Aquilo que Jesus realiza na Ceia é o coroamento de uma longa história. É a "nova" aliança entre Deus e a
humanidade, que realiza o que fora prometido em todas as anteriores. É a antecipação ritual e a interpretação simbólica da
própria morte. É o testamento para a sua Igreja.
Ele, consciente da paixão que o espera, não foge diante da reação violenta que a humanidade opõe à pregação do
Reino, mas a assume e transforma a partir de dentro, com uma superabundância de amor. Consuma assim o dom de si
mesmo, entregando-se pela nossa libertação, na acolhida dócil da vontade salvífica do Pai, que o Espírito lhe apresenta como
convite e mandamento de amor.
É a oferta de sua vida como dom ao Pai pela humanidade, que Jesus antecipa e inscreve no gesto eucarístico. O rito
antigo enche-se de uma novidade inaudita, porque o Cordeiro que lava nossas culpas e nos restitui a Deus é o Filho feito
carne, consubstancial ao Pai e partícipe da nossa humanidade.
Jamais meditaremos e adoraremos suficientemente o mistério de amor contido neste evento, cuja vastidão nos supera
e cuja gratuidade nos confunde. Ele marca o início da ordem sacramental cristã, que tem como conteúdo a Páscoa salvífica
de Cristo, e estende aos homens de todos os lugares e de todos os tempos a comunhão com a sua caridade.
2.2 "O meu corpo entregue... o meu sangue derramado"
As reflexões precedentes ajudaram-nos a perceber a referência substancial da Eucaristia ao mistério pascal de Cristo.
"Sacrifício" é uma palavra fundamental para falar deste mistério e compreender, portanto, a Eucaristia de maneira
cristã. Para o homem moderno, parece um achado do passado, um entulho inútil, não só na vida quotidiana, onde a busca das
comodidades é de praxe, mas também na relação com Deus. Não consideramos que valha a pena sacrificar-nos, a não ser em
vista de uma vantagem maior, e não entendemos o porque de sacrificar alguma coisa a Deus, e muito menos o porque de lhe
atribuir tal atitude.
Para além das palavras, a realidade do sacrifício não pode deixar de ser proclamada, sem desnaturar o sentido da
Eucaristia. Suscita, então, uma certa preocupação, a tendência de rarefazer o anúncio desta verdade na pregação e na
catequese, até mesmo através do recurso a outras categorias, que sozinhas são insuficientes para exprimir a intenção de
Cristo, como aparece na Última Ceia e na consciência da Igreja primitiva.
Falar de sacrifício eucarístico significa ligar-se, de um lado, ao comportamento presente em todas as religiões e, de
outro, perceber a novidade de Cristo.
Em sua vida, Jesus demonstra oposição e rejeição total a uma certa concepção de sacrifício mas, também, interpreta o
momento supremo da sua missão, dizendo que oferece o seu Corpo "em sacrifício" por nós.
A concepção sacrifical, recusada por Jesus, é aquela que entende o gesto da oferta a Deus como tentativa de o homem
atrair favores para si, proteção e até mesmo privilégios da divindade conforme as próprias obras, apresentadas a Deus a título
de merecimento.
São muitos os motivos pelos quais este comportamento é aberrante: ele contém a idéia de que Deus não ama a todos
gratuita e livremente, mas trate os homens segundo cálculos interesseiros; favorece uma relação com Deus, que não coloca
no centro a adesão confiante à sua pessoa, mas a realização jurídica de gestos formais; vê o homem preocupado, não em
converter-se e entrar no Reino, mas ter de Deus a escuta de seus desejos imediatos.
Quando a participação à Eucaristia é inculcada, mais como um preceito a cumprir do que como uma Graça a ser
encontrada; quando se vai à Missa pelos dons que se esperam de Deus, mais do que para encontrar-se com o Dom que é
Deus mesmo, impõe-se a constatação de que, mesmo se as formas são cristãs, o conteúdo experiencial não o é realmente.
A idéia de sacrifício, manifestada por Jesus, é, de fato, algo de muito diverso e até mesmo oposto. Ele fala de
sacrifício a propósito da sua morte entendida, não como uma derrota, mas como a realização suprema da sua missão. A
morte de Jesus na cruz desmascara qualquer representação de Deus que projete sobre o Pai a nossa mesquinhez e os nossos
instintos de posse e desforra.
O sacrifício realizado uma vez por todas na cruz e presente em cada Eucaristia, é aquele em que Deus mesmo se
sacrifica pelo homem, em força de um movimento de caridade ilimitada e incondicional. Jesus sacrifica-se por nós no sentido
de dar-nos a sua vida, com doação gratuita, sem outra expectativa que não seja a de exprimir o amor de seu Pai, do qual Ele
é a imagem perfeita, em sua total oblação.
Quando celebramos o sacrifício eucarístico participamos, então, do mistério da Cruz com que Cristo nos libertou de
nossos temores de Deus, que são conseqüências dos nossos pecados, abrimo-nos alegremente ao encontro com um Deus que
nada nos pede para nos amar, a não ser a nossa disponibilidade em deixar-nos amar por Ele. O nome que define este
sacramento é, por isso, "Eucaristia", isto é, "ação de graças" ao Deus que nos ama gratuitamente.
A fidelidade ao amor de Deus exigirá também de nós, muitas vezes realisticamente, que enfrentemos obstáculos e que
nos choquemos com a oposição crucificante do pecado, nosso e alheio. Isso faz parte da nossa participação no sacrifício
eucarístico. Não aconteça, porém, entendermos o sacrifício eucarístico como a satisfação de uma obrigação religiosa, para
que Deus nos dispense um favor ou, então, a oferta de nós mesmos em união a Jesus como um preço imposto por Deus para,
depois, conceder-nos uma graça.
Se quisermos que a participação na Eucaristia seja frutuosa e motivada pela fé, devemos corrigir as visões distorcidas
e, sobretudo, proclamar, como São Paulo, a alegre notícia que brota da Cruz de Cristo, da qual toda Eucaristia é memorial.
A meditação do sacrifício eucarístico constitui, particularmente para nós, uma ocasião excelente de renovar a nossa
dedicação apostólica como participação na atitude de Jesus Bom Pastor, que salva os homens pelo dom de si. É da
Eucaristia, com efeito, que a nossa caridade pastoral tira dinamismo e fecundidade: participamos quotidianamente do
sacrifício de Cristo para aprender dele a entregar cada dia da vida, movidos pelo seu mesmo Espírito de amor.