Papa_mensagem_CG28


Papa_mensagem_CG28

1 Page 1

▲back to top
MENSAGEM DE SUA SANTIDADE O PAPA FRANCISCO
AOS MEMBROS DO CG28
Queridos irmãos!
Saúdo-vos com afeto e agradeço a Deus por poder, mesmo à distância, partilhar convosco um
momento do caminho que estais a percorrer.
É significativo que, depois de algumas décadas, a Providência vos tenha conduzido a celebrar o
Capítulo Geral em Valdocco o lugar da memória onde o sonho-fundador se concretizou e deu os
primeiros passos. Estou certo que o rumor e as vozes dos oratórios serão a melhor música, a mais
eficaz, pela qual o Espírito faz reviver o dom carismático do vosso fundador. Não fecheis as janelas
para o rumor de fundo... Deixai que vos acompanhe e vos mantenha inquietos e intrépidos no
discernimento; e permiti que estas vozes e estes cânticos, por sua vez, evoquem em vós os rostos
de tantos outros jovens, que, por várias razões, se encontram como ovelhas sem pastor (cf. Mc 6,
34). Este rumor e esta ansiedade manter-vos-ão atentos e em alerta a qualquer tipo de anestesia
autoimposta e ajudar-vos-ão a permanecer em fidelidade criativa à vossa identidade salesiana.
Reavivar o dom que recebestes
Pensar a figura do Salesiano para os jovens de hoje, implica aceitar que estamos imersos num
momento de mudanças, com tudo aquilo que esta incerteza gera. Ninguém pode dizer com certeza
e precisão (se alguma vez foi possível fazê-lo) o que irá acontecer no futuro próximo a nível social,
econômico, educativo e cultural. A inconsistência e a “fluidez” dos acontecimentos, mas sobretudo
a rapidez com que se sucedem e comunicam as coisas, faz com que todo o tipo de previsão se torne
uma leitura condenada a ser reformulada muito em breve (cf. Constituição Apostólica Veritatis
gaudium, 3-4). Esta perspectiva é ainda mais acentuada pelo fato de as vossas obras estarem
particularmente orientadas para o mundo dos jovens, que em si mesmo é um mundo em
movimento e em contínua transformação. Isto exige uma dupla docilidade: docilidade aos jovens e
às suas exigências e docilidade ao Espírito e a tudo aquilo que Ele deseja transformar.
Assumir responsavelmente esta situação quer a nível pessoal, quer a nível comunitário
comporta sair de uma retórica que nos leva a dizer continuamente “tudo está em mudança” e que,
à força de o repetir, acaba por fixar-nos numa inércia paralisante que priva a vossa missão da
parrésia própria dos discípulos do Senhor. Tal inércia pode também manifestar-se num olhar e numa
atitude pessimista diante de tudo aquilo que nos circunda e não só no que se refere às
transformações que acontecem na sociedade, mas também em relação à própria Congregação, aos
irmãos e à vida da Igreja. Esta atitude que acaba por “boicotar” e impedir qualquer resposta ou
processo alternativo, ou por fazer emergir a posição oposta: um otimismo cego, capaz de dissolver
a força e a novidade evangélica, impedindo aceitar concretamente a complexidade que as situações
exigem e a profecia que o Senhor nos convida a levar por diante. Nem o pessimismo nem o otimismo

2 Page 2

▲back to top
são dons do Espírito, pois ambos provêm de uma visão autorreferencial capaz de ser medida só com
as próprias forças, capacidades ou competências, impedindo de olhar àquilo que o Senhor atua e
quer realizar entre nós (cf. Exortação Apostólica pós-sinodal Christus vivit, 35). Nem se adaptar à
cultura da moda, nem se refugiar num passado heroico, mas já desencarnado. Nos tempos de
mudança, faz bem ater-se às palavras de S. Paulo a Timóteo: “Por isso, recomendo-te que reanimes
o dom de Deus que se encontra em ti, pela imposição das minhas mãos, pois Deus não nos concedeu
um espírito de timidez, mas de fortaleza, de amor e de sabedoria” (2Tm 1,6-7).
Estas palavras convidam-nos a cultivar uma atitude contemplativa, capaz de identificar e
discernir os pontos nevrálgicos. Isto ajudará a entrar no caminho com o espírito e o contributo
próprio dos filhos de Dom Bosco e, como ele, desenvolver uma “válida revolução cultural” (Encíclica
Laudato si’, 114). Esta atitude contemplativa haverá de permitir-vos superar e ultrapassar as vossas
próprias expectativas e os vossos programas. Somos homens e mulheres de fé, o que supõe ser
apaixonados por Jesus Cristo; e sabemos que tanto o nosso presente como o nosso futuro estão
impregnados desta força apostólico-carismática chamada a continuar a permear a vida de tantos
jovens abandonados e em perigo, pobres e necessitados, excluídos e descartados, privados dos seus
direitos, de casa... Estes jovens esperam um olhar de esperança capaz de contrariar todo tipo de
fatalismo ou determinismo. Esperam cruzar-se com o olhar de Jesus que lhes diz que “em todas as
situações escuras ou dolorosas […] há uma via de saída” (Exortação Apostólica pós-sinodal Christus
vivit, 104). É ali que habita a nossa alegria.
Nem pessimista nem otimista, o salesiano do séc. XXI é um homem cheio de esperança porque
sabe que o seu centro está no Senhor, capaz de fazer novas todas as coisas (cf. Ap 21, 5). Só isto nos
salvará de viver numa atitude de resignação e sobrevivência defensiva. Só isto tornará fecunda a
nossa vida (cf. Homilia, 2 de fevereiro de 2017), porque tornará possível que o dom recebido
continuará a ser experimentado e expresso como uma boa notícia para e com os jovens de hoje.
Esta atitude de esperança é capaz de instaurar e inaugurar processos educativos alternativos à
cultura imperante que, em não poucas situações quer pela indigência ou pobreza extrema quer
por abundância, em alguns casos também extrema , acabam por asfixiar e matar os sonhos dos
nossos jovens condenando-os a um conformismo ensurdecedor, adulador e não poucas vezes
narcotizado. Nem triunfalistas nem alarmistas, homens e mulheres alegres e com esperança, não
automatizados, mas artesãos; capazes de “mostrar outros sonhos que este mundo não oferece, de
testemunhar a beleza da generosidade, do serviço, da pureza, da fortaleza, do perdão, da fidelidade
à própria vocação, da oração, da luta pela justiça e o bem comum, do amor aos pobres, da amizade
social” (Exortação Apostólica pós-sinodal Christus vivit, 36).
A “opção Valdocco” do vosso 28º Capítulo-Geral é uma boa ocasião para se confrontar com as
fontes e pedir ao Senhor: “Da mihi animas, coetera tolle”.44 Tolle, sobretudo aquilo que durante o
caminho se foi incorporando e perpetuando e que, ainda que noutro tempo tivesse sido uma
resposta adequada, hoje vos impede de configurar e plasmar a presença salesiana de maneira
44 Lema gravado a fogo nos primeiros missionários. Lembro-me da carta do P. Tiago Costamagna a Dom Bosco em que,
depois de lhe contar as dificuldades da viagem e os vários fracassos que tiveram que enfrentar, concluiu dizendo:
“Pedimos unânimes apenas uma coisa: poder ir logo para a Patagônia para salvar incontáveis almas”. A consciência de
ser enviado para procurar almas nos subúrbios e de permanecer superando qualquer aparente fracasso, é uma nota de
identidade com base na qual se pode comparar e medir o carisma: “Da mihi animas, coetera tolle”.

3 Page 3

▲back to top
evangelicamente significativa nas diversas situações da missão. Isto pede, da nossa parte, superar
os medos e as apreensões que podem surgir por ter acreditado que o carisma se reduzisse ou
identificasse com determinadas obras ou estruturas. Viver fielmente o carisma é qualquer coisa
mais rica e estimulante que o simples abandono, remedeio ou readaptação das casas ou das
atividades; comporta uma mudança de mentalidade diante da missão a realizar.45
A “opção Valdocco” e o dom dos jovens
O Oratório salesiano e tudo aquilo que nasce a partir dele, como narra a biografia do Oratório,
nasce como resposta à vida dos jovens com um rosto e uma história, que colocam em movimento
aquele jovem sacerdote incapaz de permanecer neutral e imóvel diante daquilo que acontecia. Foi
muito mais do que um gesto de boa vontade ou de bondade, e muito mais do que o resultado de
um projeto de estudo sobre a “viabilidade numérico-carismática”. Penso nisso como um ato de
conversão permanente e de resposta ao Senhor que, “cansado de bater” às nossas portas, espera
que o procuremos e o encontremos... Ou o deixemos sair, quando bate de dentro. Conversão que
implica (e complica) toda a sua vida e a vida daqueles que estavam à sua volta. Dom Bosco não só
não escolhe separar-se do mundo para buscar a santidade, mas deixa-se interpelar e escolhe como
e que mundo habitar.
Escolhendo e acolhendo o mundo das crianças e dos jovens abandonados, sem trabalho, nem
formação, permitiu-lhes experimentar de modo tangível a paternidade de Deus e deu-lhes os
instrumentos para narrar a sua vida e a sua história à luz de um amor incondicional. Eles, por sua
vez, ajudaram a Igreja a reencontrar-se com a sua missão: “A pedra rejeitada pelos construtores
tornou-se pedra angular” (Sl 118, 22). Longe de serem agentes passivos ou espectadores da obra
missionária, tornaram-se, a partir da sua própria condição – em muitos casos “analfabetos
religiosos” e “analfabetos sociais” – os principais protagonistas de todo o processo de fundação.46
A salesianidade nasce precisamente deste encontro capaz de suscitar profecias e visões: acolher,
integrar e fazer crescer as melhores qualidades como dom para os outros, sobretudo para os
marginalizados e abandonados de quem não se espera nada. Disse-o Paulo VI: “Evangelizadora
como é, a Igreja começa por se evangelizar a si mesma... Numa palavra, é o mesmo que dizer que
ela tem sempre necessidade de ser evangelizada, se quiser conservar frescor, alento e força para
anunciar o Evangelho (Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, 15). Todo carisma precisa ser
renovado e evangelizado e no vosso caso sobretudo pelos jovens mais pobres.
45 Recordamos a advertência do Senhor: “Desprezando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens” (Mc
7,8).
46 Graças à ajuda do sábio Cafasso, Dom Bosco descobriu quem era aos olhos dos jovens presos; e aqueles jovens presos
descobriram um novo rosto no olhar de Dom Bosco. Então, juntos descobriram o sonho de Deus, que precisa destes
encontros para se manifestar. Dom Bosco não descobriu a sua missão diante de um espelho, mas na dor de ver jovens
que não tinham futuro. O salesiano do século XXI não descobrirá a sua própria identidade, se não for capaz de sofrer
com “a quantidade de jovens saudáveis e fortes, de espírito vivo, que estavam na prisão atormentados e
completamente despojados de alimento espiritual e material... Neles estava representada a odiosidade da pátria, a
desonra da família” (Memorie dell’Oratorio di san Francesco di Sales, 48); e nós poderíamos acrescentar: da nossa
própria Igreja.

4 Page 4

▲back to top
Os interlocutores de Dom Bosco ontem e do Salesiano hoje não são meros destinatários de uma
estratégia antecipadamente projetada, mas protagonistas vivos do Oratório a realizar.47 Por meio
deles e com eles o Senhor mostra-nos a sua vontade e os seus sonhos.48 Poderíamos chamar-lhes
cofundadores das vossas casas, onde o Salesiano será especialista em convocar e em gerar este tipo
de dinâmicas sem se sentir o patrão. Uma união que nos recorda que somos “Igreja em saída” e que
nos mobiliza para isto: Igreja capaz de abandonar posições cômodas, seguras e em certas ocasiões
privilegiadas, para encontrar nos últimos a fecundidade típica do Reino de Deus. Não se trata de
uma escolha estratégica, mas carismática. Uma fecundidade suportada com base na Cruz de Cristo,
que é sempre injustiça escandalosa para os que bloquearam a sensibilidade diante do sofrimento
ou que desceram a pactos com a injustiça diante do inocente. “Não podemos ser uma Igreja que
não chora à vista destes dramas dos seus filhos jovens. Não devemos jamais habituar-nos a isto,
porque, quem não sabe chorar, não é mãe. Queremos chorar para que a própria sociedade seja
mais mãe” (Exortação Apostólica pós-sinodal Christus vivit, 75).
A “opção Valdocco” e o carisma da presença
É importante dizer que não somos formados para a missão, mas que somos formados na missão,
a partir da qual se articula toda a nossa vida, com as suas escolhas e as suas prioridades. A formação
inicial e a permanente não podem ser uma instância prévia, paralela ou separada da identidade e
da sensibilidade do discípulo. A missão inter gentes é a nossa melhor escola: a partir dela rezamos,
refletimos, estudamos, repousamos. Quando nos isolamos ou nos afastamos do povo que somos
chamados a servir, a nossa identidade como consagrados começa a desfigurar-se e a tornar-se uma
caricatura.
Neste sentido, um dos obstáculos que podemos identificar não tem tanto a ver com uma
qualquer situação externa às nossas comunidades, mas é aquilo que nos toca diretamente por uma
experiência distorcida do ministério..., e que nos faz tanto mal: o clericalismo. É a procura pessoal
de querer ocupar, concentrar e determinar os espaços minimizando e anulando a unção do Povo de
Deus. O clericalismo, vivendo o chamamento de forma elitista, confunde a eleição com o privilégio,
o serviço com o servilismo, a unidade com a uniformidade, a discrepância com a oposição, a
formação com a doutrinação. O clericalismo é uma perversão que favorece as ligações funcionais,
paternalistas, possessivas e até manipuladoras com o resto das vocações na Igreja.
Outro obstáculo que encontramos difundido e até justificado, sobretudo neste tempo de
precariedade e fragilidade é a tendência ao rigorismo. Confundindo autoridade com
autoritarismo, pretende-se governar e controlar os processos humanos com uma atitude
escrupulosa, severa e até mesquinha perante os limites e as fragilidades próprias ou dos outros
47 Hoje vemos como em muitas regiões os jovens são os primeiros a levantar-se, a organizar-se e a promover causas
justas. As vossas casas salesianas, longe de impedir este despertar, são chamadas a tornar-se espaços que possam
estimular esta consciência de cristãos e cidadãos. Recordemos o título da Estreia do Reitor-Mor deste ano: “Bons
cristãos e honestos cidadãos”.
48 Convido-vos a ter sempre em mente todos aqueles que não participam nestas instâncias, mas que não podemos
ignorar se não quisermos ser um grupo fechado.

5 Page 5

▲back to top
(sobretudo dos outros). O rigorista esquece que o trigo e o joio crescem juntos (cf. Mt 13, 24-30) e
que “nem todos podem tudo”, e que, nesta vida, as fragilidades humanas não são curadas,
completamente e duma vez por todas, pela graça. Em todo caso, como ensinava Santo Agostinho,
Deus convida-te a fazer o que podes e “a pedir o que não podes” (Exortação apostólica Gaudete et
exsultate, 49). São Tomás de Aquino com grande finura e sutileza espiritual recorda-nos que “o
diabo engana muitos. Alguns atraindo-os a cometer pecados, outros a um excessivo rigor para com
os que pecam, de modo que, se não pode tê-los por comportamento vicioso, leva à perdição os que
já tem, usando o rigor dos prelados, que, não os corrigindo com misericórdia, os induzem ao
desespero, e assim se perdem e caem na rede do diabo. E isto acontece conosco, se não perdoarmos
aos pecadores”.49
Aqueles que acompanham outros a crescer devem ser pessoas de grandes horizontes, capazes
de colocar juntos limites e esperança, ajudando assim a olhar sempre em perspectiva, numa
prospectiva salvífica. Um educador “que não teme pôr limites e, ao mesmo tempo, se abandona à
dinâmica da esperança expressa na sua confiança na ação do Senhor dos processos, é imagem de
um homem forte, que guia o que não lhe pertence, mas ao seu Senhor”.50 Não nos é lícito sufocar
e impedir a força e a graça do possível, cuja realização esconde sempre uma semente de Vida nova
e boa. Aprendamos a trabalhar e a confiar nos tempos de Deus, que são sempre maiores e mais
sábios que as nossas míopes medidas. Ele não quer destruir ninguém, mas salvar a todos.
É urgente, por isso, encontrar um estilo de formação capaz de assumir de modo estrutural o fato
de que a evangelização implica a participação plena, e de pleno direito, de cada batizado com
todas as suas potencialidades e os seus limites e não apenas os assim chamados “atores
qualificados” (cf. Exortação apostólica Evangelii gaudium, 120); uma participação em que o serviço,
e o serviço ao mais pobre, seja o eixo portante que ajuda a manifestar e a testemunhar melhor
nosso Senhor, “que não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida em resgate de
muitos” (Mt 20,28). Encorajo-vos a continuar a empenhar-vos em fazer das vossas casas um
“laboratório eclesial” capaz de reconhecer, apreciar, estimular e encorajar os diversos
chamamentos e missões na Igreja.51
Neste sentido, penso concretamente em duas presenças da vossa comunidade salesiana, que
podem ajudar como elementos a partir dos quais confrontar o lugar que ocupam as diferentes
vocações entre vós; duas presenças que constituem o “antídoto” contra todo o tipo de tendência
clericalista e rigorista: o Irmão Coadjutor e as mulheres.
Os Irmãos Coadjutores são expressão da vida de gratuidade que o carisma vos convida a
conservar. A vossa consagração é, antes de mais, sinal de um amor gratuito do Senhor e ao Senhor
nos seus jovens, que não se define principalmente como um ministério, uma função ou um serviço
particular, mas através de uma presença. Antes ainda de o que fazer, o Salesiano é memória viva de
uma presença em que a disponibilidade, a escuta, a alegria e a dedicação são as notas essenciais
para suscitar processos. A gratuidade da presença salva a Congregação de todas as obsessões
49 Super II Cor., cap. 2, lect. 2 (in fine). A passagem comentada por Santo Tomás é 2Cor 2,6-7 onde, a respeito de quem
o entristeceu, São Paulo escreve: “Deves usar da tua bondade e consolá-lo, para que não sucumba sob demasiada dor”.
50 J. M. BERGOGLIO, Meditazioni per religiosi, 105.
51 Uma vocação eclesial, antes de ser um ato que diferencia ou torna complementar, é um convite a oferecer um dom
particular em função do crescimento dos outros.

6 Page 6

▲back to top
ativistas e de todos os reducionismos técnico-funcionais. O primeiro chamamento é ser uma
presença alegre e gratuita entre os jovens.
Que seria de Valdocco sem a presença de Mamãe Margarida? Teriam sido possíveis as vossas
casas sem esta mulher de fé? Nalgumas regiões e lugares “há comunidades que se mantiveram e
transmitiram a fé durante longo tempo, mesmo decênios, sem que algum sacerdote passasse por
lá. Isto foi possível graças à presença de mulheres fortes e generosas, que batizaram, catequizaram,
ensinaram a rezar, foram missionárias, certamente chamadas e impelidas pelo Espírito Santo.
Durante séculos, as mulheres mantiveram a Igreja de pé nesses lugares com admirável dedicação e
fé ardente” (Exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, 99). Sem uma presença real,
efetiva e afetiva das mulheres, às vossas obras faltaria coragem e capacidade para declinar a
presença como hospitalidade, como casa. Diante do rigor que exclui, é preciso aprender a gerar
nova vida do Evangelho. Convido-vos a levar por diante dinâmicas nas quais a voz da mulher, a sua
visão e o seu agir apreciado na sua singularidade encontrem eco ao serem tomadas decisões;
como um ator não auxiliar, mas constitutivo das vossas presenças.
A “opção Valdocco” na pluralidade das línguas
Como noutros tempos, o mito de Babel procura impor-se em nome da globalidade. Inteiros
sistemas criam uma rede de comunicação global e digital capaz de interconectar os diferentes
ângulos do planeta, com grave perigo de uniformizar monoliticamente as culturas, privando-as das
suas caraterísticas essenciais e dos seus recursos. A presença universal da vossa Família Salesiana é
um estímulo e um convite a guardar e preservar a riqueza de muitas culturas em que estais imersos
sem procurar “homologá-las”. Por outro lado, esforçai-vos para que o cristianismo seja capaz de
assumir a língua e a cultura das pessoas do lugar. É triste ver que em muitos lugares se sente ainda
a presença cristã como uma presença estrangeira (sobretudo europeia): situação que se verifica
também nos itinerários formativos e nos estilos de vida (cf. ibid., 90).52 Pelo contrário, agiremos
como nos inspira aquele episódio em que Dom Bosco, à pergunta sobre que língua gostava de falar,
responde: “Aquela que me ensinou a minha mãe: é aquela com que posso comunicar mais
facilmente”. Seguindo esta certeza, o salesiano é chamado a falar na língua materna de todas as
culturas em que se encontra. A unidade e a comunhão da vossa Família estão em condições de
assumir e acentuar todas estas diferenças, que podem enriquecer todo o corpo numa sinergia de
comunicação e interação em que cada um possa oferecer o melhor de si para o bem de todo o
corpo. Assim a salesianidade, em vez de se perder na uniformidade das tonalidades, conquistará
uma expressão mais bela e atrativa... saberá expressar-se “em dialeto” (cf. 2Mac 7,26-27).
Ao mesmo tempo, a irrupção da realidade virtual como linguagem dominante em muitos dos
Países em que realizais a vossa missão, exige, em primeiro lugar, reconhecer todas as possibilidades
e as coisas boas que produz, sem subvalorizar ou ignorar a incidência que possui para criar ligações,
sobretudo afetivas. Disto não estamos imunes nem sequer nós adultos consagrados. A tão difundida
52 Cf. Exortação apostólica Evangelii gaudium, 116: “como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe
de um único modelo cultural, mas permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição da
Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar”.

7 Page 7

▲back to top
(e necessária) “pastoral do monitor” pede-nos que habitemos a rede de forma inteligente
reconhecendo-a como um espaço de missão53 que requer, por sua vez, colocar todas as mediações
necessárias para não permanecer prisioneiros da sua circularidade e da sua lógica particular (e
dicotômica). Esta armadilha mesmo em nome da missão pode-nos fechar sobre nós próprios e
isolar-nos numa virtualidade cômoda, supérflua e pouco ou nada empenhada na vida dos jovens,
dos irmãos da comunidade ou dos trabalhos apostólicos. A rede não é neutra e o poder que possui
para criar cultura é muito alto. Sob o avatar da proximidade virtual podemos ficar cegos ou distantes
da vida concreta das pessoas, sufocando ou empobrecendo o vigor missionário. O dobrar-se
individualista sobre si mesmo, tão difundido e proposto socialmente nesta cultura amplamente
digitalizada, exige uma atenção especial não apenas no que se refere aos nossos modelos
pedagógicos, mas também ao uso pessoal e comunitário do tempo, das nossas atividades e dos
nossos bens.
A “opção Valdocco” e a capacidade de sonhar
Um dos “gêneros literários” de Dom Bosco eram os sonhos. Com eles o Senhor fez-se caminho
na sua vida e na vida de toda a vossa Congregação alargando a imaginação do possível. Os sonhos,
longe de o adormecerem, ajudaram-no, como aconteceu a São José, a assumir uma outra espessura
e uma outra medida de vida, que nascem das entranhas de compaixão de Deus. Era possível viver
concretamente o Evangelho... sonhou-o e deu-lhe forma no Oratório.
Gostaria de vos oferecer estas palavras como os “boas-noites” em toda boa casa salesiana ao
terminar o dia, convidando-vos a sonhar e a sonhar em grande. Sabeis que o resto vos será dado
como acréscimo. Sonhai casas abertas, fecundas e evangelizadoras, capazes de permitir ao Senhor
mostrar a tantos jovens o seu amor incondicional, e a vós gozar a beleza a que fostes chamados.
Sonhai... E não só para vós e para o bem da Congregação, mas para todos os jovens privados da
força, da luz e do conforto da amizade com Jesus Cristo, privados de uma comunidade de fé que os
sustenha, de um horizonte de sentido de vida (cf. Exortação apostólica Evangelii gaudium, 49).
Sonhai... e fazei sonhar!
Roma, São João de Latrão, 4 de março de 2020.
53 Hoje, de fato, “torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com
os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais. É necessário chegar aonde são concebidas as novas
histórias e paradigmas” (Exortação apostólica Evangelii gaudium, 74).