Alburquerque


Alburquerque

1 Pages 1-10

▲back to top

1.1 Page 1

▲back to top
FABIO ATTARD – MIGUEL ÁNGEL GARCÍA
O ACOMPANHAMENTO
ESPIRITUAL
Itinerário pedagógico-espiritual em chave salesiana
a serviço dos jovens
Tradução:
P. José Antenor Velho

1.2 Page 2

▲back to top
Coleção Espiritualidade e Pedagogia Salesiana
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7- 5880
A883c Attard, Fábio
O acompanhamento espiritual: Itinerário pedagógico-espiritual em chave salesiana a
a serviço dos jovens. - L’Accompagnamento Spirituale - Itinerario pedagogico spirituale in
chiave salesiana al servizio dei giovani / Fábio Attard; Miguel Ángel García; Tradução P. José
Antenor Velho. -- Brasília, DF: EDB, 2015.
436 p.; 23,5 x 16,5 cm
– (Espiritualidade e Pedagogia Salesiana)
Inclui referências bibliográficas
ISBN: 978-85-7741-276-1
1. Salesianos - Vida espiritual. 2. Direção espiritual. 3. Bosco, João, Santo,1815-1888
- Ensinamentos. 4. Francisco, de Sales, Santo, 1567-1622. 5.Vida cristã. 6. Fé I. Ángel García,
Miguel. II. Velho, P. José Antenor, trad. III. Título. IV. Itinerário pedagógico-espiritual em
chave salesiana a serviço dos jovens.
CDD 248.482
Índice para catálogo sistemático:
1. Salesianos - Vida espiritual
2. Direção espiritual
3. Bosco, João, Santo,1815-1888 – Ensinamentos
4. Francisco, de Sales, Santo, 1567-1622
5. Vida cristã
6. Fé
Revisão : Zeneida Cereja da Silva
Diagramação: Helkton Gomes
Todos os direitos reservados à
EDITORA DOM BOSCO
SHCS - Quadra 505, Bloco B, sala 65
Asa Sul - Brasília-DF-70350-525
Tel.: (61) 3214-2300
www.edbbrasil.org.br

1.3 Page 3

▲back to top
São Francisco de Sales como diretor espiritual
Práxis pastoral da direção espiritual do Bispo de Genebra
Eugenio Alburquerque Frutos, sdb
A finalidade desta contribuição é apresentar Francisco de Sales, bispo e
pastor de Genebra, diretor espiritual, enquadrando o exercício da direção espiri-
tual em sua práxis pastoral, esclarecer o que ela significou em sua vida e em sua
extraordinária atividade episcopal, indicar como ele a exerceu e quais foram os
seus principais aspectos específicos. As fontes primárias deste estudo não foram
outras senão a mesma vida do santo e as suas obras: Introdução à vida devota,
Tratado do amor de Deus e, especialmente, o seu epistolário.1
Dom Bosco, ao longo de sua vida, interessa-se por muitos santos, admira-os
e inspira-se em muitos deles (S. Afonso, S. Felipe Neri, S. Vicente de Paulo, S.
Luís Gonzaga etc.). Sente-se, contudo, especialmente atraído por S. Francisco de
Sales, cujo retrato pôde contemplar desde seus anos de seminarista na capela do
seminário de Chieri.
É impossível determinar o nível do conhecimento de Dom Bosco
sobre a personalidade e os escritos do Bispo de Genebra. Todavia, há algo que
necessariamente se impõe. Dom Bosco é um homem prático, que consegue aferrar
o essencial das coisas. E consegue apreender também o essencial da vida e dos es-
critos de Francisco de Sales. O que mais o impressiona e mais influi sobre ele é, de
um lado, o exemplo do apóstolo ardoroso do Chablais calvinista; e, de outro, a man-
sidão e a doçura do seu coração. Ou seja, Dom Bosco concentra a mensagem de
Francisco de Sales na caridade pastoral e na amabilidade; Dom Bosco vê Francisco
de Sales como pastor zeloso, sempre animado pelo espírito de doçura, mansidão e
bondade.2
1 Os escritos de S. Francisco de Sales estão reunidos nos XXVI volumes da edição Oeuvres de saint
François de Sales. Évêque et Prince de Genève et Docteur de l’Église. Édition complète d’après les
autographes et les éditions originals, enrichie de nombreuses pièces inédites, 27 vols.; Lettres XI-
XXI, Monastère de La Visitation, Annecy 1892-1932, na abreviação OEA, tomo e página [N.d.E.].
2 Cf. SÃO JOÃO BOSCO, Storia ecclesiastica ad uso delle scuole, Turim 1845; Memórias do
Oratório de São Francisco de Sales, Editora Dom Bosco, Brasília 2012; E. ALBURQUERQUE,
Don Bosco y San Francisco de Sales, Editorial CCS, Madri 2007; A. PEDRINI, San Francesco di
Sales e Don Bosco, Roma 1986.
28

1.4 Page 4

▲back to top
1. Pastor zeloso
É o que Francisco de Sales realmente foi: pastor zeloso, ardoroso. Ao con-
templar sua figura e sua espiritualidade, estamos habituados, às vezes, a admirar
de modo especial o modo com que viveu o amor com a doçura e a mansidão
da ação. Apesar disso, madre Chantal, talvez a pessoa que conheceu o santo no
modo mais profundo e elevado, não duvidou em afirmar que nele havia uma vir-
tude mais dominante ainda: o zelo pela salvação das almas.3
Hoje, na Igreja, falamos de caridade pastoral. Isso significa que a partici-
pação no amor de Deus se manifesta no serviço e no amor ao próximo. Ou seja,
como todo amor, a caridade pastoral tem origem no amor de Deus, e este amor
se manifesta ativamente no serviço pastoral. Trata-se de um amor segundo Deus,
vivido na participação da missão salvífica de Cristo Pastor, enviado pelo Pai para
a salvação de todos os homens.
Embora nos tempos do Bispo de Genebra a expressão ainda não tivesse
sido criada, pode-se garantir que a sua espiritualidade é orientada totalmente pela
corrente vital do amor divino que se transforma em caridade pastoral, motor do
dinamismo que vive e demonstra em suas obras. Francisco de Sales ama a Deus
e só deseja que todas as criaturas o amem. Talvez o seu ensinamento mais impor-
tante seja precisamente este: quem chega a amar e experimentar o amor de Deus,
não pode deixar de convertê-Lo e o seu Reino em objetivo da própria existência.
Francisco de Sales vive imerso no amor de Deus, e toda a sua vida não é outra
coisa senão uma resposta reconhecida ao Amor. Nesse sentido, o mesmo Santo
escreve:
“Esta divina paixão é aquela que deu origem a tantos empreendimentos apos-
tólicos; aquela que semeou de tantas aventuras as vidas de Xavier, Berceo e
Antonio, com a multidão de jesuítas, capuchinhos, religiosos e eclesiásticos de
todas as classes nas Índias, no Japão, no [rio] Maranhão, enviados a difundir e
fazer adorar o nome sagrado de Jesus em meio a tão grandes povos; aquela que
ditou tão grandes livros de piedade, construiu tantas igrejas, altares e casas de
piedade; enfim, aquela que faz vigiar, trabalhar e morrer tantos servos de Deus
entre as chamas do zelo que os consome e devora”.4
3 Declaração da madre Joana Francisca Frémyot de Chantal na causa de beatificação e canonização,
in F. M. CHAUGY, Juana Francisca Frémyot de Chantal. Su vida y sus obras III, Madri 1929, 234-237.
4 Tratado del amor de Dios, V, 9.
29

1.5 Page 5

▲back to top
Para Francisco de Sales, zelo é sinônimo de “amor ardente” ou, melhor,
de “amor amante”. Quando procura descrevê-lo, ele afirma: “O verdadeiro zelo
é filho da caridade sendo, como é, o seu ardor”. Esta é a sua característica pe-
culiar; e essa filiação o reveste de todos os aspectos que acompanham o verda-
deiro amor:
“Como a caridade, é paciente, benigna, sem desordem, sem disputas, sem ódio,
sem inveja, e alegra-se na verdade. O ardor do verdadeiro zelo é como o do
caçador diligente, solícito, ativo, laborioso e muito afeiçoado à caça, mas sem
cólera, sem ira, sem agitação; se o trabalho dos caçadores fosse colérico, irado
ou penoso, não seria tão amado nem estimado. O verdadeiro zelo possui ardo-
res muito abrasadores, mas constantes, firmes, afetuosos, laboriosos, amáveis
e incansáveis”.5
Assim brilhava nele de modo singular. Sua alegria era incomparável quan-
do podia constatar a conversão operada por Deus no coração dos pecadores; e
a sua aflição era amarga diante da dureza dos que se fechavam à graça. Estava
disposto a abandonar até mesmo a oração e o serviço direto de Deus pelo serviço
do próximo. Foi, realmente, um apóstolo incansável, sempre disposto a suportar
aflições e fadigas, dificuldades, sofrimentos, calúnias, perseguições pelo Reino
de Deus e pela salvação das almas.
Estimulado pela caridade de Cristo, entregou-se inteiramente à salvação
das almas, colocando sempre a ação pastoral no coração de Cristo, prolongando
e participando da sua mesma atividade de Bom Pastor. Assim o vê Dom Bosco
na missão do Chablais, missão realmente difícil, que lhe causou muitas aflições
e sofrimentos; e assim o viram muitos que compararam a sua missão com a de
Francisco Xavier na Índia. Ao final da missão, o Duque de Saboia, Carlos Ema-
nuel, apresenta-o ao Card. Alexandre de Medici (futuro papa Leão X) com estas
palavras:
“Monsenhor, apresento-vos o apóstolo do Chablais; eis um homem enviado
por Deus que, inflamado por um grandíssimo zelo pela salvação das almas, não
sem grave perigo para a própria vida, propagou nesta província a palavra de
Deus e implantou a Cruz de Nosso Senhor”.6
5 Tratado del amor de Dios, X, 16.
6 Cit. in A. RAVIER, François de Sales. Un sage et un saint, Nouvelle Cité, Paris 1985, 78-79.
30

1.6 Page 6

▲back to top
A caridade pastoral praticada pelo apóstolo do Chablais acompanha a vida
inteira de Francisco de Sales e define também a sua atividade episcopal. O Bis-
po de Genebra entrega-se inteiramente à própria diocese; durante vinte anos de
episcopado consagra-lhe os seus dias e as suas noites. Enquanto bispo, sente-se
e reconhece-se especialmente pastor: “pastor das ovelhas mais carentes, médico
daqueles que sofrem”, declara. Está tão convencido de que a salvação das almas
faz parte da sua própria salvação, que escreve: “parte tão grande que equiva-
le quase ao todo”; tem consciência, portanto, de trabalhar pela própria salvação
quando busca a dos outros. Todas as preocupações parecem-lhe poucas quando
se trata de levar o evangelho, construir a Igreja de Cristo, promover a reforma
católica desejada pelo Concílio de Trento.
Não podemos nos deter na atividade pastoral ingente deste exímio pastor,
simplesmente porque não é este o tema principal de nossa reflexão. Deveríamos
observar, sem dúvida, a importância de suas visitas pastorais a todas as paróquias
da vasta diocese de Genebra, as suas iniciativas de reforma eclesial no campo da
liturgia, da catequese, da educação, do ensino e da formação religiosa do povo, no
ministério da palavra, nos sínodos diocesanos etc. Foi-nos pedido para nos deter-
mos na atividade pastoral praticada por Francisco de Sales na direção espiritual.
Ela é, sem dúvida, um aspecto fundamental da sua atividade pastoral cotidiana.
Ele acompanhou espiritualmente religiosas e sacerdotes, importantes persona-
lidades históricas, pessoas da alta sociedade e muita gente simples através do
sacramento da reconciliação, do colóquio pessoal e de milhares de cartas escritas
com essa finalidade.
Historicamente, dois casos têm importância especial: a direção espiritual
de Luisa Duchastel, senhora de Charmoist, que deu origem ao seu livro mais
famoso, Introdução à vida devota, e a direção de Joana Francisca Frémyot, ba-
ronesa de Chantal, que ele acompanha espiritualmente da viuvez à fundação da
Ordem da Visitação e à santidade, e cuja experiência espiritual palpita como pano
de fundo no Tratado do Amor de Deus. Como afirma Lajeunie, Francisco de Sales
tornou a arte da direção espiritual realmente popular no mundo.
2. O dom do discernimento
Para Francisco de Sales, a direção espiritual constitui uma das atividades
mais estimadas do seu ministério episcopal. Ele acredita que, sobretudo ao Bispo,
31

1.7 Page 7

▲back to top
cabe levar as almas à perfeição, e confessa que, embora se tratando de trabalho
difícil, é empresa consoladora:
“Confesso que é muito trabalhoso dirigir almas em particular, mas é trabalho
consolador, semelhante ao dos semeadores e colhedores que nunca estão tão
alegres como quando estão muito empenhados. Trabalho que alarga o cora-
ção, o reconforta e reaviva com a suavidade que comunica a quem o inicia,
semelhante ao efeito do cinamomo sobre aqueles que o transportam através da
Arábia Feliz”.7
O Bispo de Genebra foi e é certamente reconhecido como um dos grandes
mestres da direção espiritual. Para isso é preparado por toda a sua formação. Nos
anos de estudante em Paris, além do acompanhamento do seu preceptor e tutor, o
abade Déage, teve provavelmente um diretor espiritual, embora não conheçamos
o seu nome, escolhido entre os jesuítas do Colégio Clermont. Em Pádua, desde
a sua chegada, confiou-se ao padre Antonio Possevino. De retorno à Saboia, nos
momentos tão importantes de discernimento e luta vocacional, foi acompanhado
pelo padre Amadeo Bouvard. Nos inícios do episcopado confia-se ao padre Fou-
rier, reitor do colégio dos jesuítas de Chambéry. Durante alguns anos, confessa-se
regularmente com Felipe de Quoex, penitenciário de sua catedral. Desde 1608
confia a própria consciência a Miguel Favre, jovem sacerdote recém-ordenado.
Contudo, além desta longa experiência de ser orientado e da sua acurada
preparação intelectual, possuía de forma elevada o dom da direção dos espíritos.
Todos os seus biógrafos garantem que Deus lhe dera uma lucidez particular para
a direção das almas. Segundo A. Hamon, poucas pessoas possuíram de modo tão
elevado a visão, tão fina e profunda, de penetrar na intimidade das consciências,
aquela espécie de intuição sobrenatural que é a alma de uma sábia direção.8 No
processo de canonização, madre Chantal declarou:
“Entre todos os dons que o nosso Bem-aventurado Fundador recebeu de Deus,
o de discernimento dos espíritos foi um dos mais eminentes; e esta é uma das
verdades que jamais foi colocada em dúvida por quem quer que o tenha fre-
quentado e tratado pessoalmente. Por isso, recorriam a ele de diversos lugares
com a finalidade de obter esclarecimentos para suas dúvidas de consciência
(...). O número das almas que acompanhou ao longo do caminho da perfeição
7 Introduction à La vie dévote, in Œuvres, III. [N.d.T.: “Arábia Feliz”, ou Arabia Felix, em latim, era o nome
dado à região hoje correspondente ao Iêmen e Omã.]
8 A. HAMON, Vida de San Francisco de Sales II, Difusión, Buenos Aires 1948, 356.
32

1.8 Page 8

▲back to top
cristã, em diversos lugares, é quase inumerável (...). Tinha uma visão tão pene-
trante que, quando lhe falavam ou lhe escreviam sobre a própria consciência,
discernia com delicadeza e clareza sem iguais as inclinações, moções e todos
os segredos das almas, e falava em termos tão precisos, claros e inteligíveis,
que fazia compreender com grande facilidade as coisas mais delicadas e eleva-
das da vida espiritual”.9
Dotado de dons de natureza e graça, atraía de modo simples e natural mui-
tas almas desejosas de perfeição. Desde a ordenação sacerdotal em 1593, con-
fessa muitas pessoas de todas as classes e condições, inclusive vários familiares.
Sua própria mãe chega a considerá-lo como seu diretor espiritual. Era normal
encontrá-lo na catedral de São Pedro, disponível por longas horas à escuta dos
penitentes. Acolhia a todos com grande amor e doçura; a muitos, ele seguia e
acompanhava na tarefa da direção espiritual, quer através do colóquio pessoal
quer através da correspondência epistolar.
É certamente indispensável referir-nos à sua correspondência epistolar ao
tratar da direção espiritual do Bispo de Genebra. Talvez possamos conhecer me-
lhor a importância dada por ele à direção espiritual e a sua práxis pastoral precisa-
mente através das muitas cartas que escreveu. Francisco de Sales sempre foi um
homem sumamente ocupado; isso, porém, não o impedia, segundo a confissão de
seus íntimos, de dedicar todos os dias um bom tempo para escrever cartas; mui-
tas delas são de direção espiritual.10 O próprio Bispo fala de milhares de cartas
que recebe11 e do “dilúvio de cartas que está para escrever”.12 Com elas, o Bispo
de Genebra desenvolve uma atividade ingente de direção espiritual. Nas cartas,
palpita também o coração de Francisco de Sales, um “coração de carne”, terno,
sensível, apaixonado, feito para amar e ser amado; e nelas pode-se perceber a
densidade espiritual do santo Bispo. São muitos os que pensam que a sua corres-
pondência epistolar represente a história de sua vida, a mais completa e a mais
fiel. Efetivamente, nas Cartas ele se manifesta no modo mais vivo e transparente;
melhor do que em nenhuma outra de suas obras, é possível contemplar nelas toda
a sua rica personalidade. Se a Introdução à vida devota ou o Tratado do Amor
9 Declaração de madre Joana Francisca Frémyot de Chantal na causa de beatificação e canonização,
in: Juana Francisca Frémyot de Chantal. Su vida y sus obras III, Madri 1929. Pode-se ver o texto em: E. AL-
BURQUERQUE, Una espiritualidad del amor: San Francisco de Sales, Editorial CCS, Madri 2007, 217-218.
10 Segundo afirma Michel Favre: “não passava um só dia em que ele não escrevesse vinte ou vinte e
cinco cartas, respondendo a todo tipo de pessoas: Oeuvres de saint François de Sales (OEA XI, p. XIX).
11 OEA XIX, 353.
12 OEA XX, 245.
33

1.9 Page 9

▲back to top
de Deus fazem-nos admirar o teólogo, o doutor, o santo, as Cartas revelam-nos
o homem, um homem dotado de natureza sensível, delicada e, ao mesmo tempo,
de extraordinária profundidade espiritual; revelam-nos um Francisco de Sales
perfeitamente humano e perfeitamente homem de Deus.
Embora sua atividade epistolar tenha começado quando ainda era estu-
dante, parece que o epistolário espiritual tem início depois da sua permanência
em Paris, em 1602; aumenta depois da pregação da quaresma em Dijon (1604)
e, desde então, mantém uma importância decisiva na atividade cotidiana do Bis-
po até o fim de sua vida. Efetivamente, durante sua permanência em Paris, em
1602, Francisco de Sales estabelece uma relação espiritual muito consistente com
diversas personalidades e comunidades parisienses, especialmente com as que
fazem parte do círculo da senhora Acarie. Muitos recebem os seus conselhos e
muitos começam a admirá-lo como extraordinário diretor de almas. Depois, após
o encontro com Joana Francisca de Chantal, nos anos em que prepara a fundação
da Visitação e a nova família religiosa caminha, essa tarefa ocupa grande parte
dos seus dias.
Atualmente, estão publicadas mais de duas mil cartas salesianas. A edição
principal continua aquela em onze volumes da edição das Obras Completas, do
Mosteiro da Visitação de Annecy; a partir desta edição foram publicados vários
volumes de seleção de cartas.13 Têm certamente um notável interesse histórico,
também pelo fato de dirigir-se a um círculo muito amplo de correspondentes e
pela importância de alguns deles no seu tempo (Clemente VII; Paulo V; Gregório
XV; Bellarmino; Bérulle; Carlos Emanuel, Duque de Saboia; Antonio Favre, Pre-
sidente do Senado de Chambery; Vicente de Paulo; a senhora Acarie; Angélica
Arnaud). Todavia sua importância é principalmente espiritual: são cartas espiri-
tuais. Com elas, de modo personalizado, Francisco de Sales dirige muitas almas,
transmite o seu pensamento e experiência espiritual.
O Bispo de Genebra serve-se deste gênero literário para dirigir e acom-
panhar espiritualmente muitas almas com as quais estabelece relação em suas
pregações quaresmais em lugares muito diversos (Paris, Dijon, La Roche, Cham-
bèry, Grenoble etc.) ou nas visitas pastorais às paróquias de sua diocese. Dentre
os correspondentes, acompanhou alguns até o fim de sua vida (a senhora de la
13 Cf. E. LE COUTURIER, Lettres de direction et Spiritualité de Saint François de Sales, Vitte, Lion 1952; A.
RAVIER, Correspondence. Les lettres d’amitié spirituelle, Desclée de Brouwer, Paris 1980 (trad. italiana); J.
GUTIERREZ, San Francisco de Sales. Cartas espirituales, Editorial Litúrgica Española, Barcelona 1945; E.
ALBURQUERQUE, Dirección y amistad espiritual, Cartas de san Francisco de Sales a santa Juana Francisca de
Chantal, Editorial CCS, Madri 20092.
34

1.10 Page 10

▲back to top
Fléchere, a senhora Brûlart), acompanhando muito de perto o seu progresso es-
piritual, as suas batalhas, os seus sucessos e falências; outros, porém, mudaram
de direção; alguns, apenas iniciado o itinerário, desistiram. Entre todos tem im-
portância muito especial a viúva baronesa Joana Francisca de Chantal, que se
transformou na filha predileta do Bispo e na obra mestra da sua direção espiritual.
Sintetizando, parece-me que se possa afirmar que as cartas salesianas cons-
tituem um testemunho irrefutável da importância da direção espiritual na vida e
ação pastoral de S. Francisco de Sales. Manifestam de modo claro e contundente
a sua atividade intensa nesse campo, refletem a figura de diretor espiritual que ele
encarna, fazendo ressaltar, também, as linhas próprias da direção espiritual con-
duzida pelo Bispo de Genebra. Mostram-nos, na verdade, o Francisco de Sales
diretor e guia espiritual.
3. CARACTERÍSTICAS da direção espiritual do Bispo
de Genebra
A partir, sobretudo das cartas, procurarei traçar o perfil de Francisco de
Sales diretor espiritual, indicando as características que me parecem mais im-
portantes na sua atividade de guia e acompanhante no itinerário da perfeição
cristã. Agrupo-as ao redor de três eixos: personalização, humanismo e amizade.
Parece-me que a direção espiritual realizada pelo Bispo de Genebra em sua práxis
pastoral é especialmente uma direção personalizada, humanista e colocada na
perspectiva da amizade espiritual.
3.1. Direção personalizada
Se observarmos as suas cartas de direção espiritual, notamos antes de tudo
que, para Francisco de Sales, cada uma delas era algo muito pessoal, muito ín-
timo. O Bispo de Genebra jamais pensou que as suas cartas espirituais seriam
publicadas; desagradava-lhe até mesmo que alguns de seus fragmentos passas-
sem de mão em mão. Ele as escrevia respondendo a situações pessoais de seus
destinatários. Francisco de Sales tem o dom de personalizar cada carta. Para ele,
nenhum de seus correspondentes é idêntico aos demais e nenhum deles é sempre
o mesmo. Cada carta adapta-se, então, não só à pessoa, mas até mesmo às dife-
35

2 Pages 11-20

▲back to top

2.1 Page 11

▲back to top
rentes situações vividas por ela. Ele aceita a pessoa que está dirigindo tal como
ela é e, a partir da situação espiritual concreta em que se encontra, ele a orienta e
acompanha no caminho da perfeição. Obtém realmente uma admirável sintonia
e empatia com cada uma das almas, porque chega à profunda percepção e ao
conhecimento do coração humano, dos valores espirituais, das aflições e reações
interiores. Tudo isso parece visível e tangível a Francisco de Sales.
Ou seja, Francisco de Sales demonstra sempre grande sensibilidade pela
individualidade e subjetividade da pessoa; procura a sua verdade com simplici-
dade e quer resgatá-la do automatismo, da rotina e do temor que ameaçam com
muita frequência as almas desejosas de iniciar o itinerário da sequela e do amor
de Deus. Ele possui o dom de uma observação penetrante do coração humano no
qual fixa a atenção para buscar as raízes do bem e do mal. Segundo o testemunho
de Joana Francisca de Chantal, a primeira coisa que ele fazia era informar-se bem
das disposições das almas com as quais tratava. Para iniciar a obra de direção,
queria-as dispostas e desejosas de chegar à “devoção”, ao amor divino:
“Se não as encontrava dispostas, parava imediatamente, não querendo desper-
diçar palavras onde não há ouvintes; mas, tão logo reconhecia a unção do espí-
rito de Deus, dispensava às almas as instruções e os ensinamentos necessários
para a sua salvação”.14
Este extraordinário sentido pedagógico, que inicia tomando as almas
na situação em que elas se encontram, manifesta-se especialmente em sua ca-
pacidade de guia e em oferecer a cada uma o alimento conveniente à própria
personalidade, caráter e situação espiritual. Nada mais admirável do que a
flexibilidade e capacidade de adaptação da sua direção. Ele adapta a orien-
tação e os conselhos à situação pessoal, familiar, social, buscando sempre a
realização perfeita dos próprios deveres.15 Exemplo paradigmático é o projeto
de vida que propõe numa de suas cartas à baronesa de Chantal.16
Por trás e como pano de fundo desta sensibilidade e capacidade de adapta-
ção, há no Bispo de Genebra um sagrado respeito pela pessoa como indivíduo.17
14 Declaração de madre Chantal no processo de santidade e milagres, in F. M. CHAUGY, Juana Francisca
Frémyot de Chantal, cit., 219.
15 Cf. J. STRUS, “Il metodo della direzione spirituale nell’insegnamento e nella pratica di San Francesco
di Sales”, Salesianum 40 (1978) 289-306.
16 Cf. Carta CCXXXIV, OEA XII, 352-370.
17 Cf. M. WIRTH, François de Sales et l’education. Formation humaine et humanisme integral, Éditions Don
Bosco, Paris 2005, 299-310.
36

2.2 Page 12

▲back to top
Acusou-se com frequência a direção espiritual tradicional de controlar, tutelar e
direcionar excessivamente. Não é essa a perspectiva nem a orientação em que
se coloca a ação pastoral concreta de Francisco de Sales. Ao contrário, ele se
demonstra sempre sumamente respeitoso da pessoa, da sua autonomia, da sua
consciência. Inclina-se sobre ela e a ela se adapta. São muitos os seus dirigidos
e correspondentes, e muitíssimo diferentes as suas condições e situações sociais e
espirituais. O Bispo de Genebra sempre se esforça para adequar-se, e consegue-o,
ao temperamento de seus dirigidos, aos seus deveres de estado, ao seu nível de
progresso na perfeição cristã. Na Introdução à vida devota, ele proclama que
“Deus ordena aos cristãos, plantas vivas da sua Igreja, que produzam frutos de
devoção de acordo com a própria qualidade e estilo” e, por isso, “a devoção deve
ser praticada diferentemente pelo cavalheiro, pelo operário, pelo servo, pelo prín-
cipe, pela viúva, pela donzela, pela casada” e, também, “é preciso adaptar a sua
prática às forças, às ocupações e aos deveres de cada estado”.18
Toda a sua práxis pastoral confirma esse ensinamento. E é esse o segredo
e a mais admirável arte de Francisco de Sales como diretor espiritual. A finalida-
de da direção espiritual é sempre a mesma para todos: orientar para a perfeição
cristã. A verdadeira arte está em conseguir indicar exatamente o itinerário espe-
cífico que a ela conduz. Esta é a arte do Bispo de Genebra, sabedor de que “cada
planta e cada flor precisa de um cuidado especial num jardim”,19 ele penetra na
intimidade da pessoa, chega ao conhecimento profundo da sua situação espiritual
e adapta-se à individualidade, à condição, ao caráter e às forças de cada uma.
3.2. Direção humanista
F. Strowski escreveu que a direção espiritual em Francisco de Sales é, so-
bretudo, “uma pedagogia”.20 E. J. Lajeunie explica a pedagogia espiritual a partir
da dialética dos desejos. Segundo o conhecido biógrafo do santo, a alavanca em
que se apoiava a direção espiritual de Francisco de Sales era a tendência ao desejo
de Deus escondido no desenvolvimento dos desejos contrários.21 Um texto do
Tratado do Amor de Deus pode ajudar-nos a entendê-lo:
18 Introducción a la vie dévote, in OEA I, 4.
19 Carta MCXXVII (a Madre Favre), OEA XVII, 81.
20 Cf. F. STROWSKI, Saint François de Sales. Introduction à l’histoire du sentiments religieux en France au dix-
septième siècle, Plon, Paris 1928, 171.
21 Cf. E. J. LAJEUNIE, San Francisco de Sales. El hombre, el pensamiento, la acción II. Monasterio de la Visi-
tación de Santa María, Salamanca 2001, 253-255.
37

2.3 Page 13

▲back to top
“A nossa alma, portanto, considerando que nada pode satisfazê-la plenamente,
nem a sua capacidade pode ser preenchida por alguma coisa deste mundo, e
vendo que a inteligência sente uma contínua necessidade de saber sempre mais
e a vontade, um apetite insaciável de querer encontrar o bem, tem razão em
exclamar: Eu, então, não sou feita para este mundo! Existe um bem real do
qual eu dependo, artífice infinito que inseriu em mim este desejo ilimitado, este
apetite insaciado; é necessário que tenda para ele a fim de unir-me intimamen-
te à sua bondade à qual pertenço, da qual eu sou. Essa é a relação que temos
com Deus”.22
O texto alude à espiritualidade de tensão e de extensão, uma espirituali-
dade que parte do coração humano, inquieto porque foi criado por Deus e para
Deus, e não encontra repouso enquanto não se unir intimamente à sua bondade e
ao seu amor.
Por isso, a partir desta perspectiva de direção espiritual, a primeira preocu-
pação para o Bispo de Genebra é ajudar a alma a tomar consciência deste desejo
real. Assim, no início da direção espiritual da baronesa de Chantal, pede a Deus
que se compraza em aperfeiçoar nela “a sua boa obra, ou seja, o desejo e o pro-
pósito de alcançar a perfeição cristã; desejo que deve amar e alimentar no próprio
coração com ternura, como uma tarefa do Espírito Santo e uma centelha do seu
fogo divino”.23
Esta pedagogia espiritual de suscitar e aperfeiçoar os santos desejos co-
meça a partir da resistência a qualquer desejo contrário, subordinando todos os
desejos ignóbeis, submetendo-os e dominando-os. Numa imagem muito bela, o
Doutor do Amor compara o coração humano ao ninho de um pássaro singular, o
martim-pescador, ninho construído junto ao mar, mas compacto e bem calafetado
em todos os seus lados, deixando apenas no lado superior uma pequena abertura
para respirar, de modo que, se o mar o surpreender, poderá navegar e flutuar so-
bre as ondas sem se encher de água ou submergir. S. Francisco de Sales comenta
alegremente esta imagem:
“Filha, desejo muito que os nossos corações sejam assim, perfeitamente com-
pactos, bem calafetados de todos os lados para que, se sobrevierem as tormen-
tas e tempestades do mundo, não penetrem e não tenham nenhuma abertura a
não ser para o Céu, para aspirar e respirar o Salvador”.24
22 Traité de l’Amour de Dieu, in OEA IV, 76.
23 Carta CCXVI, OEA XII, 263.
24 Carta CCCXXI, OEA XIII, 127.
38

2.4 Page 14

▲back to top
O coração humano, então, é coração para o amor, para aspirar e respirar
sem descanso em direção a Deus; mas é necessário cuidar e reforçar este santo
desejo, submetendo e subordinando a ele todos os demais.
Encontramos, também aqui, nesta pedagogia dos desejos, uma verdadeira
pedagogia positiva. Não se trata de cortar e suprimir, mas de dominar, controlar,
subordinar. De um lado, emerge o humanismo salesiano, que nunca é uma sim-
ples teoria, mas se fundamenta numa práxis pastoral que tem influxo decisivo
em todo o pensamento espiritual. Contrariamente ao jansenismo, que condena
o que é humano e atribui um sentimento de culpa ao desejo de amar, de saber,
de sentir, Francisco de Sales aceita tudo o que pertença ao homem e o ajude
a crescer e amadurecer como pessoa. Este sentido humanista é também uma
das características da direção espiritual salesiana. Nasce da grande estima que
atribui a um conjunto de valores muito ligados à pessoa humana, manifesta-se
no respeito ao corpo, à vida afetiva, à ciência e à cultura, à beleza e elegância,
e também na distensão alegre e na ascese.
Para Francisco de Sales, a alma da direção espiritual é, certamente, o amor
de Deus e por Deus. E assim como o Espírito Santo é o amor por excelência, Ele
é a luz e a graça que pode ajudar cada pessoa a compreender e transformar em
realidade as coisas necessárias para o próprio bem espiritual. A convicção profun-
da da ação do Espírito no coração dos homens, guiando-os e acompanhando-os
no caminho da vida cristã, está muito presente e viva na práxis e no pensamento
salesiano.25
Não me referirei diretamente a este aspecto, que suponho estará muito pre-
sente nestes dias ao tratar da pessoa do diretor espiritual e do método. Quero
sublinhar, porém, na perspectiva humanista da direção espiritual salesiana que,
segundo o Bispo de Genebra, o Espírito age na alma através de inspirações, sem
violentá-la.
Para Francisco de Sales, a ação do Espírito em nosso interior é um cha-
mado à liberdade. Para ser realmente eficaz em nossa vida cristã precisamos de
escuta, obediência e docilidade: “Deixo-lhe o espírito de liberdade, não aquele
que exclui a obediência, porque ele é liberdade da carne, mas aquele que exclui a
coação e o escrúpulo ou a agitação imoderada”, escreve à baronesa de Chantal.26
Com razão e pela própria experiência, ela pôde testemunhar no processo de bea-
tificação e canonização:
25 Cf. J. STRUS, “I protagonisti della direzione spirituale secondo l’insegnamento e la pratica di San
Francesco di Sales”, Salesianum 40 (1978) 293-342.
26 Carta CCXXXIV à senhora de Chantal, OEA XII, 359.
39

2.5 Page 15

▲back to top
“Era totalmente admirável e incomparável em treinar os espíritos segundo as
próprias capacidades, sem jamais apressá-los, mas dava e imprimia nos cora-
ções uma liberdade que dissolvia qualquer escrúpulo e objeção, e elevava as
almas a um amor tão suave em relação a Deus, que dissipava todas as dificul-
dades que se pensa encontrar na vida devota”.27
A busca da “liberdade dos filhos de Deus” constitui, sem dúvida, uma ca-
racterística própria da direção espiritual; todo diretor espiritual deve deixar livres
os seus dirigidos e penitentes e acompanhar os processos de amadurecimento da
sua liberdade. Mas não é menos verdade que esta é uma das características mais
relevantes em Francisco de Sales, uma das principais orientações que segue pes-
soalmente e que propõe àqueles que se entregam à sua ação pastoral. Escrevia à
senhora de Chantal: “é necessário que reine a liberdade e a franqueza, e que não
tenhamos outra lei nem sujeição senão a do amor”.28
Fala o santo Doutor da liberdade do amor (“tudo por amor, nada por força”),
ou seja, da liberdade submetida às exigências do Amor, à lei de Deus, que é a lei da
caridade. Por isso, o verdadeiro espírito de liberdade não exclui a obediência, mas
a coação e a violência. O espírito de liberdade preocupa-se apenas para que na terra
se faça a vontade de Deus, venha o seu Reino e seu nome seja santificado. Ser livre
espiritualmente significa escolher sempre o bem. Por isso, priva-se da liberdade
quem não é capaz de escolher entre os bens que se apresentam.
De maneira muito concreta, Francisco de Sales explica em que consiste
a liberdade de espírito, indicando os critérios para reconhecê-la: o coração livre
não se submete às consolações, nem às práticas espirituais, nem aos resultados,
nem aos próprios gostos. Escreve de forma muito detalhada, sugerindo os sinais
indicadores da liberdade de espírito:
“O coração que possui esta liberdade não se apega às consolações e recebe
os sofrimentos com toda a doçura que a carne pode permitir... Não coloca seu
afeto nos exercícios espirituais, de modo que se vendo contrastado tanto pela
doença quanto por qualquer outra circunstância, não fica aborrecido. Não digo
que não os ame, mas que não se apega a eles. Não perde a alegria, porque ne-
nhuma privação aflige quem não tem o coração apegado a nada”.29
27 Declaração de madre Chantal no processo sobre a santidade e os milagres, in F. M. CHAUGY, Juana
Francisca Frémiot de Chantal, cit.., 219.
28 Carta CCXXXIV, OEA XII.
29 Ibidem, 363.
40

2.6 Page 16

▲back to top
E, para chegar a uma compreensão mais completa destes critérios, apre-
senta na mesma carta dois exemplos: do cardeal Borromeu e do bispo Espiridião.
Descreve o primeiro como “o espírito mais perfeito, rígido e austero que se pos-
sa imaginar”: bebia somente água a comia apenas pão. Entretanto, “comendo
frequentemente com os suíços, seus vizinhos, para incentivá-los a comportar-se
melhor, não tinha nenhuma dificuldade em fazer com eles dois brindes em cada
refeição”. Isso, diz-nos o doutor do Amor, é um traço de santa liberdade: “um es-
pírito caprichoso teria exagerado; um espírito constrangido acreditaria ter pecado
mortalmente; um espírito de liberdade o fez por caridade”. Igualmente, o velho
bispo Espiridião, “tendo acolhido um peregrino quase morto de fome no tempo
da Quaresma e num lugar onde havia somente carne salgada, fê-la cozinhar e
ofereceu-a ao peregrino. Este não queria comê-la malgrado a sua necessidade.
Espiridião, que não tinha qualquer necessidade, comeu-a por primeiro para liber-
tar o peregrino dos escrúpulos. Esta é a liberdade caridosa de um homem santo”.
A união entre amor e liberdade talvez seja a chave para compreender que
na práxis salesiana não há contradição entre liberdade e fidelidade: a liberdade de
espírito não é contrária à fidelidade aos deveres, às obrigações e aos preceitos. No
caso em que estes não possam ser realizados, a liberdade impede perturbações ou
inquietações da alma. Na verdade, a liberdade favorece a verdadeira fidelidade, a
fidelidade feliz e alegre; sobretudo tendo pela mão a liberdade e o amor, a pessoa
caminha para a maturidade humana e espiritual e cresce na perfeição cristã.
Todavia, para chegar à verdadeira liberdade de espírito, o Bispo de Ge-
nebra ensina que se devem evitar dois vícios ou defeitos que a corrompem ou
impedem: a instabilidade ou capricho e a coação ou servilismo. A instabilidade
de espírito é o excesso de liberdade que move a pessoa a mudar exercícios, pro-
pósitos, projetos, estado de vida sem motivo nem conhecimento de que essa é a
vontade de Deus. Contrariamente, a coação ou o servilismo demonstra falta de
liberdade: diante da impossibilidade de pôr em prática o que foi decidido, o es-
pírito se atormenta ou se perturba. Para explicar estes defeitos, recorre também a
um exemplo:
“Decidi fazer a meditação todos os dias pela manhã. Se possuo o espírito de
instabilidade ou capricho, na menor ocasião a deixarei para a noite (por causa
do cão que não me deixou dormir, pela carta mesmo não urgente que devo es-
crever). Ao contrário, se possuo o espírito de coação ou servilismo não deixarei
a meditação, mesmo que um doente precise do meu auxílio naquele momento,
41

2.7 Page 17

▲back to top
mesmo que uma obrigação urgente não possa ser adiada, e o mesmo em outros
casos”.30
No pensamento salesiano aparece com clareza que a caridade e a vontade
de Deus aconselham e permitem abandonar determinados deveres e obrigações
para empenhar-se em outros, se isso for exigido pela mesma vontade de Deus.
Para o diretor espiritual, a educação à liberdade representa uma das tarefas
essenciais, porque só a pessoa livre de espírito é capaz de iniciar com alegria o
caminho da perfeição cristã. Seus frutos e efeitos são realmente admiráveis: “uma
grande suavidade de espírito, uma grande doçura e condescendência por tudo
que não seja pecado ou perigo de pecado, uma inclinação para os atos de virtude
e de caridade”. Sumamente respeitoso da liberdade de cada um, servia-se para
isso de diversos métodos. Sua finalidade resulta muito clara de uma carta à aba-
dessa de Puits- d’Orbe. Francisco fala-lhe da reforma necessária da comunidade,
mas aconselha a superiora a não impô-la nem propô-la diretamente às religiosas
que, talvez, pudessem opor-se. Segundo o Bispo de Genebra, é necessário que
as religiosas, vendo e seguindo a conduta da superiora, se reformem e se unam
mais estritamente à obediência e à pobreza.31 Ele quer que as próprias pessoas
sejam levadas a escolher e decidir, sem imposição do diretor espiritual. Evita,
pois, qualquer imposição, mesmo correndo o risco de as pessoas dirigidas por
ele parecerem independentes. Não expressa conselhos de modo impositivo, mas
exortativo. São frequentes em suas cartas expressões do tipo: “agradar-me-ia”,
“aprovaria”, “aconselharia”, “parecer-me-ia bom”... Com fino humorismo, coi-
sa por outro verso muito presente em sua correspondência espiritual, escreve a
uma religiosa: “Esforce-se por manter o seu coração em paz. Não lhe digo que o
mantenha em paz, mas: esforce-se por mantê-lo em paz”.32 Ou seja, ele não quer
impor a própria vontade, prefere motivar a pessoa acompanhada, de modo que ela
chegue a tomar as decisões necessárias. Aparece claro, então, o respeito à pessoa
e à sua liberdade, assim como também o sentido da direção espiritual na práxis
de Francisco de Sales: ele não pretende dominar as almas ou as consciências,
mas ajudar, motivar, ensinar à pessoa dirigida o domínio pessoal no processo de
perfeição.
30 Ibidem, 364.
31 Cf. Carta CCXXXI, OEA XII, 337.
32 Carta MDXLIX, OEA XIX, 12.
42

2.8 Page 18

▲back to top
3.3. Direção de amizade
Talvez o traço que mais bem caracterize a direção espiritual salesiana é o
clima de amizade recíproca que une o diretor e a pessoa por ele dirigida. Parece-
me que se possa afirmar que para Francisco de Sales não há verdadeira direção
espiritual se não houver verdadeira amizade, ou seja, comunicação, influxo recí-
proco; e trata-se de uma amizade que chega a ser verdadeiramente espiritual.
O Amor de Deus está no centro do pensamento, da vida e da ação de S. Fran-
cisco de Sales. Segundo Ravier, toda a sua espiritualidade apoia-se no coração. A
nossa relação com Deus deve ser um incessante coração a coração; a mesma coisa
com as relações recíprocas.33 Fora dessa perspectiva não poderíamos entrar no co-
ração nem conseguir entendê-lo, como a ele era impossível entender o evangelho
sem ver a admirável história do amor de Deus pelo homem. Do amor de Deus nasce
o amor dos homens a Deus e ao próximo. O amor é a vida do coração:
“Assim como o pêndulo dá movimento a todas as engrenagens do relógio,
também o amor dá à alma todos os movimentos que possui. Todos os nossos
afetos seguem o nosso amor e, de acordo com ele, desejamos, nos deliciamos,
esperamos e desesperamos, tememos, criamos coragem, odiamos, fugimos, en-
tristecemo-nos, iramo-nos, sentimo-nos triunfantes...”.34
O homem entrega-se inteiramente por amor, e entrega-se tanto quanto ama;
abandona-se totalmente a Deus quando o ama totalmente e reflete o seu amor nos
homens, criados à imagem e semelhança do mesmo Deus. E o amor ao próximo,
lei fundamental da vida e da perfeição cristã, manifesta-se especialmente “bus-
cando o maior bem para sua alma e para seu corpo”, buscando a sua perfeição e
salvação.
Para isso tende a direção espiritual e, nela, segundo o pensamento e a prá-
xis do Doutor do Amor, o amor do próximo converte-se em amizade espiritual.
Entende-a de forma muito simples: mediante a amizade espiritual “duas, três ou
mais almas comunicam-se a própria devoção, os próprios afetos espirituais e for-
mam entre si um único espírito”; então, “o bálsamo da devoção comunica-se de
coração a coração por meio da participação contínua”.35 Trata-se, pois, de um
amor comunicativo, recíproco, unificando, chegando à comunicação da devoção,
da intimidade espiritual.
33 Cf. A. RAVIER, François de Sales. Un sage et un saint, cit., 128.
34 Traité de l’Amour de Dieu, in OEA V, 309.
35 Introduction à la vie dévote, in OEA III, 203.
43

2.9 Page 19

▲back to top
Há, em Francisco de Sales, uma predisposição natural à relação pessoal, ao
colóquio íntimo; e nisso sente sempre um grande prazer. Tanto seu trato ordinário
como seus escritos são impregnados de uma tonalidade afetuosa, quer nas ex-
pressões com que se dirige àqueles aos quais escreve (caríssima filha, caríssimo
irmão, minha cara irmã, caro irmão), quer nos termos abundantes de comunhão
(nós, a nossa alma, o nosso coração) e no desenvolvimento das ideias e dos
conselhos que propõe. Quando vê que algum dos correspondentes dirige-se a
ele usando o termo monsenhor,36 diz-lhe com simplicidade que prefere apenas o
termo senhor37 ou pai. Ele julga este último como o mais conveniente nas rela-
ções criadas pela direção espiritual, pois pensa que corresponde melhor à atitude
cristã: “não quero em suas cartas – escreve à senhora de Chantal – outro título
de honra que não seja o de pai; é para mim o mais seguro, o mais amável, o mais
santo, o mais glorioso”.38
O tom afetuoso envolve as suas relações, as suas cartas de direção num
clima de familiaridade e simplicidade evangélica, capaz de exprimir as ideias
mais profundas através de episódios significativos, de confidências íntimas e até
mesmo de refinado humorismo. Para alguns, tudo isso é simplesmente expressão
do seu temperamento, como ele mesmo parece reconhecer.39 Não obstante, além
das disposições naturais, tudo parece indicar que é uma questão de fé e de uma
vivência espiritual muito rica e profunda. O amor de Deus, que preenchia a sua
vida, transformava-se em efusões de caridade transbordante de afeto e ternura.
A amizade espiritual é sempre recíproca e também tende ao intercâmbio
espiritual, ao influxo recíproco entre diretor e dirigido. Há na personalidade de
Francisco de Sales um dado que vale a pena ressaltar. Mesmo sem estar em ple-
no acordo com a observação de H. Bremond para quem, a respeito de Joana
de Chantal, Francisco de Sales ter-se-ia comportado mais como dirigido do que
como diretor, é preciso reconhecer o influxo recíproco entre estas duas almas
privilegiadas. De fato, as cartas do Bispo de Genebra, através de suas confidên-
cias, de seus conselhos e sentimentos, permitem-nos entrar em sua intimidade e
perceber as maravilhas daquela santa amizade, o crescimento espiritual de duas
almas gêmeas. É um itinerário de confiança mútua, de liberdade e de amor.
36 Carta CCXL à senhora de Chantal, in OEA XII, 380.
37 Carta CCXCI à senhora De Limojon, in OEA, XIII 59.
38 Carta CCCIV à senhora de Chantal, in OEA XIII, 85. Cf. também a carta CMVI ao duque de
Bellegarde, in OEA XVI, 57; carta MDXXIV à abadessa de Port Royal, in OEA XVIII, 388; Carta
MDCLXXV à presidente De Herse, in OEA XIX, 271.
39 Cf. Carta MDCCCLXVII, in OEA XX, 216.
44

2.10 Page 20

▲back to top
Os apelos do Bispo de Genebra à confiança são insistentes:
“Escrevei-me com a maior frequência possível, com toda a confiança de que
sois capaz, pois o grande desejo que tenho do vosso bem e do vosso progresso
me afligirá se não souber com frequência em que situação vos encontrais”.40
“Amo tanto a vossa alma porque creio que Deus a ama, e a amo ternamente
porque a vejo ainda frágil e jovem. Tende, pois, plena confiança e liberdade de
escrever-me e pedir-me o que julgardes necessário para o vosso bem”.41
“Escrevei-me sempre o que desejardes, com absoluta confiança e sem cerimô-
nias, pois é assim que se deve caminhar nesta amizade”.42
E o itinerário é fruto da amizade. Francisco de Sales pede-a e concede-a,
promove-a sempre, começando ele mesmo a confiar no outro de modo total e
generoso.
Contudo, além disso, o caráter paterno-filial recíproco das relações mútuas
cresce e enriquece-se de tal modo que Francisco de Sales não só manifesta a
própria preocupação pelo progresso espiritual de quem ele dirige como também
estende a sua solicitude, além do que pertence ao âmbito da direção espiritual,
também à família, à saúde, aos negócios, às coisas materiais. De maneira muito
simples, ele exprime o sentido do amor recíproco escrevendo ao duque de Belle-
garde, seu dirigido: “Sei muito bem que os bons filhos pensam com frequência
em seus pais, mas os pais pensam nos filhos não só frequentemente, mas sem-
pre”.43 Para ele, este amor de amizade é efeito da ação de Deus: Ele entrega um
ao outro; e precisamente por ser fundamentado em Deus é imutável, resiste à
separação física ou ao passar do tempo.
O amor recíproco deve exprimir-se e manifestar-se necessariamente na
direção espiritual, porque só manifestando o seu amor o diretor espiritual pode
conquistar a confiança do dirigido. Francisco de Sales nunca duvida em dar a
conhecer a própria dedicação e entrega ao serviço das almas: “nunca rezo ou
celebro sem vós, e não o digo para vangloriar-me, mas porque me sinto imen-
samente obrigado a fazê-lo”.44 Quer que saibam que os ama, que está sempre à
40 Carta CCXVI, in OEA XII, 263-267.
41 Carta CLXXIV, in OEA XII, 163
42 Carta CDXC, in OEA XIV, 85.
43 Carta MCLVI ao duque de Bellegarde 6 de janeiro de 1616, in OEA XVII, 129.
44 Carta CMI à abadessa de Puits-d’Orbe, 16 de julho de 1613, in OEA XVI, 46.
45

3 Pages 21-30

▲back to top

3.1 Page 21

▲back to top
disposição deles, que podem recorrer a ele em qualquer momento. Mas, talvez,
não surpreenda tanto que o Bispo de Genebra ame os seus filhos espirituais com
um amor que manifesta de mil maneiras, quanto que também deseje e procure ser
amado igualmente por eles. É assim; trata-se de um amor que quer ser correspon-
dido.
Enfim, a amizade é sempre comunicativa e condicionada precisamente
pelos bens que se trocam e comunicam. A comunicação dos bens espirituais é
própria da amizade espiritual. É o aspecto enfatizado pelo Bispo de Genebra es-
pecialmente quando, na Introdução à vida devota, descreve o seu verdadeiro sen-
tido: comunicação da devoção e dos afetos espirituais. A comunicação espiritual
leva a formar “um só espírito entre si”. Neste sentido, apresenta o exemplo da
amizade de S. Basílio e S. Gregório Nazianzeno descrita por este:
“Parecia que nós dois não fôssemos senão uma só alma em dois corpos...; nós
dois formávamos uma só coisa, permanecendo um no outro; tínhamos uma
única pretensão: cultivar a virtude e adequar os projetos da nossa vida às espe-
rança futuras”.45
Em sua práxis pastoral, o Bispo de Genebra serve-se de qualquer ocasião
possível para sugerir bons propósitos com o fim de manter no caminho da perfei-
ção. Mesmo quando escreve cartas ocasionais, junto com a solicitude e interes-
se pelas questões familiares, não perde ocasião de auspiciar os bens espirituais,
aconselhar e encorajar. E vale a pena observar também que a verdadeira amizade
espiritual se preocupa com a correção fraterna. O modo com que se exprime é
sempre delicado, humilde e amável.46 Talvez, por isso, ele não se desencoraje
diante das pequenas infidelidades no progresso espiritual. A amizade espiritual
crê na pessoa e valoriza até mesmo os pequenos esforços e progressos. É sempre
um amor que confia no outro.
Muito sinteticamente, poderíamos resumir o sentido da amizade espiritual
com estas palavras que o Bispo de Genebra escreve à sua grande filha, Joana
Francisca de Chantal:
“Sei que tendes total e plena confiança no meu afeto. Crede–me, deveis saber
que tenho a mais viva e extraordinária vontade de ajudar a vossa alma com
45 Serm. 43, 20, in IVD III, 19.
46 Cf. Carta MCCCXCVI à abadessa de Puits-d’Orbe, in OEA XVIII, 162; Carta DCXX à senhora De
la Fléchère, in OEA XIV 347; Carta CCLXXVII à presidente Brûlart, in OEA XIII, 20.
46

3.2 Page 22

▲back to top
todas as minhas forças. Não saberia explicar-vos nem a qualidade nem a gran-
deza deste meu interesse de ajudar-vos espiritualmente: dir-vos-ei apenas que
creio ser coisa de Deus e que, portanto, o conservarei com afeto e que o vejo
crescer e aumentar notavelmente a cada dia... Sou todo vosso... Deus me entre-
gou a vós; conservai-me n’Ele como vosso”.47
Como na amizade espiritual entre S. Basílio e S. Gregório Nazianzeno, na
direção espiritual de Francisco de Sales e Joana Francisca de Chantal a amizade
alcançou tal profundidade e qualidade que o Doutor do Amor escreveu insisten-
temente que foi o mesmo amor divino a unir e reunir os seus corações. Trata-se
de uma amizade de ordem sobrenatural:
“Nosso Senhor – escreve o Bispo de Genebra a madre Chantal – nunca infun-
de em vosso coração inspirações veementes de pureza e de perfeição sem dar
a mim a mesma vontade, para fazer-nos conhecer que basta a inspiração de
uma mesma coisa a um mesmo coração e que, graças à unidade da inspiração,
sabemos que esta soberana Providência quer que sejamos uma só alma, para
continuar uma única obra e para a pureza da nossa perfeição”.48
47 Carta CCXXIII à senhora de Chantal, in OEA XII, 284-285.
48 Carta DCCXIII a madre Chantal, in OEA XV, 102.
47