Strus


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1.1 Page 1

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FABIO ATTARD – MIGUEL ÁNGEL GARCÍA
O ACOMPANHAMENTO
ESPIRITUAL
Itinerário pedagógico-espiritual em chave salesiana
a serviço dos jovens
Tradução:
P. José Antenor Velho

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Coleção Espiritualidade e Pedagogia Salesiana
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7- 5880
A883c Attard, Fábio
O acompanhamento espiritual: Itinerário pedagógico-espiritual em chave salesiana a
a serviço dos jovens. - L’Accompagnamento Spirituale - Itinerario pedagogico spirituale in
chiave salesiana al servizio dei giovani / Fábio Attard; Miguel Ángel García; Tradução P. José
Antenor Velho. -- Brasília, DF: EDB, 2015.
436 p.; 23,5 x 16,5 cm
– (Espiritualidade e Pedagogia Salesiana)
Inclui referências bibliográficas
ISBN: 978-85-7741-276-1
1. Salesianos - Vida espiritual. 2. Direção espiritual. 3. Bosco, João, Santo,1815-1888
- Ensinamentos. 4. Francisco, de Sales, Santo, 1567-1622. 5.Vida cristã. 6. Fé I. Ángel García,
Miguel. II. Velho, P. José Antenor, trad. III. Título. IV. Itinerário pedagógico-espiritual em
chave salesiana a serviço dos jovens.
CDD 248.482
Índice para catálogo sistemático:
1. Salesianos - Vida espiritual
2. Direção espiritual
3. Bosco, João, Santo,1815-1888 – Ensinamentos
4. Francisco, de Sales, Santo, 1567-1622
5. Vida cristã
6. Fé
Revisão : Zeneida Cereja da Silva
Diagramação: Helkton Gomes
Todos os direitos reservados à
EDITORA DOM BOSCO
SHCS - Quadra 505, Bloco B, sala 65
Asa Sul - Brasília-DF-70350-525
Tel.: (61) 3214-2300
www.edbbrasil.org.br

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A pessoa
do diretor Espiritual
SEGUNDO são Francisco de Sales
Józef Struś, sdb
O homem, o pensamento, a ação” é o subtítulo de uma importante obra de
um historiador1 que, em suas pesquisas, esteve atento a todas as possíveis fontes
para colher a verdade de S. Francisco de Sales no contexto do seu tempo. Apesar
dos resultados dessa pesquisa bem documentada e das de outros estudiosos de
S. Francisco de Sales,2 é difícil fazer uma leitura da sua pessoa enquanto diretor
espiritual.
Os dados disponíveis para essa leitura são parciais, tanto da parte do pró-
prio S. Francisco de Sales, como de seus contemporâneos. Nesta situação de es-
cassez documentária tem-se a impressão de que falar da pessoa do diretor espiri-
tual em S. Francisco de Sales seria mais fácil se ao menos pudéssemos conhecer
o seu conceito de pessoa. Infelizmente, não encontramos nada sobre o tema em
seus escritos, embora em grande parte completos e bem editados.3 Acrescenta-se
a esta dificuldade o fato de ele, apresentado frequentemente por muitos admira-
dores como figura de grande diretor espiritual, até hoje não tenha sido objeto de
uma reflexão atenta ao conjunto da sua ação concreta de direção espiritual. E,
mais ainda, falta uma história da direção espiritual que o apresente no contexto
de outros diretores espirituais.4 Às vezes, a grandeza de S. Francisco de Sales,
1 E. J. Lajeunie, Saint François de Sales. L’Homme, la Pensée, l’Action, Paris, Éditions Guy
Victor 1966, vol. I, 532 pp. ; vol. II, 490 pp.
2 A referência vai, de modo especial, a A. RAVIER, Un sage et un saint. François de Sales, Paris,
Nouvelle Cité 1985, 249 pp. e G. PAPÁSOGLI, Come piace a Dio. Francesco di Sales e la sua
“grande figlia”, Roma, Città Nuova Editrice 1985, 573 pp.
3 Está presente, porém, o tema “homem” sob os seguintes aspectos: o “homem em si mesmo”, o
“homem em relação ao mundo”, o “homem diante de Deus”.
4 Esta necessidade não foi satisfeita nem mesmo com a recente Storia della Direzione Spirituale, de
Giovanni Filoramo (ed.) da Editora Morcelliana, que publicou em 2006 o vol. I - L’età antica,
em 2008 o vol. III - L’età moderna, em 2010 o vol. II - L’età medievale. Nem mesmo o III volume
(edição de Gabriella Zarri) que nos interessa de modo particular pela época da qual se ocupa e pela
contribuição dedicada a S. Francisco de Sales, fez outra coisa senão recolher algumas histórias e ex-
periências de direção espiritual. Em relação ao que se encontra sobre S. Francisco de Sales é difícil
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enquanto diretor espiritual, não se apoia no conhecimento das fontes e da lite-
ratura autorizada. Consequentemente, a sua popularidade no campo da direção
espiritual deve-se mais ao “ouvir dizer”.
Tendo a intenção de chegar ao ensinamento espiritual de S. Francisco de
Sales, é necessário passar através da sua rica herança literária. Primeiramente,
deve-se dar atenção às suas cartas de direção espiritual.5 Na história da direção
espiritual ele, de fato, faz parte do grupo de diretores espirituais que souberam
desfrutar do gênero epistolar como instrumento de comunicação.6 Com suas car-
tas, também devem ser considerados os volumes dedicados ao progresso que o
homem é chamado a fazer na vida espiritual: Introdução à Vida devota (Filoteia)
e Tratado do Amor de Deus (Teótimo).
Para uma leitura da pessoa do diretor espiritual em S. Francisco de Sales,
enumera-se entre as dificuldades objetivas também o fato de, salvo poucas exce-
ções, continuarem desconhecidos os inícios da direção espiritual seguida por ele.
Conhecemos muitas histórias pessoais desta direção espiritual quando já tinham
sido iniciadas. Consequentemente, não temos a possibilidade de colher o momen-
to preciso em que ele iniciava o processo de direção espiritual.
Ao fazer uma leitura da pessoa de S. Francisco de Sales diretor espiritual,
é necessário levar em conta o fato de ele, sacerdote e bispo ser ao mesmo tempo
pregador, confessor, diretor e autor espiritual, fundador de um instituto de vida
religiosa, conselheiro espiritual (reformador) de outros institutos de vida reli-
giosa.7 Consequentemente, a sua pessoa de diretor espiritual como tal deve ser
encontrada não só quando acompanha espiritualmente e reza pelas pessoas que
considerar representativo do seu trabalho de diretor espiritual. Cf. Anna Scattigno, “Di due un
cuore solo”. François de Sales e Jeanne de Chantal, in Giovanni FILORAMO (ed.), Storia della
direzione spirituale. Vol. III, L’età moderna, ed. por G. ZARRI, Brescia, Morcelliana, 355-383.
5 Seus escritos são recolhidos nos 26 volumes da edição Œuvres de saint François de Sales. Évêque
et Prince de Genève et Docteur de l’Église. Édition complète. Publiée… par les soins des Re-
ligieuses de la Visitation du ler Monastère d’Annecy, Annecy 1892-1932. As Cartas ocupam os
volumes de XI a XXI. De acordo com esta edição são aqui citados os escritos de S. Francisco de
Sales, indicando o título do escrito, em: OEA com o número do volume correspondente e a página
de que se trata.
6 Uma informação sobre alguns diretores espirituais que se serviram de cartas no acompanhamento
das pessoas pelos caminhos espirituais pode ser encontrada em Raoul Plus, La direction d’aprés les
maîtres spirituels, Editions Spes, Paris 1933. O livro oferece estas informações só indiretamente.
Seu objetivo principal é expor problemas relacionados com o sentido da direção espiritual.
7 Sem descer a detalhes, que neste campo se referem a algumas de suas iniciativas, veja-se a exigên-
cia devida à falta de espírito religioso e da correspondente disciplina nos diversos mosteiros de sua
diocese, que apresentou respectivamente ao Papa e ao Duque de Saboia: Carta a sa sainteté Clément
VIII, Annecy, 27 octobre 1604, in OEA XII, 371-374; Carta au duc de Savoie, Charles-Emmanuel
ler, Annecy, 27 octobre 1604, in OEA XII, 374-375.
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1.5 Page 5

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a ele se dirigem, mas também quando celebra os sacramentos, prega, confessa,
escreve. Este esclarecimento recorda que no caso da direção espiritual dada por
ele é preciso ter presentes:
- a identidade sacerdotal, normalmente não exigida como condição para
ser diretor espiritual;
- a possibilidade da formação comunitária, quando lhe era possível.
Para algumas questões específicas relativas tanto aos esforços da oração
mental quanto à identidade do ministério de diretor espiritual, sabemos que S.
Francisco de Sales frequentou com prazer a escola de S. Teresa de Ávila. Men-
cionada muitas vezes em seus escritos, a Santa era para ele ponto autorizado
de referência enquanto diretor espiritual iluminado. Ele, por exemplo, bebia do
seu ensinamento quando se pronunciava sobre a unicidade da direção espiritual.
Como ela, S. Francisco de Sales era do parecer de que, em casos específicos, nada
impede que as pessoas em direção recorram ao parecer de diversos guias espiri-
tuais. Seguindo o ensinamento da Santa, ele recordava que esses pareceres devem
ser submetidos ao julgamento do próprio diretor espiritual e a pessoa interessada
deveria adequar-se às suas orientações.8
1. Pressuposto teológico do tema
É indispensável acenar à meta da direção espiritual. Conhecendo a
finalidade do itinerário espiritual ao longo do qual S. Francisco de Sales acompa-
nha as pessoas, colheremos mais facilmente a originalidade da sua mesma pessoa
dedicada a este ministério:
“Tendes um grande desejo da perfeição cristã. Este desejo é o mais generoso
que podeis ter. Nutri-o, portanto, e fazei-o crescer a cada dia. Os meios com
que se deve chegar à perfeição são diversos, conforme a vocação de cada um:
religiosos, viúvas e casados, todos devem buscar a perfeição, mas nem todos do
mesmo modo. A vós, senhora, que sois casada, os meios são a união com Deus
e a união com o próximo, com tudo o que estas uniões comportam”.9
8 Cf. Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 24 juin 1604, in OEA XII, 282-288.
9 Carta à la présidente Brulart, Annecy, 3 mai 1604, in OEA XII, 268.
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“Conservai sempre [...] a coragem de crescer continuamente no amor de
Deus”.10
“Basta ser determinado na busca da perfeição do amor divino, de modo que o
amor seja perfeito, pois o amor que busca qualquer outra coisa inferior à per-
feição, não pode ser perfeito”.11
“A vossa alma comporta-se muito bem, pois pretende avançar no santo amor de
nosso Senhor [...]. E assim como o amor não vive senão na paz, tende sempre
o cuidado de conservar a santa tranquilidade do coração, que vos recomendo
tão frequentemente. Somos bem afortunados, [...] quando temos sofrimentos,
aflições e contrariedades: se os soubermos consagrar a Deus, são caminhos do
céu”.12
“[...] amo-vos e honro-vos perfeitamente, dado que agradou a nosso Senhor
fazer-me ver o vosso coração e, nele, o santo desejo de amar constantemente
a divina Bondade [...]. Crede-me bem [...], que se minhas recomendações fo-
rem acolhidas, progredireis continuamente neste santo amor, porque jamais me
esquecerei de suplicá-lo de Deus e de oferecer-lhe muitos sacrifícios com esta
intenção”.13
A esta apresentação da meta da direção espiritual, feita com palavras de S.
Francisco de Sales, deve-se unir uma nota sobre os dois principais impedimentos
que retardam o progresso no amor de Deus e, no pior dos casos, tornam-no inú-
til. A experiência ensina que o caráter nocivo desses impedimentos diminui nas
pessoas a força interior com que decidiram seguir em tudo a vontade de Deus. Os
esclarecimentos dados por S. Francisco de Sales sobre esse tema são úteis tanto
para o conteúdo teológico e ascético do autêntico itinerário espiritual que expri-
mem, quanto porque são adequados para sustentar as pessoas em seu desejo de
progredir espiritualmente.
O primeiro impedimento faz-se sentir quando as pessoas decidem percor-
rer o itinerário da santidade no modo não indicado pela vontade de Deus, mas
segundo as convicções pessoais. Isso acontece quando estas pessoas mudam a
própria vocação, ou o lugar de trabalho, sem um necessário discernimento espiri-
tual. É digno de nota o fato que, dos esclarecimentos aqui apresentados, provoca-
10 Carta à madame de Charmoisy, Saint-Rambert, 21 août 1608, in OEA XIV, 59.
11 Carta à la baronne de Thorens, sa belle-sœur, Viuz-en-Sallaz, 30 juin 1617, in OEA XVIII, 35.
12 Carta à la présidente Favre, Annecy, 18 novembre 1612, in OEA XV, 301-302.
13 Carta à madame Angélique Arnauld, Abbesse de Port-Royal à Maubisson, Paris, 26 avril 1619,
in OEA XVIII, 368-369.
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dos pelas tentações recordadas há pouco, as primeiras quatro explicações foram
dirigidas à mesma destinatária; a quinta é endereçada a um sacerdote:
“[...] É preciso procurar conhecer o que Deus quer e, uma vez conhecido, procu-
rar fazê-lo com alegria ou ao menos com coragem. Isso, porém, não basta. É pre-
ciso amar a vontade de Deus e a obrigação que ela supõe em nós, fosse mesmo
a de cuidar dos porcos ou realizar os atos mais humildes por toda a vida [...]. Eu
sempre temo que, nestes desejos que não são essenciais para a nossa salvação e
perfeição, esconda-se algum elemento do nosso amor próprio e da nossa vontade
[...]”.14
“Confirmai-vos, cada dia mais, na resolução que tomastes com tanto amor, de
servir a Deus segundo o seu beneplácito e ser inteiramente sua, sem reservar
absolutamente nada para vós. Abraçai a sua vontade, como ela se apresentar,
e jamais pensai ter alcançado a pureza de coração que lhe deveis oferecer até
que a vossa vontade seja não só de tudo, mas também em tudo, até mesmo nas
coisas mais repugnantes, submetida livre e alegremente à sua vontade santíssi-
ma. E, para chegar a isso, não dai importância às aparências das coisas, mas dai
atenção Àquele que as ordena”.15
“Sejamos aquilo que Deus quer, dado que somos propriedade sua; e não seja-
mos aquilo que nós queremos contra a sua vontade porque, mesmo que fôs-
semos as mais belas criaturas do céu, de que nos haveria de servir, se não
vivermos de acordo com a vontade de Deus?”16
“[...] não se deve julgar as coisas segundo o nosso gosto, mas segundo o gosto
de Deus. [...] se formos santos segundo a nossa vontade, jamais seremos santos
como se deve: devemos sê-lo conforme a vontade de Deus [...]”.17
“Digo-vos, de novo, insistentemente, que deveis servir a Deus onde vos en-
contrais et facere quod facis. Não, meu caro Irmão, que eu deseje impedir-vos
a multiplicação das práticas de piedade ou a contínua purificação do vosso
coração, mas fac quod facis, et melius quam non facis. [...] Crede-me: perma-
necei no lugar em que vos encontrais, fazei livremente tudo o que vos é mo-
ralmente possível e vereis que, si crederis, videbis gloriam Dei. E, se quereis
fazer o bem, considerai como tentação todas as sugestões de mudar do lugar
14 Carta à la présidente Brulart, [La Roche, mars] 1605, in OEA XIII, 20-21.
15 Carta à la présidente Brulart, [sem local], vers le 20 avril 1605, in OEA XIII, 38-39.
16 Carta à la présidente Brulart, Annecy, 10 juin 1605, in OEA XIII, 54.
17 Carta à la présidente Brulart, [senza lugar], Mi-septembre 1606, in OEA XIII, 214.
52

1.8 Page 8

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que podeis receber, pois, enquanto o vosso espírito estiver voltado para outro
lugar diferente daquele que ocupais, ele jamais se concentrará bem, e não fareis
com proveito o que estais a fazer”.18
O segundo impedimento, relacionado com o precedente, nasce da propen-
são a querer santificar-se segundo as próprias regras, o que revela a convicção
de que para alcançar a meta da direção espiritual, é possível acelerar o ritmo do
caminho e, portanto, reduzir os tempos de espera:
A purificação [...] só acontece gradualmente, de uma melhora a outra, de um
progresso ao outro, com esforço e tempo...”.19
“[...] não é possível chegar aonde aspirais num dia: é preciso conquistar hoje
este ponto, amanhã o outro, e assim, um passo depois do outro, chegaremos a
ser senhores de nós mesmos; e não será uma pequena conquista”.20
“[...] sei que tendes sempre no coração a imutável resolução de viver inteira-
mente para Deus; mas sei também que a vossa grande atividade natural vos
faz experimentar uma grande variedade de impulsos. Oh, não [...], vo-lo peço:
não acrediteis que a obra que iniciamos em vós possa ser concluída em pouco
tempo. As cerejas dão logo os seus frutos, porque os seus frutos não são senão
cerejas que duram pouco [...]; uma vida medíocre pode ser adquirida em um
ano, mas a perfeição à qual aspiramos [...] pode vir, supondo que venha pela via
ordinária, apenas em muitos anos”.21
“[...] não vos admireis, se ainda não notais qualquer melhora em vossas questões
espirituais ou temporais. Nem todas as árvores [...] frutificam na mesma estação:
as que produzem frutos melhores amadurecem-nos sempre mais tarde... Deus
escondeu no segredo da sua Providência o tempo em que entende atender-vos e
o modo com que vos atenderá; e, talvez, vos atenderá de modo excelente não vos
atendendo segundo os vossos planos, mas segundo os dele”.22
18 Carta à m. Étienne Dunant, curé de Gex, Sales, 25 septembre 1608, OEA XIV, 66-67.
19 Introduction à la Vie dévote, in OEA III, 26.
20 Carta à madame de Limojon, Annecy, 28 juin 1605, in OEA XIII, 58-59.
21 Carta à madame Angélique Arnauld, abbesse de Port-Royal à Maubuisson, Annecy, 16 décembre
1619, in OEA XIX, 74-75.
22 Carta à une Dame de Paris, Annecy, 20 septembre 1621, in OEA XX, 148.
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2. Formação da personalidade de S. Francisco de Sales
2.1. Itinerário da vida espiritual
Seria impossível percorrer passo a passo o processo de formação da per-
sonalidade de S. Francisco de Sales, devido ao tipo de fontes que se possuem.
Segundo algumas notas escritas como jovem estudante, podemos entrever, po-
rém, alguns de seus grandes momentos na vida espiritual. Como tais, devem-se
enumerar as várias regras de vida que ele criou para si e os subsídios espirituais
que elaborou, e nos quais se percebe o clima religioso que o atraía.23 No contexto
da leitura que estamos fazendo, não se toma em consideração o seu rendimento
escolar e acadêmico, porque os resultados alcançados foram ótimos e notificados
sem demora.
Quanto ao processo de desenvolvimento da sua personalidade, lançam um
facho de luz as poucas informações que, embora concisas, nos dizem algo sobre
seus pais e irmãos, juntamente com o seu itinerário de desenvolvimento humano,
espiritual e intelectual. Acreditamos que uma anotação histórica sobre seus pais,
embora breve, é de grande significado para o papel que tiveram na crescente per-
sonalidade do filho.
Na história de cada homem e mulher, as raízes afetivas postas à base da sua
posterior relação com os homens têm um peso significativo. Isso acontece parti-
cularmente na infância e na pré-adolescência. Em seguida, estas raízes poderão
servir de ajuda ou de obstáculo também na relação que o indivíduo viverá com
Deus. A base afetiva é igualmente importante para a educação humana e religiosa
da pessoa. Segundo o que conseguimos apreender dos biógrafos de S. Francisco
de Sales e de seus acenos pessoais, embora muito raros, ele viveu uma relação
intensa e estável com seus pais.24
23 Cf. Règles pour la réception de la sainte Communion. La Communion spirituelle (avant 1586), in
OEA XXII, 11-13; Fragment d’écrit intimes se rapportant à la tentation de désespoir 1586 ou 1587,
in OEA XXII, 14-20. Pertencem a estes fragmentos: I – Recueil d’oraisons jaculatoires tirées des
Psaumes, Ivi, 14-18; 2 - Aspirations et prières, Ivi, 18-19; Acte d’abandon héroïque, Ivi, 19-20 ;
Exercices spirituels 1590, in OEA XXII, 21-44. Fazem parte dela: 1 - Exercices spirituels 1590, Ivi,
21-26; 2 - Conduite particulière pour bien passer la journée, Ivi, 27-33; 3 - Exercice du sommeil ou
repos spirituel, Ivi, 33-37; 4 - Règles pour les conversations et rencontres, Ivi, 37-42; 5 - Commu-
nion fréquente. Préparation et action de grâces [1590], Ivi, 43-44.
24 Sobre os recentes biógrafos historiadores que confirmam substancialmente os dados precedentes
recolhidos dos primeiros biógrafos de S. Francisco de Sales, cf. E.J. Lajeunie, Saint François de
Sales. L’Homme, la Pensée, l’Action, Paris, Éditions Guy Victor 1966, vol. I, 97-105; A. Ravier,
Un sage et un saint. François de Sales, Paris, Nouvelle Cité 1985, 11-14.
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Ao nascimento de Francisco, filho primogênito, seu pai tinha quarenta e
seis anos de idade25 e sua mãe, no que se consegue constatar, entre os catorze e
dezesseis anos.26 A grande diferença de idade entre os pais, normal para muitos
casais de esposos de famílias nobres daqueles tempos, não parece ter influenciado
negativamente a vida familiar.
O status social da família de S. Francisco de Sales não era sustentado
apenas pelos bens econômicos que possuíam, nem pela anterior longa carreira
militar do pai no exército francês, nem pelos seus conhecimentos na corte real de
Paris e nem mesmo pelos encargos ocasionais que lhe eram confiados na Saboia
pelo duque Carlos Emanuel I.27 Antes disso tudo, os pais de S. Francisco de Sales
distinguiam-se por uma profunda retidão moral.
Os biógrafos de S. Francisco de Sales, quando acenam aos seus pais, res-
saltam o seu modo de viver em harmonia na família e na sociedade. Com a in-
corruptibilidade moral, caracterizava-os um elevado espírito de sociabilidade, de
atenção aos pobres, de amor à religião católica e à pátria.28 É conhecido que na
Saboia, nos tempos de S. Francisco de Sales menino, os calvinistas de Genebra
procuraram conquistar as pessoas de nível social elevado para suas ideias religio-
sas. Naquele clima de antagonismo religioso entre calvinistas e católicos, dizem
os historiadores, registrou-se sabiamente a declaração feita pelo pai de S. Fran-
cisco de Sales; ele afirmava que não teria sentido aderir a uma religião doze anos
mais jovem do que ele.29
S. Francisco de Sales, em muitas circunstâncias, também deu testemunho
de retidão moral de nível elevado. Baste pensar em quantas vezes se viu vítima de
suspeitas ou acusações de infidelidade à autoridade do Duque de Saboia. Numa
dessas situações, ao explicar ao governador da Saboia o próprio distanciamento
dos fatos que lhe eram atribuídos, deu este esclarecimento:
“... direi ao senhor, com espírito de liberdade, que nasci, fui educado e formado
e, logo, poderei dizer que envelheci numa sólida fidelidade ao meu Príncipe
soberano, fidelidade à qual me mantém ligado, mais ainda do que todas as con-
siderações humanas que se poderiam fazer, o meu ofício. Sou essencialmente
25 Cf. Nota (I), in OEA XI, 117.
26 Cf. Nota (I), in OEA XI, 117.
27 Cf. Nota (I), in OEA XI, 117.
28 Cf. E.J. Lajeunie, Saint François de Sales. L’Homme, la Pensée, l’Action, vol. I, 102-104.
29 Cf. Ibi, 114. “Os doze anos” são os transcorridos entre 1522, ano do seu nascimento, e 1534, ano
em que os calvinistas se apossaram de Genebra expulsando o bispo, o clero e todas as instituições
eclesiásticas católicas.
55

2 Pages 11-20

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2.1 Page 11

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saboiano como todos os meus, e jamais poderia ser outra coisa. Não vejo, por-
tanto, como possa suscitar sombras de suspeição, especialmente se levando em
conta a minha vida...”.30
Para entender bem a personalidade de S. Francisco de Sales é preciso ter
em conta que sempre está presente em seus pais a consciência de serem pais-
educadores não só dele, mas também de seus irmãos. Dos treze filhos, conhece-se
a história de oito.31 Dos demais, não se sabe a data nem do nascimento nem da
morte.
O modo de agir dos pais diante do filho, segundo o nosso conhecimento da
educação de Francisco em família, era orientado ao seu interesse: torná-lo capaz
de navegar autonomamente no mundo; ensinando-lhe, portanto, a ser indepen-
dente em relação aos pais. De fato, as decisões dos pais, de modo particular do
pai, de mandar Francisco à escola, fazem pensar que estas intervenções serviam
para favorecer a autonomia do menino, pondo limite à dependência de si mesmo,
dos outros e do aborrecimento.
O ambiente educativo da família de S. Francisco de Sales permite-nos
constatar quão mirada fora a atenção dos pais em relação ao filho. Eles notavam
que não faltavam impulsos positivos ao menino. Ele crescia não só sob os olhares
atentos dos pais, mas também com seus primos.32 Na companhia desses mesmos
primos e do preceptor, Francisco frequentará depois a escola em La Roche, Anne-
cy, Paris. A ele, desde pequeno, como a qualquer criança, podia faltar constância
e perseverança. Cabia, portanto, à orientação atenta e constante dos pais premu-
ni-lo de um crescimento demasiado espontâneo, para que, condicionado por um
crescimento desordenado, não seguisse os instintos e as reações incontroladas em
seus comportamentos e ações.
30 Carta au marquis Sigismondo de Lans, Annecy, 15 novembre 1615, in OEA XVII, 91.
31 Em ordem de nascimento: Francisco 1567–1622, Gallois 1576–1614, Luís 1577–1654, João
Francisco 1578–1635, Bernardo 1583–1617, Gasparde ? - 1629, Janus 1588–1640, Joana 1593–
1607. Quanto à filha Gasparde, a data de nascimento é desconhecida. Os Editores das OEA con-
sideram-na a sexta entre os filhos. Não é claro se é a sexta levando-se em conta também os filhos
mortos ou só os vivos. Tratando-se apenas dos vivos, seria realmente curiosa a notícia que se lê na
única Carta que se tem de S. Francisco de Sales estudante em Paris: “... assim como um amigo me
informou da honra e do favor que fizestes a uma de minhas irmãs...”; em nota correspondente a esta
informação, os Editores dizem que, talvez, tenha se tratado de um projeto de casamento. Cf. Carta
au baron D’Hermance, Paris, 26 novembre 1585, in OEA XI, 1.
32 Filhos do tio paterno. As duas famílias viviam em grande harmonia morando por bastante tempo
no mesmo castelo.
56

2.2 Page 12

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A educação que Francisco recebeu dos pais na infância e pré-adolescência
levava em consideração os valores básicos da existência e, portanto, de um com-
portamento adequado. Sua educação era, ao mesmo tempo, educação à fé.
Desejando entender o coração de S. Francisco de Sales do ponto de vista
cristão, não seria secundário conhecer o surgimento da sua relação com Deus,
como também a sua imagem de Deus e a sucessiva revisão dessa imagem, e o seu
crescimento na relação íntima com Deus. Infelizmente, as fontes documentais
que possuímos sobre isso não nos permitem reconstruir todas as suas experiên-
cias de fé anteriores à intensa crise espiritual devida, como resulta, à interpreta-
ção do tema da predestinação.33 O ato heroico do seu abandono total em Deus,
feito em Paris pelos vinte anos, aqui apresentado parcialmente, demonstra a sua
profundidade espiritual e teológica:
“[...] Qualquer coisa que tenhais decidido, Senhor, no eterno decreto da vossa
predestinação e da vossa condenação, vós, cujos juízos são um abismo profun-
do [...], eu vos amarei, Senhor, ao menos nesta vida, se não me for concedido
amar-vos na vida eterna [...] se, como exigem os meus merecimentos, eu deva
ser amaldiçoado entre os amaldiçoados que jamais verão a vossa dulcíssima
face, concedei-me ao menos não estar entre os que amaldiçoarão o vosso santo
nome”.34
O testemunho de vida espiritual dado por S. Francisco de Sales no período
escolar e universitário leva a pensar que a sua formação religiosa, desde quando
se encontrava em família, foi um itinerário que o fez crescer na amizade com
Deus. Sua relação com Deus, já muito pessoal, depois da prova/crise espiritual
vivida em Paris e novamente em Pádua será, de fato, sempre mais profunda e
estável com o passar dos anos.
Ao seu exemplo, podemos reconhecer que crescer na fé e no amor de Deus
significa ter uma vida espiritual que não é outra coisa senão uma profunda expe-
riência de relação pessoal com Deus. Experiência que, como acontecerá em Pádua,
exigirá dele novos esclarecimentos sobre o tema da predestinação. Superada essa
etapa, o seu constante abandonar-se a Deus sem reservas será a expressão mais
convincente da sua crescente relação com Ele.
33 O tema das suas crises, depois de cuidadosa pesquisa está bem exposto in E. J. LAJEUNIE, Saint
François de Sales. L’Homme, la Pensée, l’Action, Paris, Éditions Guy Victor 1966, vol. I, 130-145.
151-156.
34 Acte d’habandon héroique, in OEA XXII, 19-20.
57

2.3 Page 13

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O itinerário espiritual de S. Francisco de Sales, como é natural, foi muito
pessoal desde a juventude, não condicionado nem pelos pais nem por alguém da
família. Deve-se atribuir grande significado à qualidade de suas relações com
os pais no desenvolvimento da personalidade, como também no progresso da
experiência pessoal de fé.35 Ele foi afortunado por ter o pai e a mãe como duas
figuras de referência significativa, antes de tudo para ele, mas não menos para
seus irmãos. Vendo-o agir como adulto diante dos pais, podemos dizer que desde
criança ele interiorizou a figura materna e paterna como pessoas disponíveis e
capazes de estarem próximos dele com intenso afeto. Ele, por sua vez, não teve
dificuldade em comunicar-lhes as próprias necessidades e sentir-se respeitado em
sua posição de filho.
O estilo relacional com os pais, estabelecido na infância, serviu-lhe cer-
tamente de modelo na pré-adolescência e em todas as demais etapas de cresci-
mento. Este modelo relacional, sem percebê-lo, foi proposto por ele em todas as
experiências relacionais com os coetâneos, com os adultos e na mesma relação
com Deus. Não nos admiremos, pois, que a relação com Deus vivida na idade
adulta tenha sido para ele uma relação muito sentida, cheia de amor. Nosso modo
de ler S. Francisco de Sales autoriza-nos a interpretar a doença e a morte dos pais
como dois momentos muito intensos de sua vida do ponto de vista humano, mas
ainda mais do ponto de vista da fé.
Encontrando-se na casa paterna para assistir seu pai enfermo, doença da
qual não se curaria, Francisco escreve:
“[...] permaneço aqui, para cumprir meu dever a serviço de meu pai que, dia
após dia, caminha a largos passos para a outra vida. De fato, está tão enfra-
quecido que, se Deus não nos der sua mão milagrosa, já me vejo privado, em
poucos dias, da consolação que a presença deste bom pai sempre deu a mim e
a toda esta casa. Deus, que é Senhor de todas as vidas, seja sempre louvado por
todas as suas vontades”.36
35 Anos depois, a uma de suas filhas espirituais que, com orações e sacrifícios espirituais, obterá
para o próprio pai a graça de morrer reconciliado com Deus, S. Francisco de Sales escreverá: “eis
que estais, pois, junto de vosso senhor pai, que considerais como uma imagem viva do Pai eterno,
pois nesta veste devemos honrar e servir aqueles dos quais Ele se serviu para nos dar a vida”. Carta
à mademoiselle De Bréchard, Annecy, [mi-mai 1609], in OEA XIV, 160.
36 Carta à monseigneur Claude De Granier, évêque de Genève, Sales, 19 janvier 1601, in OEA XII,
53-54.
58

2.4 Page 14

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O caráter objetivo que queremos respeitar, nesta leitura de S. Francisco de
Sales, não permite interpretar o seu pensamento de maneira imposta previamente.
Não é fácil, contudo, renunciar à pergunta, antes será útil procurar entender, se
e em que medida, a figura paterna o tenha ajudado a sentir-se pai espiritual de
muitas pessoas. Está bem claro que seria difícil, a quem em sua vida não expe-
rimentou a bondade e a grandeza da figura do próprio pai, dizer as palavras de
S. Francisco de Sales a um filho espiritual: “...exalta-me o nome de pai com que
vos agradou honrar-me. Este nome penetrou profundamente em meu coração, e
os meus afetos adequaram-se às leis do amor que ele representa: o maior, o mais
vivo, o mais forte entre todos os amores”. 37 Um ano depois, quando escrevia ao
mesmo destinatário, sem estarmos seguros disto, acreditamos que ele tivesse pre-
sente a figura do pai diante de seus olhos: “... o amor paterno, em geral, é muito
poderoso, porque é como um rio que tem a sua origem muito acima...”.38
Com a morte da mãe, que aconteceu nove anos depois da do pai, S. Fran-
cisco de Sales escrevia:
“Experimentei uma grande dor por essa separação [...], mas devo dizer também
[...] que foi uma dor tranquila, embora viva, porque disse como Davi: calo-me,
Senhor, e não abro minha boca, porque sois vós que o fizestes; se não fosse
por isso, teria gritado pelo golpe recebido; contudo, parece-me não ter ousado
gritar ou demonstrar insatisfação sob os golpes daquela mão paterna que, na
verdade, graças à sua Bondade aprendera a amar desde a minha juventude”.39
Para perceber a profundidade do testemunho de fé de S. Francisco de Sales
é preciso levar em conta o testemunho de fé que seus pais davam aos filhos, me-
diante o clima religioso vivido por eles em família e a participação ativa e convicta
na vida paroquial. A experiência religiosa pessoal de Francisco apoiando-se no
testemunho de fé e de religiosidade dos pais permitiu-lhe levar adiante, particular-
mente em Paris e em Pádua, a construção do próprio edifício espiritual. As provas
de fidelidade à fé e à moral católica, como ele dirá, não lhe faltaram. Como bispo,
abrasado por um triste acontecimento que terminou felizmente com o retorno à
Igreja de alguns sacerdotes que se tinham tornado calvinistas, escreverá:
37 Carta au duc de Bellegarde, Annecy, 24 août 1613, in OEA XVI, 57.
38 Carta au duc de Bellegarde, Annecy, 19 août 1614, in OEA XVI, 212.
39 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 11 mars 1610, in OEA XIV, 261.
59

2.5 Page 15

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“Ó Deus! Que graça recebi, eu que tão jovem e tão miserável permaneci por
tanto tempo entre os heréticos e fui convidado com muita frequência a enten-
der-me com eles, sem que o meu olhar tenha jamais aceitado pousar, mesmo
rapidamente nos bens miseráveis e infelizes que me eram oferecidos! Seja ben-
dita a mão amável do meu Deus que me manteve firme neste rebanho”.40
Poucos meses depois deste fato, aflito pela falta de fidelidade a Deus de
uma jovem religiosa que decidiu passar à vida matrimonial, outra confidência:
“Quanto devemos agradecer a este grande Deus [...]. Eu em particular, que fui
exortado por muitos meios, e numa idade inclinada à fraqueza e a inconstância,
a passar à heresia, e que jamais nem sequer aceitei olhá-la de frente, se não
para cuspir-lhe no nariz; eu que, mesmo lendo todos aqueles livros pestilentos,
jamais experimentei no meu frágil e jovem espírito a menor inclinação para
aquele terrível mal [...]”.41
Para concluir o quadro da situação religiosa na família de S. Francisco de
Sales, devemos saber que, como bispo, ele foi confessor de sua mãe e de seus
irmãos com suas famílias. Temos a confirmação disso em suas próprias palavras.
“Ontem, dia de todos os santos, fui o grande confessor da família [...]”,42 escrevia
contando como a mãe e os irmãos com seus familiares estavam vivendo pela mor-
te da jovem Joana de Sales, a irmã mais nova de S. Francisco de Sales. Em outra
ocasião, a uma senhora que lhe perguntava se fazia bem em confessar-se com um
sacerdote seu primo, Francisco confidenciava: “[...] minha mãe, quando ainda
vivia, fez-me ouvir sua confissão geral e, desde então, todos os anos, prestava-
me contas da sua vida com grande humildade; e a minha pobre cunhada, de cuja
morte irmã Pérrone Maria vos informará, fez o mesmo”.43 A mãe de Francisco,
no leito de morte, vendo-o chegar para assisti-la, disse: “Este é meu filho e meu
pai”.44
Os fatos aqui evocados e as reflexões feitas dizem-nos que na família de S.
Francisco de Sales, a educação dos filhos à fé não era uma realidade setorial em
relação ao resto de suas vidas. A fé ali atravessava todas as expressões da vida
pessoal, cívica, política. Além de algumas expressões usuais da religiosidade dos
40 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 25 juin 1608, in OEA XIV, 37-38.
41 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 10 ou 19 décembre 1608, in OEA XIV, 94.
42 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 2 novembre 1607, in OEA XIII,329.
43 Carta à madame de Granieu, Annecy, 19 juillet 1618, in OEA XVIII, 251.
44 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 11 mars 1610, in OEA XIV, 262.
60

2.6 Page 16

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pais de S. Francisco de Sales – como a oração cotidiana, a atenção aos pobres, a
missa dominical e festiva, alguma peregrinação religiosa – nada sabemos da sua
preparação ou não preparação para a tarefa de educar os filhos na fé. Todavia, ve-
mos que não delegaram essa tarefa a ninguém. Os pais de Francisco encontraram,
portanto, a própria realização pessoal ao dar a vida aos filhos mediante a geração
e ao educá-los.
2.2. Formação escolar de S. Francisco de Sales
Francisco foi enviado, aos seis anos, à escola em La Roche, passando a vi-
ver fora de casa. Embora não distante mais de uma dezena de quilômetros da casa
paterna, só retornava em família para as férias. Dois anos depois, será transferido
para o colégio de Annecy, ali permanecendo por três anos. Em relação à escola de
La Roche, a de Annecy era um pouco mais distante da casa paterna.
O fato de iniciar a escola aos seis anos, morando fora de casa, deixa-nos
um tanto perplexos, sabendo que aos pais não faltavam possibilidades de fazê-lo
estudar em casa. Giorgio Papàsogli, que recolheu informações sobre a opção dos
pais apresenta esta explicação: o pai de Francisco “quando via a esposa derramar-
se em carícias por aquela criança magnífica, bela como uma pintura [...] conser-
vava-se reservado. Quando se falou de estudos, eis as várias opiniões: [segundo
a mãe] Pode estudar em casa, todos nós o ajudaremos. [O pai:] A escola [...] é a
grande formadora do caráter. [...] Eu desaprovo a vossa excessiva ternura e que
vos demonstreis demasiadamente afetuosa com nosso filho. Eu tenho por ele um
afeto muito concreto e dirijo para ele um interesse conforme os grandes planos
que considero para sua ascensão [...]”.45
Atualmente, os psicólogos recomendam aos pais a não fazerem projeções
sobre os filhos, para evitar carregá-los de muitas responsabilidades ou de exces-
sivas aspirações, ou de infundir neles os próprios desejos. Conforme este parecer,
para não condicionar gravemente o destino dos filhos, às vezes de modo irrever-
sível, os pais devem ajudar os filhos a fazerem opções e não se submeterem à
vontade deles.
Francisco, embora ainda criança, segundo o que apresentam os seus bió-
grafos, teria participado intensamente do projeto de fazê-lo estudar fora de casa.46
45 G. PAPÀSOGLI, Come piace a Dio, cit, 45.
46 Cf. Ibid., 46.
61

2.7 Page 17

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Dada a sua idade, não sabemos o quanto ele estivesse consciente das efetivas
expectativas do pai sobre ele. Sabemos, contudo, que a escola de La Roche, onde
estudavam prevalentemente os filhos de famílias nobres, garantia um discreto
nível de ensino.47 Depois, o grande empenho que Francisco levou adiante e com
sucesso, foi o estudo do latim. Indo para La Roche ele já sabia ler e escrever.48
Em Annecy, depois, em três anos de escola (1575-1578), ele “aprenderá tudo
o que a Saboia lhe podia ensinar”, sustenta o biógrafo.49 Nos anos passados em An-
necy, Francisco recebeu a primeira comunhão e a crisma. Ele “levou muito a sério
os dois sacramentos: desde então, comungou ao menos uma vez por mês, inscre-
veu-se na confraria do Rosário e, enfim, decidiu ler nos períodos de férias, a Vie des
Saints. [...] Pediu ao Pai a permissão de receber a tonsura. […] O pai cedeu: afinal,
a “tonsura” não empenhava para sempre, […] antes […] poderia fazê-lo ascender
aos afortunados benefícios eclesiásticos”.50
Aos doze anos de vida, Francisco partirá para Paris onde estudará segun-
do os programas escolares para, no futuro, chegar aos estudos universitários de
jurisprudência.51 Durante os longos anos de permanência em Paris – coisa im-
pensável hoje – Francisco não retornará à família nem receberá a visita de seus
pais. Embora distante de sua presença física, ele não se sentirá subtraído ao afeto
deles. Desse período, infelizmente, não conhecemos qualquer carta escrita aos
pais, nem deles recebida.
Ao partir para Paris, Francisco conhecia apenas três de seus irmãos. Co-
nhecerá os outros quando retornar à família.
Após termos acompanhado Francisco, adolescente e jovem, até Paris, no-
tamos que ao seu retorno/passagem à Saboia e sucessivamente em seus estudos
de Pádua,52 a relação com os pais manteve os mesmos aspectos de espontaneida-
de e harmonia, assim como a vivera na infância.
47 Cf. E.J. LAJEUNIE, Saint François de Sales. L’Homme, la Pensée, l’Action, Paris, Éditions Guy
Victor, 1966, vol. I, 106-107.
48 Cf. Ibid, 107.
49 Cf. Ibid.
50 A. RAVIER, Un sage et un saint. François de Sales, Paris, Nouvelle Cité 1985, 16-17.
51 Ao pai interessava que com os estudos previstos pelo programa do Colégio de Paris, Francisco
frequentasse as artes da nobreza: equitação, esgrima, ginástica, dança e tudo o que no futuro lhe
serviria para poder mover-se livremente na alta sociedade. Sabendo que Francisco não era por nada
levado a este tipo de práticas, o pai obrigara o preceptor a não deixar que Francisco faltasse a esses
cursos.
52 Entre as seis cartas de S. Francisco de Sales do período paduano de estudos, nenhuma é endere-
çada aos pais. Os biógrafos acenam ao contato epistolar entre ele e os pais, regular e não apressado.
62

2.8 Page 18

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A formação intelectual e cultural de Francisco em Paris e em Pádua tinha
por finalidade a carreira política.53 Sua vocação sacerdotal, em certo sentido, po-
deria ser considerada um incidente de percurso. Muito provavelmente, além do
confessor e do diretor espiritual, ninguém sabia que amadurecia nele a vocação
sacerdotal. Não sabemos nem mesmo como a sua profunda relação com Deus se
fazia notar e como podia ser interpretada exteriormente.
3. Francisco de Sales, DE pessoa dirigida A direTOR
espiritual
3.1. Importância do diretor espiritual
Uma das condições essenciais para ser um bom diretor espiritual ou um
bom confessor é ser interessado, por primeiro, no próprio progresso espiritual, vi-
vendo, como bom cristão, como penitente ou como pessoa em direção espiritual.
Este itinerário, atento às dinâmicas apropriadas, pode ajudar os futuros confesso-
res e diretores espirituais a superarem os seus problemas, viverem mais livres de
si mesmos e das coisas e crescerem na disponibilidade ao serviço de quem precisa
dele.
Damos por certo, embora deste ponto de vista a documentação seja escas-
sa, que em Paris e em Pádua S. Francisco de Sales tivesse um diretor espiritual.
Há mais informações para o período paduano do que para o parisiense.54 Da im-
portância do diretor espiritual na vida de S. Francisco de Sales, antes de ser bispo,
fala o fato de ele se fazer ajudar por esta forma de enfoque espiritual.55
As três confidências aqui apresentadas confirmam, cada uma à sua maneira, a
necessidade que ele sentia de fazer-se acompanhar espiritualmente nos momentos
importantes de sua vida e nos períodos de intensa atividade pastoral.
53 Comprovam-no os presentes recebidos do pai quando retornou após a obtenção do doutorado in
utroque iure: uma biblioteca de direito, a recomendação ao duque de Saboia, concluída com a no-
meação de Francisco como senador do senado de Chambérry, um encontro com a família da jovem
que o pai escolhera para ele pensando em seu casamento.
54 Cf. E. J. Lajeunie, Saint François de Sales. L’Homme, la Pensée, l’Action, cit. vol. I, 49-50.
55 O diretor espiritual de S. Francisco de Sales era uma pessoa diversa de seu confessor. Seus
confessores eram os padres: Philippe de Quoex (OEA XII, 30, nota I; OEA XVIII, 156, nota 2) e
Michel Favre (OEA XVII, 208, nota I).
63

2.9 Page 19

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“Antes da consagração, tive a fortuna de dedicar alguns dias ao recolhimento
e aos Exercícios espirituais sob a direção do P. Fourier, um dos homens mais
excelentes que conheci entre os Jesuítas. Digo-vos isso para perceberdes o meu
espírito, como vós me dais conta do vosso, dizendo que continueis a viver em
meio a uma grande variedade de ocupações e uma multidão de imperfeições.
Não há remédio: temos sempre a necessidade de lavar os pés, pois caminhamos
na poeira”.56
“[...] devendo partir amanhã, antes do alvorecer, para ir a Chambéry. Lá, espe-
ram-me o P. Reitor dos Jesuítas (P. Fourier), que me hospedará nestes cinco ou
seis dias que precedem a Quaresma, dias que me reservei para pôr em ordem o
meu pobre espírito, agitado por tantos trabalhos. [...] Os trabalhos desta diocese
não são águas, mas torrentes [...]”.57
“O Padre-Reitor de Chambéry estava aqui; e, com ele, pude rever a minha
pobre alma, a começar de quando fui elevado a este cargo. Parece-me, porém,
não me ter humilhado o quanto fosse necessário. É certo que preciso da santa
humildade. Deus meu, quem sou eu? Pouca coisa, [...]; menos do que nada.
Mas, avante! É preciso fazer mais de agora em diante”.58
Ao ler estes testemunhos, notamos que no arco de cinco anos houve três
encontros importantes com o mesmo diretor espiritual. Parece que não só o pri-
meiro e o segundo desses encontros, mas também o terceiro teve a duração de
vários dias. A possibilidade de dirigir-se ao diretor espiritual não parece ter favo-
recido nele uma dependência desta forma de ajuda espiritual. Isso realmente não
resulta de seus escritos e estaria em contraste com a capacidade que tinha de fazer
uma autoleitura e de agir em consequência.
Comprova-o uma confidência sua, que data dos mesmos anos, com que fazia ver
as consequências humanas e espirituais de sua caridade espiritual:
“Ao retornar da visita, quando quis examinar bem a minha alma, senti compai-
xão de mim: encontrei-a tão magra e desfeita, que parecia a morte. Desafio! Por
quatro ou cinco meses, não tivera um momento para respirar. Estarei junto dela
por todo o próximo inverno e procurarei tratá-la bem; não pregarei, a não ser
para um auditório bem limitado, permanecendo sentado na cátedra. Ouvirei a
palavra de um virtuoso e fervoroso Capuchinho, ensinarei o catecismo às crian-
56 Carta à m. Pierre de Bérulle, Annecy, 18 décembre 1602, in OEA XII, 156.
57 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 30 janvier 1606, in OEA XIII, 139.
58 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 9 août 1607, in OEA XIII, 308.
64

2.10 Page 20

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ças e ouvirei suas confissões; e, assim, dedicar-me-ei apenas a trabalhos leves,
que não desorientarão o coração, mas servirão apenas para excitá-lo. Tenho um
grande desejo de torná-lo bom, para que sirva a muitos outros, a serviço dos
quais me consagrei...”.59
Tenhamos presente que para realizar a sua missão de bispo, S. Francisco
de Sales não se subtraía a nenhum de seus compromissos. As visitas pastorais,
devido à extensão territorial da diocese, prolongavam-se por longos períodos e
tornavam-lhe impossível a regularidade com que se dedicava habitualmente aos
compromissos cotidianos de oração. Todavia, como disse, aquilo que o surpreen-
deu depois de um dos imensos esforços não se referia ao cansaço físico, mas à
própria exaustão espiritual.60
Esta autodiagnose deve ser interpretada, ao menos em parte, como seu
típico gênero literário. A relação entre oração e trabalho era um tema apresentado
frequentemente pelos seus filhos/as espirituais para avaliação. A resposta dada a
alguém exprime o modo como entendia esta relação com um intenso sentido de
praticidade:
“Deveis adequar a duração das vossas orações à quantidade das vossas ocupa-
ções. Assim como agradou a nosso Senhor colocar-vos na condição de vida em
que deveis ter contínuas distrações, será preciso que vos entregueis a orações
breves, mas que as torneis tão habituais que jamais as deixeis, a não ser por
grave necessidade”.61
3.2. Prevenir interpretações excessivas
É fácil pensar em S. Francisco de Sales como diretor espiritual nato, que
se tenha dedicado desde sempre ao ministério da direção espiritual. Não encon-
tramos qualquer indício a favor dessa convicção. Durante os quase nove anos de
59 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, fin d’octobre 1606, in OEA XIII, 222-223.
60 Tenhamos presente aqui esta confidência: “[durante as visitas às paróquias] Sinto-me bem [...],
embora empenhado em tal quantidade de problemas e de ocupações que não se poderiam imaginar
outros mais. É um pequeno milagre que o bom Deus está realizando porque todas as noites, quando
me retiro, não consigo mais mover o corpo nem o espírito, tão cansado me sinto em todos os mem-
bros. Contudo, vejo-me todas as manhãs mais alegre do que nunca”, Carta à la baronne de Chantal,
Bonneville, 2 octobre 1606, in OEA XIII, 221.
61 Carta à madame de Travernay, Annecy, 29 septembre 1612, in OEA XV, 268-269.
65

3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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sacerdócio, não parece que ele tenha se empenhado em dirigir alguém espiritual-
mente.
Acompanhando sua atividade sacerdotal e episcopal, em ordem cronoló-
gica, parecia que a carta de 22 de novembro de 1602 endereçada às Religiosas
do Mosteiro de Filhas de Deus, depois de sua permanência em Paris naquele
ano, pudesse ser tomada como início do seu ministério de direção espiritual.62
À distância de alguns anos desta carta, escreverá a uma religiosa que há pouco
começara a assistir espiritualmente: “Se tivesse aqui os meus papéis, vos manda-
ria um tratado que compus em Paris sobre este argumento em favor de uma filha
espiritual, religiosa de um mosteiro respeitável, que dele precisava para si e para
as demais. Se o encontrar, vos mandarei na primeira ocasião”.63 Infelizmente, não
se conhecem nem o texto ao qual alude, nem a data em que o compilou e nem
mesmo a destinatária. Contudo, esta ação de direção espiritual, no momento atual
do nosso conhecimento, seria o verdadeiro início do seu ministério de direção
espiritual. Embora não conhecendo a data exata, o ano é sempre o mesmo: 1602.
A ninguém é possível saber, antecipadamente, de quais temas e de quais
aspectos de vida cristã S. Francisco de Sales tenha tratado com as pessoas servin-
do-as na direção espiritual. Para sabê-lo, o único caminho a percorrer é a leitura
de suas cartas, da Introdução à vida devota, do Tratado do Amor de Deus, mas
também de suas pregações e colóquios mantidos com a comunidade-mãe das
Irmãs da Visitação. É preciso distinguir, na leitura, as considerações teológicas
sobre a vida espiritual dos problemas pessoais de cada homem e mulher em di-
reção espiritual. A quantidade de temas ou aspectos de vida cristã dos quais ele
tratou depende, em grande parte, do número de pessoas em direção espiritual e
do número total de problemas que essas pessoas lhe apresentaram. No contexto
da dedicação de S. Francisco de Sales à direção espiritual encontraremos também
algum material que nos ajuda a conhecê-lo em seus traços de intensa humanida-
de, de rica espiritualidade, de profunda teologia. Desde o início do nosso contato
com seus escritos de direção espiritual, por motivos de objetividade que quere-
mos garantir à nossa leitura, é importante ter presente que as atenções dadas por
ele às pessoas não eram ditadas por preferências pessoais, mas pelas necessidades
62 Carta aux Religieuses du Monastère des Filles- Dieu, Sales, 22 novembre 1602, in OEA XII,
136-152.
63 Carta à madame Bourgeois, Abbesse du Puits-d’Orbe, Sales, 15-18 avril 1605, in OEA XIII, 31.
A permanência em Paris de que fala, aconteceu de 22 de janeiro a 20 de setembro de 1602.
66

3.2 Page 22

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espirituais de cada um e da vontade que Deus lhe demonstrava diante de cada
pessoa acompanhada por ele. De fato, a ajuda que a direção espiritual é chamada
a dar deve ser precedida de um atento discernimento espiritual. Agindo assim,
ele mesmo estava convencido de que as pessoas autenticamente espirituais são
aquelas que não têm “outro coração fora do de Jesus, nenhum outro espírito fora
do seu, nenhuma outra vontade fora da sua, nenhum outro afeto fora dos seus,
nem outros desejos fora dos dele; enfim, são totalmente suas”.64
O número de pessoas acompanhadas
Um dado da experiência de direção espiritual de S. Francisco de Sales,
que exige uma leitura atenta é justamente o número de pessoas das quais ele era
diretor espiritual. Ao falar dele como diretor espiritual, não falta quem o conside-
re diretor espiritual unicamente da senhora de Chantal. É difícil conhecer todas as
pessoas que o buscaram como diretor espiritual. Atualmente, a única estimativa
que nos ajuda a ter uma ideia da quantidade de pessoas acompanhadas por ele é
a quantidade de cartas de direção espiritual. A distinção entre estas e as demais
cartas escritas por ele deixa-se perceber sem dificuldade.
Apesar de tudo, de acordo com estas cartas, não é o número exato das
pessoas dirigidas espiritualmente por S. Francisco de Sales que gostaríamos de
individualizar. Interessa-nos mais a tipologia dos grupos de pessoas às quais as
cartas eram dirigidas:
- eram muitas as religiosas de vários institutos. Este grupo de destinatá-
rias de suas cartas de direção espiritual compreende também as Irmãs
da Visitação;
- eram poucos os religiosos e eclesiásticos que lhe pediam assistência
espiritual;
- as leigas: mulheres solteiras, casadas, viúvas, em relação ao número de
cartas, prevalecem sobre as demais categorias de pessoas;
- os leigos, entretanto, jovens, adultos, casados e solteiros, eram raros.
Entre estes estava Roger de Saint-Lary e de Termes, duque de Bellegar-
de (1563-1646), uma das grandes figuras da vida política francesa sob
Henrique III, Enrique IV e Luís XIII.
64 Sermon pour la fête de saint Jean Porte-Latine, 6 mai 1616 ou 1617, in OEA IX, 80.
67

3.3 Page 23

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Circunstâncias que não se devem esquecer ao estudar a direção espiritual
segundo S. Francisco de Sales
A leitura dos destinatários das cartas de direção espiritual de S. Francisco
de Sales exige muita atenção. Isso se deve às seguintes peculiaridades que se
deve levar em conta:
- não possuímos todas as cartas de direção espiritual escritas por S. Fran-
cisco de Sales;
- estamos diante de um número variado de cartas endereçadas a cada
destinatário. O elevado número de leigas, destinatárias de suas cartas,
significa duas coisas: a primeira, que um elevado número de pessoas
recebia suas cartas, e a segunda, que muitas pessoas receberam apenas
uma carta. Apenas uma dezena de pessoas recebeu certo número de
cartas enviadas por S. Francisco de Sales, algumas delas um número
muito elevado;
- algumas destinatárias de suas cartas, não muitas, estavam em contato
epistolar com ele ainda antes de ele abraçar a vocação religiosa;
- de algumas destinatárias, S. Francisco de Sales resulta diretor espiritual
ao lado de outro diretor;
- com algumas dessas pessoas, o contato epistolar era regular, notável e
de longa duração. Essa regularidade não lhe seria possível manter em
relação aos encontros pessoais.
Textos de apoio
Em alguns casos de direção espiritual, enquanto as pessoas davam os pri-
meiros passos no caminho espiritual, S. Francisco de Sales, de acordo com as
necessidades específicas, fazia acompanhar as suas cartas pessoais com subsídios
sobre temas especiais de vida espiritual.65 Também acontecia que, para temas
concretos ou trabalhos espirituais, o diretor espiritual encaminhava a pessoa a
livros ou capítulos de autores conhecidos. Ajuda análoga era individualizada, al-
65 Cf. o subsídio que preparara e enviara ao Duque de Bellegarde: Memorial pour bien faire la
confession adressé au Duc de Bellegarde le 24 août 1613, in OEA XXVI, 244-266. No mesmo
volume XXVI das OEA encontramos outros subsídios preparados para diversos destinatários.
68

3.4 Page 24

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gumas vezes, na Introdução à vida devota, publicada em 1609, sem, porém que
lhe fosse dado um peso excessivo.
Respeito à singularidade das pessoas
O número elevado dos destinatários das cartas de direção espiritual não fez
o Autor esquecer-se da singularidade de cada um. Esta realidade, individualizada
em cada pessoa, mesmo quando exige muito tempo, é de importância funda-
mental na direção espiritual. À singularidade de cada cristão/ã, além das carac-
terísticas psicológicas e temperamentais individuais, pertence igualmente a sua
especificidade histórica devida:
- à pertença a uma determinada categoria de pessoas pelo seu estado de
vida e profissão;
- ao seu progresso ou retrocesso espiritual na vida cristã.
A atitude de S. Francisco de Sales, relativa à singularidade de cada pessoa
em direção espiritual, era a mesma que encontramos na Introdução à vida devota.
Muitas pessoas, não só então, pensam que há um único modo de tender à santi-
dade cristã. S. Francisco de Sales, todavia, sustenta que o caminho de santidade
deve ser percorrido “de maneiras diversas pelo nobre, pelo operário, pelo servo,
pelo príncipe, pela viúva, pela filha, pela mulher casada; isso não basta, mas será
preciso ainda adaptar a prática de vida espiritual às forças, aos trabalhos e aos
deveres dos indivíduos. [...] Seria correto que o bispo desejasse viver isolado
como os Cartuxos? E se os casados não quisessem renunciar a nada, como fazem
os Capuchinos, se o operário estivesse o dia todo na igreja como o religioso e o
religioso estivesse continuamente exposto a todo tipo de encontros no serviço
do próximo, como o bispo, esta vida espiritual não seria ridícula, desajustada e
insuportável? [...] É um erro, antes uma heresia, querer banir a vida espiritual da
legião dos militares, da oficina do operário, da corte do príncipe, da vida cotidia-
na das pessoas casadas. [...] Onde quer que vivamos, podemos e devemos aspirar
à vida perfeita”.66
A atenção à singularidade de cada pessoa, segundo ele, é exigida também
em nível de direção espiritual comunitária, como é o caso dos religiosos e reli-
giosas. S. Francisco de Sales dera à superiora da Visitação em Lyon, primeira
66 Introduction à la vie dévote, in OEA III, 19-21.
69

3.5 Page 25

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casa fundada fora da Saboia, uma recomendação implícita, acompanhada de uma
sentença de sabor sapiencial: “Não deis atenção à quantidade de imperfeições
existentes em vós e em todas as filhas que nosso Senhor e nossa Senhora vos
confiaram... pois não é o caso de admirar-se se, num jardim, cada planta e cada
flor exijam um cuidado especial”.67
Anos antes, ele dera conselho semelhante a uma superiora jovem, dinâ-
mica, segura das próprias decisões, que iniciara com determinação a reforma da
vida religiosa em seu mosteiro:
“Eu apresento frequentemente no altar este vosso ideal Àquele que vo-lo su-
geriu e que vos deu a boa vontade de propô-lo, para que vos conceda a graça
de levá-lo a cumprimento. Parece-me entrever a porta aberta. Só vos peço,
Senhora..., que recordeis que a porta é estreita e difícil de ser superada e que,
portanto, deveis ter a esperteza e a paciência de fazer entrar por ela todas as
vossas irmãs, mas uma depois da outra. Querer fazê-las passar todas em multi-
dão e em breve tempo, é coisa que, eu acredito, não haveria de ter sucesso. Al-
gumas delas não podem caminhar rapidamente como as outras. É preciso dar as
devidas atenções às idosas, que não poderiam adaptar-se com facilidade: elas
são muito pouco maleáveis, porque os nervos do espírito, como os do corpo, já
estão contraídos. Toda atividade que consagrais a esta obra, deve ser carinho-
sa, graciosa, compreensiva e tolerante. Deveis impor-vos isso quer pela vossa
idade quer pela vossa índole, dado que a severidade não vai bem aos jovens.
E, crede-me, Senhora: o governo mais perfeito é aquele que mais se aproxima
daquele que o bom Deus exerce sobre nós, que é todo tranquilidade e paz, que
tem uma atividade intensíssima, mas sem agitação, e que, embora sendo único,
se adapta a todos e a todas as coisas. Sobretudo, vo-lo peço, servi-vos dos con-
selhos de pessoas espirituais”...68
Destinatários procurados ou sem preferência?
Por que S. Francisco de Sales se dirigia prevalentemente a pessoas de con-
dição social elevada, como se deduz do elenco dos destinatários de suas cartas de
direção espiritual? Trata-se de um fato facilmente explicável. Em seu tempo, as
pessoas culturalmente simples eram, em geral, desprovidas de instrumentos para
poder recorrer à correspondência epistolar. Não se esqueça, em todo caso, que S.
67 Carta à la mère Favre, supérieure de la Visitation de Lyon, Annecy, fin octobre ou commencement
de novembre 1615, in OEA XVII, 81.
68 Carta à madame de Beauvilliers, abbesse de Montmatre, Annecy, [janvier] 1603, in OEA XII,
172-173.
70

3.6 Page 26

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Francisco de Sales bispo se dedicava não só às visitas pastorais, à pregação, à cate-
quese das crianças, mas também à confissão, especialmente de gente simples. Não é
possível dizer qualquer coisa sobre esta eventual modalidade de direção espiritual.
Motivações espirituais do ministério de direção espiritual
A documentação de que dispomos para algumas histórias de direção espi-
ritual, acompanhadas por S. Francisco de Sales, apresenta provas de suas decla-
rações explícitas de ser vontade Deus que ele se empenhasse nessa missão. Das
mais características, e como exemplo, apresento algumas:
“[...] a escolha que fizestes tem todos os sinais de ser boa e legítima; e disso
vos peço que jamais duvideis [...]. A longa reflexão que me impus antes de vos
dar o meu assentimento; o fato de que nem vós nem eu confiamos apenas em
nós mesmos, mas recorremos ao juízo do vosso confessor bom, douto e pru-
dente; o fato de termos dado às primeiras agitações da vossa consciência todo
o tempo para acalmar-se, caso tivessem algum fundamento; as orações, não
de um dia ou dois, mas de vários meses, que precederam a vossa escolha, são
sinais infalíveis que nos permitem afirmar sem sombra de dúvida, que era essa
a vontade de Deus”.69
“Suplico-vos, pelo amor de nosso Senhor, que creiais sem a menor dúvida que
eu estou inteiro e irrevocavelmente a serviço da vossa alma e que me empe-
nharei neste serviço com todas as minhas forças e com toda a fidelidade que
poderíeis desejar. Deus o quer e eu o sei muito bem: nada mais posso dizer”.70
“[...] não [haja] mais qualquer cerimônia entre nós: os vínculos que nos unem
não são formados por cordas daquela espécie. Eles são invariáveis, incorruptí-
veis e eternos, pois nos amaremos no céu com o mesmo amor de Jesus Cristo
que une de coração e de alma aqui embaixo e que faz de mim o vosso humilís-
simo e afeiçoadíssimo servo”.71
69 Carta à la baronne de Chantal, Sales, 14 octobre 1604, in OEA XII, 353. Em relação à senhora de
Chantal, quando em 1604 ela se encontrou com S. Francisco de Sales, não se tratou de uma simples
escolha do diretor espiritual, mas de uma mudança de diretor espiritual. Sobre este fato, vejam-se
as páginas 324-328 do meu artigo: J. Struś, I protagonisti della direzione spirituale secondo l’in-
segnamento e la pratica di san Francesco di Sales, in Salesianum 2(1978 aprilis-iunius), 293-342.
70 Carta à madame Bourgeois, abbesse du Puits-d’Orbe, Sales, 13 octobre 1604, in OEA XII, 341.
71 Carta à la présidente Brulart, [sem indicar o local], vers le 20 avril 1605, in OEA XIII, 39.
71

3.7 Page 27

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“Deus tornou-me vosso, e eu o serei imutavelmente para sempre, totalmente e
sem reservas [...], eu serei vosso mais de quanto se possa dizer”.72
A intensidade da profunda convicção com que S. Francisco de Sales faz es-
tas declarações recorda a importância indiscutível da vontade de Deus, indicada
por ele como condição de qualquer itinerário autêntico de santidade. No contexto
das quatro declarações apresentadas acima sobre sua disponibilidade de servir na
direção espiritual, porque essa é a vontade de Deus, não nos deve levar à suspeita
de um desejo de querer apossar-se das pessoas. Justamente nesse contexto, é útil
ver a sua reação ao temor expressado pela senhora de Chantal, preocupada em se
ver algum dia sem diretor espiritual, caso ele morresse: “É sem dúvida um bem
desejar a vida àquele que Deus vos deu como guia para a vossa; mas [...] Deus
tem centenas de meios, ou melhor, infinitos meios para guiar-vos sem mim: é
Ele que vos conduz como uma ovelha (Sl 79,2). Peço-vos: tende o vosso coração
muito elevado; apegai-o indissoluvelmente à vontade soberana daquele dulcíssi-
mo coração paterno do nosso Deus, e que Ele seja sempre obedecido e obedecido
suavemente pelas nossas almas”.73
4. TAREFAS própriAs do diretor espiritual
4.1. A figura do diretor espiritual
No capítulo IV da Primeira Parte da Introdução à vida devota, S. Francisco
de Sales diz que, para iniciar O caminho espiritual e continuar ao longo do seu
percurso, é preciso ter um guia.74 Sua tarefa é ser:
amigo fiel... que orienta as nossas ações com suas advertências e seus conse-
lhos, e assim nos salva das emboscadas e armadilhas do maligno”;
“um tesouro de sabedoria nas aflições, tristezas e quedas”;
72 Carta à madame Angélique Arnauld, abbesse de Port-Royal à Maubuisson, Annecy, 5-7 juillet
1620, in OEA XIX, 271.
73 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 29 septembre 1608, in OEA XIV, 68.
74 Introduction à la vie dévote, in OEA III, 22-25.
72

3.8 Page 28

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remédio para aliviar e consolar os nossos corações no tempo das doenças es-
pirituais; preservar-nos-á do mal e tornará melhor o nosso bem; e quando nos
acontecer alguma enfermidade, impedirá que ela nos faça morrer, pois nos co-
locará novamente em pé”.
Não é fácil dizer se alguma destas três funções é a principal em relação às
demais. À luz das palavras conclusivas de S. Francisco de Sales sobre a respon-
sabilidade do diretor espiritual, no mesmo capítulo, não parece possível preferir
qualquer uma delas transcurando as demais. Em seu modo de ver, o diretor espi-
ritual “deve estar cheio de caridade, de ciência e de prudência; se lhe faltar uma
das três, a missão se tornará perigosa”.
A verdadeira dificuldade derivada desta tipologia da figura do diretor es-
piritual refere-se à escolha dessa pessoa, onde e como encontrá-la. A escolha
de um diretor espiritual com essas qualidades torna-se árdua, senão impossível,
justamente pela importância atribuída às suas três funções. A dificuldade desta
escolha faz-se ainda mais sentida quando, de modo imparcial, S. Francisco de
Sales reporta o conselho de S. João de Ávila: “escolhei um entre mil”. O nível de
dificuldade continua a crescer de modo exorbitante quando, com senso de profun-
do realismo, S. Francisco de Sales declara: “Um entre dez mil, digo eu; dado que
os homens à altura dessa responsabilidade são menos de quanto se pense”.
Como, portanto, encontrar um diretor espiritual segundo os requisitos hu-
manos e espirituais indicados por S. Francisco de Sales? De acordo com o que
ele mesmo sugere, cabe à pessoa interessada “dirigir-se a Deus com insistência e
pedir que lhe envie alguém segundo o seu coração”.
A grande importância que S. Francisco de Sales reconhece ao papel do
diretor espiritual na vida de pessoas interessadas em iniciar o itinerário espiritual
poderia ser impossível na prática, pela dificuldade de encontrá-lo. Entendemos de
uma resposta de S. Francisco de Sales que essa eventualidade não quereria dizer
que se está fora da graça de Deus:
“Será vossa fortuna não ter outro diretor senão o doce Jesus que, como não quer
que se despreze a guia de seus servos, quando se pode tê-la, assim também está
pronto a substituí-la em tudo quando esta venha a faltar. Mas o faz somente em
último caso, como podereis experimentar caso vos acontecesse de não poder
ter um diretor”.75
75 Carta à mademoiselle de Soulfour, Annecy, 22 juillet 1603, in OEA XII, 206.
73

3.9 Page 29

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4.2. O diretor espiritual “deve estar cheio de caridade, de ciência e de
prudência...”
Se a juízo de S. Francisco de Sales os parâmetros para avaliar a idoneidade
de um diretor espiritual são “... estar cheio de caridade, de ciência e de prudên-
cia...”, por que estas mesmas medidas não deveriam ser usadas para ler o seu
perfil humano, espiritual e pastoral? Levando-se em conta a abordagem dada a
este texto, os modos de ser e de fazer de S. Francisco de Sales diretor espiritual,
em grande parte já vistos, nós o vemos coerentes com as medidas indicadas por
ele. Em seguida, serão assinalados alguns de seus outros modos de pensar e agir
como diretor espiritual.
Cheio de caridade
Procuremos perceber o sentido da especificidade “cheio de caridade”, exi-
gida para o diretor espiritual, recorrendo:
- ao comentário de S. Francisco de Sales sobre alguns incidentes aconte-
cidos por ocasião de encontros de direção espiritual;
- aos convites feitos por ele mesmo a quais virtudes praticar e por que,
com a finalidade de progredir na perfeição.
Em ordem cronológica, o primeiro fato que ele comenta foi-lhe apresen-
tado por uma pessoa que ele mesmo acompanhava espiritualmente; essa pessoa,
devido à grande distância, devia fazer-se ajudar por um conselheiro espiritual do
lugar. O conselheiro, experiente em direção espiritual, conhecido e estimado por
S. Francisco de Sales, mostrou-se exato em identificar na personalidade da peni-
tente os pontos que exigiam atenção especial. A penitente, porém, sofreu pelo fato
de ter sido reconhecida como carente de correção, convencida de não gozar de sua
confiança. S. Francisco de Sales, sabendo do acontecido, procurou evidenciar as
vantagens que ela teria obtido das observações do seu guia espiritual. As observa-
ções, segundo seu modo de ver, quando acontecem na amizade espiritual, embora
parecendo acidentais, não deveriam ser motivo de preocupação porque “... o con-
selheiro de almas que sabe ser discreto não se admira de nada, acolhe tudo com
caridade, desculpa tudo e bem sabe que o espírito do homem está sujeito à vaidade
(Rm 8,20) e à desordem, se não tiver uma assistência especial da Verdade”.76
76 Carta à la présidente Brulart, 29 avril 1606, in OEA XIII, 175.
74

3.10 Page 30

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O segundo fato refere-se ao próprio S. Francisco de Sales. Ao saber da
superiora de um mosteiro em dificuldade que, devido ao nível de vida espiritual,
S. Francisco de Sales procurava ajudar a renascer, eram-lhe atribuídas palavras
jamais ditas, confidenciou à irmã que o informou: “[...] a experiência ensinara-me
a não ser duro com as almas rebeldes enquanto houvesse esperança de conquistá-
las pela doçura [...]. Aqueles que pretendem servir às almas devem ser pacientes,
porque elas sempre são, como nos inícios, caprichosas, bizarras e vendedoras de
palavras. Quem se deixasse desencorajar por isso, jamais faria alguma coisa”.77
No itinerário que estamos percorrendo em busca do sentido da especifi-
cidade “cheio de caridade” do diretor espiritual será útil contemplar, como já
acenado, as virtudes que S. Francisco de Sales recomendava às pessoas dirigidas
por ele:
“[Preferir] as duas caras e amantíssimas virtudes que resplendiam na santa Pes-
soa de Nosso Senhor, virtudes que, de modo todo particular, nos recomendou
[...]: Aprendei de mim... que sou manso e humilde de coração. A humildade
torna perfeito diante de Deus; a doçura, diante do próximo”.78
“A doçura e a humildade são as bases da santidade”.79
“Tende grande cuidado em praticar bem a humilde doçura, que deveis usar para
com vosso caro marido e com todos, porque é a virtude que nosso Senhor tão
vivamente nos recomendou”.80
“Recomendo-vos principalmente o espírito de doçura, que é aquele que atrai e
conquista as almas”.81
“Devemos permanecer sempre bem firmes na prática de nossas duas caras vir-
tudes: a doçura em relação ao próximo e a amabilíssima humildade em relação
a Deus”.82
77 Carta à madame de la Forest, religieuse de l’Abbaye de Bons, Annecy, 2 octobre 1609, in OEA
XIV, 205.
78 Parte III, capítulo VIII da Introduction à la vie dévote, in OEA III, 161-165.
79 Carta à la soeur Fichet, religieuse de la Visitation d’Annecy, Annecy, 31 décembre [entre as cartas
sem data], in OEA XXI, 1.
80 Carta à madame de Villesavin, Parios, juillet-août 1619, in OEA XVIII, 417.
81 Carta à madame Bourgeoise, Abbesse du Puits-d’Orbe, Annecy, 3 mai 1604, in OEA XII, 272.
82 Carta à madame de la Valbonne, [1515-1617], in OEA XVIII, 135.
75

4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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A índole própria da humildade e da doçura, “as duas caras e amantíssimas
virtudes que resplendiam na santa Pessoa de Nosso Senhor”, inscreve-se perfei-
tamente no objetivo da direção espiritual: crescer no amor de Deus.
Caminhar pelo itinerário espiritual, segundo S. Francisco de Sales, quer
dizer empenhar-se de modo a alcançar a própria liberdade em relação aos pe-
cados e aos vícios, como também crescer na oração pessoal e litúrgica, para ser
homem ou mulher de oração através de uma profunda comunhão com Deus. Faz
parte deste programa o esforço que vise conquistar as virtudes adequadas para
contribuir ao autêntico crescimento espiritual da pessoa.
“Deus [...] guia a alma, que fez sair do Egito do pecado, de amor em amor,
como de etapa em etapa, até introduzi-la na terra prometida, ou seja, na santa
caridade, que é amizade, não amor interessado”.83
O itinerário espiritual assim entendido, com esta articulação coerente, ex-
prime a sua capacidade de poder forjar o homem interiormente. Neste contexto, é
preciso perguntar-se: qual é o papel do diretor espiritual? De que modo ele pode
acompanhar a pessoa em direção espiritual? Como ele próprio pode corresponder
ao dever de estar “cheio de caridade”? Se o amor de Deus é a motivação funda-
mental de todo itinerário espiritual, não deveria o mesmo amor de Deus ser tam-
bém a motivação do ter de estar “cheio de caridade”, indicada por S. Francisco de
Sales juntamente com as outras duas qualidades do diretor espiritual?
S. Francisco de Sales não explicita os caminhos pelos quais o diretor espi-
ritual pode alcançar a qualificação de “cheio de caridade”. A única lição que nos
dá é o testemunho de sua vida. Em força desse testemunho, parece justificado
pensar que o diretor espiritual deveria buscar uma contribuição qualificadora para
o crescimento do seu viver “cheio de caridade” praticando as mesmas virtudes
aconselhadas por S. Francisco de Sales às pessoas acompanhadas por ele.
No programa de vida espiritual realizado segundo a dinâmica desse itine-
rário, as virtudes não são um corpo estranho. É importante que a vida de oração
e a luta contra os pecados e os vícios pessoais se associem à prática das virtu-
des. S. Francisco de Sales esclarece o quão normal seja a ligação entre a prática
das virtudes e os outros trabalhos espirituais na vida cristã, com este exemplo
prático:
83 Traitté de l’Amour de Dieu, in OEA IV, 163-164.
76

4.2 Page 32

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“[...] muitos fazem profissão de querer ser virtuosos filosoficamente, mas, na
realidade, não são virtuosos de modo algum. Eles não são outra coisa senão
fantasmas de virtude, que, com um comportamento cerimonioso e um rio de
palavras, escondem a sua vida má e os seus humores aos olhos daqueles com os
quais devem tratar. Mas nós, que bem sabemos não podermos ter um mínimo
de virtude sem a graça de nosso Senhor, devemos procurar viver virtuosamente
recorrendo à piedade e à santa devoção; caso contrário, não seremos virtuosos
a não ser na imaginação e nas aparências”.84
O lugar das virtudes no interior de um autêntico programa de vida espi-
ritual torna-se natural em força da relação igualmente natural que existe entre a
“caridade” e as “virtudes”. Sobre esta relação S. Francisco de Sales diz:
“... a caridade jamais entra num coração a não ser arrastando atrás de si as
demais virtudes, que alinha e adestra como um capitão faz com seus soldados;
mas não as faz entrar em ação todas juntas, todas do mesmo modo, ao mesmo
tempo e em todos os lugares... a caridade, irrigando uma alma, produz nela
obras virtuosas, mas cada uma na sua estação”.85
“... caminhai sempre corajosamente de virtude em virtude até alcançardes o
grau mais elevado do amor divino. Mas jamais o alcançareis, pois este amor
sagrado é infinito como o seu objeto, que é a divina Bondade”.86
À luz deste pronunciamento de S. Francisco de Sales é preciso recordar
os critérios segundo os quais se escolhem as virtudes a praticar. As razões mais
fundamentais que deveriam regular essa escolha são estas, segundo ele:
“Entre as várias práticas das virtudes, devemos preferir aquelas que estão mais
alinhadas com o nosso dever e não com o nosso gosto [...]. Cada estado de
vida precisa praticar esta ou aquela virtude especial: são de um tipo as virtudes
do prelado, de outro as do príncipe e, ainda de outro as do soldado, da mulher
casada ou da viúva; e assim como todos devem ter todas as virtudes, nem todos
devem praticá-las da mesma maneira, mas cada um deve dedicar-se de modo
particular às exigidas pelo gênero de vida ao qual é chamado”.87
84 Carta à madame Celse-Bénigne de Chantal, Annecy, 8 décembre 1610, in OEA XIV, 378.
85 Introduction à la vie dévote, in OEA III, 123.
86 Carta à mademoiselle de Bréchard, Annecy, [fin mai 1609), in OEA XIV, 165.
87 Introduction à la vie dévote, in OEA III, 124-125.
77

4.3 Page 33

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“[...] para o exercício das virtudes, não é preciso estar [...] atentos para praticar
todas elas [...]. A humildade e a caridade são as cordas mestras às quais estão
amarradas todas as outras. Basta comportar-se bem a respeito dessas duas: uma
é a mais inferior, a outra é a mais elevada de todas. [...] Mantendo o coração
voltado para o exercício dessas duas virtudes, não se poderão encontrar grandes
dificuldades na prática das demais. Elas são como mães para as demais virtu-
des, que a seguem [...]”.88
Tendo presente a linguagem que S. Francisco de Sales usa com as pes-
soas por ele acompanhadas, notamos que se trata de uma linguagem imediata,
mas adequada para comunicar que o principal Ator deste itinerário de perfeição é
Deus / o Espírito Santo; por outro lado, esta linguagem interpela o próprio diretor
espiritual, perguntando-lhe qual é a sua tarefa enquanto acompanha alguém pelo
caminho da perfeição:
“[...] por vontade de Deus, sinto por vós todo afeto que poderíeis desejar, e não
saberia proibir-me de senti-lo. Amo profundamente o vosso espírito, porque
penso que Deus o quer, e o amo ternamente, porque vos vejo ainda frágil e
muito jovem”.89
“[não penseis que eu] entenda deixar de contribuir para convosco com toda a
luz e força que Deus me der, porque não seria possível desfazer as ligações com
que Deus nos uniu”.90
“Recomendo-vos a Deus [...], ao mesmo Deus que adoro e que me tornou tão
unicamente e tão intimamente vosso”.91
“Suplico-vos [...] que jamais abandoneis os santos propósitos que fizestes, por-
que Deus, que os sugeriu ao vosso coração, vos pedirá conta deles. E para
colocá-los bem em prática, vivei próxima do Salvador, porque a sua sombra é
salutar para o surgimento e a conservação desses frutos”.92
“Deus vos guia com sua santa mão e confirma sempre mais o generoso e ce-
leste propósito que vos sugeriu de consagrar toda a vossa vida a Ele. É justo
e razoável que aqueles que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para
88 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 11 février 1607, in OEA XIII, 263-264.
89 Carta à la soeur de Soulfour, novice au Monastère des Filles-Dieu, Annecy, 16 janvier 1603, in
OEA XII, 163.
90 Carta à la présidente Brulart, [sem indicar o local], vers le 20 avril 1605, in OEA XIII, 38.
91 Carta à la baronne de Chantal, Thonon, 10 juillet 1607, in OEA XIII, 297.
92 Carta à une Dame, [sem indicar o local e a data], in OEA XXI, 20.
78

4.4 Page 34

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Aquele que morreu e ressuscitou por eles (2Cor 5,15). Uma alma grande, Se-
nhor, impulsiona todos os seus melhores pensamentos, os seus afetos e os seus
ideais até o infinito da eternidade...”.93
“Acrescento apenas que vos peço para crerdes firmemente que vos amo de um
amor perfeito e verdadeiramente paterno, porque a Deus agradou dar-vos uma
confiança ilimitada e filial em relação a mim. Continuai, pois, minha caríssima
Filha, a amar-me cordialmente”.94
O modo de S. Francisco de Sales exprimir-se em relação às pessoas encami-
nhadas à perfeição faz ver que o “estar cheio de caridade” do diretor espiritual se
impõe como necessidade: para a pessoa em direção espiritual, o diretor espiritual
deveria ser o reflexo do amor de Deus. Consequentemente, embora sendo apenas
mediador entre a pessoa em direção espiritual e Deus que a guia, a presença do
diretor espiritual jamais deveria ser fraca, insignificante.
As facetas da caridade e suas funções, nós o sabemos, são muitas. No es-
pírito da terminologia de S. Francisco de Sales, porém, o vocábulo que exprime
o modo e o estilo de estar “cheio de caridade” do diretor espiritual na direção
espiritual é “amizade”. Qual a utilidade derivada disso para a direção espiritual?
A resposta é dada com a apresentação do conceito de amizade de S. Francisco de
Sales.95 Conhecendo seu modo de entender a amizade, não será difícil entender
a atmosfera humana e espiritual de suas cartas. Atmosfera que, às vezes, pode
parecer excessiva pelo calor afetivo que exprimem.
A amizade, diz S. Francisco de Sales, é amor por sua natureza, mas amor
que não pode viver sem comunicação. Segundo ele, nem todo amor é amizade.
Porque é possível amar e não ser amado. O amor é amizade se for recíproco.
Além do mais, as pessoas que se amam reciprocamente devem conhecer o seu
afeto recíproco. Se não o conhecem, haverá amor entre elas, mas não amizade. É
preciso, então, que entre elas exista algum tipo de comunicação que sirva de base
para a amizade.
Ao ilustrar o conceito de amizade é preciso saber, sublinha S. Francisco de
Sales, que seus tipos dependem dos bens que os amigos se comunicam:
- a amizade é falsa e inútil se os bens forem falsos e inúteis;
93 Carta au duc de Bellegarde, Annecy, 19 août 1614, in OEA XVI, 213.
94 Carta à madame Guillet de Monthoux, Annecy, 16 novembre 1616, in OEA XVII, 306.
95 Introduction à la vie dévote, in OEA III, 194-216.
79

4.5 Page 35

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- a amizade é verdadeira se os bens forem verdadeiros;
- a amizade é espiritual se os bens forem espirituais etc.
Os esclarecimentos sobre o conceito de amizade e suas possíveis catego-
rias evidenciam o sentido da comunicação obrigatória, que é muito importante na
direção espiritual. Os mesmos esclarecimentos, de algum modo, querem fazer-
nos pensar nos eventuais perigos, caso os bens comunicados não correspondes-
sem aos fins da amizade que deveria existir na direção espiritual.
“Escrevi-vos dias atrás, mas o meu coração, que vos ama ternamente, não pode
sentir-se satisfeito, se não vos der ao menos este delicado testemunho de afeto
escrevendo-vos o mais frequentemente possível”.96
“Sinto [...] um afeto tão intenso e tão sincero pela vossa alma que, se me per-
mitísseis, eu vos desafiaria a ter uma benevolência bastante grande para corres-
pondê-lo. Deus vos fará sabê-lo, o mais tardar depois desta vida mortal, porque
justamente diante d’Ele e de seus santos, darei as mais belas provas da santa
amizade que Ele me deu por vós, endereçando muito frequentemente os meus
humildes votos à sua eterna Bondade, para que encha o vosso coração do seu
amor mais perfeito”.97
“[...] não há no mundo homem que tenha um coração mais terno e mais sedento
de amizade do que o meu, ou que sinta mais dolorosamente do que eu as sepa-
rações [devido à morte]; e, contudo, dou tão pouca importância às vaidades da
nossa vida presente, que jamais me dirijo a Deus com tanto amor como quando
me feriu ou permitiu que fosse ferido”.98
Cheio de ciência e de prudência
Concluída a apresentação da primeira qualidade do diretor espiritual, ace-
nar-se-á rapidamente aos outros dois requisitos, ou seja, a ciência e a prudência.
Não por querer diminuir a sua importância em relação ao primeiro requisito. Pa-
rece, segundo uma convicção pessoal, que em relação a estes dois requisitos seja
suficiente dizer as coisas de sua exclusiva pertinência, sem repetir as que já foram
ditas anteriormente. Permanece firme a persuasão relativa a todos os requisitos de
96 Carta à mademoiselle de Bréchard, Annecy, [fin mai 1609), in OEA XIV, 164-165.
97 Carta à madame de Grandmaison, Annecy, 25 octobre 1612, in OEA XV, 283.
98 Carta à une Dame [sem indicar o local e a data], in OEA XXI, 33.
80

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um diretor espiritual: “deve estar cheio de caridade, de ciência e de prudência: se
lhe faltar uma das três, a questão se torna perigosa”.
“Estar cheio de ciência e de prudência” e “estar cheio de caridade”, sig-
nifica ser capaz de servir a/as pessoa/as em linha com as finalidades próprias da
direção espiritual salesiana. É a capacidade que permite ao diretor espiritual agir
no máximo respeito dos fins da direção espiritual, mas também das necessidades
individuais das pessoas que deve acompanhar. Antes de deter-me em cada um dos
dois requisitos do diretor espiritual, é necessário dizer em que sentido eles são
importantes.
Salvo raras exceções, toda solicitação de direção espiritual feita pelas pes-
soas a um diretor espiritual demonstra na quase totalidade dos casos que elas são
levadas pelo desejo de um significativo progresso espiritual. A aceitação de cada
solicitação pelo diretor espiritual abre diante dos interessados um horizonte novo
e um caminho inédito a percorrer, embora este início não os liberte de modo au-
tomático de seus problemas.
Observando o modo de agir de S. Francisco de Sales, aprende-se que a
tarefa da direção espiritual diante das pessoas interessadas é fazê-las caminhar
para o horizonte espiritual a alcançar e não resolver seus problemas e dificulda-
des. Em contato com as pessoas em direção espiritual, S. Francisco de Sales não
toma distância de seus problemas, mas se mostra ciente de que em certos casos,
dar toda a atenção aos problemas e às dificuldades que as afligem, poderia depois
tornar difícil encaminhar para a meta devida. As pessoas, sozinhas, nem sempre
percebem que, fixando-se excessivamente nas dificuldades a enfrentar e nos pro-
blemas a resolver, poderiam correr o risco de se verem num impasse; permane-
cendo bloqueadas num imobilismo psicológico, ver-se-iam bloqueadas também
no espiritual.
Um sábio conselho que lemos na Introdução à vida devota, dado repetidas
vezes a muitas pessoas, faz saber em que consiste o itinerário espiritual:
“Não nos perturbemos com nossas imperfeições, porque a nossa perfeição está
justamente em combatê-las, e não poderíamos combatê-las se não as perce-
bêssemos, nem vencê-las se não as encontrássemos. A vitória não está em não
experimentá-las, mas em não consenti-las; todavia sentir-nos atormentados por
elas não significa consenti-las”.99
99 Introduction à la Vie dévote, in OEA III, 27.
81

4.7 Page 37

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S. Francisco de Sales oferecera uma lição prática, convincente, à senhora
de Chantal:
“[...] louvo a Deus pela constância com que suportais as tribulações. Contudo,
ainda noto certa inquietude e um pouco de pressa, que impedem os últimos fru-
tos da vossa paciência. Com a vossa paciência, diz o Filho de Deus, salvareis as
vossas almas. O efeito da paciência é, portanto, possuir bem a própria alma; e,
quanto mais a paciência for perfeita, tanto mais a posse da alma torna-se com-
pleta e excelente. E a paciência é tão mais perfeita quanto mais estiver livre da
inquietação e da pressa. Queira Deus, portanto, libertar-vos desses dois impedi-
mentos, para que possais bem depressa estar libertada do outro. Todavia, tende
coragem, eu vos peço [...], tendes suportado as dificuldades da viagem apenas
por três anos, e já quereis o repouso. Recordai-vos de duas coisas. Primeira: que
os filhos de Israel permaneceram quarenta anos no deserto antes de chegarem
à terra da morada que lhes fora prometida, embora seis semanas fossem sufi-
cientes para fazer toda a viagem muito comodamente. E não lhes foi permitido
inquietar-se pelo fato de Deus obrigá-los a fazer tantos giros e conduzi-los atra-
vés de caminhos tão difíceis; e todos os que murmuraram, morreram antes de
chegar à meta. Segunda: que Moisés, o maior amigo de Deus entre aquela mul-
tidão, morreu no limiar da terra do seu repouso, contemplando-a com os olhos,
mas sem poder dela gozar. Ó, agradasse a Deus que não nos preocupássemos
tanto com as condições do caminho que percorremos, mas tivéssemos os olhos
fixos n’Aquele que nos conduz e em seu felicíssimo país para o qual nos guia!
Que nos deveria importar se caminhamos por desertos ou através dos campos,
quando Deus está conosco e caminhamos para o Paraíso?”.100
a) “Cheio de ciência”
Não é fácil entender antecipadamente o requisito de o diretor espiritual
“estar cheio de ciência” em vista do bem espiritual das pessoas que ele deve
servir, sabendo ainda que o verdadeiro guia espiritual é Deus. Fica-se realmente
desconcertado ao ouvir o juízo que o próprio S. Francisco de Sales expressou
sobre um sacerdote religioso, tido por ele como incapaz de guiar espiritualmente
as pessoas:
“Dados os limites de seus conhecimentos, ele tem uma discreta prática dos
casos de consciência; mas, dado que ele não tem aquele delicado discernimento
100 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 18 février 1605, in OEA XIII, 5.
82

4.8 Page 38

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que seria exigido, não percais tempo escutando seus conselhos. Podeis, porém,
confessar-vos com ele, tanto vós como os demais”.101
Quando sublinhamos que para um diretor espiritual “estar cheio de ciên-
cia”102 é condição sem a qual não pode realizar a sua missão de guia espiritual,
significa que suas possibilidades efetivas e a competência de acompanhar espiri-
tualmente são aquelas que lhe permitem agir sob a orientação de Deus.
Ninguém, porém, ousaria negar em S. Francisco de Sales a presença do
requisito “cheio de ciência”. Além do mais, não há provas de qualquer incompe-
tência sua na direção espiritual. Dele, causa maior admiração o contrário, não se
sabendo quando pôde estudar a Bíblia sistematicamente, para conhecê-la, interpre-
tá-la, aplicá-la com tanta agilidade; quando pôde ler os doutores da Igreja, os teó-
logos, os autores espirituais, para servir-se deles com surpreendente abundância.
Admira igualmente quando, poucos anos após iniciar o ministério da dire-
ção espiritual, o ouvimos apelar para sua experiência. Sabemos que como pessoa
humilde que era não teria sido capaz de ostentar os seus sucessos. Por outro lado,
não é novidade que ao falar de experiência, ele tinha em conta todo o ministério
sacerdotal que exercera desde o início em favor dos fiéis. Vemos o quanto se
sentia discípulo da escola da experiência pastoral, quando convida um de seus
dirigidos à constância em nutrir-se do sacramento da Eucaristia:
“Nos vinte e cinco anos desde que estou a serviço das almas, a experiência fez-
me tocar com a mão a virtude onipotente deste divino Sacramento que fortifica
os corações no bem, imuniza-os contra o mal, consola-os e, numa palavra,
diviniza-os neste mundo, naturalmente, desde que seja recebido com fé, pureza
e devoção convenientes”.103
101 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 25 juin 1608, in OEA XIV, 36.
102 S. Francisco de Sales falou especificamente dos riscos que a ciência pode causar quando não é
acompanhada da caridade e da humildade, ao receber a notícia de que um de seus padres, sobrinho
do bispo seu predecessor na diocese de Genebra, havia apostatado da Igreja católica unindo-se
à anglicana. “Ó, quanto é perigosa a ciência, por maior que seja, quando age sem a caridade e a
humildade! E quanto mais perigosa se torna quando é limitada e arrogante! O pobre jovem sempre
teve, como o sabeis, um espírito muito audacioso e sempre foi muito pouco amado”, Carta à la
mère de Chantal, [sans lieu], 22 novembre 1620, in OEA XXI, 178. Esta Carta é um fragmento da
Carta à la mère de Chantal, Annecy, 22 novembre 1620, in OEA XIX, 387-389. Sobre a dor que S.
Francisco de Sales experimentou pela decisão do sacerdote apóstata, cf. outras duas cartas escritas
no mesmo dia à amonseignuer Jean-François de Sales, son frère évêque nommé de Chalcédoine,
Annecy, 21 novembre 1620, in OEA XIX, 381-384. 384-397.
103 Carta au Duc de Bellegarde, Annecy, 24 août 1613, in OEA XVI, 57-58.
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4.9 Page 39

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Entre suas cartas de direção espiritual seria impossível encontrar respostas
apressadas, sem profundidade espiritual. Vendo o entusiasmo com que respondia
às cartas de seus filhos/as espirituais, tem-se muitas vezes a impressão de que ele
não tivesse outra coisa a fazer senão se ocupar deles. Só em raros casos ele ace-
nava à questão do tempo, que lhe impunha rapidez e brevidade nas respostas que
dava. Entre essas cartas, não faltam muitas delas cheias de sabedoria, próprias
dos bons pastores e guias espirituais ricos de experiência. Evoco rapidamente
duas situações:
“[...] vossa imaginação vos sugerira a ideia de uma perfeição absoluta à qual
vossa vontade desejava chegar; mas, assustada pela grande dificuldade, ou me-
lhor, pela impossibilidade de alcançá-la, sentia-se como aquela que está próxi-
ma do parto, mas não pode dar à luz. [...] Concedei-vos agora, portanto, uma
pequena pausa; [...]. Considerai como suspeitos todos os desejos que, segundo
o parecer das pessoas de bem, não podem ser realizados. Trata-se dos desejos
de uma perfeição cristã que pode ser imaginada, mas não praticada, e que mui-
tos podem ensinar com as palavras, mas ninguém sabe ensinar com os fatos”.104
“Eu vo-lo digo, Senhora, e vo-lo escrevo agora: não quero, em absoluto, uma
devoção fantástica, turbulenta, melancólica, introvertida e triste, mas uma de-
voção doce, suave, agradável, pacífica e, numa palavra, uma piedade extrema-
mente franca, que se faça amar por Deus em primeiro lugar, mas também pelos
homens”.105
b) “Cheio de prudência”
Vemos como lógico que a prudência, que para nós significa ser equilibrado,
não precipitado, cauteloso nos julgamentos ou nas avaliações, seja uma das três
qualidades fundamentais do diretor espiritual. Como consequência, não nos é
fácil perceber o sentido do pronunciamento de S. Francisco de Sales quando
diz: “Eu não sou muito prudente; e, ainda mais, a prudência é uma virtude que
não amo muito. Amo-a apenas por força, porque é necessária, antes muitíssimo
necessária. Prefiro proceder livremente, ao abrigo da Providência de Deus. De
fato, não sou absolutamente simples, mas amo a simplicidade de um amor indizí-
104 Carta à mademoiselle de Soulfour, Annecy, 22 juillet 1603, in OEA XII, 202-203.
105 Carta à Madame De Limojon, Annecy, 28 juin 1605, in OEA XIII, 59.
84

4.10 Page 40

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vel”.106 Esta consideração sobre a prudência não é fato isolado. Em seus escritos,
encontram-se outros momentos nos quais ele tem uma atitude crítica. Embora
pareça ser contra a prudência ele é, na verdade, apenas contra um determinado
tipo de prudência.
A prudência como tema destinado aos diretores espirituais não está pre-
sente em seus escritos. Este argumento, todavia, está presente quando ele acena
aos seus modos pessoais de percebê-la e vivê-la, ou quando instrui as Irmãs da
Visitação sobre o modo de agir em determinadas situações. Como consequência,
o diretor espiritual, para ter um confronto com o espírito de S. Francisco de Sales
do ponto de vista do requisito “estar cheio de prudência” deveria colocar-se pri-
meiramente em busca deste seu magistério e, depois, escutá-lo.107
Conhecemos os termos com que S. Francisco de Sales considerava o valor
da virtude da prudência através das intervenções feitas nos encontros de forma-
ção com as Irmãs da Visitação:
“[...] existem dois tipos de prudência, ou seja, a natural e a sobrenatural. Quan-
to à natural, é preciso mortificá-la, enquanto não é completamente boa, porque
nos sugere muitas considerações e previsões não necessárias, que mantêm os
nossos espíritos muito longe da simplicidade. A verdadeira virtude da prudên-
cia deve ser realmente praticada, enquanto é como sal espiritual, que dá gos-
to e sabor a todas as outras virtudes... [viver segundo o espírito da prudência
significa] ter uma confiança completamente simples que nos faça permanecer
tranquilos nos braços do Pai celeste [...]”.108
A distinção entre prudência natural e sobrenatural é expressa, algumas ve-
zes, como prudência segundo a carne e segundo o espírito.
Fazendo agora uma leitura de cada uma das situações verificadas no inte-
rior do Instituto da Visitação, queremos evocar algumas delas em que S. Fran-
cisco de Sales exprime suas reservas pelo tipo de prudência. Um primeiro fato
refere-se à admissão ou não admissão à profissão religiosa de uma candidata com
problemas relacionados ao equilíbrio emocional. Neste caso, madre de Chantal
106 Carta à la baronne de Chantal, Viuz-en-Sallaz, 24 juillet 1607, in OEA XIII, 303-304.
107 Aqui, merece atenção: Fragments sur les vertus cardinales et morales 1614 e, de modo parti-
cular: Comme l’amour imploye les vertus cardinales et premierment la prudence, in OEA XXVI,
44-54.
108 Douziesme Entretien. De la simplicité et prudence religieuse, in OEA VI, 221-222.
85

5 Pages 41-50

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5.1 Page 41

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consultou um padre jesuíta, amigo de S. Francisco de Sales, submetendo depois
o resultado ao juízo do Fundador. Qual foi o seu parecer?
“Compartilho plenamente o vosso parecer e o do nosso bom P. Binet [...]. Uma
jovem pode ser de índole má o quanto se queira, mas, quando nas linhas essen-
ciais de sua conduta ela age segundo a graça e não segundo a natureza, merece
ser acolhida com amor e respeito como templo do Espírito Santo. Lobo por na-
tureza, mas ovelha por graça [...]; eu temo tremendamente a prudência natural
nos juízos sobre as coisas da graça; e a prudência da serpente, se não estiver
unida à simplicidade da pomba do Espírito Santo, é totalmente venenosa”.109
Outros dois fatos referem-se à decisão tomada por ele como fundador, com
que pediu ao Instituto um sacrifício de sabor heroico:
“Será, agora, meu firme parecer que não se deixe de admitir na Congregação
as filhas enfermas, excetuando-se as enfermidades que são expressamente re-
cordadas nas Regras. Mas não é essa a enfermidade desta filha que não pode
fazer uso das pernas, porque, mesmo sem as pernas, ela pode realizar todos
os exercícios essenciais da Regra: obedecer, rezar, cantar, observar o silêncio,
costurar, comer e, sobretudo, ter paciência com as Irmãs que a transportam
quando não estiverem logo dispostas e prontas a fazer este gesto de caridade.
Será preciso, de fato, que suporte muitas vezes as que a transportarão se estas
não forem, por sua vez, transportadas pelo espírito de caridade. Se, portanto,
ela não for aleijada no coração, não vejo razão que impeça a sua admissão; e
mais, amo esta jovem filha com toda a minha alma”.110
Era do mesmo teor o seu parecer dado a outra superiora do Instituto:
“A jovem que tem um braço curto deve ser admitida se não tiver o cérebro
curto, porque tais deformidades exteriores não são nada aos olhos de Deus”.111
Acrescente-se outro fato a estes, doloroso, da história da Visitação. Ele fala
das dificuldades causadas às Irmãs da Visitação por alguns habitantes de Nevers,
depois de as Irmãs terem ali se estabelecido há pouco. Após a calorosa recepção
das Irmãs à sua chegada, o tempo de serenidade durou pouco. Uma hostilidade
109 Carta à la mère de Chantal à Paris, Annecy, 5 ou 6 juillet 1620, in OEA XIX, 264-265.
110 Carta à la mère de Chantal à Bourges, Paris, 19 janvier 1619, in OEA XVIII, 346.
111 Carta à la mère de Montoux, supérieure de la Visitation de Nevers, Annecy, 9 novembre 1620,
in OEA XIX, 379.
86

5.2 Page 42

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aberta contra as Irmãs, que explodiu com grande intensidade, chegou a tal ponto
que não havia mais novas vocações. Vejamos de quanto espírito evangélico estão
embebidas as palavras de encorajamento de S. Francisco de Sales escritas às Ir-
mãs, convidando-as a terem confiança em Deus:
“Louvo a Deus [...] pelo fato desta pobre e pequena comunidade de servas da
divina Majestade ser muito caluniada. É certo que deploro os pecados dos calu-
niadores, mas a afronta que recebestes é um dos melhores sinais da aprovação
do céu. É para que nós pudéssemos entender este segredo: de quantos modos o
nosso próprio Salvador foi caluniado! [...]”.112
“Como é doloroso [...] observar os efeitos da prudência humana nas almas so-
bre as quais me escreveis! [...]. Ó, como tudo isso está longe da pura caridade,
que não é invejosa, não se vangloria e não busca o próprio interesse! [...]. Esta
prudência é contrária àquele doce repouso que os filhos de Deus devem encon-
trar na Providência celeste”.113
Os fatos e as decisões que estamos revendo seguem o modo de S. Francis-
co de Sales entregar-se a Deus apesar das sugestões que poderiam vir do “bom-
senso”. Eis como se expressou sobre este seu modo de agir:
“[...] tomei algumas decisões muito importantes: repousar inteiramente em
Deus, seguir tranquilamente a sua Providência e não ter grande consideração
pela prudência natural, especialmente nas coisas que dependem da graça celes-
te como são as vocações de nossas Irmãs, a ereção das casas, o seu governo”.114
4.3. Francisco de Sales, diretor espiritual carismático
Inspirando-se no magistério e no testemunho de S. Francisco de Sales, os
diretores espirituais não deveriam ter dificuldade em perceber que são chamados
por Deus não como simples “indicadores do caminho”. Antes de propor itinerá-
rios de santidade para os outros percorrerem, deveriam saber que, segundo a es-
112 Carta à la mère de Montoux, supérieure de la Visitation de Nevers, Annecy, mars-mai 1621, in
OEA XX, 65.
113 Carta à la mère de Montoux, supérieure de la Visitation de Nevers, Annecy, 24 juillet 1621, in
OEA XX, 109.
114 Carta à une Supérieure de la Visitation, [1621-1622], in OEA XXI,130-131.
87

5.3 Page 43

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piritualidade cristã, esses itinerários existem para serem trilhados também pelos
próprios diretores espirituais.
Esta exigência impõe-se pela lógica do significado da santidade. Ela nos
une a Cristo no viver os seus mistérios, no fazer nossas as suas atitudes, os seus
pensamentos, os seus comportamentos. Iniciar o itinerário de santidade quer dizer
modelar toda a nossa vida na vida de Cristo sob a guia do Espírito Santo. Como
consequência, a medida da santidade é dada pela estatura que Cristo alcança em
nós. A santidade não é, principalmente, fruto do esforço humano embora assim
possa parecer. É Deus que em Cristo nos faz santos mediante a ação do Espírito
Santo que em nós opera e nos transforma.
Para entender S. Francisco de Sales homem batizado, crismado, ordenado
sacerdote e bispo, é necessário ouvi-lo falar sobre a sua relação pessoal com Deus
e como deveria ser a dos outros:
“Deus seja sempre o vosso coração, o vosso espírito e o vosso repouso [...]”.115
“[...] pertencemos a Deus e a Deus somente porque, fora d’Ele e sem Ele, não
queremos nada, nem a nós mesmos que, fora d’Ele e sem Ele, somos verda-
deiros nada”.116
“A Deus, portanto, pertencemos para sempre, sem fim, sem medida e sem re-
servas”.117
“[...] Quando acontecerá que busquemos tão somente a Deus? Ó, quão afortu-
nados seremos quando chegarmos a esse ponto! Então, teremos em todos os
lugares o que procuramos, e procuraremos em todos os lugares o que temos.
Deus vos faça crescer sempre mais no seu puro amor [...]”.118
O adjetivo “carismático”, no título deste parágrafo, em relação a S. Fran-
cisco de Sales diretor espiritual significa, segundo o sentido teológico da palavra,
favorecido por um dom especial de Deus para servir as pessoas em seu itinerário
espiritual. Ninguém, nem por iniciativa própria nem pelo mérito de dons naturais,
pode ser carismático ou mais carismático. No caso de S. Francisco de Sales, con-
115 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, 21 novembre 1604, in OEA XII, 389.
116 Carta à la baronne de Chantal, Annecy, fin avril ou 1er mai 1607, in OEA XIII, 287.
117 Carta à la baronne de Chantal, Thonon, 7 juillet 1607, in OEA XIII, 296.
118 Carta à la mère de Blonay, supérieure de la Visitation de Lyon, Annecy, 2 février 1622, in OEA
XX, 265.
88

5.4 Page 44

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tribuíram ao mesmo tempo para sua grandeza de diretor espiritual os seus dotes
naturais, as virtudes morais adquiridas, a graça que lhe foi concedida por Deus
para a missão de pastor e diretor espiritual.
Consideramo-lo diretor espiritual carismático no sentido da concepção da
cura de almas que se tem desde os tempos de S. Gregório Magno. Este, na Regra
Pastoral, ocupa-se não da direção espiritual como tal, mas dos homens chama-
dos ao ministério pastoral que, em relação ao próprio ministério, deveriam estar
cientes de “que o governo das almas é a arte das artes [“ars artium”]”.119 O nível
elevado de qualidades no exercício deste ministério depende justamente da san-
tidade evangélica de cada pastor. O caráter carismático do ministério de direção
espiritual de S. Francisco de Sales, pensemos, foi autorizadamente confirmado
com o juízo que o definia “sapientíssimo diretor de almas”.120
Tendo inteligência elevada e personalidade genial, S. Francisco de Sales
pôde obter sucessos na direção espiritual graças à sua profunda fé, ao seu intenso
amor por Deus, à sua reta consciência e ao seu zelo apostólico dinâmico. Ser
diretor espiritual carismático significa, nele, ter sido capaz de fazer com que as
pessoas sentissem em suas vidas a presença do Deus-Amor.
O adjetivo “carismático”, no caso de S. Francisco de Sales diretor espiri-
tual, também mostra claramente outra consequência. O diretor espiritual nunca
será carismático só por escrever livros de direção espiritual apreciados pelos lei-
tores. É necessário que, como homem de Deus, ele entre em contato direto com
as pessoas, ajudando-as, uma a uma, segundo suas reais possibilidades de cresci-
mento espiritual.
A figura de S. Francisco de Sales diretor espiritual carismático não permite
que o seu modo de dirigir espiritualmente e o seu sucesso nesse campo sejam
interpretados como capacidade de levar as pessoas para o seu lado, ou de suscitar
estima e simpatia em relação a si, nem impressionar os outros. Os motivos são
muitos, mas o principal é expresso nesta sua confidência:
119 “Ars est artium regimen animarum” é a qualificação do ministério dos eclesiásticos com que
Gregório Magno nos introduz na Parte Primeira, intitulada “Requisitos do pastor de almas” da sua
Regula Pastoralis.
120 Com o Breve Apostólico “Dives in misericordia Deus” de 16 de novembro de 1877, Pio IX ao
declarar S. Francisco de Sales Doutor da Igreja, ressaltava que há tempo os Papas bebiam da sabe-
doria do novo doutor: “Bento XIV, de santa memória, concordando com seus Predecessores, não
hesitou em afirmar que os livros do Bispo de Genebra eram escritos com doutrina divinamente re-
cebida; bebendo do seu pensamento resolveram questões difíceis, e o definiu sapientíssimo diretor
de almas”, OEA I, p. XVII-XVIII.
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5.5 Page 45

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“Uma quantidade de almas recorre a mim, para saber como é preciso servir a
Deus. Ajudai-me muito com as vossas orações, porque, quanto ao ardor, sinto-o
mais forte do que nunca; mas, vede, lançam-se em meus braços e sugam-me
o seio muitos filhos, de tal forma que, se o amor de Deus não me revigorasse,
perderia toda capacidade de nutri-los”.121
S. Francisco de Sales é tido por muitas pessoas como exemplo de bon-
dade e mansidão. Para interpretar corretamente essa sua característica não se
deve esquecer ou calar-se sobre a presença de alguns momentos em sua vida nos
quais precisou assumir uma posição clara para exprimir a própria desaprovação
de modo decidido. Ele sempre sabia apresentar essas reações como necessidade
para advertir as pessoas sobre o desacordo que fora criado entre sua vida e o
Evangelho ou para defender a glória de Deus e o bom nome da Igreja.
Para poder apreciar estes seus modos decididos, justamente porque era di-
retor espiritual carismático, seria útil reler a carta inteira que ele escreveu a uma
comunidade religiosa que precisava urgentemente de renovação espiritual. Desta
carta, apresento o trecho que permite vê-lo quando reage a uma desordem em
contraste com o espírito religioso:
“[...] foi-me referido que há em vossa casa pequenas pensões pessoais e pe-
quenas propriedades das quais as doentes não gozam de igual maneira, que as
sadias recebem suplementos especiais de alimentos e de roupas, do que não
têm necessidade, e que suas comodidades e recreações não são muito devotas.
Foi-me referido tudo isso e muitas outras coisas que são suas consequências
[...]. Minhas boas irmãs! Deveis limpar a vossa casa de todos os defeitos que,
sem dúvida, são contrários à perfeição da vida religiosa”.122
A esta história, acrescenta-se um caso incomum relativo a uma professa
num mosteiro de clausura que ali estava não por vocação, mas por imposição dos
pais. A leitura da Introdução à vida devota encorajou-a a procurar conhecer pes-
soalmente o novo Instituto de vida religiosa, fundado por S. Francisco de Sales.
Chegando à Visitação para o primeiro contato, suas ligações prolongaram-se por
oito anos. As dificuldades para obter a dispensa pontifícia dos votos anterior-
mente emitidos foram a causa principal, mas não a única, pela qual não se tornou
121 Fragments de Lettres à sainte Jeanne-Françoise de Chantal 1604-1622, in OEA XXI, 182.
122 Carta aux Religieuses du Monastère des Filles-Dieu, Sales, 22 novembre 1602, in OEA XII, 139.
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5.6 Page 46

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membro efetivo do Instituto da Visitação. Ela é recordada na história do Instituto
pela colaboração dada para abrir novas casas da Visitação, pelas interferências
na vida dessas casas, pelas condições que projetava apresentar caso pudesse ser
acolhida no Instituto. Ao mesmo tempo, estava combatendo, com intermináveis
processos judiciais, uma causa em vista de melhor tratamento econômico que
desejava obter dos próprios familiares. A reação de S. Francisco de Sales chegou
depois de muitos anos de paciência.
“Quantas duplicidades, quantos subterfúgios, quantas palavras seculares e,
talvez, mentiras, quantas pequenas injustiças, edulcoradas e bem encobertas,
quantas bem camufladas calúnias ou ao menos semicalúnias são usadas na con-
fusão dos processos e dos procedimentos legais! [...] Deixai, deixai aos mun-
danos o seu mundo! Devendo apenas passar por este mundo, do que precisais?
Dois mil escudos, e até menos, serão mais do que suficientes para uma filha que
ama a nosso Senhor crucificado [...]. Minha filha caríssima: eu bem sabia que a
vossa piedade é tão piedosamente humana, que serve de trampolim para o amor
próprio. Na prática, não amamos as cruzes, se não forem de ouro e cravejadas
de pérolas e esmeraldas. É uma humilhação muito rica, embora devotíssima e
admiravelmente espiritual, ser considerada como fundadora ou ao menos ben-
feitora numa comunidade religiosa. Nestas condições, Lúcifer teria aceitado
permanecer no céu [...]”.123
Deve-se atribuir um valor carismático também às respostas dadas a uma
noviça que, encontrando-se distante alguns quilômetros de S. Francisco de Sales,
queria tê-lo como diretor espiritual:
“[...] quando em vós surgirem dúvidas quanto ao caminho que começastes a
percorrer, recomendo-vos a não ter-me como referência, porque eu estou tão
distante de vós, que não vos posso assistir, obrigando-vos a afadigar-vos por
longo tempo. Não faltam, certamente, padres espirituais que vos possam aju-
dar: recorrei a eles com confiança. Não o digo pelo desejo de não receber vos-
sas cartas que, ao contrário, me dão muita consolação [...]”.124
“[...] peço-vos para crer fielmente que a ideia que formastes de não querer
receber qualquer conforto de Deus, a não ser através de minha pessoa, é pura
123 Carta à madame des Gouffiers, Annecy, commencement de mai 1621, in OEA XXI, 72-73.
124 Carta à la sœur de Soulfour, novice au monastère de Filles-Dieu, Annecy, 16 janvier 1603, in
OEA XII, 169-170.
91

5.7 Page 47

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tentação daquele que procura induzir-nos a fixar a nossa atenção em objetos
distantes para impedir-nos de usar os que temos por perto [...]. Não se devem
desejar coisas impossíveis e incertas. Não basta crer que Deus nos possa ajudar
com todos os tipos de instrumentos; é preciso crer também que Ele não quer
usar, para ajudar-nos, os que colocou longe de nós, mas os que estão perto de
nós. Enquanto permanecestes assim, não desaprovaria vosso modo de pensar;
mas agora, devo dizer que está totalmente fora de lugar”.125
5. Conclusão
Embora considerando que a experiência da direção espiritual de S. Fran-
cisco de Sales é muito pessoal e limitada a um determinado número de pessoas,
e que faltam estudos profundos sobre este âmbito da sua atividade, creio que se
possa colocar um duplo questionamento:
- em que medida ele indicou o modo de fazer direção espiritual?
- em que medida a sua ação e o seu magistério neste âmbito do ministério
da Igreja constituíram ou não um divisor de águas na história da direção
espiritual, a ponto de poder falar de antes e depois de S. Francisco de
Sales?
Segundo o que recolhemos durante a leitura da pessoa do diretor espiritual
em S. Francisco de Sales, creio que é lícito fazer uma hipótese sobre a sua contri-
buição para a história da direção espiritual, mesmo que ainda seja preciso esperar
muito tempo para se ter uma resposta fundamentada.
Uma contribuição séria para o conhecimento da figura de S. Francisco de
Sales diretor espiritual poderia ser dada pela leitura completa da sua personalida-
de do ponto de vista psicológico. Infelizmente, essa leitura não foi feita até agora.
O material para tais pesquisas, sem dúvida, seria consistente.
Mesmo não tendo a competência exigida para tal leitura, permito-me fa-
zer, como observador atento, algumas considerações gerais, para sustentar a ideia
desta chave de leitura de S. Francisco de Sales diretor espiritual.
Quanto ao seu espírito e estilo de relação com as pessoas, não só com
aquelas em direção espiritual, nota-se logo que essas relações distinguiam-se por
afetos intensos e estáveis. Como confirmação deste juízo, seria possível citar os
125 Carta à mademoiselle de Soulfour, Annecy, [avril-mai] 1603, in OEA XII, 181.
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seus modos de colocar-se diante de pessoas simples e de pessoas dos mais eleva-
dos níveis da escala social.
Jamais uma atitude de superioridade, nem de submissão psicológica, nem
de insegurança. S. Francisco de Sales não era alguém que, com seus modos de
viver e agir, estando continuamente em contato com as pessoas e seus problemas,
muitos e inéditos, copiasse dos outros os seus modos de viver e agir. Ele tinha
uma personalidade nada frágil. Distinguiu-se sempre pelo modo de ser dinâmico
e capaz de equilíbrio interior. É o exemplo de uma personalidade propensa a
seguir ao mesmo tempo os sonhos e a realidade da vida concreta; uma personali-
dade atenta à verdade cujo autor é Deus-Amor; uma personalidade atenta ao bem
espiritual do próximo.
S. Vicente de Paulo, em sua deposição no processo de beatificação de S.
Francisco de Sales, disse:
“Repassando no meu espírito as palavras do Servo de Deus, experimentei tal
admiração que era levado a ver nele o homem que melhor reproduziu o Filho
de Deus vivo na terra. Aquilo que potenciava a minha admiração era ver um
personagem tão grande e tão considerado como ele, ocupado nos negócios mais
difíceis de que obrigatoriamente devia ocupar-se, estar disposto a entregar-se, e
por longo tempo, a todas as pessoas, sem se preocupar com suas condições hu-
mildes, não economizando nenhum esforço enquanto não as tivesse satisfeito,
porque ele respeitava a tal ponto a paz e a tranquilidade da alma”.126
126 Roger Devos (ed.), Saint François de Sales par Les Témoins de sa vie. Textes extraits des Procès
de béatification choisis et présentés par…, Gardet Éditeur Annecy 1967, 263-264.
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