interessado". Procuraremos responder a esta objeção na análise mais aprofundada da experiência do amor enquanto ágape-eros; por enquanto, gostaria de só sublinhar, a partir da belíssima frase de São Paulo: «Não fiqueis a dever nada a ninguém, a não o amor recíproco» (Rm 13,8), que no amor autêntico e pleno, a gratuidade não desaparece, mas ao contrário, temos, por assim dizer, "o encontro de duas gratuidades".

Trata-se de um tema que, na fenomenologia do amor, é realmente fascinante. De um lado, ao retomar uma arguta observação de E. Jüngel devemos distinguir entre o "ut" final (amo para ser amado) e o "radiante 'ut' consecutivum" (no qual ser amado é conseqüência, e não finalidade, do meu amor).7 São Bernardo já o tinha dito de maneira magnífica: "Todo amor verdadeiro é sem cálculo e, apesar disso, tem igualmente a sua recompensa; ele pode até mesmo receber a sua recompensa se for sem cálculo... Aquele que no amor só busca como recompensa a alegria do amor, recebe a alegria do amor. Aquele, porém, que busca no amor algo diverso do amor, perde o amor e, ao mesmo tempo, a alegria do amor".8 Podemos aplicar ao amor aquilo que Jesus diz sobre o Reino de Deus: «Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo» (Mt 6,33). Quem, porém, espera antes de tudo "todas as coisas" ao buscar o Reino, acaba sem o Reino, sem a sua justiça, e também sem todas as outras coisas...

Afinal de contas, precisamos ir à Fonte última da teologia (e também da nossa vida humana), à reflexão teológica por excelência, que não é, de modo algum, 'abstração de terceiro grau': a contemplação do Deus Trinitário. A perichoresi garante-nos que, em Deus, é igualmente "divino" amar e ser amado. Somos semelhantes a este Deus, fomos criados à sua Imagem. Aquilo que Deus uniu o homem não deve separar...

Diante de tudo isso, podemos fazer uma pergunta decisiva, mas também perigosa, se não for entendida adequadamente: podemos falar de amor erótico de Dom Bosco? A partir de agora, podemos antecipar a resposta: Sim, evidentemente; ao se tratar de um amor à imagem do mesmo amor de Deus; antes: do mesmo Amor que é Deus. Isso exigirá também uma reflexão mais cuidadosa e aprofundada.

* Enfim, creio que a expressão tradicional sobre Dom Bosco, Pai e Mestre dos Jovens, tem ainda muitíssimo a nos oferecer. Em particular, gostaria de sublinhar a paternidade, que é uma das expressões mais profundas do ser-homem, e Dom Bosco viveu-a em plenitude. Para não ficar, também aqui, na retórica da expressão, indico apenas dois aspectos típicos da paternidade (e também da maternidade, evidentemente, embora com coloridos diversos):

- o amor paterno-materno é a expressão mais plena e radical da incondicionalidade do Amor de Deus; qualquer outro amor humano, de fato, pressupõe o conhecimento da pessoa amada, menos este: os pais amam o/a filho/a, ainda antes que tenha uma fisionomia e um nome, até mesmo um gênero...

- o amor paterno-materno, ao não ser absolutamente indiferente à resposta filial, não depende dela: torna-se assim reflexo do Amor divino que é bom, mesmo com os maus e ingratos (cf. Mt 5,44-45).

Concluímos com uma citação das nossas Constituições, que se faz oração a Maria Imaculada Auxiliadora: Maria, ensina-nos e ajuda-nos a amar como Dom Bosco amava! (Cf. C 84).

ORAÇÃO - «DA MIHI ANIMAS»



Senhor Deus, nosso Pai,

chamaste-nos a fazer parte da Congregação Salesiana

para nos confiar a parte mais delicada e preciosa da sociedade humana,

os jovens, especialmente os mais pobres, abandonados e em perigo,

a fim de sermos para eles sinais e portadores do teu Amor salvífico.



Enche os nossos corações e toda a nossa vida com o teu Espírito

para sermos fiéis no cumprimento dessa missão,

de modo que na sua realização generosa e incondicional

possamos encontrar o caminho da nossa santidade.



Faze que tenhamos sempre a experiência da tua paternidade

enquanto trabalhamos incansavelmente pela salvação deles,

seguindo os passos do Bom Pastor

assim como fez o nosso santo Pai Dom Bosco.



Concede-nos compartilhar a paixão do teu Amor

como o manifestaste no teu Filho Jesus Cristo

que nos amou a ponto de dar sua vida por todos nós.



Livra-nos da apatia e da indiferença

diante das situações dramáticas em que vive a nossa juventude atual,

particularmente nos ambientes de maior pobreza e marginalização;

mas também nos livre da tentação de buscar caminhos

e tomar decisões à margem de tua vontade salvífica.



Forma em nós, pela intercessão materna de Maria

um coração como o de Dom Bosco

que encontrou o caminho de sua perfeição e felicidade

cumprindo com total fidelidade a missão que lhe foi confiada:

Ser pai e mestre da juventude.



Neste momento decisivo para a nossa Congregação

no início do Capítulo Geral, nós te pedimos,

concede a todos nós a luz do teu Espírito

para que possamos discernir a tua vontade

e dá-nos a sua força para podermos colocá-la em prática.



Concede-nos ainda que tenhamos a coragem de dizer-te com Dom Bosco:

Da mihi animas! Entrega-nos os jovens, para podermos levá-los

pelo caminho de sua verdadeira felicidade e realização em Cristo. Amém.

3 – A ASCESE DO CARISMA: CETERA TOLLE...





Continuando a reflexão anterior, consideremos a segunda parte do lema de Dom Bosco, «…coetera tolle» que exprime, como diz o Reitor-Mor na carta de convocação do CG26, «a ascética salesiana, como é expressa no 'sonho dos dez diamantes'» (ACG 394, p. 9). Um pouco mais adiante, ele explica: «O 'coetera tolle' motiva o consagrado Salesiano a tomar distância do "modelo liberal" de vida consagrada, descrito na carta És tu o meu Deus, fora de ti não tenho bem algum» (ACG 394, 34; referência aos ACG 382).



1.- A ascese cristã: expressão e consequência do Amor



Tentemos ampliar esta perspectiva, e iniciemos com o estabelecimento de uma base "humana" que nos permita entender qual a ascese necessária não só para o consagrado, e nem só para o cristão, mas para todo ser humano, na medida em que deseja alcançar a verdadeira felicidade.

O Santo Padre Bento XVI, na primeira citação de sua encíclica Deus Caritas Est, menciona Friedrich Nietsche, cuja crítica a certo tipo de ascetismo, que pode chegar a ser até mesmo masoquista, já é clássica: «Eles chamaram de "Deus" o que contradizia e prejudicava a si mesmos; e, de fato, havia muito de heroísmo em sua adoração!».9 É necessário, sem dúvida, reconhecer com sinceridade e humildade o que há de verdade nessas críticas (frequentemente, muito pouco); muitas vezes, o modelo e o ideal de perfeição cristã não era, no fundo, realmente cristã, mas bebia em outras fontes, até mesmo numa outra concepção do ser humano que não a do Evangelho. No projeto amoroso de um Deus que quer o bem de seus filhos, não podemos separar a dimensão objetiva ("perfeição") da subjetiva ("felicidade"). É preciso reconhecer que, em tempos passados não muito distantes, a acentuação da perfeição sem a felicidade levou, pendularmente, à situação atual, sobretudo na cultura juvenil pós-moderna, isto é, uma busca de felicidade (ou, melhor, de prazer imediato), às vezes obsessiva, sem qualquer referência objetiva ("perfeição").

Ao falar do amor, fundamento do "da mihi animas", dizíamos que, assim como só dele pode nascer a autêntica mística cristã (e salesiana), ele é igualmente a única raiz da verdadeira ascese. E ainda, não há ascese mais radical daquela que nasce do amor autêntico. Consequentemente, podemos afirmar que o amor é a fonte da mística e da ascese cristãs. Dito com palavras evangélicas, só podemos "ter a vida" e produzir muito fruto se, como o grão de trigo, aceitamos cair na terra e "morrer". E isso tudo não como algo "imposto" de fora, nem como "preço a pagar", mas justamente porque deriva da mesma essência do amor.

Por outro lado, somente na experiência do amor, em qualquer de suas expressões autênticas, encontra-se a realização total da pessoa, através da integração plena dos dois aspectos, objetivo e subjetivo. Somente através do amar e do ser amado o homem encontra, inseparavelmente, a sua plenitude e a sua felicidade.



2.- Dialética fundamental do amor



O poeta argentino, Francisco Luis Bernárdez diz numa belíssima poesia que «ser enamorado» (título também da poesia) «es ignorar en qué consiste la diferencia entre la pena y la alegría» (é ignorar em que consiste a diferença entre a dor e a alegria).

Santo Tomás já o dissera, com uma frase lapidar: «Ex amore procedit et gaudium et tristitia» (S. Th. IIa IIae, q. 28, a. 1): "do amor procede a alegria e a tristeza".

Nesse sentido, escreve Moltmann: «O homem pode sofrer, porque pode amar, e sofre na medida em que ama. Se ele pudesse sufocar todo movimento de amor, ele também extinguiria todo sofrimento, tornar-se-ia um apático (...). O homem que experimenta a impotência, o homem que sofre porque ama, o homem que pode morrer, é, pois, um ente mais rico de um Deus onipotente, incapaz de sofrer e amar».10 Não se trata de uma novidade absoluta, nem uma falta de respeito diante de Deus; em Ricardo de São Vitor encontramos a mesma idéia, expressão, se possível, numa maneira ainda mais audaciosa: «se Deus preferisse reservar egoisticamente apenas para si a abundância da sua riqueza, embora podendo, se o quisesse, comunicá-la a um outro (...) teria razão ao subtrair-se à vista dos anjos e de quem quer que fosse, de envergonhar-se de ser visto e reconhecido, tendo em si mesmo uma tão grave falta de benevolência».11

Na realidade, jamais somos tão vulneráveis como quando amamos... Ao recordar a "lei do grão de trigo", se o amor pode ser descrito como "a felicidade-plenitude através do dom total de si", vemos logo porque não se podem separar, na experiência de todo amor autêntico, a mística e a ascese. Dito em "linguagem salesiana", de maneira muito concreta, o da mihi animas e o coetera tolle são as duas partes, inseparáveis, do manto do personagem do sonho dos dez diamantes...

Em outro belíssimo texto da nossa tradição salesiana é apresentada esta mesma dialética do amor: o sonho de Dom Bosco do caramanchão de rosas. Aqueles que seguem Dom Bosco, fascinados pela possibilidade de caminhar sobre as rosas, descobrem, muito depressa, que existem espinhos pontiagudos, e se sentem enganados. Na realidade, esqueceram-se de que não há rosas sem espinhos; de que não há amor sem sofrimento ou, melhor, sem vulnerabilidade...

No segundo capítulo das nossas Constituições, ao falar da identidade do salesiano, encontramos ao menos duas vezes esta perspectiva da ascese, relacionada intimamente à experiência do amor. Lemos no artigo 14, "Predileção pelos jovens": «Esse amor, expressão da caridade pastoral, dá sentido a toda a nossa vida. Pelo bem deles oferecemos generosamente tempo, dotes pessoais e saúde: "Por vós estudo, por vós trabalho, por vós eu vivo, por vós estou disposto ate a dar a vida"». Mais adiante, ao recordar o "segundo lema da Congregação", trabalho e temperança, diz a nossa Regra de Vida: «(O Salesiano) aceita as exigência diárias e as renúncias da vida apostólica: está pronto a suportar o calor e o frio, a sede e a fome, as fadigas e o desprezo, sempre que se trata de glória de Deus e da salvação das almas» (C 18).



3.- O "Deus-Amor", um Deus pobre



Analogamente ao que foi dito na reflexão anterior sobre o fundamento teológico da nossa paixão no «da mihi animas», devemos também aqui ir a fundo para encontrar, no Deus em que cremos, o Deus-Amor, fundamento da nossa pobreza evangélica e consagrada, da nossa ascese mais radical.

Buscamos este fundamento, normalmente, na vida de Jesus, como dizem também as nossas Constituições, citando o nosso pai Dom Bosco: «Conhecemos a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que sendo rico se fez pobre para que nos enriquecêssemos com a sua pobreza. Chamados a uma vida intensamente evangélica, escolhemos seguir "o Salvador que nasceu na pobreza, viveu desprovido de tudo e morreu despojado na cruz"» (C 72).

Não queremos pôr em discussão o exemplo normativo do Filho de Deus feito Homem; entretanto, ao partir de um conceito teológico central, devemos afirmar que neste Homem, Jesus de Nazaré, Deus se revela de maneira definitiva (= escatologia).

Sem pretender desenvolver esta última afirmação, limitamo-nos a recordar as palavras de "Vita Consecrata" sobre o fundamento trinitário dos conselhos evangélicos: «A referência dos conselhos evangélicos à Trindade santa e santificadora revela o seu mais profundo sentido» (VC 21). Justamente porque Jesus Cristo é o Revelador de Deus, podemos, através d'Ele, chegar a este fundamento trinitário. (Não gostaria de passar esta ocasião sem indicar que esta idéia parece-me uma das novidades teológicas e espirituais mais importantes do Magistério sobre a vida consagrada; infelizmente ainda não desenvolvida).

Sobre a isso, quero apresentar uma reflexão pessoal, que me interessa profundamente. Nos Evangelhos sinóticos – tomo o texto de Lc 21,1-4, encontramos o comovente exemplo da pobre viúva que, lançando duas moedinhas, deu, segundo o testemunho de Jesus, mais do que todos os outros: «todos eles, de fato, deram do seu supérfluo como esmola; esta, contudo, na sua miséria, deu tudo quanto tinha para viver». Eu sempre entendera esse texto como um ensinamento moral particularmente denso para motivar-nos à plena confiança em Deus; até que, um dia eu me perguntei: esta Palavra do Senhor não pode ser também e, sobretudo, uma extraordinária parábola teológica? O Deus de Jesus Cristo será como um daqueles grandes ricos que "dão muito", mas do próprio supérfluo, ou é mais semelhante à pobre viúva, que deu tudo por nós, até o que tinha de mais caro: o seu único Filho? Entendida assim, a Encarnação como kenosis é uma ação trinitária; antes: é a manifestação por excelência do Deus Trinitário.

Diante disso tudo, surge logo a questão: Mas, não é verdade que Deus "muda" tornando-se Homem? A Encarnação não deve ser contra a radical imutabilidade de Deus?

Sem entrar aqui em especulações teológicas, que não seria a nossa tarefa, a primeira coisa que devemos fazer é nos perguntar e colocar seriamente em discussão esta imutabilidade, e o sentido que pode ter, sendo um conceito mais filosófico que teológico. Em todo caso, o conteúdo positivo desta palavra, parece-me, é assumido e levado à sua plenitude personalista na fidelidade, que é uma característica típica do amor, sobretudo quando falamos de Deus.

Ao recordar a interpretação da parábola evangélica mencionada anteriormente, damos agora a palavra a Hans Urs von Balthasar, num texto extraordinário:

«(Aqui) trata-se, pelo menos como pano de fundo, do ponto de inflexão absolutamente decisivo no modo de ver Deus, que não é primordialmente "poder absoluto", mas "Amor" absoluto e cuja soberania não se manifesta em manter para si o que lhe pertence, mas em abandoná-lo, de modo que essa soberania se estende além do que, aqui, no mundo, se opõe como força e fraqueza. O externar-se de Deus (na encarnação) tem a sua possibilidade ontológica na externalidade eterna de Deus, na sua autodoação tripessoal (...) Os conceitos de "pobreza" e "riqueza" tornam-se dialéticos, o que aqui não significa que a essência de Deus é em si mesma (univocamente) "kenótica" e que, portanto, um único conceito possa abranger o fundamento divino da possibilidade de kenosis e da própria kenosis (...), mas que – como como Hilário tentou dizer à sua maneira – o "poder" divino é constituído de tal forma que pode lidar em si mesmo com a possibilidade do auto-aniquilação, como a da encarnação e da cruz, e sustentar essa aniquilação até o fim»12 (o evidenciado é nosso).

Só um Deus assim é digno, não só do nosso reconhecimento e da nossa gratidão, mas também e, sobretudo, do nosso amor total, incondicionado, que também nos leve ao "esvaziamento" radical, para sermos preenchidos plenamente do seu Amor, e tornar-nos assim seus portadores aos jovens.

Refletiremos mais adiante sobre a Encarnação do Filho de Deus como manifestação definitiva do Amor de Deus; e mais, do Deus que é Amor. Nessa perspectiva, mais positiva, procuraremos integrar o seu caráter de despojamento: a kenosis do Filho de Deus feito Homem.



4.- Amor e Pobreza na vida salesiana



Na mesma Carta do Reitor-Mor, antes de apresentar os dois últimos temas capitulares, afirma-se: "Para Dom Bosco, a segunda parte do lema, "cetera tolle", significa o desapego de quanto nos pode distanciar de Deus e dos jovens. Para nós, hoje, esse desapego se concretiza na pobreza evangélica e na opção de ir ao encontro dos jovens mais 'pobres, abandonados e em perigo', sendo sensíveis às novas pobrezas e colocando-nos nas novas fronteiras de suas necessidades (ACG 394, p. 39). Também aqui, tomar como ponto de partida o amor apostólico, à imagem do Deus de Jesus Cristo, haverá de nos permitir concretizá-lo na pobreza mais autêntica e radical.

Numa análise muito densa, mas de extraordinária riqueza, que Eberhard Jüngel faz do amor humano, ele exprime assim esta relação entre amor e pobreza:

«O fato de o eu amante querer possuir o tu amado e assim, mas só assim, querer possuir a si mesmo transforma a estrutura do possuir – e isso é de grande significado do ponto de vista ontológico e teológico –. De fato, o "tu" amado é desejado pelo eu amante só como o tu ao qual ele pode entregar-se e que, por sua vez, se entregará ao eu amante como a um tu amado. O amor é dom recíproco (…). O intercâmbio do dom recíproco significa, porém, no momento de possuir, que o eu amante quer possuir a si mesmo somente no modo do ser possuído (...). No amor não há posse que não nasça do dom (...). O eu amante só possui a si mesmo como se jamais o possuísse. Quer ser amado, e precisamente, pelo mesmo tu que quer possuir. Mas, para ter este tu, é preciso entregar-se a ele, deixar, portanto, de ter-se a si mesmo. Este fato é decisivo para a compreensão do amor»13 (o cursivo é original; o negrito é nosso).

Dito de outra forma: a pobreza que não nasça do amor, não é uma pobreza desejável, que possa assemelhar-se ao próprio Deus. O esvaziamento do Filho de Deus (kenosis) é, no fundo, expressão suprema do amor, que o leva a fazer-se um de nós: amor, aut similes invenit, aut similes facit. A inserção, que nos leva a compartilhar a vida dos mais pobres e marginalizados é, no fundo, uma variante da Encarnação.

Sobre isso, também podemos recordar as palavras de Santo Agostinho em seu comentário à primeira carta de João:

«Irmãos, como começa a caridade? Prestai um pouco de atenção: ouvistes como se chega à sua perfeição; o Senhor apresentou-nos no Evangelho a sua finalidade e os seus modos: Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Ele mostrou, então, no Evangelho a sua perfeição e também aqui nos é apresentada a sua perfeição; mas interrogai-vos e perguntai-vos: Quando poderemos ter esta caridade? Não queiras desesperar muito depressa de ti mesmo: a caridade em ti talvez tenha apenas nascido, ainda não aperfeiçoada; nutre-a, para que não venha a faltar. Poderás, talvez, dizer-me: de onde tiro o conhecimento disso? Ouvimos com que meios ela chega à perfeição; ouçamos aonde busca o seu começo. João continua e diz: Quem tivesse bens deste mundo e visse o seu irmão com fome e lhe negasse a sua compaixão, como o amor de Deus poderia estar nele? Eis aonde começa a caridade. Se ainda não estás disposto a morrer pelo irmão, torna-te disposto a dar ao irmão um pouco dos teus bens (...). Se, de fato, não consegues dar o supérfluo ao irmão, como poderá dar por ele a tua vida?»14



6.- A Pobreza como dimensão da vida consagrada salesiana



Depois do texto citado no início da nossa meditação, na mesma Carta, o Reitor-Mor concretiza: «A vida consagrada do futuro será realizada concentrando-se no seguimento radical de Cristo obediente, pobre e casto. Se os três conselhos evangélicos nos falam da nossa total oferta a Deus e dedicação aos jovens, a pobreza nos leva a nos doarmos sem reservas e sem demora, até o último suspiro da nossa vida, como fez Dom Bosco. A prática dos conselhos evangélicos libera em nós os recursos mais escondidos da disponibilidade» (ACG 394, 39).

Considero que, na teologia da vida consagrada, e concretamente para nós salesianos, mais além da inegável diversidade dos conselhos evangélicos, é necessário encontrar a unidade harmoniosa ao redor do amor, de onde recebem o seu sentido e valor, e é o que os leva à plenitude da santidade. Nessa perspectiva, a pobreza não é uma "parte" ou seção da nossa vida, mas uma dimensão transversal à vida inteira e, em particular, atravessa os conselhos evangélicos. Mais ainda: ousaria dizer, jogando um tanto com as palavras, que a pobreza que envolve a castidade e a obediência é mais radical do que aquela que envolve o voto de pobreza.

Lemos na exortação Vita Consecrata: «todo aquele que foi regenerado em Cristo é chamado a viver, pela força que lhe vem do dom do Espírito, a castidade própria do seu estado de vida, a obediência a Deus e à Igreja, e um razoável desapego dos bens materiais, porque todos são chamados à santidade, que consiste na perfeição da caridade» (VC 30).

Ao analisar esse texto fundamental, encontramos três afirmações intimamente unidas entre si:

  • Todo/a cristão/ã é chamado/a à santidade

  • a santidade consiste na perfeição do amor, na caridade;

  • portanto, todo cristão é chamado a viver os conselhos evangélicos segundo o próprio estado de vida.

Também aqui encontramos, em relação à concepção habitual dos "conselhos" evangélicos, uma absoluta novidade teológica e espiritual (embora, de alguma maneira, esteja presente na Lumen Gentium). Podemos afirmar, então: a prática dos "conselhos evangélicos" pertence essencialmente à única perfeição cristã, que é a do amor. A maneira mesma como são nomeados indica que não se trata de todos os batizados terem que "professar os votos"; e isso tem como primeira conseqüência a necessidade de encontrar uma maneira mais adequada de chamá-los, para não cair no erro de considerar os nossos irmãos e irmãs no mundo como de "segunda classe", ou procurar alargar tanto o conceito de "vida consagrada", que todos pertençam a ela. Em todo caso, não podemos esquecer que todo cristão/ã é consagrado/a no Batismo.

Se os valores evangélicos (que não são "opcionais") são normativos para todo cristão/ã, ele devem ter a máxima amplitude possível, não se limitando a este ou àquele aspecto marginal da existência humana e cristã; como seria, por exemplo, se entendêssemos a castidade apenas em relação à sexualidade, ou a obediência apenas diante de uma ordem do legítimo superior "em força do voto".

Esta perspectiva pode ser entendida como o conjunto das dimensões fundamentais do ser humano diante de Deus:

  • em relação às "coisas": pobreza;

  • em relação às pessoas: castidade;

  • em relação a si mesmo: obediência.

Lembremo-nos do primeiro e principal "mandamento", a primeira "palavra de vida", que Jesus indica ao doutor da lei: «O primeiro [mandamento] é: "Ouve, Israel: o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor, amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças". O segundo é: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo". Não existe nenhum mandamento maior do que estes» (Mc 12,19-31 et par.). À luz deste "mandamento", podemos compreender o que é a tríplice idolatria que ameaça a raiz da nossa vida cristã (e religiosa): absolutizar as coisas materiais, adorando o "deus-dinheiro"; pôr qualquer pessoa como sentido único e definitivo da nossa vida, afastando Deus do nosso centro; e enfim, como a tentação mais profunda e radical, colocar-nos no lugar de Deus; ou menor, em lugar de servir a Deus, servir-nos de Deus.

Visto em chave positiva, tender à santidade cristã consiste em crescer todos os dias no amor autêntico, colocando Deus como Centro da nossa vida, Destinatário último e definitivo do nosso amor, e somente n'Ele e por Ele amar os nossos irmãos e irmãs ("castidade"), utilizando de modo solidário e fraterno os bens deste mundo ("pobreza"), encontrando assim a nossa plena realização em Cristo ("obediência") (cf. C 22). Assim, a nossa vida consagrada torna-se exemplo humilde e "terapia espiritual" (VC 87ss), a serviço dos nossos irmãos e irmãs, assumindo a renúncia ao exercício desses valores, não para que os outros cristãos os renunciem, mas para que os possam relativizar. Esse é o nosso serviço insubstituível, que nos permite falar de «excelência objetiva da vida consagrada» (cf. Carta do Reitor-Mor, És tu o meu Deus, fora de ti não tenho bem algum ACG 382, p. 15ss., citando VC 18 e 32).

Para esclarecer ainda mais: para o cristão, a "centralidade de Deus" e a renúncia radical que ela envolve configura-se como sequela e imitação de Jesus Cristo: «Se alguém vem a mim, mas não me prefere a seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo (...) qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo» (Lc 14,26-27.33). As nossas Constituições ao falar da vida salesiana como experiência formativa, juntamente com a "mística" na vivência dos valores da vocação salesiana, convidam-nos a «aceitar a ascese que esse caminho implica» (C 98).

Estas reflexões levam-nos a um tema muito interessante, mas que agora só podemos enunciar: o sentido da renúncia e a formação à renúncia. É um tema da máxima atualidade, sobretudo (não só) no campo da formação inicial.

Sobre isso, gostaria de retomar um texto da conferência do Reitor-Mor aos Superiores Gerais:

«Encontramos alguns elementos fundamentais que nos permitem delinear a "fenomenologia da renúncia" na pequena parábola evangélica do comerciante de pérolas preciosas (Mt 13,45-46):

a) renuncia-se às pérolas preciosas ("o comerciante vai e vende as que possui") não porque sejam falsas: são autênticas, e foram até aquele momento o tesouro do comerciante. Aplicando-o à nossa realidade, não é certamente um método adequado o que tenta diminuir o valor daquilo a que se deve renunciar, para que fique mais fácil. No fundo, renunciar às "coisas ruins" não è a renúncia humana mais profunda e completa. Quantas vezes ouvimos perguntar, como resistência a uma renúncia necessária: "o que há de ruim naquilo que eu faço?" E tem toda a razão quem fala assim: deve apenas compreender que é justamente então, que se apresenta a oportunidade da renuncia no seu sentido mais autêntico.

b) renuncia-se a pérolas autênticas, com dor e ao mesmo tempo com alegria, porque se encontrou "a" pérola definitiva, aquela que preencheu o olhar e o coração do comerciante; e ele compreende que não a pode adquirir se não vender as outras. Se a nossa vida consagrada, centrada no ensinamento e na imitação do Senhor Jesus, não resultar fascinante, a renúncia exigida torna-se injusta e desumanizadora... Como diz esplendidamente Potissimum Institutioni: «Só este amor de caráter nupcial e que implica toda a afetividade da pessoa, permitirá motivar e sustentar as renúncias e as cruzes encontradas necessariamente por quem quer "perder a sua vida" por causa de Cristo e do seu Evangelho (cf. Mc. 8, 35)» (n. 9).

c) a alegria pela posse da "pérola preciosa" jamais elimina totalmente o temor que não seja autêntica: caso fosse falsa, a minha decisão teria sido errada, e teria arruinado a minha vida. Este "risco" na vida cristã, e mais ainda, na vida consagrada, é consequência direta da fé: a nossa vida só tem sentido na fé; se não for verdade aquilo em que acreditamos, «somos os mais infelizes de todos os homens», parafraseando São Paulo (cf. 1Cor 15,19). O dia em que, em alguma vertente da vida consagrada, se puder dizer: a "minha vida é plenamente gratificante, mesmo que não seja verdadeiro aquilo no que creio", o nosso Instituto torna-se... uma ONG, com o agravante de implicar certas exigências inaceitáveis para os seus membros...»

Concluo com a concretização da pobreza que o Reitor-Mor nos apresenta em sua Carta:

«Nós Salesianos testemunhamos a pobreza com o trabalho incansável e a temperança, mas também com a austeridade, a simplicidade e a essencialidade da vida, a partilha e a solidariedade, a gestão responsável dos recursos. A nossa pobreza pede-nos uma reorganização institucional do trabalho que nos ajude a superar o risco de sermos empresários da educação mais do que educadores, ou gestores de empresas educativas mais do que apóstolos através da educação. Quem escolheu seguir Jesus, escolheu fazer próprio o seu estilo de vida, de não se enriquecer, de viver a bem-aventurança da pobreza e da simplicidade de coração, de sempre ter familiaridade com os pobres».

Enfim, levar a sério e viver até o fim a bem-aventurança de Jesus: «Felizes os pobres no espírito», para experimentar, desde agora, a participação no Reino dos Céus...











ORAÇÃO - «CETERA TOLLE»

Senhor Jesus,

Revelaste-nos o Mistério de Deus,

cuja única riqueza é a plenitude do amor trinitário,

fazendo-te pobre por nós

e convidas-nos a seguir o teu exemplo

para que possamos nos tornar teus autênticos discípulos.



Permite que, seguindo-te radicalmente por amor

possamos colocar-te sempre mais como o centro de nossas vidas,

antes de qualquer outra pessoa ou coisa,

até mesmo de nós mesmos, dos nossos planos e projetos humanos,

de modo que, como o grão de trigo

tenhamos a coragem de morrer e de produzir muito fruto.



Queremos aprender, na escola do teu Amor

que só podemos ser felizes na renúncia ao nosso egoísmo,

a ponto de darmos as nossas vidas pelos nossos irmãos e irmãs,

em especial pelos jovens que Tu nos confias,

para sermos sinais verdadeiros e confiáveis do Teu Amor,

e não apenas com as palavras e a com a língua.



Ensina-nos a saber aceitar as renúncias que a nossa vida envolve

como quem deseja deixar todos os seus tesouros com alegria

para adquirir a pérola preciosa que conquistou o seu coração e a sua vida:

aquele Tesouro que só Tu podes ser, Senhor.



Em especial, ajuda-nos a saber como abandonar

tudo o que nos impede de cumprir a Missão

que Tu nos confiaste em favor dos jovens mais necessitados do teu Amor,

como fez, até o último momento de sua existência

o nosso Pai Dom Bosco.



Concede-nos a coragem, neste Capítulo Geral

de assumir as atitudes que nos permitam superar

modelos e padrões de vida e de trabalho

que não estão de acordo com a tua vontade e com a Missão que nos foi confiada,

e ajuda-nos a tomar as decisões

que tornem mais visível e radiante a tua predileção

pelos adolescentes e pelos jovens mais pobres, abandonados e em perigo.

Amém.

4 - «NÃO BASTA AMAR...». A MANIFESTAÇÃO DO AMOR





Esta meditação tem o seu centro num dos temas fundamentais do nosso Carisma e da nossa Espiritualidade Salesiana. Bastaria recordar, entre muitos outros textos da nossa Tradição, a Carta de Roma de 10 de maio de 1884, em que Dom Bosco plasmou, de maneira insuperável, este aspecto essencial do Sistema Preventivo. Apesar disso, podemos correr o risco de fazer dele, de maneira superficial, apenas um slogan publicitário. Na realidade, porém, ele tem uma densidade extraordinária, não só do ponto de vista pedagógico ou espiritual, como também uma riqueza teológica que é preciso aprofundar, porque nos leva às raízes da Revelação cristã.

Como nas reflexões anteriores, também aqui tomaremos como ponto de partida a experiência humana, não porque se queira minimizar a sua novidade cristã, mas porque acreditamos firmemente que não há qualquer oposição entre natureza e graça, entre Criação e Redenção.



1.- O Amor precisa ser manifestado



Podemos aplicar à mesma realidade do amor, ainda na experiência humana, de modo análogo, aquilo que São João diz sobre Deus: «O amor, ninguém jamais o viu». Entretanto, aquilo que se afirma no título não é só que, se o amor não se manifestar, não pode ser acolhido (isso é óbvio), mas queremos evidenciar principalmente que o amor, pela sua própria natureza, procura tornar-se visível, quer ser percebido pela pessoa amada; e, também – é preciso dizê-lo –, espera uma resposta, que não se pode dar se essa manifestação não acontecer.

É necessário continuar a analisar esta experiência e, por isso, perguntemo-nos: por que aquele que ama deve manifestar o seu amor? Sem mais, porque não pode deixar de fazê-lo; mas, também – e nem sempre isso é levado em consideração –, pelo que implica para a pessoa amada: eu quero que ela saiba que é amada justamente porque o que eu mais desejo é a sua felicidade.

Esta descrição leva-nos a uma perspectiva da fenomenologia do amor que fica muitas vezes esquecido ou descuidado: não nos colocamos do ponto de vista do amar, mas do ser e do sentir-se amado. Este esquecimento é propiciado, muitas vezes, por um mal-entendido: pensar que "vale mais dar do que receber" chegando, às vezes, até mesmo a não querer qualquer resposta por parte da pessoa amada; como se esse amor "desinteressado" fosse mais nobre. Talvez porque pensamos que dessa forma nos assemelhamos mais a Deus. O Santo Padre Bento XVI, na Encíclica Deus Caristas Est e, ainda mais, na Mensagem para a Quaresma 2007, oferece alguns pontos extraordinariamente fecundos para dissipar esse mal-entendido, a partir da sua mais profunda raiz teológica. Como vimos ao falar da gratuidade e da Graça, o Papa escreve: «O Onipotente espera um "sim" das suas criaturas como um jovem esposo, o da sua esposa (...). A resposta que o Senhor deseja ardentemente de nós é, antes de tudo, que acolhamos o seu amor e nos deixemos atrair por Ele».

Este mal-entendido faz-se também presente, infelizmente, na mesma concepção da vida cristã, quando ela é entendida mais como um "amar e servir a Deus", esperando, assim, que Ele não poderá deixar de corresponder ao nosso amor e nos salvar; e isso acontece em vez de compreender e viver a vida cristã com a alegria da gratidão, como um "ser amado por Deus". Somente a partir dessa convicção da nossa fé poderá nascer o nosso amor por Ele, como resposta reconhecida e alegre.

Retornando à perspectiva esboçada anteriormente, isto é, a experiência "passiva" de ser amado, o pensador católico alemão Josef Pieper escreveu páginas extraordinárias. Citando nada menos que Jean-Paul Sartre, que afirma: «Esta é a essência da alegria do amor: sentimo-nos justificados por existir», Pieper continua: «(O amor) não é considerado da parte daquele que ama, mas da parte do amado. É evidente, portanto, que não nos basta simplesmente existir; isso nós o fazemos "do mesmo modo" e "de qualquer forma". O que nos é importante, para além deste simples fato, é a confirmação explícita: é bom que tu existas, como é maravilhoso que tu existas! Em outros termos, aquilo que nós ainda precisamos, além do simples existir, é ser amado por alguém (...). Essa "coisa estupenda", como nos aparece à primeira vista, é, de resto, confirmada de cem maneiras pela experiência que temos ao alcance da mão, pelas experiências que cada um faz no dia a dia. Nós dizemos que uma pessoa "floresce", "desabrocha", quando lhe acontece de ser amada; só então ela se torna completamente ela mesma, começa para ela uma "nova vida"».15

Todos nós, acredito, já vivemos essa experiência com os jovens em nosso trabalho educativo-pastoral, e constitui uma das alegrias mais profundas e autênticas. Dito de outra forma: enquanto não nos sentirmos amados por alguém, "sentiremos vergonha" de viver neste mundo, como numa festa para a qual não fomos convidados; entretanto, tão logo alguém nos ame, dizia Sartre acima, «sentimo-nos justificados por existir»; e na experiência pedagógica, a mudança (também externa) torna-se muitas vezes extraordinária.

Gostaria de insistir nessa dimensão da experiência do amor, porque este "ser amado" evidencia o caráter único, singular e irrepetível da pessoa amada, talvez mais do que apenas a dimensão ativa de amar, em que não se garante automaticamente o caráter de singularidade. Baste pensar na frase, tantas vezes ouvida, "faça o bem sem olhar a quem"; podemos falar aqui de amor, enquanto consideramos desejável (seja isso possível ou não) o anonimato da pessoa amada? E, sobretudo: essa pessoa sente-se assim satisfeita? Talvez isso seja "beneficência", mas faltará um elemento essencial para que seja amor autêntico.

No meu entender, considero que aqui está a raiz do eros, sem o que tanto a sexualidade, de um lado, como o próprio ágape, de outro, podem tornar-se "impessoais". Como veremos na meditação sobre Dom Bosco, todo jovem era para ele único e irrepetível, mesmo que fossem cem ou mil os "objetos" do seu amor!



2.- A Expressão e a Manifestação do Amor



Aprofundando na fenomenologia do amor, justamente para que o amor seja percebido como tal, convém fazer uma distinção importante entre expressão e manifestação. A expressão brota mais "imediatamente" da mesma natureza do amor, e, por isso, está mais ligada a quem ama; a manifestação, porém, olha mais para quem o recebe, esclarecendo e "explicando" a primeira, e por isso, está mais ligada à palavra. Infelizmente, também aqui, a mentira pode estar presente, se a palavra não corresponder à realidade que teoricamente procura manifestar.

Podemos dizer que, num esquema dinâmico, o amor segue este processo de desenvolvimento:

realidade – expressão – manifestação – captação

Tudo isso tem, no Carisma Salesiano, uma aplicação extraordinária, como podemos imaginar e que depois procuraremos examinar.

Nesta dinâmica – recordamos o provérbio espanhol: "obras son amores, y no buenas razones" ("as ações são amor, e não as boas razões") –, podemos dizer que as ações são a expressão do amor, e a manifestação é tudo aquilo que nos permite conhecer a fonte da qual provêem essas ações, isto é, do mesmo amor. A manifestação como dissemos anteriormente é, antes de tudo, a palavra, mas podem existir outros sinais que a tornam possível. Ao amor (também em sua realidade humana) podemos aplicar as palavras do Concílio Vaticano II: «O plano da Revelação realiza-se através de obras e de palavras, intrinsecamente ligadas entre si» (DV 2).

Convém fazer duas outras observações nesta análise da experiência humana. De um lado, sobre a novidade da manifestação: paradoxalmente, pode-se dizer que é nova, e ao mesmo tempo não o é. Não é nova, porque manifesta alguma coisa que, de certa maneira, pré-existe; mas é nova, justamente porque aquilo que existia antes não se tinha manifestado. Esta manifestação cria uma nova situação e neste sentido podemos falar do "acontecimento da Palavra". Dizer a uma pessoa: "Eu te amo", estabelece uma nova (e maravilhosa) realidade.

Por outro lado, a manifestação é, em certo sentido, "sacramental", enquanto em grande parte a eficácia do amor reside na sua percepção. Ao faltar o sinal, embora existindo a realidade que o tornaria possível, não se produz a captação, e em conseqüência, não há a possibilidade da resposta por parte de quem é verdadeiramente amado, mas não o sabe.

Uma experiência humana semelhante foi expressa, de maneira extraordinariamente bela, pelo poeta espanhol Gustavo Adolfo Bécquer:



Asomaba a sus ojos una lágrima,

y a mi labio una frase de perdón.

Habló el orgullo y se enjugó su rostro,

y la frase en mis labios expiró.

Hoy voy por un camino; ella, por otro;

pero al pensar en nuestro mutuo amor,

yo digo aún: ¿por qué callé aquel día?

Y ella dirá: ¿por qué no lloré yo?

Brotava dos seus olhos uma lágrima

e em meus lábios uma frase de perdão.

Falou o orgulho e enxugou-se o seu rosto

e a frase expirou em meus lábios.

Hoje, vou por um caminho; e ela por outro;

mas ao pensar em nosso mútuo amor,

eu ainda digo: por que me calei naquele dia? E ela dirá: por que não chorei?



Digamo-lo também, de maneira mais simples e universal: quantas vezes acontece, sobretudo na vida matrimonial e familiar que, embora existindo o amor, e talvez também a sua expressão (na forma de serviço recíproco, de esforço comum, até mesmo de sacrifício por aquele que se ama), falta a manifestação que permita perceber o amor, também através dessas expressões?



3.- "... conhecemos o amor de Deus..."



Comentando nas reflexões anteriores o lema da nossa Congregação, "Da mihi animas, cetera tolle", aprofundamos alguns aspectos teológicos do Carisma. Retomemo-lo, a partir da Encarnação do Filho de Deus, entendida como a manifestação definitiva, uma vez para sempre (= escatológica) do Amor de Deus. «O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e que as nossas mãos apalparam da Palavra da vida – Vida esta que se manifestou, que nós vimos e testemunhamos, vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós –, isso que vimos e ouvimos, nós vos anunciamos» (1Jo 1,1-3a). No fundo, e com poucas palavras, o que queremos afirmar é que o plano todo de salvação de Deus para a humanidade, que encontra o seu centro no acontecimento Cristo, pode ser sintetizado numa única palavra: EPIFANIA, cuja finalidade é que todos os seres humanos, de hoje e de todos os tempos e lugares, não só sejam objeto do Amor de Deus, mas possam-no perceber, compreender na fé (= crer), e corresponder com o seu amor.

Quando falamos de Encarnação, não nos referimos, evidentemente, a um momento pontual ("o dia 25 de março"), mas ao conjunto da experiência que o Filho de Deus quis viver: "fazer-se Homem" que, (numa perspectiva personalista seria, num certo sentido, o "fundamento teológico" da vida entendida como processo permanente de formação) dura toda a sua existência terrena e tem o ápice na sua morte e ressurreição. Nesse sentido, a palavra "epifania" não designa apenas uma "manifestação sensorial" (visual, por exemplo), que poderia limitar-se apenas a uma aparência ("docetismo"), mas envolve toda a realidade da sua Pessoa, que se entrega totalmente exprimindo-manifestando o seu amor "até o fim".

A teologia católica, em diálogo crítico com a Reforma protestante, sempre afirmou que o Deus que se revela em Jesus Cristo é o mesmo Deus Criador, que se faz presente na história e, em particular, se revelou como o Deus de Israel, Yahvé. A posição católica foi definitivamente afirmada no Concílio Vaticano I com fundamento, entre outros textos bíblicos, em Rm 1,20: «De fato, a partir da criação do mundo, as suas perfeições invisíveis podem ser contempladas com a inteligência nas obras realizadas por Ele, como o seu eterno poder e divindade».

Contudo, o Concílio, ao falar da revelação de Deus, e em sintonia com o texto de Paulo, mencionando «o seu poder eterno» e, podemos acrescentar também a sua infinita Sabedoria, não fala do seu Amor. Essa distinção não se encontrava, talvez, na intenção explícita do Concílio; a expressão, porém, parece-me muito significativa, justamente porque falamos aqui da Criação e da História como expressão do verdadeiro Deus (do Deus, portanto, que é Amor); esta "expressão", no entanto, para ser compreendida como tal precisa da manifestação em Cristo. Sem Ele jamais poderíamos chegar a compreender que, além do seu Poder e da sua Sabedoria, que são infinitos, a Criação e a História falam-nos do Amor de Deus; ou melhor, de um Deus que é Amor.

Voltando de novo à experiência humana, torna-se muitas vezes difícil perceber a atitude da outra pessoa como expressão do seu amor, ao faltar a manifestação (antes de tudo, como já sublinhamos, através da palavra), que nos permita estabelecer essa relação.

Ousaria dizer que a Criação e a História (entendida como história universal, mas também como a "minha" história, de toda mulher e de todo homem no mundo) são agapicamente mudas, se tomadas fora da revelação histórica de Jesus Cristo. Embora procuremos ver depois as implicações – sem mais, muito relevantes – que isso tem para o nosso Carisma, gostaria de dizer agora que em "chave salesiana" tudo isso soa assim: Deus não se contentou em amar-nos, mas quis também manifestar-nos o seu Amor entregando-nos nada menos que o seu Filho amado, Jesus Cristo.

O caráter definitivo da revelação de Deus em Jesus Cristo não quer dizer que, depois, Deus não "tenha dito nada" e não dirá mais nada; na verdade, Deus continua a falar-nos, através da história (também aqui: universal, particular, pessoal...); mais, quer dizer que não poderemos entender o que Deus continua a "dizer-nos" ao longo da história, se não o "lermos" à luz de Jesus Cristo, a Quem, neste sentido, podemos chamar de "Gramática de Deus".

Isso tudo tem suas implicações (que não podemos enfrentar aqui), também no diálogo inter-religioso. Sem nos fecharmos, de modo algum, aos valores que encontramos fora da nossa fé, a tudo o que de «verdadeiro, nobre, justo...» (Fl 4,8) que existe em toda busca autêntica de Deus por parte da humanidade de todos os tempos e lugares, essa perspectiva permite-nos afirmar que Jesus Cristo é o Único e Universal Salvador da Humanidade; de fato, «apareceu a graça de Deus, portadora de salvação para todos os homens... à espera da bem-aventurada esperança e da manifestação da glória do nosso grande Deus e salvador Jesus Cristo» (Tt 1,11.13).



4.- A Encarnação do Filho de Deus, Epifania do Amor divino



Apesar disso, ainda não chegamos ao cerne da nossa reflexão teológica: em que sentido a Encarnação do Filho de Deus é a manifestação definitiva do seu Amor, de modo que nos permita descobrir a sua expressão em todos os momentos e circunstância da nossa vida e da vida alheia, da história particular e universal? A pergunta não é retórica, porque, num primeiro momento, poderia parecer mais o eclipse de Deus, o seu ocultamento, mais do que a manifestação da Divindade; caso contrário, não se levaria a sério o seu esvaziamento (kenosis). Como entender essa revelação definitiva de Deus, justamente através do seu "fazer-se Homem"?

Uma leitura superficial do texto paulino de 1Cor 1,18-25 poderia levar-nos a pensar que o Apóstolo afirma que Deus, sendo infinita Potência e Sabedoria eterna, se manifestou em Cristo "de modo oposto" à sua Essência; isto é, na impotência e na loucura da Cruz; essa é a maneira com que, por exemplo, Lutero entendeu e elaborou a sua Cristologia sub contrario. Na realidade, São Paulo não diz isso; a indubitável contraposição, conclui assim: «Mas, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus» (v. 24); e acrescenta uma frase, que poderia parecer apenas um paradoxo formal, mas não o é de fato: «Pois o que é loucura de Deus é mais sábio que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens» (v. 25); justamente porque, sendo o poder e a sabedoria do Amor de Deus, parece fraqueza e loucura, mas, ao mesmo tempo, é mais forte que o poder humano e mais sábio que a sabedoria humana.

Se partirmos da descrição "teísta" de Deus, como Poder e Sabedoria, vemo-nos diante de uma alternativa que se torna um caminho sem saída: o Filho de Deus, na sua Encarnação, ou conserva essas características ou se esvazia delas. No primeiro caso, poderemos afirmar ainda que realmente "se fez Homem"? No segundo caso, a sua humanidade é evidente; mas deixaria de ser "verdadeiro Deus".

A verdadeira solução teológica começa na mesma colocação do problema, isto é: qual é a imagem autêntica do Deus em quem cremos? Deus não é, antes de tudo, Poder ou Sabedoria, mas Amor.

Retornamos, ainda, ao ponto de partida, isto é, a experiência humana. Todos nós conhecemos uma belíssima frase da sabedoria latina: “amor, aut similes invenit, aut similes facit”: o amor, ou encontra realidades semelhantes ou as torna semelhantes. Aplicando-o ao Amor de Deus, a diferença entre Deus e as suas criaturas: concretamente, em relação aos seres humanos, é infinita. E, apesar disso, a partir da mesma raiz da diferença («Eu sou Deus, não homem» – Os 11,9), nasce a busca dessa igualdade, porque o amor não pretende ignorar as diferenças, mas nem mesmo se deixa separar por causa delas; pretende ir além, assumindo-as.

Um belo texto da tradição oriental, de Nicolau Cabasilas, afirma:

«Como os homens estão separados de Deus por três razões, a saber, pela sua natureza, pelo seu pecado e pela sua morte, o Redentor, ao remover um obstáculo após outro, fez com que eles se encontrem sem qualquer impedimento e se reencontrem sem qualquer oposição. O Redentor removeu o primeiro obstáculo ao assumir a natureza humana, o segundo ao ser morto na cruz e, enfim, derrubou o último muro quando, ao ressuscitar, eliminou para sempre da nossa natureza a tirania da morte».16

Se o amor (ou melhor, quem ama) quer ser igual a quem ama, na Encarnação o Filho esvazia-se do seu Poder e da sua Sabedoria não para deixar de ser Deus, mas para manifestar-se a nós em sua plenitude, como Amor; e, portanto, como Deus (se levarmos realmente a sério que «Deus é Amor»).

Dito de outra forma: justamente porque o Filho de Deus, por amor, se esvazia da sua onipotência e da sua onisciência para ser verdadeiro Homem, manifesta ao máximo o seu Amor, ou seja: manifesta-se plenamente enquanto Deus.

Vamos novamente à experiência humana: a diferença da expressão, o ponto de referência da manifestação não é a pessoa que ama, mas, sobretudo os seus destinatários, ao buscar a sua plena percepção. Por isso, não porque em Deus exista oposição entre o Amor e a sua Sabedoria e o seu Poder (identificam-se na absoluta simplicidade da sua Perfeição), mas devido à nossa possibilidade de percepção do amor, em que se opõem, Deus quis "condescender" com a nossa compreensão humana limitada; dessa forma, esvaziou-se de tudo que pudesse, mesmo em mínima parte, esconder ou diminuir a plena manifestação do seu Amor. Deus jamais é "tão plenamente" Deus (ou, com mais exatidão: jamais se nos manifesta tão plenamente como Deus) como quando se esvazia, por amor e em nosso favor, da sua onipotência; numa palavra, esvazia-se de tudo o que não lhe permitiria, de maneira verdadeira e real, ser "um de nós".

Isso nos leva a uma conclusão extremamente paradoxal: qualquer tentativa de negar de negar, ou mesmo diminuir, a humanidade radical de Jesus Cristo, vai contra a sua Divindade, contra a sua "Vontade" – e também contra a sua Onipotência! – que quer compartilhar plenamente a nossa existência humana, em sua identidade pessoal de Filho de Deus (em nenhum momento podemos esquecer que é Deus mesmo, em Cristo, que se torna um de nós!).

Podemos retomar aqui o que foi dito a respeito da Graça, isto é, que todo este plano admirável da epifania do Amor de Deus espera uma resposta de cada um de nós; ou melhor, anseia por ela. Quero concluir com uma afirmação de "sabor salesiano", intencionalmente provocatória: quando o Pai, por obra do Espírito Santo, envia o seu Filho ao mundo, dá-lhe esta missão: Procura fazer-te amar!



5.- "...não basta amar: o Sistema Preventivo



A nossa Regra de vida conclui o artigo sobre o Sistema Preventivo com esta afirmação: ele «impregna o nosso relacionamento com Deus, as relações pessoais e a vida de comunidade no exercício de uma caridade que sabe fazer-se amar» (C 20; cf. também C 15).

Antes de fazer referência, ao menos de maneira sintética, a alguns aspectos desta dimensão central do nosso Carisma, gostaria de retomar alguns trechos do discurso que o Cardeal Lúcido Maria Parrocchi, Vigário de Roma, pronunciou em 1884, por ocasião de uma viagem de Dom Bosco a Roma, durante a construção da Basílica do Sagrado Coração; sobre esse discurso, ao citá-lo (ACG 394, p. 34-35), o nosso Reitor-Mor diz: "se (a citação) não fosse por alguns termos obsoletos, poderia passar por contemporânea" (p. 35).

«... entendo falar-vos do que distingue a vossa Congregação das outras (...). Assim como em cada homem que Deus coloca no mundo, ele põe uma nota que o distingue de todos os outros homens, assim também (...) Deus marca cada Congregação Religiosa com uma nota, com um caráter, com um selo, que a distingue das outras Congregações (...). A vossa Congregação parece corresponder à de S. Francisco, quanto à pobreza, mas a vossa pobreza não é a dos Franciscanos. Parece que corresponde à de S. Domingos, mas vós não deveis sustentar a fé contra as heresias preponderantes (...) porque a vossa principal finalidade é a educação da juventude. Parece que corresponda à de S. Inácio na ciência pelo grande número de obras que dais à luz pelo povo, e o P. João Bosco é homem de grande inteligência, de profundo saber, e douto em variadas disciplinas; contudo, não entendais mal se eu digo que não fostes vós que inventastes a pedra filosofal. O que, portanto, haverá de especial na Congregação Salesiana? (...) Se bem compreendi, se bem aferrei o seu conceito, o seu caráter específico, a sua fisionomia, a sua nota essencial, é a caridade exercida segundo as exigências do nosso século: Nos credidimus Charitati. Dizei a este século: "Tiro os vossos jovens das ruas para que não sejam colhidos pelas carruagens (...) reúno-os nas escolas para educá-los a fim de que não se tornem o flagelo da sociedade, não caiam numa prisão (...)"; e, então, os homens deste século entendem e começam a crer: et nos cognovimus et credidimus caritati, quam habet Deus in nobis» (MB 17, 92-94).

Entre outras coisas, gostaria de evidenciar alguns elementos.

1.- Ao realizar a missão salesiana, enquanto sinais e portadores do Amor de Deus aos jovens mais pobres e abandonados, Dom Bosco está plenamente consciente da necessidade de que este Amor seja expresso e manifesto, de maneira que possa ser percebido o mais possível por eles (mesmo que não o digam com estas mesmas palavras). Vemo-lo com plena clareza No sonho narrado na "Carta de Roma": o lamento dos seus interlocutores sobre os salesianos e seus colaboradores não se refere à falta de amor pelos jovens, e nem mesmo à falta da sua expressão; de fato, Dom Bosco, diz: «Não vês como são mártires do estudo e do trabalho? Como consomem sua juventude por aqueles que a Divina Providência lhes confiou?». O que falta, na verdade, é a manifestação desse amor, assim expresso: «Falta o melhor (...): Que os jovens não somente sejam amados, mas que eles próprios saibam que são amados (...). Sem familiaridade não se demonstra o amor, e sem essa demonstração não pode haver confiança». Mais adiante, retoma-se essa mesma relação entre a expressão e a manifestação: «Descuidando do menos, perdem o mais, e esse mais são os seus trabalhos».

2.- A motivação que o nosso Pai nos dá não nasce somente do seu gênio pedagógico, mas é plenamente evangélica: «Jesus Cristo fez-se pequeno com os pequenos e carregou as nossas fraquezas. Aí está o Mestre da familiaridade (...). Quem sabe que é amado, ama; e quem é amado alcança tudo, especialmente dos jovens (...). Jesus Cristo não quebrou a cana já partida, nem apagou a mecha que fumega. Eis vosso Modelo!». É "sermos companheiros de caminho" dos nossos jovens e com eles, como fez Jesus ressuscitado com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35).

Contemplando Jesus Cristo Bom Pastor, com o olhar de Dom Bosco, podemos dizer que a expressão do seu amor é a busca incansável da ovelha desgarrada, a "predileta" justamente pela sua situação de abandono e de perigo; e a sua manifestação é colocá-la carinhosamente nos ombros...

Temo aqui amplamente, sem dúvida, o influxo de S. Francisco de Sales, que levou Dom Bosco a tomá-lo como modelo e patrono, desde o início da sua missão, e em particular naquela noite memorável da reunião anunciada no dia anterior, na solenidade da Imaculada Conceição de Maria: 9 de dezembro de 1859, quando anunciou ter chegado «o momento de declarar se queriam ou não inscrever-se na Pia Sociedade que tomaria, ou melhor, conservaria, o nome de S. Francisco de Sales» (cf. MB 6, 333-337). Convocou os primeiros Salesianos para realizarem a «prática da caridade pastoral» «para a juventude abandonada e periclitante»... Trata-se da amorevolezza como manifestação do amor salvífico de Deus (cf. C 15).

3.- As palavras do Cardeal Parrocchi colhem a característica da missão de Dom Bosco na capacidade de concretizar o Amor de Deus de maneira que, procurando corresponder plenamente às necessidades autênticas e mais profundas dos jovens, eles se sintam amados realmente e de maneira eficaz por Deus, através da mediação salesiana.

Isso quer dizer que, se quisermos ser realmente fiéis a Dom Bosco e à nossa missão, devemos ter em cada momento esta atitude de discernimento, como indicam as nossas Constituições: «As necessidades dos jovens e dos ambientes populares (...) movem e orientam nossa ação pastoral» (C 7); e também: «Nossa ação apostólica realiza-se em pluralidade de formas, determinadas em primeiro lugar pelas exigências daqueles a quem nos dedicamos» (C 41). Poderia acontecer que um tipo de atividades e de obras, que foram sem dúvida expressão de amor pastoral, já não sejam sua manifestação: tornam-se carismaticamente irrelevantes. Consequentemente, devemos dizer (sem nenhuma intenção de mudar o sentido da frase de Dom Bosco) que «não basta amar»: ao recordar o que São Paulo pedia a Deus pelos seus caros filipenses, o nosso amor deve crescer, sempre mais, no discernimento e na percepção (ςςFl 1,9). Por outro lado, poderia também existir o perigo contrário, isto é: uma manifestação do amor que não trouxesse também a sua expressão: seria falsa («filhinhos, não amemos de palavras nem com a língua, mas com fatos e na verdade» (1Jo 3,18) ou, ao menos, ineficaz (cf. Tg 2,15-18).

4.- Evocando o CG25, considero que um grande desafio também para a nossa vida salesiana é constituído pelo pôr em prática esse traço fundamental do sistema preventivo... em nossa vida de comunidade. Esquecemos muitas vezes que «Deus nos chama a viver em comunidade, confiando-nos irmãos que devemos amar» (C 50); e, sem dúvida, sermos amados por eles para que, refletindo o Mistério da Trindade, encontremos realmente nela «uma resposta às aspirações profundas do coração», que não são outras que as de amar e ser amado; só assim seremos «para os jovens, sinais de amor e de unidade» (C 49). Ninguém dá aquilo que não tem...

E mais: não basta amar os nossos irmãos em comunidade; é necessário manifestar o nosso amor, de maneira que seja percebido, e correspondido. Este desafio é muito urgente na vida ordinária, tão apressada, fazendo-nos esquecer que a significatividade não consiste na quantidade de trabalho feito, mas na sua qualidade. Faltando isso, não podemos ser sinais e portadores do Amor de Deus que é, em Si mesmo, Comunidade...

5,- Enfim, gostaria de sublinhar um traço que retomaremos ao falar de Dom Bosco: a frase programática «procura fazer-te ama»" fecha de maneira perfeita a elipse do amor, em sua realização pessoal, comunitária e apostólica. Podemos citar a respeito a extraordinária afirmação de Bento XVI em sua Mensagem: «Na verdade, somente o amor no qual se unem o dom gratuito de si e o desejo apaixonado de reciprocidade infunde o êxtase que torna leves os sacrifícios mais pesados».



ORAÇÃO – A MANIFESTAÇÃO DO AMOR

Senhor, nosso Deus,

Pai, Filho e Espírito Santo:

como és grande!

Contemplamos com admiração e admiração

o mistério da tua vida trinitária:

És, para todo o sempre, o Amor perfeito.



Quiseste fazer compartilhar da tua vida e do teu amor

o ser humano, com todas as mulheres e os homens deste mundo,

para que, na experiência de sermos amados e aprendermos a amar

possamos ser sempre mais parecidos contigo,

e, assim, poder um dia viver para sempre a tua mesma vida.



E ainda mais:

quiseste manifestar-nos o teu Amor, de uma vez por todas,

no teu Filho, a Palavra feita carne, Jesus Cristo, nosso Senhor.



Ele, que é Deus, esvaziou-se a si mesmo, tornando-se um de nós,

compartilhando plenamente a nossa mesma vida,

a ponto de levar esse amor ao extremo: morrendo e ressuscitando por nós.



Confiaste à Igreja a maravilhosa tarefa

de continuar a mesma missão do teu Filho:

tornar presente e visível, para os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares

o teu Amor e a tua Salvação.



Suscitaste a Congregação Salesiana

como animadora de um grande movimento na Igreja

para que possa chegar aos jovens, especialmente os mais pobres e abandonados,

a plena manifestação da tua predileção por eles.



Nós te pedimos, ó Pai,

que nos concedas não só o dom de um amor incondicional por eles,

mas que também saibamos como manifestar-lhes esse Amor

nas formas e nas obras em que eles possam melhor experimentá-lo

e crer em Ti, Fonte de todo amor.

Concede que possamos viver em nossas comunidades,

na unidade do amor fraterno,

o Mistério da tua Unidade Trinitária.

Por Cristo, nosso Senhor. Amém.

5 - GRATUIDADE - GRAÇA - EUCARISTIA



A nossa reflexão tem como centro um dos termos mais usados na fé cristã e na teologia: a GRAÇA. Trata-se de uma daquelas palavras que, como também epifania, abraça a totalidade do Mistério Cristão a partir de uma perspectiva específica. Infelizmente é, também, uma das palavras utilizadas do pior modo, também por que corruptio optimi, pessima. Antes de tudo, porque se esquece, com freqüência, que a Graça não é "alguma coisa", mas Alguém: Deus mesmo. Isso nos leva a considerá-la quase um objeto, uma coisa (falamos assim de "diversas graças"). Por outro lado, também esquecemos muitas vezes o seu caráter de gratuidade, considerando-a até mesmo, em nossa relação com Deus, como dependente mais de nós do que d'Ele; em concreto, "estar" (ou não estar) "em Graça", conservá-la, fazê-la crescer ou perdê-la; quando, na realidade, podemos perder tudo... menos a Graça, entendida como aquele amor gratuito e incondicionado com que Deus se entrega a nós.



1.- A perda do sentido da Gratuidade



Após esta motivação teológica inicial, um pouco provocatória, gostaria de convidar-vos a tomar como ponto de partida a realidade humana que está na base, não porque podemos construí-la antes "a partir de baixo" e só depois "batizá-la" assumindo-a cristãmente. Trata-se do contrário: só a partir da fé podemos compreender e descobrir toda a profundidade, também humana, da gratuidade. Apesar disso, como salesianos que queremos pôr em prática a nossa convicção, de que não existe separação entre natureza e graça, queremos aprofundar a sua "infra-estrutura antropológica" também para constatar o "déficit de gratuidade" vivido hoje pelo nosso mundo.

Existiriam muitos sinais para indicar esta carência; entre eles, farei uma pequena alusão a três, particularmente significativos para nós.

1.- Na cultura ocidental, em proporção não irrelevante, o modelo de "homem de sucesso" é aquele que pode dizer com orgulho: "tudo o que tenho, eu o pude obter por mim mesmo", "ninguém me deu nada"... Conseqüentemente, muitas pessoas que foram capazes de construir com sucesso a própria vida "a partir de baixo" tornam-se, depois, inimigos enfurecidos da promoção dos mais necessitados, considerando (talvez um pouco à moda pelagiana) que "todos têm as mesmas oportunidades; se não souberam aproveitá-las, pior para eles; porque se deveria 'dar'-lhes alguma coisa?" Nessa perspectiva, a gratuidade não encontra lugar; antes, não é nem mesmo considerada como virtude. A essa tendência natural do ser humano acrescenta-se na mentalidade atual, infelizmente, um paradigma de "realização humana" reduzida, habitualmente, à produtividade econômica e material.

2.- Em âmbito familiar, é significativo o tratamento que damos às pessoas idosas ou doentes, isto é, àquelas que já não podem "produzir". Diversamente das culturas ancestrais, nas quais as pessoas idosas eram valorizadas como o eixo do grupo familiar, e até mesmo como "sábias" cuja palavra era norma de conduta e juízo inapelável, na cultura atual são vistas muitas vezes como entrave e, no melhor dos casos, são mandadas para centros assistenciais ou casas de repouso. Caso não existam esses recursos institucionais, deve-se "suportá-las" em casa, sem valorizar aquilo que deram, e que também poderiam dar se os critérios de valorização fossem mais humanos e menos consumistas. Infelizmente, essas situações se fazem presentes, às vezes, também na vida religiosa.

3.- Em nível mundial, a situação de desigualdade entre os países chamados de "primeiro mundo" e os países de "terceiro mundo" é inaceitável, mas em alguns aspectos continua a crescer. A proposta do "perdão da dívida" dos países pobres, excluindo algumas exceções, não teve escuta; frequentemente também devemos dizê-lo, esse não é tanto um problema econômico dos países "ricos", mas, sobretudo "político": serve para conservar a situação de dependência provocada pela mesma dívida. O próprio conceito de "justiça" entendida como "dar a cada um aquilo que merece" não deixa espaço à gratuidade, embora, sem dúvidas, muitas coisas pudessem melhorar em nosso mundo se houvesse ao menos esse tipo de justiça, se a norma de conduta entre as pessoas e as nações fosse... a lei do talião. Isso indica que ainda há muito caminho a percorrer para chegar à civilização do amor; concretamente, ela será impossível se não procurarmos despertar e desenvolver o sentido e a cultura da gratuidade.



2.- A Gratuidade, realidade humana fundamental



Depois disso, seria possível pensar em fazer uma passagem imediata à perspectiva cristã e teológica, deixando um vazio total em nível antropológico, dando assim a impressão de que a proposta de fé é apenas resposta a um problema humano insolúvel. Talvez seja assim no fundo, mas não devemos ignorar o "espaço intermediário" onde todo ser humano (também os não-cristãos!) podem e devem fazer experiência de gratuidade, de modo que a fé cristã possa depois desenvolver toda a sua riqueza, como plenitude de algo que todo ser humano vive e espera.

A gratuidade está intimamente relacionada com a experiência do dom, do presente. Apesar disso, tem conotações levemente diversas. A gratuidade evidencia a ausência de merecimentos da parte de quem recebe; caso contrário, não é gratuito. O pagamento que um trabalhador recebe no fim de semana é ganho com o suor do seu rosto: não o recebe grátis.

Ao contrário, o dom evidencia o caráter positivo daquilo que é dado. Uma bofetada, por exemplo, pode ser "dada" sem merecê-la; mas não é absolutamente um presente. Infelizmente, de forma habitual, quase sem o percebermos, atribuímos outra característica ao dom: a de ser seletivo; ele é concedido a uns e não a outros (pelo menos, não a todos). Um "presente universal" parece quase contraditório, porque nos parece que não seja mais um presente.17

Feitos estes esclarecimentos, analisemos, ainda em nível humano, as duas experiências fundamentais da gratuidade,

1.- A dificuldade mencionada logo acima impede, muitas vezes, que se perceba que à base mesma da nossa existência há um dom que, justamente por isso, é ao mesmo tempo gratuito, positivo e universal: a vida. Trata-se do dom por excelência, por dois motivos:

  • ninguém pode fazer nada para merecê-la, porque, para merecer alguma coisa, é preciso, antes de tudo existir para poder obtê-lo;

  • qualquer outro dom que possamos receber é posterior, porque já pressupõe a própria vida.

Enfim, convém evidenciar a sua universalidade, porque só é carente dela quem não vive (ninguém, portanto).

Torna-se, por isso, muito interessante e significativa a atitude que temos em relação à questão que, muitas vezes, surge diante de situações particularmente negativas da vida e da história: há pessoas que não merecem viver?

Fico a imaginar que a nossa resposta, unânime, é: não! E é uma resposta correta, mas talvez pela razão oposta àquela a qual estamos habituados a pensá-la: não porque todos temos o direito à vida, mas na realidade porque ninguém "merece" a vida: justamente por isso ninguém pode dispor da vida de outra pessoa... (Talvez no caso de um direito que "se tenha", seria possível perder; mas, e no caso contrário?...)

Encontramos, então, na base de todos os seres humanos, sem exceção, o dom por excelência. Outra questão, sem dúvida muito relevante para nós, como cristãos e como salesianos, é se todo ser humano percebe a própria vida como dom, isto é, como presente – como algo positivo. Infelizmente, muitas vezes isso não acontece, a começar de muitos jovens que, por razões diversas, não encontram motivos para viver, talvez porque não se sintam amados por ninguém...

2.- Isso nos leva à segunda experiência de gratuidade. Se a vida é o dom gratuito por excelência, ele o é enquanto fundamento, não enquanto plenitude, porque a questão que surge espontânea é: por que tenho este dom, a vida? O que pode dar sentido à minha vida? E aqui a resposta é imediata e universal: o amor. Cedamos a palavra a Santo Tomás, numa extraordinária expressão, numa insuperável concisão: «A razão de todo dom gratuito é o amor; de fato, damos gratuitamente alguma coisa a alguém porque lhe desejamos o bem. De aí vemos claramente que o amor é o dom por excelência, pelo qual é presenteado todo dom gratuito» (um triplo pleonasmo!).18 Josef Pieper coloca esta frase como epígrafe do seu extraordinário livro sobre o amor.19

A gratuidade do amor é um tema inesgotável, mesmo do ponto de vista humano. Em primeiro lugar, a gratuidade pode confundir-se com a falta de motivação, e, conseqüentemente, com a sua incompreensibilidade. Por que amo esta pessoa? É uma pergunta que sempre permanece, afinal de contas, sem uma resposta adequada (menos mal: se houvesse uma resposta, talvez não fosse mais um amor autêntico). Montaigne disse genialmente, para explicar a sua amizade com Étienne de La Boétie: «Si on me presse de dire pourquoi je l’aimais, je sens que cela ne se peut exprimer qu’en répondant: Parce que c’était lui, parce que c’était moi» ("Se me pedem para explicar porque eu o amava, percebo que isso não pode ser expresso a não ser respondendo: Porque era ele e porque era eu").20

Uma segunda característica na experiência do amor é a incondicionalidade. Pode haver outras formas de relação interpessoal que se fundamentam em qualidades diversas: beleza física, inteligência, habilidade, etc. (às vezes, estranhamente, em outros fatores quase em contraste com estes); mas o amor autêntico, sem ser insensível e indiferente a tudo isso (ubi amor, ibi oculus, dizia Ricardo di São Vítor), transcende todas essas condições

Apesar disso, como em qualquer experiência humana, não é carente de ambigüidades; poderia levar ou à aceitação incondicionada, típica do amor verdadeiro, ou ao "esvaziamento" do outro (justamente porque essa relação não depende de nenhuma de suas características pessoais próprias) que seria simplesmente caricatura do amor; de fato, quem ama assim não o faz verdadeiramente, nem a outra pessoa se sente amada como pessoa. Pode ser, em muitos casos, um estratagema sutil do egoísmo. De alguma maneira, seria o que Santo Agostinho exprimia genialmente em suas Confissões: "Eu ainda não amava, mas amava amar": Nondum amabam, et amare amabam 21.

Ainda seria possível continuar esta análise. De maneira análoga ao tema da manifestação, porém, é conveniente tornar explícita aqui a outra dimensão na elipse do amor. Até aqui vimos como se faz habitualmente, isto é, a partir da atitude de quem ama. Mas, como se vive do outro lado dessa experiência?

Encontramos aqui, algo de extraordinariamente paradoxal. O Reitor-Mor, em sua Carta sobre a Eucaristia, alude a isso (à página 14). Creio que possamos enriquecer o que ele afirma (retornaremos sobre isso no final) a partir do seu fundamento antropológico.

À primeira vista, parece evidente que todos nós desejemos ser amados e, sobretudo, ser amados de maneira gratuita e incondicionada. Entretanto, as coisas não são tão simples. Cedo novamente a palavra a J. Pieper:

«Todo amor é fundamentalmente gratuito. Não pode ser merecido nem exigido; é sempre um dom (...). Parece, porém, que exista algo no homem como uma aversão ao se fazer objeto de um dom. Não há ninguém a quem não seja um pouco familiar a expressão: Não quero presentes! E esse sentimento confina terrivelmente com o outro: não quero ser "amado" sem motivo! (...) E C. S. Lewis diz que o amor, do qual realmente precisamos, é justamente aquele gratuito, e não o tipo de amor que desejamos. "Nós desejamos ser amados pela nossa inteligência, beleza, generosidade, gentileza, capacidades"»o simples. Cedo novamente a palavra a J. s queiramos ser amados e, sobretudo, ser amados partir do seu fundamento antropol22.

Percebemos, também aqui, a ambigüidade de que falávamos, só que a partir da experiência passiva de ser amado; nesta experiência, a pessoa amada poderia perguntar-se: quero deixar-me "despojar" de tudo o que me constitui como "eu" único e irrepetível? Mesmo se no fundo não é assim, ou melhor, não deveria ser assim. Se alguém me diz: "Eu te amo, não me interessa como és", será uma expressão de incondicionalidade ou de desinteresse e indiferença? Baste pensar que dizer a um irmão da nossa comunidade: "és o objeto privilegiado da minha ágape", é uma das formas mais sutis e incisivas de ofendê-lo. É muito difícil deixar-se amar incondicionadamente pelos outros, e até mesmo pelo próprio Deus...

Além deste mal-entendido, talvez haja outro motivo que explica, de algum modo, esta recusa a ser amado incondicionalmente: a aparente inutilidade da resposta do amado. Pode parecer que à pessoa que ama, não interesse se nós correspondemos ou não ao seu amor; e isso a coloca numa situação inegável de inferioridade. Nietzsche tem muita razão quando afirma: «A quem habitua-se apenas a dar, formam-se calos nas mãos e no coração». Devemos afirmá-lo claramente: à essência do amor corresponde o dar… e o receber: também em Deus. Esta última afirmação será desenvolvida posteriormente.



3.- … "A Graça e a Verdade vieram por meio de Jesus Cristo"



Ao recordar a diferença entre expressão e manifestação, torna-se mais claro indicar como tudo o que foi dito acima se torna, na vida de todo ser humano, expressão da gratuidade do Amor de Deus. Apesar disso, para ser percebida como tal, é necessária a sua manifestação, em Jesus Cristo.

Pressupondo essa distinção, podemos indicar três características fundamentais do Amor divino a partir da perspectiva da gratuidade:

- a universalidade: «Deus quer que todos os homens sejam salvos» (1Tm 2,4). Disso nasce o caráter missionário da Igreja em sentido estrito, e, com acentuações próprias, da missão salesiana nela. Pessoalmente, creio que um dos elementos que mais podem ajudar a entender a "necessidade" da pertença à Igreja em relação à salvação é o seu caráter de comunidade: precisamos levar a sério que, fora da Igreja atual, não há atualmente experiência plena de salvação, justamente porque falta a manifestação concreta, perceptível, histórica, do Amor de Deus em Jesus Cristo, vivida na Igreja como Família de Deus;

- a iniciativa de Deus: «Não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou» (1Jo 4,10). A Graça, enquanto expressão gratuita do Amor divino, é sempre antecedente: precede sempre a resposta humana que, de certo modo, é também dom de Deus, mas não exclui em absoluto a liberdade humana. Neste sentido, digamo-lo novamente, o Sistema Preventivo de Dom Bosco afunda suas raízes no cerne da nossa fé: «Dom Bosco viveu (...) uma experiência espiritual e educativa a que chamou "Sistema Preventivo". Era para ele um amor que se doa gratuitamente, nutrindo-se da caridade de Deus que se antecipa a toda criatura com a sua Providência» (C 20). Na semântica desta palavra, pre-venir, parece-me poder encontrar dois sentidos: um, a pre-cedência; e outro, o esforço para evitar algo negativo. No primeiro sentido, falamos do amor que antecede sempre; no segundo, da preocupação para impedir a experiência do afastamento em relação a Deus, o pecado (por isso, podemos utilizar os dois termos: pre-veniente, pre-ventivo);

- enfim, a incondicionalidade. O Amor de Deus, enquanto Graça, não pressupõe nada para poder amar, mas mostra até mesmo uma predileção – desconcertante, segundo os critérios humanos – por aquilo que não é "amável", por quem não "tem qualquer direito" de pretender ser amado. «De fato, os pecadores são belos porque são amados (por Deus), não são amados por serem são belos».23

Não resisto à tentação de citar um belíssimo texto de Dostoievski, pronunciado por um personagem nada exemplar, o bêbado Marmeladov:

«Ele julgará e perdoará a todos, os bons e os maus, os sábios e os cordatos... E quando terminar o julgamento de todos, chegará a nossa vez Ele interpelará também a nós: "Saí, também vós!". E nós apareceremos, sem acanhamento, e nos apresentaremos. E Ele dirá: "Sois uns porcos! A imagem e a marca do bruto; mas vinde também vós!". E falarão os sábios, falarão os sensatos: "Senhor! Por que os recebeis?". E Ele dirá: "Eu os recebo, sábios, eu os recebo, sensatos, porque nem um só deles se considerou digno disto...". E nos estenderá seus braços, e nós lhe cairemos aos pés... e começaremos a chorar... e compreenderemos tudo!».24



4.- O Amor de Deus, Ágape e Eros



A experiência que o homem faz do amor, também do Amor de Deus, é uma experiência humana. Enquanto tal, não pode libertar-se da ambigüidade inerente a toda compreensão do amor. Por desgraça, muitas vezes acontece isto: a universalidade do Amor de Deus pode ser considerada como genericismo, a sua precedência pode estar tão distante que passa inadvertida, e a sua incondicionalidade pode confundir-se com a indiferença. A evangelização e a catequese, enquanto anúncio da manifestação do Amor divino, devem fazer o possível para dissipar esses mal-entendidos, para que possa ser percebido, em toda a sua beleza e eficácia, na vida de cada um de nós e na dos jovens que o Senhor nos confia.

De todos esses mal-entendidos, quero aprofundar um, que me parece campo praticamente inexplorado. Daquilo que sei, o único que ousou penetrar nele foi Joseph Ratzinger, e é consolador que o tenha feito sendo o Pastor supremo da Igreja Universal. Infelizmente, também os grandes tratadistas deram por suposto que o Amor de Deus é diferente do amor humano, entre outros aspectos, pela sua total e absoluta gratuidade, de modo que não cabe nada em troca. J. Pieper afirma, sem pensar que seja necessário demonstrá-lo que «seria preciso ser Deus para ser capaz de apenas amar, sem ser obrigado a recorrer ao ser amado».25

Por sua vez, S. C. Lewis escreve: «Deus é Amor (...). Este Amor originário é um "amor-dom": em Deus não há fome que deva ser saciada, mas só plenitude que deseja doar (...). Os "afetos-necessidade", porquanto pude experimentar, não se assemelham Àquele que é o próprio amor».26

Quase literalmente são contraditos pelo Papa Bento XVI, com termos teologicamente insólitos: «o Onipotente aguarda o "sim" das suas criaturas como um jovem esposo o da sua esposa. (...). Na Cruz é o próprio Deus que mendiga o amor da sua criatura: Ele tem sede do amor de cada um de nós» (Mensagem para a Quaresma de 2007).

Continuando este esforço para "aprender" o que é o Amor, na contemplação da sua manifestação plena e definitiva em Jesus Cristo, perguntamo-nos em relação à gratuidade: Qual é o "caso ótimo" ("figura plena") como a chama Eberhard Jüngel27 na experiência do amor?

Se quisermos responder esquematicamente, podemos estabelecer diversas possibilidades:

- Há quem ama sem aguardar/esperar qualquer resposta da pessoa amada: é claro que não se trata do "caso ótimo" do amor (embora Jüngel abra uma portinha: «Naturalmente, não se deve excluir que a essência do amor venha à luz ainda mais nitidamente do ponto de vista hermenêutico quando o "tu" amado não ama o "eu" amante»28).

- Há quem ama para ser retribuído: mesmo aqui é evidente que não se dá o "caso ótimo", e talvez nem mesmo se trate de um verdadeiro amor, mas de egoísmo mascarado.

- Há quem ama de maneira desinteressada, mas esperando uma resposta da pessoa amada, pelo bem dela mesma: eu quero que a pessoa amada corresponda ao meu amor, não pelo meu bem, mas pelo seu: para sair de si mesma e realizar-se como pessoa, através do amor. É uma posição muito "nobre", mas devemos reconhecer, se formos sinceros, que não é humanamente satisfatória.

- Há quem ama de maneira desinteressada, mas esperando uma resposta da pessoa amada, pelo bem dela mesma, enquanto corresponde a quem a ama: é aparentemente igual à anterior, mas há uma diferença essencial: a convicção de que a pessoa amada só poderá encontrar a felicidade no "amante". Este caso seria inaceitável nas relações humanas ("quem pensas que és?"), mas, curiosamente, pareceria a situação típica da relação com Deus: neste caso, tratar-se-ia da salvação, bem entendida: somente Deus pode ser a felicidade de quem corresponde ao seu Amor.

- Infelizmente, não estamos ainda no "caso ótimo". É preciso acrescentar, à luz de tudo que já refletimos, que a resposta do homem ao Amor de Deus constitui a felicidade plena do amado... e também do Amante, o próprio Deus. Parece-me que levar isso a sério leva-nos a entrever perspectivas insuspeitadas na penumbra do Mistério do Deus-Amor revelado em Cristo...

O mesmo Dostoievski tem um texto extraordinário, a respeito de uma jovem mãe, que faz o sinal da cruz diante do primeiro sorriso da sua criança; a mãe simples assim o explica: "A alegria que uma mãe experimenta quando observa o primeiro sorriso da sua criatura, é exatamente a mesma alegria que também Deus experimenta sempre que vê do céu um pecador ajoelhar-se diante d'Ele para rezar de todo o coração".29



5.- "Fazei isto em memória de Mim": o dom da Eucaristia



Tudo isso nos permite entender melhor a afirmação do Reitor-Mor na carta sobre a Eucaristia:

«A Eucaristia é mistério porque nela nos é revelado muito amor (cf. Jo 15,13), um amor tão divino que, ultrapassando as nossas capacidades, nos consterna e nos deixa aturdidos. Embora nem sempre estejamos conscientes disso, temos normalmente dificuldade para receber o dom da Eucaristia, o amor de Deus que se tornou manifesto na entrega do corpo de Cristo (cf. Jo 3,16) que excede a nossa capacidade e desafia a nossa liberdade; Deus é sempre maior do que o nosso coração e chega aonde não podem chegar os nossos desejos melhores. (...) Um amor tão extremo assusta-nos, revela a pobreza radical do nosso ser; e a necessidade profunda de amar não nos deixa tempo, nem energias, para nos deixarmos amar. Preferimos, então, ficar ocupadíssimos, refugiar-nos no fazer tanto pelos outros e dar-lhes tanto de nós,30 privando-nos da surpresa de sermos tão amados por Deus» (ACG 398, p. 13).

O Reitor-Mor evidentemente retoma, aqui, alguns conteúdos e expressões da Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, que todos nós, sem mais, já conhecemos e meditamos.

Entre as muitas reflexões possíveis, gostaria de concentrar-me primeiramente na raiz mesma da palavra Eucaristia: encontramos aqui, novamente, a ς, que evidencia ao máximo o seu sentido de gratuidade, enquanto não encontramos "um" dom de Deus, mas o mesmo Deus feito Dom para nós. Aquilo que o Papa afirma no início da sua primeira encíclica, Deus Caritas Est (DCE n. 1): «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo», concretiza-se na Eucaristia (cf. Sacramentum Caritatis 86, et passim): «Jesus, no sacramento eucarístico, continua a amar-nos "até o fim", até o dom do seu corpo e do seu sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do coração dos discípulos à vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico!» (SC 1).

Em segundo lugar, convém recordar que a última Ceia, enquanto tal, se vê precedida de muitas outras (caso contrário, não seria "a última"). O Reitor-Mor recorda-nos este sentido de "convívio" que é a Eucaristia, tomando como ponto de partida "o comer junto" de Jesus, particularmente, com os pecadores. Basta recordar, entre outros textos evangélicos, Mt 9,9-13; Lc 5,29-30; 15,1ss. (ACG 398, p. 33-35).

Surge uma pergunta interessante: qual o Sacramento da Igreja que encontra aqui o seu "fundamento cristológico": a Eucaristia ou a Reconciliação? Creio que a resposta deveria ser: ambos, de maneira inseparável. Não se pode esquecer que o perdão constitui o elemento central na vida e na missão de Jesus, como expressão privilegiada do Amor misericordioso de Deus. Antes, só no Amor ele pode ter a sua raiz autêntica. Isso pode ser visto também através da análise etimológica da palavra; ao menos nas línguas ocidentais, a sua raiz é simplicíssima: dar, presentear, com prefixo intensivo per (também no campo lingüístico anglo-saxão: for-give, ver-geben). Em outras palavras, não há dom maior e mais gratuito do que o per-dom; e, recordando a frase de Santo Tomás, não há autêntico perdão que não nasça do amor.

Tudo isso pode ter, entre muitas outras concretizações, uma que se refere à nossa vida comunitária. Nela (a Eucaristia) «a comunidade celebra o mistério pascal (...) para n'Ele construir-se como comunhão fraterna e renovar o seu compromisso apostólico» (C 88). Levar a sério a Eucaristia, deveria levar-nos a crescer na fraternidade comunitária (incluindo a realidade cotidiana do perdão) e aceitando o mandamento de Jesus: Fazei isto em memória de Mim: ser, também nós, corpo que se dá, sangue que se derrama para a salvação dos nossos jovens.

Enfim, gostaria de convidar-vos a contemplar Nossa Senhora. Não há necessidade de "inventar" presenças apócrifas na Última Ceia (nem mesmo, igualmente, aparições pascais); João Paulo II alude a isso, ao indicar que, na «narração da instituição, na noite de Quinta-feira Santa, não se fala de Maria» (EdE, 53). Nem é preciso. «Para além da sua participação no Banquete eucarístico (...) Maria é mulher "eucarística" na totalidade da sua vida» (ibidem). «D'Ela devemos aprender a tornar-nos pessoas eucarísticas e eclesiais» (SC 96).

Após a explicitação desta afirmação nos diversos textos neotestamentários, o Servo de Deus conclui: «Se o Magnificat exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade para nos ajudar a viver o Mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um Magnificat!» (EdE, 58).













ORAÇÃO: GRATUIDADE-GRAÇA-EUCARISTIA



Senhor Deus, nosso Pai,

Vives para todo o sempre

com o Filho e o Espírito Santo

na plenitude do Amor e da doação recíproca.

Quiseste criar o ser humano

à tua imagem e semelhança.

Em teu maravilhoso plano de salvação

dispuseste que toda mulher e todo homem

possam experimentar o teu Amor

desde o primeiro momento da sua existência,

aprendendo, assim, a amar a Ti e ao próximo.

Infelizmente, nós, homens, rejeitamos o teu amor,

desde o início da história,

e, consequentemente, nos tornamos inimigos até mesmo entre nós.

Apesar de tudo, Tu não nos abandonaste,

e em Jesus Cristo, Teu Filho, sem nenhum mérito de nossa parte

nos ofereceste o teu amor gratuito e incondicional.

O próprio Jesus desejou permanecer conosco para sempre,

para perpetuar o seu amor e a sua entrega até a morte,

no sacramento da Eucaristia.

Concede-nos que possamos contemplar, com um coração de criança

que não se cansa de admirar e agradecer

este mistério insondável do teu amor,

para que também nós possamos nos tornar Eucaristia

para nossos irmãos e para os jovens que Tu nos confias.

Nós te pedimos: neste mundo, tão fechado ao teu Amor e à tua Graça,

ajuda-nos a saber como construir uma cultura de gratidão

que nos permita crescer em relacionamentos de fraternidade e amor

entre todos os homens,

sentindo-nos amados por Ti como verdadeiros filhos e filhas, em Cristo,

e assim possamos corresponder ao Teu amor,

encontrando, nessa resposta, a nossa felicidade e a nossa salvação.

Por Cristo, nosso Senhor.

Amém.

6 - A MISSÃO SALESIANA: «OS JOVENS MAIS POBRES E ABANDONADOS»





«Devereis honrar João Bosco, que se preocupou com os jovens mais pobres, e criou escolas para eles»; diz-se que são palavras escritas pelo próprio Mao Tse Tung em seu famoso Livro vermelho. Verdade ou não, é fora de dúvida que São João Bosco é conhecido e amado, além das fronteiras da Congregação e da Família Salesiana, e mesmo da própria Igreja, pela sua predileção pelos meninos e jovens, sobretudo os mais pobres e abandonados.

Ao refletir sobre este tema, central para o Carisma Salesiano enquanto se refere aos destinatários prioritários da nossa Missão, e a nossa atitude para com eles, encontraremos aí um centro de convergência dos temas tratados anteriormente; por isso o colocamos já pelo final dos nossos Exercícios.



1.- «... a sua predileção pelos pequenos e pobres...»



A Missão salesiana tem suas raízes na vida, nas palavras e no exemplo de Jesus Cristo. Como indica o Concílio Vaticano II, todo carisma contempla o Filho de Deus feito Homem a partir de diversas perspectivas (cf. LG 46). Ou, como dizem as nossas Constituições, «somos mais sensíveis a certos traços da figura do Senhor» (C 11). Não é preciso demonstrar que a sua "predileção pelos pequenos e pelos pobres" constitui um dos aspectos mais indubitáveis, seguros e humanos, por assim dizer, do Senhor Jesus. Seriam muitíssimos os textos evangélicos que no-lo demonstram. Creio, porém, que sejam necessários alguns esclarecimentos a respeito.

Primeiramente, é relevante a palavra usada pelas nossas Constituições. Falar de predileção é, antes de tudo, falar de amor; de um amor preferencial, "maior", mas não exclusivo, e menos ainda excludente. Considero que é uma palavra muito mais adequada do que "opção", termo que, de per si, não indica amor como também pode insinuar certa discriminação. Jamais encontramos em Jesus a recusa a alguém; mas, no interior de um amor universal, existem atitudes de predileção.

Consequentemente, podemos perguntar-nos: quem é objeto da predileção de Jesus? Nossas Constituições, fiéis ao Evangelho, falam "dos pequenos e dos pobres". Será uma identificação, dois tipos de destinatários no mesmo nível, ou uma hendíade, que unifica sem eliminar eventuais diferenças?

Podemos responder ao evocar as Bem-aventuranças: a primeira delas refere-se aos "pobres" (Lc 6,20), ou "pobres no espírito" (Mt 5,3). Nos dois textos, promete-se a eles "o Reino dos céus / de Deus".

Pode ser aqui o lugar para explicitar o conceito de "pobreza" de que fala Jesus. Sem ignorar ou procurar diminuir a complexidade da questão, e também a ambiguidade que a mesma palavra representa; o mesmo termo serve para designar uma situação negativa, expressão do pecado e do egoísmo humano, mas também um ideal humano e cristão, "sancionado" até mesmo com voto na vida consagrada.

Este esclarecimento pode ser expresso de maneira muito simples e concreta, ao contemplar o Senhor Jesus, e a sua situação concreta (Sitz im Leben). Mesmo com o risco de parecer tautológico, podemos dizer: pobre é aquele/a para quem o Evangelho é Boa Nova. Esta descrição não identifica automaticamente pobreza com situação social e econômica, mas estabelece com ela uma relação muito estreita; e, simetricamente, não condena automaticamente o ter, embora indicando o perigo real que implica em si mesma. Por outro lado, esta descrição recorda-nos que a pessoa de Jesus e a sua mensagem não foram para todos uma "boa nova"; e que os obstáculos para a sua aceitação são de gêneros diversos; sem dúvida, também sócio-econômicos (cf. o jovem rico, Mc 10,17-22 et par.), mas não são os únicos motivos, e talvez nem mesmo aqueles que, afinal, determinam essa recusa.

Com as palavras do cântico de Nossa Senhor, o Magnificat, podemos dizer que a atitude humana de autossuficiência é o contrário da "pobreza", que leva a recusar a Boa Nova do Evangelho e, no fundo, o próprio Jesus, e se manifesta em três direções: orgulho – poder –dinheiro. "Dispersou os que têm planos orgulhosos no coração – derrubou os poderosos de seus tronos – e mandou embora os ricos de mãos vazias" (Lc 1,51-53).

Recordemos o texto de Pr 30,8-9:

Não me dês indigência nem riqueza,

mas concede-me apenas a minha porção de alimento.

Isto para que, estando farto,

eu não seja tentado a renegar-te

e comece a dizer: "Quem é o Senhor?"

Ou, tendo caído na indigência, não roube

e profane o nome do meu Deus.

Quem tudo tem, é tentado a dizer (talvez não com as palavras, mas com a atitude): "Quem é Deus? Por que preciso d'Ele, se eu me basto a mim mesmo?". Por outro lado, porém, não podemos absolutamente ignorar a dificuldade de crer no Amor de Deus daqueles que não têm nem mesmo o indispensável, para si e para os seus, em vista de uma vida digna de seres humanos, filhos/as de Deus.

Mudando um pouco a perspectiva, mas sempre em nossa sensibilidade carismática, podemos esclarecer este aspecto central na missão de Jesus. Conhecemos muito bem a valorização que o Senhor faz dos pequenos, até mesmo convidando-nos a assemelhar-nos a eles / sermos como eles, caso contrário, não entraremos no Reino de Deus.

Infelizmente, nem sempre é fácil precisar qual aspecto da infância o Senhor deseja sublinhar: haveria muitos elementos típicos dessa idade, aos quais Jesus certamente não quer referir-se. Na verdade, Ele mesmo nos dá a resposta, embora devamos dizer que muitas vezes passa inobservada. No texto de Marcos, o mais antigo, é-nos dito claramente: «Quem não acolher/receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele» (Mc 10,15). A palavra chave é o verbo "acolher/receber" (no original grego). E isso nos leva à questão: Como recebem as crianças o que lhes é dado? A resposta é muito simples, e indiscutível: com alegria e sentido de reconhecimento, justamente porque não "merecem" o que recebem.

Infelizmente, como vimos em outra reflexão, à medida que caminhamos na vida, perdemos muito frequentemente o sentido da gratuidade, e com ele também a alegria e o sentido da gratidão: «A simplicidade, aquela que o Novo Testamento chama de simplicitas, não é outra coisa senão "confiança no amor"».31

Neste sentido, é preciso levar a sério o caráter religioso da missão de Jesus; e isso deve levar-nos, como consequência, a definir o perfil da sua predileção radical, e também, sem qualquer dúvida, mais "escandalizadora", sem esquecer nem minimizar a sua ilimitada compaixão pelos mais pobres, doentes, marginalizados, com os quais estabelece plena solidariedade; falamos da sua predileção pelos pecadores, por aqueles que estão mais distantes de Deus, justamente porque são os que mais precisam do seu Amor e do seu Perdão; e, além disso, são aqueles que mais estão dispostos a receber com alegria e sentido de reconhecimento típico da criança, o que lhes é oferecido como dom: a misericórdia de Deus e a salvação (recordemos o caso "exemplar" de Zaqueu, Lc 19,1-10).

Numa sociedade teocrática como a de Israel, isso comportava sem dúvida também o desprezo "social", mas se subtrairia o cerne da missão de Jesus transformando a categoria de "pecador" em categoria social de "marginalizado". Não é pela marginalização social que Jesus mostra a sua predileção pelos pecadores, mas porque eles correm o risco de se perderem. Não levar isso a sério faz com que o Cristianismo se torne um movimento social que, sobretudo em nosso tempo, se converte numa ONG, frequentemente irrelevante e obsoleta. Podemos afirmar algo semelhante quanto ao nosso trabalho salesiano, na medida em que não vise realizar e manifestar a síntese admirável entre busca da salvação e promoção integral.

Tudo isso, talvez, seja aceito como princípio; nem sempre, porém, se torna critério de ação e estratégia, mesmo social; no fundo, deveria ser a modalidade com que a Igreja oferece um serviço insubstituível, pela sua identidade mais profunda, para a transformação da sociedade, sobretudo diante da injustiça e da idolatria do poder e do dinheiro, que parecem crescer sem medidas.

Tudo isso reflete a profunda convicção do cristão, ensinada pelo Mestre: o mal contra o qual queremos lutar, no fundo, não procede das estruturas sociais, políticas ou econômicas, mas do coração do homem (cf. Mc 7,20), certos de que «só o amor é capaz de transformar de modo radical as relações que os seres humanos tecem entre si» (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 4).



2.- «... com Dom Bosco reafirmamos a preferência pela juventude pobre...»



O que dissemos acima não elimina, de modo algum, a nossa preferência carismática, mas ilumina, e nos ajuda a insistir, novamente, na síntese tipicamente salesiana da nossa Missão: de um lado, compartilhando a Missão universal da Igreja (cf. C 3), que é fundamentalmente religiosa, e, de outro, enfrentando e oferecendo respostas concretas à problemática social e econômica do nosso Mundo. Devemos reafirmá-lo claramente: os nossos destinatários são «os jovens, especialmente os mais pobres» (C 26), «sobretudo os jovens que, por causa da pobreza econômica, social e cultural, às vezes extrema, não têm possibilidade de êxito» (R 1).

Esta fusão define a nossa identidade salesiana na realização da Missão: o nosso Carisma afirma claramente o tipo de pobreza à qual nos referimos; mas, ao mesmo tempo, sublinha também porquê nos dedicamos aos jovens que vivem nessa situação. A este segundo aspecto responde (além da frase de Regulamentos 1), o mesmo artigo constitucional: «os jovens vivem uma idade em que fazem opções fundamentais de vida que preparam o futuro da sociedade e da Igreja. Com Dom Bosco reafirmamos a preferência pela "juventude pobre, abandonada, em perigo", que tem maior necessidade de se amada e evangelizada, e trabalhamos especialmente nos lugares de mais grave pobreza» (C 26; negrito nosso, cursivo original).

O Reitor-Mor, ao comentar este traço essencial do nosso Carisma, escreve-nos:

«Convém fazer notar que essa predileção de Dom Bosco não deriva somente da magnanimidade do seu coração paterno, "grande como a areia do mar", nem da situação desastrosa da juventude do seu tempo – como também do nosso –, nem muito menos de uma estratégia sociopolítica. Há em sua origem uma missão de Deus: "O Senhor indicou a Dom Bosco os jovens, especialmente os mais pobres, como primeiros e principais destinatários da sua missão" (C 26). E é bom lembrar que isso aconteceu "com a maternal intervenção de Maria" (C 1); com efeito, Ela "indicou a Dom Bosco seu campo de ação entre os jovens e constantemente o guiou e sustentou" (C 8). Nesse sentido é “normativa”, e não simples episódio, a atitude que Dom Bosco assumiu num momento decisivo da sua existência sacerdotal, diante da marquesa Barolo e da oferta, certamente apostólica e santa, de colaborar em suas obras, abandonando os meninos esfarrapados e sós. "A senhora tem dinheiro; com facilidade encontrará quantos padres forem necessários para os seus institutos. Com os pobres meninos não é assim..."» (ACG 384, 19).

Dom Bosco acrescenta aqui uma motivação, que não é apenas afetiva ou pedagógica, mas teológica: «Os meus pobres jovens só têm a mim...». É a expressão, sobretudo simples da consciência de ser uma mediação, uma epifania do Amor de Deus para eles; sem ele, todos estes "últimos" estarão carentes da manifestação do Amor de Deus e, consequentemente, da experiência de Deus como Pai. Dito com uma expressão evangélica, sem ele, eles estariam como ovelhas sem pastor. «Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão por eles, porque eram como ovelhas sem pastor» (Mc 6,34; Mt 9,36 acrescenta: «cansadas e abatidas...»).



3.- «pobres, abandonados e em perigo...»



Na mesma Carta, o P. Pascual acrescenta: «Seria muito interessante aprofundar as características típicas dos destinatários preferenciais da nossa missão: "jovens pobres, abandonados e em perigo". Mesmo que hoje se fale de “novas pobrezas” dos jovens, a pobreza refere-se diretamente à sua situação socioeconômica. O abandono reporta-se à "qualificação teológica" de privação de sustento por falta de uma mediação adequada do Amor de Deus; o perigo remete a uma fase determinante da vida, a adolescência-juventude, que é o tempo da decisão, depois da qual muito dificilmente se podem mudar os hábitos e as atitudes adotadas. Tal aprofundamento serve como ponto de partida para determinar em cada inspetoria (cf. R 1) e comunidade, quais são os destinatários prioritários no hic et nunc concreto, tendo em conta, certamente, critérios há pouco indicados» (ACG 384, 20).

Aqui, como também alhures, encontramos a extraordinária clarividência e capacidade de síntese de Dom Bosco, entre a problemática socioeconômica realmente pungente, a visão pedagógica excepcional e a fé inabalável no Amor de Deus por todos, particularmente pelos mais necessitados. Fiquemos a contemplar esta "maravilha da Graça", que é o nosso Pai (a quem dedicaremos outra reflexão). Procuremos visualizar agora estas três expressões como dimensões de uma realidade global, que caracteriza os nossos destinatários prioritários, perspectiva que nos permite concretizar com eles, em nosso trabalho educativo-pastoral, a Missão que Deus nos confia.

É necessário, por outro lado, recordar que a Missão não depende dos destinatários, como se fosse opcional ou aleatório ou dependesse das circunstâncias, ser ou não ser sinais e portadores do Amor de Deus! A Missão não é "negociável". Estamos todos convencidos: a missão salesiana jamais será impossível, ou irrelevante; o que nos deve preocupar é se seremos sempre fiéis a ela e, através dela, a Deus e aos jovens...

O que acontece com frequência não é tanto esquecer que a situação dos nossos destinatários não precede a Missão, mas esquecer que esta situação deve preceder as atividades e as obras. Procurando esquematizá-lo, podemos dizer que, às vezes, o nosso discernimento e as nossas decisões não são totalmente adequados, porque procedemos desta maneira:

Missão – atividades e obras – destinatários

quando, na fidelidade à Vontade do Senhor, deveria ser:

Missão – destinatários – atividades e obras.

Não se trata de ver quem pode frequentar as nossas atividades e obras e usufruir delas (muitas vezes, infelizmente, não são os que deveriam!), mas quais as atividades e obras que devemos realizar, hic et nunc, em favor daqueles aos quais o Senhor nos quer enviar de maneira prioritária.

Falamos anteriormente de uma "síntese vital" que pudesse englobar as três dimensões que caracterizam os nossos destinatários. Talvez possamos dizê-lo com estas poucas palavras: segundo o exemplo de Jesus, ao concretizar a sua missão universal, Dom Bosco se sente "carismaticamente sensibilizado" por um perigo que pode pôr obstáculos à felicidade temporal e eterna ("salvação") dos seus jovens: o abandono em que se encontram diante de Deus e dos outros, provocado pela sua situação de pobreza, que muitas vezes é realmente dramática.

Falamos no início da pobreza como um valor, a ser assumido com voto na vida consagrada, mas não podemos esquecer que, no interior da ambiguidade da palavra, há também uma situação socioeconômica que vai contra o plano amoroso de Deus e torna difícil e, muitas vezes, impossível, a quem vive nessa situação, sentir-se filho/a de Deus, amado/a pessoalmente por Ele. Como podemos falar do Amor de Deus a uma pessoa que não tem para si ou para os seus o indispensável para viver?

Parece-me interessante aprofundar ainda a resposta dada por Dom Bosco (ou melhor: o chamado que sentiu da parte de Deus) diante da situação juvenil do seu tempo, que se torna normativa também para nós. É óbvio que ele não foi o único a perceber a problemática dos jovens abandonados em Turim, e nas grandes cidades (situação, de algum modo, qualitativamente nova); muitas pessoas de relevo assumiram uma posição explícita diante dela, a partir de perspectivas também diversas. Há toda uma corrente da literatura, por exemplo, que denuncia essa situação; podemos recordar, entre tantos livros representativos dessa escola, a clássica obra de Charles Dickens, Oliver Twist. Karl Marx, por sua vez, procura transformar essa situação injusta a partir de uma posição ateia, e apresenta a sua solução pessoal. Dostoievski sentiu também de forma muito aguda o sofrimento dos inocentes, particularmente das crianças, que se tornou o motivo mais forte contra a fé em Deus. Dom Bosco, porém, em nada menos sensível que todos eles, não se deteve numa posição teórica nem de ateísmo, mas de teodiceia: em nome do Deus de Jesus Cristo e do seu Amor ele doou toda a sua vida pelo bem integral – temporal e eterno – do lumpemproletariado infantil e juvenil.

Para concluir esta seção, gostaria de acrescentar uma reflexão pessoal. Quero referir-me a uma palavra para designar os nossos destinatários prioritários que, embora não literalmente evangélica, exprime em seu sentido etimológico uma grande riqueza. Refiro-me à palavra "in-significante". Na semântica habitual do termo, tende a identificar-se com algo "pequeno"; contudo, a origem etimológica não vai nessa direção. Por exemplo: uma obra salesiana significativa (pela presença dos salesianos, pela proximidade com os jovens que permite conhecê-los pessoalmente, pela qualidade da educação e da formação cristã etc.), pode correr o risco de crescer tanto, a ponto de se tornar insignificante, isto é, que já não significa nada, que não é mais sinal daquilo que deveria manifestar.

Tomando-o nessa acepção etimológica, e jogando um pouco com as palavras, seremos sinal do Amor salvífico de Deus enquanto, do ponto de vista humano, os nossos destinatários forem muito insignificantes. Como diz o Reitor-Mor em sua Carta sobre a Eucaristia, a respeito do convite ao banquete e da sua relação com a pobreza:

«Não é o convite interessado aos amigos e parentes (cf. Lc 14,12-13; Mt 5, 46-47), o que não teria nada de mal, mas que não se torna "sinal evangélico", nem produz o escândalo salutar de reconhecer que isso "também fazem os pagãos" (Mt 5,47), mas "a predileção evangélica pelos mais pobres e abandonados, pelos marginalizados, pelos pecadores, por todos os humanamente insignificantes"» (ACG 398, p. 32).



4.- "A missão dá a toda anossa existência o seu tom concreto..." (C 3)



No CG22, o então Reitor-Mor, P. Egídio Viganò, esclareceu de maneira teologicamente definitiva, o sentido da consagração na vida religiosa (concretamente, salesiana), ao recordar que, no espírito do Concílio Vaticano II, esta consagração tem duas características fundamentais: é obra de Deus (só Ele consagrada: não somos nós que "nos consagramos" a Ele) e é abrangente: não se refere a um "setor" da nossa vida (como seria, por exemplo, se se referisse apenas aos conselhos evangélicos), mas abarca todas as suas dimensões. Neste sentido, consagração e missão não são duas "partes", mas, constituem por duas diversas perspectivas específicas, o "todo" da nossa vida. Em certo sentido, tudo é consagração e tudo é missão. Caso contrário, a frase que intitula este parágrafo seria desmentida pela realidade vivida.

Procurando concretizar, parece-me que convém estabelecer uma relação entre esta predileção pelos jovens mais pobres e os grandes temas que estamos tentando desenvolver nestes Exercícios.

1.- Em primeiro lugar, a gratuidade. Parece-me que está totalmente fora de discussão este traço fundamental do amor; em todo caso, pode estar em perigo na medida em que nos afastamos da nossa "predileção carismática". Por outro lado, convém evidenciar de novo: esta gratuidade não exclui de modo algum, ao contrário, espera e "exige" (pela sua natureza) uma resposta que, no caso do jovem pobre e abandonado, torna-se plena, justamente porque ele não pode "dar" nada; a sua correspondência ao amor manifesta-se ao doar-se, por sua vez, de maneira total.

Entre muitíssimos fatos da vida do nosso Pai, escolho apenas um, particularmente expressivo e, em sua simplicidade, comovente. Refere-se a um jovenzinho dos primeiros tempos do Oratório que

«[um menino] retornava das compras. Entre outras provisões, levava nas mãos um copo cheio de vinagre e uma garrafa de azeite. Ao ver Dom Bosco, o menino se pôs a pular de alegria e gritava: - Viva Dom Bosco! - Sorrindo, Dom Bosco lhe disse: - Você é capaz de fazer como eu? - E dizendo isso, batia as palmas das mãos, uma contra a outra. Fora de si pela alegria, o menino coloca a garrafa debaixo do braço e grita de novo: - Viva Dom Bosco! - E bate as mãos. Naturalmente que ao fazer isso, deixou cair o copo de vinagre e a garrafa, e tudo ficou aos cacos. Ouvindo o barulho dos vidros quebrados, ficou um instante aturdido, depois se pôs a chorar, dizendo que ao chegar a casa apanharia da sua mãe» (MB II, 94-95).

Tudo foi resolvido, graças à generosidade da dona da mercearia...

2.- Também aqui sublinha-se ao máximo a importância da expressão-manifestação do amor. A Missão salesiana pressupõe que os nossos destinatários prioritários, mesmo sendo objeto privilegiado do Amor de Deus, não fazem essa experiência; de aqui a necessidade, mais urgente de qualquer outra, de propiciar esta percepção na maneira mais forte e concreta possível. Como disse o P. Pascual: «procurar oferecer o máximo àqueles a quem, infelizmente, a vida deu o mínimo». E, sem dúvida, um elemento fundamental é a possibilidade efetiva da sua promoção integral, através da educação; caso contrário, ficam apenas como belas palavras ou piedosos desejos.

3.- Há, ainda outro aspecto, que me parece particularmente importante e delicado, sobretudo em nossos tempos: a exigência de esta acolhida do Amor de Deus ser percebida através da manifestação (paterna – materna – fraterna) do nosso ágape-eros... como o fazia Dom Bosco. Isso, contudo, é preciso dizê-lo logo, nada tem a ver com a sexualidade, e é todo o contrário de qualquer desvio perigoso.

Há um trecho da Ratio 2000 – no fascículo sobre As Admissões – que sintetiza este traço, de maneira particularmente acertada. Alude, de modo significativo, ao perigo que este amor, manifestado em estilo salesiano, possa confundir-se com a sua falsificação radical: em concreto, a contra-indicação homossexual. Sabemos que, por razões psicológicas particularmente sutis, essa inclinação se acentua, especialmente no relacionamento com meninos frágeis e "indefesos", que por outro lado deveriam ser os destinatários típicos da nossa ação educativo-pastoral.

Diz o texto: «Pelas suas características peculiares, ela (a vocação consagrada salesiana) comporta exigências específicas em relação à homossexualidade. Trata-se, de fato, de uma vocação-missão que se vive em comunidades masculinas, que leva a agir em contato constante com a juventude pobre, de preferência masculina, carente de atenção e de afeto, com estilo de família e método educativo que se exprimem através da amorevolezza, a capacidade de fazer-se amar e de demonstrar amor» (As admissões, n. 77, pp. 56-57).

Devemos estar atentos, mais do que nunca, para evitar qualquer tipo de desvio neste campo (que, por outro lado, hoje é mais perigoso do que nunca); mas não podemos, por temor dessa falsificação, renunciar a um traço específico e essencial do nosso Carisma! A identidade autêntica da nossa castidade consagrada permite-nos ser «testemunhas da predileção de Cristo pelos jovens, permite-nos amá-los sinceramente de modo que "saibam que são amados", e nos torna capazes de educá-los para o amor e a pureza» (C 81).

4.- Outro aspecto, muito importante e concreto, que o Reitor-Mor quis sublinhar na Estreia 2008 refere-se aos direitos humanos. Promover os direitos humanos, em especial dos menores, como caminho salesiano para a promoção da cultura da vida e a transformação das estruturas. O Sistema Preventivo de Dom Bosco tem uma grande projeção social. «A educação aos direitos humanos, particularmente aos direitos dos menores, é a via privilegiada para realizar, nos diversos contextos, o trabalho de prevenção, de desenvolvimento humano integral, de construção de um mundo mais equânime, mais justo, mais saudável. A linguagem dos direitos humanos permite-nos também o diálogo e a inserção da nossa pedagogia nas diversas culturas do nosso mundo».

Concluo recordando novamente a frase final na seção constitucional sobre a castidade: o salesiano «recorre com filial confiança a Maria Imaculada e Auxiliadora, que o ajuda a amar como Dom Bosco amava» (C 84).





ORAÇÃO: OS JOVENS MAIS POBRES E ABANDONADOS

Senhor Jesus

que nos convidas a participar da tua missão de Bom Pastor

para cuidar da parte mais preciosa e delicada da sociedade humana,

os jovens mais pobres e abandonados

como fizeste com nosso Pai e Fundador Dom Bosco,

ajuda-nos a ser fiéis a essa missão,

em cujo cumprimento encontraremos o caminho para a nossa santidade.



Faze que manifestemos uma preocupação amorosa e eficaz

pelos os jovens mais necessitados e marginalizados,

para que, como Bons Pastores

possamos conhecê-los e chamá-los pelo nome

fazendo-os sentir a própria dignidade de seres humanos,

sabendo que eles são amados com predileção por Ti.



Faze que possamos oferecer uma promoção integral

que lhes permita ser cidadãos honestos e bons cristãos,

para que, seguindo o teu exemplo

sejamos capazes de oferecer-lhes o nosso tempo, as nossas energias

e até mesmo as nossas vidas,

em um serviço desinteressado e generoso.



Senhor, dá-nos neste Capítulo Geral

a luz e a força de teu Espírito

para fazer uma leitura adequada da situação dos nossos destinatários

e discernir sobre as suas mais profundas necessidades humanas e cristãs,

para podermos realizar a missão salesiana

na diversidade de situações em que trabalhamos como Congregação,

para ser, assim,

fiéis a Ti e fiéis aos jovens, como Dom Bosco sempre foi.



Concede-nos a capacidade de colocar todas as nossas estruturas e obras

a começar de nós mesmos

a serviço dos jovens mais necessitados,

com a certeza inabalável da fé,

com a alegria da esperança

e a radicalidade do amor,

para que, ao sermos mediadores da tua presença salvadora no meio deles

"tenham vida, e a tenham em abundância".

Amém.

7 - «PARTIR DE DOM BOSCO»



Caminhando para o final dos nossos Exercícios Espirituais, queremos viver em chave de oração e de encontro com Deus aquilo que é a finalidade principal do nosso Capítulo: partir de Dom Bosco, para despertar o coração de cada salesiano e retornar aos jovens com uma identidade carismática renovada e uma paixão apostólica mais ardente (cf. Carta do Reitor-Mor, ACG 394).



1.- «O Senhor nos deu Dom Bosco como pai e mestre...» (C 21)

Este "partir de Dom Bosco" não consiste, evidentemente, num "retorno do filho pródigo à casa paterna"; na verdade, jamais fomos embora da nossa Casa, do nosso Carisma. Apesar disso, há elementos objetivos que nos levam a renovar e projetar a nossa fidelidade a Dom Bosco e ao Carisma Salesiano, diante dos novos desafios da história e dos jovens. Na carta de Convocação do CG, o Reitor-Mor nos diz: «hoje mais do que ontem e amanhã mais do que hoje, há o risco de cortar os laços vivos que nos mantêm unidos a Dom Bosco. Vivemos mais de um século depois da sua morte. Já morreram as gerações dos Salesianos que tiveram contato com ele e o tinham conhecido de perto. Aumenta a separação cronológica, geográfica e cultural em relação ao fundador. Vêm a faltar aquele clima espiritual e aquela proximidade psicológica que permitiam uma referência espontânea a Dom Bosco e ao seu espírito" (ACG 394, p. 10).

Por outro lado, não é necessário dizer que a minha intenção não é fazer uma "síntese" de Dom Bosco; além da impossibilidade objetiva de fazê-lo, diante de uma figura tão grande e rica como a sua, eu seria o menos indicado para isso; todos nós conhecemos muito bem o nosso Pai, para pretender dizer coisas "novas".

Entretanto, gostaria de tomar como ponto de partida justamente esta grandeza extraordinária de Dom Bosco, que preenche o nosso coração de orgulho legítimo, mas que não é destituído de riscos. Um deles, concretamente, seria perder-nos na multiplicidade complexa de aspectos, que poderia até mesmo impedir-nos de ver o essencial da sua pessoa e do Carisma que, através dele, o Espírito Santo deu à Igreja e à humanidade. Como diz o provérbio, às vezes "as árvores impedem-nos de ver o bosque". Como exemplo muito simples, recordemos de quantas profissões e atividades humanas Dom Bosco é patrono, para sublinhar, também dessa forma, o caráter poliédrico da sua personalidade.

Ao falar de S. Francisco de Assis, o genial escritor inglês G. K. Chesterton diz que, às vezes, se desejou interpretar o seu perfil de santidade das mais diversas maneiras: de iconoclasta a patrono da ecologia, esquecendo o que é mais importante, e que dá sentido a todas as demais dimensões: o seu enamoramento de Cristo; aquilo que ele faz, somente o faz um louco... ou um enamorado. E acrescenta, com a sua ironia habitual, que esses intérpretes procedem como quem quisesse escrever a biografia de Amundsen, com uma só limitação: não poder falar, de jeito nenhum, dos pólos (norte e sul). Se quisermos fazer uma comparação mais atual, podemos dizer: escrever a biografia de Pelé ou de Maradona com uma só proibição: não fazer qualquer alusão... ao futebol!

Na mesma Carta, o P. Pascual recorda com clareza: «À base de tudo, como fonte da fecundidade da sua ação e atualidade, há algo que frequentemente nos foge: a sua profunda experiência espiritual, aquela que se poderia chamar de a sua "familiaridade" com Deus. Quem sabe, não será justamente isso o melhor que dele temos para invocá-lo, imitá-lo, colocar-nos à sua sequela para encontrar Cristo e fazê-lo encontrar aos jovens!" (ACG 394, p. 13).

Um testemunho não muito conhecido encontrado nas Memórias Biográficas, ilustra estas palavras do Reitor-Mor.

Na visita que Dom Bosco fez ao Seminário de Grenoble, França,

«na hora da leitura espiritual que precedia imediatamente o jantar, [ele] uniu-se aos seminaristas para o piedoso exercício; naquela vez, porém, a leitura foi substituída por uma exortação do P. Rua, que passou a refletir sobre o tema do amor de Deus por nós. Escreve alguém que esteve presente: "As suas palavras ardorosas revelavam nele uma alma inflamada. Mais do que meditação, era contemplação, mas para o Santo foi um êxtase. Grossas lágrimas marcavam as suas faces e o Superior ao percebê-lo, com sua voz doce e simpática disse forte: - Dom Bosco chora. - É impossível expressar a emoção produzida em nossas almas por essa simples palavra. As lágrimas do Santo eram ainda mais fortes do que as inspirações inflamadas do P. Rua. Nós nos sentimos profundamente abalados e reconhecemos a santidade nesse sinal do amor e, enquanto se ia ao refeitório não precisávamos de mais milagres para mostrar a nossa veneração ao Santo"» (MB XVIII, 131).

Neste sentido, "partir de Dom Bosco" não é outra coisa que crescer no que constitui a nossa identidade cristã: a centralidade de Deus em nossa vida, aquilo que o nosso santo Fundador escreveu no primeiro artigo das Constituições originais: «O fim da Sociedade Salesiana é que os sócios, enquanto se esforçam por adquirir a perfeição cristã, exerçam toda obra de caridade espiritual e corporal para com os jovens, especialmente os mais pobres». É buscar sempre aquela "medida elevada" de vida cristã e consagrada: a santidade, na experiência da tríplice atitude teologal que nos faça viver sempre mais, como ele a viveu, «como se visse o Invisível» (C 21).

Sobre isso, a canonização de Dom Bosco enquanto Fundador, bem o sabemos, tem um sentido que vai além do simples exame da heroicidade das suas virtudes ou da prova de uma intervenção extraordinária de Deus através de milagres. É o que afirma Vita Consecrata com clareza: «Quando a Igreja reconhece uma forma de vida consagrada ou um Instituto, garante que em seu carisma espiritual e apostólico encontram-se todos os requisitos objetivos para alcançar a perfeição evangélica pessoal e comunitária» (VC, 93). Nessa mesma linha está a afirmação do artigo primeiro das nossas Constituições: «A Igreja reconheceu nisso a ação de Deus, sobretudo ao aprovar as Constituições e proclamar santo o Fundador» (C 1).

«Queridos Salesianos, sede santos», convidava-nos o Reitor-Mor em sua primeira Carta, ao elencar, também, as características da santidade salesiana (cf. ACG 379, pp. 8-10). A Carta toda é um convite a aceitar esse desafio: a nossa santificação; de fato, «a nossa santificação é "a tarefa essencial" da nossa vida, segundo a expressão do Papa. Se alcançada, tudo estará alcançado; se fracassar, tudo estará perdido, como se afirma da caridade (cf.1Cor 13,1-8), essência mesma da santidade» (ibid., p. 11).

Dom Bosco convida-nos, antes de tudo, a sermos santos, de modo que a própria Missão seja a sua expressão e consequência, enquanto se torna também um caminho para crescer nela. «O testemunho desta santidade, que se realiza na missão salesiana, revela o valor único das bem-aventuranças e é o dom mais precioso que podemos oferecer aos jovens» (C 25).

Permito-me fazer um segundo esclarecimento, inspirado no Prólogo do livro do Papa (ou, como ele mesmo diz, de Joseph Ratzinger), Jesus de Nazaré. Aquilo que vou dizer não pretende ser senão uma simples analogia.

Temos agora, sem dúvida, mais do nunca, elementos para conhecer Dom Bosco nas diversas disciplinas da ciência (histórica, linguística, psicológica, sociológica etc.); devemos agradecê-lo a tantos irmãos salesianos, alguns dos quais também estão aqui presentes, que consagraram a própria vida a estudá-lo e comunicar os resultados de sua pesquisa qualificada. Apesar disso, também aqui podemos correr o risco indicado pelo Santo Padre sobre o método histórico-crítico. Dito com uma imagem muito simples (demais, talvez), mas expressiva: muitas vezes podemos nos contentar com uma radiografia de Dom Bosco ou privilegiá-la em detrimento do seu rosto vivo e atual. Se um cirurgião precisa intervir sobre a sua mãe, de nada servem as fotografias maternas; ele precisa dos estudos mais especializados possíveis; apesar disso, em seu consultório ou em sua mesa de trabalho não coloca a radiografia, mas a sua mais fiel e "viva" fotografia.

Como Congregação, ou melhor, como Família Salesiana, devemos buscar sempre mais uma síntese que nos permita conhecer vitalmente o autêntico Dom Bosco, porque, como dizíamos no título deste parágrafo, ele nos foi dado por Deus como Pai e Mestre.









2.- Nós «...o estudamos e imitamos, admirando nele a esplêndida harmonia de natureza e graça» (C 21)



Procuramos, nas várias reflexões anteriores, "pôr em prática" esta harmonia entre natureza e graça; retomarei alguns dos elementos meditados (entre muitos outros), mostrando como se encontram de maneira admirável na pessoa de Dom Bosco, que manifesta uma extraordinária integração e capacidade de síntese vital. De um lado, como já dissemos, foi dotado de uma riqueza fora do comum: «profundamente homem, rico das virtudes do seu povo, era aberto às realidades terrenas; profundamente homem de Deus, cheio dos dons do Espírito Santo»; por outro lado, capaz não só de uma "esplêndida harmonia", mas também da fusão num «projeto de vida fortemente unitário: o serviço dos jovens». Também a partir desta perspectiva "formal", o salesiano, dotado igualmente (não na mesma medida, sem dúvida) de dons de natureza e graça, é chamado a ser um homem de síntese, de equilíbrio, de bom senso, que não busca hipertrofiar ou, ao contrário, atrofiar nenhuma de suas dimensões fundamentais. O salesiano deve ser, no melhor sentido da palavra, um homem normal – como foi descrito pelo Card. Pironio na inauguração do CG 22: não no sentido de "mediocridade", mas, totalmente ao contrário, inflamado pela paixão do amor pelos jovens, buscando o seu maior bem: a salvação.

1.- Falamos da gratuidade como da atmosfera que, a partir da fé (entendida, portanto, como Graça) cremos que envolve todo homem, cristão ou não, como expressão da presença amorosa de Deus. Dom Bosco era extraordinariamente sensível a esse sentido da gratuidade. Sublinhamo-lo em diversos momentos, sobretudo ao falar da predileção carismática pelos mais "insignificantes".

Recordemos o que o Reitor-Mor escreve na Carta "Contemplar Cristo com o olhar de Dom Bosco", sobre a experiência vivida com os alunos dos Jesuítas, no tempo da sua formação seminarística: «Quando estudava filosofia, João Bosco acompanhou alguns jovens de classe alta numa casa de veraneio dos jesuítas situada nas imediações de Turim, à qual eles tinham enviado seus internos durante uma epidemia. Se é verdade que ele não encontrou dificuldade no relacionamento com eles, antes encontrou nesses jovens amigos que lhe queriam bem e o respeitavam, convenceu-se de que o seu “método” não se adaptava a um sistema de "compensação recíproca". "Em Montaldo [...] percebi a dificuldade de alcançar sobre aqueles jovens uma influência plena, necessária para fazer-lhes o bem". Convenceu-se, então, de não ser chamado para ocupar-se de jovens de famílias abastadas» (ACG 384, p. 17).

Procurarei aprofundar ainda este tema, com aquilo que me parece o exemplo mais relevante. A vida, qualquer vida humana, já o meditamos, é o dom por excelência, pois todos a possuem, e também porque qualquer outro dom, "de natureza ou de graça", pressupõe-na. Seria óbvio dizer que também Dom Bosco estava convencido disso. Há muito mais: creio que sobre isso há um dom extraordinário de Deus em sua vida.

Dizer que nós todos sabemos que a vida é um dom, não equivale a experimentá-lo; também aqui, é válido o provérbio espanhol: «nadie sabe el bien que tiene, hasta que lo ve perdido» (ninguém sabe avaliar o que tem, senão quando o perdeu... ou ao menos, está em perigo de perdê-lo). Nesse sentido, quem viu a sua vida ameaçada pela morte, e sobreviveu, aprendeu a valorizá-la em medida infinitamente maior. Encontramos a descrição clássica desta experiência (é inevitável a referência) na vida de Dostoievski, na situação que Stefan Zweig chama «um dos momentos cruciais da humanidade»; o romancista russo descreve-o na "terceira pessoa":

«Restavam-lhe cinco minutos de vida, não mais. Dizia que aqueles cinco minutos lhe pareciam um tempo infinito, uma riqueza imensa (...). Ele morria com vinte e sete anos, saudável e forte (...). Naquele momento, nada lhe era mais penoso do que este pensamento incessante: "Se fosse possível não morrer! Se fosse possível fazer a vida retornar, qual eternidade! E tudo isso seria meu! Eu faria, então, de cada minuto um século inteiro, não perderia um só deles, de cada minuto manteria uma conta precisa, não dissiparia mais nada em vão!"».32

Todos nós conhecemos o comovente texto das Memórias Biográficas que nos apresenta a doença mortal de Dom Bosco, mas não resisto em transcrever alguns de seus trechos.

«Dom Bosco, ao acenar à sua doença, deixou escritas as seguintes palavras: "Parecia-me que naquele momento estivesse preparado para morrer; custava-me abandonar os meus jovenzinhos, mas estava contente porque terminava os meus dias certo de que o Oratório já tinha uma forma estável". Essa sua certeza vinha da confiança de que o Oratório era desejado e fundado por Deus e por Nossa Senhora (...). Desde o início da semana, como se espalhasse a notícia funesta da doença, aconteceu nos jovens do Oratório uma dor, uma angústia indescritível (...). Davam-se, então, cenas de muita ternura: "Deixe-me apenas vê-lo", pedia um; "não o farei falar", garantia um segundo (...); "se Dom Bosco soubesse que eu estou aqui, ele me faria entrar", dizia outro (...). Dom Bosco ouvia os diálogos que se faziam com o doméstico e ficava comovido (...). Ao ver que os remédios humanos já não deixavam esperança alguma, eles recorreram aos do Céu, com fervor admirável (...). Era um sábado do mês de julho, dia consagrado à Augusta Mãe de Deus».

Conhecemos muito bem também a conclusão desse momento decisivo, um verdadeiro divisor de águas na vida de Dom Bosco. Convidado pelo teólogo Borel para fazer ao menos uma pequena oração pela própria saúde, com muita dificuldade Dom Bosco, enfim, pediu: «Sim, Senhor, se assim for do vosso agrado, fazei-me sarar». «Pela manhã, os dois doutores Botta e Cafasso, vindos para fazer-lhe uma visita, temerosos de encontrá-lo morto, depois de apalpado o pulso, disseram-lhe: – Caro Dom Bosco, vá agradecer a Nossa Senhora da Consolata, porque tem muito do que [agradecer]».

A cena em que o querido pai retorna entre seus filhos foi «um espetáculo, uma festa tão cordial, que se pode imaginar, mas não descrever». «Dom Bosco dirigiu também umas poucas palavras. Entre outras coisas, disse: «Agradeço-vos pelas provas de amor que me destes durante a doença; agradeço-vos pelas orações feitas pela minha cura. Estou persuadido de que Deus concedeu a minha vida às vossas orações; e, por isso, a gratidão quer que eu a gaste toda em vossa vantagem espiritual e temporal. Assim prometo fazer enquanto o Senhor me deixar nesta terra, e vós, do vosso lado, ajudai-me» (MB II, 492-499).

Acredito que o nosso Reitor-Mor viveu experiência semelhante e, curiosamente, com a mesma idade de Dom Bosco, pelos 31 anos. Talvez a maioria de nós jamais tenha esta experiência; o mais importante é estar convencido de que, se Deus nos chamou à vida e a esta vida, como salesianos, é para dizer, como o nosso Pai: «Por vós estudo, por vós trabalho, por vós eu vivo, por vós estou disposto até a dar a vida» (C 14).

2.- Quando falávamos acima sobre a centralidade de Deus na vida de Dom Bosco como chave de sua compreensão, demos algo por suposto que, agora, gostaria de explicitar, isto é: a inseparabilidade da fé em Deus em relação à sequela e imitação de Jesus Cristo. Por isso, para o nosso Pai, falar de "religião" era praticamente como falar de Cristianismo; isso é inegável em seu tempo e contexto sócio-cultural-religioso. Sem dúvida, Dom Bosco seria, nestes tempos, o primeiro a convidar-nos para participar ativamente do diálogo ecumênico e inter-religioso, justamente porque estava convencido de que Jesus Cristo é – com as palavras do Magistério e da teologia atual – «o único e universal Salvador da humanidade».

É Jesus Cristo que, desde os primeiros anos da sua vida, guia e orienta todas as suas ações. É Jesus Cristo que, desde o sonho dos nove anos, lhe indica uma missão fazendo-o compreender que toda a sua existência está marcada por esta vocação-missão, e que lhe dá a Mestra, «sem o que qualquer sabedoria torna-se loucura».33 É Jesus Cristo que ele descobre, ama e serve em cada pessoa encontrada pelo caminho, particularmente os jovens mais pobres e abandonados, levando totalmente a sério as palavras do Senhor em Mt 25,31ss. É Jesus Cristo que ele quer "modelar" nos seus meninos, através de um caminho em que a pedagogia e a catequese integram-se reciprocamente, de maneira plena: «Como Dom Bosco, somos chamados todos e em qualquer ocasião, a ser educadores da fé. Nossa ciência mais eminente é, pois, conhecer Jesus Cristo; e a alegria mais profunda, revelar a todos as insondáveis riquezas do seu mistério. Caminhamos com os jovens para conduzi-los à pessoa do Senhor ressuscitado, a fim de que, descobrindo nEle e em seu Evangelho o sentido supremo da própria existência, cresçam como homens novos» (C 34).

Na centralidade do Senhor Jesus na vida de Dom Bosco encontramos uma sensibilidade carismática que leva a privilegiar alguns aspectos da sua figura inexaurível (cf. C 11); entre estes, como sublinhava o Reitor-Mor na Carta de alguns anos atrás, os de Apóstolo do Pai e de Bom Pastor. Na contemplação de Jesus Cristo, Bom Pastor, Dom Bosco "aprende" o Sistema Preventivo – e todos nós, como salesianos somos chamados a fazer esse mesmo aprendizado –: a gratidão, a preocupação e predileção pelo mais afastado, o amor feito amorevolezza, o conhecimento pessoal («o bom pastor conhece as suas ovelhas, e chama cada uma pelo nome»), e, sobretudo, a necessidade de doar-se inteiramente e entregar-se até «dar a vida por suas ovelhas» (Cf. ACG 384, 26-28).

3.- A figura do Bom Pastor, e a preocupação por todas as suas ovelhas, mas com desconcertante predileção pela ovelha dispersa, pode-nos servir como motivação para aprofundar, ao final dos nossos Exercícios, um tema particular que só mencionamos nos primeiros dias, a unidade de ágape e eros na vida e na atividade do nosso Pai.

Diante da semântica habitual da palavra eros, mal-entendida quase como sinônimo de "sexualidade" (e muitas vezes até mesmo de sexualidade "doentia") e também diante da concepção de um setor da teologia protestante do século XX (especialmente no norte da Europa) que contrapõe drasticamente eros e ágape, o Papa Bento XVI teve o mérito de repropor, da cátedra mais elevada da Igreja universal, o valor humano, cristão e – porque não dizê-lo? – também teológico do eros, levando ao seu ápice uma linha de pensamento e de reflexões humanistas nessa direção.

Podemos dizer, de modo simples, que "sabemos o que o eros não é"; mas "o que ele é?". Mesmo ao ler com atenção a Encíclica Deus Caritas Est e, em particular, a Mensagem para a Quaresma 2007 de Bento XVI, podemos ficar com a impressão que ele não é claro sobre isso, e até mesmo encontrar talvez alguma contraposição. Por exemplo, se, à luz da Encíclia, n. 7, entendemos a ágape como "amor descendente" e o eros como "amor ascendente", como se poderia falar do eros de Deus pelo homem? A mesma coisa, e dita de modo paradoxal, que outro tipo de amor poderia ter o homem por Deus, se não o "ascendente"; só o amor erótico, portanto? Segundo meu modo de entender, podem-se encontrar ao menos cinco ou seis descrições do eros nos documentos do Papa: como amor ascendente – como a correspondência no amor – como sentimento e emoção "estáticas" – como posse daquilo que falta ao amante – como anseio de união...; estas descrições não são, no fundo, alternativas, mas aproximações, a partir de diversas perspectivas, à sua essência, indefinível, enquanto que, como verdadeiro amor, está mais além da compreensão humana lógica; podemos aplicar a ele as palavras de S. Anselmo: «rationabiliter comprehendit… incomprehensibile esse», compreendemos, com a razão, que o amor está além da própria razão. Contudo, essa incompreensibilidade não quer dizer que não possamos penetrar no seu conhecimento, mas significa que não podemos esgotá-la.

Ao aprofundar este tema, gostaria de iniciar a partir de dois elementos, já mencionados antes. De um lado, o Santo Padre sublinha que o eros é indispensável também para a plenitude da ágape (cf. outros três textos, Deus Caritas Est 7); por outro lado, sublinhamos a necessidade de contemplar o amor a partir de duas partes da experiência: o amar, mas também o ser amado. Descobrimos nos dois aspectos a presença de um fator essencial, tão evidente, que, paradoxalmente, corre o risco de passar inobservado; trata-se da singularidade da pessoa amada. Sem ela, a mesma ágape (e, estranhamente, do outro extremo, também a sexualidade!) pode ser impessoal; e sem esse fator, a pessoa no mais profundo do seu ser não pode sentir-se amada. Ao procurar exprimi-lo na maneira menos inadequada possível, a essência do eros deve estar ligada ao reconhecimento da pessoa amada enquanto única e não repetível; e isso em todas as expressões autênticas do amor, da sexualidade, que se torna verdadeiro amor humano quando se deixa personalizar dessa maneira, até a ágape, que também precisa deixar-se personalizar pelo eros;34 caso contrário, pode ser até mesmo egoísmo narcisista. Existe o perigo real de que, por traz da máscara do dizer "eu amo a todos", na realidade, não amo verdadeiramente a ninguém.

A partir desta "chave de leitura" podemos entender muito bem o que chamávamos de "aproximações" do eros nos documentos de Bento XVI, incluindo as dimensões do sentimento e até mesmo da emoção que são, sem dúvida, essenciais não só na experiência do amor em geral, mas em particular como expressão de surpresa diante da pessoa única e irrepetível, que se exprime na simplicíssima frase: é uma maravilha que tu existas!

O Bom Pastor, que deixa as noventa e nove ovelhas no redil (ou pelos montes! Mt 18,12) para buscar a ovelha dispersa, entende-o perfeitamente (cf. também ACG 384, p. 27). A aplicação ao nosso santo Pai Dom Bosco é evidente e também diria, entusiasmante. Ao tentar esclarecer ainda mais o seu perfil, ousaria dizer: a estrutura e orientação ("destinatários") do seu amor é a ágape; e o conteúdo e a dinâmica do mesmo amor é o seu eros. Dom Bosco não busca, em sua própria realização através do amor, quem o fascine e "o leve à plenitude", mas quem mais precise do seu amor agápico; esse amor, porém, é totalmente pessoal e afetivo (evidentemente, também efetivo); todo menino sentia-se amado pessoalmente por Dom Bosco; antes, sentia-se como seu predileto, como se fosse o único. Como ressoam novamente em nossos ouvidos e em nosso coração, as palavras daqueles meninos de rua, diante da porta do caro moribundo: «Se Dom Bosco soubesse que eu estou aqui, me faria entrar logo!».

E, graça a este amor agápico, feito afeto erótico ("entrañable", dizemos em espanhol com uma imagem psicossomática), os seus meninos sentiam-se amados por Deus, de tal maneira que, como testemunha o P. Giacomelli, «os jovens amavam-no tanto, e tinham tanta estima e respeito por ele, que bastava externar um desejo para ser logo acolhido. Abstinham-se de qualquer coisa que pudesse desagradar-lhe; em sua obediência não havia nenhum temor servil, mas afeto realmente filial. Alguns evitavam cair em certas faltas quase mais por respeito a ele do para evitar a ofensa a Deus; ele, porém, ao tomar consciência disso, rapidamente os reprovava com seriedade, dizendo: "Deus é maior que Dom Bosco!"» (MB III, 585). E, pelo final da sua vida, dizia-lhe o teólogo Piano: «O amor, que tínhamos então pelo senhor, nós ainda o mantemos (...). Não foi aqui no Oratório que a maioria de nós teve pão e roupas que não tínhamos? (...) Ah! Este coração deixará de bater antes que deixe de amá-lo. Amá-lo é, para nós, como um sinal do amor de Deus» (MB XVIII, 366).

Em outra ocasião, também nos últimos anos, disse a um grupo de ex-alunos sacerdotes e leigos: «Agora, cabe-me responder quem é o mais amado por mim. Digam vocês: esta è a minha mão; qual destes cinco dedos é mais amado por mim? Do qual eu me privaria dentre estes? De nenhum, certamente, porque os cinco me são igualmente caros e necessários. Pois bem, eu lhes direi que os amo a todos, e a todos sem grau e sem medida» (MB XVIII, 160).

A frase mais audaciosa, no meu modo de entender, de Bento XVI (é ele mesmo quem o faz entender assim), no final da sua Mensagem pode aplicar-se, analogamente, a Dom Bosco: «Poder-se-ia dizer até mesmo que a revelação do eros de Deus pelo homem é, na realidade, a expressão suprema da sua ágape». Nada de estranho que o grande Orígenes – contra uma grande parte da Tradição da Igreja – entendesse dessa maneira a belíssima expressão de S. Inácio de Antioquia: «O meu Eros está crucificado».

Tudo isso nos permite retomar toda a profundidade do convite de Dom Bosco, antes e ainda hoje: Procura fazer-te amar! À total gratuidade do amor não se opõe por nada o desejo; antes, o anseio da correspondência não é, em absoluto, expressão de egoísmo mascarado. Quando autêntico, o amor envolve a kenosis mais radical: esvaziar-se totalmente de nós mesmos, de maneira que seja Jesus Cristo a viver em nós (cf. Gl 2,19-20), e assim seja Ele a amar e ser amado, através do nosso amor pessoal. Ah! se pudéssemos ouvir também nós dos nossos jovens, como disseram a Dom Bosco: «Amá-lo é, para nós, como um sinal do amor de Deus!».

Quero concluir este parágrafo, novamente, com a síntese que o próprio Bento XVI nos oferece: «Na verdade, somente o amor em que se unem o dom gratuito de si e o desejo apaixonado de reciprocidade infunde um êxtase que torna leves os sacrifícios mais pesados».





3.- «...também nós encontramos nele o nosso modelo» (C 97)



Como conclusão, gostaria de esclarecer ainda mais a nossa relação com Dom Bosco, Pai, Mestre e Modelo. Ouvimos, sem dúvida, muitas vezes de pessoas que não pertencem à Família Salesiana, expressões de desapontamento, ou até mesmo de reprovação, pelo estilo com que o recordamos, veneramos e procuramos imitá-lo. Alguns até mesmo dizem que colocamos Dom Bosco no lugar de Jesus Cristo. Evidentemente, são juízos injustos, mas indicam algo sobre o quê convém refletir: a nossa relação com Dom Bosco fundador não é igual àquela que outras Ordens ou Congregações têm com seus Fundadores. Isso não deveria nos preocupar, e menos ainda, nos envergonhar. Por outro lado, é verdade que podemos cair no perigo de nos chamarmos "filhos de Dom Bosco", sem o sermos na realidade (cf. Lc 3,8; Jo 8,39.42), por diversos motivos; entre outros, por confundir a fidelidade com a imutabilidade nostálgica, mas também "inventando" um Dom Bosco para nós, procurando cada um responder, sem se preocupar com nada mais, à pergunta: O que Dom Bosco faria aqui, hoje?

Acredito que o artigo constitucional em que está a frase que dá título a este parágrafo oferece uma resposta preciosa. De um lado, recorda-nos que no início (não só cronológico, mas também carismático) da nossa Congregação, «os primeiros Salesianos encontraram em Dom Bosco seu guia seguro. Perfeitamente inseridos na sua comunidade em ação, aprenderam a modelar pela dele a própria vida. Também nós encontramos nele o nosso modelo». Por outro lado, contudo, «a natureza religiosa e apostólica da vocação salesiana determina a orientação específica da nossa formação, necessária à vida e à unidade da Congregação» (C 97).

Deixando de lado o tema específico da "formação", trata-se de buscar a síntese vital entre a figura concreta de Dom Bosco e a natureza do nosso Carisma. Descuidar do segundo aspecto iria levar-nos a uma repetição nostálgica e anedótica de Dom Bosco, e ele mesmo seria o primeiro a reprovar-nos por isso; e levar-nos-ia a limitar-nos a um conjunto de idéias e conceitos de tipo teológico, pedagógico ou espiritual, esquecendo que tudo isso faz parte de um Carisma, que Deus deu à Igreja e à humanidade, sobretudo aos jovens, numa pessoa concreta, chamada João Bosco.

Ousaria dizer que nós encontramos esta síntese no próprio Dom Bosco: «acolhemos as Constituições como testamento de Dom Bosco, como livro de vida para nós e penhor de esperança para os pequenos e para os pobres» (C 196).



4.- Conclusão



Quase no final dos nossos Exercícios, gostaria de fazer duas reflexões.

Se quiséssemos sintetizar em pouquíssimas palavras a personalidade de Dom Bosco, eu diria: centralizando toda a sua vida em Deus, na sequela de Jesus Cristo, gastando toda a sua vida pelos jovens, dos quais é carismaticamente apaixonado, o nosso Fundador e Pai manifesta-se ao mesmo tempo e de maneira incindível um homem santo e feliz: integrou perfeitamente as duas dimensões da sua realização pessoal em Cristo: a dimensão "objetiva" = perfeição, santidade, e a dimensão "subjetiva" = felicidade. Não é só um jogo de palavras a expressão, muitas vezes citadas a respeito dele (e também de S. Francisco de Sales, seu e nosso patrono): «Um santo triste é um triste santo».

A segunda reflexão quer ser, de certa maneira, uma síntese final (antecipada). Nas diversas reflexões, procuramos "pôr em prática" a harmonia entre natureza e graça, que é característica de Dom Bosco (cf. C 21). Podemos dizer, em certo sentido, que, no fundo, não aprofundamos outra coisa que... o Sistema Preventivo. Assumimos como "tema" e conteúdo central a amorevolezza, enquanto expressão – manifestação do amor, entre os dois pólos da razão (experiência humana) e da religião (reflexão teológica). É a síntese mais breve e densa que podemos fazer...



ORAÇÃO A DOM BOSCO



Dom Bosco,

o Espírito Santo te suscitou

com a intervenção materna de Maria,

para contribuir na salvação da juventude.

Tu nos foste dado pelo Senhor como Pai e Mestre,

e entregaste-nos um fascinante programa de vida

na máxima: "Da mihi animas, cetera tolle".


Tu nos transmitiste, sob a inspiração de Deus

um espírito original de vida e ação

cujo centro e síntese é a caridade pastoral.

Faze que os nossos corações sejam inflamados

pelo fogo do ardor e do zelo evangelizador,

para sermos sinais credíveis do amor de Deus pelos jovens.

Faze que saibamos aceitar com serenidade e alegria

as exigências e renúncias cotidianas da vida apostólica

para a glória de Deus e a salvação das almas.

Como Assembleia que representa a Congregação em todo o mundo,

nós te pedimos:

Concede de Deus, nosso Pai,

por intercessão de Maria, Mãe e Mestra,

que este Capítulo Geral possa ajudar-nos a

a fortalecer a nossa identidade carismática

e despertar a paixão apostólica,

para levarmos às nossas Inspetorias, comunidades e obras

um sopro renovado do Espírito Santo.

Por Cristo, Bom Pastor e nosso Senhor.

AMÉM.



8 - «MARIA, MÃE E MESTRA»



1.- INTRODUÇÃO



Ao final da Instrução Pontifícia Partir de Cristo, lemos: «Olhemos para Maria, Mãe e Mestra para cada um de nós. Ela, a primeira Consagrada, viveu a plenitude da caridade. Fervorosa no espírito, serviu o Senhor; alegre na esperança, forte na tribulação, perseverante na oração e solícita pelas necessidades dos irmãos (cf. Rm 12,11-13). Nela se refletem e se renovam todos os aspectos do Evangelho e todos os carismas da vida consagrada» (n. 46).

Este texto permite-nos fundamentar a nossa reflexão. Evidentemente, não procuramos fazer de Nossa Senhora, de maneira anacrônica, a "primeira religiosa", mas descobrir n'Ela «todos os carismas da vida consagrada», não de maneira quantitativa («todos»), mas, por assim dizer, no seu núcleo fundamental, enquanto viveu a plenitude da caridade, do amor. Podemos comparar esta idéia com a maneira com que S. Tomás de Aquino demonstra como todas as perfeições da Criação se encontram, de maneira absolutamente simples, em Deus (cf. S. Th., I, q. 4, a. 2, Utrum in Deo sint perfectiones omnium rerum).

Aproxima-se desta síntese a atitude de S. Teresa de Lisieux quando, a respeito da diversidade das vocações, se pergunta:

«Sinto em mim outras vocações: sinto em mim a vocação de guerreiro, de sacerdote, de apóstolo, de doutor, de mártir, sinto a necessidade, o desejo de cumprir por ti, Jesus, todas as obras mais heróicas... Sinto na minha vida a coragem de um cruzado, de um zuavo pontifício: gostaria de morrer num campo de batalha pela defesa da Igreja (...). Como conciliar estes contrastes? Como realizar os desejos da minha pobre pequena alma? (...). Durante a oração, os meus desejos faziam-me sofrer um verdadeiro e próprio martírio. Abri as epístolas de S. Paulo para buscar alguma resposta (...). Li que nem todos podem ser apóstolos, profetas, doutores etc.; que a Igreja é composta de membros diversos, e que o olho não poderia ser a mão ao mesmo tempo... A resposta era clara, mas não saciava os meus desejos, não me dava paz (...). Sem desencorajar-me continuei a leitura e esta frase encorajou-me: «Buscai com ardor os dons mais perfeitos, mas eu vos mostrarei um caminho ainda mais excelente». E o apóstolo explica como todos os dons mais perfeitos ainda nada são sem o Amor (...). Encontrei, enfim, o repouso! (...) A caridade deu-me a chave da minha vocação (…). Entendi que só o Amor fazia agir os membros a Igreja; que se o amor tivesse que se extinguir, os apóstolos não anunciariam mais o Evangelho, os mártires recusar-se-iam a derramar o seu sangue... Entendi que o Amor encerrava todas as vocações, que o amor era tudo, que o amor abraçava todos os tempos e todos os lugares… Que o amor, enfim, é eterno! Então, no excesso da minha alegria delirante, exclamei: Oh! Jesus meu Amor...! Encontrei enfim a minha vocação! A minha vocação é o Amor!»

Em nossa meditação final, gostaria de convidar-vos a "contemplar" Maria Imaculada Auxiliadora, nossa Mãe e Mestra. Gostaria, de modo particular, que pudéssemos fixar o nosso olhar filial numa cena transcendental da nossa Tradição salesiana; contemplemos Dom Bosco que reza, com Bartolomeu Garelli. Podemos dizer, tomando uma imagem da física moderna conhecida de todos nós, que esta Ave Maria é aquele átomo de densidade infinita que, no "bigbang" de 8 de dezembro de 1841, deu origem a uma "explosão carismática" que ainda agora continua a sua expansão pelo mundo, tornando presente o Amor de Deus pelos jovens, sobretudo os mais pobres e abandonados.

Meditemos, pois, aquilo que dizemos todos os dias na Ave Maria à Mãe de Deus e Mãe de todos os homens...



2.- «... Cheia de Graça...»



A saudação do arcanjo Gabriel a Maria tem uma densidade extraordinária: nenhuma tradução pode esgotar a riqueza das palavras originais: .. Ao tentar aprofundar esta expressão teologicamente, podemos sublinhar, primeiramente, o seu caráter de gratuidade. «Cheia de graça», neste primeiro sentido, quer dizer "gratuidade em sua expressão máxima". Manifesta-se aqui de maneira insuperável o caráter não devido do Amor de Deus, que precede toda ação ou atitude humana, justamente porque estas são sempre resposta diante da iniciativa de Deus. «Não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou» (cf. 1Jo 4,10); podemos aplicá-lo não só a cada um de nós, como também, e em primeiro lugar, a Maria.

A tradição unânime da Igreja, e a sua interpretação orientada ao longo dos séculos pelo Espírito Santo, encontram sobre isso a sua realização na declaração dogmática do B. Pio IX em 1854, ao proclamar a sua Imaculada Conceição. Infelizmente, muitas vezes este dogma mariano é mal-entendido, e corre-se o risco de esquecer que não se fala nele, em primeiro lugar, de algo que Maria tenha feito, mas daquilo que Deus faz n'Ela, também em nosso favor. Até mesmo as nossas Constituições podem ser entendidas inadequadamente, se não evidenciarmos a iniciativa do amor de Deus, desde o primeiro instante da sua existência; «Maria Imaculada e Auxiliadora educa-nos para a plenitude da doação ao Senhor e nos infunde coragem no serviço aos irmãos» (C 92). É verdade, mas sempre como resposta ao Amor de Deus. Não nos esqueçamos que a consagração, como tal, é obra exclusiva de Deus, não do ser humano; de tal forma que, ao contemplar Maria Imaculada, podemos contemplar o fruto mais perfeito e "bem-sucedido" do sistema preventivo de Deus.

Neste sentido, a insistência da teologia, que se manifesta também na liturgia, ao sublinhar a "pré-destinação" da Mãe de Deus, utilizando também, em sentido alegórico, trechos do AT como Pr 8,22-26, Sir 24,3-22 etc., é válida e aceitável somente se não a separar do restante da humanidade. De fato, todos nós homens fomos pré-destinados por Deus «antes da criação do mundo, para encontrar-nos, diante dele, santos e imaculados no amor. Predestinou-nos a sermos seus filhos adotivos por obra de Jesus Cristo» (Ef 1,4-5). Maria é a predestinada por excelência, não por exclusividade (e menos ainda, por exclusão).



3.- «O Senhor é contigo...»

Esta pequeníssima frase da saudação angélica é a síntese mais breve e densa da Aliança, e é isso que o Senhor promete como garantia, a todos aqueles que chama ao seu serviço (recordemos, entre muitos outros, sobretudo o caso de Jeremias). «Cheia de Graça» significa, em seu sentido mais profundo: «cheia de DEUS». A Graça, com efeito, não é "alguma coisa", mas "Alguém": Deus mesmo, em sua vida Trinitária, Amor perfeito, que se dá gratuitamente a nós, de maneira definitiva e irreversível (escatológica) em Cristo. Convém fazer notar que em alguns textos do AT, esta presença de Deus em meio ao seu povo ou a uma pessoa eleita provoca, antes de tudo, a alegria. Perdeu-se, infelizmente, em quase todas as línguas, esta nuance importante do texto bíblico lucano: , Alegra-te! Entre muitos textos, recordemos o de Sofonias (3,14-18):



«Grita de alegria, filha de Sião! Canta, Israel!

Filha de Jerusalém, fica contente,

de todo o coração, dá gritos de alegria!

O Senhor aboliu a sentença contra ti, afastou teus inimigos.

O Rei de Israel é o Senhor, que está em teu meio;

não precisarás mais ter medo de alguma desgraça.

Naquele dia, Deus dirá a Jerusalém:

"Não tenhas medo, Sião! Não te acovardes!

O Senhor teu Deus está a teu lado como valente libertador!

Por tua causa ele está contente e alegre, apaixonado de amor por ti,

por tua causa está saltando de alegria, como em dias de festa"».

Esta presença única de Deus em Maria é o princípio fundamental do seu ser-consagrada, justamente porque não se realiza através de uma criatura qualquer, ou realidade criada, mas consiste, fundamentalmente, em "Deus pôr a sua morada n'Ela". Aqui está a diferença radical do conceito de santidade em relação a outras culturas e religiões, nas quais o Sagrado consiste numa Realidade separada, intocável, inacessível, "tabu". Aqui, ao contrário, o Deus três vezes Santo faz partícipe da sua Santidade, através da sua proximidade no amor, que em Maria se faz tão plena, mediante a Encarnação, que se torna também uma presença física. Por isso, podemos proclamá-la, também neste sentido, "a Consagrada" por antonomásia; sem esquecer que isso não a afasta de nós, mas, ao contrário, nos convida a seguir o seu exemplo.

Podemos, enfim, evidenciar ainda um terceiro sentido na saudação: «Cheia de Graça». Ou seja, o efeito que n'Ela produz esta presença plena de Deus, tornando-se assim a "Agraciada" por excelência, a Tota Pulchra, Aquela que dirá, no cântico do Magnificat: «Desde agora todas as gerações me chamarão de bendita: grandes coisas fez em mim o Onipotente e Santo é o seu Nome» (Lc 1,48-49).35



4.- «...Faça-se em Mim segundo a tua Palavra...»



A insistência da iniciativa livre e gratuita de Deus, e a consagração enquanto obra divina, não nos deve fazer esquecer em absoluto o fato que Ele quis precisar da resposta humana. Podemo-lo ver nos modelos bíblicos do AT e do NT, e não podia ser diferente no caso mais excelente da colaboração humana com Deus: a Maternidade divina de Maria que, como diz S. Agostinho, «concebeu o Filho de Deus em seu coração, mediante a sua livre obediência, antes ainda de concebê-lo em seu seio virginal».

Não obstante, pode surgir aqui uma dúvida: podemos real e seriamente falar de liberdade em Maria, diante de tudo o que foi dito? Que sentido teria falar de Imaculada Conceição, de plenitude da Graça etc., se tudo dependesse de um sim humano, posterior a tudo isso? Por outro lado, se negássemos o caráter livre da aceitação por parte da jovem de Nazaré, além de separá-la totalmente do restante da humanidade, chegaríamos a uma afirmação absurda, isto é, que a colaboração humana, em sua expressão mais plena, não foi realmente humana, quer dizer, não foi realizada com consciência e liberdade.

Parece-me que podemos encontrar uma resposta realmente admirável ao aprofundar um elemento típico do nosso Carisma. Quando Dom Bosco pedia para colocar os meninos «na moral impossibilidade de pecar», não se referia em absoluto a limitar ou, pior, tirar a liberdade deles (que, por outro lado, teria sido impossível); mas a procurar reforçar as suas motivações de fé e de amor ao Senhor Jesus, apelando não só à sua inteligência racional e lógica (como também é feito pelo sistema repressivo), mas, sobretudo ao seu coração; porque a educação, em nível humano e também a educação à fé e na fé, «é coisa do coração».

Dito de outra forma: Dom Bosco estava convencido (e é uma convicção que toca o cerne da antropologia e da moral cristã) que, quanto mais experimentamos o Amor de Deus como Fonte máxima (e única) da autêntica felicidade, mais difícil se torna ("moralmente impossível") querermos nos afastar d'Ele, conservando íntegra, apesar disso, a nossa liberdade. Este reforço, além de implicar o contato pessoal, encontrava o seu lugar privilegiado na otimização do ambiente, rico de valores humanos e cristãos, e na assistência tipicamente salesiana, que não é por nada a de um policial que "garante a ordem", mas de uma mediação visível do amor de Deus. Esta "ecologia formativa" (como o nosso Reitor-Mor gostar de dizer) é um dos elementos fundamentais do Oratório como critério salesiano: «Ao realizarmos hoje nossa missão, a experiência de Valdocco continua critério permanente de discernimento e renovação de cada atividade e obra» (C 40).

Tudo isso nasce também da identidade do amor, ainda em nível humano; a fortiori, ao falar do Amor de Deus, o fato de ser amados não nos tira em nada a liberdade, mas nem mesmo a deixa "neutra". Ao contrário, revigora-a, para poder corresponder a esse amor recebido e percebido como tal, com a própria resposta livre (mais do que nunca!) de amor. Só assim podemos compreender o sentido profundo da nossa obediência, que «conduz à maturidade, fazendo crescer a liberdade dos filhos de Deus» (C 67).

Nessa perspectiva, a mesma pergunta de Maria, «Como acontecerá isso, se eu não conheço homem?» (Lc 1,34), não exprime dúvida, nem antepõe condições, mas é a pergunta de quem, a partir de uma fé incondicionada e total, quer colaborar na maneira mais consciente e livre possível. E isso se vê ainda mais claramente nas palavras sucessivas do Anjo, que não constituem uma resposta; no fundo, o que Gabriel diz é: "Trata-se de Deus, e do seu Plano... confias n'Ele? Igualmente a "prova" que Maria recebe, isto é, a gravidez de Isabel, que naquele momento Maria não pode "verificar", é mais uma motivação para ir até ela e servi-la, como diz imediatamente o texto de Lucas. Não é, então, uma prova "teórica", que serve para satisfazer a curiosidade de Maria, ou simplesmente para iluminar o seu conhecimento, mas é uma "prova práxica" que a põe em movimento, para acompanhar e servir a sua parenta.

A fé de Maria, enfim, traduz-se em obediência incondicionada: Ela aceita, dito paradoxalmente, com plena liberdade, ser a escrava do Senhor – «Faça-se em mim segundo a tua Palavra».



5.- «Bendita és Tu entre todas as mulheres...»



Esta plenitude de consagração de Maria leva a uma missão; antes de tudo, a de ser Mãe do Filho de Deus feito Homem; mas, inseparavelmente, também a de entregá-lo para a salvação do mundo, imitando humanamente, por assim dizer, a ação do Pai: «Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único...» (Jo 3,17); e tudo "por obra do Espírito Santo". Este levar Deus àqueles a quem Deus mesmo nos envia, é a concretização da nossa consagração, à imagem de Maria: Ela «educa-nos para a plenitude da doação ao Senhor e nos infunde coragem no serviço aos irmãos» (C 92).

Não se pode separar, então, da Anunciação a visita de Maria: «Maria partiu apressadamente para a região montanhosa dirigindo-se a uma cidade de Judá» (Lc 1,39). A presença de Maria que leva consigo o Salvador é fonte de alegria transbordante, aquela mesma alegria com que o Anjo a saúda, que se manifesta até mesmo no menino João, ainda no seio de sua mãe! Isabel reforça a Maria a promessa de felicidade, ao sublinhar também a sua raiz: a fé. «Bem-aventurada aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido» (Lc 1,45).

É muito interessante descobrir que estamos diante da primeira "bem-aventurança" evangélica e que a última bem-aventurança, que forma com ela uma maravilhosa inclusão, tem o mesmo conteúdo: a fé. «Bem-aventurados os que não viram, e creram!» (Jo 20,29). Sem a perspectiva da fé, não podemos nem entender nem aceitar as demais "bem-aventuranças" apresentadas por Jesus (Mt 5, 3-12; Lc 6, 20-23). Mas podemos dizer ainda uma palavra sobre isso. Maria, diante do anúncio da Ressurreição de Jesus, seu Filho, está entre aqueles que «não viram, e creram»; não há nenhum texto neotestamentário que nos fale de uma aparição de Jesus ressuscitado a Nossa Senhora; eu considero que, em vez de apresentar aparições, ou buscar textos apócrifos do passado (ou do presente, pois também existem), é mais enriquecedor constatar essa consoladora ausência, que coloca Maria junto conosco, a convidar-nos a ser, também nós, «felizes porque acreditamos».

Enfim, Isabel «exclamou com voz forte: "Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre!» (Lc 1,42). Como entender essa dupla bênção, se não apenas pela fé? Também porque devemos reconhecer que, humanamente falando, a eleição-vocação-missão de Maria não tornou fácil a sua vida ou a realização dos seus planos pessoais; tudo ao contrário... Aceitar a Vontade do Senhor em nossa vida não significa que, de maneira automática, ela será mais fácil ou tolerável. O Senhor garante-nos, como vemos na vida de Abraão, Moisés, Jeremias e também de Maria, uma só coisa: «Eu estarei contigo». «Nada será capaz de nos separar do amor de Deus, que está no Cristo Jesus nosso Senhor» (Rm 8,39).

Esta cena admirável culmina com o Magnificat: Maria louva a Deus por aquilo que fez em sua vida, «porque Ele olhou para a humildade de sua serva» (Lc 1,48), e coloca esta eleição de Deus na perspectiva da fidelidade divina e, consequentemente, como realização das suas promessas (cf. Lc 1,54-55): trata-se de um Deus Santo, que acolhe e eleva os humildes, pobres e famintos, e nada pode fazer diante da autossuficiência dos ricos, dos poderosos e dos soberbos! No fundo, podemos encontrar aqui, numa síntese admirável, aquilo que constitui o cerne dos conselhos evangélicos: o primado absoluto de Deus e o desejo da união com Ele ao realizar plenamente a sua Vontade (obediência), como expressão do amor (castidade), no despojamento total de si mesma (pobreza). É, realmente, a primeira consagrada!



6.- Maria Imaculada Auxiliadora no Carisma Salesiano



É, sem dúvida, um tema central em nosso Carisma, mas, ao mesmo tempo, impossível de se abraçar em todas as suas dimensões. Limito-me a sublinhar os textos das nossas Constituições onde é explicitamente mencionado.

Sabemos que há dois artigos totalmente dedicados a Ela: os artigos 8 (novo na redação definitiva de 1984) e 92. Estão em contextos muito diferentes: o primeiro, na descrição da nossa identidade carismática e, por isso, o seu conteúdo é mais relevante; o segundo, na seção sobre a nossa vida de oração, caracterizada como «em diálogo com o Senhor».

No artigo 8 sublinha-se a ação de Maria na vida do nosso Pai e Fundador com três verbos: «indicou – guiou – sustentou, sobretudo na fundação da nossa Sociedade». Tudo isso, evidentemente, é colocado no Plano de Deus, como diz o artigo primeiro da nossa Regra de Vida: «O Espírito Santo com a maternal intervenção de Maria suscitou São João Bosco» (C 1).

De modo semelhante, também nós «cremos que Maria está presente entre nós e continua a sua "missão de Mãe da Igreja e Auxiliadora dos Cristãos"». Plenamente convencidos disso, talvez a pergunta que devamos colocar diante de nossos olhos e do nosso coração é: nós também deixamos que Maria Santíssima nos indique o nosso campo de ação, nos guie e nos sustente?

No contexto da Missão salesiana, Maria educa-nos com a tríplice atitude teologal: em relação ao Magnificat, «confiamo-nos a Ela, a humilde serva na qual o Senhor operou coisas grandiosas, para nos tornarmos entre os jovens testemunhas do amor inexaurível do seu Filho» (C 8); «procuramos torná-la conhecida e amada como Aquela que acreditou, ajuda e infunde esperança» (C 34).

O artigo 92, entretanto, no contexto da oração, apresenta-nos Maria, antes de tudo, como Modelo a contemplar e imitar; particularmente na doação, única e incondicionada, a Deus e aos jovens: «Maria Imaculada e Auxiliadora educa-nos para a plenitude da doação ao Senhor e nos infunde coragem no serviço aos irmãos».

Enfim, no contexto da vida do salesiano entendida como "experiência permanente" de formação, e em consequência, como processo que jamais termina, encontramos um título simples, mas de densidade extraordinária: «Maria, Mãe e Mestra» (C 98). O pano de fundo desse artigo convida-nos a nos sentirmos "filhos no Filho", a deixar que também a cada um de nós Maria dê um corpo e um coração como o de Cristo, em particular para que, como dizíamos antes, nos ensine a amar como ensinou a Dom Bosco (cf. C 84); antes: como ensinou e educou Jesus.

Quero concluir concretizando ainda mais a presença de Nossa Senhora em nosso Carisma, a partir de uma constatação que está implícita no que dissemos.

Está fora de dúvida que a Mãe de Deus tem, em nosso Carisma, uma relevância singular; basta recordar a frase de Dom Bosco: «Foi Ela quem tudo fez». Esta relevância ou ousaria dizer, esta centralidade, pertence somente à experiência pessoal de Dom Bosco, relacionada com a sua situação e o seu tempo, ou faz parte integrante da nossa identidade salesiana?

Creio que todos nós estamos convencidos de que não se trata apenas de um elemento aleatório, simples vestígio da devoção pessoal do nosso Pai. Entre outros elementos possíveis de resposta e enriquecimento, quero sublinhar apenas um, que brota justamente da fonte mesma do nosso Carisma. Pensemos, sobretudo, nos destinatários prioritários da nossa Missão: os meninos e jovens mais pobres, abandonados e em perigo. Em outras palavras: pessoas que, humanamente falando, "valem" pouco ou nada; mas, justamente por isso, são os prediletos de Deus, porque o Amor divino – refletimos sobre ele nestes dias – é incondicionado, e tem sempre a iniciativa; não nos ama porque somos amáveis, mas somos amáveis, isto é, dignos de ser amados, porque Ele nos ama. «Quia amasti me, Domine, fecisti me amabilem», diz Santo Agostinho de maneira genial.

Pois bem: não é a incondicionalidade um elemento tipicamente feminino-materno do amor, assim como a exigência (bem-entendida) é o correspondente masculino-paterno? Não entenderia e não poderia compartilhar a situação dos destinatários prioritários da nossa Missão, aquele que, mesmo amando-os realmente, não começasse a amá-los incondicionalmente; ainda mais: maternalmente. Deixar de levar isso a sério, não será talvez um sinal de perigoso esquecimento da nossa predileção carismática? É verdade que há jovens com os quais não é necessário começar com a atitude materna da incondicionalidade, em nosso amor e em nosso trabalho educativo-pastoral; mas, por isso mesmo, são eles nossos destinatários prioritários? É com estes "últimos", acima de tudo, que devemos ser inevitavelmente "pais maternais".

Acredito que podemos colocar de maneira relevante a significatividade teológica de Maria, Imaculada Auxiliadora, em nosso Carisma, como "o rosto materno do Amor de Deus".

O Reitor-Mor convida-nos no final da carta "És tu o meu Deus, fora de ti não tenho bem algum": «Peçamos a Ela (Maria) que nos ensine a abrir-nos à ação transformante e santificadora do Espírito. Confiemos a Ela a nossa vocação salesiana para que nos torne “sinais e portadores do amor de Deus aos jovens» (ACG 382, p. 28).

Neste momento transcendental da Congregação, a Ela confiamos o nosso Capítulo Geral, para que a todos nós, e a todos os nossos irmãos na Congregação espalhada pelo mundo todo, obtenha a graça de Deus nosso Pai de uma profunda renovação em nossa identidade carismática e em nossa paixão apostólica, para a salvação dos nossos caros jovens!



ORAÇÃO – MARIA, MÃE E MESTRA





Santíssima e Imaculada Virgem Maria

nós te contemplamos como a «cheia de graça»

e contigo agradecemos ao Pai

que em ti operou as maravilhas de seu amor.



Neste Capítulo Geral

desejamos renovar o nosso "sim" ao seu plano de salvação

para o qual ele nos consagrou

com a vocação salesiana,

como sinais e portadores de seu amor aos jovens,

especialmente os mais pobres, abandonados e em perigo.



Ensina-nos, Tu que foste a Mestre de Dom Bosco

a imitar as suas virtudes:

em particular a sua união com Deus,

a sua vida casta, humilde e pobre,

o amor ao trabalho e à temperança,

a sua bondade e doação ilimitada a seus irmãos,

a sua fidelidade ao Papa e aos Pastores da Igreja.



Indicaste a Dom Bosco o seu campo de ação,

sempre o guiaste e apoiaste no seu trabalho.

Nós nos confiamos a Ti, humilde serva,

em quem o Senhor fez grandes coisas,

para sermos entre os jovens

testemunhas do amor inesgotável do teu Filho.



Guia-nos e sustenta-nos também

neste hoje da história e da nossa Congregação,

para que, por meio deste Capítulo Geral

possamos crescer em amor e fidelidade

ao Senhor e aos jovens que Ele deseja nos confiar.

AMÉM.

BIBLIOGRAFIA



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BOSCO JOÃO, Memórias do Oratório, Brasília, EDB, 2012

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F. M. DOSTOIÉVSKI, Crime e Castigo, São Paulo, Ed. Martin Claret, 2005

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RICARDO DE SAN VICTOR, De Trinitate, III, 4, Roma, Città Nuova Editrice, 1990

SANTO AGOSTINHO, Comentário da 1ª Carta de S. João 5, 12, São Paulo, Paulinas, 1989

Confissões III/1, São Paulo, Ed. Principis, 2019



SUMÁRIO




Página

0 – Introdução ..................................................................................

1

1 – A Esperança ...............................................................................

4

Oração ..............................................................................................

13

2 – A mística do Carisma: «Da mihi animas...» ...............................

14

Oração ..............................................................................................

22

3 – A ascese do Carisma: «Cetera tolle...» ......................................

23

Oração ..............................................................................................

32

4 – «Não basta amar...». A manifestação do amor ..........................

33

Oração ..............................................................................................

44

5 – Gratuidade – Graça – Eucaristia ................................................

45

Oração ..............................................................................................

55

6 – A missão salesiana: «Os jovens mais pobres e abandonados»

56

Oração ..............................................................................................

65

7 – «Partir de Dom Bosco» ..............................................................

66

Oração ..............................................................................................

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8 - «Maria, Mãe e Mestra» ................................................................

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Bibliografia ........................................................................................

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1 SUMÁRIO - ver página 89

2 Praticamente, todas as línguas ocidentais conservam essa dualidade da espera-esperança: wait-hope, espera-esperanza, warten-hoffen, attendre-espérer…

3 Citado por: JÜRGEN MOLTMANN, Teologia della Speranza, Brescia, Queriniana, 1977, p. 20..

4 Citado de J. MOLTMANN, Trinidad y Reino de Dios, Salamanca, Ed. Sígueme, 1983, p. 37.

5 Podemos recordar o recente Congresso sobre a Vida Consagrada: “Paixão por Deus, paixão pela humanidade”.

6 J. MOLTMANN, Io Dio Crocifisso, Brescia, Queriniana, 1977, p. 313-314.

7 Cf. EBERHARD JÜNGEL, Dio, Mistero del Mondo, Brescia, Queriniana, p. 420.

8 Citado por: J. PIEPER, Amor, en: Las Virtudes Fundamentales, p. 514.

9 FRIEDRICH NIETZSCHE, Così parlò Zarathustra, Milano, Adelphi Edizioni, 27a. Ed., 2006, p. 102

10 JÜRGEN MOLTMANN, Il Dio Crocifisso, Brescia, Queriniana, 1977, p. 259.

11 RICARDO DE SAN VICTOR, De Trinitate, III, 4, Roma, Città Nuova Editrice, 1990, p. 130.

12 HANS URS VON BALTHASAR, Teologia dei Tre Giorni, Brescia, Queriniana, 1990, pp. 39-40.

13 EBERHARD JÜNGEL, Dio Mistero del Mondo, Brescia, Queriniana, 2004, 3ª ed., p. 416-417.

14 SANT’AGOSTINO, In Ioannis Epistolam Tractatus 5, 12, Roma, Città Nuova Editrice, 1985, p. 1743.

15 JOSEF PIEPER, Sull’amore, Brescia, Morcelliana, 1974, p. 51; cf. também 64ss.

16 N. CABASILAS, De Vita in Christo III, citado de: HANS URS VON BALTHASAR, Teologia dei Tre Giorni, Brescia, Queriniana, 1971, p. 33.

17 Talvez se pudesse até ver, deste ponto de vista, o cerne da discussão teológica dos anos 50 sobre o tema do Sobrenatural – sem dúvida central na teologia católica –.

18 S. Th., I, q. 38, a. 2, resp. O texto original é: “Ratio autem gratuitae donationis est amor: ideo enim damus gratis alicui aliquid, quia volumus ei bonum. Primum ergo quod damus ei, est amor quo volumus ei bonum. Unde manifestum est quod amor haber rationem primi doni, per quod omnia dona gratuita donantur”.

19 JOSEF PIEPER, L’Amore, Brescia, Morcelliana, 1974, p. 8.

20 Citado de: MORAND WIRTH, François de Sales et l’Éducation, Paris, Éditions Don Bosco, 2005, p. 92.

21 SAN AGUSTÍN, Confesiones III/1, Madrid, BAC, 1991, p. 131.

22 JOSEF PIEPER, Sull’Amore, p. 58-59 (a citação de Lewis encontra-se em: C. S. LEWIS, Los Cuatro Amores, Madrid, Rialp, 2002, 145).

23 J. MOLTMANN, Il Dio Crocifisso, Brescia, Queriniana, 2002, 248-249.

24 F. M. DOSTOIÉVSKI, Delitto e Castigo, Milão, Mondadori, 2004, p. 30.

25 J. PIEPER, Sull’Amore, 65.

26 S. C. LEWIS, I quattro Amori, Milão, Jaca Book, 2006, 115-116. Los Cuatro Amores, 140-141.

27 Cfr. EBERHARD JÜNGEL, Dio Mistero del Mondo, Brescia, Queriniana, 2004, 414.

28 Ibid.

29 F. M. DOSTOIÉVSKI, l’Idiota, Torino, Einaudi, 2004, p. 220.

30 "A contribuição essencial que a Igreja espera da vida consagrada é muito mais em ordem ao ser do que ao fazer" (Bento XVI, Sacramentum Caritatis. Exortação Apostólica pós-sinodal, 22 de fevereiro de 2007, 81)

31 JOSEF PIEPER, Sull’Amore, Brescia, Morcelliana, 1974, p. 58, citando Stanislaus Graf von Dunin-Borkowski SJ.

32 F. M. DOSTOIEVSKI, I Demoni, Turim, Einaudi, 1994, 62-63.

33 JOÃO BOSCO, GIOVANNI BOSCO, Memorie dell’Oratorio, Roma, LAS, 1991.

34 Cf. o extraordinário texto (infelizmente posto numa nota perdida, ao fundo de uma página!) de EBERHARD JÜNGEL, Dio Mistero del Mondo, Brescia, Queriniana, 2004, p. 416, nota 15 (embora deva esclarecer que não estou totalmente de acordo com a linguagem utilizada).

35 Estes dois sentidos: o segundo e o terceiro, que damos aqui à saudação angélica correspondem, mais ou menos, àquele que a teologia clássica, com grande riqueza, mas com expressões muito inadequadas, chama de "Graça incriada" e "Graça criada" (sem querer fazer exegese do texto lucano ou da teologia angélica)


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