2014_BoscoT_Dom_Bosco_Uma_biografia_nova_POR_edb


2014_BoscoT_Dom_Bosco_Uma_biografia_nova_POR_edb

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Terésio Bosco
Dom Bosco

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DOM BOSCO
uma biografia nova
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Terésio Bosco
DOM BOSCO
uma biografia nova
Edição digital
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2014© Terésio Bosco
Título da obra original: Don Bosco: una biografia nuova
Editora Elle Di Ci,Turim-Leumann, Itália
Tradução: Pe. Hilário Passero
Revisão: Cristina Kapor
Projeto gráfico e capa: Gledson Zifssak
Editoração eletrônica: Elaine Tozetto
Dad BOSCO, Terésio
B741 Dom Bosco: uma biografia nova (edição digital)
Editora Dom Bosco, Brasília, 2014.
ISBN: 978-85-7741-265-5
1. João Bosco, Santo, 1815-1888
2. Santos cristãos
3. Biografia
I.Título
CDD 232.91
Todos os direitos reservados à
EDB - Editora Dom Bosco
SHCS CR - Quadra 506
Bloco B - Salas 65/66 - Asa Sul
70350-525 Brasília (DF)
www.edbbrasil.org.br
e-mail: atendimento@edbbrasil.org.br
Telefone: (61) 3214-2300
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Datas significativas da vida de Dom Bosco
1815 – (16 de agosto) João Melchior Bosco nasce na região dos
Becchi, norte da Itália.
1817 – Com apenas 2 anos perde o pai.
1825 – Vê sua missão prefigurada em um “sonho”.
1826 – Faz a Primeira Comunhão.
1835 – Entra no seminário.
1841 – (5 de junho) É ordenado sacerdote, em Turim.
1841 – (8 de dezembro) Começa, com uma aula de catequese, o
seu apostolado juvenil.
1845 – Inicia a escola noturna.
1846 – (12 de abril) Estabelece-se em Valdocco, futura Casa-mãe,
em Turim.
1847 – Abre um segundo oratório no bairro de Porta Nuova.
1851 – (2 de fevereiro) Primeiros colaboradores vestem a batina.
1853 – Abre no Oratório as primeiras escolas profissionais, funda
a primeira banda musical e lança Leituras Católicas, sua
primeira revista popular.
1854 – (26 de janeiro) Chama os seus auxiliares de “salesianos”.
1854 – (2 de outubro) Encontra Domingos Sávio.
1855 – (25 de março) Primeiro passo da Congregação Salesiana:
seminarista Miguel Rua faz votos com Dom Bosco.
1856 – (25 de novembro) Morre Margarida Occhiena, mãe de
Dom Bosco.
1857 – (9 de março) Morre Domingos Sávio, aos 15 anos.
1858 – Visita o Papa, em Roma, pela primeira vez.
1859 – (9 de dezembro) Comunica a decisão de fundar a
Congregação Salesiana.
1861 – Abre a primeira tipografia.
1862 – (14 de maio) Os primeiros 22 salesianos fazem a profissão
religiosa.
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1863 – Abre a primeira obra fora de Turim, em Mirabello
Monferrato.
1864 – (23 de julho) A Congregação Salesiana recebe o primeiro
reconhecimento da Santa Sé.
1864 – (outubro) Encontra Maria Mazzarello em Mornese.
1868 – (9 de junho) A Basílica de Maria Auxiliadora, em Turim, é
solenemente consagrada.
1870 – (junho) Nasce, em Valdocco, a “Sociedade dos antigos
alunos do oratório salesiano”, que vai dar origem à
Associação dos Ex-alunos de Dom Bosco.
1872 – (5 de agosto) É fundado, em Mornese, o Instituto das
Filhas de Maria Auxiliadora (FMA).
1874 – A Santa Sé aprova as Constituições Salesianas.
1875 – (11 de novembro) A primeira expedição missionária
salesiana parte para a Argentina.
1876 – (9 de maio) A Santa Sé aprova a Associação dos
Cooperadores Salesianos.
1877 – (agosto) Publica o primeiro número do Boletim Salesiano.
1877 – (5 de setembro) Realiza-se o primeiro Capítulo Geral dos
salesianos.
1881 – (14 de maio) Morre Madre Maria Domingas Mazzarello.
1883 – (fevereiro-maio) Visita a França.
1883 – (14 de julho) Tem início em Niterói a obra salesiana no
Brasil.
1887 – Em Roma, é consagrada a Basílica do Sagrado Coração.
1888 – Dom Bosco morre em 31 de janeiro, com 72 anos.
1890 – É aberto o processo de canonização de Dom Bosco.
1929 – Dom Bosco é proclamado beato.
1934 – (1o de abril) Dom Bosco é declarado santo.
1946 – (24 de maio) Dom Bosco é declarado patrono dos editores
católicos.
1988 – Primeiro centenário da morte de Dom Bosco.
1988 – (2-4 de setembro) O Papa João Paulo II visita os lugares de
Dom Bosco: Becchi, Chieri, Valdocco.
1989 – O Papa proclama oficialmente Dom Bosco “pai e mestre
da juventude”.
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Este livro: como e por quê
No início de 1978, o padre João Raineri, do Conselho Superior
dos Salesianos, e a direção da Editora Elle Di Ci,1 de Turim, pe-
diram-me que escrevesse uma vida de Dom Bosco, popular e
agradável na forma, respeitosa e séria na substância.
Partiam ambos de uma constatação preocupante: nos últimos
quinze anos, os escritos sobre Dom Bosco iam-se dividindo cada
vez mais em dois setores:
– no primeiro, livros que continuavam a contar “para os meni-
nos e o povo simples” os fatos mais belos da vida de Dom Bosco,
mas sem levar em conta quer os estudos históricos gerais sobre o
tempo de Dom Bosco, quer os específicos sobre a sua figura; tais
livros, muito difundidos, têm certamente o mérito da divulgação,
mas acabam por amesquinhar a figura gigantesca de Dom Bosco,
reduzindo-a a “coisa para crianças” ou a “material para revistas em
quadrinhos”;
– no segundo setor, livros que estudavam os aspectos fundamen-
tais de Dom Bosco e do seu tempo, mas dando por sabidos e co-
nhecidos os acontecimentos, as narrações e os fatos sobre os quais
se detinham unicamente para “demitizar” alguns episódios particu-
lares, os quais se apoiavam em testemunhos dúbios ou fantasiosos.
Assim, entre “lindas fábulas” e “estudos críticos”, Dom Bosco cor-
ria o duplo risco de ser parcamente conhecido e de aparecer como
um vulto recheado de lendas duvidosas.
Este livro tenta um terceiro caminho.
Narra a vida de Dom Bosco, mas sem nada pressupor. Leva em
conta tudo quanto está na base dessa linda, aventurosa e dramática
história do padre santo de Valdocco.
1 Elle Di Ci, L.D.C., isto é, Livraria Doutrina Cristã.
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Leva, portanto, em consideração:
os testemunhos autógrafos de Dom Bosco, isto é, muitas pági-
nas escritas de próprio punho e conservadas no Arquivo Salesiano
(especialmente o manuscrito Memórias do Oratório de São Fran-
cisco de Sales: 180 páginas de caderno, escritas por Dom Bosco em
1873 e publicadas sob os cuidados do padre Eugênio Ceria somente
em 1946);
– o incontável número de testemunhos dos seus alunos e cola-
boradores, prestados em grande parte sob juramento nos proces-
sos de beatificação de Dom Bosco (muitos dos quais confluíram
para os 19 volumes das Memórias Biográficas compiladas por João
Batista Lemoyne, Ângelo Amadei e Eugênio Ceria);
os estudos sérios sobre Dom Bosco feitos nos últimos vinte
anos (por Stella, Desramaut, Wirth, Valentini, Molineris...), os quais
precisam, enquadram, completam, algumas vezes podam, mas sem
nunca destruir ou desvalorizar os testemunhos sobre os quais fir-
memente se baseia a narração da história de Dom Bosco;
– os estudos importantes feitos sobre a história da Sociedade,
do Estado e da Igreja do século XIX.
Tive a dita de escrever a parte central deste livro ao lado do padre
Pedro Stella e do padre Eugênio Valentini, que tiveram a bondade de
ler e corrigir os originais à medida que iam ficando prontos. Pude
igualmente trocar ideias sobre alguns pontos fundamentais (como
o capítulo 26), recebendo deles preciosas sugestões. Os originais
foram depois relidos pelo padre Carlos Fiore, que me aconselhou
relativamente à estruturação final.
Agradeço cordialmente a esses meus irmãos. Mas não entendo,
em absoluto, debitar às suas contas eventuais imprecisões ou dis-
cutíveis opiniões.
Este livro pode ser julgado de muitas maneiras.Todas elas muito
legítimas. Só posso garantir que me custou um grande esforço e a
maior dedicação.
Desejo que seja, para todos, um encontro jubiloso e empenha-
tivo com Dom Bosco e, para muitos, o que foi também para mim:
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um auxílio para voltar à “terra santa” de Valdocco, ao clima em que
viveram Dom Bosco, padre Rua, padre Cagliero, Domingos Sávio,
José Buzzetti..., quando, sob os olhares de Nossa Senhora, germina-
vam, na pobreza e na simplicidade, as grandes intuições, as grandes
diretrizes e as grandes realizações da obra salesiana.
Terésio Bosco
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O pequeno migrante
Foi de noite. Na cozinha. Com o pão da ceia mastigaram-se pala-
vras amargas. Palavras que fazem mal...
Antônio viu João com o mesmo livro ao lado do prato e levan-
tou a voz:
– Eu ainda jogo esse livro no fogo.
A mãe, Margarida, relembrou o acordo feito:
– João trabalha como os outros. Se depois quiser ler, o que é que
você tem que ver com isso?
– Tenho que ver, sim senhora. Porque sou eu que toco esta joça
para a frente. Dou um duro danado na roça e não tenho nenhuma
vontade de sustentar um senhorzinho. Nem se irá colocar na vida,
deixando a gente a mastigar polenta.
A reação de Joãozinho foi violenta: palavras não lhe faltavam;
nem era de oferecer a outra face. Antônio, porém, foi descendo o
braço nele...
José olhava espantado. A mãe tentou separá-los. O certo é que
João apanhou tanto quanto, ou mais, que de outras vezes. Seus 12
anos não podiam competir com os 19 do meio-irmão.
Na cama chorou. Mais de raiva que de dor. No quarto ao lado,
chorou também a mãe, que nessa noite certamente não dormiu.
Pela manhã, Margarida já tinha a decisão. Chamou o filho e
disse-lhe as palavras mais tristes de sua vida:
– Olhe, Joãozinho, é melhor que você deixe esta casa. Antônio
não pode mais vê-lo. Um dia é capaz de machucá-lo.
– E para onde é que eu vou, mamãe?
João sentia a morte no coração. Margarida também.
Falou ao filho de algumas propriedades na região de Moriondo e
de Moncucco:
– Lá me conhecem. Alguém lhe dará trabalho. Ao menos por uns
meses. Depois se verá.
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Uma sacola e a cerração
Durante o dia preparou-lhe uma trouxinha: camisas, os dois li-
vros, pão. Era inverno. Fevereiro. Gelo e neve em todos os cami-
nhos e colinas...
No dia seguinte, bem cedo, João partiu. A mãe, da porta, ficou a olhar
e acenar para o seu pequeno migrante até que a neblina o engoliu...
Procurou trabalho junto às famílias que a mãe lhe indicara. Tra-
balho para meninos não havia... E ao chegar a tarde, não só acabara
o pão. Também a esperança. Faltava tentar nos Moglias. “Pergunte
pelo senhor Luís”, dissera a mãe. No portão que dava para o terreiro,
parou. Um velho o estava fechando.Vendo o menino, disse:
– Que deseja?
– Trabalho.
– Oh! Já trabalha! Muito bem!
E continuou a puxar o pesado portão para trancá-lo.
João catou as últimas migalhas de coragem e:
– Preciso falar com o senhor Luís.
Entrou. A família estava perto da varanda e preparava o vime
para amarrar as videiras. Luís Moglia, agricultor, 28 anos, ficou sur-
preendido.
– Procuro o senhor Luís Moglia.
– Sou eu.
– É minha mãe que me manda. Disse para vir aqui trabalhar no
estábulo.
– Mas por que manda você sair de casa assim tão pequeno? Quem
é sua mãe?
– Margarida Bosco. Meu irmão Antônio me maltrata. Ela então me
disse para vir aqui procurar serviço.
– Mas, meu pobre menino, estamos no inverno. E nós só pegamos
ajudantes de estábulo no fim de março. Precisará ter paciência e...
voltar para casa.
Além de cansado, Joãozinho se sentiu arrasado. E caiu em um
pranto copioso...
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– Me aceitem, por favor! Não precisam me pagar, mas não me
mandem para casa... Olhem! – disse desesperado. – Eu vou sentar
aqui no chão. E daqui não sairei. Façam de mim o que quiserem,
mas embora eu não irei...
Depois, chorando, se pôs a ajuntar vimes e a limpá-los.
Dona Doroteia, jovem mãe de 25 anos, enterneceu-se:
– Fique com ele, Luís. Ao menos por uns dias.
Também Teresa, 15 anos, irmã caçula de Luís, encarregada de
cuidar das vacas, sentiu pena:
– Eu já estou bastante crescida. Posso trabalhar na roça com vo-
cês. Para o estábulo, o menino servirá muito bem.
Foi assim que João Bosco, em fevereiro de 1827, começou a
vida de empregadinho de estábulo. Os Moglias eram uma família
de abastados camponeses, embora todos dessem duro de sol a sol.
Trabalhavam a terra, isto é, os vinhedos e os campos. Cuidavam
de bois e de vacas. Oravam juntos e, de noite, ao redor do fogão,
a família rezava o Terço. Aos domingos, Luís levava todos à igreja
para a missa celebrada em Moncucco pelo padre Francisco Cottino.
O trabalho de João no estábulo não era algo humilhante nem
excepcional. Nos sítios (cascine)12dos arredores, havia em fins de
março dezenas desses pequenos empregados como ele. Era o ca-
minho normal para tantos rapazes de famílias pobres. Pela festa
da Anunciação (a 25 de março, naqueles tempos) os patrões pas-
savam pelos povoados ou pelos mercados para contratar esses jo-
vens trabalhadores sazonais, dando-lhes o mesmo tratamento: oito
meses de trabalho duro (abril-novembro) em troca de cama, comi-
da e 15 liras para roupa.
Mas o empregado João Bosco era muito diferente dos outros. Era
apenas um menino (11 anos e meio). Sobretudo, tivera um sonho.
Um sonho verdadeiro. Sonhado de noite. Com os olhos fechados.
Um sonho que ele mesmo contou:
1 Cascina (cascine, no plural) é o centro ou casa-colônia de uma propriedade agropastoril, misto de
fazenda, sítio e quinta (N.T.).
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Um sonho que marca o futuro
Aos 9 anos tive um sonho que me ficou profundamente gravado na
memória. Por toda a vida.
No sonho pareceu-me estar perto de casa, numa área bastante espaçosa,
onde brincava uma multidão de meninos. Alguns riam, não poucos
blasfemavam. Ao ouvir aquelas blasfêmias, lancei-me imediatamente no
meio deles, tentando, com socos e palavras, fazê-los calar.
Nesse momento apareceu um Homem venerando, nobremente vestido.
Seu rosto era tão luminoso que eu não conseguia fixá-lo. Chamou-me pelo
nome e disse:
– Não com pancadas,mas com a mansidão e a caridade é que deverá ganhar
esses seus amigos. Ponha-se logo a instruí-los sobre a feiura do pecado e a
preciosidade da virtude.
Confuso e assustado, respondi que eu era um menino pobre e ignorante,
incapaz de lhes falar de religião. Naquele instante, os meninos, parando de
brigar e gritar, juntaram-se ao redor do Personagem que falava. Quase sem
saber o que dizia, perguntei:
– Quem é o senhor que me ordena coisas impossíveis?
– Justamente porque parecem coisas impossíveis é que você deve tor-
ná-las possíveis com a obediência e a aquisição da ciência.
– E como poderei adquirir a ciência?
– Eu lhe darei a Mestra. Sob sua orientação você poderá tornar-se sábio.
– Mas quem é o senhor?
– Sou o Filho d’Aquela que sua mãe ensinou a saudar três vezes ao dia. O
meu nome? Pergunte-o à minha Mãe.
Nesse momento vi a seu lado uma Senhora de aspecto majestoso, vestida
de um manto todo resplandecente como o sol. Percebendo-me confuso,
acenou para que me aproximasse. E tomando-me com bondade pela
mão, disse:
– Olhe!
Olhando, percebi que aqueles meninos haviam fugido e em seu lugar
estava uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos e outros animais.
– Eis o seu campo! É aí que deverá trabalhar. Torne-se humilde, forte e
robusto: e o que agora está vendo acontecer com esses animais, você o
fará por meus filhos.
Tornei então a olhar: em vez de animais ferozes, apareceram mansos
cordeirinhos que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele Homem
e daquela Senhora, como para fazer-lhes festa.
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Nesse ponto, sempre no sonho, desatei a chorar e pedi àquela Senhora que
falasse mais claro porque não sabia o que Ela queria dizer.
Então a Senhora me pôs a mão na cabeça e disse:
– A seu tempo tudo compreenderá.
Após essas palavras, um ruído qualquer me acordou. E tudo desapareceu.
Fiquei transtornado. Parecia-me ter as mãos doloridas pelos socos dados e
o rosto queimando pelos tapas recebidos.
Logo cedo, contei o sonho aos meus irmãos que se puseram a rir. Contei-o
depois à mamãe. E à vovó. Todos deram seu palpite. “Vai ser pastor de
ovelhas”, disse meu mano José. Antônio, maldosamente: “Um chefe de
bandidos”. Minha mãe: “Quem sabe se um dia não será sacerdote”. Vovó
deu a sentença definitiva:“Não se deve ligar para sonhos”.
Eu era do parecer da vovó. Mas nunca pude tirar o sonho da cabeça.
Todos os anos que se seguiram ficaram profundamente marca-
dos pelo sonho. Mamãe Margarida havia entendido (e logo depois o
entendera também João): o sonho indicava um caminho.
180 páginas para lembrar
Aos 58 anos, quase ninguém se lembra do que lhe aconteceu
cinco anos antes. Quase todos, porém, se lembram, como se fosse
ontem, dos seus 9, 11, 15 anos. Sente-se ainda na pele a casca dura
das árvores pelas quais se subia. Parece-nos ter tocado ontem o
pelo quente do cachorro que pulava ao nosso lado com frenéticas
corridas.
Aos 58 anos, por ordem do papa, Dom Bosco23escreveu a história
dos seus primeiros decênios. Com memória de filmadora (pouco
“lógica” e muito “visual”), encheu três volumosos cadernos (180 pá-
ginas). Nas datas fez um pouco de confusão,34mas os fatos, as lem-
branças, os detalhes se apresentam com vivíssimo frescor.
2 Don (do latim dominu(m) – senhor, dono, dom) é na Itália título exclusivo para sacerdotes, cor-
respondente a padre, em português. Dom Bosco é como ficou mundialmente conhecido o padre
Bosco, mesmo depois de canonizado a 1o de abril de 1934. Neste livro se usará dom = padre com
o nome Bosco. Se preceder outros nomes, indicará nessas pessoas a presença da dignidade episcopal
(N.T.).
3 As datas da infância de Dom Bosco continuam um problema árduo para os mesmos especialistas. No
Piemonte, os registros comunais só começam em 1838 para os nascimentos, em 1866 para os óbitos
e os casamentos. Para os anos anteriores, é preciso socorrer-se dos registros paroquiais, que começam
em 1625.
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2.7 Page 17

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Na undécima linha escreveu e sublinhou:“Escrevo para os meus
caríssimos filhos, os salesianos, que estão proibidos de publicar
estas coisas, quer antes quer depois de minha morte”.
Passados setenta e três anos, os salesianos o desobedeceram,
pondo fim a longo e discutido caso de consciência. É por isso que
hoje, por aqueles cadernos de Memórias, podemos acompanhar as
vicissitudes do menino-camponês até nos mínimos detalhes.
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2.8 Page 18

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2
A pequena e a grande tragédia
“Onome de minha mãe era Margarida Occhiena, de Capriglio.
De meu pai, Francisco.Ambos camponeses. Com trabalho e
economia ganhavam honestamente o pão de cada dia.”
João Bosco nasceu aos 16 de agosto de 1815. Sua mãe o chamou
Giuanín, diminutivo de Giovanni, João, familiar em todo o Piemonte.
A primeira lembrança de Joãozinho foi a morte do pai. Francisco
tinha comprado uma casa pequena e algum terreninho. Mas, para
manter as cinco bocas que havia na família, devia trabalhar também
para um vizinho, abastado proprietário.
Certa noite de maio, voltando do campo ensopado de suor, co-
meteu a imprudência de entrar na adega do patrão. Poucas horas
depois sobreveio febre violenta. Pneumonia dupla talvez. Quatro
dias depois estava morto.Tinha 33 anos.
Eu não tinha ainda 2 anos [conta o mesmo Dom Bosco] quando meu pai
morreu.Nem chego a lembrar seu rosto.Só me lembro das palavras de minha
mãe:“Está sem pai, Joãozinho”.Todos saíam do quarto. Eu teimava em ficar.
– Venha, Joãozinho! – insistia minha mãe docemente.
– Se o pai não vier, eu também não quero ir! – eu respondia.
– Ora, venha, meu filho. Você já não tem pai!.
E com estas palavras a santa mulher, prorrompendo em soluços, me levava
embora do quarto. Eu chorava porque ela chorava. Nessa idade, que pode
entender uma criança? Mas aquela frase – Você já não tem pai! – ficou
gravada na memória para sempre.
Uma estação maldita
A segunda lembrança de João foi a fome que passou naquele ano.
Os Becchi,1 lugarejo em que morava a família Bosco, eram dez
casas plantadas por sobre uma colina imersa em campos ondulados
e vastos. Vinhedos e matas. Faziam parte do distrito de Murialdo, a
1 Os Becchi (leia-se béqui) são hoje o Colle Don Bosco (N.T.).
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5 quilômetros de Castelnuovo d’Asti,2 sede do município, na faixa
norte da região do Monferrato.
Em 1817, as colinas do Monferrato, e todo o Piemonte, foram
atingidas por dura carestia. Geadas na primavera, longuíssima estia-
gem depois.As colheitas se perderam.
Nos povoados houve fome. Fome verdadeira. Dessas de se en-
contrarem mendigos mortos à beira da estrada, com a boca cheia
de capim...
Foi exatamente nessa estação calamitosa que Margarida se viu às
voltas com o problema de sustentar a família. Em casa tinha a sogra,
a idosa mãe de Francisco, imobilizada numa poltrona pela paralisia;
havia Antônio, de 9 anos, filho do primeiro casamento de Francisco;
e estavam os seus dois filhinhos: José, de 4 anos, e João, de 2. Cam-
ponesa analfabeta, foi naqueles meses que manifestou a sua melhor
qualidade: a energia de caráter.
Enquanto teve comida – escreveu Dom Bosco – minha mãe foi alimentando
a família. Chamando depois um vizinho de nome Bernardo Cavallo, deu
certa quantia de dinheiro e pediu que fosse à procura de alimentos.
Percorreu diversos mercados.
Voltou depois de dois dias, ao anoitecer, ansiosamente esperado por nós.
Restituiu o dinheiro. Nada pudera encontrar, ainda que a preços bem altos.
O terror, então, apossou-se de nós: nada tínhamos comido aquele dia...
Minha mãe, porém, não se deixou abalar e pôs-se a dizer: “Francisco ao
morrer e me disse que confiasse em Deus.Ajoelhemo-nos,pois,e rezemos”.
Depois de pequena oração, levantou-se e decidiu: Para casos extremos,
meios extremos. Foi ao estábulo e, com a ajuda de Cavallo, não só matou
um novilho como, preparando logo um pedaço de carne, matou também
a nossa fome. Estávamos desfalecendo... Dias depois, foi possível achar
cereais a preços muito elevados, trazidos de povoados distantes.
Até bem poucos decênios, nas famílias piemontesas dos campos,
dispor-se a matar um novilho era ato de puro desespero. O bichinho
engordando no estábulo era bom investimento: podia permitir com
sua venda no mercado a superação de alguma difícil conjuntura,
uma enfermidade por exemplo. Sacrificá-lo significava privar-se da
última reserva da família.
2 Castelnuovo d’Asti chama-se hoje Castelnuovo Don Bosco (N.T.).
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Um acontecimento que mudaria a face da terra
Morte, fome, incerteza: primeiras recordações de uma criança
que se tornará pai de muitos órfãos e dará pão em suas casas a mui-
tíssimos meninos pobres.
A pequena tragédia dos Boscos numa colina distante juntava-se à
grande tragédia que, como um furacão, havia revolvido a Europa e a
Itália naqueles últimos decênios.
Em 1789, vinte e oito anos antes, estourara em Paris a Revolução
Francesa, acontecimento que iria mudar a face da terra. Não pre-
tendemos, evidentemente, traçar-lhe aqui a história. Mas parece-nos
oportuno aludir a alguns aspectos dos acontecimentos, pois tiveram
profunda incidência também na vida do nosso João Bosco.
Foi assim que, de repente, viu-se em toda a Europa saturar-se o ar
de novidade e expectativa. Os ecos de formidáveis transformações
circulavam também pela Itália.
Após séculos de uma sociedade petrificada no domínio absoluto
do rei e dos nobres, a França explodia. A burguesia e o povo recla-
mavam seus direitos, a cessação dos privilégios da nobreza e do alto
clero. As palavras “liberdade”,“igualdade” não mais se sussurravam.
Gritavam-se abertamente.
Proclamaram-se os “direitos do homem” e a “soberania do povo”.
“Os homens nascem e permanecem livres e iguais em seus direi-
tos... Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a
resistência à opressão. A fonte de toda a soberania está essencial-
mente na nação” (Preâmbulo à Constituição de 1791). Era pela
afirmação desses direitos (não mais por aqueles dinásticos de um
rei) que os exércitos franceses lutavam contra os demais países da
Europa.
Mas, como acontece em todas as épocas de transformações radi-
cais, decisões formidáveis e justíssimas se misturavam a violências
facciosas e injustificadas.
Os grandes burgueses que chefiavam a revolução fizeram reco-
nhecer o direito de voto somente para os proprietários.“A partici-
pação do povo, carente de instrução e de autocontrole, em decisões
governativas – declararam –, conduz facilmente a excessos.”
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3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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A revolução, pois, abolia todos os privilégios. Mas se detinha pe-
rante a riqueza. Os burgueses obtinham a liberdade. Mas os pobres
continuavam pobres.
Por outro lado, a “revolução paralela”, que ao mesmo tempo se
vinha fazendo pelas classes populares e pelos camponeses, parecia
dar-lhes razão.
Os camponeses da França invadiam os castelos dos nobres e os
queimavam. Contemporaneamente (eram anos de tremenda cares-
tia), impediam por meios violentos a circulação de cereais. Mais:
travavam verdadeiras batalhas contra os grupos de famintos que va-
gavam, desesperados, à procura de comida.
O povo de Paris ardia em labaredas insurrecionais repentinas e
violentas. O rei Luís XVI foi assediado e obrigado a cingir o barrete
dos revolucionários e a beber à saúde da nação. Vinte dias depois,
foi arrastado à prisão com toda a família.
De agosto de 1792 a julho de 1794, a “revolução paralela” tomou
o poder. Os burgueses foram substituídos à frente da nação pelos
“representantes populares”, os quais trataram de transformar a “re-
volução da liberdade” em “revolução da igualdade”.
Alguns êxitos foram infelizmente desastrosos.
Em setembro (1792), grupos populares armados invadiram as
prisões, repletas de aristocratas e de supostos conspiradores, e mas-
sacraram mais de mil pessoas.
Em janeiro de 1793, o rei foi declarado réu de traição, e guilho-
tinado.
No mesmo ano de 1793, teve início o “período do terror”. Atri-
buiu-se o delito de traição a todas as pessoas “suspeitas” de serem
inimigas da revolução. Em outubro, os condenados à guilhotina fo-
ram 177; em julho do ano seguinte, 1.285. Os “inimigos da revolu-
ção” iam sendo sumariamente liquidados, sem a menor aparência
de processo.
Procedia-se, ao mesmo tempo, a uma maciça “descristianização”:
proibição do culto católico, fechamento das igrejas, destruição dos
símbolos cristãos, perseguição aos sacerdotes, substituição do culto
a Deus pelo “culto à Razão” (com mascaradas degradantes na mes-
ma catedral de Paris).
20

3.2 Page 22

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A Europa contemplava estarrecida. Os fatos de Paris naqueles
meses pareciam manifestações de loucura coletiva. Até as pessoas
mais progressistas, que inicialmente haviam simpatizado com a re-
volução, estavam agora desnorteadas.
Quando no futuro se falar, com medo, de “revolução”, pensar-se-á
no período do terror parisiense. Com o termo depreciativo “revolu-
ção democrática” poderá se entender “populacho desenfreado na
desordem e na violência”.
Um general de 27 anos: Napoleão
Em julho de 1794, o terror e a “ditadura popular” terminaram
com a condenação à morte dos seus próprios chefes: os fanáticos
“jacobinos” Robespierre, Saint Just, Couthon.
A revolução voltou a ser “burguesa”. A nova Constituição (pu-
blicada em 1795) reconheceu o direito de voto somente a 30 mil
pessoas (Paris tinha 600 mil habitantes). Atribuía-se a direção do
país somente à classe restrita dos grandes proprietários. Logo, logo,
verificar-se-ia uma “involução”: o regime republicano acabaria por
virar “império”.
1796. Um exército da revolução chega à Itália comandado por
um general de 27 anos, Napoleão Bonaparte. Em sangrentas ba-
talhas, derrota os austríacos no Vale do Pó. Os soldados franceses
falam de fraternidade, igualdade, liberdade. Apesar das sombras do
terror, tais palavras ateiam enormes entusiasmos por entre as novas
gerações. O Reino da Sardenha (Piemonte, Saboia, Sardenha) está
agitado. Exila-se o rei.
Mas Napoleão é um gênio inquieto. Mais que o triunfo da re-
volução, persegue brilhantes e sanguinolentos objetivos de glória
militar.
Em 1799, Napoleão está no Egito. Os austro-russos invadem no-
vamente o norte da Itália: em seus pequenos cavalos das estepes, os
cossacos (barbas longas e espessas, chuços ameaçadores) reentram
nas cidades. Napoleão volta. É a guerra novamente, guerra que se-
meia miséria também nos ricos campos do Vale do Pó.
Napoleão suga dinheiro e soldados de todas as regiões da Itália:
servem-lhe para guerrilha na Espanha e para a expedição à Rússia.
21

3.3 Page 23

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Invade esse longínquo e misterioso país à frente do maior exército
de todos os tempos. No rígido inverno de Moscou, dá-se o grande
revés e a desastrosa retirada. Napoleão vê morrerem-lhe ao lado 600
mil homens, dos quais 25 mil italianos (sem contar os 20 mil liqui-
dados na Espanha).
De 16 a 19 de outubro de 1813, nas planícies de Leipzig, a gigan-
tesca “batalha das nações” marca o fim do grande Império francês e,
aos olhos de muitos, o sepultamento dos ideais da Revolução.
Mais uma vez, pelos Alpes e através do Isonzo, austríacos, alemães
e croatas baixam às planícies do Pó. Dizem todos que vão “libertar
a Itália”. Como acontece, porém, com todos os “libertadores”, nin-
guém os havia chamado; mas se compensam depredando campos
e cidades... Depois do último estertor dos “Cem Dias” e da batalha
de Waterloo, Napoleão termina sua vida na pequena ilha de Santa
Helena, no Atlântico Sul.
A Europa e a Itália estão exaustas, semeadas de ruínas e de órfãos.
Os campos foram despojados pelas guerras e despovoados pelas
“levas” de jovens recrutados à força e mandados à morte em longín-
quos campos de batalha.
O povo, que por anos havia gritado “liberdade”, buscava agora
somente a paz.
Foi no contexto dessa grande tragédia de povos que a família
Bosco viveu, em 1817, a sua pequena mas intensa tragédia.
O rei atrasa quinze anos o relógio
João Bosco iria saber, pelos livros de história, que nascera no
começo de uma época denominada “restauração”, iniciada a 1o de
novembro de 1814, com a abertura, em Viena (Áustria), do Congres-
so das nações vencedoras, época que, na maior parte da Itália, iria
durar até 1847, isto é, até o início do chamado Risorgimento.3 A
restauração é uma época de enganos colossais. Por vontade do Con-
gresso, os reis destronados pela revolução e por Napoleão retornam
aos seus palácios e pretendem com algumas penadas cancelar vinte
e cinco anos de história.
3Risorgimento, período durante o qual a Itália se torna independente e se unifica (N.T.).
22

3.4 Page 24

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Na festa de Viena, a Itália foi dividida como um bolo em oito
pedaços: o Reino da Sardenha (Piemonte, Sardenha, Saboia, Nice,
designando-se-lhe também como “anexa” a república de Gênova),
o Reino Lombardo-Vêneto (estritamente submetido à Áustria), o
Ducado de Módena, o Ducado de Placência, o Grão-Ducado da
Toscana, o Principado de Luca, os Estados Pontifícios e o Reino
das Duas Sicílias.
Vítor Emanuel I reentra em Turim a bordo da carruagem de gala,
circundado de nobres vestidos à moda antiga, com perucas empo-
adas e rabichos.
Pelas estradas, o povo aclama o rei. Sobretudo os camponeses.
Anseiam por paz. Sobre todas as coisas. Mas as cabeleiras empo-
adas dos nobres querem garanti-la reconstruindo “tudo como an-
tes”. Ignoram as novas realidades positivas que, embora em meio a
sangrentas campanhas de Napoleão, nasceram e se fortaleceram na
Itália.
A história caminhou. E nada a fará voltar.A burguesia se afirmou
como classe nova. O comércio e os homens viajam por sólida rede
de estradas, montada pelos engenheiros de Napoleão.
Por centenas de anos, a grande massa da população italiana nas-
cera, vivera e morrera no mesmíssimo chão, petrificada em suas pe-
quenas autarquias e usanças seculares. Os exércitos napoleônicos
quebraram essa inércia. A migração interna, ainda que provocada
por causas trágicas, tornou-se um fenômeno de massa.
Nas diligências viajam também livros e jornais. Poucos sabem
ler. Mas a curiosidade é agora uma qualidade muito espalhada. Os
poucos leitores transmitem notícias. E os horizontes se alargam.
No congresso de Lubiana (1821), Francisco IV de Módena denun-
ciará: “A liberdade de imprensa, a difusão de escolas, a possibili-
dade aberta a todos de aprenderem a ler e escrever: eis as más
sementes de futuras revoluções”.
No Piemonte, a agricultura tomará em breve um novo e exube-
rante crescimento. Nas planícies e colinas abatem-se as últimas ma-
tas. Novas e vastas áreas se tornam cultiváveis. Plantam-se milhares
de amoreiras, o que promoverá o rápido desenvolvimento da cultu-
ra do bicho-da-seda.
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3.5 Page 25

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Logo em toda a parte surgirão manufaturas, oficinas, martinetes.
A indústria se organizará e se firmarão os preços.
Vítor Emanuel I, no dia seguinte à sua volta, aboliu as leis dos
últimos quinze anos, restaurando as pré-napoleônicas. Nobres e alto
clero readquirem todos os seus privilégios. A burguesia perde de
chofre muitos dos seus suados direitos.
Consequências: enquanto o rei atrasa quinze anos o seu relógio,
intelectuais burgueses, como Sílvio Péllico, emigram para Milão; a
juventude das melhores famílias alinha-se na oposição, entra nas
sociedades secretas e depõe suas esperanças num jovem príncipe
da casa de Saboia-Carignano, Carlos Alberto, que parece sensível
aos novos tempos.
O eco desses acontecimentos chega muito apagado até as coli-
nas do Monferrato, onde João Bosco vive os anos pobres e serenos
de sua infância.
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Subdivisão dos estados italianos depois do Congresso de Viena (1815)
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3.7 Page 27

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Piemonte
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3
Os anos da infância
Margarida tinha 29 anos quando ficou viúva. Bem jovem para
o peso que iria carregar. Sentiu muito, mas não se perdeu em
lamentos. Arregaçou as mangas e começou a trabalhar: havia
pratos para lavar, cozinha para ordenar, água para buscar, quartos
para arrumar. Isso nos momentos “livres”. Porque, no resto do tem-
po, havia o campo e o estábulo para tocar...
Como outras robustas camponesas dos povoados, manejava a foi-
ce, arava, semeava, colhia o trigo, atava, transportava, trilhava e guar-
dava. Cuidava do parreiral, vindimava e fazia o vinho.
Tinha as mãos calejadas pelo trabalho, mas sabia acariciar do-
cemente as suas crianças. Uma trabalhadora. Sobretudo, a mãe dos
seus filhinhos.
Criou-os com doçura e firmeza. Um século depois, os psicólogos
escreverão que a criança, para crescer como deve, precisa do amor
exigente do pai e do amor sereno e gozoso da mãe. E dirão que ser
órfão significa correr o risco de se desequilibrar afetivamente: na
moleza sem energia, para os filhinhos de mamãe; na aridez ansiosa,
para os filhinhos de papai.
Margarida achou em si mesma um equilíbrio instintivo que a le-
vou a unir e a alternar a firmeza calma com a alegria que asserena.
Dom Bosco, em seu estilo educativo, muito deverá à sua mãe.
Uma grande pessoa
“Na base e no vértice de sua pedagogia instintiva – escreveu
Auffray –, Margarida Occhiena pusera o sentido religioso da vida.”
Deus te vê era uma das suas máximas mais frequentes. Deixava
que os filhos fossem se divertir pelos prados vizinhos. Mas enquan-
to partiam, dizia-lhes:“Lembrem-se de que Deus os vê”. Se os visse
a remoer pequenos rancores ou a ponto de inventar mentiras para
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3.9 Page 29

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safar-se de alguma embrulhada:“Lembrem-se de que Deus vê tam-
bém os pensamentos”.
Todavia, não era um Deus-policial o que ela esculpia na men-
te de seus pequeninos. Se a noite era bonita e o céu estrelado, ao
gozarem da fresca aragem à porta da cozinha, lhes dizia:“Foi Deus
que criou o mundo e pôs lá em cima tanta estrela”.Ante os prados
cheios de flores, murmurava:“Quantas coisas bonitas fez Deus para
nós!”. Depois da ceifa, da vindima, enquanto descansavam do esfor-
ço da colheita, dizia: “Agradeçamos a Deus. Foi bom para conosco.
Deu-nos o pão de cada dia”.
Também depois do temporal, e do granizo que havia estragado
tudo, a mãe convidava a refletir:“Deus deu, Deus tirou. Ele sabe por
quê! Se fomos maus, lembremo-nos: com Deus não se brinca”.
Foi assim que João, ao lado da mãe, dos irmãos, dos vizinhos,
aprendeu a ver uma outra pessoa: Deus. Uma grande pessoa. Invi-
sível, mas presente. Em tudo. Nos céus, nos campos, no rosto dos
pobres, na voz da consciência que diz:“Você fez bem, você fez mal”.
Uma pessoa em quem sua mãe confiava de modo ilimitado, indiscu-
tível. Era pai bom e providente, que dava o pão cotidiano, e às vezes
permitia coisas difíceis de entender (a morte do pai, a chuva de pe-
dra na vinha). Mas “Ele” sabia por quê. E isso devia bastar.
A bilharda e o sangue
João tem 4 anos quando a mãe lhe põe nas mãos as primeiras 3
ou 4 varas de cânhamo macerado para desfiar.Trabalho insignifican-
te, mas trabalho. Começa assim a dar a sua pequenina contribuição
à família, que vive do trabalho de todos.
Mais tarde se junta aos irmãos para fazer os serviços de casa: bus-
car lenha, acender o fogo soprando delicadamente as brasas guar-
dadas debaixo das cinzas (para economizar os canudinhos impreg-
nados de enxofre). Buscar água na fonte, preparar legumes, varrer
os quartos, limpar o estábulo, levar as vacas a pastar, cuidar do pão
do forno...
Mas acabados esses pequenos trabalhos (controlados pela mãe),
corre a brincar. Espaço não falta. Prados a perder de vista. Os amigos
já o esperam: meninotes fortes e vivos. Por vezes rudes e desboca-
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3.10 Page 30

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dos. Juntos caçam toupeiras. Buscam ninhos de passarinho. Jogam
partidas intermináveis...
Um dos jogos mais animados é a bilharda.1 Uma tarde, Joãozinho
volta para casa mais cedo. Seu rosto pinga sangue. O cilindro de madei-
ra da bilharda (aguçado nas duas extremidades) golpeou-lhe violenta-
mente a face. Margarida está preocupada. E enquanto faz um curativo,
diz:
– Algum dia você ainda me volta para casa com um olho furado...
Por que é que anda com essa gente? Sabe muito bem que alguns
deles não são lá grande coisa.
– Se for para lhe agradar, não irei mais. Mas quando estou junto,
eles procedem melhor. Não dizem certas palavras...
Margarida o deixa ir.
A coragem cresce mais rápida que o tamanho.
João tem 5 anos, José 7. Margarida os havia mandado cuidar de
alguns perus, no prado. Enquanto os animais caçam grilos, os irmãos
se divertem.A certa altura, contando nos dedos, José grita que falta
um peru.
Procuram ansiosos. Nada. Peru é coisa grande, não pode desapa-
recer assim, sem mais nem menos. Girando ao redor de uma cerca
viva, João descobre um homem sentado. Pensa rápido:“É o ladrão”.
Chama José e se aproxima decidido:
– Devolva o peru.
O estranho, disfarçando:
– Peru? E quem foi que viu peru?
– O senhor roubou. Passe pra cá! Senão gritaremos “pega o la-
drão”, e o senhor vai ver o que é bom.
Guris podem ser enxotados com quatro palmadas, mas a decisão
desses dois o põe em apuros. Há camponeses trabalhando por per-
to. E, se eles começarem a gritar, pode acontecer de tudo.Tira, pois,
da cerca um saco, e do saco, um peru:
– Queria apenas brincar...
1“Jogo infantil em que se emprega um pequeno pau, que se faz pular para dentro de um círculo traça-
do no chão, por meio de outro pau mais comprido” (Dicionário Aurélio) (N.T.).
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4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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– Isso não é brincadeira que se faça – rebatem os baixinhos. E o
sujeito se arrancou.
De noite, como sempre, prestação de contas.
– Isso foi muito arriscado!
– E por que, mãe?
– Antes de tudo, porque vocês não tinham certeza de que tinha
sido ele.
– Mas se não havia mais ninguém por lá?
– Isso não basta para se chamar alguém de ladrão. Além disso,
vocês são pequenos e ele um homem. E se os tivesse machucado?
– Devíamos então deixar que levasse embora o peru?
– Ter coragem não é mau. Mas é melhor perder um peru do que
levar uma boa surra.
– Humm – murmura pensativo João. – Acho que a senhora tem
razão. Mas era um peru tão bonito...!
Uma vara no canto
Margarida era uma mãe muito carinhosa, mas enérgica. Firme. Os
filhos sabiam que quando dizia não, era pra valer. Não havia capri-
cho que a fizesse mudar.
Num canto da cozinha havia “a vara”. Uma varinha flexível. Nun-
ca a usou. Nunca tirou de lá.
Um dia Joãozinho aprontou uma das suas. Levado, quem sabe,
pela pressa de ir brincar, deixou a portinhola da coelheira aberta.
E todos os coelhos se largaram para o capinzal. Foi uma trabalheira
recuperá-los...
Quando, cansados, entraram na cozinha, Margarida mostrou o
canto:
– Joãozinho, traga a vara.
A criança retraiu-se em direção à porta:
– E para que, mamãe?
– Traga.Verá.
O tom era decisivo. João toma a vara e a entrega, arredio:
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4.2 Page 32

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– Quer usá-la em minhas costas...
– E por que não, se me faz dessas artes?...
– Desculpe, mamãe. Não farei mais.
A mãe sorria. O filho também.
Num dia de sol abrasador, João e José retornam da vinha com
sede atroz. Margarida vai ao poço, puxa um balde de água fresca e
com a concha de cobre dá de beber primeiro a José.
Ofendido por tal preferência, o miúdo faz biquinho. E, ao ser ser-
vido, faz sinal que não quer mais. Margarida não diz nada, leva o
balde para a cozinha e fecha a porta. Instantes depois, entra João:
– Mãe...
– Que foi?
– Eu também queria água...
– Oh, pensava que não tivesse mais sede!
– Desculpe, mamãe.
– Assim está bem.
E dá-lhe de beber.
Com 8 anos, Joãozinho é uma criança saudável, de risada crista-
lina. Baixinho e sólido, tem olhos negros, cabelos encaracolados e
espessos como lã de cordeirinho. Gosta de aventuras e riscos. Nem
se incomoda com arranhões pelos joelhos. Consegue até subir em
árvores, à cata de ninhos de passarinho.
Certa vez, se deu mal. Um ninho (de toutinegra, precisamente) es-
tava muito dentro na cavidade de um tronco. Enfiou o braço até além
do cotovelo. Depois não conseguia mais retirá-lo. Tentou e tornou a
tentar. Naquela espécie de tranca, o braço começou a inchar. José,
que o olhava de baixo, teve de ir chamar correndo a mãe. Margarida
apareceu com uma escada, mas nem ela conseguiu arrancar aquele
braço. Teve de pedir a um vizinho que acudisse com um formão. En-
quanto isso João suava forte, e José, embaixo, com mais medo do que
ele, gritava: “Aguente firme! Já estão chegando!”.
O homem protegeu o braço do menino com o avental de Marga-
rida e começou a escalpelar... Bastaram poucos golpes: alargou-se o
buraco e o braço saiu.
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4.3 Page 33

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Margarida não disse nada. Estava mortificado como cachorrinho
debaixo de chuva. Disse apenas:
– Veja se não me apronta mais uma, viu?
O diabo no sótão
Uma noite de outono, Joãozinho está com a mãe na casa dos
avós, em Capriglio. Durante a ceia, a numerosa família se assenta
à mesa, envolta no escuro quebrado apenas pelo brilho de uma
lamparina. De repente, um rumor suspeito por sobre as cabeças.
Repete-se uma, duas, três vezes. Todos olham para cima, segurando
a respiração. Uma pausa de silêncio. Depois, de novo, do forro, o
rumor misterioso, seguido de um longo e surdo arrastar-se. As mu-
lheres se benzem e as crianças se agarram às mães.
Com palavras graves, uma velha começa a contar como em tem-
pos passados se ouviam no sótão rumores prolongados, gemidos,
gritos aterradores.“Era o diabo... E agora voltou”, murmurava ben-
zendo-se.
Joãozinho quebra o silêncio, dizendo, tranquilo:
– Eu acho que é uma fuinha, não o diabo.
Calam-no como impertinente. E eis que o baque se repete.Tam-
bém o longo e lamentoso arrastar-se.
O forro de madeira, que todos olham apavorados, serve de pavi-
mento a um grande sótão, usado como depósito de grãos.
Levantando da cadeira, Joãozinho quebra de novo o silêncio e diz:
– Vamos ver!
– Você está louco? Margarida, segure-o! Com o diabo não se brinca!
Mas o rapazinho já está de pé. Pega uma lanterna, acende-a rapi-
damente, e empunha um pedaço de pau. Margarida lhe diz:
– Não seria melhor deixar para amanhã?
– A senhora também está com medo, mãe?
– Não.Vamos ver juntos.
Sobem a escada de madeira. Os outros seguem atrás. João empur-
ra a porta do sótão. Levanta a lanterna para ver melhor. Aí, um grito
sufocado de mulher:
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4.4 Page 34

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– Lá! Naquele canto!
Todos olham. Um cesto emborcado ondeia, se arrasta e avança.
João dá um passo à frente.
– Não! Cuidado! É um cesto mal-assombrado!
João agarra o cesto. Levanta-o. Nessa hora, uma enorme galinha,
presa naquela arapuca, sabe lá há quantas horas, dispara correndo,
esgoelando apavorada...
Ao redor de João, agora, todo o mundo dá risada. O diabo era
uma galinha. Uma galinha que fora debicar alguns grãos de trigo
perdidos por entre o trançado de vime de um cesto instavelmente
apoiado à parede: o cesto deslizou, emborcou sobre ela, prendeu-
-a. Cansada e faminta, a coitada tentava sair: empurrava, arrastava e
derrubava outros objetos. Fazia o... diabo.
A mancha de óleo que se espalha
Toda quinta-feira, Margarida vai a Castelnuovo vender seus quei-
jos, frangos e verduras. Regressa com velas, tecidos, sal e algum pre-
sentinho para os filhos, que ao cair da tarde lhe vão ao encontro,
galopando colina abaixo...
Certa vez, durante uma puxadíssima partida de bilharda, o peque-
no cilindro de madeira foi parar em cima do telhado.
– Em cima do armário da cozinha tem outro – diz João. – Vou buscá-
-lo.
E sai correndo. Mas o armário é alto. Precisa subir na cadeira.
Levanta-se na ponta dos pés, estica bem o braço, esbarra no vidro do
azeite que está no armário, mandando-o ao chão. O azeite se espalha
nas lajotas vermelhas.
Vendo que o irmão não volta, José parte, correndo. Constata o
desastre. Põe a mão na boca:
– Quando a mãe voltar...
Tentam remediar. Entra em ação a vassoura. Recolher os cacos é
fácil. Mas a mancha de óleo... Essa aumenta como o medo.
João fica meia hora em silêncio. Depois, tira do bolso o canivete,
vai à cerca-viva, corta um ramo bem flexível e põe-se a um canto a
33

4.5 Page 35

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trabalhá-lo. Enquanto isso, bota a cuca a funcionar: estuda as pala-
vras que irá dizer à mãe.
Finalmente, a casca do ramo está bem trabalhada. Tem frisos e
pequenos desenhos.
Ao pôr do sol, lá se vão ao encontro da mãe. José, temeroso, con-
serva-se atrás. João, porém, corre:
– Oi, mãe! Como está?
– Bem. E você? Como se portou?
– Hum, mãe, olhe aqui – e lhe mostra a vara enfeitada.
– Que foi que aprontou?
– Desta vez mereço mesmo que me bata. Por infelicidade, quebrei
o... – e foi contando de um só fôlego tudo quanto acontecera.
– Trouxe logo a vara. Mereço mesmo – e lhe passa às mãos a vara,
enquanto encara, maroto, a mãe com olhos doridos e astutos.
– É, Joãozinho! Vejo que está ficando um espertalhão! Sinto mui-
to pelo vidro que quebrou. Mas estou satisfeita porque me disse a
verdade. Doutra vez, cuidado: o azeite custa caro.
Aí chega também o José, que viu, de longe, desfazer-se a tempes-
tade que temia. José, 10 anos, vai crescendo manso e tranquilo. Não
tem a vivacidade e a turbulência do irmão. Paciente, tenaz, engenho-
so, adora sua mãe e o irmãozinho. Mas tem medo de Antônio...
Não sou madrasta. Sou sua mãe!
Antônio tem sete anos mais que João. Revela-se um adolescente
fechado, com manifestações de violência e grosseria.
Às vezes, bate com maldade nos pequenos. Margarida deve cor-
rer para livrá-los de suas mãos. Provavelmente é apenas um rapaz
hipersensível que as mortes sucessivas da mãe e do pai traumatiza-
ram.
Tem por Margarida um sentimento de amor-ódio, que o faz pas-
sar de momentos de ternura a explosões impressionantes de ira.
Às vezes, quando repreendido por seus caprichos, reage contra ela
com os braços erguidos e os punhos cerrados, gritando-lhe com
voz rancorosa: “Madrasta!”.
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4.6 Page 36

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Margarida poderia chamá-lo à ordem com algumas sonoras bo-
fetadas (outras mães, naqueles tempos, não pensavam duas vezes
em fazê-lo). Mas a ela, repugnava-lhe bater. E nunca o fez. Apenas
repetia com firmeza:
– Antônio, eu sou sua mãe, não sou madrasta. Agora, acalme-se e
reflita. Verá que fez mal em proceder assim.
Passada a raiva, Antônio pedia desculpas. Mas inflamava-se com
facilidade, José e João temiam aquelas explosões.
35

4.7 Page 37

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4
Março
Épobre a vida na família Bosco. Dentre as poucas casas dos
Becchi, a dos Boscos é a mais pobre. Uma construção de um
andar, dividida em habitação, depósito de feno e estábulo.
Na cozinha veem-se sacos de milho. Do outro lado de uma estrei-
ta parede, ruminam duas vacas. Em cima, estão os quartos de dormir.
Pequenos. Escuros. Sob o telhado.
Pobreza verdadeira, mas não miséria. É que todos trabalham. O
trabalho do camponês rende pouco, mas rende. As paredes estão
nuas, porém, brancas de cal. Os sacos de milho são poucos, mas vão
se esvaziando lentamente e acabam por bastar.As vacas devem pu-
xar também a carreta e o arado; elas dão leite, mas pouco e magro:
o suficiente.
Por isso, nas crianças Boscos não há traços de tristeza; tampouco
de agressividade. Com paciência se pode ser feliz também no meio
da pobreza.
Entre os 8 e 9 anos, João começa a participar mais ativamente
dos trabalhos da família, partilhando com ela a vida dura e austera.
Trabalha-se de sol a sol, que no verão levanta cedo. “Quem dor-
me não pega peixe”, repetia Margarida, despertando os seus pupilos
bem no alvorecer. Quantas vezes, quem sabe, Joãozinho, sonolento,
teria-se perguntado por aqueles benditos peixes...
A pequena refeição matinal é pura e simples: um pedaço de pão
com água fresca. João aprende a capinar, gadanhar, foiçar, orde-
nhar.Aprende a ser um verdadeiro camponês. As viagens fazem-se
a pé: a diligência passa longe, na estrada de Castelnuovo, e custa
caro. À noite, dorme-se sobre amplos colchões, recheados de palha
de milho.
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4.8 Page 38

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Os pés do pobre
Em caso de doença grave na vizinhança, ninguém receava acor-
dar Margarida. Sabiam que estava sempre disposta a ajudar. Desper-
tava um dos filhos para que a acompanhasse e lá se ia, dizendo:
– Vamos! Precisamos fazer uma obra de caridade.
“Fazer uma obra de caridade.” Nesta expressão simples se englo-
bavam naqueles tempos muitos “valores” a que hoje chamamos ge-
nerosidade, serviço, dedicação aos outros, amor concreto, altruísmo.
“No inverno” relembra Dom Bosco, “vinha com frequência um
mendigo bater à nossa porta. Como a neve cobria tudo, pedia para
dormir no depósito de feno.”
Antes de deixá-lo subir ao depósito. Margarida servia-lhe um pra-
to de caldo quente. Depois lhe examinava os pés, que o mais das
vezes estavam mal. Os tamancos já gastos deixavam passar água e
tudo mais. Não tinha outro para dar-lhe. Envolvia-lhe então os pés
com tiras de pano e os amarrava como podia.
Numa casa dos Becchi vivia Cecco. Fora rico, mas esbanjara tudo.
Os moleques zombavam dele. Talvez o chamassem de “cigarra”. As
mães, com efeito, apontavam-no aos filhos e lhes contavam a estória
da cigarra e da formiga: “Enquanto trabalhávamos como formigas,
ele cantava e se divertia; era alegre como uma cigarra.Agora vejam
a que estado se reduziu.Vivendo e aprendendo”.
O velho tinha vergonha de pedir. Muitas vezes passava fome. Já
noite, Margarida deixava sobre o peitoril da janela uma panelinha
com sopa quente. Cecco vinha apanhá-la no escuro.
Joãozinho aprendia. Mais a caridade do que a economia.
Havia um rapaz que se empregava numa daquelas herdades ali
perto. Chamava-se Secondo Matta. De manhã o patrão lhe dava uma
fatia de pão preto e lhe punha nas mãos as cordas de duas vacas.
Devia levá-las a pastar até o meio-dia. Descendo ao vale, encontrava
João que também conduzia as suas e tinha nas mãos um pedaço de
pão branco. Um requinte, naqueles tempos, um pão assim! Um dia
João lhe disse:
– Poderia fazer-me um favor?
– De boa vontade.
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4.9 Page 39

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– Gostaria de trocar o pão. O seu deve ser melhor que o meu.
Secondo Matta acreditou. E por três anos seguidos – é ele mesmo
quem conta – todas as vezes que se encontravam trocavam o pão. Só
depois de homem feito foi que o senhor Matta pensou no fato. Deu-se
conta de que João Bosco era uma excelente pessoa.
Bandidos na mata
Perto de casa havia um bosque. Mais de uma vez, caída a noite,
vinham bater à porta de Margarida pequenos grupos de bandidos,
caçados pela polícia.Vinham pedir um prato de sopa, um pouco de
palha para dormir.
Margarida com certeza não temia tais visitas. Já estava acostu-
mada. Nos tempos de Napoleão, eram muitíssimos os jovens que
fugiam do recrutamento. Nos últimos anos chegavam a 70%, dizem
os historiadores. Viviam nas matas ou nas montanhas, em grupos.
Davam-se a ladroeiras para sobreviver ou se empregavam em pro-
priedades rurais sob nomes falsos. (Na França, dentre os que caíram
fora da convocação napoleônica, houve até um tal de João Maria
Vianney, que virou camponês sob o nome de Vicente, tornando-se,
depois, o Santo Cura d’Ars.)
O que causava apreensão era o fato de que atrás dos bandidos
apareciam os carabineiros (criados nessa mesma época por Vítor
Emanuel I). Na casa Bosco, porém, vigorava uma espécie de tácito
armistício: os guardas, cansados da busca, pediam a Margarida um
copo d’água ou, quem sabe, um gole de vinho. Os bandidos ouviam a
conversa,de lá do depósito de feno,e se afastavam de fininho.“Embo-
ra muitas vezes soubessem quem estava escondido em casa naquele
momento – escreve João Batista Lemoyne, principal biógrafo de Dom
Bosco, que manteve com ele longuíssimos colóquios nos anos de Tu-
rim –, os guardas dissimulavam. Nunca tentaram uma prisão.”
Joãozinho observa tudo e procura entender. Soube pela mãe que
“antes” eram os soldados do regime democrático que perseguiam
os que se haviam mantido fiéis ao rei.Agora, dava-se o contrário: os
perseguidores passavam a ser os perseguidos; os carabineiros do rei
davam caça aos democráticos. Em breve as coisas mudariam nova-
mente: os democratas – os “dignos de forca”, como nesses anos os
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4.10 Page 40

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chamava Miguel de Cavour – viriam a ser, logo mais, ministros, che-
fes de polícia, donos da coisa pública. Outros serão os perseguidos.
Mamãe Margarida, acostumada a essas mudanças de fronte,
oferece um prato de sopa e um pedaço de pão a quem quer que
bata à sua porta, sem perguntar de que lado esteja. Talvez se
possa pensar que são justamente esses acontecimentos que fazem
nascer em João Bosco a convicção da “relatividade” da política e
dos partidos. Achará sempre que a política é uma componente
discutível, variável, da existência. Firmará, por isso, sua vida em
bases bem mais sólidas: as almas para salvar, os pobres para nutrir e
educar. A isso chamará de “a política do Pai-nosso”.
“Minha mãe me ensinou a rezar”
A caridade nos Becchi não se praticava por filantropia ou senti-
mento, mas por amor de Deus. Deus era gente de casa na família
Bosco. Margarida era analfabeta, mas sabia de cor longos trechos da
História Sagrada e dos Evangelhos. E acreditava na necessidade de
rezar, isto é, de falar com Deus, a fim de ter a força de viver e de fazer
o bem.
“Enquanto eu era pequenino – escreve Dom Bosco – ensinou-me
ela mesma as orações. Fazia-me ajoelhar com os irmãos, de manhã e
à noite. E juntos recitávamos as orações em comum.”
O padre morava longe. Mas ela não esperou que ele achasse tem-
po para ir ensinar o catecismo às suas crianças. Eis algumas pergun-
tas e respostas do Compêndio da Doutrina Cristã que Margarida
aprendera quando pequena e que ensinou a João, a José e a Antônio.
– Que deve fazer um bom cristão de manhã ao acordar?
– O sinal da Santa Cruz.
– Após levantar-se e vestir-se, que deve fazer o bom cristão?
– Ajoelhar-se, se for possível, diante de alguma devota imagem e, renovando
no coração o Ato de Fé na presença de Deus, dizer com devoção: Eu vos
adoro...
– Que se deve fazer antes do trabalho?
– Oferecer o trabalho a Deus.
39

5 Pages 41-50

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5.1 Page 41

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Uma das primeiras “práticas de piedade” de que o Joãozinho
participou foi a reza do Terço. Naquele tempo, era a oração da
noite de todos os cristãos. Repetindo 50 vezes a Ave-Maria tam-
bém os camponeses dos Becchi falavam com Nossa Senhora,
mais mãe do que rainha. Para eles, repetir 50 vezes as mesmas
palavras não era um contrassenso: durante o dia haviam batido
a enxada centenas de vezes nos sulcos e sabiam que somente
assim se pode obter uma boa colheita. Passando nos dedos as
contas do terço, o pensamento passeava dos filhos aos campos,
à vida, à morte. João começou assim a falar com Nossa Senhora e
sabia que Ela o olhava, o escutava.
Nas suas Memórias, Dom Bosco relembra também a sua primeira
confissão:“Foi minha mãe que me preparou.Me acompanhou à igre-
ja e, confessando-se antes de mim, recomendou-me ao confessor.
Depois me ajudou a fazer a ação de graças”.
Escola na estação morta
Foi provavelmente aos 9 anos, no inverno de 1824-25, que Joãozi-
nho frequentou a primeira elementar. Então as aulas começavam a 3
de novembro.A 25 de março já estavam encerradas. Era a chamada
“estação morta” para a lavoura.Antes e depois, até os braços débeis
das crianças eram necessários em casa e no campo.1
A escola comunal de Castelnuovo ficava a 5 quilômetros. Por isso,
seu primeiro professor foi um camponês que sabia ler. Depois, a tia,
Mariana Occhiena, irmã de Margarida e empregada do padre-mestre
de Capriglio (terra de Margarida), pediu àquele sacerdote um lugar
para o sobrinho em sua escola.
O padre Lacqua a atendeu. E João provavelmente ficou com a tia
três meses. O mesmo aconteceu no inverno de 1825-26. Nesse ano,
porém,Antônio, 17 anos, começou a resmungar.
– Pra que mandá-lo ainda à escola? Se já sabe ler e assinar o nome
já é demais. Que pegue na enxada como eu.
Margarida procurava fazê-lo entender:
1 A instrução elementar fora imposta por lei em 1822. Era obrigatória e gratuita. Devia-se ensinar leitu-
ra, escrita, religião e aritmética. Nem todos os municípios tiveram condições de aplicar a lei.
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5.2 Page 42

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– Com o passar dos anos a instrução se torna cada vez mais neces-
sária. Não percebe que hoje até os sapateiros e os alfaiates vão à es-
cola? Ter em casa alguém que saiba fazer contas é muito importante.
Apenas João aprendeu a ler, os livros se tornaram uma paixão.
Pedia-os emprestados ao padre Lacqua e com isso passava muitas
tardes de verão à sombra das árvores devorando páginas.
Indo ao pastoreio, estava sempre disposto a cuidar também das
vacas dos amigos, contanto que o deixassem ler em paz.
Nada de exageros, porém. Não só gostava de ler mas também de
jogar e subir em árvores.
Uma tarde, estando com os amigos, avistou por entre os ramos de
enorme carvalho um ninho de cardeal. Meteu-se árvore acima até o
ponto de se ver se havia filhotes já na idade de se porem na gaiola.
Mas o ramo se estendia grosso e longo, paralelo quase ao chão.
João pensou um pouco, e disse do alto, a seus amigos:
– Lá vou eu.
Escorregou-se lento, lento, pelo galho que ia ficando cada vez
mais fino e flexível. Esticou depois o braço e foi colhendo um a um
aqueles quatro filhotinhos, pondo-os dentro da camisa.
Voltar é que era o problema.Ao peso do corpo o ramo vergara. E
João vinha vindo devagar. De repente aconteceu: escorregaram-se-
-lhe os pés e ficou suspenso apenas pelas mãos, numa altura muito
grande. Com pequena torção conseguiu enganchar-se no ramo com
os pés. Mas foi só. Todo o esforço de voltar ao galho com o rosto
para baixo foi inútil. Suava em bicas. De baixo, os amigos gritavam,
davam palpites. Tudo em vão: aguentou enquanto pôde. Deixou-se
cair no vazio. O baque foi tremendo: estendeu-se no chão desmaia-
do por longos minutos. Depois, conseguiu sentar-se.
– Machucou?
– Esperemos que não – murmurou.
– E os filhotes?
Abriu a camisa e os mostrou:
– Vivos. Mas quanto me custaram...
Tentou levantar-se e ir para casa. Tremia. Teve de sentar-se de
novo.
41

5.3 Page 43

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Ao chegar em casa, disse a José:
– Estou mal. Mas não diga nada à mamãe.
A noite fez-lhe bem. Os efeitos daquele salto medonho, porém,
sofreu-os por muitos dias.
Um melro muito pequenino
Os passarinhos eram a sua paixão. Tirara do ninho um melro
pequenino e o criara. Na gaiola, tecida com ramos de salgueiro,
ensinou-lhe a assobiar. O pássaro aprendeu e quando João se apro-
ximava, saudava-o com seu silvo modulado, saltitando alegre entre
as barras da gaiola, fixando-o com seu olhinho negro e brilhante.
Era um melro simpático.
Certa manhã, porém, o melro não assobiou: um gato arrombara a
gaiola e o comera. Restava um tufo de penas ensanguentadas. João
se pôs a chorar. Sua mãe procurou acalmá-lo: melros nos ninhos
havia de achar muitos mais. O menino, porém, continuava a solu-
çar. Que lhe importavam os outros melros se “esse”, o seu pequeno
amigo, fora comido pelo gato e jamais o tornaria a ver?
Passou, triste, alguns dias. Ninguém conseguia fazê-lo voltar à
alegria. Narra Lemoyne: “Finalmente quedou-se a refletir sobre a
nulidade das coisas mundanas e tomou uma resolução superior à
sua idade: não mais prender o coração a coisas terrenas”. As mes-
mas palavras repetiu-as anos mais tarde, à morte do seu amigo mais
caro. E muitas outras vezes.
É grato observar que foi este o propósito que João Bosco jamais
conseguiu observar. Seu coração de carne igual ao nosso precisa
amar as coisas pequeninas e as grandes. Haverá de chorar ainda, o
coração aos pedaços, à morte do padre Calosso, de Luís Comollo,
e à vista dos primeiros rapazes atrás das grades da prisão. Dirá dos
que escandalizavam seus meninos: “Se não fosse pecado, os esgana-
ria com estas minhas mãos”. Seus rapazes testemunharão dele com
insistência quase monótona: “Ele me queria muito bem”. Um deles,
Luís Orione, escreverá: “Caminharia sobre brasas ardentes para vê-
-lo de novo e dizer-lhe: Obrigado”.
A ascética do tempo ensinava que “prender o coração às criatu-
ras” era um mal; melhor não arriscar, amar pouco.
42

5.4 Page 44

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A do Vaticano II, porém, mais evangélica, nos dirá que, por cer-
to, não é o caso de transformar as criaturas em ídolos, mas que
Deus nos deu o coração para amar sem temor. O deus dos filósofos
é impassível, mas o Deus da Bíblia não. Ele ama e se irrita, sofre e
chora, tem frêmitos de alegria e sorrisos de ternura.
Sua terra
Pelos 9 anos, o menino começa a sair da estufa cálida de sua
família, a olhar à sua volta. Também Joãozinho observava e desco-
bria a sua terra. Bela, ondulada, calma. Aí cresciam as amoreiras,
os vinhedos, o milho, o cânhamo. Aí pastavam vacas e ovelhas. Os
bosques extensos e cerrados eram manchas intensas de verde. Os
camponeses, de enxada, capinando compassados, sob o sol, eram
homens pacientes. Tenazes. Gente fiel à própria terra, onde haviam
fincado raízes. Como as árvores. Não se envergonhavam de tirar o
chapéu diante do padre e diante de Deus. Quando em família fecha-
vam a porta de casa, sentiam-se reis.
João Bosco foi um grande filho de Deus. E também dessa terra.
Sua vocação viera do Céu, mas foram o clima, os ares, o caráter
daquelas pessoas que a modelaram e nutriram. Na voz carregará
sempre a cadência dialetal das suas colinas. Na alma, a marca de
sua gente.
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5.5 Page 45

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5
Pequeno saltimbanco
Os 9 anos de Joãozinho estão marcados pelo “grande sonho”: a
multidão de meninos, o Homem que lhe aconselha “não com
pancadas, mas com a mansidão”, a Senhora que lhe prediz que
“a seu tempo tudo compreenderá”.
Não obstante as prudentes palavras da avó, aquela noite projetou
uma luz sobre o futuro. O sonho dos 9 anos – escreve o historiador
Pedro Stella – condiciona todo o modo de viver e de pensar de João
Bosco. E condiciona também o procedimento da mãe nos meses e
nos anos que se seguem.Também para ela é a manifestação de uma
vontade superior, um sinal muito claro da vocação sacerdotal do
filho. Só assim se pode explicar sua tenacidade em conduzir Joãozi-
nho pelo caminho que o faria subir ao altar.
No sonho Joãozinho viu um exército de meninos, sendo-lhe or-
denado que lhes fizesse o bem. Por que não começar logo? Meninos
já conhece vários: os colegas de brinquedo, os pequenos emprega-
dos que vivem nos sítios esparsos pela região. Muitos são gente boa.
Mas outros são grosseiros, blasfemadores.
No inverno, muitas famílias passavam o serão reunidas num gran-
de estábulo onde bois e vacas funcionavam como aquecedores. En-
quanto as mulheres fiavam e os homens pitavam, João começou a
ler aos seus amigos os livros que o padre Lacqua lhe emprestava:
Guerino mesquinho, A história de Bertoldo, Os pares de França.
“Todos me queriam no estábulo”, conta. “Aos meus colegas unia-se
gente de toda idade e condição. Todos gostavam de passar aquelas
horas ouvindo, imóveis, o pobre leitor de pé sobre um banco, a fim
de que todos o pudessem ver.”
O best-seller daqueles serões eram Os pares de França. Narrava
as aventuras maravilhosas e um tanto artificiosas de Carlos Magno e
seus paladinos: Orlando, Olivério, o traidor Ganelão, o bispo Turpi-
no, o morticínio da espada mágica Durindana. Escreve Dom Bosco:
“Antes e depois das minhas histórias, todos fazíamos o sinal da cruz
e rezávamos a Ave-Maria”.
44

5.6 Page 46

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Trombetas na colina
Na primavera e no verão as coisas são outras.As histórias já não
despertam tanto interesse. Para reunir os seus amigos, acha João que
deve fazer algo“maravilhoso”.Mas o quê? As cornetas dos saltimban-
cos ressoam na colina vizinha. É a feira. Joãozinho comparece com
a mãe. Lá se compra, se vende, se discute, se engambela. E o povo
se diverte: amontoa-se ao redor dos prestidigitadores e acrobatas.As
mágicas e os exercícios de destreza deixam os camponeses de boca
aberta. Eis, pois, o que ele também poderia fazer. Mas é preciso pôr-
-se a estudar os segredos dos equilibristas e os truques dos mágicos.
Os grandes espetáculos, porém, só se dão nas festas do padroei-
ro: funâmbulos que dançam nas cordas, prestidigitadores que apre-
sentam o que há de mais sofisticado (tirar pombas e coelhos de
chapéus, fazer uma pessoa desaparecer, cortá-la em duas e fazê-la
reaparecer inteira). Muito apreciados são também os “tira-dentes
sem dor”.
Mas para ver tais proezas, é preciso ter ingresso. Custam 2 sol-
dos. Onde achá-los? Margarida, consultada, responde:
– Vire-se como quiser. Mas não me peça dinheiro, que não te-
nho.
Ele se vira. Pega e vende passarinhos. Fabrica cestos, gaiolas e os
comercia com vendedores ambulantes.Vai à cata de plantas medici-
nais e as leva ao boticário de Castelnuovo.
É assim que ele consegue um lugar bem na frente do espetáculo.
Observando atentamente, descobre o equilíbrio que dá o balancim
sobre a corda, capta o movimento rápido dos dedos que despista o
truque. Chega até descobrir grosseiros embustes.
Naqueles tempos, tirar um dente cariado era uma tortura para
todos. O primeiro anestésico só seria testado em 1846, nos Estados
Unidos. João, porém, numa feira de 1825, já assiste a uma “extração
indolor”, atribuída a um pozinho mágico. O camponês que se pres-
ta para a façanha tem, de fato, um molar que dói. O prestidigitador,
por entre o estridor de tambores e trombetas, mergulha os dedos
no pozinho e lho arranca com um golpe seco de chave-inglesa des-
lizada manga abaixo. O camponês se levanta num urro de dor, mas
o estrondo das cornetas e tambores abafam o berro, enquanto o
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5.7 Page 47

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tira-dentes o abraça até sufocá-lo, gritando: “Obrigado! Obrigado!
Aprovado 100%!”.
Joãozinho foi dos poucos que viram deslizar o “boticão”. E foi-se
embora, gargalhando.
Em casa ensaia os primeiros jogos. “Exercitava-me dias e dias.
Até aprender.” Para tirar coelhos da cartola, caminhar sobre a corda,
requerem-se meses de exercício, de constância, de tombos.“Talvez
não me acreditem – escreve Dom Bosco –, mas aos 11 anos eu fazia
prestidigitação, dava saltos mortais, andava com as mãos, marchava
e dançava na corda como um verdadeiro profissional.”
Espetáculo no prado
Numa tarde de domingo, em pleno verão, João anuncia aos amigos
seu primeiro espetáculo. Sobre um tapete de sacos estendidos na rel-
va, faz milagres de equilíbrio com canecas e caçarolas, suspensas na
ponta do nariz. Manda uma criança abrir a boca e tira dela dezenas
de bolinhas coloridas. Trabalha com a varinha mágica. Por fim, pula
sobre a corda e caminha por entre os aplausos dos amigos.
A notícia circula de casa em casa. O público aumenta: pequenos
e grandes, meninos e meninas, gente idosa também. São os mesmos
que no estábulo ouviam a leitura de Os pares de França. Agora,
todos o veem transformar o longo nariz de um ingênuo camponês
numa fonte de moedas; mudar a água em vinho; multiplicar ovos;
abrir a bolsa de uma mulher e fazer sair dela um pombo voando.
Todos riem e aplaudem.
Lemoyne escreve que também o irmão Antônio ia ver os jogos,
mas nunca se postava nas primeiras filas. Escondia-se atrás de uma
árvore, aparecendo e desaparecendo. Às vezes, se punha a zombar
do pequeno saltimbanco:
– Eis o palhaço, o vagabundo. Eu me matando de trabalhar e ele
a bancar o charlatão.
João sofria. Algumas vezes suspendia o espetáculo, recomeçan-
do-o centenas de metros além, onde Antônio acabava por deixá-lo
em paz. Um charlatão todo “especial” aquele menino. Antes do nú-
mero final, tirava o terço do bolso e se punha de joelhos, convidan-
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5.8 Page 48

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do todos a rezar. Ou então repetia o sermão ouvido de manhã na
igreja. Esse era o pagamento que pedia ao público, a entrada que a
todos, pequenos e grandes, fazia pagar. Durante a vida, João Bosco
será generosíssimo em doar suas fadigas, mas como bom piemontês,
fará sempre uma cobrança. Não em dinheiro, mas em empenho por
Deus e pelos meninos pobres.
Por último, o final brilhante: esticava uma corda por entre duas
árvores, subia e caminhava sobre ela segurando o seu tosco balan-
cim, em meio a rápidos silêncios e frenéticas ovações.
“Depois de algumas horas de diversão – escreve –, quando estava
bastante cansado, cessavam os jogos, fazia-se breve oração e todos
voltavam para casa”.
Primeira comunhão
A Páscoa de 1826 caiu a 26 de março. Nesse dia fez João a primeira
comunhão na igreja paroquial de Castelnuovo. Eis como a recorda:
Minha mãe me acompanhou de perto. Durante a Quaresma me levou a
confessar-me. “Meu caro João”, me disse. “Deus lhe prepara um grande
presente. Disponha-se a recebê-lo bem. Confesse tudo. Esteja arrependido.
E prometa a Deus ser melhor no futuro”.
Prometi tudo. Se depois cumpri, só Deus sabe.
Naquela manhã me acompanhou à sagrada mesa, fez comigo a preparação
e a ação de graças. Nesse dia não quis que eu me ocupasse com nenhum
trabalho material, mas quis que me empenhasse em ler e rezar. Repetiu-me
muitas vezes:“Hoje foi um grande dia para você. Deus tomou posse de seu
coração.Agora, prometa-lhe fazer quanto puder para conservar-se bom até
o fim da sua vida. No futuro, vá com frequência receber a Eucaristia. Diga
sempre tudo na confissão. Seja sempre obediente. Vá de boa vontade ao
catecismo e às pregações. Mas, pelo amor de Deus, fuja como da peste dos
que têm más conversas”.
Procurei pôr em prática os conselhos de minha mãe, e parece-me que,
desde aquele dia, alguma coisa melhorou em minha vida, especialmente
na obediência e na submissão aos outros, coisas que, antes, me causavam
uma grande repugnância.
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5.9 Page 49

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O inverno mais triste da vida
O inverno que se seguiu for o pior de sua vida. A avozinha (mãe
de Francisco) falecera. Antônio, com 18 anos, ia-se “afastando” cada
vez mais da família: seus quartos de hora de violência ficavam cada vez
mais frequentes.
Nos últimos dias de outubro, Margarida aludiu à possibilidade
de mandar Joãozinho por mais uns anos à escola do padre Lacqua.
Poderia aprender os primeiros elementos de latim. Antônio reagiu
bruscamente:
– Latim?! Que necessidade temos de latim aqui em casa? Traba-
lhar, trabalhar!
Com toda a probabilidade Margarida aludia também à possibili-
dade de Joãozinho tornar-se padre. Mas Antônio deve ter achado
uma utopia irrealizável. “Para se fazer um padre, ouvirá Joãozinho
dizer muitas vezes, são necessárias 10 mil libras”. Soma inconcebí-
vel para uma família camponesa daqueles tempos.
Com a desculpa de levar recados à tia Mariana e ao avô, que vivia
em Capriglio, pôde João algumas vezes frequentar as aulas do padre
Lacqua também no inverno de 1826-27. Antônio, porém, voltava a
ter seus ímpetos de cólera. E um dia as coisas se precipitaram. Era
a guerra aberta. O próprio Dom Bosco nos conta:
Antônio, primeiro com minha mãe, depois com meu irmão José, falou em
tom imperativo:
– Basta. Vou dar cabo dessa gramática. Eu cresci forte e gordo e nunca vi
um livro.
Naquele momento, dominado pela aflição e pala raiva, respondi o que não
devia:
– Pois é! O nosso burro também nunca foi à escola e é mais gordo que
você!
Para quê! A essas palavras, Antônio se enfureceu de tal modo que a custo
me pude safar de uma chuva de pancadas.
Minha mãe estava muito aflita. Eu chorava.
Por alguns dias, as coisas continuaram, na mesma toada em meio
a tensões de inveja e rancor. Antônio era um bronco, mas Joãozi-
nho não se deixava pisar. Reagia vivazmente.
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5.10 Page 50

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Aconteceu, porém, o fato do livro, que João havia posto sobre a
mesa, ao lado do prato. E então explodiu a cena que narramos no
início destas páginas. João não conseguiu escapulir-se. E levou a
maior surra da sua vida...
Na manhã seguinte, Margarida disse ao filho as palavras mais tris-
tes para ambos:
– Olhe, Joãozinho, é melhor que você deixe esta casa!
E num dia nevoento de inverno, o pequeno migrante chegou à
casa dos Moglias, onde foi aceito como empregadinho por causa do
seu pranto. Um pranto inconsolado...
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6 Pages 51-60

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6.1 Page 51

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6
Três anos no “sítio” e um na canônica
Passados alguns dias, Luís Moglia disse a Doroteia:
– Sabe que não foi nenhum mau negócio aceitar esse menino?
João Bosco pusera-se a trabalhar com empenho, revelando
boa vontade e obediência. Sua tarefa era zelar pelo estábulo.
O trabalho mais pesado consistia em refazer, todas as manhãs, o
“leito” de palha nova para as vacas, levando embora os dejetos com
o tridente e o carrinho de mão. Mais: escovar o pelo dos animais, levá-
-los ao bebedouro, subir ao depósito e lançar nas manjedouras o
feno para o dia, e ordenhar as vacas.
É claro que João não devia fazer tudo isso sozinho: estava na de-
pendência do “vaqueiro”, que lhe confiava os serviços mais adapta-
dos à sua condição de menino.
Também na oração, à noite, João demonstrou ser um rapaz exce-
lente.Tanto que Doroteia o convidou várias vezes a puxar o terço.
Para dormir, os Moglias lhe deram um quartinho bem claro e com
boa cama. Mais do que tivera nos Becchi, onde precisava dividir o
quarto com José e talvez também com Antônio. Depois das primei-
ras noites, João ousou acender um pedaço de vela e ler pelo espaço
de uma hora um dos livros que o padre Lacqua lhe tinha empresta-
do. Ninguém disse nada. E ele continuou.
Uma noite de sábado, pediu licença ao patrão para na manhã
seguinte ir bem cedo a Moncucco. Voltou em tempo para o café e,
às 10, acompanhou o senhor Luís e toda a família à segunda Missa.
Como nos sábados seguintes continuasse a pedir a estranha li-
cença, Doroteia quis saber aonde ia o menino. Afinal, era ela que
respondia por ele diante da mãe. Foi, por isso, a Moncucco antes de
clarear o dia e, da casa de uma amiga, viu João chegar e entrar na
igreja.Viu-o depois achegar-se ao confessionário do pároco, ouvir a
primeira Missa e fazer a comunhão.
Naquele tempo comungava-se poucas vezes. Durante a segunda
Missa (da qual participavam todas as pessoas do lugar) nem sequer
50

6.2 Page 52

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se distribuía a comunhão.1 Quem quisesse comungar devia ir à pri-
meira Missa, que o pároco celebrava muito cedo.
Acompanhando-o a casa, Doroteia lhe disse:“De hoje em diante,
quando quiser ir à Missa, vá à vontade. Não precisa pedir licença”.
Confessando-se com o pároco, padre Cottino, João confiou-lhe
o desejo de ser sacerdote e também as dificuldades. Padre Cottino
animou-o a confessar-se e receber a Eucaristia todas as semanas, a
rezar durante o dia e a confiar em Deus. Se Ele quisesse, as dificul-
dades seriam resolvidas. Exortou-o igualmente a não interromper
completamente o estudo. Se, a seguir, fosse compatível com seu
trabalho, ele lhe daria de boa vontade algumas aulas de latim. Por
enquanto, emprestava-lhe livros.
Dois grãos e quatro espigas
O velho José, tio do patrão, voltava um dia do campo todo suado
e com a enxada no ombro. Era meio-dia e o campanário de Mon-
cucco batia o sino para o ângelus. O velho, cansado, assentou-se no
feno para um respiro. Pouco longe viu João, também sobre o feno,
mas ajoelhado: rezava o ângelus, como mamãe Margarida o habitua-
ra a fazer, de manhã, ao meio-dia e à noitinha.
Entre sério e jocoso, José resmungou:
– Vejam só! Nós, os patrões, nos matamos da manhã à noite, e já
não aguentamos. E o empregadinho, aí na onda mansa, rezando em
santa paz...
Também Joãozinho, meio sério e gracejando, respondeu:
– Quando se trata de trabalhar, tio José, o senhor sabe que não me
poupo. Mas minha mãe me ensinou que quando se reza, de dois grãos
nascem quatro espigas. Se, porém, não se reza, de quatro grãos nascem só
duas espigas. É melhor, portanto, que o senhor também reze um pouco.
– Mais essa! – concluiu o velho. – Temos também o padre em casa!
Com a chegada da primavera, cabia ao empregadinho levar as va-
cas a pastar: vigiar que não invadissem os campos alheios, que não
comessem capim muito molhado, que não brigassem.
1Para dificultar havia também a lei do jejum eucarístico a que se obrigava a partir da meia-noite (N.T.).
51

6.3 Page 53

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Sentado à sombra das árvores, enquanto os animais tosavam o
capim ao redor, João achou um pouco de tempo para os seus livros.
Luís Moglia não se queixava, mas meneava a cabeça:
– Para que ler tanto assim?
– Quero ser padre.
– E não sabe que para estudar hoje em dia precisa ter de 9 a 10
mil liras? Onde achá-las?
– Se Deus quiser, alguém haverá de pensar nisso.
Nos prados, para brincar, às vezes comparece também a filhinha
mais velha dos Moglias, Ana, de 8 anos. Vendo João a ler seus livros
em vez de admirar seus folguedos, melindra-se:
– Basta de leitura, João.
– Mas eu vou ser padre, Ana. Deverei pregar e confessar.
– Oh, sim, padre! – diz, caçoando, a garotinha. – Vaqueiro, isso
sim, é o que você vai ser.
João certa vez lhe responde:
– Hoje você troça de mim, Ana. Mas um dia você vai se confessar
comigo.
(Ana casou e morou por longo tempo em Moriondo. Sempre
contava este fato aos filhos. Quatro ou cinco vezes por ano ia a Val-
docco, Turim, para confessar-se com o padre Bosco, que a acolhia
muito feliz, como se fosse sua irmã.)
Quando voltou o inverno, os patrões lhe permitiram ir algumas
vezes às aulas do padre Cottino. Mas foram poucas as aulas e tão
distanciadas umas das outras que muito pouco ajudaram.
A amizade do pároco, ao contrário, lhe facilitou a amizade com
os rapazes de Moncucco. A sala de entrada da canônica, que nos
dias úteis funcionava como escola, transformava-se aos domingos,
num pequeno oratório. João Bosco fazia suas mágicas, lia as páginas
mais cheias de aventura da História sagrada, dirigia a oração dos
pequenos amigos.
Quando o tempo era ruim e não se podia ir a Moncucco, alguns
amigos da redondeza iam ter com ele na casa dos Moglias. João os
levava ao depósito de feno e entretinha-os com várias diversões e
lhes explicava o catecismo.
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Na herdade dos Moglias, João transcorreu quase três anos com-
pletos: desde fevereiro de 1827 até novembro de 1829. Anos per-
didos para os seus estudos. Mas teriam sido inúteis também para a
missão a que Deus o destinava?
Pedro Stella relembra um episódio, à primeira vista insignificante:
Dona Doroteia e o cunhado João o encontraram certo dia ajoelhado, tendo
o livro entre as mãos, olhos fechados, rosto voltado para o céu. Tiveram
de sacudi-lo, tão absorto estava em sua reflexão. [...] Logo, não foram anos
inúteis esses em que se radicou de modo mais profundo em João o sentido
de Deus e da contemplação. Pôde introduzir-se no colóquio com Deus
durante o trabalho do campo.Anos que podem definir-se como de espera
absorta e suplicante, por Deus e pelos homens.
Em 1827, em Milão, Alexandre Manzoni publicou a primeira edi-
ção dos Promessi sposi (Noivos). Em 1828, em Recanati, Tiago Leo-
pardi começou a compor os grandes Idilli (Idílios). Em 1829, em
Paris, Joaquim Rossini levou à cena a sua obra-prima Guilherme
Tell. Nesses mesmos três anos, João Bosco escovou o pelo das vacas
numa perdida herdade do Monferrato. E começou a falar com Deus.
Tio Miguel
A permanência de João na casa dos Moglias era um espinho no
coração de Margarida, sua mãe. Provavelmente desafogou-se com
o irmão Miguel, que, por ocasião do término dos contratos rurais
(11 de novembro), foi falar com o sobrinho. Encontrou-o a tocar as
vacas do estábulo.
– Então, Joãozinho, gosta ou não gosta daqui?
– Não.Todos me tratam muito bem, mas eu quero estudar. Os anos
vão-se passando, já fiz 14, e continuo parado no mesmo lugar.
– Então traga os animais de volta para o estábulo e vá para os Bec-
chi; falarei com seus patrões. Agora preciso ir ao mercado de Chieri.
Mas de noite passarei lá em casa e acertaremos tudo.
João fez a trouxa, despediu-se de dona Doroteia, do senhor Estê-
vão, do tio José, da Teresa e da Ana. Haviam-se tornado amigos e tais
ficariam pelo resto da vida.
Depois retomou a estrada dos Becchi. Venho-o chegar ao longe,
Margarida correu-lhe ao encontro:
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– Antônio está em casa. Tenha paciência, esconda-se até que
o tio chegue. Se Antônio o vir, poderia pensar num complô e só
Deus sabe o que poderia acontecer.
João desviou-se para trás de uma sebe e foi sentar-se perto de
um valo. A coisa, portanto, não tinha acabado, e devia preparar-se
para novos embates.
O tio chegou bem de noite. Levou para dentro de casa o so-
brinho tiritante de frio. Houve tensão, mas não guerra. Antônio
completara 21 anos e ia casar. Tendo recebido garantias de que a
manutenção e os estudos de João não correriam por sua conta, não
fez objeções.
Miguel sondou os párocos de Castelnuovo e de Buttigliera, para
ver se podiam acolher o sobrinho estudante. Esbarrou em sérias di-
ficuldades. Mas a solução chegou de modo totalmente inesperado.
Quatro soldos por uma prédica
Em setembro daquele ano de 1829 fora estabelecer-se em Murial-
do como capelão o padre João Melquior Calosso, 70 anos, que, por
motivos de saúde, havia renunciado, anos antes, à sua paróquia de
Bruíno. Era um padre venerando, carregado de anos e de experiên-
cia pastoral.
Em novembro, houve uma “missão pregada” nos povoados de
Buttigliera. Compareceram também João e o padre Calosso. Ao vol-
tarem para casa, os olhos do padre caíram sobre aquele rapagote de
14 anos, caminhando só.
– E de onde é você, meu filho?
– Dos Becchi. Fui ouvir a prédica dos missionários.
– Que terá você entendido com todas aquelas citações em la-
tim...! – e meneava a cabeça branca, sorrindo. – Talvez sua mãe lhe
pudesse fazer uma prédica mais oportuna.
– É verdade. Minha mãe me faz com frequência prédicas muito
boas. Mas parece-me ter entendido também os missionários...
– Será? Vamos ver: se me disser algumas palavras da prédica de
hoje vou lhe dar 4 soldos.
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Tranquilo, João recitou toda a prédica ao capelão. Como se lesse
num livro.
O padre Calosso não deixou transparecer a emoção, e perguntou:
– Como se chama?
– João Bosco. Meu pai morreu quando eu era criança.
– E aonde foi à escola?
– Aprendi a ler e escrever com o padre Lacqua, em Capriglio.
Gostaria de continuar os estudos, mas meu irmão mais velho não
me deixa. Os párocos de Castelnuovo e de Buttigliera não têm tem-
po pra me ajudar.
– E para que você gostaria de estudar?
– Para ser padre.
– Diga à sua mãe que vá falar comigo em Morialdo. Quem sabe se
eu, apesar de velho, não o posso ajudar?
Margarida, sentada à mesa do padre Calosso, ouviu-o dizer:
– Seu filho é um prodígio de memória. É preciso que o ponha a
estudar logo, sem mais perda de tempo. Eu estou velho, mas tudo
quanto puder fazer, farei.
Ficou, pois, combinado que João iria estudar com o capelão não
longe dos Becchi.Voltaria para casa somente para dormir. Mas, nos
momentos de maior aperto nos trabalhos do campo, iria ajudar.
João conseguiu de repente o que lhe faltara por tanto tempo:
acolhimento paterno, sentido de segurança, esperança.
Coloquei-me logo nas mãos do padre Calosso. Abri-me inteiramente com
ele. Manifestei-lhe toda palavra, cada pensamento. Fiquei sabendo então o
que era ter um guia estável, um fiel amigo da alma, que até aquele tempo
não tivera. Entre outras coisas, proibiu-me logo certa penitência que eu
costumava fazer e que não era apropriada à minha idade. Animou-me a
frequentar a confissão e a comunhão e me ensinou a fazer todos os dias
uma breve meditação, ou melhor, um pouco de leitura espiritual.2
2 Em Bruíno, o padre Calosso achara e tornara florescente uma Companhia de Maria Auxiliadora. Na
igreja paroquial havia mesmo um altar dedicado a Nossa Senhora Auxiliadora.Terá sido dele que Dom
Bosco ouviu falar pela primeira vez de Nossa Senhora “Auxiliadora dos Cristãos”?
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“Com ele morriam todas as esperanças”
Por volta de setembro de 1830, para anular talvez qualquer resí-
duo de tensão com Antônio, passou a morar com o padre Calosso
também de noite. Ia à casa uma vez por semana buscar a roupa lavada.
Os estudos progrediam rapidamente e bem. Dom Bosco recorda-
va esses dias com palavras de entusiasmo:
Ninguém pode imaginar a minha alegria. Amava o padre Calosso como
a um pai. Servia-o de boa vontade em todas as coisas. Aquele homem de
Deus tinha-me um tal afeto, que várias vezes me disse:“Não se preocupe
com o futuro. Enquanto eu viver, não deixarei faltar nada. E igualmente se
eu morrer, tomarei providências a seu respeito”. Estava plenamente feliz,
quando um desastre veio truncar todas as minhas esperanças.
Certa manhã de novembro de 1830, enquanto João está em casa
pegando a roupa, chega uma pessoa para avisá-lo de que o padre
Calosso se sentira mal. “Não corri, voei”, recorda Dom Bosco. Fora
vítima de um infarto. Reconheceu João, mas não mais lhe pôde falar.
Indicou-lhe a chave de uma caixa, fazendo sinais para que não a desse
a ninguém.
Foi tudo. Ao rapaz só restou chorar inconsolavelmente sobre o
cadáver do seu segundo pai. “Com ele morriam todas as minhas
esperanças.”
Telhas abaixo, só restava uma esperança: a chave. No cofre havia
umas 6 mil liras. Pelos gestos do padre Calosso, deduzia-se com cla-
reza que eram suas. Para o seu futuro. Confirmavam-no algumas pes-
soas que assistiram o agonizante. Outras, porém, sustentavam que
os gestos de um moribundo não queriam dizer nada: e que só um
testamento regular confere ou tira direitos.
Ao chegarem, os sobrinhos do padre Calosso portaram-se como
pessoas de bem. Informaram-se e depois disseram a João:
– Parece que o tio queria deixar para você esse dinheiro.Tome,
pois, tudo quanto quiser.
João pensou um pouco, depois concluiu:
– Não quero nada.
Nas suas Memórias, Dom Bosco resume os acontecimentos
numa só frase: “Vieram os herdeiros do padre Calosso, entreguei-
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-lhes a chave e todas as outras coisas”. Um gesto despachado, que
corta todo cálculo. Como padre, adotará como palavra de ordem
uma frase da Bíblia, igualmente expedita: Da mihi animas, caetera
tolle (Dai-me almas, o mais não me interessa).
Com 15 anos, João estava novamente só. Sem professor. Sem di-
nheiro. Sem perspectivas para o futuro.“Chorava inconsolável”, es-
creve.
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7
A estrada para Castelnuovo
Entretanto, precisava continuar.
Para prevenir de vez as oposições de Antônio, Margarida deci-
diu dividir com ele o patrimônio. Havia também uma boa saída
para “disfarçar” o arranjo pouco simpático aos olhos dos estranhos:
Antônio iria casar. De fato, aos 21 de março de 1831, desposou Ana
Rosso, de Castelnuovo.
Os campos foram divididos, a casa dos Becchi repartida:Antônio
ficou com a metade que dá para o levante (com a pequena escada de
madeira que sobe ao primeiro andar); na outra metade, continuaram
a morar Margarida, José e João.
Em dezembro, João põe-se a caminho: vai frequentar as escolas
públicas de Castelnuovo. Junto às elementares o município abrira
um curso de língua latina, dividido em cinco classes. Os minguados
alunos de cada classe, porém, se reúnem numa única sala com um
único professor, o padre Manoel Virano.
Almoço na marmita
Os 5 quilômetros que separam os Becchi de Castelnuovo não
parecem, de começo, grande obstáculo para os briosos 15 anos de
João. Como a escola tem dois turnos – três horas e mais pela manhã,
e três de tarde –, o rapaz parte cedo de casa, levando consigo um
pedaço de pão, e regressa ao meio-dia para o almoço; torna a sair
de tarde e volta de noite; quase 20 quilômetros por dia. É um ritmo
alucinante, que, depois de alguns dias (devido talvez à primeira ne-
vada), foi prontamente modificado.
O tio Miguel conseguiu-lhe uma semipensão, em casa de um bom
homem, João Roberto, alfaiate e músico do lugar. É na casa dele que
João almoça o que leva de casa na marmita.
Assim mesmo, 5 quilômetros de manhã e 5 de tarde não são brinca-
deira.Sobretudo no inverno.Mas João caminha feliz e,quando a estrada
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não é um pântano devido à chuva ou uma pista gelada por causa da
neve, ele, como todos os camponeses, tira o calçado e o leva a tiracolo.
Chuva e vento, sol e poeira são os seus companheiros por muitos dias.
Em certas tardes de janeiro, porém, não tem coragem de pôr o pé
na estrada em meio ao turbilhão da neve que cai. Então pede ao se-
nhor Roberto que lhe permita dormir no vão da escada. Mesmo sem
jantar.
Margarida compreende que o filho nesse inverno podia correr
o risco de deixar a saúde pela estrada. E foi falar com o alfaiate. Por
soma razoável, pagável também com cereais e vinho, o senhor Ro-
berto concordava em dar a João pensão completa: ao meio-dia e à
noite, sopa quente e, para dormir, o vão da escada. No pão pensava
a mãe.
Ela mesma o acompanha a Castelnuovo, levando na bolsa os pou-
cos pertences necessários a um rapagote, pobre, de 15 anos. Pede
ao senhor Roberto que “dê uma olhadela e talvez um puxão de ore-
lha”. E a João:“Seja devoto de Nossa Senhora! Que Ela o ajude!”.
Na escola encontra alunos de 10, 11 anos. Sua preparação cul-
tural até aí fora muito modesta. Se acrescentarmos o jaquetão des-
proporcionado e o calçado grosseiro, está fácil compreender como
logo se torne alvo de troças e zombarias dos pequenos. Chamam-no
“o vaqueiro dos Becchi”.
João, antes ídolo dos rapazes de Morialdo e Moncucco, sofre. Mas,
com a ajuda e a estima do professor, entrega-se ao estudo de corpo e
alma. O padre Manoel Virano era competente e gentil.Vendo-lhe a boa
vontade, toma-o à parte e em pouco tempo leva-o a rápidos progressos.
Quando João escreve uma composição verdadeiramente boa sobre a
figura de Eleazar, o professor Virano a lê para a classe e conclui:
– Quem sabe compor assim pode também dar-se ao luxo de cal-
çar como vaqueiro. O que vale na vida não é o sapato, mas a cuca.
Castelnuovo d’Asti situa-se numa elevação, a uns 20 quilômetros
de Turim. No alto da colina estão as ruínas de um castelo. E no ponto
mais alto, a “igreja do Castelo”, dedicada a Nossa Senhora. João vai
até lá muitas vezes suplicar à Senhora “que o proteja”.
Os habitantes do lugar são 3 mil, agrupados em 600 famílias.
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7 Pages 61-70

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Margarida vem dos Becchi todas as semanas. Traz para o filho
dois enormes pães redondos que devem bastar para toda a semana.
Ela mesma os traz. Quer “ver de perto” como vão as coisas do João.
E faz muito bem, porque entre os colegas de escola há também dos
que não prestam e é fácil meter-se um estudante pelos caminhos
do mal.
Narra Dom Bosco:
Nesse ano corri algum perigo por causa de certos colegas. Queriam que
fosse jogar a dinheiro durante o tempo de aulas. Como lhes dissesse que não
tinha dinheiro, diziam-me:“Já é tempo de acordar. Precisa aprender a viver.
Roube de seu patrão e da sua mãe”.Eu me lembro que respondi:“Minha mãe
me quer muito bem. E não quero nem começar a dar-lhe desgostos”.
A escola nesses anos tinha caráter rigidamente religioso. A pri-
meira meia hora da manhã era sempre dedicada ao catecismo. Dedi-
cava-se também à instrução cristã a lição vespertina do sábado, que
terminava com a reza da ladainha de Nossa Senhora. Os professores
deviam dar aos alunos não só a possibilidade, mas também a opor-
tunidade de assistir à Missa todos os dias e de confessar-se uma vez
por mês.
“Nos Becchi só dá burro”
Em abril, João chega a bom termo em sua recuperação escolar.
Eis, porém, que se dá um fato que lhe trará amargas consequências.
Padre Virano é nomeado pároco de Mondônio e deve deixar a esco-
la nas mãos do padre Nicola Moglia.
Piedoso, e caritativo, já tem 75 anos e não consegue de modo
algum controlar as cinco séries que convivem na sala de aula. Rigo-
roso por um dia, solta as rédeas no resto da semana.Aquela barafun-
da...
Implica com os grandes, culpando-os pela contínua desor-
dem. Demonstra especial antipatia pelo mais alto, “o vaqueiro
dos Becchi”, embora João já sofresse muito com aquela indisciplina
coletiva. Não perde ocasião para humilhá-lo:
– Que vai você entender de latim? Nos Becchi só dá burro, e dos
grandes! Ótimos burros se quiserem, mas sempre burros. Vá catar
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cogumelos, vá! Vá atrás de passarinhos, que esse é o seu trabalho. E
não fique aí a estudar latim.
Os colegas, que, devido à estima do padre Virano, estavam co-
meçando a deixá-lo em paz, caíram de novo sobre ele. João passou
dias amargos...
Um dia, porém, quis dar o troco.
Padre Moglia marcara uma tarefa na classe de latim. João, que
devia fazer a tradução com os da primeira, pediu ao professor que o
deixasse tentar o trabalho da terceira classe. Ofendeu-se:
– Mas o que é que você pensa que é? Volte já para o seu trabalho!
Deixe de ser o burro de sempre!
João insistiu. O professor acabou por ceder:
– Está bem, está bem! Faça! Afinal... Mas não pense que eu vá ler
suas asneiras!
O jovem engoliu amargo e atacou a tradução. Era muito difícil
mesmo, mas achou que daria conta.
É dos primeiros a entregar: o professor recebe o papel e o põe
de lado.
– Leia, por favor, e diga-me quais foram os erros que cometi.
– Volte para o seu lugar e não me aborreça, sim?!
João, entre gentil e teimoso, não cedeu:
– Não lhe peço um grande sacrifício. Somente, por favor, que leia.
Leu.A tradução era boa, muito boa.Tanto que lhe fez perder no-
vamente a paciência:
– Já lhe disse que você não presta para nada. Este trabalho você
o copiou do princípio ao fim.
– E de quem o teria copiado?
Os vizinhos estavam ainda mordendo as canetas..., tentando tra-
duzir as últimas frases.
– Deixe de impertinências – faiscou o professor. – Já para o seu
lugar! E me agradeça se não o expulso da escola!
A arteriosclerose, como os preconceitos, era mortífera também
naqueles tempos.
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Para João, os últimos meses daquele ano escolar foram de hu-
milhação. Em suas Memórias, não refere Dom Bosco o nome do
professor: respeitava os velhos.Alude apenas a “um que, incapaz de
manter a disciplina, quase deitou a perder tudo quanto havia apren-
dido nos meses anteriores”.
A batina que “separa”
Outro espinho fazia João sofrer naqueles meses. Conhecera dois
sacerdotes espetaculares: o padre Calosso e o padre Virano. Não po-
dia suportar que os demais fossem diferentes.
Escreve:
Acontecia-me, muitas vezes, encontrar-me pelo caminho com o pároco
e seu coadjutor. Cumprimentava-os já de longe. E, ao cruzar com
eles, fazia-lhes ainda uma reverência. Mas eles guardavam distância,
contentando-se com responder cortesmente à minha saudação, sem
interromper seu passeio.
Aquela veste negra parecia “separá-los” dos demais. Nos seminá-
rios, então, ensinava-se ser aquela a atitude mais adaptada às “pessoas
de Igreja”. Reserva. Gravidade. Separação.
“Sentia por isso um grande desgosto. E dizia aos meus amigos:
‘Se algum dia eu chegar a ser padre, farei tudo ao contrário: me
aproximarei dos meninos e lhes direi boas palavras e bons conse-
lhos’.”
Longe estava João de imaginar que a sua decisão iria operar, nos
oitenta anos seguintes, uma profunda e silenciosa revolução no
meio do clero. Perceberão nos seminários que aquele menino ti-
nha razão. E educarão as novas gerações de sacerdotes não mais na
gravidade que “gera distância”, mas na bondade sorridente que a
destrói.
Em Morialdo, João passava o tempo livre dos estudos em serenos
bate-papos com padre Calosso. O velhote relembrava o tempo pas-
sado, e o menino fantasiava sobre o próprio futuro. Depois, varria
a igreja, punha ordem na cozinha, revirava a pequena biblioteca.
Em Castelnuovo, os padres não queriam falar com ele. Como
encher o tempo livre?
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Seu primeiro hobby foi a música. O senhor Roberto regia o coral
da paróquia e tinha em casa uma espineta (antigo instrumento se-
melhante ao cravo). João participou algumas vezes do coro e, com
sua ajuda, chegou a dedilhar a espineta e o órgão.
Mas Roberto era, antes de tudo, o alfaiate do povoado e, por
isso, o segundo hobby de João foi sentar-se a seu lado e aprender a
pregar botões, fazer bainhas, costurar lenços, cortar coletes. Saiu-se
tão bem nesse mister que o senhor Roberto lhe propôs largasse a
escola e se tornasse seu ajudante.
Em abril, como vimos, o professor começou a embicar com ele e
a balbúrdia da escola o convenceu de que estava perdendo tempo.
De entendimento com a mãe, passou a trabalhar algumas horas por
dia com o senhor Evásio Sávio, ferreiro. Aprendeu assim a manejar
o martelo, a lima e a trabalhar com forja.
Não imaginava Dom Bosco, por certo, que tais ofícios um dia
lhe seriam úteis para abrir oficinas a bem dos rapazes pobres da
periferia de Turim. Naquele momento, sua única preocupação era
ajuntar algumas moedas. Logo precisaria delas. Porque junto com
a mãe havia decidido tentar, no ano seguinte, um passo arriscado,
mas decisivo: as escolas de Chieri.
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“Preciso estudar”
João faz a trouxa e se despede do senhor Roberto. Mas não volta
aos Becchi.Vai ao Sussambrino, uma propriedade que seu irmão
José e José Febraro assumiram para cultivar meio a meio. Tam-
bém Margarida deixara os Becchi e acompanhara José.
João dedica esses meses de verão a estudar intensamente. Em
Chieri não quer estar em desvantagem.
Tampouco quer ser de peso excessivo ao irmão. Por isso, o ajuda
nos trabalhos do campo. Em forja rudimentar, conserta ferramentas
agrícolas e leva as vacas a pastar. Este último trabalho lhe permite ler e
estudar.
Rosinha, filha de José Febraro, lembrava que João muitas vezes se
concentrava de tal modo em seus livros que as vacas iam andando
por conta própria. Era ela, menina de 10 anos, que devia correr pe-
las plantações, entre sulcos de milho, atrás dos animais, e reconduzi-
-los ao estudante, antes que os donos reclamassem.
– João, suas vacas estavam comendo o milho!
– Muito obrigado, Rosa.
Ela o olhava longamente. Depois dizia:
– Por que as traz a pastar se não cuida delas?
– Preciso estudar. Rosinha! E com frequência me distraio...
– É verdade que vai ser padre?
– É verdade, sim.
– Então, se quiser, eu cuido das vacas.Afinal, já devo mesmo cui-
dar das minhas.
João agradecia.Tornava a mergulhar em seus livros.
Um sonho que se repete
Em Castelnuovo, João fez amizade com um colega de aula, José
Turco. O pai era dono da Renenta, propriedade que confinava com
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7.7 Page 67

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o Sussambrino. Pessoa excelente e ótimo cristão, às vezes passava
por ele enquanto estudava:
– Ânimo, João! Desta vez você vai!
– Obrigado, senhor Turco. Espero mesmo. Receio apenas que mi-
nha mãe não consiga pagar a pensão em Chieri.
– Confie em Deus! Se Ele quiser, tudo ficará fácil.
– Tomara, mas a gente sempre tem um pouco de medo...
Era triste o sorriso de João Bosco. E com razão. Até aí nada dera
certo.
Um dia, porém, o senhor Turco e seu filho o viram chegar exci-
tado e feliz:
– Hoje tenho boas notícias – disse. – Esta noite tive um sonho. E
vi que chegarei a ser padre e que me ocuparei de muitos meninos.
– Mas é apenas um sonho – observou, perplexo, o senhor Turco.
– O senhor não pode entender. Para mim é o suficiente. Agora
estou certo de que vou conseguir.
Vira mais uma vez, diante dos olhos, o vale do sonho dos 9 anos.
Reviu o rebanho de ovelhas e a Senhora resplandecente que lhe dis-
sera: “Torne-se humilde, forte e robusto e a seu tempo tudo compre-
enderá.”
Durante o verão, a aldeia de Montafia celebrava a festa do padro-
eiro. Não ficava longe. João soube que haveria “a árvore da fortuna”
ou pau-de-sebo, e que entre os prêmios estaria também uma bolsa
com 20 liras.
– Bem que elas me serviriam! – pensou.
E lá se foi para a festa.
O pau-de-sebo era muito alto, liso, besuntado de óleo e banha. A
rapaziada do lugar contemplava lá em cima, no alto, o aro de ferro,
de onde pendiam pacotes, salames, garrafas de vinho e a bolsa. De
vez em quando, alguém cuspia nas mãos e tentava a escalada, em
meio à torcida da assistência. Partiam logo em quarta marcha... Pela
metade, o gás acabava. E vinham de volta, entre assobios e vaias.
Lá pelas tantas, bem estudada a situação, João se aproximou.
Olhou para cima, cuspiu nas mãos e como que se grudou no poste.
Começou a subir, lento, calmo. De vez em quando, se assentava nos
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7.8 Page 68

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calcanhares e descansava. O povo, embaixo, gritava impaciente, es-
perando que também ele entregasse a rapadura...
Para João, aquele dinheiro era muito importante. Em Moncucco,
para ganhar 15 liras, devia trabalhar um ano inteiro. Ali, a poucos
metros da cabeça, havia 20. Estava disposto a ficar agarrado naquele
pau-de-sebo até um dia inteiro, se fosse necessário.
Avançando sempre com calma, chegou até onde o mastro ficava
mais fino. Respirou mais um pouco. Deu os últimos impulsos. Nessa
hora, todo o mundo olhava para cima. Em silêncio. João estendeu
o braço, colheu do aro a bolsa com as 20 liras que segurou com os
dentes. Catou mais um salame e um lenço. E deslizou para baixo.
A repugnância de pedir
É claro que as 20 liras do pau-de-sebo não iriam bastar para mu-
dar-se para Chieri. Precisava comprar roupa, calçado, livros. Precisa-
va, sobretudo, pagar uma pensão mensal. E a parceria do Sussambri-
no não era nenhuma mina de ouro. Em outubro, João disse à mãe:
– Se não se importa, pego dois sacos e vou fazer uma coleta entre
as famílias da aldeia.
Sacrifício duro para o seu amor próprio.Dom Bosco se transformará
no maior “pedinte” do século XIX. Mas nunca lhe será fácil pedir
esmolas. Naquele outubro, venceu pela primeira vez a repugnância
de estender a mão.
O distrito de Morialdo é a soma de pequenas vilas e casas espar-
sas. João passou de casa em casa. Batia na porta e dizia:
– Sou o filho de Margarida Bosco. Vou a Chieri estudar para pa-
dre. Minha mãe é pobre. Se puderem, me ajudem.
Todos o conheciam. Haviam assistido aos seus jogos, tinham-
-no ouvido repetir as prédicas do pároco, queriam-lhe bem. Mas
eram poucos os abastados. Deram-lhe ovos, milho, algumas me-
didas de trigo.
Uma senhora dos Becchi, que fora a Castelnuovo naqueles dias,
teve a coragem de ir diretamente ao pároco, padre Dassano. Disse-
-lhe que era uma vergonha não ajudar nos estudos um rapaz tão
excelente, obrigando-o a pedir esmola de casa em casa.
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7.9 Page 69

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Padre Dassano não sabia de nada. Achava que João em novem-
bro retomaria os estudos em Castelnuovo. Informou-se, e conhe-
cendo exatamente a decisão, angariou certa quantia e a encami-
nhou a Margarida, com um recado: que fosse falar com Lúcia Matta,
viúva em vias de transferir-se para Chieri, com finalidade de dar
assistência ao filho estudante.
Foi um bom conselho. Margarida falou com a senhora. Concor-
daram que João em Chieri iria morar com ela e o filho. A pensão
devia ser 21 liras por mês. Margarida não podia pagar tudo em di-
nheiro. Obrigou-se, por isso, a fornecer farinha e vinho, e João se
comprometeu a ajudar em casa: carregar água, preparar lenha para
o fogo e a estufa, estender a roupa.
Nos últimos dias de outubro, João se apresentou ao pároco de
Castelnuovo para obter o Admittatur (Admita-se): para poder ma-
tricular-se nas escolas públicas, todo jovem devia receber atestado
de bom comportamento dado pelo pároco, que também se compro-
metia a velar por suas férias e a comunicar a eventual má conduta.
Tal disposição fora promulgada pelo rei Carlos Félix, falecido
nesse mesmo ano (1831) em Turim, chamado em vida pelos “libe-
rais” de Carlos “Feroz”.
A história caminhara
Enquanto João Bosco vivia sua árdua infância entre as colinas de
Castelnuovo, a história caminhava. Como nas páginas precedentes,
não pretendemos expor um quadro exaustivo da história italiana.
Mas parece-nos imprescindível traçar-lhe algumas linhas essenciais,
porque é nesse horizonte que se desenvolve o acontecimento per-
sonalíssimo de João Bosco. É também nessa história que ele se nutre
de impressões, ideias, sensibilidade.
Contra a restauração rígida e reacionária dos príncipes, nos anos
1815-20, difundiram-se em toda a Itália sociedades secretas que pre-
paravam rebeliões e revoluções.
Em Cádiz, na Espanha, em janeiro de 1820, saltara uma faísca:
uma revolta militar havia coagido Fernando VII a pôr fim ao seu
absolutismo e a conceder uma Constituição: uma lei que garan-
tia a todas as pessoas as principais liberdades e o direito de voto.
68

7.10 Page 70

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À observância da Constituição obrigava-se também o rei, median-
te juramento.
Seis meses depois, a faísca incendiou a Itália. Um pequeno esqua-
drão de cavalaria, no Reino das Duas Sicílias, levantou-se aos brados
de “Viva a liberdade e a Constituição”. Dentro de oito dias, para não
perder o reino, Fernando de Nápoles concedeu a Constituição de
Cádiz e jurou sobre o Evangelho respeitá-la.
Em 10 de março de 1821 (João Bosco tinha 6 anos), a revolta
militar começou também no Piemonte, às ordens de Santorre de
Santarosa. Alessândria1 arriou a bandeira azul dos Saboias e hasteou
na cidadela a tricolor (que lembrava a Revolução Francesa e os di-
reitos do homem por ela proclamados). Também as guarnições de
Pinerolo e Vercelli se sublevaram. De Fossano, um coronel marchou
sobre Turim à frente de um regimento.
O rei Vítor Emanuel voltou desabalado de Moncalieri para Tu-
rim. Reuniu o Conselho da coroa. Este sugeriu-lhe que, para não
perder tudo, outorgasse a Constituição. Estava para fazê-lo, quando
chegou a notícia de que a Áustria decidira intervir na Itália “para
restabelecer a ordem”.
Vencido pelos acontecimentos, Vítor Emanuel renunciou ao tro-
no em favor de seu irmão, Carlos Félix, que, por se achar então em
Módena, na casa do sogro, declarou “regente” o jovem príncipe Car-
los Alberto, de 23 anos.
“Digam ao príncipe que...”
Carlos Alberto havia estado várias vezes em contato com Santa-
rosa, apreciava-lhe as ideias, mas nunca soubera decidir-se nem pelo
absolutismo nem pelos “liberais”. Já se manifestava nele o caráter
indeciso que lhe mereceria o título de“rei indeciso”.Uma coisa que-
ria a todo custo: conservar o seu direito ao trono, defendendo-o seja
dos austríacos, seja dos “liberais”.
Perante uma grande multidão, que sob as janelas do palácio Carig-
nano reclamava a Constituição (quantos saberiam lá o que era a Cons-
tituição?), Carlos Alberto cedeu. Na tarde de 13 de março assinou a
1 Leia-se:Alessândria.
69

8 Pages 71-80

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8.1 Page 71

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Constituição de Cádiz e, dois dias depois, jurou respeitá-la. Constituiu
novo governo, no qual Santarosa era ministro da Guerra.
Quando Carlos Félix recebeu em Módena uma carta de Carlos
Alberto relatando-lhe tudo, tomou-se de cólera e gritou ao gentil-
-homem Costa, portador da carta:“Diga ao príncipe que se em suas
veias corre ainda uma gota de sangue real, siga imediatamente para
Novara e aguarde lá as minhas ordens”.
Num primeiro momento, Carlos Alberto pareceu disposto a re-
sistir. Mas de Nápoles chegaram notícias catastróficas: um exérci-
to austríaco havia derrotado as tropas liberais, o Parlamento fora
dissolvido, o regime constitucional abatido. O jovem príncipe foi a
Novara. Dali fez uma proclamação com que renunciava à “regência”
e convidou todos a se submeterem ao rei. Logo depois partiu para
o exílio, em Florença.
A volta de Carlos Félix ao Piemonte foi precedida por um exér-
cito austríaco que desbaratou os voluntários de Santarosa e “resta-
beleceu a ordem”. Setenta chefes da revolta foram condenados à
morte (78, porém, já tinham fugido para a Suíça e para a França),
300 oficiais e 300 funcionários civis foram afastados, as Universida-
des de Turim e de Gênova fechadas por um ano.“Todos aqueles que
estudaram na Universidade são corruptos”, escrevia Carlos Félix ao
irmão no exílio. “Os maus são todas pessoas instruídas, e os bons,
ignorantes.”
Os “motins de 1821” foram acontecimentos que envolveram ape-
nas a burguesia, a classe média da população.A massa dos campone-
ses e dos operários permaneceu totalmente indiferente, algumas ve-
zes hostil até. A classe média (comerciantes, pequenos empresários,
pequenos industriais, funcionários civis e militares) só visava, com
a “Revolução Liberal”, a um objetivo: transformar-se em grupos de
poder, em casta privilegiada, em lugar da velha aristocracia.As refor-
mas invocadas (e sancionadas pela Constituição de Cádiz) não eram
nem populares, nem democráticas. O direito de voto só se concedia
àqueles que possuíam certa fatia de riqueza. Esses somente podiam
mandar representantes ao Parlamento para, evidentemente, defen-
der seus interesses. A Revolução Liberal, como antes a Revolução
Francesa, queria abolir todos os privilégios. Exceto um: a riqueza.
70

8.2 Page 72

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“Rei pela graça de Deus e de ninguém mais”
Carlos Félix só voltou a Turim em outubro de 1821. Vista hoje,
essa figura aparece curiosa e singular. Nunca desejara ser rei. Gosta-
va da vida retirada e modesta. Era muito religioso. Só aceitou o trono
por um dever de “consciência”.
Mas, desde o momento em que aceitou, foi extremamente conse-
quente com as ideias do “rígido absolutismo”. Ele se sentia rei pela
graça de Deus e de ninguém mais. E entendia governar seu povo
como um pai severo deve governar seus filhos levados. Nenhuma
ideia estava mais longe da sua mentalidade quanto a da “soberania
do povo” (princípio elaborado pelos iluministas do Setecentos e
proclamado pela Revolução Francesa). O rei era ele, não o povo.
Confiou o monopólio da instrução pública ao clero. Confiou a
censura dos livros à cúria de Turim e aos bispos. Impôs nas escolas
um regime severo, o ensino cotidiano do catecismo, a prece antes e
depois das aulas. As escolas que João Bosco frequentará em Chieri
(quatro anos na escola pública, seis no seminário), os livros que lerá,
os horários que lhe serão impostos, as instituições em que deverá
viver, levarão, todos, a “marca de fábrica” de Carlos Félix.
O rei tornou também a levar para o gueto os judeus, cassando-lhes
os direitos reconhecidos pelo Código Napoleônico. Aprovou regu-
lamentos militares que estabeleciam, entre outras coisas:“O solda-
do autor de sedições por palavras ou gritos será passível de 100 a
120 bastonadas, aplicadas em duas vezes, com intervalo de um dia”
(Regulamento dos Caçadores Francos). Quis que toda condenação
à morte fosse uma “admoestação salutar” para todas as cabeças exal-
tadas, e, consequentemente, aprovou “a aplicação das tenazes em
brasa” ao condenado que fosse levado ao suplício. Foi por isso que
passaram a chamá-lo de Carlos Feroz.
Carlos Félix jamais compreendeu o que certo manifesto anôni-
mo (redigido por Brofferio e Durando) lhe bradou dos muros de Tu-
rim:“Majestade, seus súditos não são mais coisas, mas pessoas”. Para
ele, eram súditos e ponto final. Isto é: gente que ele devia manter
“no caminho certo”, com modos firmes. Máximo D’Azeglio definiu
seus dez anos de reinado com oito palavras:“um despotismo cheio
de retas e honestas intenções”.
71

8.3 Page 73

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Faleceu em abril de 1831 (deixando o trono para aquele Car-
los Alberto que continuara a chamar de “rebento degenerado de
nossa família”) e não sem ouvir as inquietantes notícias de Móde-
na, Parma, Bolonha: os liberais (como no ano anterior em Paris)
haviam-se novamente rebelado contra os princípios absolutos. A
Áustria tivera que mandar seus exércitos para esmagar a revolta
comandada por um industrial, Ciro Menotti, e por um general, Car-
los Zucchi. Temia-se, igualmente, a invasão da Saboia da parte de
uma legião de voluntários reunidos em Lião. Mas foram dispersos
pela polícia francesa.
“Comprido e triste como uma quaresma”
No trono de Turim, sucedeu-lhe Carlos Alberto, 33 anos.“Limpa-
ra”o nome perante os absolutistas e os reacionários combatendo na
Espanha contra os liberais. Estes, em contrapartida, lhe deram, em
seus escritos, o apelido de “traidor” e “perjuro”.
Pálido e altíssimo (2,04 metros), o povo dizia que era “comprido
e triste como uma quaresma”. Para mostrar a todos que já não era o
príncipe que firmara a Constituição, em 1833, mandaria fuzilar, em
Alessandria do Piemonte, 7 partidários de Mazzini2 e, em Gênova,
12, condenando, além disso, uns 70 à prisão perpétua.
Mas o Piemonte e a Itália, apesar das tentativas de deter a histó-
ria, estão mudados. A burguesia havia-se tornado uma classe muito
importante. E embora não compreenda o que seja “liberdade demo-
crática”, precisa da “liberdade comercial” para espalhar por toda a
península maior bem-estar.
No Piemonte rasgam-se canais, enxugam-se pantanais, desma-
tam-se as Langhe (regiões montanhosas), espalha-se a cultura da
amoreira, do cânhamo, da videira. Difunde-se o cultivo da batata,
que finalmente porá fim às terríveis carestias que acompanham os
anos de seca.Abrem-se dezenas de minas de ferro, desenvolve-se a
indústria da cerâmica. Brá se torna centro de curtumes.
Cúneo é o primeiro mercado europeu do casulo de seda. Logo
que Carlos Alberto diminui os impostos sobre a lã, a região de Biella
2 1805-1871: patriota, fundador de sociedade secreta, conspirador dentro e fora da Itália (N.T).
72

8.4 Page 74

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se torna a sede de florescente indústria: desenvolvem-se as fiações e
entram na região as primeiras ovelhas merinas.
Percebe-se logo a urgência de desenvolver uma rede de estradas,
de dar início à construção de ferrovias.Também a mentalidade polí-
tica tende inexoravelmente a modificar-se.
Nos últimos meses de 1831, em Marselha, Mazzini funda a
“Jovem Itália”, Propaga-se a ideia de uma Itália como “Estado na-
cional”, individualidade histórica dotada de peculiares tradições
culturais e populares, com direito à liberdade e à independência.
Os italianos se conscientizam, progressivamente, de que têm um
destino comum, e que devem tornar-se os árbitros desse mesmo
destino, ao lado ou no lugar dos reis, que até agora os têm conside-
rado rebanho de menores incapazes.
Em Turim, no ano de 1832, Sílvio Péllico publica Le mie prigioni
(Minhas prisões), livrinho que agita a Itália e a leva a pensar de ma-
neira diferente. A Áustria, que até aí parecia ser a guardiã da ordem
e do bem-estar social, deixa cair a máscara. Nas páginas suaves e
tristes do escritor de Saluzzo, que passara dez anos nas prisões im-
periais, o governo austríaco desvela seu rosto. O rosto da ditadura
que reprime e tortura.
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8.5 Page 75

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9
Os verdes anos em Chieri
Dia 4 de novembro de 1831. Dia de sol claro do“verão de São Mar-
tinho”. Em companhia um seu coetâneo, João Filippello, João
Bosco percorre a pé o caminho de Chieri. Pela estrada, vai-se
abrindo com o amigo: fala dos próximos estudos, relembram os acon-
tecimentos passados, as tentativas feitas. De repente, Filippello, rapaz
simples, diz:
– Só agora vai estudar e já sabe tantas coisas! Desse jeito, logo,
logo será pároco!
João fica sério:
– Sabe o que significa ser pároco? Ter obrigações muito graves.
Quando se levanta da mesa, deve pensar: e meus fiéis? Terão eles
matado a fome? Deve dividir o que tem com os pobres. Caro
Filippello, eu nunca aceitarei ser vigário. Quero dedicar minha
vida aos jovens.
Enquanto caminham falando de fome e de pobres, em Lião (Fran-
ça), a apenas 250 quilômetros, em linha reta, começa a revolta dos
operários da seda. Vão para as ruas aos milhares contra a miséria
dos salários e os desumanos horários de trabalho, que chegam a 18
horas por dia. A revolta acabará após dias de lutas, sufocada pelas
tropas mandadas pelo governo francês. Mais de mil vítimas.
No ano seguinte, a revolta explodirá em Paris, com o preço de 800
mortos.Na primavera de 1834,operários de Lião e de Paris se rebelarão
juntos ao grito de “Viver trabalhando ou morrer combatendo”. Contra
eles, haverá canhonaços.
João Bosco não pode saber nada. Com os jornais sob rígida cen-
sura, nenhuma notícia transpira no reino do Piemonte. Nos primei-
ros meses, João ouvirá, de vez em quando, notícias de “tumultos libe-
rais”. Descobriu-se uma conjuração em Turim: os implicados são “Os
Cavaleiros de Liberdade”, chefiados por Brofferio e Bersani. Carlos
Alberto corta-a com decisão: Bersani pega sete anos de prisão, na
fortaleza de Fenestrelle.A “revolução” de que alguma vez João ouve
74

8.6 Page 76

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falar, à boca pequena, é aquela que quisera levar a Itália à “Consti-
tuição” e à independência da Áustria. Em breve se chamará Risor-
gimento.
Nem sequer suspeita, em vez de uma, de outra revolução, mais
profunda, radical, que está transformando o norte da Europa e que
está prestes a entrar na Itália: a Revolução Industrial, a que se liga a
grave “questão operária”. Começará a notar-lhe os primeiros efeitos
dramáticos dentro de dez anos, quando for para Turim.
Uma coluna no meio dos pequenos
“A minha pensão ficava na casa da viúva Lúcia Matta, que fora
àquela cidade para assistir e vigiar seu filho único”, escreve Dom
Bosco.
Margarida, que chegou a Chieri pouco depois de João, foi com
ele à presença da senhora Lúcia. Um amigo lhe trouxera num carri-
nho dois sacos de trigo.
– Aqui está meu filho – disse. – E aqui está a pensão. Eu fiz a mi-
nha parte, meu filho fará a sua. Espero que não fique descontente.
A primeira pessoa que conheci foi o padre Plácido Valimberti, de saudo-
sa memória. Deu-me bons conselhos, conduziu-me ao prefeito da escola,
apresentou-me aos professores. E como os estudos feitos até então fossem
um pouco de tudo, que chegavam a quase nada, fui aconselhado a entrar
no sexto ano.1
O professor, padre Valeriano, usou de muita caridade para comigo. Atendia-
-me na escola, convidava-me a ir à sua casa e, compadecido da minha idade
e boa vontade, tudo fazia para me ajudar.
Minha idade (16 anos feitos) e minha corpulência faziam-me parecer
uma alta coluna no meio dos pequenos colegas. Ansiando por sair dessa
situação, após dois meses de sexto, fui admitido a exames e promovido ao
quinto.2
Passei de boa vontade para a nova classe, porque o professor era a estima-
da pessoa do padre Valimberti. Decorridos outros dois meses, tendo sido
várias vezes o primeiro da classe, fui, por exceção, admitido a outro exame
e promovido ao quarto.
1 Parente longínquo do atual – para o Brasil – quinto ano (N.T.).
2 A ordem era descendente: do quinto se passava ao quarto, ao terceiro etc. (N.T.).
75

8.7 Page 77

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Nesta classe era professor Vicente Cima, severo na disciplina.Ao ver entrar
em sua classe, pelo meio do ano, um aluno tão alto e encorpado quanto ele,
disse brincando em plena aula:
– Esse sujeito ou é uma toupeira ou um grande talento.
Todo confuso por aquela presença severa, respondi:
– Um pouco dos dois.Sou um pobre rapaz que tem boa vontade de cumprir
seu dever e progredir nos estudos.
Tais palavras lhe agradaram e, com desusada afabilidade, acrescentou:
– Se o “senhor” tem boa vontade, está em boas mãos. Não o deixarei sem
trabalho. Ânimo, pois. Se encontrar alguma dificuldade, diga logo, que o
ajudarei.
Agradeci de coração.
“Quando um pequeno incidente...”
Chieri é uma cidadezinha a 10 quilômetros de Turim. Estende-
-se ao sopé da colina turinense, na vertente oposta à da capital do
Piemonte. Quando João ali chegou, tinha 9 mil habitantes. Era uma
cidade de conventos, de tecelões e de estudantes.
Os conventos acolhiam religiosos e religiosas das mais variadas
ordens: dominicanos, filipinos, jesuítas, franciscanos, clarissas...
Os numerosos tecelões trabalhavam o algodão e a seda numa
trintena de fábricas.
Os estudantes afluíam de todas as partes do Monferrato e de Asti.
Levavam vida dura. Os cursos eram semigratuitos, mas não havia
bolsas de estudo. Para pagar a pensão, muitos faziam sacrifícios he-
roicos. Os serviços para as horas pós-escolares eram procuradíssi-
mos: meios-empregos junto a escrivães, horas de faxina em casa de
gente abastada, aulas particulares, cuidado de cavalos e de diligên-
cias. Por economia apagava-se o fogo mesmo no inverno. Estudavam
enrolados em pesados cobertores, os pés metidos em tamancos.
Entre os estudantes pobres, suportando essa mesma pobreza, vi-
veu João Bosco. De vez em quando, chegava mamãe Margarida do
Sussambrino, para saber por Lúcia sobre o filho. A brava viúva sem-
pre tinha boas notícias. João fazia os serviços de casa, era piedoso
e estudioso. E ainda ajudava o filho, que era mais velho do que ele.
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8.8 Page 78

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O rapaz não gostava de estudar. João se fez amigo, conseguindo
até levá-lo à igreja para pedir perdão a Deus pela preguiça.
Bosco não perdia ocasião de contribuir para a sua pensão. Conse-
guiu ajuntar mais algum dinheirinho frequentando a oficina de um
seu conhecido carpinteiro. Aprendeu a usar a plaina, o formão e a
grosa.
Fazia dois meses que estava no quarto ano. Um pequeno incidente fez
falar de mim. O professor de latim explicava a vida de Agesilau, escrita por
Cornélio Népos. Naquele dia, eu tinha esquecido o livro na pensão. Para que
o professor não percebesse, conservava aberta diante de mim a gramática.
Os colegas perceberam: um começou a cutucar o outro, um segundo a rir...
– Que há? – perguntou o professor Cima.
Vendo que muitos olhavam para mim, mandou que repetisse a explicação,
lendo o texto latino de Cornélio Népos. Pus-me de pé, com a gramática nas
mãos, e pude repetir de cor o texto latino e as explicações. Instintivamente,
os colegas bateram palmas.
O professor ficou furioso. Era a primeira vez, gritava, que não conseguia
manter a disciplina. Atirou-me um pescoção que logrei evitar abaixando
a cabeça. Depois, pondo a mão sobre a minha gramática, indagou dos
vizinhos a causa “daquela desordem”.
– O Bosco não tem o Cornélio. Só a gramática. Entretanto, leu e explicou
como se tivesse em mãos o Cornélio.
O professor, então, olhou para o livro sobre o qual apoiara a mão, e quis
que eu continuasse a “leitura” por mais dois períodos. Depois me disse:
– Por sua feliz memória, o “senhor” está perdoado. Tem sorte. Procure
apenas servir-se bem dela.
De sua brilhante memória já tinha dado provas ao padre Calosso.
Mas em Chieri começaram acontecer até coisas estranhas. Uma noite
sonhou estar fazendo uma tarefa na aula de latim.Apenas despertado,
escreveu o trecho (que lembrava perfeitamente) e o traduziu com o
auxílio de um padre amigo. Na aula, o professor passou a ditar exata-
mente “aquele” trecho e João pôde apresentar a tradução em pouquís-
simo tempo.
A cena voltou a repetir-se. Mas dessa vez a coisa complicou. João
entregou tudo muito rápido demais. O professor leu, olhou o rascu-
nho e caiu das nuvens: naquela página amarrotada estava também a
parte da tarefa que quisera dar, mas que no último instante suprimi-
ra, porque lhe parecera muito longa.
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8.9 Page 79

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– Onde foi buscar este trecho?
– Sonhei.
Um sonho. Acontecimento pouco importante na vida dos ho-
mens. Mas na vida de João Bosco o “sonho” já obtivera peso notá-
vel. Com o passar dos anos, esta palavra irá adquirindo importância
cada vez maior. É uma das coisas que deixava e ainda nos deixa
perplexos. Quem, na cidadela de Valdocco, ouvia Dom Bosco mur-
murar tranquilo “tive um sonho”, abria bem os ouvidos. Porque, em
sonhos, aquele padre estranho lia os pecados dos seus jovens, pre-
via a morte dos reis, “adivinhava” a carreira brilhante do humilde
moleque jogador de bolinha de gude...
“Sociedade da Alegria”
“Nas minhas primeiras quatro classes tive que aprender às mi-
nhas custas a tratar com os colegas”, escreve Dom Bosco.
Não obstante a severa vida cristã imposta pela escola (cada qual
devia até entregar um “certificado” de confissão mensal), havia alu-
nos maus.“Um deles foi tão descarado que me aconselhou a roubar
um objeto de valor da minha patroa (para comprar caramelos).”
João afastou-se logo de início e decididamente daqueles pobres
rapazes, para não acabar como rato nas garras do gato. Logo, porém,
seus êxitos escolares o colocaram em situação de manter com eles
um relacionamento diferente, de prestígio. Por que não aproveitá-la
para fazer-lhes um pouco de bem?
Recorda que“os companheiros que o queriam levar às desordens
eram os mais desleixados no estudo, e assim começaram a lhe pedir
que os ajudasse nos deveres escolares”.
Ajudou-os. Exagerou até, passando-lhes traduções completas por
baixo das carteiras. (Nos exames foi pego durante uma dessas ma-
nobras e só conseguiu salvar-se da pior graças à amizade de um
professor, que o obrigou a repetir a tradução de latim.)
“Com este meio captei a benevolência e o afeto dos colegas. Co-
meçaram a vir ter comigo durante os recreios por causa dos deveres
escolares, depois para ouvir as minhas estórias e, por fim, sem motivo
nenhum.”
78

8.10 Page 80

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Juntos sentiam-se bem. Formaram uma espécie de clube. João
batizou-o com o nome de Sociedade da Alegria. Deu-lhe um regu-
lamento muito simples:
1. Nenhuma ação, nenhuma conversa indigna de cristão.
2. Cumprir os próprios deveres escolares e religiosos.
3. Alegria.
A alegria será uma ideia fixa em Dom Bosco. Domingos Sávio,
seu aluno predileto, chegará a dizer:“Nós fazemos consistir a santi-
dade em estar muito alegres. Procuramos evitar o pecado que nos
rouba a alegria do coração”. Para Dom Bosco, a alegria é a profunda
satisfação que nasce do saber-nos nas mãos de Deus e, portanto, em
boas mãos. É a palavra pobre com que se indica um grande valor: a
“esperança cristã”.
“Em 1832 eu me tornara entre os colegas um como capitão de
pequeno exército.” Nos recreios, o jogo das malhas, as pernas-de-
-pau, saltos e corridas. Partidas animadas e muito alegres. Quando
se cansavam, João subia a uma mesinha instalada no meio da relva e
exibia seus jogos de prestidigitação.
Do copinho dos dados tirava uma centena de bolinhas coloridas;de um pote
vazio, uma dúzia de ovos. Colhia bolas de vidro do nariz dos espectadores,
adivinhava o dinheiro que traziam no bolso e, com um simples toque de
dedos, reduzia a pó moedas de qualquer metal.
Nos dias santos íamos à igreja de Santo Antônio onde os jesuítas faziam
uma catequese estupenda, recheada de estórias de que ainda me lembro.
Como outrora nos Becchi, toda aquela alegria terminava em oração.
Quatro desafios ao saltimbanco
Um domingo, porém, na igreja de Santo Antônio, a frequência foi
pequena. Chegara ao lugar um saltimbanco, que na tarde de domin-
go dava espetáculos de alta acrobacia e desafiava os rapazotes, mais
fortes e mais ágeis, na corrida e no salto. O povo se apinhava.
João, aborrecido por ver que os seus colegas o haviam abando-
nado, foi verificar: era um verdadeiro atleta. Corria e saltava com a
potência de uma máquina. E tinha a intenção de ficar na cidade muito
tempo.
79

9 Pages 81-90

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9.1 Page 81

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João reuniu os melhores do grupo:
– Se esse sujeito continuar a dar espetáculo nas tardes de domin-
go, a nossa Sociedade corre o risco de se esfacelar. Seria preciso
que algum desafiante vencesse o artista. Poderíamos chegar a um
acordo.
– E quem vai enfrentá-lo?
– Vamos procurar. Afinal, não é o fim do mundo. Na corrida, por
exemplo, não me sinto em nada inferior a ele.
João tinha 17 anos e se sentia em forma. Mas, nas Memórias,
acrescenta logo:
“Sem medir as consequências de minhas palavras, um colega im-
prudente as referiu ao saltimbanco. E eis-me envolvido num desa-
fio: um estudante contra um atleta profissional”.
O lugar escolhido foi a avenida da Porta Torinese. Tratava-se de
atravessar, correndo, toda a cidade. A aposta era de 20 liras, uma
mesada de pensão. João não tinha essas liras, mas a Sociedade as
bancara. “Uma multidão veio assistir”, recorda Dom Bosco.
Dada a saída, o saltimbanco tomou logo uma dianteira de 10
metros: era um sprinter, ao passo que João era um meio-fundista.
“Logo reconquistei o terreno e o deixei tanto para trás que parou
na metade da corrida. E deu-me por vencedor.”
Tudo devia estar acabado, mas o saltimbanco exigiu desforra.
Era ponto de honra concedê-la.“Desafio-o a saltar – disse-me. – Mas
quero apostar 40 liras. Aceitamos.” Escolheu o lugar: precisava sal-
tar pequeno curso de água que tinha as margens reforçadas por
um parapeito. O saltimbanco levanta voo e aterriza com os pés
bem perto do parapeito. “Impossível ir mais além. Eu podia per-
der. Vencer nunca. Todavia, estudei um expediente. Dei o mesmo
salto, mas, apoiando as mãos no parapeito, prolonguei o salto para
mais longe”, relata Dom Bosco. Rudimentar “salto de vara”, afinal.
João venceu.
O saltimbanco estava com a cara no chão. Pelas liras e pela mul-
tidão que começava a vaiá-lo.
“Quero fazer-lhe mais um desafio. Escolha qualquer jogo de des-
treza.” Aceitei. Escolhi a vara mágica, mas com a aposta elevada
para 80 liras. Peguei uma vareta, coloquei um chapéu na extremi-
80

9.2 Page 82

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dade, depois apoiei a outra extremidade na palma da mão. Fiz a
vareta saltar sobre a ponta do dedo mindinho, do anular, do médio,
do indicador, do polegar. Em seguida, sobre o dorso da mão, sobre
o cotovelo, sobre os ombros, sobre o queixo, sobre os lábios, sobre
o nariz, sobre a testa. Refazendo o mesmo caminho, a vara mágica
voltou para a palma da mão.
– Desta vez não perderei – disse-me com segurança.
Pegou a mesma vareta e, com maravilhosa destreza, fez que ela
caminhasse até os lábios. Mas tinha o nariz muito longo e nele a va-
reta esbarrou e, para que não caísse, ele teve de segurar com a mão.
A esta altura João se compadeceu daquele homem que, afinal, era
um bravo trabalhador.
Aquele pobrezinho via seu patrimônio se esvair. Quase furioso exclamou:
“Tenho ainda 100 francos e os aposto para ver quem sobe mais alto em
árvores. Quem puser os pés mais perto da ponta daquele olmo (e indicou
um próximo da avenida) vencerá”. Aceitamos e de certo modo estávamos
contentes e desejosos que ele vencesse, porque não queríamos arruiná-lo.
Cabia a ele começar. Subiu e levou os pés tão alto que se subisse, mais
um palmo a árvore teria se inclinado e ele viria abaixo. Todos diziam que
mais alto seria impossível. Chegou a minha vez. Subi quase exatamente
tanto quanto ele. Então segurando a árvore com as mãos alcei o corpo na
vertical e levei os pés cerca de um metro além da altura por ele alcançada.
Embaixo, explodiram os aplausos. Os meus amigos se abraçavam e
pulavam de alegria. Então lhe restituímos o dinheiro com a condição de
pagar-nos um almoço no albergue do Muretto.
Dom Bosco assinala no caderno das Memórias as 25 liras que
naquela quinta-feira custou o almoço para 22 estudantes. E aponta
também quantas o saltimbanco pôde reaver: 215.
Registra igualmente as palavras que o atleta (depois de haver
aceito a incumbência de desafogar a praça) disse aos rapazes: “Com
a devolução deste dinheiro, vocês evitam a minha ruína, e lhes sou
agradecido. Vou lembrar de vocês com prazer. Mas nunca mais fa-
rei apostas ou desafios com estudantes”.
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Em Turim pela primeira vez
A Sociedade da Alegria saiu forte e gloriosa daquele desafio. Nos
dias de férias, os sócios partiam na direção das colinas de Superga.
Cogumelos, cantos, panoramas e, às vezes, uma puxada rápida até
Turim, para ver o cavalo de mármore na escadaria do Palácio Real.
Entre ida e volta, quase 30 quilômetros. A pé. Voltavam com um
apetite enorme e com as maravilhas da capital, que descreviam para
os colegas mais preguiçosos.
Foi numa dessas excursões que João Bosco viu Turim pela pri-
meira vez. A cidade estava crescendo. O aumento da população
era impressionante: quase um terço a mais, em dez anos. Subiam
vertiginosamente o preço das casas e o custo dos aluguéis. Crescia
dramaticamente a necessidade de hospitais, de abrigos para velhos,
de asilos e escolas para crianças.
Carlos Alberto propõe-se pensar concretamente na instrução po-
pular. Mas seu ministro do Exterior, Solaro della Margarita (católi-
co, mas rigidamente conservador), não é do mesmo parecer: ou a
instrução se confia ao clero ou pode tornar-se perigosa.
Na primavera em que João Bosco e os seus amigos percorrem
as colinas de Turim instala-se na periferia da cidade o cônego Cot-
tolengo, com 35 doentes, que haviam sido rejeitados por todos
os hospitais: é o dia 27 de abril de 1832. Em Valdocco, o cônego
alugara um casarão, uma ex-taberna. Chegou com um burro, uma
carreta e duas freiras. Afixa um cartaz à porta: “Pequena Casa da
Divina Providência”. Será o milagre de Turim: chegará a abrigar 10
mil doentes incuráveis e por todos rejeitados.3
Em junho, João Bosco ouve pela primeira vez o nome de Vicen-
te Gioberti. É um jovem sacerdote turinês, professor de Filosofia
na Universidade. Fora detido porque pertencia a uma sociedade
secreta antimonárquica. Condenado ao exílio, é acompanhado por
guardas até a fronteira com a França. Dez anos mais tarde publicará,
em Bruxelas, um livro famoso, O primado dos italianos. Dezoito
anos depois será o primeiro-ministro de Carlos Alberto.
2
3 O milagre continua e José Cottolengo é santo de altar (N.T.).
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No Palácio Real, onde os sócios da Sociedade da Alegria vão to-
car o cavalo de mármore, o rei destila, com extrema lentidão e em
meio a temores e escrúpulos, as primeiras reformas. Assina a pri-
meira em 1832: a tortura, esse desumano resto das eras barbáricas,
está finalmente abolida.
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9.5 Page 85

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10
A estação da amizade
No outono de 1832, João Bosco iniciou a “terceira gramática”.
Nos dois anos seguintes, prosseguiu regularmente, frequentan-
do as classes que eram chamadas “humanidades” (1833-34) e
“retórica” (1834-35).
Continuava a revelar-se um aluno excelente, apaixonado pelos
livros e dotado de memória prodigiosa. Relembrava com uma ponta
de saudade:
Naquele tempo, eu não via distinção entre ler e estudar. Com toda a
facilidade podia repetir o conteúdo de um livro lido. Bastava a atenção
nas aulas para aprender o que era necessário. Habituado por minha mãe
a dormir pouco, podia empregar dois terços da noite na leitura de livros,
à chama de uma bruxuleante lamparina. Havia um livreiro judeu de nome
Elias, que me emprestava os clássicos italianos: um soldo cada volume. Lia
quase um por dia.
João tem 18 anos, idade das amizades profundas. Continuando
embora “chefe de um pequeno exército”, forma para si um círculo
de amigos íntimos.
O primeiro, conheceu-o durante uma baderna de início de aula.
Já então nem todos os professores eram pontuais. E os primeiros
minutos de muitas aulas se transformavam em algazarra. Estava na
moda brincar de pula-sela.“Os campeões mais célebres eram os me-
nos amantes do estudo”, anota com ironia Dom Bosco.
Um rapaz novato, aparentando 15 anos, ia tranquilamente para o
seu lugar e, no meio de toda aquela gritaria, punha-se a ler ou a estudar.
Certa vez, aproximou-se dele um insolente, tomou-o pelo braço:
– Vamos brincar.
– Não sei.
– Vai aprender. E não espere ser obrigado à força.
– Se quiser bater, pode me bater. Mas eu não vou.
O mal-educado deu-lhe duas bofetadas que ecoaram pela sala. À vista
daquilo, senti o sangue ferver-me nas veias. Esperava que o ofendido,
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que era mais forte, se vingasse à altura. Mas não foi assim. Com o rosto
afogueado, quase lívido, lhe disse:
– Está satisfeito? Então me deixe em paz. Eu lhe perdoo.
João ficou desconcertado. Aquilo era um ato “heroico”. Quis sa-
ber o nome do rapaz. Luís Comollo. “Desde então, tive-o sempre
como amigo especial. E posso dizer que foi dele que aprendi a viver
como cristão.”
Descobriu, sob uma aparente fragilidade, grande riqueza espi-
ritual. Instintivamente, tornou-se o seu protetor contra os rapazes
grosseiros e violentos.
Clava humana
Certo dia, o costumeiro atraso do professor e a costumada bara-
funda na sala de aula.
Alguns queriam bater em Comollo e em outro excelente rapaz, Antônio
Candelo. Gritei que os deixassem em paz. Não me atenderam. Os insultos
começaram. E eu:
– Quem disser mais um palavrão terá de se haver comigo.
Os mais altos e descarados me cercaram, enquanto duas bofetadas voavam
à face de Comollo. Perdi as estribeiras: não podendo ter à mão uma vara ou
uma cadeira, agarrei pelos ombros um daqueles desprezíveis e, servindo-
-me dele como de uma clava, comecei a esbordoar os adversários.
Quatro caíram por terra e os demais fugiram gritando, pedindo piedade.
Naquele momento, entrou o professor que, vendo braços e pernas voarem
em meio a toda aquela barulheira, pôs-se a gritar e a distribuir sopapos a
torto e a direito.
Amainado um pouco o temporal, quis saber a causa daquela desordem.
Quase não acreditando no que se dizia, quis que lhe repetisse a
demonstração. Desandou então a rir. E riram também os colegas. E não
mais se pensou em castigo.
Logo que pôde falar-me a sós, Comollo me disse:
– Meu caro, sua força me espanta. Deus não lhe deu essa força para
massacrar seus colegas. Ele quer que perdoemos e façamos o bem àqueles
que nos fazem algum mal.
João ouvia Comollo. Juntos rezavam e frequentavam os sacra-
mentos. Mas a frase do Evangelho: “A quem lhe bater numa face,
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apresente-lhe também a outra” não era mandamento que aprende-
ria tão depressa. Irá impô-la a si mesmo à força de vontade, mas nun-
ca lhe será natural. Lembrará com frequência as palavras do sonho:
“Não com pancadas, mas com a caridade deverá conquistar esses
seus amigos”.
Uma “lufada” de espiões
Nos meses de verão de 1833, Chieri viu chegarem de improviso
esquadrões de soldados. A vigilância às portas da cidade foi dupli-
cada. Rondas armadas percorriam a cidade de dia e de noite. Aglo-
merações foram proibidas.
Uma “lufada” de espiões tinha dado o alarme de que os adeptos
de Mazzini estavam por desencadear uma revolta em Turim e em
outras cidades do Piemonte. No ano anterior chegaram as primeiras
notícias da Jovem Itália, fundada por Mazzini: tinham sido desco-
bertos exemplares do jornal da seita no fundo falso de um baú,
que chegara a Gênova, procedente de Marselha. Agora o plano era
provocar incêndios em vários pontos de Turim, suscitar tumultos
populares, assassinar a família real e proclamar a República. (Mais
tarde, se saberá que Mazzini pessoalmente havia entregue a Gallen-
ga o punhal que devia assassinar Carlos Alberto.)
A vazão de notícias e a rápida mobilização de forças armadas re-
sultaram na prisão dos conjurados; 12 foram condenados à morte.
Um ano depois, na Saboia, os mazzinianos repetirão a tentativa in-
surrecional, com a participação do general Ramorino e de Garibaldi.
A censura naqueles dias atingiu excessos ridículos: um estoque
de gorros foi sequestrado porque entre as cores havia o vermelho e
o azul, duas, das três cores da Revolução Francesa.
Com fim do ano letivo 1832-33, o filho de Lúcia Matta terminava
os estudos. João está à procura de uma nova pensão.
Um amigo da família, João Pianta, abrira um café em Chieri e lhe
ofereceu emprego no bar: de manhã, antes de ir às aulas, limpar
o local; passar as horas da noite no balcão e, a seguir, no salão de
bilhar. Em troca, o senhor Pianta lhe ofereceu duas refeições e a
hospedagem.
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João aceitou, porque não achou coisa melhor. Dias de trabalho
duro, de vigília até altas horas da noite no bilhar, marcando os pon-
tos na pequena lousa.
Em 1888 (mais de cinquenta anos depois, portanto), o senhor
Pianta ainda lembrava: “Impossível achar um jovem melhor que
João Bosco. Todas as manhãs, ia ajudar a Missa na igreja de Santo
Antônio. Em casa eu tinha minha mãe idosa e doente. Admirável a
sua caridade para com ela”.
Menos admirável, porém, o tratamento que esse antipático se-
nhor dispensava ao jovem ajudante de 18 anos: fazia-o preparar ca-
fés com chocolate, pasteis e gelados. Em paga, apenas uma sopa...;
cabia à mãe trazer-lhe do Sussambrino pão e comida. A hospeda-
gem que lhe fornecia era um “estreito desvão em cima de pequeno
forno em que se coziam doces, ao qual ele subia por uma escadi-
nha. Por pouco que se estirasse, os pés sairiam para fora, não só do
incômodo leito, mas também do próprio desvão...”.
Tiago-Levi, apelidado Jonas
Na escola frequentada por João havia também uns rapazes ju-
deus. Segundo as leis de Carlos Félix, os judeus, na cidade, deviam
residir no “gueto”, uma parte separada da parte dos cristãos. Eram
“tolerados”, isto é, considerados cidadãos de segunda categoria.
Aqueles rapazes, todas as semanas, sentiam-se mal: aos sábados, sua
lei proibia qualquer trabalho, mesmo o dos deveres escolares. De-
viam escolher: ou agir contra a consciência ou resignar-se a notas
baixas e zombarias dos colegas.
João os ajudou muitas vezes, fazendo por eles as tarefas do sába-
do. Tornou-se grande amigo de Tiago-Levi, a quem os colegas cha-
mavam de “Jonas”. Tinham algo em comum: ambos órfãos de pai.
Dom Bosco lembrava aquela amizade com palavras esplêndidas,
insólitas nele: “De muito bonito aspecto, cantava com uma voz de
rara beleza. Jogava bilhar muito bem. Eu lhe tinha um grande afeto
e ele uma louca amizade por mim. Vinha estar comigo em todo o
momento livre. Ficávamos a cantar, a tocar piano, a ler, a conversar”.
É, pois, uma amizade ardente, luminosa, que manifesta em João
Bosco um coração totalmente aberto e confiante.
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O envolvimento numa “encrenca, que pode levar a tristes con-
sequências”, lança em crise o jovem hebreu. Bosco, não por pro-
selitismo mas por afeto, oferece ao amigo o maior bem que possui:
a fé. Empresta-lhe o seu catecismo. “No espaço de poucos meses,
aprendeu as principais verdades da fé. Sentia-se muito feliz e se tor-
nava cada dia melhor na maneira de proceder e conversar.”
O drama familiar (inevitável) explode quando a mãe se depara
com um catecismo cristão no quarto de Tiago: tem a impressão de,
após perder o marido, perder também o filho. Enfrenta João e lhe
diz, amargurada: “Você arruinou meu filho!”.
João Bosco utiliza as melhores palavras, mas nada consegue.
Ameaçado pelos parentes, pelo rabino, “Jonas” se afasta por um
tempo da família. Depois, pouco a pouco, a calma retorna. No dia
10 de agosto de 1833, na catedral de Chieri, o jovem é batizado. A
ata oficial, conservada nos arquivos, atesta: “Eu, Sebastião Schiop-
po, teólogo e cônego, por concessão do Revmo. e Ilmo. senhor ar-
cebispo de Turim, batizei solenemente o jovem hebreu Tiago-Levi,
de 18 anos, e lhe impus o nome de Luís...”.
“Jonas” permaneceu sempre amigo afeiçoado de Dom Bosco.
Ainda em 1880, descia ao Oratório de Valdocco para visitá-lo e re-
cordarem juntos os “belos tempos” passados.
As maçãs de Blanchard
A sopa do senhor Pianta não bastava, certamente, para acalmar
o apetite vigoroso do moço Bosco, de 18 anos. Nesse tempo, mui-
tas vezes, passou fome de verdade. Certo jovem seu amigo, José
Blanchard, vezes sem conta o percebia e ia ter com a própria mãe
(vendedora de frutas) e enchia os bolsos de maçãs ou de castanhas.
A distinta senhora via e fingia não ver. À mesa, mais de uma vez,
José esvaziou a fruteira pelo mesmo motivo. Seu irmão, Leandro,
um dia reclamou:
– A senhora não vê nada, não é, mãe? José leva embora quilos de
frutas e a senhora nem percebe.
– Percebo, sim, meu filho – respondeu a senhora. – Mas sei para
onde as leva: esse Bosco é um bravo rapaz e nessa idade a fome é
uma coisa terrível.
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Apesar da fome, um dinheirinho para tomar livros emprestados
no judeu Elias, João sempre arranjava. Desse modo, à noite, conti-
nuava as suas leituras. Notava-o também o senhor Pianta, que assim
testemunhou: “Muitas vezes passava a noite inteira estudando. E
pela manhã o encontrava com a luz acesa, ainda a ler e a estudar”
(estaria ele mais impressionado pela força de vontade do moço ou
pela quantidade de óleo gasto na lamparina?). Igualmente Dom
Bosco se lembrava daquelas noites: “Várias vezes sucedeu chegar
a hora de levantar e eu tinha ainda em mãos o livro iniciado na vés-
pera”. E logo acrescentava: “Tal coisa, porém, danificou-me seria-
mente a saúde. Por conseguinte, aconselharei sempre que se faça
o que se pode e não mais. Descobri às minhas custas que a noite é
feita para o descanso”.
João Bosco não era nenhum fenômeno. Era um adolescente cheio
de vontade e de impaciência. A paciência e o sentido dos limites
(como a todos acontece), a vida haveria de ensiná-los.
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10 Pages 91-100

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11
Vinte anos
Março de 1834. João Bosco está para terminar o ano de “huma-
nidades”. Apresenta aos franciscanos o pedido para ser aceito
na Ordem.
Um colega de aula, Eugênio Nicco, traz-lhe a resposta.
– Esperam você para o exame, em Turim, no convento de Santa
Maria dos Anjos.
Vai até lá. A pé. No registro de aceitação do convento se lê: “O
jovem João Bosco de Castelnuovo foi aceito com todos os votos;
possui todos os requisitos exigidos. Em 18 de abril de 1834”.
Imediatamente, João prepara os documentos para entrar no Con-
vento da Paz, em Chieri.
Por que tal resolução?
João tem 19 anos e se convence de que já é hora de se definir na
vida. Lutou e sofreu porque deseja ser sacerdote. Mas nos últimos
meses, teve de enfrentar alguns problemas dramáticos.
Contas com a pobreza
Antes de tudo, a pobreza. Já não quer ser de peso para a mãe.
É o que diz nesses dias a Evásio Sávio, seu amigo de Castelnuovo:
“Como poderia ainda minha mãe ajudar-me a prosseguir nos estu-
dos?”. Tratara desse problema com alguns padres franciscanos e
eles, que o conheciam bem, lhe propuseram imediatamente: “Ve-
nha conosco”. Não haverá problemas nem mesmo para a quantia
que os noviços são convidados a pagar na entrada. Para João Bosco
será feita uma exceção.
Mas há outros problemas. Lemos em suas Memórias: “Aconse-
lhando-me comigo mesmo, pensava: se me faço padre diocesano, a
minha vocação corre grande perigo de naufrágio”. Não se trata de
escrúpulo ou vão temor. Escreve Pedro Stella:
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Naquelas anos, entre as coisas que mais se temiam, estava o
profissionalismo dos clérigos, o abraçar a “carreira” eclesiástica não por
um profundo espírito religioso, mas por razões humanas, para garantir o
futuro. Intuía-se quão grande mal era para o sacerdócio o vazio interior,
a superficialidade do sentido religioso.
Sinal desse perigo podia ser a abundância excessiva de jovens
que empreendiam o caminho do sacerdócio: 250 seminaristas, em
1834 (nos seminários de Turim, Chieri, Brá e Giaveno). O próprio
Dom Bosco lembra que, dos seus 24 colegas no curso de retórica,
20 se inscreveram nos cursos de seminário.
A uma entrada tão abundante, correspondiam tristes, e numero-
sos, abandonos. Em princípio, o caminho do seminário era consi-
derado por muitos como um “atalho” para um lugar no ensino ou
num emprego estatal.
Para curar tal chaga, tratava-se, por parte dos bispos, de opor
um dique cada vez maior ao número de seminaristas “externos”.
Eles frequentavam o seminário para as aulas e as funções litúrgicas,
mas levavam inevitavelmente para o meio dos internos um ar de
mundanidade.
A camponesa de xale preto
Nos últimos dias de abril, João se apresenta ao pároco para pedir
os documentos necessários à entrada no convento. Padre Dassano
fixou-o perplexo:
– Você, no convento? Já pensou bem nisso?
– Acho que sim.
Alguns dias depois, padre Dassano foi à casa do Sussambrino
para falar com a mãe, Margarida.
– João vai entrar para os franciscanos. Não tenho nada contra.
Mas me parece que seu filho é feito mais para trabalhar em paró-
quia. Sabe falar com o povo, atrair os meninos, fazer-se querer bem.
Por que então ir se enterrar num convento? Além disso, Margarida,
quero ser claro: a senhora não é rica nem tão jovem. Um filho pá-
roco, quando já não puder trabalhar, poderá ajudá-la. Mas um filho
frade para a senhora é como se não existisse. Estou convencido de
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que deveria dissuadi-lo dessa ideia. E parece-me dizê-lo para o seu
bem.
Margarida pôs seu xale aos ombros e desceu a Chieri.
– O pároco esteve lá em casa para dizer-me que você vai para o
convento. É verdade?
– Sim, mamãe. E espero que não tenha nada contra.
– Então, escute cá, meu filho. Quero que pense bem e com cal-
ma. E, uma vez que tenha decidido, siga o seu caminho, sem se pre-
ocupar com ninguém. O mais importante é fazer a vontade de Deus.
O pároco gostaria que o fizesse mudar de ideia, porque no futuro
eu poderia precisar de você. Eu, porém, lhe digo: nestas coisas sua
mãe não conta. Antes de tudo, Deus. De você não quero nada, não
espero nada. Nasci pobre, vivi pobre e quero morrer pobre. Aliás,
fique logo bem claro, João: se ficasse padre e por desgraça se tor-
nasse rico, eu jamais poria os pés na sua casa. Lembre-se bem disto.
Aquela já idosa camponesa de xale preto às costas tinha um tom
forte na voz e uma grande energia no rosto. Jamais Dom Bosco iria
esquecer as suas palavras.
João já estava para tomar uma decisão, quando houve um impre-
visto:
Poucos dias antes de minha entrada no convento, tive um sonho dos mais
estranhos. Parecia-me ver uma multidão de frades trajando hábitos rasgados,
correndo desencontradamente. Um deles se aproximou e disse:“Procura a
paz, mas não é aqui que a vai achar. Outra messe prepara-lhe Deus em outro
lugar”.
Um sonho. A costumeira “coisa de nada”. Todavia, João Bosco já
sabe: para ele os sonhos são coisa importante. Mesmo que às vezes
o incomodem.
Procura o confessor: “Expus-lhe tudo, mas não quis ouvir falar de
sonhos nem de frades. Respondeu-me: ‘Nestes assuntos, cada qual
deve seguir as suas inclinações e não os conselhos dos outros. Por
isso, deve pensar e decidir você mesmo’”.
Que fazer? Protelou toda decisão e continuou na escola pública.
Mas não se podia adiar tudo indefinidamente. Certo dia foi se abrir
com Luís Comollo e recebeu um conselho clássico para um santi-
nho como ele, todo espiritualidade fervorosa e angelical: fazer uma
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10.4 Page 94

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novena, escrever uma carta a um seu tio pároco e, depois, obedecer
cegamente. Relembra Dom Bosco:
No último dia da novena, fiz na companhia dele a confissão e a comunhão.
Ouvi uma missa e ajudei outra no altar de Nossa Senhora das Graças.
Voltando para casa, encontramos uma carta do padre Comollo, tio de Luís.
Dizia:“Considerando bem, aconselharia seu colega a entrar no convento.
Vista o hábito clerical e não tenha medo de perder a vocação. Com o
recolhimento e as práticas de piedade superará todos os obstáculos”.
“Por que não consulta o padre Cafasso?
Vestir o hábito clerical significava ficar seminarista. Mas conti-
nuava o problema número um: e os meios? A esta altura, entrou em
cena o padre Cinzano (que substituíra o padre Dassano na paróquia
de Castelnuovo). Informado de suas dificuldades, foi bater à porta
de duas pessoas remediadas. Juntas, comprometeram-se a pagar a
pensão do último ano de escola pública.
João, entretanto, não estava ainda satisfeito. Foi o amigo Evásio
Sávio quem sugeriu:
– Por que não vai a Turim pedir conselho ao padre Cafasso? É
moço ainda, mas é o melhor dos padres nascidos em Castelnuovo.
O padre José Cafasso1 tinha apenas 23 anos e já era considerado
um dos melhores “diretores de almas”: a ele se dirigiam para pedir
conselho muitas pessoas inquietas ou perturbadas. Vivia em Turim,
no Convitto ou Colégio Eclesiástico de São Francisco e, enquanto
completava os estudos de especialização teológica, assistia doentes
e encarcerados.
João lhe expôs todas as suas perplexidades. Com grande calma e
segurança, o padre Cafasso disse:
– Termine seu ano de retórica. Depois vá para o seminário. A
Divina Providência lhe fará saber o que quer do senhor. Também
pelo dinheiro, fique tranquilo: alguém providenciará.3
Nesse encontro, João Bosco descobriu o elemento equilibrador
de sua vida. Seu temperamento vulcânico o fará viver entre sonhos,
projetos, perplexidades, sucessos e desilusões. A seu lado, calmo e
1 Padre José Cafasso nasceu em Castelnuovo d’Asti, em 1811, e morreu em Turim, em 1860. Foi beati-
ficado em 1925 e canonizado em 1947. Considerado “a pérola do clero piemontês” (N.T.).
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10.5 Page 95

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firme, o padre Cafasso será o amigo discreto, o conselheiro sábio, o
benfeitor silencioso.
O seminário de Chieri só fora aberto em 1829. O arcebispo de
Turim, Columbano Chiaverotti, quisera para seus futuros padres
um ambiente recolhido, quase claustral, longe do agitado e baru-
lhento mundo de Turim. João Bosco ali entrará como “interno”,
disposto a viver-lhe toda a austeridade. Foi o que lhe aconselhou
o padre Cafasso, que também obteve do teólogo Guala a pensão
gratuita para o primeiro ano.
O exame para a admissão ao seminário, João deveria fazê-lo em
Turim. Mas a cidade estava ameaçada pelo cólera (que surgia quase
todos os anos, perturbando a estação do calor). Os viajantes são
submetidos à quarentena. O exame, pois, foi recebido por delega-
ção, em Chieri. Resultado: bom.
Passou as últimas férias escolares, antes de vestir a batina, no
Sussambrino e em Castelnuovo, junto do pároco. Escreve:
Naquelas férias não fiz de saltimbanco. Dediquei-me às boas leituras.
Continuei, todavia, a ocupar-me dos meninos, entretendo-os com cantos,
estórias,agradáveis distrações.Muitos,já crescidos,ainda não conheciam as
verdades da fé.Assim eu lhes ensinava o catecismo e as orações cotidianos.
Era uma espécie de oratório com uns 50 rapazes, que me amavam e
obedeciam como se fosse um pai.
A marca de fábrica
16 de agosto de 1835. João Bosco faz 20 anos. Um homem. Te-
naz, inteligente, maduro. Está prestes a entrar nos anos decisivos da
sua formação sacerdotal. Carrega, consigo como marca de fábrica,
um sólido caráter piemontês.
Henri Bosco, um francês da Provença, parente longínquo do san-
to, tentou delinear, em bela página, os “traços fortemente marcados
e originais” do caráter piemontês. Seguindo sua linha, tentamos
também nós.
O piemontês não é brilhante nem espirituoso. Não pensa às pres-
sas. É lento no compreender, no refletir, no responder. Falta-lhe,
por isso, o ímpeto, o fogo, a exaltação.
Em contrapartida, é sólido e forte. De uma solidez feita, antes de
tudo, de resistência, de resistência que sabe aguentar sem se quei-
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10.6 Page 96

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xar. Solidez feita também de prudência: a vida dura já lhe ensinou
que ponderar, sem pressa, é sabedoria.
O piemontês nasceu realista. As ideias originais não o seduzem:
sabe por instinto que elas têm uma taxa alta de mortalidade infan-
til... Se tem alguma ideia brilhante, leva-a logo ao campo prático.
Vive no concreto, no real. É aí que está a sua força.
O real, frequentemente, é áspero e duro. Mas o piemontês lhe
opõe a paciência. É paciente. Tanto de espírito como de coração.
Ama e não renega: é fiel. A fidelidade é o maior sinal da perse-
verança, sua expressão mais nobre e o produto mais puro. Supõe
coragem.
O piemontês é corajoso. Mas sem a temeridade das cabeças exal-
tadas. É mais soldado que guerreiro. Entretanto, sabe combater.
Luta bem. Seriamente. Sem espírito de aventura. Preferindo defen-
der a atacar.
Essa vocação defensiva lhe advém do amor intenso que dedica à
terra, aos bens, à família, ainda que seus bens sejam pobres, sua terra
exigente, sua família trabalhosa de levar.
Se emigra, continua ligado à terra. Há nele um fundo perene do
qual se originam todas as suas virtudes de paciência, de apego, de
solidez, de bom-senso prático.
Dom Bosco possuía (e como!) as virtudes próprias da raça, a re-
sistência, o espírito prático, o realismo congênito, a paciência. Até
mesmo a teimosia.
Mas a esse moço que está para entrar no seminário, deu-lhe Deus
também o dom de um coração que ama de modo superlativo. Um
coração que não se resigna a ver os jovens humilhados pela igno-
rância, o povo carunchado pela miséria, as pessoas paralisadas pela
ausência de Deus. Acho que é este o “carisma”, o dom particular
confiado a Dom Bosco, e que teve de integrar-se, por vezes de ma-
neira dramática e tumultuosa, com as qualidades da sua terra.
Um coração total desconhece meias-medidas, enfrenta cegamen-
te os desafios do real, transforma a paciência humana em impaciên-
cia cristã. Às sugestões trepidantes do “bom-senso” responde com
o ímpeto. Bom-senso, os santos o têm, e muito. Mas nós só o desco-
brimos depois. Parece loucura, mas é fé. Grande fé. Em Deus e nos
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10.7 Page 97

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homens. Não essa fé passiva, que tudo espera do céu. Mas a fé da
visão, da aventura, que desencadeia a ofensiva.
Dom Bosco esteve animado dessa fé enraizada no amor, cujas
razões não têm razão, porque raciocina diferentemente da inteli-
gência, do “bom-senso” terra a terra.
Será por isso que muitos sacerdotes seus conterrâneos, irmãos
sinceros de ministério, crescidos com ele no mesmo seminário, não
o haverão de entender.
A Igreja resumirá tudo isso pondo, no introito de sua missa,
as palavras da Bíblia referentes a Salomão: Deu-lhe o Senhor a
prudência e o saber, um coração generoso e tão vasto como
as areias das praias do mar (cf.1Rs 5,9) e pondo, ao término
da mesma missa, as palavras com que São Paulo define Abraão –
outro grande da humanidade, clamorosamente, desprovido de
“bom-senso”: Esperou contra toda esperança. Tornou-se Pai de
numerosos filhos (cf. Rm 4, 18).
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O seminário e os pontos negros
Naqueles tempos, a “vestidura clerical” era um passo importante.
O jovem trocava o paletó, e mais adereços que usava o povo
em geral, por uma batina preta (ou veste “talar”), que lhe caía
dos ombros até os calcanhares. Era um sinal. Para dizer a todos:“Pre-
tendo ser sacerdote e viver como deve viver um sacerdote”. Outros
acessórios completavam o uniforme do clérigo: a voltinha ou cola-
rinho branco de tela dura, o barrete preto com três bicos e borla, o
chapéu redondo... Cor única de rigor: o preto.
“Sempre precisei de todos”, dirá Dom Bosco um dia. Assim foi
também para “vestidura”: batina, chapéu, sapatos, barrete, até as
meias pretas, tudo foi presente do povo da sua terra.
25 de outubro. Domingo. Na igreja de Castelnuovo havia mais gen-
te que de costume: viera dos Becchi, de Morialdo, de outras povoa-
ções vizinhas, porque o pároco, antes da segunda Missa,“vestiria de
padre” o João Bosco, aquele moço excelente que todos conheciam.
João se aproxima do altar com a batina no braço.As palavras do
rito são solenes.
Quando o pároco, padre Cinzano, me mandou tirar o paletó, com as
palavras: “O Senhor te despoje do homem velho, com seus hábitos e
modos de agir”, eu disse no meu coração: “Quanta coisa velha há por tirar!
Destruí em mim, ó Deus, todos os maus hábitos”. Quando, ao entregar-me
o colarinho, acrescentou: “O Senhor te revista do homem novo, criado
segundo o coração de Deus, na justiça, na verdade, na santidade”, ajuntei
no meu coração: “Meu Deus, que eu comece deveras uma vida nova, toda
conforme à vossa vontade. Maria, sede a minha salvação”.
Sete linhas que revolucionam uma vida
Depois da Missa, uma surpresa: o padre Cinzano convida João
para acompanhá-lo até o povoado de Bardella, onde se fazia a festa
do padroeiro.
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Fui para não lhe desagradar, contra a minha vontade. Não era coisa
oportuna para mim. Eu parecia um boneco de roupa nova. Havia-me
preparado durante semanas para aquele dia e achei-me num almoço, em
meio a gente reunida para rir, tagarelar, comer, beber e divertir-se. Que
poderia haver ali de comum com alguém que, poucas horas antes, havia
recebido o hábito de santidade para doar-se totalmente a Deus?
Ao voltarmos para casa, o pároco perguntou-me por que estava tão
pensativo. Respondi-lhe com toda a franqueza que a função da manhã
não casava com aquilo que viera depois. Ver alguns padres bancando
bufões entre convivas, já um tanto embriagados, me havia desgostado. “Se
soubesse que haveria de ser um desses sacerdotes preferiria depor, agora
mesmo, este hábito”, ajuntei.
O pároco entendeu que seu jovem clérigo tinha razão. Safou-se
daquilo com dois modestos lugares-comuns: “O mundo é assim.
É preciso tomá-lo como é” e “Precisa ver o mal para depois evitá-lo”.
Nos quatro dias que o separavam do seminário, João se concen-
trou no silêncio e na reflexão. E escreveu os sete propósitos que
marcavam uma “reviravolta” em seu estilo de vida.
Ei-los:
“ 1.Não irei a bailes, teatros, espetáculos públicos.
2.Não farei mais de prestidigitador, de saltimbanco: nem irei à
caça.
3.Serei sóbrio no comer, no beber, no repouso.
4.Lerei coisas de religião.
5.Combaterei pensamentos, conversas, palavras, leituras,
contrários à castidade.
6.Farei cada dia um pouco de meditação e de leitura espiritual.
7.Contarei todos os dias fatos e pensamentos que façam bem.
Diante de uma imagem de Nossa Senhora, fiz promessa formal
de os observar, à custa de qualquer sacrifício”.
Nem sempre o conseguirá. Também ele é feito de carne e ossos
como nós. Mas dera a guinada.
Em 30 de outubro, João devia estar no seminário. Na véspera, no
Sussambrino, ia pondo em pequeno baú o enxoval que a mãe lhe
preparara. Ele escreve:
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Minha mãe me olhava como quem me quisesse falar. Em dado momento,
chamou-me à parte e disse: “João, você vestiu o hábito de sacerdote.
Sinto toda a consolação que uma mãe possa sentir. Lembre-se, porém,
de que não é o hábito que o dignifica, mas a virtude. Se algum dia vier a
duvidar de sua vocação, não desonre este hábito. Deixe-o imediatamente.
Prefiro ter por filho um pobre camponês a um sacerdote que descure
seus deveres. Quando você nasceu, consagrei-o a Nossa Senhora. Quando
começou os estudos, recomendei-lhe que amasse essa nossa boa Mãe.
Agora, recomendo que seja todo Seu”. Quando acabou de falar, minha mãe
estava comovida. Eu chorava. “Mamãe, agradeço tudo o que a senhora fez
por mim. Lembrarei sempre estas suas palavras”. De manhã, bem cedo, fui
a Chieri e, pela tarde, entrei no seminário.
Do alto de uma parede branca, um relógio de sol lhe deu a pri-
meira saudação; debaixo do quadrante das horas estava escrito:
Afflictis lentae, celeres gaudentibus horae” (Para os tristes lentas,
velozes para os alegres passam as horas). Era um bom conselho
para um moço que se preparava para passar seis anos a fio entre
aquelas paredes.
Na capela, com os clérigos perfeitamente alinhados nos bancos,
o órgão iniciou as majestosas notas do Veni Creator Spiritus (Vem,
ó Espírito Criador). O ano letivo se iniciava com os três dias de si-
lêncio rigoroso dos Exercícios Espirituais.
Um horário de ferro
À página 93 das suas Memórias,1 Dom Bosco escreve:“Os dias do
seminário são mais ou menos sempre os mesmos”. Maneira muito
clara de dizer que a dificuldade mais dura dos primeiros meses foi
a monotonia.4
O horário dos dias é preciso. Divide o minuto. Está tudo mar-
cado numa folha de papel-ofício afixada num canto, perto de uma
sineta: uma enfiada de horas, meias horas, quartos de hora. Ao fi-
nal de cada período, o “sineiro” aproxima-se da campainha e toca.
Àquele tintinar, a comunidade entra, sai, fala, imerge no silêncio, es-
tudo, reza. A primeira coisa que se ensina, quando se adentra aquela
porta, é que o sino é a voz de Deus.
1 São João Bosco, Memórias do Oratório de São Francisco de Sales. Brasília: Editora Dom Bosco, 2012.
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11 Pages 101-110

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Viver assim um dia é estimulante. Pode até parecer divertido.
Mas é preciso testar a repetição desses dias por oito meses a fio para
entender o que seja monotonia.
As faixas horárias que dividem o dia no seminário de Chieri ti-
nham sido rigidamente fixadas pelo o rei Carlos Félix para todas as
escolas do Reino. Nem os príncipes escapavam.
Podemos formar uma ideia percorrendo o horário que devia se-
guir, no Palácio Real de Turim, o príncipe herdeiro, Vítor Emanuel,
que naquele ano de 1835 completara 15 anos:
Despertar, às 5. Missa, às 7. Aulas, das 9 às 11. Almoço. Das 14 às 19h30,
deveres escolares. Ceia. E às 21, orações e repouso. Na manhã de domingo,
duas Missas: a primeira, simples, antes do café, na capela do Palácio; a
segunda, maior, depois do café, na Catedral.
No seminário, à diferença do Palácio Real, a Missa diária era se-
guida da meditação e do Terço. À mesa, não se falava; prestava-se
atenção à leitura da História da Igreja, de Bercastel, lida por turno
do alto de uma tribuna.
A comida era muito simples. “Come-se para viver, não se vive
para comer” era uma das máximas mais repetidas.
Os momentos de lazer para esses jovens eram os do recreio.
Dom Bosco se lembra de apaixonadas partidas de cartas.
Eu não era um grande jogador. Todavia, ganhava quase sempre. Ao final
das partidas, tinha as mãos cheias de moedas. Mas ao ver os meus colegas
tristes, porque as tinham perdido, ficava mais triste do que eles. Além disso,
à força de me concentrar no jogo, a minha mente, enquanto estudava ou
rezava, povoava-se do rei de copas, do valete de espadas... Por isso, aí pela
metade do segundo ano de filosofia, tomei a resolução de deixar esse jogo.
O fato que o levou a romper de vez com as cartas foi certa vitória
notável. O colega, que teimosamente havia continuado a pedir-lhe
desforra, era pobre. E ao final, depenado como um frango, quase
se punha a chorar. João Bosco sentiu-se ele mesmo envergonhado:
restituiu-lhe todo o dinheiro. E nas cartas, ponto final.
Quanto ao jogo de cartas, foi igualmente rígido com os seus sa-
lesianos. Dizia: “Faz perder muito tempo. E nós devemos dedicar
o nosso tempo aos meninos. Jogarei cartas quando não tiver mais
nada que fazer”.
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Os pontos negros do seminário
À medida que os dias vão passando, João descobre alguns pontos
negros na vida do seminário.
O primeiro é o mesmo que o incomodava em Castelnuovo: a
distância mantida pelos superiores. Para salvar o respeito e a digni-
dade, deixavam-se ver mui raramente.
Ia-se ver o reitor e os demais superiores quando se voltava das férias e
quando se saía. Só se ia ter com eles para ouvir alguma reprimenda. Se
algum superior passasse por entre os seminaristas era um foge-foge geral,
como de cão sarnento. Quantas vezes quisera eu falar com eles, pedir
conselhos...
Segundo Pedro Stella,
João não pedia apenas uma aprovação formal. Pedia mais: benevolência,
isto é, correspondência ao afeto que João lhes devotava. Este querer
estabelecer uma atmosfera de mútua “satisfação”, de sintonia e simpatia,
bem expressa o temperamento de Dom Bosco.
Para estabelecer essa corrente de sintonia, Dom Bosco julga es-
sencial a “presença física” dos educadores no meio dos jovens. Está
de tal forma convencido, que fará disso um elemento essencial de
seu sistema educativo.
O segundo “ponto negro” ele o via em alguns colegas. Havia
“muitos clérigos de acrisoladas virtudes”. Mas havia “também os
perigosos”, que mantinham “conversas realmente más”, e que in-
troduziam no seminário “livros ímpios e obscenos”.
Outro pesar de João provinha do fato de que estava proibida a
Comunhão frequente. “A santa Comunhão podia ser feita somente
aos domingos ou noutra solenidade especial.” Para nutrir-se da Eu-
caristia em dias de semana “precisava desobedecer”.
De manhã, enquanto a longa fila dos clérigos silenciosos se diri-
gia ao refeitório para o café, alguns desviavam para uma porta, que
dava para a igreja de São Felipe, e pediam a Comunhão, “pagando”
com o jejum até a hora do almoço. “Pude dessa maneira frequentar
bem mais a santa Comunhão, que posso chamar com razão o ali-
mento mais eficaz de minha vocação.”
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11.3 Page 103

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Quinta-feira: um respiro a plenos pulmões
Havia um dia em que para João se quebrava a monotonia dos ho-
rários: a quinta-feira. Na tarde desse dia – recordavam seus colegas
–, o porteiro soava infalivelmente a sineta de chamada e gritava em
piemontês:
– Bosch’d Castelneuv! (Bosco de Castelnuovo!)
Os colegas, que não perdiam a menor ocasião para divertir-se,
faziam-lhe eco, repetindo como outros tantos pregoeiros em pie-
montês, em italiano e em francês.
Bosch’d Castelneuv! Bosco di Castelnuovo! Bois de Château
Neuf!
João se ria da costumada brincadeira. E também porque sabia
quem o esperava: os membros da Sociedade da Alegria, que que-
riam revê-lo e contar-lhe as novidades; os amigos com os quais havia
feito o ginásio; os meninos que ele havia encantado com seus jogos
e histórias, e que o queriam ouvir novamente. Lembrava um seu
colega: “Eram muitíssimos meninos que o rodeavam festivamente.
Entretinha-os alegremente, falava com todos”. Depois do falatório,
dos ditos chistosos, das alegres risadas, uma visita à capela, aos pés
de Nossa Senhora.
A quinta-feira era seu balão de oxigênio, a continuação quase
clandestina de sua “obsessão”: o oratório.
Aos amigos mais íntimos, João falava frequentemente desse “ora-
tório”: iria nascer na periferia de uma grande cidade, teria pátios,
edifícios, multidões de meninos. “Não invento nada, dizia tranqui-
lo. Vejo tudo. Em sonhos. De vez quando. De noite.”
Segundo o biógrafo Lemoyne,
o padre Bósio, pároco de Levone Canavese, companheiro de Dom Bosco
no seminário de Chieri, vindo pela primeira vez ao Oratório em 1890,
parando no meio do pátio, ladeado pelos membros do Capítulo Superior
dos Salesianos, correndo os olhos ao redor e observando os vários edifícios,
exclamou: “De tudo quanto vejo, nada me parece ser novo. Dom Bosco,
no seminário, já me havia descrito tudo, como se tivesse visto com os
próprios olhos o que contava e como vejo agora, com admirável exatidão”.
Sonhos e pobreza: um binômio estranho que acompanhará cada
etapa da vida de Dom Bosco! Pobreza que punha entraves nas rodas
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11.4 Page 104

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do presente. Sonhos que escancaravam as portas da esperança para
um futuro esplendoroso.
Os exames, naqueles “belos tempos”, eram três por ano: trimes-
trais, semestrais e finais. No exame semestral, havia um prêmio de
60 liras para o clérigo de cada curso que obtivesse as melhores no-
tas no comportamento e nos estudos. João se concentra nos livros
e consegue arrebatá-lo. Repetirá a façanha os seis anos: como quer
que corram as coisas, metade da pensão está assegurada.
Além disso, procura trabalho: “Quem precisava fazer a barba,
consertar o barrete, coser ou remendar, encontrava-me sempre às
ordens”.
Entre jovens ricos
Com a chegada do verão de 1836, a cólera reaparece.Turim está
com medo. Os jesuítas antecipam a mudança dos internos do Co-
légio do Carmo para o castelo de Montaldo, imponente local de
vilegiatura. Procuram um assistente confiável para o dormitório e
que possa também dar aulas particulares de grego. O padre Cafasso
manda o clérigo Bosco:“Enquanto isso,você poderá ganhar algumas
liras!”.
De 1o de julho a 17 de outubro, João convive, pela primeira vez,
com jovens de famílias distintas, em contato com as virtudes e os
vícios dos “filhinhos de papai”. Confessa ter experimentado “quão
difícil seja conseguir no meio deles aquele ascendente que um pa-
dre deve ter para fazer-lhes o bem”. Persuade-se de que Deus o cha-
ma somente para os meninos pobres. Será uma de suas convicções
absolutas: como não é chamado a educar as jovens, tampouco o será
para educar os filhos dos ricos. Quase trinta anos depois, a 5 de abril
de 1864, ao padre Ruffino que lhe falava de um colégio para jovens
nobres, respondeu, quase com aspereza:
– Isto não. Jamais. Seria a nossa ruína. Já o foi para outras ordens
religiosas: tinham como primeira finalidade a educação da juventu-
de pobre, e a abandonaram para servir aos nobres.
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11.5 Page 105

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O fascínio de Luís Comollo
Outubro de 1836. Enquanto João Bosco deixa o castelo de Mon-
taldo, a fim de passar uns dias por entre os vinhais do Sussambrino,
Luís Comollo veste o hábito clerical. No fim do mês entra, com o
amigo Bosco, no seminário de Chieri. Reconstitui-se um par fixo,
uma amizade solidíssima.
Luís tem dois anos menos que João, mas volta a ser, imediata-
mente, o seu estímulo espiritual. “A minha recreação era não raro
interrompida por ele. Pegava-me pela batina, pedia-me que o acom-
panhasse e levava-me à capela.”
Ali Comollo estava em casa e suas ingênuas efusões não mais
terminavam: visita ao Santíssimo, oração pelos agonizantes, reza do
Terço, ofício de Nossa Senhora, coroinha pelas almas do Purgató-
rio...
Bosco, à semelhança de muitos cristãos que trabalham e lutam
pelo Reino de Deus, sentia profundo fascínio, nostalgia quase, por
aquela piedade de ardor puro, de abandono simples nas mãos de
Deus. Intuía que no modo de agir do amigo havia exagero. Di-lo com
muita delicadeza:
Nem sequer tentei imitá-lo na mortificação. Jejuava rigorosamente a
Quaresma inteira, jejuava aos sábados, às vezes almoçava pão e água...
Outras vezes, deixava a comida e o vinho, contentando-se com o pão
molhado n’água, com o pretexto de que lhe fazia mais bem à saúde.
Falando claro e sem rodeios: era uma corrida voluntária para
exaustão e a morte. Um bom diretor espiritual não o teria deixado
correr assim para o massacre. Quando Domingos Sávio (vinte anos
mais tarde) tentar encaminhar-se por via semelhante. Dom Bosco o
impedirá com decisão. Mas João não pode ainda ser, agora, aquele
prudente diretor de consciências que um dia será. Por isso, a ascéti-
ca desencarnada de Comollo, aquele seu refugiar-se em Deus quase
desprezando todo o valor terreno, o enchem de admiração.
Nele, o fascínio por Luís Comollo, por aquela santidade que se
consome rápida, mirando direto o Céu, viverá para sempre. Mas
o seu caminho para Deus continuará sendo outro, o de uma san-
tidade mais encarnada e sólida, realizada no contato vivo com a
realidade, com o afeto e as necessidades urgentes dos jovens, com
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11.6 Page 106

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os problemas preocupantes e concretos que aclaram e simplificam
qualquer teoria ascética.
Clérigo perdido
No início de dezembro, João Francisco Giacomelli, de Avigliana,
entrara no seminário. Deixou precioso testemunho em que parece
fotografar o clérigo Bosco no segundo ano de filosofia. Condensa-
mos e reproduzimos.
Tendo entrado no seminário um mês depois dos outros, não conhecia
ninguém. Nos primeiros dias sentia-me perdido, desgarrado na solidão. A
primeira vez que sentei no salão de estudos, vi à minha frente um clérigo
que aparentava ser de idade avançada. De aspecto agradável, cabelos
crespos, pálido e magro, parecia doente: era João Bosco. Foi ele também
que, depois do almoço, ao ver-me sozinho, aproximou-se de mim, ficando
comigo durante todo o recreio. Quantas gentilezas me fez no seminário:
entre outras, recordo-me de que, tendo um barrete desproporcionalmente
alto, vários colegas começaram a me gozar. João Bosco o rebaixou em três
tempos.
Naquele ano havia dois clérigos de nome Bosco. Como para se distinguirem
um do outro, o primeiro (que mais tarde seria o diretor das Rosine
[Rosinas], em Turim) disse: Mi sun Bosch’d pucciu (“Eu sou um Bosque
de nespereira”, madeira muito dura, impossível de vergar). João, ao invés,
disse: Mi sun Bosch’d sales (“Eu sou um Bosque de salgueiro”, tenro e
flexível). Não era nenhum beato. Tinha, ao contrário, o caráter colérico.
E era evidente a grande e contínua violência que fazia para conter-se.
Gostava imenso dos meninos: adorava estar com eles.
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13
“Profissão”: sacerdote
24de junho. 1837. Festa de São João Batista. Dia onomástico
de João Bosco e do início das longas férias de verão. Quatro
meses.
Mete-se pela estrada branca que de Chieri leva a Castelnuovo e
depois pela vereda que sobe ao Sussambrino: 12 quilômetros. Uma
boa pernada. A propriedade do irmão dá-lhe as boas-vindas com o
quiquiriqui dos galos e também com o sorriso tímido de uma linda
sobrinha.
José casara em 1833, aos 20 anos, com Maria Calosso, natural
de Castelnuovo. Sua primeira filhinha, Margarida, viveu três meses.
Mas na primavera de 1835 chegou Filomena.
A tranquila pequena contempla, encantada, o tio João, que tra-
balha com a plaina, o torno, a forja; que corta e costura, e lhe faz
bonecas de pano muito bonitas...
A ceifa do trigo
O trigo loureja nos campos. Deixando a humilde oficina, João
empunha a foice e entra na longa fila dos cortadores de trigo. Sob o
grande chapéu de palha, o suor lhe goteja do rosto. Nessa atividade
ao ar livre, depois de oito meses de quase reclusão entre bancos de
aula, João exulta de intensa alegria.
Nas parreiras, vão tomando forma os tenros cachos verdes. Cer-
to dia vê uma lebre, esfuziar de entre as filas de videiras. Instintiva-
mente, corre a casa e saca do prego a espingarda de José. Questão
de minutos, pensa. Ao contrário, a lebre se afasta veloz e ele, teimo-
so, não desiste.
De campo em campo, de vinhedo em vinhedo, desci vales, subi colinas,
durante horas. Cheguei finalmente à distância de tiro: mirei, atirei e o pobre
animalzinho caiu. Sobreveio-me uma grande tristeza por vê-lo morrer.
Alguns amigos que me haviam seguido regozijaram-se comigo pelo tiro
certeiro. Foi então que me dei conta de que estava em mangas de camisa,
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11.8 Page 108

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sem batina, com um chapéu de palha, empunhando uma espingarda,
depois de uma corrida de 5 quilômetros. Senti-me envergonhado.
Em casa, releu no canhenho os propósitos feitos no dia de sua
vestidura. Número 2: “Não serei mais prestidigitador. Nem saltim-
banco. Não irei mais à caça”. E disse: “Senhor, perdoai-me”.
O seu divertimento voltou a ser o estar com os meninos.
Muitos andavam pelos 16-17 anos e nada sabiam de nossa fé. Senti grande
prazer em dar-lhes catecismo. Ensinava a ler e a escrever à criançada de
todas as idades.A aula era gratuita, mas as condições que eu impunha eram
a assiduidade, a atenção e a confissão mensal.
Os esquemas mentais
3 de novembro de 1837. No seminário, João começa a teologia.
É a “ciência que estuda Deus” e, para os aspirantes ao sacerdócio,
o estudo fundamental. Naqueles tempos, duravam cinco anos e ti-
nha como disciplinas principais a dogmática (o estudo das verda-
des cristãs), a moral (a lei que o cristão deve observar), a Sagrada
Escritura (a Palavra de Deus), a história eclesiástica (história da
Igreja desde a origem do Cristianismo até hoje).
O estudo da teologia tem grande importância na vida de todo
sacerdote. É durante esses anos de estudo e de grande disponibi-
lidade que se põe aquela ossatura de ideias, de julgamentos, que
formam a “mentalidade”. Ao longo da vida, o padre irá apurá-la,
modificá-la também, sob a urgência de fatos novos. Mas dificilmen-
te a mudará. O seu modo de ver, de julgar as coisas, terá suas raízes
naquela “plataforma ideológica” que lhe deu a teologia. Foi ali que
se tornou padre de profissão.
Também para João Bosco os anos de teologia foram extrema-
mente importantes. Embora ajudado por dons extraordinários, foi
filho de seu tempo. Especialmente da Igreja de seu tempo.
É muito importante para entender Dom Bosco conhecer os
“esquemas ideológicos” que os estudos, os livros, e até a direção
espiritual e a pregação, colocaram na base de sua mentalidade.
Pedro Stella, no primeiro volume de Don Bosco nella storia della
religiosità cattolica, dedicou 20 páginas (59-78) ao assunto. As
dimensões deste trabalho só nos permitem citar algumas afirmações
muito esclarecedoras:
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11.9 Page 109

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A teologia dogmática de então punha todas as coisas sob a luz das contas a
serem prestadas ao divino juiz, na expectativa da vida ou da morte eterna.
Habituava a considerar todas as coisas segundo o valor que tinham para a
eternidade, tudo em razão do prêmio ou da condenação.
A teologia moral concentrava tudo na relação entre lei divina e liberdade;
educava a considerar o próprio agir como adequação responsável à lei
divina.
A oratória sacra para os seminaristas contribuía para alimentar o estado
de angústia que podia germinar em almas religiosas muito sensíveis.
Argumentava a respeito das grandes e difíceis obrigações que o sacerdócio
impunha, dos enormes perigos que provinham do sagrado ministério
(perigos de mundo, de mulheres, de dissipação de todo gênero), das
contas rigorosas que o divino soberano havia de pedir aos seus ministros.
Notamos de passagem que, levado por esse gênero de pregação,
João Bosco pode ter exagerado em algum momento no autocontro-
le e em formas alienantes de ascese. São experiências passageiras
que muitos seminaristas dos tempos passados (seminários fechados
e ascéticos) experimentaram.
Julgar o próprio tempo
Achamos, outrossim, que é muito importante, para compreender
Dom Bosco, delinear os traços essenciais da “mentalidade histórica”
que ele absorveu nesses anos,isto é,como ele foi encaminhado a ver,a
valorar “o tempo” que estava vivendo, essa época tão importante que
passará aos livros de história (italiana) com o nome de Risorgimento.
Só entendendo essa “mentalidade histórica” será possível compreen-
der como Dom Bosco pensava o futuro da Igreja e do mundo.
Partia-se definindo como “falimentares” as experiências da Revo-
lução Francesa e do império napoleônico. “A mais terrível das re-
voluções...”, “a iniquidade excedeu também entre nós”, “a rede foi
despedaçada e nós libertados”. A restauração dos tronos é “obra
só de Deus”. São frases que enxameiam as cartas pastorais e os ser-
mões da época.
Chamava-se “falência” à passagem da proclamação dos grandes
princípios (liberdade, igualdade) ao “terror” da revolução e à ditadu-
ra napoleônica. Isso significava que o princípio iluminista (adotado
pela Revolução Francesa) da “razão como via única para a verdade e
o bem” conduzia a desastrosas consequências.
108

11.10 Page 110

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Revalorizava-se, portanto, a “dimensão religiosa”, não redutível
aos limites da razão humana. Revalorizava-se a autoridade do rei,
moderada apenas pela observância das leis divinas: com sua ilumi-
nada sabedoria, devia refrear as forças revolucionárias sempre de
tocaia, que levavam à desordem e à violência.
Essas reavaliações eram ambíguas. Podiam conduzir a um cristia-
nismo autoritário, a uma aliança entre o trono e o altar incapaz de
compreender que “liberdade, igualdade e fraternidade” são valores
cristãos. São ambiguidades do “conservadorismo católico”, que do-
minou quase até 1848.
Em surdina, mesmo em ambientes eclesiásticos, circulavam outras
ideias: as do “liberalismo católico”. Reconhecia-se a validade dos gran-
des princípios da revolução. Esconjuravam-se a violência jacobina e a
ditadura de Napoleão. Desejava-se um sistema de poderes equilibra-
dos: um rei que refreasse as revoluções, mas também uma Constitui-
ção que garantisse liberdade e igualdade. Liberdade e igualdade, toda-
via, vinham sendo desejadas para todos, menos para o “baixo-povo”.
Tanto os liberais quanto os conservadores sentiam medo da
“igualdade democrática”: como mostrara o “terror”, ela seria inevi-
tavelmente transformada na tirania de um pequeno grupo, que pro-
clamaria governar “em nome do povo”, produzindo o caos.
Entre os mais ilustres católicos liberais desse tempo se contavam
Antônio Rosmini e Alexandre Manzoni.
João Bosco absorveu a mentalidade histórica do “conservadoris-
mo católico”. Embora a urgência de situações concretas o levasse
por vezes a superar, e até mesmo a revirar completamente, muitas
atitudes dos conservadores, Dom Bosco teve ideias conservadoras.
Nem podia ser diferente: em 1832, com a encíclica Mirari Vos, o
papa Gregório XVI declarara que as “liberdades modernas” eram
inaceitáveis para os católicos. Reconhecendo, por exemplo, a liber-
dade de consciência – afirmava o papa –, colocava-se no mesmo
plano a verdade católica e o erro. O texto da encíclica estava nas
mãos dos seminaristas para estudo e reflexão.
Onde estavam Cavour, Mazzini, Garibaldi?
Enquanto em Chieri João Bosco assimila essas ideias, em Turim
Carlos Alberto é o “campeão” do conservadorismo católico. A alian-
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12 Pages 111-120

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12.1 Page 111

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ça trono-altar é florescente. O clero ocupa posição dominante na
Universidade: um representante do arcebispo assiste a todas as láu-
reas. Em 1834, no pátio do Arsenale, em Turim, o rei inaugurou o
monumento a Pedro Micca, popular que se sacrificara para salvar
a sua cidade. No discurso, porém, não se exaltaram as “virtudes do
povo”, mas o súdito simples ignorante, obediente, pronto ao sacri-
fício por seu rei.
Naquele 1837, os protagonistas do Risorgimento (período que
abalará a Itália profundamente, embaralhando todas as cartas, in-
clusive as ideias “conservadoras” e liberais”) estão ainda dispersos.
João Mastai-Ferretti, que em 1846 subirá à cátedra de São Pedro
com o nome de Pio IX, é bispo de Ímola. Só tem 45 anos, é conside-
rado um “bispo não alinhado”, porque deplora os excessos da polí-
cia papal, e é amigo do conde Pasolini, o liberal mais em evidência
da sua cidade.
Camilo Cavour, 27 anos, dirige a fazenda agrícola de Leri. De
botas e chapéu de palha, caminha, incansável, da manhã à noite,
pelos campos, pelos pastos e pelos arrozais. Era um jovem subte-
nente na guarnição de Gênova em 1831. À notícia dos tumultos
revolucionários gritara: “Viva a República!”. Catapultaram-no para
o Valle d’Aosta e ele largou o exército. Seu pai, prefeito da cidade
de Turim e, por consequência, chefe da polícia, exilou-o no cam-
po. Entre a vindima e a colheita do arroz, gira pela Europa. Admira
o Parlamento de Paris e de Londres. Encontra-se também com os
refugiados italianos. Referindo-se a eles, disse: “São um bando de
loucos imbecis e fanáticos, com que de boamente faria adubo para
as minhas beterrabas”.
Mazzini, 32 anos, acabava de ser expulso da Suíça, de onde diri-
gia suas tramas revolucionárias. Reside em Londres, numa casa de
periferia: para poder sobreviver, escreve para jornais. Deixa cres-
cer a barba. Vaga sozinho e vestido de preto pelas nevoentas ruas
da cidade.
Garibaldi, que, após a malograda revolução mazziniana da Sa-
boia, fugira para a América, desembarca no Brasil. Tem 30 anos e
banca o corsário nos mares do Sul, a serviço do “governo revolu-
cionário” do Rio Grande. Logo vestirá sua “legião italiana” com a
legendária camisa vermelha, comprando em Montevidéu, a preço
110

12.2 Page 112

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de liquidação, um estoque de aventais destinados aos açougueiros
argentinos.
Vítor Emanuel, 17 anos, vive no Palácio Real de Turim como em
rígida caserna. Deve acompanhar o pai às festas e aos bailes da aris-
tocracia, ficando em pé ao seu lado por horas e horas.
Os únicos momentos de intenso contentamento ele os vive nas
cavalariças. Fala um dialeto primitivo e rude com os serviçais, caval-
ga corajoso e fanfarrão, ávido de ação e de ar livre.
Perto e longe, a história dos homens caminha. Alternam-se even-
tos pequenos e grandes, impelindo o acontecimento humano para
a frente.
Em 1836, Samuel Morse inventa o telégrafo elétrico e o sistema
de comunicação com linhas e pontos. Dentro de poucos anos, se
difundirá pelo mundo um pequeno e útil retângulo de papel: o te-
legrama. A princípio só ao alcance dos governantes e dos grandes
jornais. Depois à disposição de todos.
Em 1837, durante a epidemia da cólera, faleceu na Torre Del
Greco, Tiago Leopardi. Tinha apenas 39 anos. Na Inglaterra, sobe
ao trono a rainha Vitória, que inicia um longuíssimo reinado e verá
a Inglaterra tornar-se a primeira nação colonialista do mundo.
Em 1838, morre o marquês Tancredi de Barolo, ex-prefeito de
Turim. A viúva decide consagrar suas riquezas à assistência de mu-
lheres infelizes: nasce assim, nos arredores de Turim, perto do Cot-
tolengo, a obra de ajuda às encarceradas e às mulheres perdidas.
Em 1839, o rei Fernando II realiza a construção da primeira estra-
da de ferro italiana, ligando Nápoles a Granatello, e Jacques Daguer-
re constrói a primeira máquina fotográfica. A esse humilde inventor
também Dom Bosco deverá alguma coisa: graças a dezenas de fo-
tos, será um dos primeiros santos de quem se poderá conservar a
imagem precisa.
111

12.3 Page 113

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14
João Bosco se torna Dom Bosco
Férias de 1838. O estudante de teologia João Bosco é convidado
a fazer seu primeiro sermão na festa de Nossa Senhora do Rosá-
rio, em Alfiano. Relembra:
O pároco, padre José Pelato, era um homem de muita piedade e doutrina.
Pedi um parecer sobre o sermão. Respondeu-me:
– Muito bonito. Ordenado.Vai dar um bom pregador.
– Será que o povo entendeu?
– Pouco. Compreendi eu, meu irmão padre e pouquíssimas outras pessoas.
– Entretanto, eram coisas fáceis.
– Parecem a você. Para o povo são muito elevadas. Raciocinar sobre um
conjunto de fatos da história da Igreja e da história sagrada é uma coisa
muito bonita. Mas o povo não entende.
– Que fazer então?
– Deixar o estilo dos clássicos. Falar em dialeto ou mesmo em língua
italiana, se quiser. Mas de maneira popular, popular, popular. Em vez de
arrazoados, contar fatos, fazer comparações simples e práticas. Lembrar
que o povo entende pouco e que as verdades da fé devem ser explicadas
do modo mais fácil possível.
Dom Bosco escreveu que esse conselho lhe foi dos mais precio-
sos da vida. Serviu-lhe nos sermões, nos catecismos. E nos livros que
escreveu.
Um contrato estranho com o além
Novembro de 1838, João Bosco inicia o segundo ano de teologia,
dominado todo ele por um acontecimento trágico e uma impressão
transtornadora.
No último mês de férias, Luís Comollo lhe dissera palavras estra-
nhas. Contemplando os vinhedos do alto de uma colina, murmurara:
– No ano que vem espero saborear um vinho muito melhor.
– Que quer dizer?
112

12.4 Page 114

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A princípio não quis responder. Depois:
– Já faz algum tempo que eu sinto um desejo tão grande de ir
para o céu que me parece impossível viver por mais tempo na terra.
Nos primeiros meses do ano letivo, sobreveio um não menos es-
tranho pormenor. João e Luís leem juntos, um trecho da vida de um
santo, e João comenta:
– Como seria bonito se o primeiro que morresse viesse trazer ao
colega notícias do além.
Luís fica impressionado com a ideia e exclama desejoso:
– Façamos, então, um pacto. O primeiro que morrer, se Deus o
permitir, virá dizer ao outro se está no Céu. De acordo?
Apertam a mão.
Manhã de 25 de março de 1839. Enquanto se dirigem à capela,
Luís para João no corredor lhe diz com semblante sério:
– Para mim, acabou. Sinto-me muito mal. Sei que vou morrer.
João trata de desviar o assunto para o lado jocoso:
– Ora, ora! Você está tão bem! Ontem caminhamos uma hora in-
teira. Não fique aí a parafusar essas ideias!
A coisa, porém, era mesmo séria. Enquanto estão na igreja, Co-
mollo desmaia e o carregam para a enfermaria. A febre sobe rápida
e preocupante.
31 de março. Páscoa. Levam a Luís a Eucaristia como Viático.
Está sem forças. Num instante em que João se encontra só ao seu
lado, toma-lhe da mão e murmura:
– João, chegou a hora de nos separarmos. Pensávamos de chegar
juntos ao sacerdócio, de ajudar-nos, aconselhar-nos. Ao contrário,
Deus não quer assim. Prometa-me que rezará por mim.
Morreu no amanhecer de 2 de abril, com 21 anos. Segurava a
mão do colega.
E eis o fato deveras estranho, que se verificou nas seguintes 48
horas, escrito pelo próprio Dom Bosco:
Na noite de 3 para 4 de abril, estava eu já deitado num dormitório de uns
20 seminaristas, quando, pelas 11 e meia, um surdo rumor se fez ouvir
nos corredores. Parecia que um pesado carroção, puxado por muitos
113

12.5 Page 115

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cavalos, se aproximasse da porta do dormitório. Os seminaristas acordam,
mas ninguém fala. Eu estava petrificado pelo terror. O fragor se aproxima
sempre mais.Abre-se violentamente a porta. Foi então que se ouviu a voz
clara de Comollo, dizendo três vezes: “Bosco, estou salvo!”. Em seguida
o barulho acabou. Os meus colegas haviam pulado da cama. Alguns
espremiam-se ao redor do vigilante do dormitório, padre Hosé Fiorito, de
Rívoli. Foi a primeira vez que me lembro de ter tido medo. Um medo tal
que, naquele momento, eu preferia morrer. Esse pavor me causou uma
grave enfermidade, que quase me levou à sepultura.
O padre Lemoyne, que viveu no Oratório ao lado de Dom Bosco
de 1833 até 1888, afirma: “O padre José Fiorito contou muitas vezes
aquela aparição aos superiores do Oratório”.
Um pão de milho e uma garrafa de vinho barbéra
A “grave enfermidade” de que fala Dom Bosco foi uma forma
séria de exaustão depressiva, que se prolonga até os primeiros me-
ses do ano letivo seguinte. O alimento não descia. Prostrava-o uma
insônia obstinada. Depois de alguns meses, o médico receitou re-
pouso absoluto. Na cama. Ficou uns 30 dias.
Melhorou, mas de maneira curiosa, quase inacreditável. Sua mãe,
sabendo que estava de cama, foi visitá-lo, levando-lhe um enorme
pão de milho e uma garrafa de vinho barbéra envelhecido.
É comovente essa mulher do povo. Disseram-lhe que o filho es-
tava doente. Para os camponeses, a doença é uma só: desnutrição.
Também o remédio é um só: comer. Pelas colinas, nada se sabe de
doenças com nomes e remédios sofisticados.
João ficou numa sinuca: não queria que a mãe se sentisse humi-
lhada pela recusa dos presentes. Por isso, dá uma primeira dentada
no pão e toma um gole de vinho. E, conversa vai, conversa vem,
à força de dentadas e goles, lá se foi, sem perceber, todo o pão e
todo o vinho. E (pudera!) sobreveio-lhe um sono profundo. “Dor-
miu uma noite e dois dias”. Quando acordou, estava bom.
114

12.6 Page 116

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“Tremia ao pensamento de me comprometer por toda a vida”
Tão vigoroso foi o restabelecimento que, ao término do ano escolar, tive a
ideia de ganhar um ano, estudando durante as férias.A permissão naqueles
tempos concedia-se mui raramente. Apresentei-me ao arcebispo Fransoni
e pedi-lhe para estudar os tratados do quarto ano durante as férias, de tal
forma que pudesse concluir o quinquênio teológico no ano letivo 1840-41.
Aleguei como razão a minha idade: já tinha completado 24 anos.
O arcebispo quis ver os resultados dos estudos anteriores e con-
cedeu o favor, contanto que, antes de novembro, João prestasse
todos os exames prescritos e recebesse a ordenação do subdiacona-
to. O teólogo Cinzano, pároco de Castelnuovo, foi designado como
examinador. Em dois meses de estudo intenso, João Bosco se pre-
parou e deu os exames.
O subdiaconato era, então, o passo decisivo na vida de um clé-
rigo. Quem o recebesse fazia voto solene de castidade por toda
a vida. Desse voto a Igreja não dispensava ninguém, por motivo
nenhum.
O clérigo que se preparava para receber essa ordem era convida-
do a recolher-se a um silêncio de dez dias de Exercícios Espirituais.
Nesse retiro, fazia a confissão geral, isto é, um reexame total de toda
a vida, para interrogar-se a si mesmo e ao confessor, representante
de Deus, se estava em condições de comprometer-se para sempre.
Relembrando aqueles dias. Dom Bosco escreveu: “Desejava
prosseguir, mas tremia ao pensamento de ligar-me por toda a vida”.
19 de setembro de 1840. Na ordenação, o bispo convida João
Bosco a pensar, uma última vez, sobre a importância da ordem que
vai receber; se está decidido a consagrar sua vida a Deus, dê um pas-
so à frente. João Bosco dá um simples passo no pavimento da igreja;
com tal, gesto, deixa de lado todas as outras carreiras humanas.
“O padre não vai sozinho para o Céu”
Novembro de 1840. Começa no seminário de Chieri o quinto e
último ano de teologia.
29 de março de 1841. Recebe a ordem do diaconato, último de-
grau antes do sacerdócio.
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12.7 Page 117

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26 de maio. O diácono João Bosco começa os Exercícios Espi-
rituais que o devem preparar para a ordenação sacerdotal. Nesses
dias, a convite do diretor de espírito, medita longamente as pala-
vras do salmista: “Quem subirá ao monte do Senhor? Quem pode-
rá habitar no seu santuário? O que tem mãos puras e inocente o
coração”.
Relanceando o olhar ao passado, vê que, quase milagrosamente,
suas mãos, desde quando Margarida lhas juntava para as primeiras
preces, permaneceram puras.
Num pequeno canhenho anota:
O padre não vai para o Céu sozinho. Nem para o inferno. Se proceder bem,
irá para o Céu com as almas que salvou com o seu bom exemplo. Se for
infiel, se der escândalo, irá à perdição com as almas condenadas por seu
escândalo. Por isso, me empenharei em observar as seguintes resoluções.
Seguem-se nove propósitos fundamentais para a sua vida. Em
grande parte, repetem e explicitam os propósitos feitos na vesti-
dura. Mas três deles assinalam um aprofundamento característico
daquilo que será o “estilo sacerdotal” do padre Bosco. Ei-los:
– ocupar rigorosamente o tempo;
– sofrer, trabalhar, humilhar-se em tudo e sempre quando se trata
de salvar as almas;
– a caridade e a doçura de São Francisco de Sales me guiarão em
todas as coisas.
Sacerdote para sempre
5 de junho de 1841. Na capela do arcebispado, João Bosco, reves-
tido da alva, prostra-se por terra diante do altar. Chovem do órgão as
notas austeras do canto gregoriano. Os sacerdotes e os seminaristas
presentes invocam, um a um, os grandes santos da Igreja: Pedro, Pau-
lo, Bento, Bernardo, Francisco, Catarina, Inácio...
Pálido pela emoção e pelos últimos dias extenuantes, João se er-
gue e vai ajoelhar-se aos pés do arcebispo. Luís Fransoni impõe-lhe
as mãos na cabeça e invoca o Espírito Santo para que venha e o
consagre sacerdote para sempre.
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12.8 Page 118

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Alguns minutos depois, João Bosco, unindo-se à voz do arcebis-
po, inicia sua primeira concelebração. Tornou-se Dom Bosco!1
Celebrei a primeira Missa – escreverá com simplicidade – na igreja de São
Francisco de Assis, em Turim, assistido pelo padre Cafasso, meu insigne
benfeitor e diretor. Esperavam-me ansiosamente no meu povoado (era a
festa da SS.Trindade), onde fazia muitos anos que não havia uma primeira
Missa. Mas preferi celebrá-la em Turim, sem barulho, no altar do Anjo da
Guarda. Posso chamar aquele dia o mais belo da minha vida.
No momento em que se recordam os falecidos, lembrei-me dos meus
caros, dos meus benfeitores, especialmente do padre Calosso, que sempre
considerei grande e insigne benfeitor.
Há uma piedosa crença segundo a qual Deus concede aquela graça que
o neossacerdote pedir ao celebrar a primeira Missa. Pedi ardentemente a
eficácia da palavra, para poder fazer o bem às almas.
Sua segunda Missa Dom Bosco a quis celebrar no altar da Conso-
lata, no grande Santuário de Nossa Senhora, em Turim. Erguendo os
olhos, viu-a, no alto, a Senhora brilhante como o sol que dezessete
anos antes lhe havia falado em sonhos. “Torne-se humilde, forte e
robusto”, dissera, e João Bosco procurara fazê-lo. Agora como Dom
Bosco, começava o tempo do “tudo compreenderá”.
Na quinta-feira seguinte, festa do Corpus Domini (Corpo do Se-
nhor, então dia de preceito), Dom Bosco cantou Missa na terra natal.
Os sinos bimbalharam e repicaram longamente. Todo o mundo
se apinhou na grande igreja. “Queriam-me bem – lembrará Dom
Bosco – e cada qual estava contente de estar comigo”.
Os mais pequenos esbugalhavam os olhos ao saber que aquele
padre tinha sido um saltimbanco.
Os grandes lembravam-se dele como companheiro de jogos e de
escola.
Os mais velhos, viram-no desde as colinas, passar tantas vezes
com os pés descalços e os livros na mão.
Naquela noite, Mamãe Margarida achou um momento para lhe
falar a sós:
Agora é padre. Está mais perto de Jesus. Eu não li os seus livros, mas
lembre-se de que começar a dizer Missa é começar a sofrer. Por enquanto,
nem perceberá. Mas, aos poucos, verá que sua mãe lhe disse a verdade. De
agora em diante pense apenas na salvação das almas. E não se preocupe
absolutamente comigo.5
1 Será com este nome, Dom Bosco (= padre Bosco) que o mundo inteiro o há de conhecer (N.T.).
117

12.9 Page 119

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15
Primícias sacerdotais
Que fará agora Dom Bosco?
É inteligente. Quer trabalhar. É pobre.
Três cargos lhe são oferecidos. Uma nobre família de Gênova
deseja-o como professor de seus filhos. Naqueles tempos muitas
famílias ricas preferiam manter no próprio “palácio” um professor
particular, com o encargo de instrutor e educador, a mandar seus
filhos às escolas públicas. Procuravam quase sempre um sacerdo-
te: dava garantias de seriedade. Esses nobres genoveses informam a
Dom Bosco que os honorários serão de mil liras por ano (um ótimo
estipêndio).
Os habitantes do seu povoado rogam-lhe que ocupe a vaga aber-
ta e seja o capelão de Morialdo. Garantem duplicar o salário usual.
O pároco de Castelnuovo, padre Cinzano, propõe-lhe que seja
seu vice-pároco. Ele também assegura-lhe boa mesada.
Estranho: todo o mundo lhe fala de dinheiro! Como se o sacerdó-
cio fosse o “ponto” ideal, finalmente alcançado, para ser desfrutado
economicamente! Só a mãe, Margarida, a mulher que sempre teve
de contar até os centavos para equilibrar o “orçamento”, só ela lhe
lembra:“Se algum dia você ficar rico, não porei os pés em sua casa”.
Para encurtar as coisas, Dom Bosco vai a Turim. Fala com o padre
Cafasso.
– Que devo fazer?
– Não aceite nada.Venha para o Convitto Ecclesiastico.
Aqui você completará a sua formação sacerdotal.
O padre Cafasso vê longe: compreendeu que uma família ou vila-
rejo seria muito pouco para dar vazão à “carga” humana e espiritual
de Dom Bosco.Turim, ao invés, é uma cidade capaz de dar-lhe vazão
total: bairros novos, tempos novos, problemas novos. O padre Cafas-
so deverá apenas ficar de olho e moderá-lo.
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12.10 Page 120

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A primeira descoberta: a miséria das periferias
O Convitto Ecclesiastico, isto é, o Colégio Eclesiástico (como
o chamaremos) é um ex-convento junto à igreja de São Francisco
de Assis. Nele o teólogo Luís Guala, ajudado pelo padre Cafasso,
prepara 45 jovens sacerdotes a se tornarem “padres do tempo e da
sociedade em que devem viver”.
A preparação dura dois anos (para Dom Bosco, excepcionalmen-
te, três). O dia dos jovens sacerdotes estrutura-se sobre duas confe-
rências: uma de manhã e outra de noite. A primeira, do padre Gua-
la, e a segunda, do padre Cafasso. No restante do dia, os sacerdotes
são mandados a exercer o ministério no ambiente da cidade: hospi-
tais, prisões, institutos de beneficência, mansões, casas populares e
mansardas, sermões nas igrejas, catecismo aos meninos, assistência
aos doentes e idosos.
A finalidade das conferências não é apresentar teorias teológicas,
mas estruturar as experiências cotidianas que os jovens sacerdotes
vivem no tecido humano da cidade.
Diríamos hoje que eram mandados fazer, ao vivo, uma análise
da situação social e eclesial, sendo depois convidados e guiados a
refletir sobre a própria ação pastoral. Dom Bosco resume tudo isso
em cinco palavras: “Aprendia-se a ser padre”.
Pequeno, franzino, desgracioso até, o padre Cafasso era de uma
atividade incansável: ensino, pregação, confessionário, prisões.
Desde 1841, o padre Cafasso será também o “diretor espiritual”
de Dom Bosco. Quer dizer: Dom Bosco se confessa com ele, pede-
-lhe conselho antes de qualquer decisão importante, manifesta-lhe
os próprios projetos de vida, e acata as suas decisões.
Até aí Dom Bosco conhece apenas a pobreza dos campos. Não
sabe ainda o que seja a miséria das periferias das cidades. O padre
Cafasso lhe diz:“Ande por aí e veja!”.
“Desde os primeiros domingos – testemunhará Miguel Rua – an-
dou pela cidade para ter uma ideia das condições morais dos jovens.”
Voltou aturdido: os subúrbios eram zonas de fermentação e re-
volta, cinturão de desolação. Adolescentes zanzavam pelas ruas de-
socupados e tristes, prontos para o pior.
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13 Pages 121-130

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13.1 Page 121

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“Encontrou grande número de jovens de todas as idades – con-
tinua o testemunho do padre Rua – que andavam vagueando pelas
ruas e pelas praças, especialmente nos arredores da cidade, jogando,
brigando, blasfemando e coisas piores.”
O mercado de braços jovens
Junto ao mercado geral da cidade,descobriu um verdadeiro“mer-
cado de braços jovens”.
Os arredores de Porta Palazzo – escreve o padre Lemoyne – fervilhavam
de mercadores ambulantes, vendedores de fósforos, engraxates,
limpa-chaminés, criados de cavalariça, passadores de folhetos, boys
de comerciantes no mercado. Todos meninos pobres que tentavam
sobreviver.
O próprio Dom Bosco nas Memórias recorda que os primeiros
grupos de rapazes de que se pode aproximar eram “canteiros, pe-
dreiros, estucadores, calceteiros, rebocadores e outros que vinham
de povoados distantes”.
Filhos de famílias necessitadas, frequentemente desempregadas,
topavam qualquer serviço para viver. Eram os primeiros “produtos”
da afluência de migrantes nos “cinturões negros”, que desde então
circundariam a cidade.
Via-os subir andaimes de pedreiros, procurar um empreguinho
nas lojas, apregoar pelas ruas o anúncio dos limpa-chaminés. Viu-os
pelas esquinas jogando a dinheiro, com o rosto duro e decidido de
quem está disposto a tentar tudo para vencer na vida.
Se tentava chegar perto, afastavam-se desconfiados e cheios de
desprezo. Não eram os meninos dos Becchi. Não buscavam histó-
rias ou jogos de prestidigitação. Eram os “lobos”, os animais selva-
gens dos seus sonhos, embora no fundo daqueles olhos se lessem
mais medo que ferocidade.
A Revolução Industrial
Esses rapazes pelas ruas de Turim são o “efeito perverso” de um
acontecimento que já começara a sacudir o mundo: a “Revolução
Industrial”.
120

13.2 Page 122

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Em 1789, em Glasgow, na Inglaterra, o senhor James Watt pa-
tenteava a “máquina a vapor”, um instrumento que, aproveitando
a energia desenvolvida pelo calor, fazia com que se movessem ala-
vancas e correias de transmissão. Uma única máquina de Watt (po-
tência de 100 cavalos-vapor) desenvolvia uma força comparável à
de 880 homens. Empregando-a, uma fiação podia produzir tanto
fio quanto teriam produzido 200 mil homens. Para cuidar dessas
máquinas capazes de tanto trabalho, bastavam 750 trabalhadores,
reunidos debaixo de alguns enormes galpões.
Começaram assim a existir a fábrica e os operários (chamados
também proletários). Antes o pessoal trabalhava de agricultor, de
comerciante, de artesão. Entre os artesãos (gente que utilizava ins-
trumentos de sua propriedade em suas próprias oficinas), havia os
fiandeiros que manufaturavam o algodão e a lã, usando a força dos
seus braços.
Com a produção facilitada das fábricas, baixa de repente o preço
dos tecidos e desenvolve-se enormemente a sua comercialização.
Verifica-se, ao mesmo tempo, um aumento acentuado na utilização
do ferro (na produção de máquinas, teares, ferrovias) e na extração
das minas de carvão fóssil (o qual permite a propulsão das máqui-
nas a vapor e a produção do ferro).
Contemporânea é também a construção, em larga escala, de fer-
rovias, barcos a vapor e outros meios de transporte.
Nesses mesmos anos, com a progressiva vitória da medicina e
da higiene sobre as epidemias mais mortíferas (peste, varíola...), a
população da Europa tem um crescimento impressionante: de 180
milhões, em 1800, passa para 260 milhões, em 1850.
A expansão prepotente das fábricas (isto é, da indústria) põe em
crise os artesãos. Uma avalanche de gente à cata de trabalho desliza
do campo à cidade.As fábricas adquirem uma fisionomia caracterís-
tica: a de centros onde um grande número de trabalhadores cum-
prem a mesma atividade sob a dependência de um único patrão.
Surgem na Inglaterra as cidades do carvão, as cidades do ferro, as
cidades das indústrias têxteis. É a Revolução Industrial. Nascida na
Inglaterra, passa rapidamente para a França, a Alemanha, a Bélgica,
os Estados Unidos.
121

13.3 Page 123

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Segundo o historiador econômico italiano Carlos Maria Cipolla,1
trata-se de uma das duas maiores e mais radicais transformações
verificadas na história da humanidade.
Verificou-se a primeira na noite dos tempos. Os homens eram
um “conjunto desagregado de bandos de caçadores pequenos, bru-
tais e malvados”. Com a “revolução neolítica”, transformam-se em
cultivadores de plantas e criadores de animais. “Entre o caçador
paleolítico e o agricultor neolítico medeia um abismo. A diferença
é a mesma que existe entre o estado selvagem e o da civilização.”
Esta primeira mudança radical da história humana verificou-se no
decurso de milhares de anos: os homens tiveram tempo para uma
adaptação gradual.
A segunda grande revolução, porém, a industrial, “invadiu o glo-
bo, abalou a vida e subverteu as estruturas de todas as sociedades
humanas existentes no espaço de sete ou oito gerações” (entre 150
e 200 anos). Por isso, novos e vastíssimos problemas depararam-se
à mente humana “com uma urgência alucinante”.
O enorme progresso presenteado ao mundo
A Revolução Industrial abriu as portas de um mundo completa-
mente novo, de novas e desconhecidas fontes de energia: carvão,
petróleo, dinamite, eletricidade, átomo. “A descoberta de Watt, foi
seguida de toda uma série de invenções análogas”, que permitiram
o aproveitamento das novas energias para a produção e também
para a destruição.
Os resultados industriais foram tão enormes e impensáveis que
se pode afirmar: em 1850, o passado não só passara, estava morto.
A humanidade desenvolveu-se de maneira explosiva: 750 mi-
lhões de pessoas, em 1750; 1 bilhão e 200 milhões, em 1850; 2
bilhões e meio, em 1950.6
Nunca se havia atingido antes o bem-estar que a Revolução In-
dustrial difundiu. “Num país pré-industrial, metade da receita era
absorvida pela alimentação. Nas frequentes carestias, toda a renda
1 Cf. História das ideias políticas, econômicas, sociais. Volume V. Turim: UTET.
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13.4 Page 124

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não bastava para a sobrevivência. Num país industrializado, a fome
desapareceu. O alimento absorve apenas um quarto da receita.”
Verificam-se mudanças drásticas: nos costumes, nas ideias, nas
crenças, na instrução, na família. Formidáveis problemas foram pos-
tos às novas gerações. Recordemos apenas o crescimento incon-
trolado da população, as armas cada vez mais terríveis, o desman-
telamento do Estado tradicional, a poluição, a marginalização dos
idosos.
Não obstante os enormes problemas abertos, a humanidade,
com a Revolução Industrial, “venceu a natureza em larga escala,
superou as distâncias, quebrou muitos daqueles vínculos materiais
que, por milênios, a haviam condicionado” (Tiago Martina).
O pavoroso custo humano
O imenso progresso porém, teve, especialmente nos primeiros
cem anos, um terrível custo humano. “Uma exígua minoria de su-
per-ricos impôs verdadeira escravidão a uma multidão infinita de
proletários” (Leão XIII, Rerum Novarum).
Na nova época da humanidade, existe um enorme “buraco ne-
gro”: a questão operária. Nas cidades industriais forma-se uma nova
classe, a dos proletários, que outra riqueza não possui a não ser a
dos próprios braços e dos próprios filhos. As condições dos prole-
tários são assustadoras.
Já em 1850 (citamos pesquisas feitas por Dolléans e Villermé),
metade da população inglesa se acotovela nos centros urbanos. As
“casas” dos operários são, o mais das vezes, cantinas onde se amon-
toa toda a família, sem ar, sem luz, fétidas pela umidade e infiltrações.
Nas fábricas, nenhuma medida higiênica, nenhum regulamento ex-
ceto o imposto pelo patrão.
A alimentação que o salário de fome permite é absolutamente
insuficiente. Alimento usual são as urtigas aferventadas. A desagre-
gação da família, a difusão do alcoolismo, da prostituição, da crimi-
nalidade, a difusão de novas enfermidades, provindas de técnicas
especiais de trabalho ou das condições em que se realizam (tuber-
culose, silicose...), tornam-se fenômenos de massa.
123

13.5 Page 125

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Às fábricas não só vão os homens e as mulheres. Também as
crianças! Sua vida se transforma num tormento: o desconforto (fi-
cam de pé o trabalho todo; sentar-se é proibido), o sono, o cansaço
provocam frequentes acidentes de trabalho. Por outro lado, a vida
desses pequenos infelizes é muito curta.
Nos bairros populares de Londres – escreve Margarida Laski –, arrebanhavam-
se crianças, às centenas. Levadas à estação, eram amontoadas em vagões
e despachadas a trabalhar nas fiações de Lancashire. Muitas mal se tinham
de pé. O trabalho durava 12 e mais horas por dia. O trabalho de tecer era
feito pelas máquinas. E, para cuidar de uma máquina, não se requeria um
homem, bastava uma criança. Na solidão escura das fábricas, caíam de sono
e cansaço. O dia de trabalho prolongava-se do amanhecer ao pôr do sol,
com uma única refeição ao meio-dia. As doenças dizimavam os pequenos
trabalhadores.
Pelos anos de 1850, o proletariado francês, belga e alemão se
encontra nas mesmas condições do proletariado inglês. É com difi-
culdade que uma família de proletários sobrevive. Nada sobra para
gastar com médico, remédio, roupa. Uma estatística revela que, em
Nantes (França), de 100 crianças, 66 morrem antes dos 5 anos. En-
tre 1830-40, a duração média da vida de um operário é de 17-19
anos. São esses (como dissemos) os anos em que os operários de
Lião e Paris se insurgem aos brados de “Viver trabalhando ou mor-
rer combatendo”, e são dispersos com tiros de canhão.
Matança de inocentes também na Itália
Por falta de capital e matéria-prima, a Revolução Industrial chega
à Itália com atraso. Os primeiros estabelecimentos têxteis tornam-
-se “fábricas” no Lombardo-Vêneto austríaco (lanifício Rossi, em
Schio, no ano de 1817; Marzotto, em Valdagno, no ano de 1836).
A indústria mecânica começa em Milão, em 1846. O crescimento
industrial é lento e penoso.
Sobre a vida nas fábricas têxteis da Lombardia, Rodolfo Morando
escreve:
Nas fiações de seda – grandes fábricas que ocupam de 100 a 200 pessoas
–, verifica-se o máximo emprego de meninos. As tarefas confiadas eram
de tal sorte maquinais que, em pouco tempo, aqueles pobres seres se
124

13.6 Page 126

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tornavam puros imbecis. O trabalho durava 13 horas no inverno, e 15 a
16 no verão. Nas fiações movidas a água por vezes não parava e os meni-
nos mantinham-se ali trabalhando a noite inteira. Os ambientes úmidos
e insalubres, o acordar muito cedo, a longa permanência em posições
desconfortáveis, tudo provocava, com a maior frequência (como referia
o médico da região), endurecimentos glandulares, escrófula, raquitismo e
tumores frios. Mais de 15 mil menores, na Lombardia, consumiam deste
modo, a flor da sua vida.
Em Turim, no ano de 1841, a Revolução Industrial está chegando
apenas indiretamente: o imposto do trigo e da seda foi diminuído
de modo sensível e impeliu os patrões a um melhor cultivo para
enfrentarem a baixa nos preços. Em 1839, Carlos Alberto aprovou
a construção da estrada de ferro Turim-Gênova e retomou o exame
do projeto do “canal com eclusas” entre Gênova e o rio Pó. Em
1841, Medail apresenta o seu projeto para a abertura do túnel ferro-
viário de Fréjus. No ano seguinte, constitui-se a Associação Agrária,
e o rei põe à disposição a sua quinta de Pollenzo para a experiência
de novas e melhores culturas.
A cidade se desenvolve rapidamente. Na década de 1838-48, a
população passa de 117 a 137 mil habitantes, com um aumento de
17%. O setor das construções desenvolve-se vigorosamente. Nesses
dez anos se fizeram 700 novas casas, onde se aninharam 7 mil novas
famílias. Constante é o ritmo de imigração, que atingirá o seu ponto
máximo em 1849-50, quando se falará de 50 mil ou mesmo de 100
mil imigrantes.
Famílias pobres, ou jovens solitários, chegam de Valsésia, dos
vales de Lanzo, do Monferrato, da Lombardia. Nos canteiros de
construções, Dom Bosco vê “meninos de 8 a 12 anos, longe da
própria terra, como serventes de pedreiro, passando o dia subindo
e descendo andaimes inseguros, ao sol, ao vento, galgando íngre-
mes escadas de madeira carregados de cal, tijolos, sem outro auxílio
educativo que as grosseiras repreensões. Ou pancadas”.
Quando anoitece, as famílias operárias “sobem aos sótãos”, são
as únicas moradias com aluguéis suportáveis para os estipêndios
dos operários. Dom Bosco sobe até eles, e vê que são “baixos, es-
treitos, feios e sujos. Servem de dormitório, cozinha e, às vezes, de
local de trabalho para famílias inteiras”.
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13.7 Page 127

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Conclusões
Grupos de rapazes vagueiam, sobretudo aos domingos, pelas es-
tradas e ao longo das margens do Pó. Contemplam as pessoas que
passeiam “alegres e perfumadas”, indiferentes à sua miséria.
Dom Bosco chega rápido às conclusões: esses rapazes precisam
de escola e de trabalho que lhes abram um porvir mais seguro. Têm
necessidade de serem rapazes, isto é, de poder libertar seu desejo
de correr, de pular em campos verdes, em vez de murchar pelas
ruas. Precisam encontrar-se com Deus, para descobrir e realizar a
sua própria dignidade. Não é o primeiro nem o único a chegar a se-
melhantes conclusões. O mesmo rei, Carlos Alberto, vê a urgência
de ajudar as massas populares.
O que mais preocupa o rei, porém, é a “outra revolução”, a po-
lítica, que já está no ar e explodirá com fragor em 1847-48, e que,
na Itália, chamar-se-á “Risorgimento”. Debate-se entre as ideias dos
absolutistas (que ele jurou a Carlos Félix defender até a morte) e as
dos liberais (que o pressionam, cada vez mais, em prol da Constitui-
ção e da unificação italiana).
Com um olho na Áustria (inimiga de qualquer concessão aos
liberais), desliza cautelosamente das posições absolutistas para as
correntes mais moderadas dos liberais. Trava relações com Máximo
D’Azeglio, César Balbo, Tiago Durando. Esse longo caminho o leva-
rá a tornar-se o protagonista do primeiro Risorgimento.
Mas o rei está igualmente preocupado com as condições sociais
do seu Reino, e apoia toda a iniciativa de beneficência e de instru-
ção popular. Clero e políticos também estão divididos entre ten-
dências favoráveis ou contrárias às ideias liberais. Encontram-se,
porém, lado a lado, no mesmo campo de batalha contra a miséria
material e moral do povo.
Nesses anos Turim vê surgir um verdadeiro leque de escolas po-
pulares para trabalhadores. No ano letivo 1840-41, as escolas mas-
culinas da Obra da Mendicidade são 10, com 927 alunos; as femini-
nas, 9, com 519 alunas. Em 1845, serão abertas para trabalhadores
2 escolas de mecânica e de química aplicada. Em 1846,“às 8 escolas
noturnas dos Irmãos das Escolas Cristãs se apresentam 700 operá-
rios”, escreve Carlos Inácio Júlio.
Dom Bosco, ao invés, está se concentrando no problema dos
jovens. O padre Cafasso percebe e decide provocá-lo até o fim.
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13.8 Page 128

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Região de Valdocco, do bairro do Dora
e de parte da cidade de Turim, em 1846
127

13.9 Page 129

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16
“Chamo-me Bartolomeu Garelli”
Os turineses chamam padre Cafasso “o padre da forca”. Porque
desce às prisões para consolar os detentos e, quando alguém é
condenado à morte, sobe à carreta com ele e o conforta até o
local da execução.
As prisões de Turim nesse tempo são quatro. Situam-se nas tor-
res da Porta Palazzo, na rua São Domingos, perto da igreja dos San-
tíssimos Mártires, nos subterrâneos do Senado.
Um dia, ao sair para uma dessas visitas costumeiras, padre Cafas-
so convida Dom Bosco a acompanhá-lo.
Os corredores escuros, as paredes negras e úmidas, o aspecto
triste, esquálido dos detentos perturbam profundamente o neossa-
cerdote. Sente repugnância. Também a sensação de sufoco.
O que, porém lhe causa uma dor muito viva é a vista de tantos ra-
pazes atrás das grades. Escreve: “Ver um grande número de jovens,
dos 12 aos 18 anos, todos sãos, robustos, de espírito vivaz, mas sem
nada fazer, picados de insetos, à míngua de pão espiritual e tempo-
ral, foi algo que me encheu de horror”.
Voltou outras vezes. Com o padre Cafasso e também só. Cuidou
de falar com eles não só na “aula de catecismo” (vigiada pelos guar-
das) mas também em particular. As reações, inicialmente, foram
ásperas. Teve de engolir insultos pesados. Um que outro, porém,
aos poucos mostrou-se menos arredio, conseguindo falar de amigo
para amigo.
Logrou, assim, conhecer suas tristes histórias, suas humilhações,
suas raivas, que às vezes os tornavam ferozes. O “delito” mais co-
mum era o de roubo: por fome, por desejo de ter mais alguma coisa
além da magra alimentação, e também por inveja de ricos, que lhes
desfrutavam o trabalho, mas os deixavam na miséria.
Por eles a sociedade nada soubera fazer. E os trancafiava lá dentro.
Pão preto e água era a comida que recebiam. Deviam obedecer
aos carcereiros, que os temiam, e, por isso, batiam neles ao mínimo
pretexto.
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13.10 Page 130

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Alojados em salões coletivos, os piores se tornavam mestres de
vida.
Escreve Dom Bosco:“O que mais me impressionava era que mui-
tos ao sair de lá estavam decididos a levar uma vida melhor, diferen-
te”. Talvez só por medo da prisão. “Mas, depois de pouco tempo,
acabavam voltando.”
Tratou de descobrir a causa e concluiu: “Estão abandonados a
si próprios”. Não tinham família ou eram rejeitados pelos parentes
porque a cadeia “os havia desonrado para sempre”.
“Eu pensava comigo mesmo: esses rapazes precisam ter lá fora
um amigo que cuide deles, os assista, instrua, leve à igreja nos dias
santos. Então, não voltariam à prisão.”
Aos poucos, vai fazendo algum amigo. Suas “aulas de catecismo
atrás das grades” vão sendo ouvidas com mais boa vontade. “À me-
dida que lhes fazia ver a dignidade do homem – escreve –, sentiam
um grande prazer. E resolviam tornar-se melhores.”
Frequentemente, porém, quando volta, acha tudo destruído. Os
rostos tornaram a fechar-se. Vozes sarcásticas sibilam blasfêmias.
Nem sempre Dom Bosco consegue vencer a própria humilhação.
Um dia desata a chorar. Há um momento de dúvida.
– Por que é que chora aquele padre? – pergunta alguém.
– Porque nos quer bem. Até minha mãe choraria se me visse
neste lugar.
Os párocos esperam
Saindo, Dom Bosco tomou uma decisão inabalável:“É preciso im-
pedir a todo custo que rapazes tão jovens acabem nas prisões. Que-
ro ser o salvador dessa juventude”.
“Contei essa ideia ao padre Cafasso – escreve – e com seu conse-
lho pensei no modo de levá-la a cabo.”
Outros padres, em Turim, estão buscando soluções para os pro-
blemas desses jovens, por caminhos diferentes.
As paróquias são 16: 14 na cidade e 2 nos subúrbios. Os párocos
sentem o problema dos jovens, mas ficam a esperá-los nas sacristias e
nas igrejas para o catecismo da tarde, dominical e quaresmal.
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14 Pages 131-140

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14.1 Page 131

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Lamentam com saudade os “belos tempos” em que os jovens imi-
grantes vinham chegando acompanhados de uma carta do pároco
de origem ao colega na cidade. Não percebem que, sob a onda do
crescimento populacional, aqueles esquemas de comportamento
estão superados, que aqueles “belos tempos” não mais voltarão.
É preciso inventar novos esquemas, tentar caminhos diferentes.
Os vice-párocos, que continuam a ocupar-se de funerais e batiza-
dos, deveriam testar um apostolado volante através das lojas, fábri-
cas, mercados.
Em Milão, onde a Revolução Industrial se faz sentir há muito tem-
po, o problema dos menores abandonados já foi enfrentado. Já se
pode ver uma rede de instituições adequadas aos tempos: os “orató-
rios”. Em 1850, o anuário diocesano de Milão apresentará uma lista
de 15 oratórios, alguns com decênios de experiência acumulada.
Em Bréscia, o padre Ludovico Pavoni havia começado o seu orató-
rio para menores “pobres, rudes, desprezados” nada menos que em
1809.
Em Turim, ao invés, o problema continua um problema. Os páro-
cos hesitam. E mesmo em 1846, depois que padres turineses foram
observar as obras juvenis de Milão, hão de concluir:
Os párocos desta cidade Turim, reunidos em suas conferências, estudaram
a conveniência dos oratórios. Ponderados os temores e as esperanças,
não podendo cada qual criar um oratório em sua respectiva paróquia,
encorajam o sacerdote João Bosco a continuar (o seu oratório) até que
não se tome outra deliberação.
Enquanto os párocos hesitam, os padres jovens agem.
A experiência do padre Cocchi
O primeiro é o padre João Cocchi, um ágil sacerdote provincia-
no, de Druent. Ordenara-se padre em 1836, quando Dom Bosco esta-
va ainda terminando o primeiro ano de filosofia, no seminário.
Em Moschino, lugar misérrimo e mal-afamado no bairro de Van-
chiglia, funda em 1841 o primeiro oratório de Turim (fizera já uma
tentativa em 1840) e o coloca sob a proteção do Anjo da Guarda. Fi-
cava nos limites da paróquia da Anunciação, para os lados do rio Pó.
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14.2 Page 132

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Cocchi é um padre genial e sensível. Tem as ideias brilhantes e
as decisões improvisas do iniciador; nem sempre, porém, a cons-
tância e o horizonte vasto do realizador. Liberal nas ideias, assume
atitudes que atritam com a linha política do seu arcebispo e do
papa. Isso o torna “suspeito”, não obstante sua caridade operosa
que sacode a inércia de muitos eclesiásticos.
Em 1849-50, estará entre os animadores da Sociedade de Carida-
de Em Favor dos Jovens Pobres e Abandonados, mais tarde do Co-
légio dos Pequenos Artesãos, do oratório São Martinho, da Colônia
Agrícola de Moncucco, sempre em favor dos jovens e das classes
desamparadas.
Outros sacerdotes, à maneira do padre Cocchi, estão se lançan-
do ao trabalho pastoral entre os rapazes. São padres “liberados” de
empenhos paroquiais. Muitos estiveram ou estão no Colégio Eclesi-
ástico, irmanados pelas experiências vivas que juntos estão enfren-
tando.
O mesmo padre Cafasso – relembra Dom Bosco –, todos os domingos, no
tempo de férias, dava, havia anos, catecismo aos serventes de pedreiro,
numa saleta contígua à sacristia da Igreja de São Francisco de Assis. O peso,
porém, das ocupações forçaram-no a interromper um trabalho que lhe era
tão caro.
Dom Bosco também – como dissemos –, logo após seu ingresso
no Colégio Eclesiástico, se pôs pelas ruas. Encontrou desconfianças
e hostilidades, mas também jovens que se lhe afeiçoaram.“Conquis-
tei assim um grupo de meninos que me seguiam pelas ruas, pelas
praças.Até na sacristia da igreja do Colégio.”
Queria o padre Cafasso confiar-lhe a continuação do seu catecis-
mo aos pequenos serventes de pedreiro, mas, após, a experiência
traumatizante das prisões, Dom Bosco está pensando em algo mais
concreto.
Ele quer – como disse ao padre Cafasso – criar um centro em que
os menores abandonados pela família encontrem um amigo, em que
os jovens ex-presidiários saibam que vão achar uma ajuda e amparo.
Um centro não ligado a uma paróquia, mas à sua pessoa, que não
só funcione aos domingos para o catecismo, mas que se prolongue
pela semana afora, mediante a amizade, a assistência, os encontros
nos mesmos locais de trabalho.
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14.3 Page 133

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Para começar, uma Ave-Maria
O tímido início dessa realização (que já contém em si quase toda
a originalidade do oratório de Dom Bosco) acontece na manhã de
8 de dezembro de 1841, no mesmo ano em que o padre Cocchi
fundou em Turim o primeiro oratório e 35 dias depois do ingresso
de Dom Bosco no Colégio Eclesiástico.
É ele e mesmo quem descreve a cena, com a elegância e a simpli-
cidade de uma página antiga:
Era o dia solene da Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Estava eu a
revestir-me dos sagrados paramentos para celebrar a santa Missa, quando
o sacristão José Comotti, vendo um rapazinho a um canto, convidou-o a
servir-me de coroinha.
– Não sei – respondeu mortificado.
– Venha – insistiu o outro. – Quero que ajude à Missa.
– Não sei – repetiu o menino. – Nunca ajudei.
– Oh, seu bobalhão! – explode o sacristão enfurecido. – Se não sabe, por
que é que vem à sacristia? – E dizendo isso, tomou do cabo do espanador e
o foi descendo pelas costas e pela cabeça do pobre coitadinho.
Enquanto o rapaz fugia, gritei ao sacristão:
– Que está fazendo? Por que bater nesse coitado?
– O senhor fez muito mal.
– E o que lhe importa isso?
– Importa-me muito. É meu amigo. Vá chamá-lo e já. Preciso falar com ele.
O rapaz voltou mortificado. Cabelos raspados, paletó salpicado
de cal: um jovem migrante. Os seus, quem sabe, lhe haviam dito:
“Uma vez em Turim, vá à Missa”. E ele fora. Mas não tivera coragem
de entrar na igreja, para o meio de gente na estica. Achou de entrar
na sacristia. Como faziam, aliás, tantos homens e moços em muitas
aldeias do interior.
Perguntei-lhe com muito carinho:
– Você já assistiu Missa?
– Não.
– Então, vamos assistir? Depois quero falar-lhe de um assunto de que vai
gostar muito.
Prometeu. Acabada a Missa e feita a ação de graças, levei-o até um coreto
e com o rosto alegre lhe disse:
132

14.4 Page 134

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– Meu caro amigo, como se chama?
– Bartolomeu Garelli.
– E de onde é?
– De Asti.
– De que trabalha?
– De pedreiro.
– Seu pai ainda vive?
– Não. Já morreu.
– E a sua mãe?
– Também já morreu...
– Quantos anos tem?
– 16.
– Sabe ler e escrever?
– Não.
– Sabe cantar?
Enxugando os olhos, fixou-me quase admirado e respondeu:
– Não.
– Sabe assobiar?
Bartolomeu esboçou um sorriso... Era o que eu queria: começávamos a
ser amigos.
– Já fez a primeira Comunhão?
– Ainda não.
– Já se confessou?
– Quando era pequeno.
– E vai ao catecismo?
– Não tenho coragem. Os pequenos ficam gozando de mim.
– E se eu desse catecismo só pra você, aceitaria?
– Com muito prazer.
– Aqui mesmo, neste lugar?
– Contando que não me batam.
– Fique tranquilo: você é meu amigo e ninguém vai bater. E quando
podemos começar?
– Quando o senhor quiser.
– Podia ser ?
– Com prazer.
133

14.5 Page 135

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Dom Bosco se ajoelha e reza uma Ave-Maria. Quarenta e cinco
anos depois, dirá aos seus salesianos:“Todas as bênçãos chovidas do
céu são fruto daquela primeira Ave-Maria rezada com fervor e com
reta intenção”.
Terminada a Ave-Maria, Dom Bosco faz o sinal da cruz “para co-
meçar”, mas percebe que Bartolomeu não o faz. Ou melhor, esboça
um gesto que apenas de longe se parece com um sinal da cruz.
Então, com bondade, Dom Bosco ensina a fazê-lo bem feito. Em se-
guida, falando em dialeto (os dois são de Asti), lhe explica por que
chamamos a Deus de “Pai”.
Por último disse:
– Bartolomeu, gostaria que voltasse também no domingo que
vem.
– De boa vontade.
– Mas não sozinho. Traga também os seus amigos, tá?
Garelli, o pequeno pedreiro de Asti, foi o primeiro embaixador
de Dom Bosco junto aos jovens trabalhadores do seu bairro. Con-
tou a eles o encontro que tivera com o padre simpático “que sabia
assobiar”. E transmitiu-lhes o convite.
Quatro dias depois já era domingo. Naquela sacristia entraram 9.
Não vinham à “igreja de São Francisco de Assis”. “Procuravam por
Dom Bosco”. Nascera o oratório.
“Já”, palavra que é uma senha
No diálogo com Garelli há uma palavra: “já”. Parece palavra como
outra qualquer. É, ao contrário, um como grãozinho que, uma vez
semeado, lhe dá uma árvore.
Nesse momento (1841), em Turim, esse “já” é uma palavra de
ordem para todo um grupo de padres turineses. Na incerteza da
primeira Revolução Industrial, na impossibilidade de ter planos e
programas de ação já bem prontinhos, esses padres arriscam to-
das as suas energias em fazer “já” alguma coisa pelos jovens pobres,
pelo povo na miséria.
Mas esse “já” ficará sendo de modo particular a senha de Dom
Bosco e, depois, dos seus salesianos, que buscarão ser os homens da
“pronta intervenção” entre os jovens pobres.
134

14.6 Page 136

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Voltaremos nas páginas seguintes a dizer alguma coisa sobre
Dom Bosco e a questão social. Está-nos a peito, porém, fazer notar
desde já como Dom Bosco “foi sugado para dentro da ação” pela
urgência, pela impossibilidade de esperar.
“Fazer alguma coisa”, porque os jovens pobres não podem
dar-se ao luxo de esperar pelas reformas, pelos planos orgânicos,
pelas revoluções do sistema. Por certo que o “já” não basta:“Se en-
contrar alguém morrendo de fome, em vez de dar-lhe um peixe, en-
sine-lhe a pescar”, dir-se-á com razão. Mas o contrário também está
certo: “Se encontrar alguém que morre de fome, dê-lhe um peixe,
para que possa ter tempo de aprender a pescar”. Não basta o “já”, a
intervenção imediata. Como também não basta “preparar um futuro
diferente”, porque enquanto isso, os pobres morrem de miséria.
Dom Bosco e seus primeiros salesianos ficarão magnetizados
pelo “já”, pela pronta intervenção. Darão aos jovens pobres catecis-
mo, pão, instrução profissional, emprego protegido por um bom
contrato de trabalho. E aguardarão que outros católicos, em con-
corrência com socialistas, comunistas, anarquistas, preparem pla-
nos para agredir e transformar o Estado liberal, Estado esse que,
hipocritamente, “se abstém” dos conflitos de trabalho, isto é, permi-
te que os poderosos se tornem prepotentes e que os fracos sucum-
bam esmagados.
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14.7 Page 137

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17
O Oratório dos pequenos pedreiros
No púlpito da igreja de São Francisco de Assis um padre bem
moço prega com empenho. Sentados nos degraus da balaustra-
da de um altar lateral, alguns rapazes, serventes de pedreiro,
cochilam, um apoiado no ombro do outro.
Dom Bosco, que anda pela igreja, toca de leve no ombro do pri-
meiro. Todos acordam sem jeito... Sorri e pergunta baixinho:
– Por que estão dormindo?
– A gente não entende nada – murmura o maior.
– Acho que esse padre não está falando pra gente – acrescenta
o vizinho.
– Venham comigo.
E na ponta dos pés, os leva à sacristia. “eram Carlos Buzzetti, João
Gariboldi, Germano”, lembra Dom Bosco, comovido, aos seus pri-
meiros salesianos. Pequenos pedreiros lombardos que, por trinta,
quarenta anos, ficariam ao seu lado, e que todos em Valdocco co-
nheciam. “Então eram simples ajudantes de pedreiro. Agora, mes-
tres de obras” (Memórias).
À sacristia chega também o Bartolomeu com seus amigos. O nú-
mero aumenta. Dom Bosco os ajuda a rezar, faz um sermãozinho só
para eles, bem vivo, dialogado, cheio de fatos e de notícias interes-
santes. Depois, voltam aos bancos da igreja e assistem à Missa de
Dom Bosco.
Mas a manhã é longa: depois da Missa e do pãozinho, os rapazes
têm vontade de brincar. Dão as primeiras corridas ali mesmo, no pá-
tio do Colégio Eclesiástico, disfarçadamente. Se passa algum padre,
param.
Mas o padre Guala e o padre Cafasso compreendem. Concedem
uma licença formal para que os garotos de Dom Bosco brinquem
“no pátio contíguo” todos os domingos. Tal autorização jamais foi
retirada, em três anos, embora, quando a dessem, os meninos fos-
sem 15, depois de três meses, 25 e, no verão, 80.
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14.8 Page 138

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Isso significava renunciar, todos os domingos, ao sossego e ao co-
chilo pós-meridiano; 80 moleques debaixo das janelas pode ser um
concerto, da primeira vez, mas, pela décima, é dose para enervar
quem quer que seja.
Santinhos, mas também pãezinhos
Dom Bosco compreende que também não se pode abusar. De
tarde, quando o tempo permite, leva os rapazes a passeio, nas coli-
nas, ao longo dos rios, aos santuários de Nossa Senhora.
Propõe-se, naquele primeiro inverno, reunir somente os rapa-
zes “em maior perigo, de preferência os egressos das prisões”. Mas
Dom Bosco, em sua vida, jamais será capaz de afastar um menino
que lhe peça para ficar com ele. E em pouquíssimo tempo a maioria
de sua “tropa” será formada por pedreiros, canteiros, estocadores,
calceteiros que vinham de povoados distantes, que por várias ra-
zões, na estação morta (dezembro-março) não puderam voltar para
casa.
Padre Guala e Padre Cafasso – que estimulam os seus jovens sa-
cerdotes a fazerem experiências semelhantes às de Dom Bosco (o
padre Carpano e o padre Ponte, seis anos mais jovens que Dom
Bosco, começarão logo a reunir os jovens limpa-chaminés do Vale
d’Aosta) – prontificam-se para confessar os meninos, tagarelar com
eles, até ajudá-los.
Dom Bosco escreve um tanto inibido: “Davam-me, de bom grado,
santinhos, folhetos, livrinhos, medalhas, crucifixos para presente”.
Mais que de folhetos e medalhas, porém, seus pequenos pedreiros
e os egressos das prisões tinham necessidades mais urgentes. Infor-
mados disso, “proporcionaram-me recursos para vestir alguns dos
mais necessitados e dar pão a outros por várias semanas, até que
pudessem com o trabalho ganhar o próprio sustento”.
Buscar trabalho, para quem não tem, conseguir melhores condi-
ções para quem já está empregado, torna-se uma ocupação fixa para
Dom Bosco durante a semana.
Ia visitá-los em meio a seus trabalhos, nas oficinas e fábricas. Isso os deixava
muito felizes porque viam um amigo interessar-se por eles; e agradava
também aos patrões, que tomavam de boa mente sob sua dependência
rapazes assistidos durante a semana e nos dias festivos.
137

14.9 Page 139

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O problema mais delicado eram os egressos da prisão. Empenha-
va-se em “colocá-los, um por um, a trabalhar com algum honesto
patrão”, ia “visitá-los durante a semana”. Os resultados eram bons:
“Davam-se a uma vida honesta, esqueciam o passado, tornavam-se
bons cristãos e honestos cidadãos (Memórias).
Todo sábado, Dom Bosco ia até às prisões para continuar o seu
apostolado mais difícil:
Chegava lá com os bolsos cheios, ora de fumo, ora de frutas, ora de pães,
sempre com o fim de fazer o bem àqueles rapazes que, por infelicidade,
haviam acabado lá dentro, torná-los amigos e desejosos de virem ao
Oratório quando deixassem aquele lugar de castigo.
Doze compassos musicais
2 de fevereiro de 1842. Festa da Purificação de Maria (então dia
santo de guarda). Aos seus 25 rapazes, Dom Bosco ensinou a can-
tar. “Sem música – escreve –, os nossos encontros festivos seriam
um corpo sem alma.” E eles cantam a todo pulmão pelos atalhos das
colinas. Mas aprenderam também a cantar com delicadeza uma loa
muito simples a Nossa Senhora: Louvemos Maria.
Na festa da Purificação, durante a Missa, o povo, contempla ma-
ravilhado, aqueles 25 cativantes “moleques” que cantam tão bem.
A brevíssima loa mariana (12 modestos compassos musicais) pas-
sará de oratório em oratório, de escola em escola salesiana, por um
século e meio, para todas as partes do mundo.
Faz-nos sorrir o só pensar que aquele primeiro, modestíssimo
sucesso musical de Dom Bosco é quase contemporâneo (apenas 33
dias de diferença) de outro bem mais consistente êxito musical: a 9
de março, no teatro Scala, de Milão, o jovem maestro Verdi leva à
cena Nabucco, com o coro Va’ Pensiero que se espalhará por toda
a Europa.
O rapazinho de Caronno
Primavera. Os pedreirinhos, que durante o inverno haviam volta-
do às suas aldeias, agora retornam à cidade. A “tropa” de Dom Bosco
aumenta de domingo para domingo. De Caronno Ghiringhello (hoje
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14.10 Page 140

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Caronno Varesino), vilarejo da província de Milão, veio também José
Buzzetti, irmãozinho menor de Carlos. Tem só 10 anos. Afeiçoa-se a
Dom Bosco como um cachorrinho. Nunca mais o deixará.
Da primavera de 1842 até o alvorecer de 31 de janeiro de 1888,
data da morte de Dom Bosco, José Buzzetti estará sempre ao seu
lado, testemunha calma e tranquila de toda a façanha humana e di-
vina do padre “que lhe quer bem”. Muitos acontecimentos da vida
de Dom Bosco já seriam classificados como “lendas”, em nosso tem-
po desconfiado e demitizador, não tivessem sido vistos pelos olhos
simples do pedreirinho de Caronno, que estava sempre ali, a dois
passos do “seu” Dom Bosco.
“Se tivesse apenas um pedaço de pão”
O que amarra os meninos a Dom Bosco é a sua bondade, cordial,
profunda. Os rapazes “percebem” essa bondade e a veem em atos
concretos,em gestos tocantes.Todos os momentos do dia,Dom Bos-
co os põe à sua disposição.
Se precisam aprender a ler, a fazer as quatro operações, Dom
Bosco encontra as horas ou as pessoas adaptadas para lhes dar aula.
Se o patrão é ruim, ou estão desempregados, interessa-se, avisa
os amigos para arranjar um emprego, um patrão honesto e cristão.
Se a necessidade urgente é dinheiro, sabem que Dom Bosco está
disposto a esvaziar a carteira em suas mãos.
Se o dia está difícil, duro, lhe dizem:“Venha falar comigo”. E ele
vai. Entra na oficina, nos canteiros de obras.Vê-lo, falar-lhe é um re-
conforto.
Uma das frases que muitos ouvem dizer (um tesouro que guar-
dam para sempre) é:“Eu lhe quero tanto bem que, se um dia tivesse
apenas um pedaço de pão, eu lhe daria a metade”.
Se, está obrigado a chamar a atenção de alguém, ele o faz. Mas
não na presença de outros, para não humilhá-lo.
Se, promete alguma coisa, está pronto a passar pelo fogo para
manter a promessa.
Nesses anos, são muitos os sacerdotes dedicados a atender os
meninos pobres. E a sua atitude tem uma característica comum, que
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15 Pages 141-150

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15.1 Page 141

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podemos chamar de “amabilidade séria”. Basta ler o regulamento
do santo Luís Pavone, os manuais de educação dos Irmãos das Es-
colas Cristãs. Deve-se usar de amabilidade e carinho para com os
rapazes, mas não se permita que falem muito alto, tenham uma ale-
gria ruidosa. É preciso impor silêncio, recolhimento. Do contrário,
o moleque vira bicho.
A amabilidade de Dom Bosco traz uma característica diferente.
É “alegre”. Fundador da Sociedade da Alegria, Dom Bosco conhece
o valor do contentamento rumoroso, do desencadeamento alegre
das energias comprimidas dentro dessa mina que chamamos juven-
tude. Convida-os ele mesmo: “Brinquem, pulem, façam barulho. A
mim, me interessa apenas que não cometam pecados”.
O pátio ao ar livre, onde se possa correr até perder o fôlego, é
o ambiente ideal para Dom Bosco. Assiste, é claro, os seus meninos
para que não se machuquem nem machuquem. Não é, porém, uma
assistência que reprime, mas que estimula. Intui que o educador
não pode ficar estranho à alegria dos rapazes. Deve, antes, partici-
par dela, organizá-la quando não surge espontânea, e impedir tudo
quanto a possa envenenar.
E os meninos lhe querem bem, se afeiçoam de modo total. En-
contrar-se com ele é um momento de festa.
Na Via Milano, perto da Prefeitura, depara-se com um rapazinho
que volta do mercado. Tem as mãos tomadas por uma garrafa de
azeite e um copo de vinagre. Ao ver Dom Bosco, corre-lhe ao en-
contro, gritando: “Bom dia, Dom Bosco!”. Azeite e vinagre quase
se derramam...
Dom Bosco sorri ao vê-lo feliz e brinca com ele: “Aposto que não
é capaz de fazer o que eu faço”. E se põe a bater palmas. Na alegria
do encontro, o pequeno não percebe o gracejo. Enfia a garrafa,
untuosa, debaixo do braço e, como pode se põe a bater palmas,
gritando: “Viva Dom Bosco!”.
Copo e garrafa deslizam, acabam quebrados... Aflito, exclama:
– Ai de mim! Quando chego em casa, minha mãe...
– Fique tranquilo! – diz-lhe Dom Bosco. – Vamos dar um jeito. Já.
Entram num mercado e Dom Bosco lhe compra azeite e vinagre.
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15.2 Page 142

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“A presidência ao papa, a espada a Carlos Alberto”
Abril de 1842. Turim está em festa. Vítor Emanuel, príncipe her-
deiro, desposa Adelaide, filha do arquiduque austríaco Ranieri, vice-
-rei do Lombardo-Vêneto. Durante as festas, dois acontecimentos
excepcionais: na galeria do Palazzo Madama dá-se a exposição do
Santo Sudário; aos revolucionários de 1821 que ainda estão no exí-
lio, é-lhes concedida a anistia.
É mais um passo cauteloso de Carlos Alberto em direção aos li-
berais moderados. No ano seguinte (1843), em Bruxelas, outro exi-
lado, piemontês, Gioberti, publicará um livro que dará o que falar,
Do primado moral e civil dos italianos. Em suas páginas estão as
principais ideias daquele reformismo moderado liberal que virá a ser
chamado neoguelfismo. A grandeza da Itália – afirma Gioberti – está
inseparavelmente unida a grandeza do papado. A independência da
Itália, portanto, deverá realizar-se mediante a federação dos Estados
italianos sob a presidência do papa. “A presidência ao papa, a espa-
da a Carlos Alberto”, se tornará a palavra de ordem dos neoguelfos.
Carlos Alberto gosta, mas desconfia da Áustria. Em Turim, outro li-
beral moderado, César Balbo, está por terminar outro livro que tam-
bém dará o que falar. As esperanças da Itália. O rei, discretamente,
envia-lhe o seu beneplácito. Aconselha-o também a publicá-lo em
Paris. Contemporaneamente emite um protesto oficial ao governo
francês de Luís Felipe, porque o general Perrone “que aqui por nós
foi condenado à forca”, recebeu um alto comando em Lião. Perro-
ne, liberal, voltará ao Piemonte com todas as honras em 1848. De
outubro a novembro desse ano se tornará nada menos que primei-
ro-ministro de Carlos Alberto.
Dom Bosco observa tudo. Cada vez mais desconfia da política.
“Batina pouco resistente”
30 de abril de 1842. Morre em Chieri o cônego Cottolengo. Em
sua Pequena Casa, os doentes incuráveis são várias centenas. Anos
antes, o ministro das Finanças o havia mandado chamar.
– O senhor é o diretor da Pequena Casa da Divina Providência?
– Não. Sou um simples servente da Providência.
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– Seja. Mas onde busca os meios para sustentar todos esses do-
entes?
– Já lho disse. Na Providência.
O ministro acostumado a ter os pés firmemente plantados no
chão, a examinar entradas, saídas, balanços, perdeu a paciência:
– O dinheiro, reverendo! O dinheiro! Onde arranja?
– Ora, pois, já lho disse duas vezes. A Divina Providência nos
fornece de tudo, e nunca nos deixou faltar nada. Eu vou morrer e
também o senhor, senhor ministro. Mas a Providência continuará a
pensar nos pobres da Pequena Casa.
Quando a saúde de Cottolengo começou a vacilar, o próprio Car-
los Alberto o mandara chamar ao Palácio Real.
– Senhor cônego – disse-lhe, com o seu jeito um tanto brusco –,
queira considerar que também o senhor está sujeito à lei inexorável
da morte. Que acontecerá nesse dia às centenas de órfãos, inváli-
dos, incuráveis que estão em sua Casa?
Enquanto o rei falava, Cottolengo olhava fixo para o janelão que
dava sobre o pátio. Ouvia-se o passo firme e cadenciado de alguns
soldados. Um pelotão, apenas chegado, se formava na frente de um
outro.
– Majestade, que está acontecendo?
– É a troca da guarda. O pelotão que chega toma o lugar daquele
que sai.
Cottolengo sorriu:
– Aí está a resposta. Também na Pequena Casa haverá uma sim-
ples troca de guarda. O cônego Cottolengo sairá e a Providência
mandará outro em seu lugar.
E assim foi realmente. À sua morte, sucedeu-lhe o cônego Anglé-
sio, e a Pequena Casa continuou tranquilamente a sua vida, entre o
mercado geral da cidade e os edifícios da marquesa Barolo.
Dom Bosco, naqueles dias, lembrou-se do seu primeiro encontro
com Cottolengo. Chegara, havia pouco, a Turim e visitara a Peque-
na Casa. O cônego lhe perguntara pelo nome e donde era. Depois
lhe havia dito, com aquele seu modo distraído e brincalhão:
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15.4 Page 144

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– O senhor tem cara de gente boa. Venha trabalhar na Pequena
Casa. Trabalho não faltará.
Dom Bosco lá voltou muitas vezes para confessar os doentes,
passar algumas horas com os rapazes inválidos. Noutro encontro
(estava presente o jovem Domingos Bosso), Cottolengo tomou
entre os dedos o tecido da batina de Dom Bosco e, testando-o,
disse:
– Muito leve. Arranje outro. Mais resistente. Serão muitos os me-
ninos que vão se dependurar nesta batina.
Falava tranquilamente de Deus
E de fato se dependuravam. Com o decorrer dos meses, os me-
ninos do oratório aumentaram. Já eram mais de 100. Não só preci-
savam de pão e de trabalho, mas também de fé. De fé que alimenta
mesmo quando o pão é pouco. E Dom Bosco, que não era um fi-
lantropo mas um padre, preocupa-se em fazê-los encontrar-se com
Deus.
“Era para mim uma coisa singular – escreve – ver durante a
semana, mas especialmente nos dias santos, o meu confessionário
rodeado de 40 ou 50 rapazes, esperando, frequentemente, muito
tempo para poderem se confessar.”
Confessar-se, para os rapazes, não é coisa fácil. Dom Bosco os
ajuda, sugerindo-lhes normas muito simples: “Se não sabe como
falar, peça ao confessor que o ajude. Para o confessor é o bastante:
ele lhe fará algumas perguntas e tudo se ajeitará”.
Escreve Pedro Stella:
Dom Bosco se dirigia ao confessionário com um vivíssimo sentido do
pecado e da vida da graça. Não só como juiz, mas sobretudo como pai,
desejoso de aumentar nos jovens a vida da graça. Nos anos do Colégio
Eclesiástico, convenceu-se firmemente de que seria com a bondade que
levaria almas para Deus. Não com o rigor.
O remate natural da confissão era a Comunhão, da qual muitos dos seus
meninos se aproximavam todas as semanas.
Mesmo na conversa, durante os jogos e os passeios, Dom Bosco falava de
Deus tranquilamente. Estando no meio dos seus meninos, não lhe custava
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o mínimo esforço trocar brincadeiras, contar anedotas, falar do Céu. Em
momentos de profunda satisfação, olhava para os seus rapazes e dizia:
– Que felicidade quando estivermos todos no Céu!
Quando, por vezes, se discutia sobre o bem e o mal, sobre a vida e o Além,
e alguém perguntava:
– Eu vou me salvar?
Dom Bosco respondia:
– Só faltava que você fosse para o inferno! Acha que Deus criou o Céu
para deixá-lo vazio? É claro que, para subir até lá, precisa fazer um pouco
de sacrifício. Mas eu desejo que todos nos reencontremos lá em cima. Vai
ser uma festança!
144

15.6 Page 146

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18
A marquesa e o padre miúdo
Verão de 1844. Para Dom Bosco, os três anos de Colégio Eclesiás-
tico chegaram ao fim.
Padre Cafasso desceu à periferia de Valdocco, à procura do
teólogo Borel, diretor espiritual do Refúgio que a marquesa Barolo
havia fundado.
– Gostaria de mandar para cá com o senhor um padre excelente.
Mas precisaria que lhe arranjasse um quarto e um estipêndio.
– Como, se não há trabalho nem para mim!? Que lhe posso man-
dar fazer?
– Nada. Se o problema for pagamento, deixe comigo. Chama-se
Dom Bosco. No Colégio Eclesiástico começou uma espécie de ora-
tório para meninos pobres. Se não lhe arranjarmos trabalho na cida-
de, o arcebispo o mandará de vice-pároco numa aldeia e os meninos
do oratório acabariam voltando para a rua. Seria uma pena.
– Se é assim, concordo. Falarei com a marquesa.
O padre Cafasso voltou ao Colégio Eclesiástico e disse a Dom
Bosco:
– Arrume as malas e vá para o Refúgio.Trabalhará com o teólogo
Borel. Assim terá tempo de cuidar dos meninos.
Cilício sob as vestes refinadas
A marquesa Júlia Francisca de Colbert era uma figura de proa
na sociedade turinense. Fugira da França durante a Revolução e
casara com o marquês Carlos Tancredo Falletti de Barolo, que em
1825 foi prefeito de Turim. O marquês faleceu em 1838. Deixou-
-a sem filhos, mas com um enorme patrimônio. A marquesa, 53
anos, cingiu o cilício sob as vestes refinadas e dedicou-se inteira-
mente aos pobres.
Por muitos meses, passou três horas por dia nos cárceres das
mulheres. Suportou insultos, humilhações e algumas vezes foi até
espancada.Tudo para ajudar e instruir aquelas pobres criaturas. Por
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15.7 Page 147

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último, obteve das autoridades que as prisões femininas fossem se-
paradas das masculinas, transferindo as detentas para um edifício
mais salubre que ela própria mandou construir.
Criou orfanatos e “lares” para jovens operárias.
Em Valdocco, perto da Pequena Casa do Cottolengo, construiu
o Refúgio para as mulheres que quisessem deixar a rua e refazer a
vida. Ao lado, abriu a casa das Madaleninhas, para as jovens em
perigo, com menos de 14 anos.
Naquele ano de 1844 mandara iniciar uma terceira construção,
o Pequeno Hospital de Santa Filomena para menininhas doentes ou
aleijadas.
Embora pessoalmente dedicada a essas obras de caridade, nunca
deixou de ser fina e brilhante. Em seus salões reuniam-se os inte-
lectuais mais notáveis do seu tempo. Sílvio Péllico lhe foi secretá-
rio: em sua mansão escreveu As minhas prisões. Camilo Cavour foi
amigo e confidente. Os escritores Balzac e Lamartine correspon-
diam-se com ela, mantendo-a informada sobre os acontecimentos
da França.
O teólogo Borel foi ver a marquesa:
– Achei o diretor espiritual para o seu Pequeno Hospital. Chama-
-se Dom Bosco. Vem do Colégio Eclesiástico.
– Certo. O hospital está ainda em construção. Voltaremos a falar
nisso daqui a seis meses.
– Não, senhora marquesa. Dom Bosco, ou se pega logo, ou será
mandado a outro lugar. Padre Cafasso mo recomendou vivamente.
Falou-me de um oratório que esse padre organizou. E disse que se-
ria uma pena se o deixássemos morrer.
A marquesa pediu mais informações. Depois, convencida, desti-
nou a Dom Bosco 600 liras anuais e um quarto ao lado do quarto de
Borel, nas proximidades do Refúgio.
Também Dom Bosco, no primeiro encontro que teve com a mar-
quesa, quis informações e garantias. Aceitava prestar seu ministério
no Refúgio, mas pedia que não o obrigassem a abandonar seus ra-
pazes. Pedia também que os meninos que quisessem falar com ele
durante a semana o pudessem fazer livremente.
A marquesa, que já atingira os 60 anos mas conservava intacto o
temperamento enérgico e franco, gostou da sinceridade. Concedeu
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15.8 Page 148

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ao jovem sacerdote a possibilidade de reunir seu oratório numa fai-
xa de terreno que costeava o hospital em construção. Logo que fos-
se possível, deixá-lo-ia usar duas salas no interior do edifício, onde
poderia instalar a capela.
Sistematização, pois, havia. Mas só até certo ponto.
Os cordeiros transformavam-se em pastores
12 de outubro de 1844. Sábado. Dom Bosco está preocupado. No
dia seguinte deverá comunicar aos seus meninos que o oratório irá
transferir-se para a periferia de Valdocco.“Mas a incerteza do lugar,
dos meios e das pessoas, me deixava o coração inquieto – escreve.
– Naquela noite tive um novo sonho, que me pareceu ser um apên-
dice do tido nos Becchi, aos 9 anos”.Torna a ver o bando de lobos.
Quer fugir.
Mas uma senhora, trajando à moda de pastorinha, fez-me sinal de acom-
panhar aquela tropa estranha, enquanto ela se punha na frente. Fizemos
três paradas. A cada parada, muitos daqueles animais se mudavam em cor-
deiros. Morto de cansaço, queria sentar-me. Mas a pastora convidou-me a
continuar o caminho. E eis-nos num vasto pátio, rodeado de pórticos, em
cuja extremidade se erguia uma igreja. O número dos cordeiros tornou-se
grandíssimo. Surgiram vários pastores para cuidar do rebanho, mas fica-
vam pouco tempo. Algo maravilhoso, então, aconteceu: muitos cordeiros
transformavam-se em pastorzinhos que cuidavam dos demais. A pastori-
nha convidou-me a olhar para o sul. Olhei e vi um campo... ‘Olhe outra
vez’, disse. Vi uma estupenda e alta igreja... No seu interior, havia uma
faixa branca, na qual estava escrito em letras garrafais: Hic domus mea,
inde gloria mea (Aqui está a minha casa, daqui sairá a minha glória).
Dez linhas à frente, Dom Bosco conclui.“Eu não dava muito cré-
dito ao sonho. Mas compreendi as coisas à medida que se foram
realizando. Antes, este sonho, junto com um outro, me serviu de
programa nas minhas decisões”.
O outro sonho, contou-o ao padre Barbéris e ao padre Lemoyne,
que logo o puseram por escrito.17É, em grande parte, uma repetição
variada do primeiro. Referimos, por isso, somente os elementos ca-
racterísticos.
1 Este sonho pode ser lido no segundo volume das Memórias Biográficas, à p. 298.
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15.9 Page 149

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Uma Senhora me disse: “Olhe”. Vi uma igreja pequena e baixa, um pouco
de pátio e um grande número de meninos... Como a igreja se tornasse
muito pequena, recorri a ela, que me mostrou uma outra muito maior,
com uma casa ao lado... Achei-me rodeado de um número imenso de
jovens e vi uma igreja enorme, cercada de edifícios por todos os lados e
um lindo monumento do centro.
“Onde está Dom Bosco? Onde é o oratório”
13 de outubro. Domingo. Dom Bosco anuncia aos seus meninos
a transferência do oratório para perto do Refúgio. Há certa pertur-
bação. Dom Bosco, então, dá por descontado o que só vira em so-
nhos e arrisca. Anuncia, alegre, que “lá nos espera um amplo local,
reservado só para nós, para cantar, correr e pular. Todos gostam e
cada qual aguarda, com impaciência, a hora de ver as novidades”.
20 de outubro. Domingo. Grupos de rapazes deixando a cidade
descem para a região de Valdocco. Até à margem direita do rio
Dora, é toda uma sucessão de prados e campos, com casas esparsas.
A Pequena Casa do Cottolengo, o Refúgio da Barolo estão próximos
de tabernas e casas rústicas, onde as pessoas vivem tranquilamente.
Os rapazes não sabem para onde ir. Põem-se a bater nas portas das
casas, gritando:
– Dom Bosco! Onde está Dom Bosco? Onde é o oratório?
O povo, que costuma ver por ali bandos de arruaceiros, pensa
tratar-se de brincadeira de mau gosto e levanta a voz:
– Qual oratório! Qual Dom Bosco! Sumam daqui! E já, se não
querem ser corridos com o forcado!
“Ouvindo a gritaria, saí de casa com o teólogo Borel. Cessou a
barulheira e correram ao nosso encontro.”
Espaço para correr e brincar não faltava. O que não havia mesmo
era um lugar silencioso para rezar, para confessar, para celebrar a
Missa.
– O amplo local que lhes prometi não está ainda pronto. Mas
quem quiser pode subir ao meu quarto e ao do teólogo Borel.
O resultado, para aquele e para os demais domingos até dezem-
bro, foi o das sardinhas em lata. “Quarto, corredor, escada, tudo
entulhado de meninos. Para atendê-los em confissão éramos apenas
dois e os que queriam confessar-se 200”. E quem pode manter quie-
tos, enquanto esperam, 200 rapazes?
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15.10 Page 150

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“Um queria acender o fogo, outro apagá-lo. Um trazia lenha, ou-
tro derramava água. Balde, torqueses, pazinha, jarro, bacia, cadeiras,
sapatos, livros: uma confusão! Porque todos queriam pôr ordem.”
Há um pouco de jubiloso exagero nessas linhas de Dom Bosco,
mas quem já viveu no meio de rapazes e, por longo tempo, sabe
que não há lá “muito” exagero.
Seis domingos assim: 200 jovens que, pelo meio da manhã desfi-
lam, qual pequeno exército, atrás de Dom Bosco, para irem à Missa
no Monte dos Capuchinhos, ou no santuário da Consolata, ou na
igreja de Sássi!
Muitas vezes, quem os acompanha é o teólogo Borel, padre sim-
ples e popular que, por causa de sua estatura, lhe chamam de “pa-
dre baixinho”. Um trabalhador incansável! Tomou sob sua proteção
o jovem padre Bosco e o ajuda com afetuosa amizade e, muitas
vezes, com o dinheiro de sua bolsa.
As prédicas do “padre baixinho” são grandemente apreciadas pe-
los rapazes, porque feitas com graça, no saboroso dialeto de Porta
Palazzo, condimentadas com provérbios, ironias, argúcias. Alguém
dissera ao padre Borel que devia pregar com maior dignidade. Ele
respondeu: “O mundo é ridículo, por isso, é preciso pregar ridicu-
lamente.”
Os flocos de neve crepitavam no braseiro
8 de dezembro. As duas salas preparadas para a capela estão, fi-
nalmente, prontas. Ainda bem, porque é desde a noite que neva de
modo impressionante. De manhã, neve alta e muito frio. Transporta-
-se à capela um grande braseiro. José Buzzetti relembrava que, ao
passar pelo céu aberto, os flocos de neve caíam dentro e crepitavam.
Os rapazes comparecem assim mesmo. Encontram um pequeno
altar, um pequeno tabernáculo, alguns bancos. “Celebrou-se a Mis-
sa – escreve com simplicidade Dom Bosco –, alguns rapazes fizeram
a confissão e a comunhão. E eu chorei porque me parecia que o
oratório já fosse estável.”
Engana-se. Deverá chorar outra vez – não de alegria, mas de tris-
teza – antes que ache um lugar estável, definitivo para seu oratório.
Mas, desde esse 8 de dezembro de 1844, alguma coisa de defini-
tivo já tem o oratório de Dom Bosco: o nome. Chamar-se-á “Orató-
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16 Pages 151-160

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16.1 Page 151

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rio de São Francisco de Sales”. O próprio Dom Bosco relembra os
motivos:
Porque a marquesa mandara pintar um quadro desse Santo na entrada do
local. E porque aquele ministério exigia grande calma e doçura: nós nos
tínhamos colocado sob a proteção de São Francisco de Sales a fim de que
nos obtivesse a sua extraordinária mansidão.2
Para alimentar a alegria dos rapazes, Dom Bosco compra bochas,
malhas, pernas de pau (não se inventara ainda a bola!). Continua a
ajudar os mais pobres com alimento, roupa, calçado.
Agora que tem uma sala, pensa em dar um pouco de aula aos
mais inteligentes. À noite, roubando algumas horas ao sono, com-
parecem aos grupinhos, com o rosto enegrecido de fuligem ou
branco de cal, com uma capinha às costas para se defenderem do
intenso frio, satisfeitos por terem um pouco de escola.
Mas para livros, roupa, brinquedos, algum dinheiro é imprescin-
dível. Dom Bosco se sente tímido e inibido. Repugna-lhe apresen-
tar-se e pedir esmola a uma família abastada. É o padre Borel que o
empurra:
– Se de fato quer bem aos seus meninos, deve fazer também esse
sacrifício.
E Dom Bosco o faz. A primeira família rica que visita (prevenida
pelo padre Borel) é a do cavalier Gonella. Sente o rosto em brasa,
quando estende as mãos para receber as primeiras 300 liras.
Quarenta e dois anos mais tarde, quando pedir a um diretor sa-
lesiano que vá retirar uma esmola e ouvir como resposta que “lhe
falta a franqueza de Dom Bosco” ficará sério e dirá:
– Você não sabe quanto me custou pedir esmola.
Se nunca pôde renunciar a essa dificuldade, tampouco renun-
ciou à própria dignidade. Nem tímido, nem grosseiro. As famílias
distintas dirão a seu respeito:
– Parecia que um anjo entrava em casa!8
2 Oratório festivo, na tradição salesiana, é um ambiente educativo que se abre, com ardor missionário,
aos meninos e aos jovens, sobretudo aos domingos e dias santos, atraindo-os com agradáveis e ho-
nestos divertimentos, variadas atividades, visando primordialmente à evangelização (Regulamentos
Salesianos, art. 11) (N.T.).
150

16.2 Page 152

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Enquanto pensava nos seus meninos, Dom Bosco não deixava de
cumprir as suas obrigações. Fora mandado ali com hospedagem e
estipêndio para exercitar o ministério sacerdotal entre as mulheres
infelizes e as jovens do Refúgio. Dizia claro que aquela não era a sua
missão, mas cumpria o seu dever com seriedade.
Permitimo-nos, de passagem, uma observação. Dom Bosco afir-
mou sempre que a sua missão era em prol dos meninos e não das
meninas. Essa “exclusividade”, porém, jamais degenerou em “misogi-
nia”.Aceitou sempre e com simplicidade a colaboração e a presen-
ça das mulheres: desde a menina que cuidava de suas vacas, no Sus-
sambrino, enquanto ele estudava, até a obra preciosa das “mães” em
Valdocco (sua própria mãe; a do padre Rua; a do cônego Gastaldi; a
tia Mariana, irmã de Mamãe Margarida).A “sala das senhoras”, como
lhe chamavam, ficava contígua à enfermaria dos meninos. Domin-
gos Sávio, no inverno de 1857, se levantará, ardendo em febre, para
ir aquecer-se ao pé da lareira acesa pela “tia” Mariana, ela também
adoentada. E a censurará, com sua intransigência de adolescente,
por lamentar-se das dores “que lhe mandava o próprio Deus”.A mi-
soginia, o mal-estar que a presença de qualquer mulher teria causa-
do a Dom Bosco, foi, a nosso ver, criada artificiosamente por algum
biógrafo influenciado por ascéticas discutíveis.
Falência em São Pedro in Víncoli
É provável que Dom Bosco, nos primeiros meses de Refúgio, ti-
nha pensado em conseguir da marquesa uma mudança de intenção:
induzi-la a destinar o edifício em construção não às meninas doen-
tes, mas aos jovens abandonados. A marquesa, por sua vez, alimen-
tava uma esperança diametralmente oposta: que Dom Bosco, com
o passar do tempo, abandonasse os rapazes e se dedicasse às suas
obras, em tempo integral.
Ilusão recíproca. À medida que o tempo passa, o número e o
barulho dos rapazes aumentam.Alguma roseira fora devastada pelo
entusiasmo dos jogos. Alguma religiosa manifestara sua apreensão
pela proximidade daqueles rapagões às “madaleninhas”. A marque-
sa ansiava por ver o oratório deixar o local.
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16.3 Page 153

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O problema era: para onde ir? Os sonhos estimulavam a esperan-
ça de Dom Bosco. Mas eram cartas topográficas precisas.
Na Quaresma de 1845, tentou-se uma saída parcial. Para o catecis-
mo cotidiano (então prescrito para todos os rapazes na Quaresma e
no Advento), as classes mais numerosas dos oratorianos reuniram-se
em São Pedro in Víncoli. Era assim que se chamava uma igreja de-
dicada ao Crucifixo, com um cemitério contíguo, no qual fazia dez
anos que não se enterrava ninguém. O cemitério (que ainda hoje se
pode ver na região de Valdocco) tinha um átrio e um pátio amplo,
rodeado de pórticos.
Como as reuniões para o catecismo haviam decorrido muito bem
e o capelão do cemitério, padre Tésio, era seu amigo, em maio Dom
Bosco lhe pediu o favor de repetir a experiência em grau maior:
transplantar todo o oratório para a igreja e para o pátio de São Pedro
in Víncoli.
Dia 25 de maio, domingo, o padre Tésio devia ausentar-se de Tu-
rim e respondeu:
– Venha com seus rapazes dia 25.Assim me substituirá celebran-
do a Missa.
Provavelmente o capelão cometeu dois erros. Pensava que o ora-
tório de Dom Bosco se formava apenas por aqueles poucos rapazes
que vira, atentos e compostos, durante o catecismo da Quaresma.
Achava também que (como se ia verificando em outras obras para
rapazes), depois da Missa e das funções da igreja, os rapazes volta-
riam para casa, após comerem talvez um pãozinho no pátio.
Mas não foi bem assim que as coisas caminharam. A mulher de
serviço, criada do capelão, viu chegar uma multidão de rapazes, que
atulharam, literalmente a igreja. Depois da Missa, todos aqueles ra-
pazes apanharam rapidamente seu pãozinho e se largaram ruidosa-
mente pelo pátio e pelos pórticos. A mulher (que sob os pórticos
criava algumas galinhas) ficou apavorada e, a seguir, enfurecida. Pôs-
-se a gritar, a perseguir, a agitar o cabo da vassoura, enquanto suas
galinhas, assustadíssimas, fugiam perseguidas pelos meninos...
Na sua investida, chegou até Dom Bosco, cobrindo-o de injúrias.
“Profanador de lugares sagrados” foi talvez a coisa mais gentil que
pôde dizer aquela mulher.
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Dom Bosco compreendeu que o melhor a fazer era deixar o lu-
gar. “Achei oportuno parar o recreio – escreveu. – E partimos dali
com a esperança de reencontrar-nos com mais calma do domingo
seguinte.”
Tudo não passaria de um incidente banal, se não houvesse uma
circunstância impressionante. O padre Rua, no “processo informati-
vo” sobre a causa de Dom Bosco, depôs:
Contava-me, muitos anos mais tarde, um certo Melanotte, de Lanzo, o qual
presenciara a cena, que Dom Bosco, sem se perturbar nem irritar-se com
aquelas injúrias, voltou-se para os rapazes e disse:“Coitadinha! Manda-nos
embora. Mas ela mesma no próximo domingo estará na sepultura”.
Quando o padre Tésio regressou, a mulher fez uma relação tão
catastrófica das coisas que o capelão (não ousando talvez retirar
pessoalmente a palavra que dera a Dom Bosco) escreveu à Prefei-
tura pedindo que proibisse qualquer recreação no interior do ce-
mitério. “Desagrada-me dizê-lo – escreveu pesaroso Dom Bosco –,
aquela foi a última carta do padre Tésio.”
Durante a semana, ambos, capelão e doméstica, morreram. De
repente.
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19
O Oratório migrante
Depois da infeliz experiência de São Pedro in Víncoli, o Oratório
voltou a reunir-se no Refúgio. A marquesa não disse uma única
palavra em contrário. Só lembrou a Dom Bosco que o Pequeno
Hospital seria inaugurado dia 10 de agosto. Desse dia em diante, é
claro, seus rapazes encontrariam os portões fechados.
12 de julho de 1845. Chega a Dom Bosco uma carta da Prefei-
tura. Por recomendação do arcebispo, é-lhe concedido “servir-se,
para o catecismo dos meninos, da capela dos Moinhos da Cidade,
do meio-dia às 15 horas, com a proibição de entrarem no segundo
pátio do edifício”.
Uma igreja, por três horas, no período da tarde, de cada domin-
go. Não era lá o Palácio Real, mas sempre alguma coisa com que
sobreviver.
Pegamos bancos, genuflexórios, candelabros, algumas cadeiras, quadros e
quadrinhos – lembrava Dom Bosco –, e cada qual carregando o que podia,
à maneira de emigração popular, fomos estabelecer nosso quartel-general
no local indicado.
Os Moinhos da Cidade situavam-se na grande praça Manuel Fe-
lisberto (Porta Palazzo), à direita de quem desce para o rio Dora.
Ainda hoje essa vasta praça é a sede do multicolorido e cotidiano
mercado da cidade, com as apertadas filas de pequenas bancas.
“Os repolhos, meus caros meninos”
Dom Bosco não estava satisfeito com o novo estado de coisas.
Nem os meninos. Escreve:
Não se podia rezar Missa, nem dar bênção à tarde. Nada, portanto, de
Comunhão, que é o elemento essencial da nossa instituição. A mesma
recreação acabava por ficar muito perturbada: os meninos tinham de
brincar na rua ou na pequena praça diante da igreja, por onde passavam
carruagens, pedestres e cavalos{...}. E conclui: Não dispondo de coisa
melhor, aguardávamos um local mais apropriado.
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Alugou uma sala no andar térreo do edifício e lá se industriava
por dar aulas e catecismo.
Padre Borel procurou reerguer o ânimo de todos com um ser-
mão que ficou famoso. Os meninos lhe chamavam “o sermão dos
repolhos”.
“Os repolhos, meus caros meninos, se não forem transplantados,
não criam bonita e gorda cabeça – exortou o ‘padre baixinho’, pro-
vocando risada geral. – O mesmo acontece com o nosso oratório:
transferido de cá para lá, conseguiu sempre um notável aumento.”
E após haver traçado a história do oratório, concluiu: “Ficaremos
aqui muito tempo? Não nos preocupemos. Confiemos em Deus. É
certo que ele nos abençoa, nos ajuda, pensa em nós”.
Mas alguns domingos depois, recomeçam as complicações.
Da secretaria dos Moinhos partiu para a prefeitura uma carta
uma lista de acusações graves: os rapazes danificavam a igreja
e os edifícios, faziam “uma reunião que podia se usada para uma
revolução” (acusação muito perigosa para aquele momento), e
constituíam uma “sementeira de imoralidade”.
Por ordem do prefeito, apareceu uma comissão para ver o que
estava acontecendo. Coisas normais: os rapazes faziam algazarra,
uma parede fora riscada com a ponta de um prego. Nenhuma revo-
lução. Nenhuma imoralidade. Único elemento de relevo (causa ver-
dadeira da carta): a irritação dos inquilinos das casas da redondeza.
Os cantos, a algazarra, os jogos rumorosos tiravam a tranquilidade
dominical.
Dom Bosco ficou muito mais sentido pelas calúnias (que sempre
deixam marca) do que pelas decisões comunicadas. A Prefeitura não
retirava a permissão dada, mas a partir de 1o de janeiro não renova-
ria a concessão. A carta oficial de dissolução seria encaminhada em
novembro. Até lá, que “fosse razoável”.
Dom Bosco obedeceu. Desse dia em diante a igreja dos Moinhos
serviu-lhe apenas como ponto de encontro. Dali partia com seus
meninos para brincar nos prados incultos às margens do rio Dora.
Para rezar iam a Nossa Senhora do Pilar, em Sássi, a Nossa Senhora
do Campo.
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Nessas igrejas, eu celebrava a missa, explicava o Evangelho. À tarde, dava
um pouco de catecismo, contava algum fato, cantávamos algumas loas. Em
seguida, giros e passeios até a hora de ir para casa.
Parecia que uma situação tão difícil fosse desfazer qualquer ideia de
oratório. Ao contrário, elevou de modo surpreendente o número dos
meninos”.
“Pegue, Miguelzinho, pegue!”
Perto dos Moinhos da Cidade, teve Dom Bosco, em setembro,
um dos encontros mais fundamentais de sua vida. Os meninos se
empurravam diante dele para receber uma medalha. À margem da-
quele rebuliço, quedava-se um menininho pálido, 8 anos, uma faixa
de luto ao braço esquerdo. Fazia dois meses que perdera o pai. Não
era de se meter naquela montoeira de gente. Nem de abrir caminho
aos empurrões. As medalhas acabaram e ele ficou sem.
Dom Bosco, então, se aproximou e, sorrindo, lhe disse:
– Pegue Miguelzinho, pegue.
Pegar o quê? Aquele padre estranho, que via pela primeira vez,
não lhe dava nada. Somente estendia a mão esquerda e com a direi-
ta, fingia cortá-la em duas. O rapazinho levantou os olhos interroga-
tivos. E o padre lhe disse:
– Nós dois repartiremos tudo.
Que viu Dom Bosco naquele momento? Nunca o disse. Mas
aquele menino se tornaria seu braço direito, seu primeiro sucessor
no governo da Congregação Salesiana.
Chamava-se Miguel Rua e não compreendeu a frase. Nem na
hora, nem depois, por muitos anos. Afeiçoou-se a Dom Bosco,
àquele padre ao redor do qual todos de sentiam alegres e como que
cheios de calor.
Miguelzinho morava da Regia Fabbrica d’Armi (Real Fábrica de
Armas), onde seu pai tinha sido empregado. Quatro de seus irmãos
haviam morrido na infância e ele era muito franzino. Por isso, a mãe
não o deixara ir muitas vezes ao oratório. Mas encontrou-se igual-
mente com Dom Bosco no colégio dos Irmãos das Escolas Cristãs,
onde frequentava o terceiro ano elementar. Contará:
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Quando Dom Bosco nos vinha celebrar a Missa e pregar, apenas entrava
na capela, parecia que uma corrente elétrica passava por todos aqueles
numerosos meninos. Nós nos púnhamos de pé, saíamos dos lugares e nos
apertávamos ao seu redor. Levava muito tempo para chegar à sacristia.
Os bons irmãos não podiam impedir aquela aparente desordem. Nada de
semelhante acontecia quando vinham outros sacerdotes.
Livros roubados ao sono
Em outubro, um acontecimento importante. Sai publicada a His-
tória eclesiástica para uso das escolas. É o primeiro dos livros es-
colares que Dom Bosco escreverá para os seus meninos, roubando-
-os ao sono, à luz de uma lamparina a querosene, escrevendo-o às
pressas, com uma caligrafia indecifrável. A História eclesiástica não
é uma obra “científica”: nenhum dos livros de Dom Bosco o será.
É, ao contrário, popular, adaptada à mente simples e à cultura mo-
desta dos seus meninos. Fala dos papas, dos fatos mais luminosos
da Igreja. Traça o perfil dos santos. Descreve as obras de caridade
que, em todos os tempos, floresceram no meio do povo de Deus.
A ela seguirão a História sagrada (1847), o Sistema métrico de-
cimal (1849), a História da Itália (1855).
Ao lado dos livros escolares, Dom Bosco achará tempo para es-
crever muitíssimos outros livros e opúsculos: vidas de santos, livros
de leitura amena, manuais de orações e de instrução religiosa. Ne-
nhum deles será uma obra-prima. Todos, porém, atos de amor por
seus jovens, pelo povo simples pela Igreja. Alguns serão causa de
aborrecimentos: chegarão a espancá-lo para que desista de escrever.
Três aposentos na casa Moretta
Em novembro, chegava a carta da Prefeitura.Também o inverno.
“O clima – escreve – já não se prestava aos passeios e caminhadas
fora da cidade. De acordo com o padre Borel, alugamos três quartos
na casa do padre Moretta.
Hoje essa casa não existe mais. Uma das suas últimas paredes
ficou englobada na igreja sucursal da paróquia de Maria Auxiliadora,
à direita de quem desce em direção à grande basílica.
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Nas três salas da casa Moretta “passamos quatro meses, bem es-
premidos, mas contentes de poder, ao menos, acolher os meninos,
instruí-los, dar-lhes comodidade para se confessar”.
Dom Bosco recordava, sorrindo, que fora naquelas salas que se
vira obrigado a transgredir o segundo dos seus antigos propósitos
do seminário: para divertir os meninos, em local tão estreito, voltou
a fazer os jogos de prestidigitação. Nunca mais os deixou, porque os
resultados foram fabulosos.
Iniciou também, com a ajuda do teólogo Carpano um curso re-
gular de aulas noturnas, bem diferente das repetições volantes que
havia dado até aí.
A instrução popular, as aulas noturnas, pertencem àquelas si-
tuações concretas em que Dom Bosco transpõe as posições dos
conservadores e se vê alinhado com os liberais. Ao arcebispo, pre-
ocupado com o fato, Dom Bosco diz “não ser o caso de se indagar
donde venha a inspiração para a nova iniciativa. O que precisa é
estudar-lhe a natureza e, se for boa, dar-lhe uma orientação cristã,
impedindo que acabe extraviada pelo espírito antirreligioso”.
Grande ponto de interrogação: o oratório
Dezembro. A saúde de Dom Bosco decai de modo preocupante.
É capelão do Pequeno Hospital, onde se abrigam meninas dos 3
aos 12 anos. Está empenhado nas prisões, no Cottolengo, nos ins-
titutos de educação da cidade. Trabalha em seu oratório, dá aulas
noturnas, corre a visitar os meninos do próprio local de trabalho. E
o inverno 1845-46 se prenuncia muito frio.
O inverno, em Turim, chega tarde, mas acumula, por sobre as
ruas estreitas, espessas e cinzentas camadas de neve, ocasionando à
cidade meses de frio contínuo, opressor.
Os pulmões de Dom Bosco demonstram, nesses meses, uma
preocupante fragilidade.Percebe-o o teólogo Borel e avisa a marquesa
Barolo, que dá a Dom Bosco 100 liras para o oratório e a ordem de
“suspender qualquer ocupação até o perfeito restabelecimento”.
Dom Bosco obedece. Corta todo empenho, exceto o dos seus
meninos. A vantagem colhida não é consistente. Logo verá.
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16.10 Page 160

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Mas a preocupação com a saúde é, agora irrelevante, em compa-
ração com as nuvens negras que começam a adensar-se sobre o ora-
tório. Escreve com amargura:“Foi nesse tempo que se espalharam
boatos estranhos. Uns chamavam Dom Bosco de revolucionário.
Outros diziam-no, louco e até herege”.
Os primeiros a colocarem um grande ponto de interrogação so-
bre a sua obra foram os párocos da região. Na “conferência” reali-
zada no início de 1846, um dos assuntos em pauta era o catecismo
dos meninos. O cura do Carmo aproveita a oportunidade para ma-
nifestar a sua perplexidade a respeito do oratório de Dom Bosco:
os meninos se afastam das paróquias, acabam por não conhecerem
nem os próprios párocos. E se pergunta: é isso um bem ou um mal?
Assim como ele, outros párocos estão preocupados.
“Não era ambição mesquinha ou inveja – apressa-se em dizer
Dom Bosco. – Desejavam sinceramente a salvação das almas”. Para
esclarecer a situação, mandaram dois representantes.
Dom Bosco, nas Memórias, reconstrói o diálogo (deve tê-lo con-
tado muitas vezes nesses anos: era assunto vital para a sua obra).
Referimos o essencial:
– Este seu oratório afasta os meninos de suas paróquias. Por que
não os manda para lá, Dom Bosco?
– Porque a maior parte não conhece nem o pároco, nem a paró-
quia. São quase todos forasteiros, que vêm a procura de trabalho:
valdostanos, saboianos, bielenses, novarenses, lombardos.
– Por que não ajudá-los a se inserirem nas respectivas paróquias?
– Não é possível. A diversidade de língua, a incerteza do domi-
cílio são graves obstáculos. Poder-se-ia tentar, com a condição de
que cada pároco viesse buscar os seus e os guiasse até a própria
paróquia. Mesmo assim, a coisa continuaria difícil: não poucos são
levianos, travessos. Só atraídos pela recreação, pelos passeios é que
aceitam o catecismo e as orações. Cada paróquia devia ter um lugar
determinado onde reuni-los para agradável recreação.
– Isso é impossível. Não temos locais. E os sacerdotes, aos do-
mingos, estão empenhados em outras coisas.
A conclusão, já a referimos. Foi comunicada a Dom Bosco alguns
dias depois:“Não podendo cada qual providenciar um oratório na
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17 Pages 161-170

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17.1 Page 161

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respectiva paróquia, os párocos animam o sacerdote João Bosco a
continuar”.
O primeiro ponto de interrogação obtivera sua resposta. Na pri-
mavera chegariam os outros, muito mais ameaçadores.
Um oratório diferente
Estavam assim delineadas as características principais do ora-
tório de São Francisco de Sales. Dom Bosco se havia abeberado
nas experiências dos oratórios de Milão, de Bréscia e dos romanos
de São Felipe Néri. Caminhara pela linha traçada, em Turim, pelo
padre Cocchi. Marcara a obra, sobretudo com a sua personalidade.
Tornara-se o oratório, em suas mãos, uma obra original, diferente
de qualquer outra.
Podemos tentar uma lista (embora incompleta e inadequada) das
características “bosquianas”.
Os oratórios tradicionais eram “paroquiais”. Dom Bosco criara um
oratório que superava a instituição da paróquia, que se tornava “a paró-
quia dos jovens sem paróquia”, como a chamará o arcebispo Fransoni.
A presença do padre inspirava-se numa “bondade séria”, que mo-
derava a alegria e desconfiava do barulho. Dom Bosco inaugurou a
“bondade alegre”, em que o próprio padre animava os jogos baru-
lhentos e provocava grande alegria.
Os oratórios tradicionais eram exclusivamente “festivos” e, com
frequência, reduziam os encontros com os jovens a duas ou três
horas nas tardes dos domingos. Dom Bosco, antes de tudo, estende
o encontro com os rapazes para o dia santo inteiro. Depois, englo-
ba nele toda a semana com as aulas noturnas e os encontros no
local de trabalho.
Os meninos que se dirigem a um oratório normal vão a uma pa-
róquia, encontram-se numa igreja bem determinada. Favorecidos
paradoxalmente pelas contínuas migrações, os rapazes do oratório
de São Francisco de Sales vão procurar Dom Bosco, passar o dia
com ele. O centro desse oratório não é a instituição paróquia-igreja,
mas a pessoa de Dom Bosco, a sua presença contínua, estimulante.
A relação (diríamos em linguagem hodierna) não é institucional,
mas pessoal.
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17.2 Page 162

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Os demais oratórios selecionam os rapazes melhores. São os pais
que os apresentam e garantem o seu bom procedimento. Dom Bos-
co (somos tentados a dizer) seleciona pelo avesso. Começa pelos
jovens egressos das prisões, que não sabem onde achar um amigo.
Continua com os pequenos pedreiros, que têm a família distante. Os
rapazes “abandonados e periclitantes” permanecem o núcleo desse
oratório de portas sempre abertas para todos. Evidentemente, teve
Dom Bosco que exigir dos seus meninos um mínimo de disponibi-
lidade, de colaboração. Não pôde absorver os grupos de pequenos
gângsteres, nem os vagabundos que jamais quiseram entrar numa
igreja. Apesar disso, Dom Bosco continuou a pensar neles, a con-
quistá-los um a um. Ao menos, tentá-lo. Com vitórias e derrotas.
Enforcamento em Alessandria
Naquele ano de 1846, um jovem de 22 anos, de quem Dom Bosco
se tornara amigo, foi condenado à morte junto com o pai.A execu-
ção seria em Alessandria. Quando Dom Bosco, angustiado, foi visitá-
-lo, o moço se pôs a chorar e implorou-lhe que o acompanhasse na
última viagem.
Dom Bosco sentiu faltar-lhe o ânimo. Não pôde prometer.
Os condenados partiram.
O padre Cafasso devia alcançá-los pela diligência postal a fim de
assisti-los nas últimas horas. Apenas soube da recusa de Dom Bos-
co, mandou chamá-lo:
– Não percebe que é uma crueldade? Prepare-se e vamos juntos
a Alessandria.
– Eu não vou conseguir suportar esse espetáculo.
– Ande logo, que a diligência não espera.
Chegaram a Alessandria na véspera da execução. Quando o jo-
vem viu Dom Bosco entrar em sua cela, lançou-se-lhe ao pescoço,
debulhado em lágrimas. Dom Bosco chorou também. Passaram jun-
tos a última noite, rezando e falando de Deus.
Às 2 da madrugada, deu-lhe a absolvição, celebrou para ele a san-
ta Missa na cela, deu-lhe a Comunhão, e fizeram juntos a oração de
ação de graças.
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O sino da catedral tocou à agonia. A porta da cela se abriu. En-
traram os gendarmes e o carrasco, que (como sempre acontecia)
ajoelhou-se e pediu perdão. Em seguida, atou-lhe as mãos e passou-
-lhe o laço no pescoço.
Poucos minutos depois, do portão do cárcere saiu o carro com
o condenado. Junto dele, Dom Bosco. Logo atrás seguia o carro
com o pai, assistido pelo padre Cafasso. Muito povo, em silêncio,
se apinhava nas ruas.
Quando, ao fundo, apareceu o cadafalso com as forcas, Dom Bos-
co ficou branco e desmaiou. O padre Cafasso, que não o perdia de
vista, mandou, rápido, parar as carretas. Fê-lo descer.
O trágico cortejo chegou ao cadafalso e logo se deu a execução.
Quando Dom Bosco voltou a si, tudo havia terminado. Sentiu-se
profundamente envergonhado. Murmurou ao padre Cafasso:
– Lamento por aquele jovem. Confiava tanto em mim...
– O senhor fez o que podia. Deixe o resto para Deus.
Março de 1846. O padre Moretta, excelente sacerdote, se apre-
senta a Dom Bosco.
Trazia nas mãos um punhado de cartas. “Os inquilinos – escreve
Dom Bosco –, atordoados pela gritaria, pelo contínuo rumor do ir
e vir dos meus meninos, declaravam que todos se retirariam se as
nossas reuniões não cessassem imediatamente.”
Dom Bosco teve ímpetos de revolta. Seria possível que ninguém
pudesse suportar os rapazes? Esses adultos, por acaso, não tinham
sido meninos também?
Não sabia para onde ir. Felizmente chegava a primavera. Podia-se
ficar ao ar livre.
OS DIÁLOGOS DE DOM BOSCO – nota
Alguns leitores da primeira edição deste livro fizeram-me gentilmente
observar que “os frequentes diálogos são uma dramatização que dá
vivacidade ao texto, mas prejudica a historicidade, porque são uma
reconstrução, arbitrária”.
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Respondo que esses diálogos frequentes não foram inventados por mim,
nem me parecem “reconstruções arbitrárias”. E dou as razões.
1. As Memórias autógrafas de Dom Bosco, publicadas em 1946, ocupam
bem 238 páginas impressas (edição italiana). Dessas, 106 contêm
diálogos, muitos dos quais longos e pormenorizados. Era o jeito de
narrar de Dom Bosco.
2. Metade da Vida de Mamãe Margarida, escrita pelo padre Lemoyne
enquanto Dom Bosco vivia, é feita de diálogos. O autor escreve: “Pelo
que se refere a Mamãe Margarida, o autor tomou conhecimento
de quanto aqui escreve da mesma boca de Dom Bosco, tendo tido
a fortuna de manter com ele, por seis e mais anos, diariamente,
todas as noites, familiares colóquios;...interrogando-o, às vezes, sobre
aquilo que havia dito anos antes e que eu fielmente havia posto
por escrito, maravilhava-me de ouvi-lo dizer-me as mesmas coisas
e as mesmas palavras de sua mãe, com tal exatidão que parecia
estivesse lendo num livro. O mesmo posso garantir de tantos outros
fatos que teve a bondade de me confiar e que fui juntando para os
meus coirmãos” (Memórias Biográficas, volume I, p. 121). Dom Bosco
pessoalmente corrigiu o pequeno volume, “chorando de comoção”,
dizem as testemunhas.
3. O padre Lemoyne publicou os 9 primeiros volumes (7.700 páginas,
mais ou menos) das Memórias Biográficas, que contam a história de
Dom Bosco até 1870. No prefácio do volume I afirma: “As narrações,
os diálogos, todas as coisas que julguei dignas de memória, são a
fiel exposição literal de quanto as testemunhas nos relataram”. E
no prefácio do volume VIII:“Fazemos questão de repisar que tudo o
que temos escrito e escrevemos é o relato fiel de quanto aconteceu.
Centenas são as testemunhas...muitíssimas das quais deixaram por
escrito o que viram a seu (de Dom Bosco) respeito e ouviram de
sua boca. Até os diálogos conservados e a nós transmitidos são tais
e quais aconteceram na sua presença”. A publicação dos 9 volumes
se deu enquanto ainda viviam os principais protagonistas daqueles
diálogos (desde o padre Rua até dom Cagliero). Os originais foram
revistos pelo padre Álbera (o “Paulinho”, que conviveu com Dom Bosco
desde 1858).Apresentando aos salesianos o IX volume (o padre Leymone
falecera durante a impressão), o padre Álbera escrevia: “Se todos
pudessem conhecer com que diligência o padre Lemoyne recolhia
tais Memórias e com quanto afeto empregava ele os seus dias em tal
trabalho, apreciá-las-iam cada vez mais” (Atos do Capítulo Superior,
24 de abril de 1917).
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4. O padre Bonetti, vivo ainda, Dom Bosco, contou no Boletim Salesiano a
“História do Oratório”, recheada de diálogos. Cada capítulo era revisto
por Dom Bosco, o qual dava tanta importância a essa revisão que, mesmo
durante a viagem à Espanha (1886), exigia que lhe expedissem as provas
tipográficas que depois devolvia com suas observações. O padre Céria,
compilador dos últimos 9 volumes das Memórias Biográficas, confirma,
no prefácio ao volume XII, a maneira típica de Dom Bosco narrar:
Relatando coisas que lhe haviam acontecido, costumava Dom Bosco
repetir perguntas e respostas, segundo a memória lhe subministrava
a lembrança. A seguir, o padre Lemoyne e outros que ouviam e disso
tomavam nota, as reproduziam tais e quais”.
Esses “diálogos de Dom Bosco”, eu os encontrei nas fontes supracitadas. E
parece-me de os ter reproduzido com respeito. Retoquei-lhes apenas, onde
achei oportuno a linguagem oitocentista. E com frequência os condensei.
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20
Agonia no prado, ressurreição no telheiro
Pôde alugar um prado rodeado por sebe a uns 50 passos da casa
Moretta.
Caminhando hoje pela Via Maria Ausiliatrice, vê-se, à direita,
no ângulo com a Via Cigna, uma série de casas que ocupam, uma fai-
xa de terreno junto à Editora SEI (dos Salesianos). Era aí que ficava
o prado dos irmãos Filippi.
Havia, no centro, uma espécie de barracão, onde se guardava o
material dos brinquedos. Ao redor, todos os domingos, desafoga-
vam-se em correrias e jogos 300 rapazes.A um canto, sentado num
banco, Dom Bosco confessava.
Pelas 10, ao rufar de um tambor militar, os jovens se punham em
fila. Ressoava depois a corneta e se encaminhavam à Consolata ou
ao Monte dos Capuchinhos. Aí Dom Bosco rezava a Missa, distribuía
a Comunhão. E dava um lanche.
Certo rapaz, recém-chegado de sua aldeia, Paulo C., servente de
pedreiro, juntou-se um dia à turba dos rapazes que iam ao Monte
dos Capuchinhos. Eis o que ele conta:
Celebrou-se a santa Missa e muitos comungaram; depois, todos saíram para
o pátio do convento, onde tomaram o lanche.
Achei que não tinha direito a esse lanche e pus-me de lado, esperando
juntar-me a eles na hora da volta. Dom Bosco me viu e aproximou-se:
– Como se chama?
– Paulinho.
– Já tomou o lanche?
– Não, senhor. Não confessei nem comunguei.
– Mas não precisa confessar nem comungar para tomar o lanche.
– O que precisa, então?
– Apetite.
Levou-me para perto do cesto. Deu-me pão e frutas à vontade. Desci do
monte com ele e no prado brinquei até escurecer.
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17.7 Page 167

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Daquele dia em diante, por muitos anos frequentei o oratório e o meu
querido Dom Bosco, que me fez tanto bem.
Numa tarde de domingo, enquanto os rapazes brincavam, Dom
Bosco viu do outro lado da cerca viva um rapaz de uns 15 anos.
Chamou-o:
– Venha. De onde vem? Como se chama?
O rapaz não respondia. E Dom Bosco:
– Que houve? Está doente?
Hesitou ainda. Depois, como que despregando os lábios disse
apenas:
– Estou com fome.
O cesto estava vazio. Dom Bosco mandou buscar pão na casa de
um vizinho e o deixou comer em paz. Depois, foi o próprio rapaz
que começou a falar, como para tirar um peso da consciência:
– Sou seleiro. O patrão me mandou embora porque não sei traba-
lhar direito. Minha família ficou na aldeia. Esta noite passada dormi
na porta da igreja. Hoje de manhã, por causa da fome, pensei em
roubar. Mas tive medo. Tentei pedir esmola, mas me diziam: “Tão
forte como é deve ir trabalhar”. Depois ouvi gritos de meninos por
aqui e vim para cá.
– Escute. Por agora e esta noite, deixe comigo.Amanhã iremos fa-
lar com um excelente patrão.Verá que o empregará. Se, depois, nos
dias santos quiser vir ainda aqui, será um grande prazer.
– Virei de boa vontade.
Nos meses do prado Filippi, os “boatos estranhos” que se espa-
lhavam a respeito de Dom Bosco condensaram-se em três sérios
perigos: oposição da autoridade civil, convicção de que Dom Bosco
estava louco (com o consequente abandono dos principais colabo-
radores), perspectiva de fechar tudo em decorrência de um último
licenciamento.
O marquês e os guardas
Aqueles eram anos de revoluções. E 300 jovens, entrando em fila
pela porta da cidade ao som de corneta e tambor, davam que pensar
ao chefe de polícia.“Não se tratava apenas de crianças – escreve o
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padre Lemoyne –, mas também de rapagões robustos, valentes, que
não deixavam de carregar consigo uma inseparável faca.”
O marquês Miguel de Cavour (pai de Camilo e de Gustavo), pre-
feito da cidade e, por isso, chefe de polícia, mandou chamar Dom
Bosco. O colóquio passou das iniciais alusões diplomáticas a uma
situação de total e mútua oposição. Dom Bosco viu-se diante da
brusca imposição de limitar o número de jovens, de evitar fazê-los
entrar na cidade em fila, de excluir os maiores como os mais perigo-
sos. Mas ele recusou. Cavour, então, se pôs a gritar:
– Mas que lhe importam esses vagabundos? Deixe-os em suas ca-
sas. Não assuma tais responsabilidades ou sobrarão dissabores para
todos!
– Eu dou catecismo a pobres rapazes – respondeu, tenaz, Dom
Bosco – e isto não pode trazer infelicidade a ninguém. De resto, faço
tudo com a permissão do arcebispo.
– Ah, o arcebispo sabe destas coisas! Ótimo! Então eu mesmo
falarei com Fransoni, e será ele a acabar com tais tolices.
Dom Fransoni não acabou com nada.Antes, defendeu Dom Bosco.
Daquele dia em diante, ao redor do prado em que jogavam os
seus meninos, guardas policiais começaram a fazer ronda. Dom
Bosco levava na esportiva, mas começou a viver sobre brasas:
achassem a mínima irregularidade, o oratório estaria liquidado. Ca-
vour era uma potência.
Louco, Dom Bosco?
Sem querer, foi o próprio Dom Bosco que deu pretexto para que
se espalhasse o boato de que estava ficando louco. Para levantar o
ânimo dos meninos que deviam mudar-se de um cemitério para um
moinho, de uma pensão para um prado, Dom Bosco começou a
contar-lhes seus sonhos.
Falava de um oratório grande, espaçoso: de igrejas, casas, esco-
las, oficinas, rapazes aos milhares, padres à sua total disposição.
Coisas todas que brigavam com a realidade precária de cada dia.
Os meninos são as únicas pessoas que podem sonhar de olhos
abertos. E acreditavam em Dom Bosco. Repetiam em casa e nos lo-
cais de trabalho os relatos de Dom Bosco. Natural que o povo sim-
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ples dissesse:“Coitado! Já está pirando! Também não é para menos:
com tanto barulho, acabará no manicômio!”.
Não era maldade inventada por alguém, mas um sentir comum.
Lembrava Miguel Rua: “Acabava eu de ajudar à Missa na Fábrica de
Armas e me preparava para sair, quando o capelão me pergunta:
‘Aonde vai?’. ‘Vou lá com Dom Bosco, é domingo’. ‘Não sabe que
está doente? E de uma doença que dificilmente tem cura?’ Tal notí-
cia atravessou-me o coração, causando-me uma dor indizível. Se me
tivessem dito que meu pai estava doente, não teria sentido tanto!
Corri ao oratório e fiquei maravilhado de encontrar Dom Bosco a
sorrir como das outras vezes. ‘Dedicou-se tanto aos rapazes, que
acabou enlouquecendo’ – essa a doença de que se falava naqueles
dias em Turim”.
O padre Borel, seu colaborador, e amigo fraterno, tentou impedir
que Dom Bosco contasse os sonhos:
– Você fala de igreja, de casa, de recinto para o recreio. Mas onde
estão essas coisas?
– Não sei. Mas existem, porque as vejo – murmurou Dom Bosco.
Outro dia, em seu quarto, após inútil tentativa de “fazê-lo racio-
cinar”, o padre Borel desatou a chorar e saiu dizendo:“Coitado do
meu Dom Bosco! Está mesmo fora de si”.
Ao que parece também a Cúria mandou um observador para ve-
rificar o grau de equilíbrio de Dom Bosco. A esta altura, dois de seus
caros amigos, o padre Vicente Ponzati e o padre Luís Nasi, resolve-
ram tirar Dom Bosco daquela situação constrangedora.
Combinaram provavelmente uma visita médica e um acurado
exame no hospital psiquiátrico, a que se poderia seguir o tratamen-
to necessário (na situação médica do tempo: muito semelhante
àquela que se pratica, ainda hoje, nos povoados do interior de países
de quarto ou quinto mundo).
Estava Dom Bosco, uma tarde, ensinando catecismo a um grupo
de rapazes, quando chegou uma carruagem fechada. Dela desce-
ram o padre Ponzati e o padre Nasi. Convidaram Dom Bosco para
dar um passeio.
– Você está cansado. Um pouco de ar puro lhe fará bem.
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– Pois não! Vou pegar o chapéu. Já volto.
Um dos amigos abriu a portinhola.
– Pode subir.
Mas Dom Bosco já havia entendido a cilada:
– Antes os senhores. Obrigado.
Após alguma insistência, os dois, para não deitar tudo a perder,
concordam em subir por primeiro. Apenas dentro, com movimento
rápido, Dom Bosco fecha a portinhola e ordena ao cocheiro:
– Ao manicômio, depressa! Os dois estão sendo esperados!
O manicômio, ou hospital psiquiátrico, ficava ali perto. Os enfer-
meiros, avisados, esperavam um padre, mas veem chegar dois. Foi
preciso que interviesse o capelão do manicômio para libertá-los.
A brincadeira fora pesada. Pensando bem, mais da parte de Dom
Bosco que da parte dos amigos. O padre Ponzati e o padre Nasi, na
hora, ficaram muito magoados. Mais tarde, porém, voltaram a ser
amigos de Dom Bosco. Especialmente, o padre Nasi, que se tornou
o animador da música do oratório.
Entretanto, Dom Bosco foi abandonado por todos. Escreve com
amargura: “Todos se mantinham afastados de mim. Todos os meus
colaboradores me deixaram só, com cerca de 400 rapazes”.
É a hora em que o bom-senso desmorona. Cede. Em Dom Bosco,
ou há o santo ou o louco. Difícil adivinhar. É a repetição variada do
momento em que Francisco de Assis lança as vestes ao rosto do
pai e vai-se, desnudo, dizendo: “Agora posso dizer Pai nosso que
estais nos céus”; do momento em que Cottolengo atira pela janela
as últimas moedas, dizendo satisfeito: “Agora vamos ver se a Peque-
na Casa é obra minha ou de Deus”. Quem pode acusar pigmeus,
aferrados à prudência e ao bom-senso, por tê-los julgado dementes?
A situação era tal forma estranha que o próprio Dom Bosco che-
gou a duvidar dos seus sonhos. Numa conferência feita a 10 de maio
de 1864, posta imediatamente por escrito pelo diácono Bonetti,
Dom Bosco narrou que naqueles dias ele vira em sonho uma casa
ali perto do prado, que seria destinada a ele e a seus rapazes. Na ma-
nhã seguinte, disse sem mais ao padre Borel: “Agora a casa existe”.
Borel convidou-o a ir vê-la. Foi: era uma casa em que viviam mulhe-
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res de conduta duvidosa. Humilhado, Dom Bosco exclamou: “En-
tão são ilusões diabólicas!”. E sentiu-se envergonhado de si mesmo.
Mas o sonho se repetiu por mais duas vezes e Dom Bosco suplicou,
chorando: “Senhor, iluminai-me. Libertai-me destas confusões”. O
sonho, todavia, retornou uma quarta vez. E uma voz lhe disse: “Não
tema. Para Deus tudo é possível”.
Agonia no prado
Por aqueles dias, os donos foram ao prado (tê-los-ia mandado o
marquês?). Curvaram-se para o chão que fora pisoteado sem dó por
800 botinas de todo tipo. Chamaram Dom Bosco:
– Isto vai virar deserto...
– ... uma estrada de chão batido!
– Tenha paciência, meu caro padre. Assim não dá. Dispensamos
o pagamento do aluguel, mas devemos despedi-lo.
Deram-lhe quinze dias para sair.
Para Dom Bosco aquilo foi como um raio: aos acontecimentos
humilhantes daqueles dias se juntava a preocupação de achar logo
outro lugar. Desta vez, porém, não achou nada: quem vai alugar a
um louco?
O dia 5 de abril de 1846, último domingo no prado Filippi, foi
para Dom Bosco um dos dias mais amargos de sua vida.
Foi com os meninos a Nossa Senhora do Campo. Na Missa pre-
gou, mas não teve ânimo de se referir a coisas alegres, nem falou
de repolhos a transplantar. Disse-lhes que os olhava como a passa-
rinhos, cujo ninho alguém quisesse destruir. Convidou-os a rezar a
Nossa Senhora: apesar de tudo, eles estavam nas mãos d’Ela.
Pelo meio dia, tentou uma última vez com os Filippi. Nada conse-
guiu. Deveria então dizer a Deus aos seus meninos?
“Ao cair da tarde desse dia – escreveu –, contemplei a multidão
que brincava. Estava só, sem forças e com a saúde abalada.Afastan-
do-me um pouco dali, pus-me a caminhar sozinho. Não pude repri-
mir as lágrimas e exclamei:‘Meu Deus, dizei-me o que devo fazer’.”
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A humilde cepa de que tudo brotou
Não foi um arcanjo que chegou nesse momento. Foi um homen-
zinho, gago, Pancrácio Soave, fabricante de soda e detergentes.
– É verdade que o senhor procura um lugar para fazer um labo-
ratório?
– Um laboratório, não, um oratório.
– Não sei qual é a diferença. Mas o lugar existe. Venha vê-lo. É
propriedade do senhor Francisco Pinardi, pessoa honesta.
Dom Bosco, sempre na zona chamada Valdocco, percorreu em
diagonal cerca de 200 metros e viu-se diante de “uma casucha de
um só andar com escada e sacada carcomidas pelo caruncho, cer-
cada de hortas, prados e campos”. A pouca distância ficava a “casa
equívoca” que avistara em sonho.“Eu queria subir as escadas, mas
Pinardi e Soave me disseram: ‘Não. O lugar destinado ao senhor, está
aqui atrás’. Era um telheiro.”
Os peregrinos que hoje atravessam o pátio ao lado da Basílica
de Maria Auxiliadora, veem-no ainda lá no fundo, aninhado num
canto de edifícios: é a obscura, humilde cepa da qual se desen-
volveu toda a obra gigantesca de Dom Bosco. Lá está escrito em
grandes caracteres “Capela Pinardi”. Porque agora é uma capeli-
nha, rica de ornatos e pinturas. Reconstruíam-na assim os salesia-
nos, em 1929.
Naquele 5 de abril, de 1846, quando Dom Bosco chegou, era ape-
nas um pobre telheiro, baixo, apoiado sobre o lado norte da casa
Pinardi. Uma paredinha, em todo o redor, transformava-o numa es-
pécie de barracão. Fora construído havia pouco e servira de oficina
a um chapeleiro e de depósito de lavadeiras (ali perto corria um
canal que logo depois desaguava no rio Dora). Media 15 metros por
6 e tinha ao lado dois pequenos quartos.
Dom Bosco esteve a ponto de recusá-lo.
– Muito baixo, não serve.
– Ajeitá-lo-ei como quiser – disse Pinardi. – Escavarei, farei de-
graus, trocarei o pavimento. Mas faço questão que o senhor monte
aqui o seu laboratório.
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– Um laboratório, não; um oratório – repetiu Dom Bosco –, uma
pequena igreja para reunir os meninos.
O equívoco de Pinardi era compreensível: nas vizinhanças dos
rios, construíam-se nesse tempo numerosos laboratórios, oficinas.
Ficou um instante perplexo, mas logo acrescentou:
– Melhor ainda. Sou cantor, virei ajudá-lo. Trarei duas cadeiras:
uma para mim, outra para minha mulher.
Dom Bosco estava ainda indeciso. Depois disse:
– Se me garantir que vai rebaixar 50 centímetros o terreno, aceito.
Não quis mais alugar por mês. Pagou logo 320 liras por um ano
(mais da metade do seu estipêndio no Pequeno Hospital). Podia
dispor do telheiro, e da nesga de terreno ao lado para o recreio dos
meninos.
Voltou correndo para os seus meninos e gritou:
– Novidades, meus filhos! Achamos o oratório! Teremos igreja,
escola e pátio para pular e jogar. Domingo iremos para lá. É na casa
Pinardi!
Era Domingo de Ramos. No domingo seguinte seria a Páscoa da
Ressurreição.
Quando repicaram os sinos
Francisco Pinardi manteve a palavra. Vieram os pedreiros, cava-
ram, reforçaram paredes e telhado. Os carpinteiros renovaram o pa-
vimento, puseram assoalho. Um trabalho impossível em seis dias, se
se esquecer que então o dia de serviço era de doze a catorze horas.
No sábado à tarde a construção estava refeita.
No altarzinho Dom Bosco colocou os castiçais, a cruz, a lâmpada
e um pequeno quadro de São Francisco de Sales.
O dia 12 de abril foi um grande dia: nessa manhã de Páscoa todos
os sinos da cidade repicaram festivos. No telheiro Pinardi não havia
sino. Mas o afeto de Dom Bosco chamava os rapazes para a “baixada”
de Valdocco.
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Ondas de meninos foram chegando... Encheram tudo: igrejinha,
pedaço de terra ao lado, prados em volta. Assistiram, em silêncio
recolhido, à bênção da capela e à Missa celebrada por Dom Bosco.
Depois, apanhando às pressas o pãozinho costumeiro, espalharam-
-se pelos prados. E a alegria explodiu.A alegria de terem, finalmente,
uma casa. Uma casa “só para eles”.
Reconstrução da primitiva casa Pinardi (vista posterior).
A flecha indica onde era a capela (1846)
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21
O milagre dos pequenos pedreiros
Com 5 páginas de suas Memórias, Dom Bosco relembra o “ho-
rário tipo” que, por anos, se seguiu no oratório de Valdocco.
Muito cheio, diríamos hoje. Acho que poucos, em nossos dias,
ousariam propor a meninos de oratório um horário daquele tipo.
“De manhã, bem cedo, se abria a igreja e se começavam as con-
fissões. Duravam até à hora da Missa, marcada para as 8. Muitas
vezes, porém, para satisfazer a todos os que queriam confessar-se,
era retardada para as 9. E até mais.”
Missa, Comunhão, explicação do Evangelho (que depois de al-
guns domingos foi substituída pela narração da História Sagrada):
“depois da prédica, aulas, que iam até o meio-dia”.
Às 13 horas (portanto, Dom Bosco dispunha de uma hora, no
máximo, para o almoço e um breve descanso), às 13 horas, pois,
começava a recreação: bochas, pernas-de-pau, fuzis, espadas de ma-
deira, apetrechos de ginástica. Às 14h30, catecismo. E enquanto os
meninos não estiveram em condições de cantar as Vésperas (o atual
Ofício da Tarde), seguia-se o Terço.Vinha, depois, uma breve prática,
o canto das Ladainhas de Nossa Senhora e a Bênção eucarística.
“Saindo da Igreja, começava o tempo livre.” Alguns continuavam
a aula de catecismo, outros a aula de canto ou de leitura. A maior
parte brincava, correndo e pulando até escurecer.
“Eu me servia daquelas exuberantes recreações para me aproxi-
mar de cada um. Com uma palavra ao ouvido, a um recomendava
maior obediência, a outro maior pontualidade ao catecismo. A um
terceiro sugeria que fosse confessar-se. E assim por diante.”
Era sacerdote
Dom Bosco jogava, fazia de saltimbanco (ele dizia expressamen-
te). Mas, sobretudo, era padre. Precisando, sabia ser gentilmente
decidido. Para demonstrá-lo, conta “um, dentre os tantos fatos”.
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Convidara muitas vezes um rapaz a fazer a Páscoa. Ele prometia,
mas depois não cumpria. Uma tarde, enquanto brincava com en-
tusiasmo, Dom Bosco parou-o e pediu que o acompanhasse até à
sacristia para um trabalho.
Queria ir como estava, em mangas de camisa.­­– Não – disse-lhe eu. – Ponha
o paletó e venha.
Chegados à sacristia:
– Ajoelhe-se aí nesse genuflexório.
– Que deseja de mim?
– Confessá-lo
– Não estou preparado.
– Eu sei. Então se prepare; depois eu o confesso.
– O senhor fez muito bem em fisgar-me assim. Do contrário eu nunca me
resolveria.
Enquanto eu rezava o breviário, ele foi se preparando. Fez uma boa
confissão e deu graças. Daí em diante cumpriu sempre com assiduidade os
seus deveres religiosos.
Adeus no rondò
Ao cair da noite, ia-se mais uma vez à capela para as orações da
noite, que terminavam com um canto. Depois, diante do telheiro,
havia a cena alegre e comovente da despedida.
Saindo da igreja – escreve Dom Bosco –, cada qual repetia mil vezes
“Boa noite!”. Mas ninguém desgrudava dos colegas. Não adiantava eu
dizer:‘Vão para casa, que já é noite. Os pais estão esperando’.Tinha de
deixá-los reunidos, enquanto 6 dos mais fortes faziam, com os braços,
uma como cadeirinha sobre a qual, à maneira de trono, eu era forçado
a sentar. Dispondo-se depois em filas, carregando Dom Bosco sobre
aquele estrado de braços, prosseguiam cantando, rindo e gritando até o
rondò (o cruzamento do Corso Regina, então chamado São Máximo,
com outras ruas).Ali, mais umas loas. Feito depois um profundo silêncio,
podia eu desejar a todos uma boa noite e uma boa semana. Todos, a
uma e a plenos pulmões, respondiam:“Boa noite”. Nesse momento, me
baixavam do trono. Cada qual voltava para sua família, enquanto alguns
dos mais grandinhos me acompanhavam até em casa, meio morto de
cansaço.
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18.7 Page 177

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Muitos daqueles rapazes lhe haviam pedido: “Não me deixe só
durante a semana”. Assim, desde a segunda-feira, os pedreiros das
construções de Turim assistiam a um estranho espetáculo: um pa-
dre arregaçava a batina e galgava os andaimes em meio a baldes de
cal e pilhas de tijolos.Após cumprir seu ministério no hospital, nas
prisões, nas escolas da cidade, Dom Bosco subia até lá para ver seus
rapazes.
Era uma festa para eles. A“família”,à qual à noite retornavam,não
era, em muitos casos, a do pai e da mãe, retidos longe, na aldeia; mas
a de um tio, de um parente ou de um conterrâneo. Era, por vezes, a
do mesmo patrão, que os recebera de acordo com os pais.
Careciam, pois, de mais carinho aqueles rapazes. Era-lhes, assim,
uma festa encontrar-se com um amigo “verdadeiro”, que lhes queria
bem, os ajudava.
E precisamente porque lhes queria bem, Dom Bosco se ficava
também a bater um papo com o patrão. Queria saber qual era o salá-
rio, o tempo de descanso, a possibilidade de guardar os dias santos.
Será dos primeiros a exigir contratos regulares para os seus jovens
aprendizes e a vigiar para que os patrões os observassem.
Visitava seus amigos e procurava outros. “Visitava as fábricas –
testemunhará o padre Rua – onde havia numerosos aprendizes e os
convidava a todos para o seu oratório. Dirigia-se especialmente aos
jovens migrantes.”
Sangue, hemoptise
Dom Bosco, porém, é apenas um homem. E as forças de um
homem, têm um limite. Após o stress da primavera, com a chega-
da dos primeiros calores, sua saúde começa a lhe fugir de modo
assustador. A marquesa Barolo, que muito o estimava, no início de
maio mandou-o chamar. Estava também o teólogo Borel. Pôs-lhe na
frente a quantia enorme de 5 mil liras (oito anos de salário) e disse
de maneira autoritária:
– O senhor tome este dinheiro e vá embora. Para onde quiser.
Contanto que fique em repouso absoluto.
Dom Bosco respondeu:
– Eu lhe agradeço. A senhora é muito caridosa. Mas eu não me fiz
padre para cuidar da saúde.
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18.8 Page 178

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– Tampouco para matar-se. Soube que o senhor escarra sangue.
Os seus pulmões estão se desfazendo. Quanto tempo acha que vai
viver assim? Deixe de ir às prisões, ao Cottolengo. E, sobretudo,
deixe, por um bom pedaço de tempo, os seus meninos. Deixe isso
com o teólogo Borel.
Dom Bosco viu nesse convite uma enésima tentativa de afastá-lo
dos seus rapazes. E reagiu bruscamente:
– Isso nunca aceitarei.
A marquesa perdeu a paciência:
– Se não quer ceder por bem, deverá ceder por mal. O senhor
precisa do meu estipêndio para viver. Agora ouça-me, bem: ou dei-
xa o seu oratório e vai descansar, ou fica, sem mais, despedido.
– Está bem. A senhora poderá encontrar muitos sacerdotes para
me substituir. Mas os meus meninos não têm nenhum. Não posso
abandoná-los.
As palavras de Dom Bosco são heroicas, mas está errado.A mar-
quesa parece torturá-lo, mas está certa. Os meses seguintes irão de-
monstrá-lo: Dom Bosco é um sacerdote santo, mas jovem (31 anos)
e obstinado; não alcançou ainda o sentido do limite. A marquesa, 61
anos, revela-se mais sábia, e é uma santa mulher, porque, após essa
explosiva repreensão, “se pôs de joelhos perante Dom Bosco e (se-
gundo o testemunho do padre Giacomelli, que acrescenta: ‘Comigo
não costumava fazer assim’) pediu-lhe que a abençoasse”.
Em carta que, logo a seguir, confia ao padre Borel (é evidente a
intenção de que a faça chegar a Dom Bosco), a marquesa resume
assim sua posição:
1. Aprovo e louvo a obra de instrução dos rapazes (embora não a
considere oportuna nas proximidades das minhas obras em prol das
jovens periclitantes).
2. Porque acho, em consciência, que os pulmões de Dom Bosco precisam
de repouso absoluto, só continuarei a pagar-lhe o pequeno estipêndio se
ele se afastar de Turim pelo tempo suficiente de recobrar a saúde. Isto me
está muito a peito, porque o aprecio muito.
Se Dom Bosco recusasse, dentro de três meses procuraria um
substituto para a capelania do Pequeno Hospital. Entretanto, por
vias indiretas, faz-lhe chegar a oferta de 800 liras.
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Dom Bosco está, de fato, muito mal: tem, com toda a probabili-
dade, uma infiltração de caráter tuberculoso nos pulmões. Apesar
disso, não deixa de pensar no futuro. Aos 5 de junho de 1846, aluga
três cômodos no andar superior da casa Pinardi, por 15 liras ao mês.
O marquês de Cavour, por sua vez, não deixa de mostrar que está
alerta. Todo domingo expede meia dúzia de guardas para controlar
Dom Bosco.Trinta anos depois,em 1877,este dirá ao padre Barbéris:
Lamento tanto não ter tido uma máquina fotográfica. Como seria bonito
poder rever hoje aquelas centenas de jovens penderem de meus lábios e
6 guardas uniformizados, postados, dois a dois, em três pontos diferentes
da igreja, de braços cruzados, a ouvirem o sermão. Ajudavam-me tanto a
assistir os meninos, embora lá estivessem para me assistirem a mim! Um
que outro enxugava, furtivamente, as lágrimas com o dorso da mão. Seria
bonito tê-los, fotografado de joelhos, no meio dos rapazes, ao redor do meu
confessionário, enquanto aguardavam sua vez de confessar-se. É que eu
pregava mais para eles do que para os meninos: falava do pecado, da morte,
do juízo, do inferno...
“Senhor, não o deixe morrer”
Primeiro domingo de julho de 1846. Depois de um dia estafante
no oratório, sob um calor tórrido, enquanto volta para o quarto no
Refúgio, Dom Bosco desmaia. Carregam-no para a cama. “Tosse,
inflamação violenta, golfadas de sangue pela boca”: palavras que,
com toda a probabilidade, equivalem a “pleurite com febre alta, he-
moptise”. Um complexo de gravíssimas enfermidades para aquele
tempo. E para aquele doente que já cuspira sangue.
“Em poucos dias, fui julgado moribundo.”
Deram-lhe o Viático e a Unção dos Enfermos. Pelos andaimes dos
pequenos pedreiros, pelas oficinas dos jovens mecânicos, a notícia
correu veloz: “Dom Bosco está morrendo”.
Naquelas noites, grupos de rapazes amedrontados acorrem ao
quarto do Refúgio onde Dom Bosco agoniza. Estão ainda sujos do
trabalho, o rosto pingado de cal. Nem comeram para ir a Valdocco.
Choram, rezam:
– Senhor, não o deixe morrer!
O médico proibiu todas as visitas, e o enfermeiro (que a marque-
sa logo pôs ao lado de Dom Bosco) impede que entrem no quarto.
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Os meninos se desesperam:
– Me deixe só vê-lo.
– Não o farei falar.
– Eu só preciso lhe dizer uma palavra.
– Se Dom Bosco soubesse que sou eu que estou aqui, certamente
me faria entrar.
Oito dias ficou Dom Bosco entre a vida e a morte. Houve meni-
nos que, naqueles oito dias, trabalhando sob um sol abrasador, não
tomaram um gole d’água para arrancar do céu a cura de Dom Bos-
co. No Santuário da Consolata, os pequenos pedreiros revezavam-
-se dia e noite. Havia sempre algum de joelhos diante de Nossa Se-
nhora. Às vezes, fechavam-se-lhes os olhos de sono (vinham de 12
horas de trabalho), mas resistiam: Dom Bosco não devia morrer.
Alguns, pela inconsciente generosidade juvenil, prometeram a
Nossa Senhora rezar o Rosário inteiro por toda a vida; outros, de
jejuar a pão e água por um ano.
Sábado. Dom Bosco tem a crise mais aguda. Está sem forças. O
mínimo esforço lhe provoca golfadas de sangue. Nessa noite, mui-
tos esperavam o fim. Mas não veio.
O que veio, ao invés, foi melhora, a “graça” arrebatada a Nossa
Senhora por aqueles meninos que não podiam ficar sem pai.
Num domingo de tarde, pelo fim de julho, arrimando-se a uma
bengala, Dom Bosco encaminhou-se ao oratório. Os rapazes voa-
ram-lhe ao encontro. Os maiores forçaram-no a sentar-se numa ca-
deira de braços, levantaram-no sobre os ombros e o transportaram
em triunfo até o pátio. Aqueles pequenos amigos de Dom Bosco
cantavam e choravam! E chorava também ele.
Entraram na capelinha e juntos agradeceram a Deus. No denso
silêncio que se fez a seguir, Dom Bosco só pôde dizer algumas pa-
lavras:
– Devo a vocês minha vida. Estejam certos: de agora em diante
gastá-la-ei toda por vocês.
Para mim, são as maiores palavras que Dom Bosco pronunciou
em sua vida. É o “voto solene” com que se consagrou aos jovens e
a eles, para sempre. As outras palavras, grandíssimas (verdadeira
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19.1 Page 181

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continuação das que disse aqui), pronuncia-las-á no leito de morte:
“Digam aos meus jovens que os espero a todos no Céu”.
As pouquíssimas forças de que podia dispor naquele dia, Dom
Bosco as gastou em falar em particular com os meninos “e mudar
em coisas possíveis os votos e as promessas que muitos haviam
feito sem a devida reflexão, quando estava em perigo de vida”. Um
gesto de grande delicadeza!
Os médicos prescreveram uma longa convalescença, em repou-
so absoluto. Dom Bosco subiu aos Becchi, à casa de seu irmão e de
sua mãe. Mas prometeu aos meninos:
Pelo cair das folhas, aqui estarei novamente. Em meio a vocês.
“A bolsa ou a vida”
Viajou cavalgando um... jumento.“Bem chacoalhado pelo burri-
nho”, teve de fazer escala em Castelnuovo. Chegou aos Becchi de
noitinha.
No terreiro, a dar-lhe as boas-vindas, a alegria ruidosa dos sobri-
nhos. Os filhos de Antônio (que fizera uma pequena casa na frente
da que habitaram quando meninos) eram cinco: Francisco, de 14
anos; Margarida, de 12; Teresa, de 9; João, de 6; e a Francisca, uma
garotinha muito viva, de apenas 3 anos. José também construíra
para si uma casa na frente da casa dos pais e aí morava com a mãe,
Margarida, e os quatro filhos: Filomena, com 11 anos. Rosa Domin-
gas, com 8; Francisco, com 5; e Luís, que ainda vagia no berço.
Dom Bosco hospedou-se com José. Os ares das suas colinas, o
afeto silente da mãe, as caminhadas cada vez mais longas ao entar-
decer entre parreirais em que as uvas se tingem de púrpura, devol-
vem-lhe a vida e as forças.
De quando em quando escreve ao padre Borel para ter notícias
dos meninos e agradecer ao “padre Pacchiotti, ao padre Bósio, ao
teólogo Vola, ao padre Trivero”, que o vão ajudar.
Numa de suas caminhadas do mês de agosto chega até Capriglio
e está voltando através de pequeno bosque, quando uma voz lhe
ordena duramente:
– A bolsa ou a vida!
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Dom Bosco se assusta. Responde:
– Sou Dom Bosco. Não tenho dinheiro. – E fixa atentamente
aquele homem que aparece do meio das árvores, brandindo uma
foice. Depois, mudando de tom:
– Cortese, é você que quer tirar a vida de Dom Bosco?!
Descobre naquele rosto coberto de barba um rapagão que se
lhe afeiçoara nas prisões de Turim. Também o rapaz o reconhece e
gostaria de sumir...
– Dom Bosco, perdoe-me. Sou um infeliz. – E engolindo soluços,
lhe conta a amarga história de sempre. Ao sair da prisão, a família o
rejeitara. “Até minha mãe me virou as costas. Me disse que eu era a
desonra da família”. Trabalho, nem se fale. Ao saberem que estivera
na cadeia, batiam-lhe a porta na cara.
Antes de chegar a Becchi, Dom Bosco o confessou. Depois lhe
disse: “Agora, venha comigo”. E apresentou-o aos familiares:
– Encontrei este excelente amigo. Hoje vai jantar conosco.
Pela manhã, depois da Missa, lhe deu uma carta de recomenda-
ção a um pároco e a alguns bons patrões de Turim. E o abraçou.
Outubro. Nas longas caminhadas solitárias, Dom Bosco construiu
lentamente o seu projeto para o futuro imediato. Quando voltar a
Turim, irá morar nos cômodos alugados na casa Pinardi. Ali, pouco
a pouco, acolherá jovens que não têm família.
Mas não é conveniente que um padre more sozinho nesse lugar.
Bem perto está aquela “casa equívoca”, isto é, a Casa Bellezza, com
a taberna Giardiniera (Jardineira), onde gente embriagada se fica
a cantar até altas horas da noite. Precisaria que morasse com uma
pessoa que o livrasse de suspeitas e malignidades que não demora-
riam a circular.
Pensou em sua mãe. Mas como fazer para falar-lhe disso? Mar-
garida tem 58 anos e nos Becchi é uma rainha. Como arrancá-la de
sua casa, dos seus netinhos, dos hábitos serenos de todos os dias?
Talvez Dom Bosco se sinta animado a isso pela triste estação que
ameaça os campos. Com efeito, as colheitas de 1846 haviam sido
más. Segundo as previsões, serão piores em 1847.
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19.3 Page 183

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– Mamãe – disse-lhe uma noite, juntando toda a coragem que
tinha –, não gostaria de passar algum tempo comigo? Aluguei três
cômodos em Valdocco, e em breve vou acolher alguns meninos
abandonados. Um dia a senhora disse que, se eu ficasse rico, jamais
poria os pés na minha casa. Agora, ao invés, sou pobre e carregado
de dívidas. Morar sozinho naquele bairro é muito arriscado para um
padre.
Aquela mulher de idade se fica a pensar. Era uma proposta que
não esperava. Com delicadeza, Dom Bosco insiste:
– Não quer ser a mãe dos meus meninos?
– Se acha que esta é a vontade de Deus – sussurra –, eu vou.
Forasteiros e pobres
3 de novembro. Terça-feira. As folhas caíam ao vento de outono.
Dom Bosco partiu de volta para Turim. Levava consigo um missal, o
breviário e... a mãe, que carregava num cesto um pouco de roupa
e comida.
Dom Bosco tinha comunicado, por carta, sua decisão ao padre
Borel. E o “padre baixinho” lhe fora muito gentil: transportara-lhe
os poucos trastes, do quarto do Refúgio para os cômodos da casa
Pinardi.
Os dois peregrinos fizeram a longa viagem a pé. Quando chega-
ram ao Rondó, um padre amigo os reconheceu e foi cumprimentá-
-los. Viu-os cobertos de pó e cansados.
– Oh, Dom Bosco, bem-vindo! Como vai de saúde?
– Muito bem, obrigado. Trouxe comigo mamãe.
– E por que vieram a pé?
– Porque...– sorrindo, esfregou o polegar no indicador.
– E onde vão morar?
– Na casa Pinardi.
– E os recursos?
– !?... A Providência pensará.
– Sempre o mesmo! – murmurou o bom sacerdote, meneando
a cabeça. Tirou do bolso o relógio (então objeto precioso, raro) e
lho deu:
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– Gostaria de ser rico. Faço o que posso.
Margarida entrou por primeiro em sua nova casa: três quartinhos
vazios, esquálidos, com duas camas, duas cadeiras e algumas caçaro-
las. Sorriu e disse ao filho:
– Nos Becchi, era todo o dia aquela luta para por ordem, lim-
par os móveis, lavar as panelas. Aqui poderei descansar um pouco
mais.
Retomaram o fôlego e depois se puseram a trabalhar tranquila-
mente. Dom Bosco pregou na parede um Crucifixo e uma pequena
imagem de Nossa Senhora. E enquanto Margarida preparava alguma
coisa para comer, ajeitou as camas para a noite.
Juntos, mãe e filho se puseram a cantar:
Guai al mondo – se ci sente
Forestieri – senza niente...
(Ai se o mundo nos descobre
Forasteiros, gente pobre...).
Um rapaz chamado Estêvão Castagno ouviu-os cantar. E a notícia
voou de boca em boca entre os jovens de Valdocco:
– Dom Bosco voltou!
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22
Paiol prestes a explodir
Odomingo seguinte, 8 de novembro, foi um dia de festa maior.
Dom Bosco teve de sentar numa poltrona, no meio do prado,
cercado de jovens por todos os lados, e ouvir seus cantos e
votos de saúde.
Muitos daqueles rapazes tinham ido aos Becchi visitá-lo e o for-
çaram a antecipar a volta, propondo-lhe a graciosa alternativa: “Ou
o senhor volta já a Valdocco ou nós transplantamos o oratório para
cá”.
Diante das prescrições do médico, o padre Cafasso era contra
um regresso tão antecipado. Transmitira-lhe também uma palavra
do próprio arcebispo. “Consentiram que eu voltasse ao oratório
– escreve Dom Bosco –, com a imposição de não pregar por dois
anos”. Mas confessa: “Desobedeci”.
Salas iluminadas, cheias de rapazes
A primeira preocupação de Dom Bosco foi a de retomar e am-
pliar as aulas noturnas: “Aluguei mais um quarto. Dávamos aula na
cozinha, no meu quarto, na sacristia, no coro, na igreja. Entre os
alunos havia também verdadeiros moleques: estragavam e revira-
vam tudo. Alguns meses depois, pude alugar mais dois quartos”.
Testemunhas do tempo relembram: “Era um espetáculo
contemplar, de noite, as salas iluminadas, cheias de meninos e
jovens. De pé, diante de cartazes, com um livro na mão; nos bancos,
entregues a escrever; sentados no chão a ensaiar nos cadernos as
letras maiúsculas”.
Os padres Carpano, Nasi, Trivero e Pachiotti voltaram a ajudá-lo.
O caso da “fixação” esvaíra-se durante a doença e longa convales-
cença. Se Dom Bosco tinha ideia fixa, mostrou-se capaz de cuspir
sangue para a realizar.
Entre ele a marquesa Barolo, ficou um pouco de ferrugem. Ine-
vitável, porque ambos podiam dizer:“Viu como eu tinha razão?”.
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A marquesa viu realizarem-se pontualmente as suas previsões: Dom
Bosco ruiu e arriscou-se a morrer; o longo repouso foi obrigado
a tomá-lo como convalescença; e o oratório continuou a marchar
sob a guia do padre Borel. Dom Bosco, igualmente, achou ter tido
razão em não abandonar, por motivo nenhum, o oratório. Em todo
o caso, era impossível que, nesse estado de saúde, pudesse retomar
o trabalho no Pequeno Hospital. Assim, o mútuo empenho, tacita-
mente expirado no mês de agosto, não foi renovado. Dom Bosco
irá ao Hospital apenas uma vez que outra para pregar às meninas
doentes. A marquesa não mais pagará o estipêndio, mas, através do
padre Borel e do padre Cafasso, enviará, até o ano de sua morte em
1864, generosas ofertas “para os seus moleques”.
Tudo isso, porém, não é nada em comparação com os graves
acontecimentos que já pairam no ar. A única coisa verdadeiramente
importante é que Dom Bosco, antes da explosão do grande tempo-
ral político, deu estabilidade ao seu oratório e recobrou a saúde.
O papa Mastai-Ferretti toma o nome de “Pio IX”
Nos primeiros meses de 1846, o célebre jornalista De Boni escre-
via em Turim:
Estou enfarado de passar pelos quarteirões desta cidade quadrada, onde
todos falam baixinho e andam na ponta dos pés. Desprezo o gelo polar
que aqui se acumula em montanhas, estas ruas tão retas quanto oblíquas,
as pessoas, este liberalismo prudente que ouve sermões no domingo e
toda sexta-feira reza o rosário do progresso católico do conde Balbo, que
Deus o abençoe.
De Boni demonstra ter poucas qualidades de profeta. Turim é
um paiol de pólvora prestes a explodir. O conde Balbo representa
aquele liberalismo moderado que, à distância não de anos mas de
meses, vai virar terremoto em toda a Itália.
Em junho desse ano (1846), é eleito papa o cardeal Mastai-Ferret-
ti, um bispo “descomprometido”, de Ímola. Toma o nome do “Pio
IX”. Um homem piedosíssimo e simples. Não é um político, nem
favorável às ideias liberais. Tem, ao invés, um profundo senso de
humanidade. Por isso, põe logo em prática, nos Estados Pontifícios,
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algumas reformas esperadas fazia anos. São interpretadas como “re-
formas liberais”, com todos os equívocos que disso derivam.
Poucos dias depois de sua eleição (17 de julho), não obstante o
parecer contrário de muitos cardeais, concede uma ampla anistia
política. Muitos detentos, culpados apenas de haverem participado
de “movimentos liberais”, foram postos em liberdade.
Para “entender” os presos, visita, com frequência e sem dar-se a
conhecer, a prisão do Castel Sant’Angelo e fala com eles, causando
pânico entre os diretores do cárcere. Para “ouvir” as queixas do
povo, visita, com a mesma estratégia, os hospitais.
Nos meses seguintes, refreia os excessos da polícia. E manifesta
e firme vontade de que a exorbitante diplomacia da Áustria tenha
mais respeito pela independência da Santa Sé.
Na primavera de 1847, concede certa liberdade de imprensa, ins-
titui um Conselho de Estado com a participação de leigos indicados
pelas bases (algo que lembra vagamente um Parlamento). Permite a
formação de uma Guarda Cívica (milícia popular).
Na atmosfera de fervente espera criada pelo livro Primado, de
Gioberti, Pio IX parece aos liberais ser o tão suspirado Pontífice
“neoguelfo”. Exalta-se o papa Mastai como sendo o que vai realizar
a unificação e a independência da Itália em atmosfera liberal. O
entusiasmo se alastra. Aonde quer que vá, Pio IX não pode evitar os
desfiles, as homenagens, os cortejos luminosos.
Não só os liberais “entendem assim” Pio IX. Também propugna-
dores do socialismo e expoentes da “esquerda democrática” pro-
clamam o milagre.Até o poderoso chanceler austríaco, Metternich,
guardião do absolutismo e do conservadorismo, exclama desolado:
“Podia esperar tudo, menos um papa liberal”.
Pio IX não é um papa liberal. Todavia, por quase dois anos, será
forçado pelos acontecimentos e pelas circunstâncias a desempe-
nhar um papel que se presta a equívocos.
No verão de 1847, para premunir-se contra esse “papa liberal”,
Metternich manda ocupar, com uma guarnição austríaca, a cidade
pontifícia de Ferrara. Os liberais interpretam esse passo como a
ruptura definitiva entre a Santa Sé e a Áustria, a fagulha da iminente
guerra da independência. Carlos Alberto oferece o seu exército ao
papa; da América, José Garibaldi põe à disposição de Pio IX a sua le-
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gião de voluntários; de Londres, Mazzini escreve-lhe uma carta com
palavras inflamadas.
Pio IX se torna, assim, a bandeira da liberdade nacional. Nunca
pensara em provocar uma guerra. Foi arrastado pelos acontecimen-
tos. A guerra da independência, justificada em seu nome, já paira
no ar.
O choque de Dom Bosco com os “padres patriotas”
Depois de Roma, é Turim o centro das manifestações a favor de
Pio IX e de seus gestos “liberais”.
O arcebispo Fransoni, rígido conservador, fica perplexo ante os
desdobramentos da situação. Suas suspeitas, quanto à “instrumenta-
lização” do novo papa pelos liberais, são fortes. Outros bispos pie-
monteses, ao invés, os de Fossano, Pinerolo, Biella, estão decidida
e entusiasticamente alinhados com o “novo curso liberal da Igreja”.
Em 1848, quase todos os bispos piemonteses e sardos escreverão
cartas pastorais patrióticas.
“Também Dom Bosco – escreve Pedro Stella –, por volta de 1848,
deve ter tomado parte nas comuns esperanças da Itália na forma
neoguelfa, que aparecia como respeitosa do papa e das antigas
dinastias governantes”. Na segunda edição da História Eclesiástica,
saída no início de 1848, chama o teórico do liberalismo neoguelfo
de “o grande Gioberti”.
“Mas deve ter sido um sentimento de pouca duração”, porque
esse sinal de apreço desaparece nas edições seguintes. “Viria, logo,
o choque com os padres patriotas e abrir-se-ia, irremediavelmente,
um sulco profundo entre ele o padre Cocchi, o padre Trivero e o
padre Ponte.”
Tal choque verificou-se provavelmente quando começou a ficar
claro que muitos liberais queriam apenas “servir-se” do papa para
os seus fins políticos, e especialmente depois da alocução de 29
de abril de 1848, com a qual Pio IX esclareceu definitivamente o
equívoco.
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Raivosas saraivadas de pedras
Enquanto isso, ao lado da “grande história”, desenvolve-se, na bai-
xada de Valdocco, a história humilde de todos os dias: a dedicação
obscura ao bem dos jovens, a luta silenciosa contra as dívidas.
Dom Bosco, que em dezembro de 1846 conseguiu subalugar de
Pancrácio Soave todos os aposentos da casa Pinardi e o terreno cir-
cunstante (710 liras anuais), manda reparar o murinho que cerca
o campo dos jogos e pôr nas duas extremidades um portão e uma
cancela. Assim, os desavergonhados que, aos domingos, invadem a
taberna da Jardineira e outras casas do arredor, não poderão infil-
trar-se no pátio e importunar os rapazes.
Uma parte do prado (onde hoje se vê uma lojinha de objetos reli-
giosos), Dom Bosco transforma-a numa horta. Os meninos a batizam
com o nome de “horta de Mamãe Margarida”. Entre gastos com alu-
guel e auxílio a rapazes, o dinheiro que sobra para comida é sempre
pouco. E aquela mulher do campo trata de economizar, cultivando
alface e batatas.
Nos campos ao redor, aos domingos, encontram-se bandos de ra-
pagões. Jogam a dinheiro, bebem vinho comprado aos garrafões na
Jardineira, blasfemam, xingam os meninos que entram no oratório.
Dom Bosco se aproxima com paciência. É capaz até de sentar no
meio deles e jogar uma partida de cartas. Pouco a pouco, consegue
atrair alguns deles. Mais de uma vez, porém, enquanto explica o
catecismo ao ar livre, os seus meninos devem fugir para a capela,
atacados por furiosas saraivadas de pedra.
Dom Bosco sabia muito bem que os 500 rapazes e meninos que
reunia no seu oratório eram uma insignificância em comparação
com os jovens que vagavam pela cidade, sem fé e, muitas vezes, sem
pão.
O bairro de Vanchíglia, não muito longe de Valdocco, estava in-
festado por bandos de pequenos gângsteres que davam que fazer
à polícia, assaltavam os que voltavam dos mercados rapinando-lhes
bolsas e pacotes, e, com frequência, se defrontavam em horríveis e
trágicas lutas a pedradas, podendo até terminar em facadas.
Passando por esses lugares, algumas vezes Dom Bosco se lan-
ça no meio dos contendores, procurando separá-los “a socos e pes-
coções”. Numa dessas levou uma tamancada no rosto. “Não com
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pancadas”, foi-lhe dito no sonho. Mas também os sonhos têm suas
exceções...
Padre ladrão
Uma das táticas usadas por Dom Bosco para atrair ao oratório
excelentes rapazes é a de entrar numa taberna onde haja rapazes
trabalhando e dizer ao patrão:
– Poderia fazer-me um favor?
– Pois não, reverendo. Se puder.
– Claro que pode. Domingo me mande estes rapazes ao oratório
de Valdocco. Poderão aprender um pouco de catecismo e tornar-se
bons.
– Bem que precisam. Alguns são poltrões, insolentes.
– Isso também não, não é!? Parecem gente fina, não vê?
E aos rapazes:
– Então, estamos entendidos: domingo os espero no oratório,
jogaremos e nos divertiremos juntos.
Com outro tipo de rapazes a tática era diferente. Enquanto o pa-
dre Borel cuidava do oratório, ele girava pelas praças e estradas da
periferia. Grupos de jovens jogavam a dinheiro nas calçadas. En-
quanto as cartas eram manejadas, o dinheiro (às vezes até 15 ou 20
liras) ficava juntado no centro, num lenço.
Dom Bosco estudava bem a situação. Depois, com um movimen-
to rápido, pegava o lenço e saía correndo. Os meninos, apavorados,
se punham a correr atrás dele gritando:
– O dinheiro! Devolva o dinheiro!
Tinham visto de tudo aqueles pobres rapazes. Menos um padre
ladrão. Dom Bosco continuava a correr na direção do oratório, gri-
tando:
– Entrego se me pegarem.Vamos, corram!
Entrava pelo portão do oratório, depois pelo da capela. E os me-
ninos atrás. Nessa hora, no púlpito, estava o padre Carpano ou pa-
dre Borel pregando a uma massa compacta de rapazes. E começava
a encenação.
Dom Bosco fingia ser um vendedor ambulante. Levantava o len-
ço que ainda tinha na mão e gritava:
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– Torrões! Torrões! Olhe os torrões, o doce-delícia da cidade de
Turim!
O pregador fingia perder a paciência:
– Saia daqui, seu patife! Isto aqui não é praça.
– Mas eu preciso vender meus doces! E aqui tem muita gente.
Quem quer torrões?
O diálogo era em dialeto. Os meninos riam que se rebentavam.
Os recém-chegados, ao ouvir aquele bate-boca, ficavam perplexos:
aonde tinham, ido parar?!
Entretanto, os dois continuavam dialogando em tom jocoso e
vivas alfinetadas, levando, pouco a pouco, a conversa para o jogo
a dinheiro, a blasfêmia, a felicidade de viver na amizade de Deus.
Acontecia que os que haviam seguido Dom Bosco começavam tam-
bém a rir e a interessar-se pelos assuntos.
Por fim, começava o canto das ladainhas. Eles, aproximando-se
de Dom Bosco:
– E então, vai nos dar o dinheiro?
– Mais um pouquinho, tá? Depois da bênção.
Quando saíam para o pátio, devolvia o dinheiro, dava-lhes tam-
bém a merenda e fazia-os prometer que “daí por diante iriam brin-
car no oratório”. E muitos cumpriam.
Bêbados: cantos e gritos
Um rapaz daquele tempo, Estêvão Castagno, testemunhava:
Dom Bosco era sempre o primeiro nos jogos, a alma dos recreios.
Não sei como fazia, mas estava em todos os pontos do pátio, no meio de
todos os grupos, Seguia-nos a todos com sua presença e olhar, a nós de
cabelos desgrenhados, que por vezes estávamos sujos e éramos grosseiros,
cabeçudos. Mas ele gostava era de estar com os mais pobres. Para os
mais pequenos tinha um afeto de mãe. Com frequência discutíamos e
brigávamos. E ele a nos separar. Erguia o braço como para bater, mas
nunca nos tocava; afastava-nos, no muque, pegando-nos pelos braços.
José Buzzetti lembrava:
Conheci centenas de rapazes que vinham ao oratório sem instrução
e sentimentos religiosos, e que em pouquíssimo tempo mudavam de
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comportamento. Afeiçoavam-se de tal modo ao nosso oratório que nunca
mais se afastavam dele, frequentando a confissão e a comunhão todos os
domingos.
O que perturbava, especialmente no verão, era a Jardineira, isto
é, a frequentadíssima taberna da casa Bellezza. Da capelinha, onde
era preciso manter portas e janelas abertas, ouviam-se os gritos e os
solos dos que se encharcavam de vinho. Às vezes, as rixas violentas
encobriam a voz do pregador. Algumas vezes, Dom Bosco era obri-
gado a descer do púlpito e, deposta a estola e a sobrepeliz, entrava
na taberna e ameaçava chamar a polícia.
O problema dos colaboradores se tornava cada vez mais urgente.
O padre Borel, o padre Carpano e os demais sacerdotes, aos do-
mingos, tinham com frequência suas próprias incumbências noutro
lugar. Onde achar gente para a assistência, os catecismos, especial-
mente para as aulas noturnas?
Dom Bosco se lembrou de que no sonho “alguns cordeiros se
mudavam em pastores”. Começou a buscar auxiliares entre os pró-
prios rapazes. Fabricou-os para si. Dentre os maiores escolheu os
melhores. Deu-lhes aulas à parte. “Aqueles pequenos professores –
escreve o padre Lemoyne –, 8 a 10 no começo, não só fizeram uma
ótima experiência como também, alguns deles, se tornaram depois
excelentes sacerdotes.”
Também alguns leigos da cidade bem preparados vieram ajudá-
-lo: um ourives, dois quinquilheiros, um droguista, um despachan-
te, um carpinteiro.
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23
“Sou órfão, venho de Valsésia”
Do inverno de 1846-47 Dom Bosco relembra um fato dramático.
Um menino de 14 anos, que fazia tempo frequentava o ora-
tório, foi intimado pelo pai (um taberneiro que se embriagava,
regularmente, todas as noites) a não mais passar o domingo com
Dom Bosco. O rapaz fez de conta que nada ouvira e continuou. O
homem ficou uma fera e ameaçou matá-lo se não obedecesse.
Um domingo, já escuro, regressando do oratório, o menino deu
com o pai superlativamente alto. Esperava-o com um machado na
mão. Levantou-o para ele e gritou:
– De novo com Dom Bosco!
O menino, apavorado, fugiu. O homem saiu atrás, gritando:
– Se pego, mato!
A árvore e a neve
Por sua vez, a mãe, que viu a cena, corre atrás do marido para
desarmá-lo. O jovem, com a velocidade dos 14 anos, chega ao orató-
rio muito antes do pai, mas encontra o portão fechado. Bate deses-
peradamente. Extenuado, vendo que ninguém aparece, sobe numa
grande amoreira que há ali perto. Não tem folhas para escondê-lo,
mas é noite nevoenta.
Ofegante, chega também o bêbado com o machado. Bate pesado
no portão. Margarida, que por acaso vira da janela o menino subin-
do na árvore, alerta Dom Bosco, e vai abrir. O homem se enfia pelo
portão entreaberto, busca a escada e sobe ao quarto de Dom Bosco,
gritando ameaçador:
– Cadê o meu filho?
Dom Bosco enfrenta-o resoluto:
– Não está aqui.
– Sim que está – e vai escancarando portas e armários. – Eu acabo
com ele!
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– Meu senhor – intervém Dom Bosco com energia –, já disse
que não está aqui. E mesmo que estivesse, esta casa é minha, e não
tem nenhum direito de aqui entrar. Ou se retira imediatamente, ou
chamo a polícia.
– Não se preocupe, reverendo. Eu mesmo vou à polícia e terá
que me entregar o meu filho.
– Ótimo! Vamos juntos. Tenho mesmo que dizer algumas coisi-
nhas à polícia sobre o seu comportamento. E esta é uma excelente
oportunidade.
O homem devia ter contas no cartório, porque, resmungando
ameaças, bateu em retirada. Dom Bosco, então, foi com sua mãe até
a amoreira, chamou de mansinho o garoto. Nada. Chamou mais forte:
– Pode descer! Não tem mais ninguém!
Outra vez, nada. Temeram por uma desgraça. Dom Bosco encos-
tou uma escada, subiu e, vendo-o com os olhos esbugalhados de
terror, sacudiu-o. Como que despertando de um horrível pesadelo,
o menino se pôs a gritar, agitando-se violentamente. Pouco faltou
para que ambos despencassem da árvore. Dom Bosco teve de agar-
rá-lo com força, enquanto lhe dizia baixinho:
– Seu pai foi embora. Sou eu, Dom Bosco. Não tenha medo.
Pouco a pouco o pobrezinho se acalmou e se pôs a soluçar. Dom
Bosco convenceu-o a descer e a entrar na cozinha. Mamãe Margari-
da preparou-lhe alguma coisa quente, enquanto Dom Bosco botou
um colchão para que dormisse perto do fogo.
No dia seguinte, para salvá-lo das iras do pai, mandou-o a um ex-
celente patrão numa aldeia vizinha. Só pôde voltar para casa algum
tempo depois.
Foi talvez esse episódio que reavivou uma velha ferida no cora-
ção de Dom Bosco: chegada a noite, alguns dos seus rapazes não
sabiam para onde ir. Acabavam dormindo debaixo das pontes. Ou
nos esquálidos dormitórios públicos. Fazia tempo que pensava em
acolher em sua casa os mais abandonados.
Numa noite de abril de 1847, fez a primeira experiência. A casa
Pinardi, à direita de quem olha, acabava em pequeno palheiro (hoje
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há uma passagem que dá para o grande pátio que fica atrás). Foi aí
que Dom Bosco pôs a dormir meia dúzia de rapazes. Decepção.
Pela manhã, os hóspedes haviam sumido, levando as cobertas que
Mamãe Margarida lhes tinha emprestado.
Poucos dias depois, repetiu a tentativa. Pior: sumiram também
com o feno e a palha.
Mas Dom Bosco não desanimou.
Um rapazinho todo molhado e enregelado
Noite de maio. Chove a cântaros. Dom Bosco e sua mãe acabam
de jantar. Alguém bate no portão. (Seguimos o fio da história pelas
páginas escritas por Dom Bosco.) É um rapaz molhado e enregela-
do, de uns 15 anos.
– Sou órfão. Venho de Valsésia. Trabalho de pedreiro, mas ainda
não achei emprego. Estou com frio e não sei para onde ir...
– Entre – diz Dom Bosco. – Ponha-se ali perto do fogo. Molhado
como está, vai ficar doente.
Enquanto se aquece e enxuga a roupa, Mamãe Margarida prepa-
ra alguma coisa para comer, e depois lhe pergunta:
– E agora, para onde vai?
– Não sei. Quando cheguei a Turim tinha 3 liras, que se foram – e
se põe a chorar, em silêncio. – Por favor, não me mandem embora.
Margarida pensa nos cobertores que já evaporaram...
– Poderia até ficar, mas quem me garante que não me vai sumir
com todas as panelas?
– Oh, não, minha senhora. Sou pobre, mas nunca roubei.
Dom Bosco já havia saído na chuva, à cata de alguns tijolos. Le-
vanta quatro pilhas e sobre elas põe umas tábuas. Pega depois do
seu colchão e o joga por cima.
– Dormirá aqui, tá? E ficará aqui enquanto precisar. Dom Bosco
nunca o irá mandar embora.
Minha boa mãe o convidou a rezar as orações.
– Não sei – respondeu.
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– Rezará conosco.
E assim foi. Fez-lhe depois algumas recomendações sobre a ne-
cessidade do trabalho, da honradez e da religião.
Os salesianos viram, carinhosamente, nesse “sermãozinho” de
Mamãe Margarida a primeira “boa-noite” (umas breves palavras do
diretor da casa) com que se costumam concluir as atividades do dia
nas casas salesianas, e que Dom Bosco julgava ser “a chave da mora-
lidade, do bom andamento e do bom êxito da educação”.
Mamãe Margarida, porém, não parecia muito convencida da efi-
cácia das suas palavras, uma vez que Dom Bosco acrescenta logo
a seguir: “Para que tudo ficasse bem seguro, fechou-se a cozinha à
chave e só se abriu na manhã seguinte.”
Era o primeiro órfão a entrar na casa de Dom Bosco. No fim do
ano, seriam 7. Tornar-se-iam milhares.
O segundo foi um menino de 12 anos, “de família de classe mé-
dia”. Dom Bosco encontrou-o na avenida San Massimo (hoje Regi-
na Margherita). Chorava com a cabeça encostada num olmeiro. Já
órfão de pai, perdera a mãe no dia anterior. O dono da casa, além
de despejá-lo, tomou-lhe os trastes para compensar-se do não paga-
mento da pensão. Dom Bosco o levou a Mamãe Margarida e pôde
colocá-lo como balconista numa casa de negócio. Estabeleceu-se
muito bem na vida, conservando-se sempre amigo do seu benfeitor.
O terceiro foi José Buzzetti, o pedreirinho de Caronno Ghirin-
ghello. Foi o próprio Dom Bosco a convidá-lo, num final de domin-
go, quando se despedia dos outros. Segurou-o pela mão:
– Gostaria de morar com Dom Bosco?
– Gostaria.
– Então falarei com Carlos.
O irmão mais velho, que já frequentava o oratório havia seis
anos, concordou. José, de 15, continuou a trabalhar de pedreiro na
cidade. Mas a casa de Mamãe Margarida tornou-se sua casa.
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O pequeno barbeiro tremia feito vara verde
Depois foi a vez de Carlos Gastini.
Certo dia de 1843, Dom Bosco entrou numa barbearia. A ensa-
boá-lo acorreu um pequeno ajudante:
– Como se chama?
– Carlinhos.
– E quantos anos tem, Carlinhos?
– Onze.
– Bravo. Me dê uma boa ensaboada. E... seu pai, como vai?
– Morreu. Só tenho mãe.
– Oh, coitadinho! – O menino acabara de ensaboar. – E agora,
vamos: pegue a navalha e me faça a barba.
O dono acorre alarmado:
– Pelo amor de Deus, reverendo! O menino não sabe. Ele só sabe
ensaboar.
– Mas um dia terá de começar, não acha? Nesse caso, tanto faz
que comece comigo ou com outro.Vamos lá, Carlinhos.
Carlinhos fez aquela barba temendo como vara verde. Quando
começou a girar ao redor do queixo com a navalha, suava. Alguma
raspada firme aqui, algum pequeno corte ali, mas chegou ao fim.
– Ótimo, Carlinhos – sorriu Dom Bosco. – E agora que somos
amigos, quero que venha visitar-me de vez em quando.
Gastini começou a frequentar o oratório e tornou-se muito ami-
go de Dom Bosco.
Cinco anos mais tarde, no verão de 1847, Dom Bosco o encon-
trou perto da barbearia. Estava chorando.
– Que foi, Carlinhos?
– Minha mãe morreu e o patrão me despediu. Meu irmão mais
velho está no exército. E eu não sei para onde ir.
– Venha comigo! – E enquanto desciam para Valdocco, Carlos Gas-
tini ouviu a frase que tantos jovens haviam de ouvir e que ele jamais
esquecerá –:“Escute, Carlinhos, eu sou um pobre padre. Mas mesmo
que tivesse somente um pedaço de pão, eu o dividiria com você”.
Mamãe Margarida preparou mais uma cama. Carlinhos passou
no oratório mais de cinquenta anos.Alegre e muito vivo, tornou-se
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o apresentador brilhante de todas as festas. Seus números faziam rir
todo mundo. Mas quando falava de Dom Bosco, chorava. Como uma
criança. Dizia: “Me queria muito bem”. Cantava um estribilho que
todos conheciam:
Io devo vivere – per settant’anni,
A me lo disse – papà Giovanni.
(Papai João [Dom Bosco] me disse que vou viver 70 anos.)
Uma das tantas “profecias” que, entre sério e brincalhão, Dom
Bosco fazia aos seus meninos. De fato, Carlos Gastini morreu a 28
de janeiro de 1902; com 70 anos. E um dia.
Para aqueles primeiros rapazes que moravam com ele, Dom Bos-
co transformou em dormitório dois quartos contíguos. Oito camas,
um crucifixo, um quadro de Nossa Senhora, um cartaz com os dize-
res: “Deus te vê”.
Pela manhã, Dom Bosco rezava a Missa que os meninos ouviam
recitando as Orações da Manhã e o Terço de Nossa Senhora. A se-
guir, com um pãozinho no bolso, iam trabalhar na cidade.Voltavam
para o almoço e, depois, para a janta. Sopa em abundância; o se-
gundo prato variava de conformidade com as verduras da horta de
Mamãe Margarida e o dinheiro de Dom Bosco.
Dinheiro! Naqueles primeiros meses tornou-se um problema dra-
mático para Dom Bosco.Até o fim da vida,aliás.Sua primeira colabo-
radora não foi uma condessa. Foi sua mãe: aquela pobre camponesa
mandou vir dos Becchi o enxoval de noiva, o anel, os brincos, o
colar, que até então guardara com carinho e que, desde a morte do
marido, nunca mais havia usado.Vendeu tudo para matar a fome dos
primeiros meninos.
A cabeçada do arcebispo
Aquele esboço de primeira casa salesiana foi chamado por Dom
Bosco “casa anexa ao oratório de São Francisco de Sales”. “Título
significativo – revela Morand Wirth. – Isso mostra que, no pensa-
mento do fundador, o oratório conservava o seu caráter de privi-
légio.”
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Em maio daquele ano de 1847, Dom Bosco fundou entre os ora-
torianos a Companhia de São Luís. Quem nela entrava assumia três
compromissos: dar bom exemplo, evitar as más conversas, frequen-
tar os sacramentos. A Companhia tornou-se, em pouco tempo, um
grupo de jovens empenhados em se ajudarem mutuamente a ser
melhores.
Um mês depois, a 21 de junho, foi celebrada com solenidade a
primeira festa de São Luís, um santinho que Dom Bosco sempre
proporá aos seus meninos como modelo de pureza. Esteve presen-
te o arcebispo, que administrou a Crisma aos que ainda não tinham
recebido.
“Foi nessa ocasião – relembra Dom Bosco – que o arcebispo, ao
receber a mitra na cabeça, esqueceu que não estava na catedral:
levantou um tanto apressado a cabeça e bateu com ela no telo da
capela. Rimos todos: ele e os presentes.” Dom Fransoni sussurrou:
“É preciso respeitar os meninos de Dom Bosco e falar-lhe com ca-
beça descoberta”.
Dom Bosco relembra outro pormenor (muito importante para
ele):
Terminada a função da Crisma, fez-se uma espécie de ata, em que se
anotava quem havia administrado o Sacramento, nome e sobrenome do
padrinho, lugar e data. Depois recolheram-se as fichas, que, separadas
segundo as várias paróquias, foram levadas à cúria eclesiástica para que as
remetesse ao respectivo pároco.
Com esse gesto, o arcebispo aprovou praticamente o oratório
como “paróquia dos rapazes abandonados” e confirmou o seu apoio
a Dom Bosco perante os párocos da cidade, sempre hesitantes a seu
respeito.
Em setembro do mesmo ano, Dom Bosco comprou a primeira
estatueta de Nossa Senhora. Custou 27 liras. Está ainda lá, na capela
Pinardi. Quem entra a pode ver na penumbra, à direita. Os seus garo-
tos a levavam em procissão pelos arredores, quando se celebravam
as “grandes festas” de Nossa Senhora. Os “arredores” eram algumas
casas, a taberna da Jardineira com os costumeiros bulhentos be-
berrões, dois pequenos canais para irrigar os campos e as hortas,
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uma estradinha ladeada de amoreiras (via della Giadiniera) que
atravessava, em diagonal, o atual pátio que ladeia a Basílica de Maria
Auxiliadora.
Distintivos tricolores no pontifical
Nesses meses de 1847 as forças liberais pressionam Carlos Al-
berto para que dê início a um programa de reformas. O rei, porém,
de olho na Áustria, de quem quer se libertar, dá um passo à frente e
outro atrás, mais indeciso que nunca.
Em setembro, o maestro Novaro (trabalhando na rua Rosa Rossa,
10, hoje rua 20 de setembro, 68) compõe a música para um hino que
Goffredo Mameli lhe manda de Gênova. Não é lá uma obra-prima!
Mas aqueles poucos pentagramas, com o título de Fratelli d’Italia
(Irmãos da Itália), se tornarão o hino do Risorgimento italiano.
1o de outubro. À noite, no jardim dos Ripari, em Turim, reúne-
-se uma grande multidão para aplaudir o papa e o rei. Na volta, por
ordem do rei, a multidão é brutalmente dispersada pela polícia.
No mesmo mês, Carlos Alberto demite o conde Solaro della Mar-
garita, que havia doze anos era ministro do Exterior e que personi-
fica a política conservadora e filo-austríaca.
Nos dias seguintes, a polícia dispersa as demonstrações popula-
res que gritam “Viva Pio IX”. O rei faz saber que “está pensando em
reformas, mas quer que o povo fique quieto”.
30 de outubro. Anuncia-se que daí em diante os municípios e
as províncias terão conselhos eleitos pelas bases. Nem todos os ci-
dadãos, entretanto, serão eleitores. Só os proprietários que pagam
impostos, os professores e os que detêm cargos públicos. Ao todo,
2% da população.Abranda-se igualmente a censura à imprensa.
1o de novembro. Carlos Alberto parte para Gênova. Cinquenta
mil pessoas, que cantam e agitam bandeiras, acompanham-no até a
estrada para Moncalieri.
No mesmo mês, Carlos Alberto, Leopoldo da Toscana e Pio IX
firmam os preliminares da Liga itálica, isto é, da união alfandegária
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entre os três Estados. Parece um claro encaminhamento para a “fe-
deração dos Estados italianos”, profetizada por Gioberti.
4 de dezembro. Carlos Alberto regressa de Gênova. Toda a Turim
o recebe com entusiasmo. Os mesmos seminaristas pedem licença
ao arcebispo para participar da manifestação. Dom Fransoni, hostil
a toda a novidade liberal, nega. Oitenta clérigos desobedecem e
misturam-se com a multidão.
O desafio ao arcebispo impele até à provocação. No Natal, du-
rante a Missa na catedral, os seminaristas dispõem-se no presbitério
levando ao peito a insígnia tricolor. A conclusão será o fechamento
do seminário nos primeiros meses de 1848.
Um fogo maravilhoso na sacristia
Nesse dezembro, Dom Bosco não se deixa paralisar pelos gran-
des acontecimentos. Continua a trabalhar com humildade. Os rapa-
zes do oratório já chegam a muitas centenas: o padre Lemoyne diz
800. Vinham até de bairros muito distantes. Dom Bosco, o padre
Borel e o padre Carpano analisaram o fato e chegaram à conclusão
de que precisava abrir um segundo oratório na parte sul da cidade.
A avenida que hoje se chama Corso Vittorio era, então, ladeada
de casas pobres habitadas por lavadeiras. Roupas e lençóis, estendi-
dos quais bandeiras ao vento e ao sol, emprestavam tonalidade cam-
pestre àquela periferia de Turim chamada Porta Nuova. Era ali que
a elegância citadina ia passear nas tardes de domingo e era também
ali que nuvens de rapazes ociosos se reuniam para jogar de guerra.
De acordo com o arcebispo, Dom Bosco alugou da senhora Va-
glienti, por 450 liras anuais, uma casa pequena, um telheiro e um
prado “perto da ponte de ferro”. Depois deu assim a notícia aos
meninos:
Meus caros, quando as abelhas numa colmeia aumentam demais, uma
parte emigra e vai viver noutro lugar. Nós as vamos imitar. Abriremos um
segundo oratório, e faremos uma segunda família. Aqueles que moram
na zona sul da cidade não precisarão mais caminhar tanto: da festa da
Imaculada em diante poderão reunir-se no oratório São Luís, em Porta
Nuova, perto da ponte de ferro.
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O padre Borel benzeu o novo oratório aos 8 de dezembro de
1847.
O padre Carpano foi seu diretor naquele frigidíssimo inverno. Ia
para lá a pé, com um feixe de lenha debaixo da capa para acender
um fogo maravilhoso na sacristia e esquentar-se com os primeiros
meninos.
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24
A febre de 1848
Em 1848 as nações da Europa explodiram como depósitos de
munição. As chamas da revolução alcançaram sobretudo as ci-
dades: Paris (23-24 de fevereiro), Viena (13 de março), Berlim
(15 de março), Budapeste (15 de março), Veneza (17 de março),
Milão (18 de março).
Às barricadas nas cidades seguiram-se guerras e batalhas. Em
poucos meses, toda a Europa estava em chamas.
Houve uma explosão tão geral que, aos 3 de abril, o czar Nicolau
da Rússia se perguntava atordoado: “Que ficou ainda em pé na Eu-
ropa?”. E, desde então, qualquer caótica alteração de coisas chamar-
-se-á, na linguagem comum, “um 48”.
Como sempre, não tencionamos traçar aqui um quadro comple-
to da história italiana e europeia, mas apenas aludir aos aconteci-
mentos essenciais que exerceram profunda influência sobre o fenô-
meno Dom Bosco, especialmente, aos acontecimentos de Turim e
do Piemonte, que condicionaram sua atitude e opções.
Nas barricadas, o liberal, o patriota e o operário
Não se pode compreender o movimento telúrico de 1848, se
não se tiver presentes três elementos principais que se entrelaçam:
as correntes liberais que se batiam por instaurar sistemas constitu-
cionais e representativos em lugar do absolutismo; a aspiração de
cada nação a se libertar do império austríaco; os movimentos ope-
rários que lutavam por uma justiça social maior.
Com palavras mais simples: nas barricadas das várias cidades eu-
ropeias, combatiam, lado a lado, o liberal, que queria a Constitui-
ção; o patriota, que exigia sua pátria independente do estrangeiro;
o operário, que se batia contra o patrão porque o fazia trabalhar
12-14 horas por dia.
O movimento operário lutou principalmente em Paris: com as
barricadas de 24 de fevereiro nos bairros do leste, deu-se a larga-
da ao 48. Foi uma vitória relâmpago. Abatida a monarquia de Luís
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Filipe, viram-se burgueses e operários confraternizarem à sombra
das árvores da liberdade, abençoados por eclesiásticos. Proclamou-
-se o direito ao trabalho, ao dia de serviço reduzido a dez horas, e
abriram-se as “fábricas sociais”.
Mas, quatro meses depois (após graves erros dos operários e a
intolerância da burguesia), houve uma repressão igualmente relâm-
pago. Paris, em que se haviam juntado 140 mil operários, foi toma-
da de assalto pelo general Cavaignac em quatro dias de luta feroz
(23-26 de junho). Repressão violenta, jornada de trabalho revertida
a doze horas.
Será essa repressão que levará os operários a abandonarem os
“socialismos humanitários” e a abraçarem o “marxismo”, mais duro,
mais desapiedado (Marx acabara de escrever o Manifesto comunis-
ta em janeiro).
Na Itália, o movimento operário só tem seguidores nas barrica-
das de Milão. Todo o 48 italiano está, ao invés, dominado pelos
liberais, que exigem dos reis absolutos a Constituição; e pelos pa-
triotas, que pregam a guerra da independência da Áustria. A Áustria
ocupa territorialmente a Lombardia e o Vêneto, e retém sob pesada
tutela muitos outros Estados.
As fases do 48 italiano são três: as Constituições, as insurreições
populares contra a Áustria, a Primeira Guerra da Independência
guiada por Carlos Alberto.
A Constituição se chamará “Estatuto”
Em Turim, 1848 começa com o pensamento na guerra que se
detecta vizinha.Todos falam de política: críticas, projetos, manifes-
tos. A grande novidade são os jornais políticos “livres”, que de mês
para outro se multiplicam em consequência da liberdade de im-
prensa, e exercem na opinião pública importante função diretora.
Jovem diretor do Risorgimento (iniciado a 15 de dezembro de
1847) é Camilo Benso de Cavour, expoente ágil dos liberais.
Em 1º de janeiro sai A Concórdia, da esquerda democrática e
populista, dirigida por Valério. A 26 de janeiro iniciam-se as pu-
blicações da Opinione, de Durando; em junho sairá a impetuosa e
desbragada Gazzetta del Popolo, de Botero; em julho, o Concilia-
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tore, dirigido pelo cônego Gastaldi, futuro arcebispo de Turim; e a
Armonia, de Gustavo Cavour, irmão de Camilo, de nítida inspiração
católica.
30 de janeiro. Notícias de Nápoles dizem que o rei Fernando
outorgou a Constituição; que, em Milão, o povo está a boicotar os
austríacos. O corpo de Decuriões de Turim vai a Carlos Alberto e
lhe pede a Constituição.
Após dias de angústia, Carlos Alberto pensa em abdicar; falta-lhe
ânimo para quebrar o juramento feito há vinte e cinco anos a Carlos
Félix. Mas o príncipe herdeiro,Vítor Emanuel, opõe-se vivamente: o
pai, que até aí não lhe deixou pôr um dedo sequer nos negócios de
Estado, não o pode abandonar em plena borrasca.
7 de fevereiro. Carlos Alberto reúne o Conselho extraordinário
da Coroa e declara-se disposto a examinar um esquema de Consti-
tuição (chamada “Estatuto”) na qual se respeitem a religião e a hon-
ra da monarquia. Mas convida os Decuriões a manterem as praças
desimpedidas das multidões: não admitirá imposições.
10 de fevereiro. Pio IX, em Roma, envia uma proclamação ao
povo que está em plena efervescência. Convida a todos a “não pe-
direm reformas que ele não poderia conceder”, e conclui: “Abenço-
ai, ó grande Deus, a Itália, e conservai-lhe o preciosíssimo dom da
fé”. Os chefes da opinião pública, já decididos a fazer de Pio IX um
instrumento para a guerra contra a Áustria, esquecem “as reformas
não possíveis” e “o dom da fé”, e relançam em toda a Itália somente
as palavras “Abençoai, ó grande Deus, a Itália”.
Essa invocação transmuda-se em bandeira liberal. Em toque de
guerra. Pio IX tenta em vão esclarecer o equívoco e sai-se mal. Talvez
seja esse o momento em que Dom Bosco começa a desconfiar do
movimento neoguelfo e a distanciar-se dos liberais.
Nos dias seguintes chegam a Turim as notícias da outorga da
Constituição em Florença (17 de fevereiro) e o estouro da revolu-
ção em Paris (23 de fevereiro).
Para o dia 27 decide-se organizar uma grande “festa de agradeci-
mento pela promessa do Estatuto”. A vastíssima Piazza Vittorio será
tomada pelas delegações trazidas de todas as partes do Piemonte,
da Ligúria, da Sardenha, da Saboia. Todas as organizações de Tu-
rim são solicitadas a comparecer em massa. O marquês Roberto
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D’Azeglio desce em pessoa a Valdocco, para convidar Dom Bosco
com todos os seus meninos.
Frente a frente, Dom Bosco e o marquês
Nas Memórias,escritas de próprio punho,Dom Bosco reconstrói
o diálogo com o marquês. Com toda a probabilidade, não emprega
as mesmas palavras (passaram-se já vinte e cinco anos). Acredita-
mos, no entanto, tratar-se de um diálogo extremamente importante,
porque Dom Bosco (que sobre ele reflete após tantos anos) nos faz
compreender qual foi, desde aquele tempo, a sua atitude em relação
à política. Reproduzimo-lo, pois em todas as partes essenciais.
– Estava-nos reservado um lugar na Piazza Vittorio ao lado de todos os
institutos, qualquer que fosse o nome, finalidade e condições. Que fazer?
Recusar era declarar-me inimigo da Itália; aceitar significava admitir
princípios que eu julgava de funestas consequências.
– Saiba a cidade (dizia D’Azeglio) que a sua obra não é contrária às insti-
tuições modernas. Isto lhe fará bem: aumentarão as ofertas; a Prefeitura,
eu mesmo, seremos generosos com o senhor.
– Senhor marquês, é meu firme sistema conservar-me estranho a qualquer
coisa que se refira à política. Nem pró, nem contra.
– Que deseja fazer, então?
– Fazer o pouco de bem que puder aos meninos abandonados,
empregando todas as forças para que se tornem bons cristãos, face à
religião, e honestos cidadãos na sociedade civil.
– Está se enganando. Se persistir neste princípio, será abandonado por
todos.
Dom Bosco está convencido exatamente do contrário. Teria sido
abandonado se tivesse mostrado que partilhava atitudes liberais. E
prossegue quase obstinado:
“Me convidem para qualquer coisa em que o padre possa exer-
cer a caridade e me verão pronto a sacrificar vida e haveres. Mas eu
quero ficar, agora e sempre, fora da política”.
Os grupos anticlericais à solta
O cortejo para a Piazza Vittorio foi imponente: 50 mil pessoas
desfilaram pelas avenidas diante do rei a cavalo. O arcebispo recu-
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21.7 Page 207

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sara-se a celebrar Missa e a cantar o Te Deum na igreja da Grande
Mãe de Deus que campeia sobre a Piazza Vittorio. Só permitiu que
se desse a bênção do Santíssimo.
Os clérigos do seminário, contra o arcebispo, desfilaram no cor-
tejo com as insígnias tricolores. Como resposta, logo a seguir, o
seminário foi fechado.
Estas decisões são talvez a gota d’água que fazem transbordar o
vaso do anticlericalismo.
Na noite de 2 março, maltas vandálicas tomam de assalto as ca-
sas dos jesuítas perto da igreja dos Mártires e do Carmo. Quebram
vidraças e arrombam portas.
No dia seguinte, os mesmos grupos assediam, ameaçadoramente,
a casa das irmãs Damas do Sagrado Coração. Quase ininterruptamen-
te, renovam o cerco por sete dias, sempre afastados pela polícia.
Nos dias seguintes, jesuítas e irmãs deixam a cidade.
Os grupos anticlericais continuam os tumultos. Debaixo das
janelas do Colégio Eclesiástico gritam: “Morte ao padre Guala!”.
Tenta-se tomar de assalto o palacete da marquesa Barolo porque se
espalha o boato de que hospeda 15 jesuítas.
4 de março. Perante o Conselho da Coroa, Carlos Alberto firma
o Estatuto. Cessa o poder absoluto do rei. Começa o regime parla-
mentar.
Paradoxalmente, Turim não responde com manifestações de en-
tusiasmo. Continuam e multiplicam-se, ao invés, tumultos raivosos
contra o arcebispo, os padres e os que apoiam o absolutismo.
8 de março. A fim de restaurar a ordem na cidade, organiza-se a
Guarda Nacional. Abrem-se as inscrições na Piazza San Carlo: em
poucas horas se inscrevem 500 cidadãos.
Milão subleva-se e pede ajuda
Nos dias seguintes, explodem notícias importantes. Viena se in-
surgiu e o imperador licenciou Metternich (13 de março). Pio IX
outorga a Constituição (14 de março). Revoluções em Berlim e Bu-
dapeste (15 de março). Depois, as duas mais fragorosas: Veneza se
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levanta contra os austríacos (17 de março) e Milão começa a revolta
contra as tropas austríacas de Radeztky (18 de março).
César Balbo (autor de Speranze d’Italia [Esperanças da Itália])
é nomeado primeiro-ministro por Carlos Alberto. O abade Antônio
Rosmini parte para Roma na qualidade de representante do Pie-
monte junto ao papa.
A 19 de junho chega de Milão o conde Arese, trazendo notícias
e propostas. Na “comissão central” da revolução há forte corrente
republicana contrária a Carlos Alberto. Prevalece, porém a corrente
de Gabrio Casati, amigo do Piemonte. Manda pedir ajuda militar a
Carlos Alberto.
O conselho de ministros e o rei examinam a situação. Decidem,
antes de tudo, enviar tropas à fronteira para protegê-la contra even-
tuais infiltrações austríacas. Uma brigada da guarda do rei parte para
o Ticino.
Em Milão, no entanto, a luta continua. Dia 20, o general Radetzky,
comandante-chefe das tropas imperiais, propõe um armistício.
Recusado. Aos 22, Porta Tosa é tomada pelos homens de Luciano
Manara. Os austríacos abandonam Milão.
Também em Veneza os austríacos foram expulsos. Daniel Ma-
nin, libertado do cárcere, é aclamado presidente da República de
São Marcos.
Pelas ruas de Turim a multidão grita:“Guerra!”.
23 de março. Chegam, ao cair da noite, os representantes de Mi-
lão vitoriosa. Pedem a imediata intervenção do exército, antes que
os austríacos voltem a atacar a cidade. Impõem duas condições: a
adoção da “bandeira tricolor italiana” em lugar da bandeira azul dos
Saboias e o adiamento da entrada do exército piemontês em Milão
para depois de conseguir a vitória.
Guerra à Áustria
O conselho dos ministros decide pela intervenção. Carlos Alber-
to aceita. Declara-se guerra à Áustria. O rei aparece no balcão do
Palácio Real na Piazza Castello e, agitando a bandeira tricolor, saúda
a multidão que grita:“Guerra à Áustria!”.
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A um amigo, naquela noite, Carlos Alberto confiava: “Se não se
declarasse a guerra, perderia o Estado, seria a revolução. Uma vez
proclamada, se não vencermos, arrisco o trono. Mas para isto estou
preparado”.
O general Passalacqua recebe ordem de transpor o Ticino, des-
fraldando a bandeira tricolor com o escudo de Saboia em campo
branco.
24 de março. Na catedral, o arcebispo preside uma função sole-
ne, presentes o rei e o príncipe herdeiro. À saída, dom Fransoni é
vaiado e insultado.
À noite, Carlos Alberto parte com o filho para a frente da batalha
à testa de 60 mil homens. Uma grande multidão se comprime na rua
do Pó e na Piazza Vittorio para aclamá-lo. Parece uma linda festa.
Imponente.
Mas guerra é outra coisa. Nos dias seguintes, partem de Turim
todos os regimentos. São requisitados todos os cavalos para a arti-
lharia, e as carretas. Sem carruagens, a cidade imerge num silêncio
estranho, repassado de medo.
À noite, sob as janelas do arcebispo, os tumultos se repetem. O
ministro do Interior faz-lhe saber que uma sua “ausência da cidade”
por algum tempo seria apreciada. Aos 29 de março, dom Fransoni
parte para a Suíça.
O vigário-geral, seu substituto, determina preces públicas pelos
combatentes. Recomenda aos párocos ajudar as famílias dos chama-
dos às armas. Autoriza os camponeses a trabalharem aos domingos
nos campos dos irmãos que partiram para a guerra.
As autoridades políticas baixam “disposições dolorosas, mas ne-
cessárias”. Os altos funcionários do Estado considerados “reacioná-
rios” (até poucos meses, tidos como os “fidelíssimos” do rei!) são
afastados dos cargos públicos. O mesmo prefeito de Turim, mare-
chal La Tour, foi destituído.
Em Valdocco: batalhas verdadeiras e de brinquedo
Também os meninos respiram guerra. Nos prados que rodeiam
Valdocco acendem-se verdadeiros combates entre os grupos rivais
do bairro de Vanchiglia, de Dora, de Porta Susa. Não são festas: ra-
pagotes, armados de bastões, facões e pedras se pegam para valer.
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21.10 Page 210

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Dom Bosco muitas vezes sai de casa para chamar a polícia e lançar-
-se com ela por entre aqueles violentos.
Certo dia, a pouca distância, vê um rapaz de 15 anos enfiar uma
faca na barriga de outro. Levam-no correndo ao hospital. Morre en-
quanto murmura: “Você me paga!”.
Dom Bosco relembra com amargura: “Aqueles confrontos não
acabavam!”. Algumas vezes, os dois bandos se juntavam para ati-
rar pedras na casa do oratório, pedras que caíam como granizo no
telhado e nas janelas, fazendo tremer de medo José Buzzetti e os
outros rapazes internos.
Para atrair os jovens ao oratório, Dom Bosco aproveitou-se até
do clima de guerra, inventando um novo brinquedo. Um seu amigo,
José Brósio, havia sido bersagliere.19Quando ia a Valdocco, punha
a farda: nesses meses, ela despertava entusiasmo e respeito. Dom
Bosco sugeriu-lhe que formasse entre os meninos um regimento em
miniatura, ensinasse manobras e ações de combate.
Brósio aceitou. Obteve do governo 200 fuzis de velho tipo, cano
substituído por cabo de vassoura. Empunhou a corneta e começou
os exercícios. Marchas, contramarchas, cargas a baioneta, retiradas,
assaltos. O “regimento” dava espetáculos muito aplaudidos e ajuda-
va a manter a ordem até na igreja.
Num domingo de tarde, enquanto muita gente, atraída pelo
toque da corneta, acompanhava entusiasmada as manobras, num
contra-assalto, assistiu-se a um desastre: o exército “derrotado”, to-
talmente desbaratado, acabou encurralado na horta de Margarida.
E mais: perseguido pelos exultantes vencedores, pisoteou alfaces,
salsas e tomates.
A mãe, que assistia ao desastre, ficou muito desgostosa:
– Veja, veja, Joãozinho, o que me aprontaram – murmurou ao
filho ali ao lado. – Estragaram tudo.
“Deixe-me voltar para casa”
Foi provavelmente na noite seguinte que Margarida se viu sem
condições de continuar. Os meninos já estavam dormindo. E ela,
como sempre, tinha diante de si um bocado de roupa para arrumar.
1 Soldado de corporação especial de infantaria para deslocamentos prontos e rápidos (N.T.).
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22 Pages 211-220

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22.1 Page 211

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Deixavam ao pé da cama a camisa rasgada, a calça descosturada, a
meia furada. E precisava fazer rápido, à luz da lamparina, porque, ao
levantar, não tinham outra coisa para vestir. Dom Bosco, ali perto,
ajudava-a, remendando cotovelos, consertando sapatos.
– João – sussurrou a certa hora –, estou cansada. Deixe-me voltar
para os Becchi. Trabalho da manhã à noite, sou uma pobre velha e
esses marmanjos estragam tudo. Não aguento mais mesmo.
Dom Bosco não fez nenhum gracejo “para reanimá-la”. Não disse
uma única palavra. Não haveria nenhuma capaz de consolar aquela
pobre mulher. Fez apenas um gesto: indicou-lhe o Crucifixo sus-
penso à parede. E a velha camponesa entendeu. Inclinou a cabeça
sobre as meias furadas, sobre as camisas rasgadas, e continuou a
costurar.
Nunca mais pediu para voltar para casa. Gastará seus últimos
anos entre aqueles rapazes barulhentos, mal-educados, mas que
precisavam de uma mãe. Seus olhares somente se voltarão mais ve-
zes para o Cristo, para cobrar alento, pobre velha cansada!
Guerra italiana na Lombardia
26 de março. Pelas notícias que chegam, parece que os sonhos
neoguelfos se estejam realizando. Em apoio do exército de Carlos
Alberto “pela libertação da Itália”, partem dos Estados Pontifícios
17 mil soldados com o general Durando e, da Toscana, 7 mil volun-
tários com Montanelli. Parma e Módena declaram com plebiscitos
que querem unir-se ao Piemonte.
6 de abril. Também Fernando, de Nápoles, arrastado pelo entu-
siasmo coletivo, declara guerra à Áustria e confia um corpo expe-
dicionário de 16 mil homens ao general Guilherme Pepe. A guerra
que se trava na Lombardia é “guerra italiana”.
Notícias agradáveis chegam a Turim. O exército vence suas pri-
meiras batalhas em Mozambano e Goito (8-9 de abril), e Garibaldi
parte do Brasil com sua “Legião italiana” (15 de abril).
Em 27 de abril, realizam-se no Piemonte as primeiras eleições
para eleger 204 deputados. Em Turim, Gioberti se elege e Cavour
perde.
30 de abril. Gioberti volta do exílio recebido em trinfo. Julga-se o
homem da Providência. A Câmara dos Deputados toma por sede o
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salão de baile do Palazzo Carignano, o Senado, a grande sala dos Suí-
ços do Palazzo Madama. Gioberti é aclamado presidente da Câmara.
A “esquerda democrática” é chefiada pelos demagogos Valério e
Brofferio, e por Urbano Rattazzi. Começa atacando Carlos Alberto,
chamando-o de “traidor”. Pede a revisão dos processos de “1821”
e de “1831”. Os jornais da esquerda são violentos. Atitudes pelo
menos inoportunas, em plena guerra.
A Corte se apavora, a rainha Adelaide (filha de um arquiduque
austríaco) queima sua correspondência particular. Carlos Alberto,
em campanha, está irritadíssimo.
Sobre os entusiasmos e irritações dos italianos, vem se aproxi-
mando uma ducha de água gelada.
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25
O fim das esperanças
27de abril. Chega a Roma o conde Rignon, enviado de Carlos
Alberto. Pede a Pio IX apoio material e moral para a guerra.
O papa responde que já dera o material enviando Durando
e os 17 mil soldados para as margens do Pó. Quanto ao moral, ele
deve pensar: “Se ainda pudesse assinar Mastai, tomaria da pena e
em poucos minutos estaria feito, porque também sou italiano. Mas
deve assinar Pio IX e o chefe da Igreja deve ser ministro de paz, e
não de guerra”.
Pensa durante dois dias. Dois dias que foram analisados ao mi-
croscópio pelos historiadores. Sem muitos resultados. Parece que,
durante aquelas 48 horas, informações da Áustria e da Alemanha
tenham mostrado massas de católicos revoltados com a Santa Sé, e
o perigo de um cisma.
O fim do equívoco
29 de abril. Em discurso aos cardeais, Pio IX declara que as suas
reformas foram provocadas, não por intenções “liberais”, mas por
sentimentos humanos e cristãos. O propósito de uma “guerra con-
tra os alemães” perturba-o profundamente. Pede a Deus não guerra,
mas concórdia e paz. Declara também que não poderá tornar-se o
“presidente de certa nova república a constituir-se com todos os
povos da Itália”.
Com essas palavras, o papa põe fim ao equívoco que, pelos cla-
mores liberais que o instrumentalizaram e também por algumas
suas incertezas, havia ultrapassado os limites. Ainda que só recuse
a presidência de uma “república” e não de uma “federação de mo-
narquias”, suas palavras são um golpe mortal no sonho neoguelfo.
Logo depois, Pio IX envia uma carta ao imperador da Áustria.
Pede que se permita às terras italianas reunirem-se pacificamente
numa única nação. É um gesto coerente com sua vontade pacífica,
mas peca por ingenuidade. Não leva a nada.
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22.4 Page 214

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Como fulmínea fora a labareda, fulminante foi a reviravolta da
situação. Graves desordens se verificaram no teatro da guerra, bem
como em várias capitais italianas. Leopoldo, da Toscana, e Fernan-
do, de Nápoles, recolhem suas tropas. O rei de Nápoles vai mais
longe: com um golpe de Estado, que provoca sérios embates entre
manifestantes e força pública, dissolve o Parlamento (15 de maio).
Forças napolitanas, sob o comando de Pepe, e forças papais, sob
o comando de Durando, continuam com Carlos Alberto como tro-
pas voluntárias, flanqueadas pelos universitários da Toscana.
30 de maio é o último dia radioso para Turim. Chega a boa no-
tícia da vitória de Goito e da rendição de Peschiera. Ruas emban-
deiradas, janelas iluminadas. Grita-se: “Viva Carlos Alberto, rei da
Itália!”.
Mas logo depois, sucedem-se os dias amargos. Radetzky expugna
Vicenza. Ocupa Pádua, Treviso e Mestre.
A guerra começa a pesar sobre a vida de Turim. Os negócios pa-
ram. O dinheiro não circula. Muitas lojas fecham. São numerosos os
desocupados. Há greves de sapateiros e alfaiates. Protesta-se contra
os salários muito baixos.
Acresce a tudo isso o alarmante boato de que a capital será trans-
ferida para Milão: uma Turim sem Corte, sem repartições adminis-
trativas, equivale a uma cidade meio desempregada. Apavorados
estão outrossim os donos de habitações, que, nos últimos anos, em-
penharam na construção todos os recursos e se veem onerados por
uma hipoteca global de 637 milhões.
Marmita e rancho no oratório
Neste clima de pobreza geral, também no oratório de Valdocco
se aperta o cinto. Quando os pequenos trabalhadores que moram
com Dom Bosco voltam ao meio-dia, dirigem-se com a marmita
à cozinha para receber o “rancho”. A panela que ferve no fogo
contém arroz e batata, massa e feijão, ou uma mistura “nutritiva”
aconselhada em tempos de guerra: castanhas secas cozidas com
farinha de polenta.
Quem distribui a sopa é Dom Bosco que a condimenta com pa-
lavras lépidas:“Honre o cozinheiro”,“Coma bastante que deve cres-
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22.5 Page 215

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cer”,“Gostaria de dar-lhe um pedaço de carne, mas não tenho. Dei-
xe estar: o dia em que encontrarmos uma vaca sem dono, faremos
uma festa de arromba”.
A sobremesa é com frequência uma fruta, uma maçã. “Uma” só
mesmo. Dom Bosco a joga para o ar com alegria. E quem pega, pega.
O barzinho, para todos, é a bomba que “jorra água fresca, boa,
abundante”.
Na mesa, enquanto comem, sobe, fazendo-se anunciar, alguma
das galinhas de Mamãe Margarida: vai bicar a sua parte de migalhas.
A casa não fornece o pão. Todas as noites Dom Bosco dá a cada
um 25 centavos para que o comprem. Motivo: os gostos e a saúde
são diferentes. Quem tem bom estômago e gostos fáceis de con-
tentar compra um bom punhado de bolachas de soldado. Outros
preferem pão normal, duro ou mole.
Depois do almoço (e depois da ceia, que é cópia-carbono do al-
moço), cada qual lava sua marmita e guarda a colher no bolso.
Quem tem apetite exacerbado, antes do almoço vai à horta de
Mamãe Margarida e pega alface. Com óleo e vinagre, comprados
com economias, prepara a salada.
Tempos difíceis! Cada rapaz valoriza ao máximo todo o centavo.
A arte de se virar se difunde. Certo rapaz vende o próprio colchão
por quarenta centavos (mas Dom Bosco chega a tempo). Para eco-
nomizar os centésimos do barbeiro, é Mamãe Margarida quem corta
o cabelo. “O corte feito a tesoura deixou-me escadinhas – lembrava
o doutor Frederico Cigna. – Queixei-me disso. A santa mulher res-
pondeu: Essas são escadinhas que levam para o Céu.”
Não ter com que matar satisfatoriamente a fome dos próprios
meninos (ainda que se usem alegres palavras) é um grande sofri-
mento. Entretanto, não foi esse o maior sofrimento de Dom Bosco
nesses meses.
A fidelidade ao papa e aborrecimentos
Após o discurso de Pio IX,
não devem ter faltado – escreve Pedro Stella – momentos de grave tensão
entre os padres da primeira linha na obra da juventude: de um lado, o
padre Cocchi e o padre Ponte; de outro, Dom Bosco. Em todos, porém,
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22.6 Page 216

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devia estar um vivo sentido do delicado momento que atravessava a Igreja
turinense. Especialmente naquela hora, os padres patriotas sentiram
como imprescindível, para o êxito da religião, seguir o “povo” em suas
aspirações de unidade.
Dom Bosco, ao invés, julgou indispensável, antes de tudo, a fide-
lidade ao papa. (Aos rapazes que, até então, haviam gritado “Viva
Pio IX!” aconselhou a gritar “Viva o papa!”.) As suas já fortes dúvi-
das a respeito da ação dos liberais aumentaram.
Hoje, a mais de um século de distância, sabemos dos historiado-
res que a unificação da Itália foi uma grande conquista, mas que,
por certo, não se realizou da melhor maneira. O Risorgimento foi
um fenômeno de burguesia e de classe média. O povo mesmo só
participou em algumas cidades. A grande massa camponesa, que
constituía 70% da população, esteve alheia, senão mesmo contra.
Dom Bosco era um camponês. E sentia uma instintiva aversão
por esses “movimentos”, pilotados por advogados astutos e por po-
líticos intrigantes para os quais o “povo verdadeiro” só era chama-
do a dar o próprio sangue nos campos de batalha. A guerra para ele
era um castigo de Deus e uma ruína para o povo humilde. E nada
mais.
Talvez por ver assim as coisas, Dom Bosco tenha mostrado al-
guns limites. Mas demonstrou, igualmente, enxergar muito longe.
Especialmente no orientar sua obra nascente, escolheu o caminho
(fidelidade ao papa, nenhuma ligação com partidos) que permitiu
ao seu modesto oratório vir a transformar-se numa Congregação
mundial. Fazer a história com suposições é jogar na loteria; mas es-
tamos convencidos de que se Dom Bosco tivesse ido à rua com os
seus rapazes desfraldando a bandeira tricolor, hoje falaríamos dele
como de um bom vice-pároco da periferia de Turim.
Na ocasião, o ter-se acastelado na fidelidade ao papa acarretou-
-lhe muitos dissabores. Apesar da sua proibição, dois padres que tra-
balhavam no oratório São Luís levaram os meninos, com bandeiras
e insígnias, às demonstrações políticas. E transformaram as prédi-
cas em fervorosos comícios. Dom Bosco teve que discutir com eles.
Coisa pior aconteceu em Valdocco, Um ajudante de Dom Bosco
fez um sermão em que “liberdade, emancipação, independência”
ressoaram durante todo tempo da pregação.
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22.7 Page 217

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Eu estava na sacristia – escreve Dom Bosco –, impaciente de pôr fim à
desordem. Mas o pregador, apenas terminada a bênção, convidou padres e
jovens a se juntarem a ele. E, entoando, a plenos pulmões, hinos nacionais,
fazendo ondear freneticamente as bandeiras, foram em desfile rumo ao
Monte dos Capuchinhos. Lá fizeram promessa formal de só voltarem ao
oratório se fossem recebidos com todas as honras nacionais.
Segundo o padre Lemoyne, o oratório de Valdocco ficou quase
deserto por vários domingos. De 500, os jovens baixaram a menos
de 100.
Nenhum dos padres tentou voltar. Os meninos, ao contrário, pediram
desculpas, alegando terem sido enganados. Prometeram obediência e
disciplina. Mas eu fiquei só – escreve com amargura Dom Bosco –, com
quase 500 meninos. O único a dar-me ajuda, quando pôde, foi o padre
Borel. Não sei como pude aguentar aquele ritmo desgastante de trabalho.
O padre Lemoyne observa que os maiores não mais voltaram e
que, depois disso, a idade média dos meninos baixou muito.
Notícias dramáticas
A segunda metade de 1848 foi um suceder-se de notícias dra-
máticas. Em junho, os levantes de Praga e Paris foram sufocados
com canhões. De 23 a 26 de julho, deu-se, nas alturas de Custoza,
o choque decisivo entre austríacos e piemonteses. A derrota de
Carlos Alberto foi tão grave que até se tornou impossível organizar
a defesa de Milão.
Chegando a Turim em 29 de julho, a notícia provocou graves
tumultos. A Guarda Nacional teve de ocupar a Piazza Castello. A
1o de agosto ordenou-se a mobilização de 56 batalhões da Guarda
Nacional. Uma comissão presidida por Roberto D’Azeglio assumiu
o encargo de manter a ordem.
Os tumultos continuaram longe do centro da cidade. Tomavam-
-se como alvo especialmente as casas dos nobres e dos eclesiásticos.
No dia 6 de agosto, Gioberti correu ao quartel-general do rei e
esconjurou-o a não assinar o armistício. Mas, a 9 de agosto, Carlos
Alberto, convencido de que o exército não estava em condições de
combater, deu ordem ao general Salasco para o firmar. Era o reco-
nhecimento da derrota, o fim das esperanças.
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22.8 Page 218

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Em Turim, os políticos se enfurecem contra a incapacidade dos
chefes e as artimanhas dos padres. Convidam secamente a inqué-
ritos parlamentares, à punição dos culpados. A capital estava agi-
tada. “Foi necessário – escreve Francisco Cognasso – adotar me-
didas drásticas: mudança de governo; proibição de vender jornais
pelas ruas, de afixar declarações políticas, de fazer reuniões a céu
aberto.”
Tiros na capela Pinardi
A respeito desses meses escreve Dom Bosco: “Julgavam legíti-
mos todos os insultos contra o sacerdote e contra a religião. Fui,
várias vezes, assaltado em casa e na rua. Um dia, enquanto dava
catecismo, uma bala de arcabuz (velho fuzil) entrou por uma janela
e varou-me a batina entre o braço e as costelas, indo fincar-se na
parede”. Estava na capela Pinardi e os meninos ficaram assustados
com o disparo repentino. Coube a Dom Bosco (ainda abalado pelo
tiro, que o poupara por muito pouco) reanimá-los, levando a coisa
na esportiva:
– Uma brincadeira um pouco pesada. Sinto muito pela batina,
que é a única que tenho. Mas Nossa Senhora nos quer bem.
Um menino arrancou o projétil da parede: era uma grosseira bo-
linha de ferro.
“Outra vez, em pleno dia, enquanto eu estava no meio de uma
multidão de rapazes, um sujeito veio a mim com longa faca na mão.
Foi milagre se, correndo desabaladamente, pude fugir e salvar-me
no quarto. Também o teólogo Borel escapou, por milagre, de um
tiro de pistola.”
Eram muitos os jornais que alimentavam o ódio contra os sacer-
dotes. Saíram manchetes também contra Dom Bosco: “A revolução
descoberta em Valdocco”, “O padre de Valdocco e os inimigos da
Pátria”.
Trabalhar para formar padres diferentes
Esse anticlericalismo infeccioso não só afligiu Dom Bosco.
Levou-o também a pensar.
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22.9 Page 219

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Levantava-se – escreve ele – um espírito de desvario contra as Ordens
e Congregações eclesiásticas e, em geral, contra o clero e todas as
autoridades da Igreja. Tal brado de furor e de desprezo pela religião
afastava a juventude da moralidade, da piedade e, consequentemente, da
vocação ao estado eclesiástico.
É justamente aí que Dom Bosco vê o perigo mais grave: a esteri-
lização das vocações sacerdotais. Dom Bosco prefere pôr-se o pro-
blema “Que posso fazer para ajudar as vocações” a perder tempo
lamentando a tristeza dos tempos.
Parece-lhe que o povo é contra os padres não porque eles não
participam da guerra pela independência, mas porque grande parte
do clero “não é do povo”. As vocações provêm de famílias nobres
e senhoris ou, pelo menos, abastadas. Os protagonistas da nova era
que está começando (para além do Risorgimento) são, ao invés, os
trabalhadores.
Se esta é a causa, a solução do problema será bem diferente da de
participar da batalha de Novara (como tentará fazer o padre Cocchi).
Nesse tempo – escreve –, Deus deu a conhecer de maneira bem clara que
novo gênero de milícia Ele queria escolher: não mais dentre as famílias
abastadas. Os que manejavam a enxada ou martelo é que deveriam ser
escolhidos para entrar nas fileiras dos que se destinavam ao sacerdócio.
Um clero proletário.
E Dom Bosco se põe logo a trabalhar nessa linha com os meios
modestos que tem.
Dentre as centenas de jovens que vão ao oratório, escolhe 13 e
convida-os a fazer um pequeno curso de Exercícios Espirituais. Os
rapazes ficam na casa de Dom Bosco o dia inteiro. Só à noite, “não
havendo cama para todos, uma parte vai dormir com a família”.
Nesses dias, Dom Bosco se empenha em “estudar, conhecer, es-
colher alguns indivíduos” que dêem esperança de vocação. “A cal-
ma desses dias – anota Lemoyne – constratava com a grandíssima
agitação que reinava na cidade.”
Dentre os 13, no ano seguinte, separará os 4 melhores e conti-
nuará a experiência.
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22.10 Page 220

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“Assim – escreve –, enquanto se desenrolam graves acontecimen-
tos, que iriam mudar o aspecto político da Itália e talvez do mundo,
o nosso oratório ia-se consolidando.”
Trágicas notícias de Roma
18 de agosto. Voltam a Turim os primeiros regimentos derrota-
dos. É claro que não há festa pelos ares, mas o povo acolhe com
simpatia aqueles soldados exaustos, cobertos de pó.
15 de setembro. Volta o rei. Recepção fria, melancólica. Boatos
estranhos circulam pela cidade: chegam tropas francesas com as
quais se retomará a guerra; o rei está para abdicar; vai rebentar
uma revolução.
11 de outubro. Carlos Alberto nomeia primeiro-ministro o gene-
ral Perrone, o ex-condenado à forca de 1821. Outro “condenado à
morte” de 1834, José Garibaldi, tenta ações de corsário contra os
austríacos no Lago Maggiore. Continuam as agitações na cidade e
na Câmara (onde a esquerda quer a retomada da guerra).“À noi-
te – escreve Cognasso –, os genoveses da brigada Saboia deixam
os quartéis e vão tumultuar a Piazza Castello:Viva o rei! Viva a re-
pública! Viva a paz! Viva a guerra! Estamos mal-alojados! Estamos
mal-alimentados!”
Em meados de novembro, chegam de Roma, trágicas notícias.
Pellegrino Rossi, moderado primeiro-ministro de Pio IX, fora as-
sassinado pela multidão. A “praça” impõe ao papa convocar uma
Constituinte e participar da guerra contra a Áustria.
Uma corja de fanáticos percorre as ruas de Turim, gritando:
“Abaixo Pio IX! Abaixo os ministros retrógrados! Viva o assassino
de Rossi! Guerra! Guerra!”.
O medo começa a alastrar-se. Medo de que comece a revolu-
ção, que se repita o “terror” jacobino.
Quando novembro termina, chega de Roma a notícia de que
Pio IX fugiu: simulando ceder à imposição da “praça”, disfarça-
do de simples sacerdote, refugiou-se no Reino de Nápoles, em
Gaeta.
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23 Pages 221-230

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23.1 Page 221

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Carlos Alberto, sob o impulso dos círculos democráticos e das
demonstrações de rua, aceita a demissão de Perrone e nomeia Gio-
berti primeiro-ministro. Aos 30 de dezembro, dissolve a Câmara e
marca novas eleições.
O ano de 1848, que alvorecera no entusiasmo das esperanças,
transmonta, na Itália, por entre as névoas da incerteza. Nos outros
países, acaba sob o ferro e o fogo da repressão. Depois de Paris e
Praga, também Viena é expugnada pelos canhões de um general.
Em dezembro, suprime-se o Parlamento de Berlim.
Dois sinais de esperança em Valdocco
Na baixada de Valdocco, onde a névoa se adensa com a chegada
do inverno, Dom Bosco acolhe com humildade dois sinais de espe-
rança.
Pela primeira vez, um rapaz do oratório veste o hábito de clérigo.
Chama-se Ascânio Sávio, um seu conterrâneo. Frequentara o orató-
rio desde quando a sede estava perto do Refúgio. Deveria entrar no
seminário, mas o de Turim está fechado e o de Chieri vai fechar. A
Cúria arquidiocesana permite-lhe fazer a vestidura no Cottolengo e,
depois, ficar no oratório para ajudar Dom Bosco.
Não ficará para sempre. Depois de quatro anos, irá para o semi-
nário e será padre diocesano. Mas dirá de Dom Bosco: “Eu o amava
como se fosse meu pai”. E Dom Bosco escreverá dele: “Confiei-lhe
logo uma parte da assistência, dos catecismos, e a direção de várias
coisas. Comecei, assim, a me aliviar um pouco”. Foi o primeiro cor-
deiro que se tornou pastor.
O segundo acontecimento foi de caráter completamente dife-
rente.
Celebrava-se no oratório uma festa solene. Várias centenas de
jovens haviam-se preparado para receber a Comunhão. Dom Bosco
celebrou a Missa, convencido de que no tabernáculo havia, como
sempre, uma âmbula cheia de hóstias consagradas. Ao contrário, es-
tava praticamente vazia. José Buzzetti, encarregado da sacristia (do
que não estava encarregado aquele rapaz?), tinha-se esquecido de
preparar outra âmbula. Quando se lembrou, era tarde.
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23.2 Page 222

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Chegada a hora, os jovens começaram a apinhar-se na balaustra-
da para receber a Comunhão. Dom Bosco verificou, penalizado, que
deveria mandá-los de volta aos seus lugares. Não podendo resignar-
-se, começou a distribuir aquelas pouquíssimas hóstias que estavam
no fundo da âmbula.
E eis que, com grande maravilha sua e do pobre Buzzetti (que
segurava a patena), as hóstias não diminuíram. Deram para todos.
Assombrado, José Buzzetti contou o fato aos seus colegas.Voltou
a relatá-lo ainda em 1864 (dezesseis anos mais tarde) aos primeiros
salesianos. Dom Bosco, presente e sério, confirmou:
Sim, havia poucas partículas na âmbula e, apesar disso, pude dar a
Comunhão a todos os que se apresentaram à sagrada Mesa, e não eram
poucos. Estava comovido, mas tranquilo. Pensava: a consagração é um
milagre maior que o da multiplicação. Mas, por tudo, seja louvado o
Senhor.
Enquanto a Itália era sacudida por acontecimentos clamorosos,
Deus multiplicava, silenciosamente, a sua presença entre os jovens
de um pobre sacerdote, num canto perdido da periferia de Turim.
Um sinal misterioso. Mas cheio de luz.
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23.3 Page 223

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26
Dom Bosco, a política, a questão social
Em 1848 Dom Bosco teve o primeiro choque dramático com a
política. E escolheu uma linha que deixará em herança aos seus
primeiros salesianos.
Resumi-la-á muitos anos depois, dizendo ao bispo de Cremona,
dom Bonomelli: “Percebi que, se quisesse fazer algum bem, devia
deixar de lado toda política. Guardei-me sempre dela e assim pude
fazer alguma coisa sem obstáculos; antes, encontrei ajuda onde me-
nos esperava”.
A política do Pai-nosso
Após refletir longamente sobre a atitude de Dom Bosco, não só
durante os acontecimentos de 1848, mas também em tantos outros
momentos carregados de política e de grande política, parece-nos
poder esquematizá-la assim.
Primeiro. Dom Bosco está convencido da “relatividade” da
política das partes, dos partidos. Considera-a um componente
muito variável da vida (Perrone se torna primeiro-ministro daquele
mesmo rei que o queria enforcar; La Tour, fidelíssimo de Carlos
Alberto, é por ele próprio licenciado porque “não era mais
confiável”...). Dom Bosco afirma decidido: “Nunca um partido
me fará seu”. Por conseguinte, ele se apoiará em bases bem mais
sólidas, que a direita e a esquerda, isto é, as almas para salvar, os
jovens pobres para alimentar e educar. É a isso que ele chama de
“política do Pai-nosso”.
Segundo. Algum estudioso fez notar que Dom Bosco, embora
professando-se fora da política, de fato fez bastante política e quase
sempre do lado dos conservadores, dos pró-austríacos, se ao termo
não se der um sentido deturpado e se quiser somente afirmar que
Dom Bosco, muita vez, olhou para a Áustria com simpatia.
No seminário, como fizemos notar, ele fora formado no conserva-
dorismo e habituado a ver a Áustria como protetora do papa. E isso,
não em livros de política, mas em encíclicas e discursos do papa.
222

23.4 Page 224

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Era, portanto, natural que tomasse essa atitude. E, provavelmente,
nem a considerasse uma atitude política; apenas uma questão de fé.
Ou, ao menos, de fidelidade ao papa. Exatamente como, em 1948,
muitos católicos olharam com simpatia para os Estados Unidos: não
porque compartilhassem sua política, ou seu racismo contra os ne-
gros, mas porque viam naquele país a única defesa da “civilização
cristã” contra a União Soviética de Stálin.
Além disso, Dom Bosco conhecia muitos liberais e democratas
turinenses, não mitificados como os apresentam hoje os livros de
história, mas como era na realidade da crônica cotidiana: matreiros,
intrigantes, de retidão duvidosa (pense-se apenas num tipo sinistro
como Brofferio).
Terceiro. Por vezes, não obstante a vontade de fazer a “política do
Pai-nosso”, era inevitável que uma pessoa como Dom Bosco devesse
pronunciar-se, alinhar-se. Nesses casos, Dom Bosco se alinha com o
papa. Isto é, adota a opinião do papa.
Na crônica do padre Bonetti (7 de julho de 1862), leem-se estas
suas palavras:
Hoje encontrei-me, numa casa, rodeado por um grupo de democratas.
Após falarmos de coisas indiferentes, a conversa caiu sobre questões
políticas do dia. Aqueles liberalões queriam saber o que achava Dom
Bosco da ida dos piemonteses a Roma (estava-se a oito anos da Porta
Pia).1 Respondi decididamente: eu estou com o papa, sou católico,
obedeço ao papa cegamente. Se o papa dissesse aos piemonteses “Vinde
a Roma”, eu também diria: “Ide”. Se o papa diz que a ida dos piemonteses
a Roma é um roubo, então eu digo o mesmo... Se queremos ser católicos,
devemos pensar e crer como pensa e crê o papa.
Antes mesmo de refletir, antes mesmo de expor a sua mentalida-
de, Dom Bosco está com o papa. Em 1847-48, Dom Bosco simpa-
tiza por algum tempo com os neoguelfos: não porque esteja con-
vencido de que é isso é o melhor, mas porque lhe parece que essa
seja a atitude do papa. Depois da alocução de 29 de abril de 1848,
volta a ser conservador, não porque aquela seja a sua mentalidade,
mas porque este é o pensamento do papa. Se o papa muda, muda
também ele, sem pensar duas vezes. “Se o papa dissesse aos pie-
monteses “Vinde a Roma”, eu também diria: “Ide”.10
1 Episódio final da tomada da Roma papal pelo exército italiano em 1870, segundo se falará no capí-
tulo 42 (N.T.).
223

23.5 Page 225

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Dom Bosco e a questão social
Nesse ano de 1848, Karl Marx publicou o Manifesto comunista.
É o início de uma revolução menos clamorosa do que as insurrei-
ções de 48, mas iria mais longe e em profundidade. A comunista é
uma tomada de posição radical e violenta na “questão social”, que
agita há decênios as nações do norte da Europa. É uma denúncia
drástica das classes exploradoras. É o apelo à revolução violenta
para “inverter o sistema” fundado na injustiça.
Qual foi a atitude de Dom Bosco a respeito da “questão social”?
Pedro Stella afirma:“Não parece colocar o problema das classes em
transformação... Não parece perceber o vasto alcance do fenômeno
do pauperismo em ordem a convulsões sociais” (Don Bosco nella
storia della religiosità cattolica, vol. 2, p. 95-96).
Se com isto se quer afirmar que Dom Bosco não teve uma visão
“científica” da situação econômico-social, nem a exprimiu em ter-
mos técnicos (capital, força-trabalho...), concordo. Não estaremos,
porém, de acordo, se se quiser ver em Dom Bosco um homem que
não compreendeu o seu tempo, que se deixou guiar somente pelos
“bons sentimentos”.
O padre Lemoyne, que provou por muitos anos de suas confidên-
cias, afirma:
Ele esteve entre aqueles que compreenderam, desde o início, e o disse
muitas vezes, que o movimento revolucionário não era um furacão
passageiro, porque nem todas as promessas feitas ao povo eram
desonestas; e muitas correspondiam às aspirações universais, vivas, dos
operários. Queriam obter igualdade comum a todos, sem distinções de
classes, maior justiça e melhoria da própria sorte. Por outra parte, ele via
como as riquezas começavam a tornar-se o monopólio de capitalistas
sem coração, e como os patrões impunham ao operário isolado e sem
defesa contratos injustos, seja em relação ao salário, seja a respeito da
duração do trabalho (Memórias Biográficas, vol. IV, p. 80).
Dom Bosco achou-se sobre o divisor de águas de duas idades do
mundo. E, portanto, também da Igreja.
Nos séculos que precederam imediatamente a Revolução Indus-
trial, os artesãos reuniam-se em “corporações”: sociedades rígidas,
de sabor medieval, mas que exerciam certa defesa para os traba-
224

23.6 Page 226

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lhadores. Os pobres eram muitos. Nunca, porém, seu número foi
comparável ao das massas miseráveis dos proletários, abandonadas
a si mesmas, criadas pelas fábricas no primeiro século da Revolução
Industrial. O modelo de intervenção da Igreja em favor do povo
pobre, naqueles séculos, era a “beneficência organizada” de São
Vicente de Paulo (1581-1660).
Na nova idade industrial, as “corporações” acabaram no ferro-ve-
lho (também pelo triunfo dos princípios do liberalismo); e as mas-
sas dos trabalhadores proletários têm a única liberdade de deixar-se
oprimir por patrões superpoderosos. O liberalismo impede diligen-
temente que se formem novas estruturas que, na linha das antigas
corporações, defendam os direitos dos operários.
Na impossibilidade de encontrar planos e programas de ação já
prontos – dizíamos páginas antes –, nas incertezas que sempre exis-
tem no início de um novo período histórico, muitos homens da Igre-
ja empenharam todas as suas energias em fazer “logo” alguma coisa
pelo povo miserável, tirando o pó dos métodos de beneficência de
São Vicente (as “conferências”, fundadas em Paris por Ozanam para
auxílio dos proletários, tomam justamente esse nome).
Bem cedo, porém, se compreendeu que só a beneficência não
podia bastar. Mesmo na nova forma, socialmente avançada, de es-
colas profissionais, de laboratórios didáticos, continuava insuficien-
te. Precisava bater-se pela justiça social, por instituições e leis que
garantissem os direitos dos trabalhadores. O caminho foi longo, pe-
las incompreensões nos ambientes da hierarquia e pelas fortíssimas
resistências dos Estados liberais.
Dom Bosco (eram os primeiríssimos anos de Revolução Indus-
trial italiana) lançou-se à nova situação. Levado certamente pela ur-
gência daquilo que via e por sua grande disponibilidade para tra-
balhar pelos meninos pobres. A estratégia do já, da intervenção
imediata (porque, repetimos, os pobres não podem dar-se ao luxo
de esperar as reformas e os planos organizados), se torna a marca de
Dom Bosco e dos seus primeiros salesianos. Catecismo, comida, ins-
trução profissional, emprego protegido por bom contrato, tornam-
-se o programa “urgente” que os filhos de Dom Bosco realizam pelos
jovens operários.
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23.7 Page 227

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Mas essa opção – parece-nos – não foi somente instintiva. Com
o passar dos anos, a situação foi-se aclarando cada vez mais. E Dom
Bosco foi tendo cada vez mais consciência do tempo que fora cha-
mado a viver e da grandeza e limites de sua missão.
Que significa “deixar de lado toda política”?
Voltemos um pouco à afirmação feita (muitos anos depois de
1848) por Dom Bosco a dom Bonomelli:“Percebi que, se eu quises-
se fazer algum bem, devia deixar de lado toda política”.
Que sentido tem nesse momento a palavra “política” para Dom
Bosco? Só “alinhamento de partidos”? A nós parece que não.
A palavra “política”, nesse tempo, abrange igualmente a atitude
para com a “questão social”: ser a favor ou contra o mercado livre,
a intervenção do Estado nas questões do trabalho, a greve, as socie-
dades operárias socialistas, as cooperativas inspiradas por Owen,
os sindicatos, a legislação social exigida na Alemanha pelo bispo
Ketteler...
“Deixar de lado toda política” significa também não deixar-
se envolver pelo social (que nesse momento é parte notável do
programa dos partidos políticos). Quando perguntam a Dom Bosco
o que pensa de Mazzini, não pode ignorar que esse incômodo
republicano é o chefe das “sociedades operárias dos trabalhadores
italianos” e faz parte da primeira Internacional fundada (1864)
por Karl Marx. “Política” é aquela de Solaro della Margarita e
de Cavour, mas é também a dos revolucionários socialistas, do
socialista mazzianiano Pisacane que desembarca no Sul (1857)
para “sublevar as plebes oprimidas”. A atitude concreta de Dom
Bosco é não deixar-se enredar por esses debates. Tal atitude, ele a
impõe também aos seus salesianos.
Não nos parece, pois, que Dom Bosco “não se propusesse o pro-
blema das classes em transformação”. Não se propôs logo, nem
cientificamente, mas as palavras ditas ao bispo Bonomelli e mil ve-
zes repetidas aos seus salesianos atestam que sentiu o problema
concreto e o resolveu. De um jeito todo seu, discutível quanto se
queira. Mas ele o sentiu e resolveu. Imergir-se no debate social sig-
nificava declarar-se “a favor” de alguém e, por isso,“contra” alguém.
226

23.8 Page 228

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Ser conhecido como “padre social” era pôr-se imediatamente fora
de toda ajuda dos burgueses e dos ricos. Ele, ao contrário, precisava
de ajuda. E logo. De todas as partes. Porque não queria deixar que
os meninos pobres voltassem à rua.
Com essa ajuda, ele faz o bem. Muito bem. Concreto.Aos pobres.
Esquema simples, elementar
Adota um esquema simples, elementar, para convencer os ricos
e abastados a ajudá-lo:
Os pobres correm o risco de serem tragados pela revolução, porque a
miséria é intolerável. Esta situação é indigna de um povo cristão. Os ricos
devem pôr os seus bens à disposição dos pobres. Se não o fazem, não
são cristãos. Os pobres, impelidos pela miséria, quererão dividir a riqueza
“apontando o punhal à garganta”, isto é, desencadearão a “revolução”
que trará desordem e violência, como o “terror jacobino”. Tudo isso será
provocado pela insensibilidade dos ricos que não quiseram ajudá-los a sair
da miséria.
Evocando a parábola evangélica, Dom Bosco é o “bom samari-
tano” que, ao encontrar o homem ferido pelos ladrões, retira-o do
fosso, transporta-o ao hospital e o faz cuidar às suas expensas. Não
é o político que corre a organizar um plano legislativo para a repres-
são do banditismo.
Compreende, com o correr dos anos, que o “já” não basta, que a
ação da beneficência tem limites precisos. Mas sabe que não está só
na Igreja e declara, muitas vezes, aos seus salesianos:
Por certo, no mundo devem existir também os que se interessam pelas
coisas políticas, para aconselhar, assinalar perigos, e para outras coisas; mas
isso não compete a nós, pobres coitados” (Memórias Biográficas, vol. XVI,
p. 291).
Não faltam na Igreja os que sabem tratar com galhardia destas árduas e
perigosas questões; e, num exército, há os que se destinam ao combate e os
que devem cuidar das bagagens e de outras tarefas igualmente necessárias
para alcançar a vitória (Memórias Biográficas, vol. III, p. 487).
Essa opção pela intervenção imediata, pelo não deixar-se arrastar
ao debate social para poder ser ajudado de todos, pode, por certo,
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23.9 Page 229

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ser discutida. Não podem, porém, ser discutidos os resultados dessa
escolha: um verdadeiro milagre de bem para os jovens pobres, re-
conhecido também por quem tinha ideias diferentes, também por
quem (saído das suas casas “de beneficência”) se baterá pelos po-
bres com outros esquemas.
(Só dois exemplos. Sandro Pertini, ex-aluno das escolas salesia-
nas de Varazze, socialista descrente, que se tornará presidente da
república italiana, escreverá ao padre Borella, seu professor: “Hoje
compreendo que o amor sem limites que sinto por todos os oprimi-
dos e os miseráveis começou em mim quando vivia convosco. Foi
a vida admirável do vosso Santo que me iniciou nesse amor”. O his-
toriador Tiago Martina afirma que os salesianos da primeira geração,
quando chegavam a certas cidadezinhas da Romanha, habitadas por
comunistas e anticlericais, pareciam fadados à completa falência.Ao
contrário, começavam com o oratório e a banda de música. Depois
de algum tempo, eram amigos de todos. “Esses padres são diferen-
tes”, diziam.)
E se a opção tivesse sido outra?
Uma coisa parece certa: se a opção de Dom Bosco tivesse sido
a de engolfar-se no debate social, teria podido abrir muito poucas
escolas e oficinas. E hoje talvez sua escolha fosse mais discutível
ainda. Disse-o ele mesmo a 24 de junho de 1883: “Para que entrar
na política? Com todos os nossos esforços, que podemos nós alcan-
çar? Nada mais, talvez, que tornar-nos a nós impossível o prosse-
guimento de nossa obra de caridade” (Memórias Biográficas, vol.
XVI, p. 291).
Esquematizando ao máximo a situação, poderemos dizer que
“em teoria” diante de Dom Bosco delineou-se o seguinte dilema:
– ou lutar contra os efeitos das injustiças sociais (ajudar os me-
ninos pobres, pedindo e aceitando ajuda de quem quer que fosse,
para fundar escolas e laboratórios);
– ou lutar contra a causa das injustiças sociais (inventar formas
de denúncia pública; de associações para jovens trabalhadores; re-
cusar a colaboração e a beneficência das pessoas envolvidas num
sistema político-econômico baseado na exploração), com a pers-
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23.10 Page 230

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pectiva evidente de secar as fontes da beneficência e de abandonar
ao próprio destino os meninos pobres.
No primeiro caso, salvava os jovens dos perigos imediatos, mas
arriscava ser “instrumentalizado” pelo sistema, isto é, de preparar
trabalhadores obedientes e dóceis, que não perturbariam os pode-
rosos.
No segundo, solicitava o “sistema” a mudar, mas arriscava-se a não
poder ir ao encontro das necessidades imediatas, urgentes dos po-
bres.
A escolha (nesse tempo, não só para Dom Bosco, mas para mui-
tos homens da Igreja) era dramática: com quem quer que se alinhas-
se, não poderia fazer “tudo” o que deveria fazer.
Dada a urgência do momento, Dom Bosco enveredou pelo pri-
meiro caminho. Quando lhe percebeu os limites, se sentiu garantido
pela ação total da Igreja:“Deixemos a outras ordens religiosas, mais
habilitadas que nós, as denúncias e a ação política. Nós vamos dire-
tamente aos pobres”.
Concluindo, parece-nos poder afirmar que se na Igreja há muitos
carismas, isto é, muitos dons concedidos a indivíduos para o bem
da comunidade, Dom Bosco recebeu o da intervenção imediata em
favor dos meninos pobres. Um carisma diferente, mas não em opo-
sição com os mais apuradamente sociais do bispo alemão dom Wi-
lhelm von Ketteler (1811-1877), de Giuseppe Toniolo (1845-1918),
do padre Luigi Sturzo (1871-1959). Por isso, pode muito bem o
padre piemontês ficar ao lado deles. Quatro carismas diferentes no
âmbito da Igreja. Vividos com honestidade e transparência. E, por
isso mesmo, ricos de frutos autênticos, para o povo de Deus.
229

24 Pages 231-240

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24.1 Page 231

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27
1849: ano espinhoso e estéril
Oano de 1849 foi espinhoso e estéril – escreveu Dom Bosco –,
embora me tenha custado grandes fadigas e enormes sacrifí-
cios.
Começou com uma triste notícia familiar. Em 18 de janeiro, fale-
ceu quase de improviso o seu irmão Antônio. Tinha apenas 41 anos.
Nos últimos anos, ia com frequência ao oratório visitar a mãe e o
irmão: falavam das colheitas fracas, dos pesados impostos com que
o governo espremia os camponeses para financiar a guerra. Trazia
notícias dos sete filhos que Deus lhe dera. O penúltimo, Nicolau,
tinha voado para o Céu com poucas horas de vida. Os outros pare-
ciam respirar saúde.
Os anos e a vida reaproximaram os irmãos: parecia estar bem
longe o tempo do gelo havido entre os dois...
A 1o de fevereiro, Carlos Alberto inaugurou a Câmara recém-
-eleita. A grande maioria da esquerda ouviu-o com silêncio hostil.
Pelas ruas começou-se a gritar: “Viva a guerra! Abaixo os padres!
Viva a República!”. No jornal Il Fischietto (O Pequeno Apito) até
Dom Bosco foi atingido com pesado humorismo. Chamavam-no “o
Santo”, “o taumaturgo de Valdocco”.
Grupos de marginais repetiram as saraivadas de pedra sobre a
casa Pinardi (que Dom Bosco acabara de alugar por inteiro).
Para sair de casa, Dom Bosco fazia-se acompanhar de Brósio, o
bersagliere, que lembrava:
Quando passávamos pela avenida que agora se chama Regina Margherita,
uma turba de pequenos barrabases insultava Dom Bosco, gritava injúrias
pouco decentes ou cantarolavam estribilhos asquerosos. Um dia, tive
ímpetos de pegá-los a tapas. Dom Bosco, ao contrário, parou. Conseguiu
aproximar-se de alguns deles. Comprou frutas de uma vendedora que
tinha banca ali perto e as distribuiu entre aqueles seus “amigos”, como os
chamava.
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24.2 Page 232

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O Amigo da Juventude, uma falência
Preocupava-se Dom Bosco com o mal que os jornais anti-reli-
giosos faziam também entre os jovens. Eram vendidos pelas ruas,
afixavam-se às paredes e muros. Poucos eram os jornais católicos;
além disso, faltava-lhes garra para conquistar o público.
Preocupações, já as tinha Dom Bosco. Assim mesmo, em
fevereiro desse ano, acrescentou mais uma: a de fundar, difundir e
dirigir um jornal a que chamou O Amigo da Juventude. Saía três
vezes por semana. Preparava-o com o auxílio do padre Carpano e do
padre Chiaves. Mandava-o imprimir na tipografia Speirani-Ferrero.
Foi um pequeno fracasso. Assinantes para o primeiro trimestre,
116. Foram publicados, ao todo, 61 números.
Dom Bosco teve que pagar à tipografia 272 liras de prejuízo. Mas
nunca se arrependeu: havia tentado fazer o bem. Esbarrara, pela
primeira vez, na “inconsciência tranquila” dos bons. Aliás, faz mais
de cem anos que a imprensa católica, na Itália, a arrasta consigo,
como pesada corrente...
De novo a guerra
Em Turim, novamente, respiram-se ares de guerra. Em 20 de
fevereiro, Gioberti se demite. Substitui-o na chefia do governo o
ministro da Guerra, Chiodo. A esquerda democrática, dona da si-
tuação, insufla a retomada da guerra. Aos 2 de março, a Câmara
apresenta uma petição ao rei: “Os deputados do povo exortam-vos
a pôr um fim às indecisões e a declarar a guerra. Nós confiamos em
vossas armas”.
12 de março. O armistício é denunciado. Passados oito dias, a
guerra explode: 75 mil homens chegam à fronteira. O rei parte para
Alessandria. Mas, desta vez, não há entusiasmo entre os soldados.
O regimento Saboia recusa-se a marchar. Há desertores. Alguns são
fuzilados.
Na Lombardia, Radetzky lança aos seus soldados sua nova pala-
vra de ordem: “A Turim!”.
23 de março. Numa frente de 4 quilômetros arde a “batalha de
Novara”. A Bicocca, centro de violento corpo a corpo, é perdida
231

24.3 Page 233

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e retomada várias vezes. Episódios de autêntico heroísmo. Num
contra-ataque à baioneta, morre o general Passalacqua. O general
Perrone, ex-primeiro-ministro, ferido de morte, faz-se transportar
a braços para a presença do rei, a fim de saudá-lo. À noite, porém,
tudo está consumado. As artilharias de Radetzky, mais poderosas,
liquidaram a partida. O general Durando contará que, mais de uma
vez, teve de agarrar Carlos Alberto por um braço e tirá-lo do entre-
vero.
Batalha e guerra estão perdidas! Dentro da noite, é o caos. De
Novara a Oleggio, a Momo, é toda uma obstrução de carretas aban-
donadas. Os soldados debandam pelas estradas, sem comando, sem
armas. Gritam: “Para casa! Pague Pio IX, paguem os ricos, paguem
os que querem a guerra. Nós vamos para casa!”.
À 1 da madrugada, Carlos Alberto abdica. Com um capote de
viagem jogado aos ombros, sai de Novara num caleche, e por en-
tre aquele caos, parte para o exílio.1 Por quatro horas, procura-se o
novo rei entre os bivaques das tropas. Radetzky, ao saber da abdica-
ção, concede seis horas de trégua.
O jovem e transtornado Vítor Emanuel II, barba em desalinho,
olhos mortos de cansaço, encontra-se com o marechal austríaco, no
pátio de uma casa de lavoura. Suplica não lhe ponham aos ombros
condições impossíveis. Do contrário terá que exilar-se também, dei-
xando o Piemonte nas mãos dos revolucionários. Quando se retira,
o velho soldado austríaco (82 anos) murmura ao general Hess: “Po-
bre rapaz!”.
Último fragmento de liberdade
Pobre mesmo nesse momento é a Pátria. Em Turim a situação
está tensa. Quando se vem a saber que os austríacos exigem 200
milhões de ressarcimento bélico e que ocuparão Alessandria, a opo-
sição “democrática” se enfurece. Fala-se abertamente em república.
Pede-se a retomada da guerra sem tréguas. Gênova se rebela.11
O jovem rei voa a Turim. A intenção é de “pôr na rua a pontapés”
todos os deputados. Depois reconsidera. Gênova é retomada com
1 Em Portugal, onde morre em 1849 (N.T.).
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24.4 Page 234

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canhões e Massimo D’Azeglio é nomeado primeiro-ministro. A paz
só é assinada a 6 de agosto. Após alternativas bem dramáticas, os
austríacos aceitam abandonar todos os territórios ocupados, inclu-
sive Alessandria, e reduzir o resgate a 75 milhões.
Do grande incêndio de 1848 restaram poucas brasas. Os comba-
tentes que haviam estado, lado a lado, nas barricadas da primavera,
foram quase vencidos. Os patriotas que exigiam a independência fo-
ram silenciados pelas artilharias austríacas. Os operários voltaram, no-
vamente, a uma jornada de 12 horas.As Constituições liberais foram
ab-rogadas quase por toda a parte: só no Piemonte o Estatuto ficou.
Entretanto, esse fragmento de liberdade revelar-se-á extrema-
mente importante: será ao redor do Piemonte que toda a Itália se irá
aglutinar. Com o lento passar dos anos, também as outras sementes
de liberdade e igualdade, que parecem estar dispersas no aluvião
repressor, irão germinar.
Naufrágio dos “padres patriotas”
Em Novara se deu também o naufrágio dos“padres patriotas”pie-
monteses. Convencido de “estar com o povo”, o padre Cocchi leva
uma divisão de rapazolas do oratório de Vanchiglia a tomar parte da
batalha de Novara. Chegados a Vercelli, os 200 rapazes não são re-
conhecidos como soldados pelo chefe da divisão. Não sabem onde
buscar comida e passar e noite. Com a debacle dos piemonteses,
voltam a Turim, reentrando na cidade de noite, mortos de cansaço.
Para a obra do ativo padre de Druent é uma derrocada.
O oratório de Vanchiglia fica fechado por alguns meses. O padre
Cocchi vive escondido.Voltará à ribalta em outubro, ao lançar, com
mais dois sacerdotes, o projeto de um internato de beneficência
para pequenos artesãos. Iniciará desse modo o grandioso Instituto
dos Pequenos Artesãos. É o reconhecimento tácito de que a linha
“não política” de Dom Bosco é a certa.
33 liras para o papa
Dezenas de milhares de refugiados vêm, nesses meses, inchar a
população de Turim.A vida é difícil. Os preços dos aluguéis, altíssi-
233

24.5 Page 235

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mos. Os salários, ao contrário, baixos. Um refugiado francês socia-
lista, Coeurderoy, fala de miséria gravíssima nos bairros populares.
Falta uma indústria ativa. O dinheiro em circulação é rastelado pelos
elevados impostos.A mão de obra continua abundante no mercado,
apesar de a construção civil prosseguir ininterruptamente e de as
casas serem alugadas mesmo antes de concluídas.
Pio IX permanece exilado em Gaeta: o marquês Gustavo de Ca-
vour e o cônego Valinotti lançam em Turim a campanha para uma
coleta sob o nome de Óbolo de São Pedro. Participam também os
meninos do oratório de Dom Bosco. Reunindo seus centavos, entre-
gam, pelo fim de março, à Comissão, 33 liras, acompanhadas de uma
carta de felicitações para o papa.
No dia 2 de maio, Dom Bosco recebe uma carta do Núncio pon-
tifício:
Doce emoção causaram no ânimo do Santo Padre a afetuosa e cândida oferta
dos pobres pequenos artesãos e as palavras de devoção com que quiseram
a acompanhassem. Rogo-lhe, pois, lhes dê a conhecer o quanto foi agradável
tal oferta, preciosíssima mesmo, porque dada pelo pobre.
O papa correspondeu com um pacote de 720 terços que só pu-
deram chegar a Turim no ano seguinte (a 20 de abril de 1850).
Dois pequenos corações “por graça recebida”
24 de junho, festa de São João Batista. É o dia onomástico de Dom
Bosco. Carlos Gastini e Félix Reviglio, apesar dos tempos difíceis,
decidem dar a Dom Bosco um presentinho. Faz meses que com-
binaram a coisa, em segredo. Economizaram no pão e guardaram
cuidadosamente as pequenas gorjetas. Que comprar, porém, com
os preços tão altos que se leem nas vitrinas? Por fim, resolvem: dois
pequenos corações de prata. Desses que o povo humilde compra
para oferecer a Nossa Senhora “por graça recebida”. Uma escolha
estranha, mas original. E também comovente.
Na véspera da festa, quando todos já estão dormindo, batem à
porta de Dom Bosco e lhe oferecem o presente, corando ate à raiz
dos cabelos.
“No dia seguinte, todos ficaram sabendo daquele presente – es-
creve o padre Lemoyne –, não sem uma ponta de inveja.”
234

24.6 Page 236

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Quatro garotos e um lenço branco
Gastini e Reviglio são dois dos rapazes que Dom Bosco acom-
panha de perto. Em 1848 fizeram os Exercícios Espirituais junto
com outros onze. Neste ano, voltam a fazê-lo junto com outros 69,
divididos em dois turnos.
A ideia fixa de Dom Bosco é sempre a de “estudar, conhecer e
escolher alguns indivíduos” que deem esperança de vocação sacer-
dotal.
No fim dos Exercícios, chama José Buzzetti, Tiago Bellia, Carlos
Gastini e Félix Reviglio. E diz-lhes:
– Preciso que alguém me ajude no oratório. Que acham vocês?
– Ajudá-lo como?
– Antes de tudo, voltando a estudar. Uma escola rápida, que in-
clua também latim. Depois, se Deus quiser, poderão tornar-se sa-
cerdotes.
Os quatro se entreolham. E topam.
Dom Bosco só põe uma condição: tira do bolso o lenço branco e
o amarrota com as mãos:
– Peço-lhes que sejam em minhas mãos como este lenço: obe-
dientes em tudo.
Dentre eles, só Bellia havia frequentado todo o curso elementar.
Em agosto, Dom Bosco os confia ao teólogo Chiaves para uma re-
visão intensiva de língua italiana. Em setembro, os leva consigo aos
Becchi, hóspedes do irmão José, e começa as aulas de latim.
Em outubro voltam para Turim a tempo de participar dos gran-
diosos funerais que toda a cidade dedica a Carlos Alberto, falecido
no Porto.
O batalhão do bairro de Vanchiglia
Nesse mesmo outubro, de acordo com o padre Cocchi e com
aprovação por escrito do arcebispo, Dom Bosco reabre o oratório
do Anjo da Guarda, no bairro de Vanchiglia. Dois telheiros, dois
cômodos, um salão adaptado para capela: 900 liras de aluguel por
ano. Vai dirigi-lo o padre Carpano, que deixa o oratório São Luís ao
padre Ponte.
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24.7 Page 237

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No bairro de Vanchiglia continuam os violentos confrontos dos
jovens marginalizados. Em auxílio do padre Carpano, Dom Bosco
envia o bersagliere Brósio, que lá também funda um belicoso “ba-
talhão”, pronto para divertir-se. Mas também para pegar firme, se
for o caso.
Numa festa – relata o bersagliere –, chegaram 40 barrabases armados de
pedras, bastões e facas, querendo invadir o pátio do oratório. O diretor
ficou com muito medo. Tremia. Eu, vendo que estavam decididos a usar de
violência, fechei a porta, reuni os rapazes maiores e distribuí os fuzis de
madeira. Dividi os jovens em grupos, com a ordem de que, se os malandros
atacassem, a um sinal meu, contra-atacassem de todos os lados ao mesmo
tempo, batendo firme, sem dó nem piedade. Recolhi os pequenos (que
choravam de medo) e os escondi na igreja. Depois fui montar guarda no
portão de entrada que os assaltantes, com poderosos empurrões, tentavam
derrubar. Entrementes, alguém fora avisar a polícia montada, que acorreu
com as espadas desembainhadas. E dessa vez, tudo acabou bem.
Em 18 de novembro, vem morar com Dom Bosco o padre Giaco-
melli, seu colega no seminário de Chieri. Ficará em Valdocco dois
anos. Com o seu auxílio e o do clérigo Ascânio Sávio, Dom Bosco
pode aumentar o número dos rapazes acolhidos – “os internos” –
que assim sobem para 30.
Serão 36 em 1852; 76 em 1853; 115 em 1854. Em 1860 serão 470;
e 600 em 1861. O ponto culminante será de 800.
A vida desses rapazes continua a ser extremamente pobre. Exce-
to na cozinha e num cômodo, onde se acende uma estufa a lenha,
na igreja e nos outros ambientes no inverno se fica gelado. Colchão
de lã ou de crina é luxo de poucos. A maior parte dorme sobre o
sacolão cheio de palha, ou de folhas secas. O pouco dinheiro da co-
munidade, Dom Bosco entrega-o a José Buzzetti, que em 1849 tem
17 anos e se espanta com aquela total confiança.
Aos domingos, esses “internos” participam integralmente da
vida, dos jogos e dos passeios dos outros 500 que invadem o ora-
tório.
20 de novembro. Vítor Emanuel, com a proclamação de Monca-
lieri, dissolve de novo as Câmaras e conclama os 90 mil eleitores a
novas eleições. Com duras palavras censura a “esquerda democráti-
236

24.8 Page 238

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ca” por ter arruinado a nação, convidando os eleitores a mandarem
para a Câmara pessoas mais moderadas.
As eleições se realizam em 9 de dezembro, no início de um inver-
no que se anuncia frio e penoso. Os novos deputados aprovam em
silêncio o tratado de paz: “Não era uma paz – escreve Cognasso –,
era um armistício de dez anos. Dez anos que teriam de passar traba-
lhando silenciosamente”.
Quatro soldos de polenta
Bem para o fim do ano de 1849, enquanto – dizem as crônicas –
muita gente nos arredores de Turim passa fome, a história de Dom
Bosco registra alguns acontecimentos misteriosos. Poderíamos cha-
má-los (se a palavra não fosse tão altissonante) “os milagres pobres
que um padre alcança em favor de gente humilde”.
É José Brósio, o bersagliere, quem conta o primeiro em carta ao
padre Bonetti.
Certo dia, enquanto estava no escritório de Dom Bosco, aparece um
homem pedindo esmola. Tinha cinco filhos. Estavam sem comer naquele
dia. Dom Bosco revistou os bolsos. Achou 20 centésimos e lhos deu com
sua bênção.
Ao ficarmos a sós, Dom Bosco me disse que lhe doera não ter mais
dinheiro: se tivesse 100 liras lhas daria.
– E como sabe que disse a verdade? – perguntei –, e se fosse um caloteiro?
– É sincero, leal. Digo mais: é trabalhador e muito afeiçoado à família.
– E como sabe?
Então Dom Bosco me tomou pela mão, olhou-me fixo nos olhos e disse
em voz baixa:
– Li no coração.
– Ah, é! Então o senhor lê também os meus pecados?
– Sim. Sinto-lhes o cheiro! – respondeu-me sorrindo.
Lia realmente o coração. Se eu esquecia alguma coisa na confissão, me
expunha a coisa tal qual era na verdade. E eu morava um quilômetro longe
dele. Um dia eu praticara uma obra de caridade que me custara um grande
sacrifício e ninguém sabia. Fui ao oratório e Dom Bosco, apenas me viu,
tomou-lhe pela mão e me disse:
– Que linda coisa você preparou para o Céu!
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24.9 Page 239

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– Que foi que eu fiz?
Então, contou-me tim-tim por tim-tim tudo quanto eu fizera.
Algum tempo depois, andando por Turim, encontrei-me com o homem a
quem Dom Bosco dera os 20 centésimos. Reconheceu-me, fez-me parar
e disse que, com aqueles centésimos, comprara farinha de milho, fizera
polenta, e ele toda a família haviam comido à saciedade.
E repetia:
– Lá em casa, o chamamos “o padre do milagre da polenta”. É que, com 20
centésimos (daqueles tempos!), a farinha comprada não daria nem para
duas pessoas. No entanto, deu para sete!”
“Chamei-o pelo nome: Carlos!”
O segundo, refere-o por escrito, em francês, a marquesa Maria
Fassati, da família De Maistre. Declara:
Ouvi este fato dos lábios do mesmo Dom Bosco e procurei escrevê-lo com
a máxima fidelidade.
Certo dia, alguém veio procurar Dom Bosco para um jovem que
ordinariamente frequentava o oratório e parecia gravemente enfermo.
Dom Bosco estava ausente. Só voltou dois dias depois.Além disso, só pôde
visitar o doente no dia seguinte, pelas 4 da tarde.
Chegando à casa onde morava, viu na porta o pano preto, com o nome do
jovem que ia visitar. Apesar disso, entrou para ver e consolar os parentes
que estavam chorando. Contam-lhe que o filho morrera durante a manhã.
Dom Bosco perguntou então se podia subir ao cômodo onde estava o
corpo do menino, a fim de revê-lo mais uma vez. Alguém da família o
acompanhou.
– Entrando no quarto – afirmou Dom Bosco –, veio-me a ideia de que não
tivesse morrido. Aproximei-me da cama e o chamei pelo nome: “Carlos!”.
Então ele abriu os olhos e me cumprimentou com um sorriso cheio de
surpresa.“Oh, Dom Bosco – disse em voz alta –, o senhor me acordou de
um sonho horrível!”
Naquele momento, algumas pessoas que estavam no quarto fugiram
espantadas, lançando gritos e derrubando castiçais. Dom Bosco se apressou
em tirar o lençol com que o tinham enrolado e o jovem continuou a falar
assim:
“Parecia-me ser empurrado para uma caverna comprida, escura e tão
estreita que eu mal podia respirar. Ao fundo, eu via um espaço mais largo
e mais claro, em que muitas almas eram julgadas. Minha angústia e meu
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24.10 Page 240

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terror cresciam cada vez mais, porque via grande número de condenados.
E eis que chegara a minha vez e estava para ser julgado como os outros,
aterrorizado porque fizera mal a minha última confissão, quando o senhor
me acordou!”.
Entrementes, à notícia de que o filho estava vivo, o pai e a mãe de Carlos
haviam acorrido ao quarto. O jovem os cumprimentou afavelmente, mas
disse-lhes que não esperassem por sua cura. Após havê-los abraçado, pediu
que o deixassem só, com Dom Bosco.
Contou-lhe que tivera a desgraça de cair num pecado que julgava mortal e
que, sentindo-se muito mal, o havia mandado chamar, com a firme intenção
de se confessar. Não achando Dom Bosco, chamaram outro sacerdote
que não conhecia e a ele não tivera a coragem de contar aquele pecado.
Deus lhe tinha apenas feito ver que havia merecido o inferno com aquela
confissão sacrílega.
Confessou-se com muita dor. E depois de receber a graça da absolvição
fechou os olhos e expirou suavemente.212
Um cesto de castanhas que não se esvazia
O terceiro acontecimento foi referido por José Buzzetti e con-
firmado, por escrito, por Carlos Tomatis, que foi um dos primeiros
rapazes internos de Dom Bosco.
No dia de Finados, Dom Bosco levara todos os rapazes do orató-
rio festivo ao cemitério para rezar. Havia prometido, para quando
voltassem, castanhas cozidas para todos. Mandara comprar três sa-
cos enormes.
Mamãe Margarida, porém, não entendeu muito bem as suas in-
tenções e cozinhara somente três ou quatro quilos.
José Buzzetti, o juveníssimo “ecônomo”, voltando para casa an-
tes dos outros, logo se deu conta da coisa e pensou:
– Dom Bosco vai se meter numa embrulhada. Preciso avisá-lo já.
Quando, porém, a tropa faminta chegou parecendo avalanche,
Buzzetti não conseguiu explicar-se. Dom Bosco tomou-lhe das mãos
a pequena cesta e começou a distribuir castanhas com a enorme
concha crivada. Na barafunda, Buzzetti suplicava:
2 Pedro Stella, após analisar este fato com 25 páginas de cerrada crítica histórica e ter sublinhado a
pouca probabilidade de alguns particulares aceitos no “relato oficial” feito por Lemoyne no volume III
das Memórias Biográficas, conclui:“Para uma volta ao relato de Dom Bosco e ao fato objetivo, seria
desejável que se adotasse a relação Fassati” (o.c. I, p. 282). Foi o que fizemos.
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25 Pages 241-250

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25.1 Page 241

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– Assim não! Assim não! Não vai dar para todos!
– Mas há três sacos na cozinha!...
Comprimidos em meio à gritaria das ondas de meninos, Buzzetti
tentava explicar-lhe:
– Não, não! Só tem estas! Só tem estas!
Dom Bosco ficou acaçapado... Mas depois:
– Eu prometi a todos! Continuemos assim, enquanto tiver.
E, de fato, continuou a distribuir uma concha bem cheia a cada
um. Buzzetti olhava nervoso, para as poucas conchas que ainda res-
tavam no fundo da cesta e para a longa fila que parecia aumentar...
Alguém mais se deu conta do que estava acontecendo. De repente,
quase se fez silêncio...: umas centenas de olhos fixavam arregala-
dos, para aquele cesto que nunca se esvaziava...
Deu para todos. E pela primeira vez, quem sabe, naquela tar-
de, os meninos, com as mãos cheias de pobres castanhas, gritaram:
“Dom Bosco é um santo!”.
240

25.2 Page 242

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28
Uma casa e uma igreja
Nos últimos meses de 1849, Dom Bosco apresenta um pedido ao
Ministério do Interior, a fim de obter um subsídio para o seu
oratório.
Janeiro de 1850. Num domingo de tarde, uma comissão de 3 se-
nadores, Sclopis, Pallavicini e Collegno, desce a Valdocco para visitar
a obra e fazer um relatório para o Senado e o ministro.
A impressão foi muito positiva.Viram 500 rapazes brincando nos
pátios e prados, rezando apinhados na capela e locais contíguos;
informaram-se minuciosamente do internato em que residiam 30
rapazes.
O conde Sclopis conversou, por acaso, com um rapaz, José Van-
zino. Ficou sabendo que era de Varese, órfão de pai, e trabalhava
em cantaria. Chegou também a saber, em meio a uma explosão de
lágrimas, que a mãe estava na prisão.
– E de noite, aonde vai dormir? – indagou o conde, um tanto em-
baraçado.
– Até alguns dias atrás, dormia na casa do patrão, mas agora Dom
Bosco me recebeu em sua casa.
O relatório para o Senado foi feito por Pallavicini. Está registrado
nos Atos Oficiais de 1o de março. Diz:
A instituição do distinto e zeloso sacerdote João Bosco revela-se
eminentemente religiosa, moral, útil. Seria dano muito grave para a cidade
se por falta de auxílios fosse interrompida ou se acabasse. Nossa Comissão
faz uma instância ao Ministério do Interior para que queira socorrer de
modo eficaz uma obra tão útil e vantajosa.
Tais palavras renderam a Dom Bosco 3 notas de 100 liras do Se-
nado e 2 notas de mil do ministro Urbano Rattazzi.
Mas não foram as liras (aceitas de abençoadas) o fruto maior. No
Piemonte, estava prestes a explodir o longo e aflitivo conflito entre
Estado e Igreja. A visita e o relatório dos três senadores, que Dom
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25.3 Page 243

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Bosco pedira, iriam permitir ao oratório superar, sem danos graves,
a grande borrasca.
O arcebispo é preso
Dezembro de 1849. Mil eclesiásticos e 10 mil turinenses assinam
um abaixo-assinado ao primeiro-ministro D’Azeglio em que se pede
o retorno do arcebispo Fransoni, ainda do exílio de Genebra.
Houve muitas voltas entre o rei, os ministros e o arcebispo de
Gênova. Mas, em fevereiro de 1850, dom Fransoni pôde voltar a
Turim.
Eram dias “quentes”: na Câmara discutiam-se os projetos de lei
apresentados pelo ministro da Justiça, Siccardi. Tencionava-se abo-
lir alguns antigos privilégios eclesiásticos: o foro eclesiástico (os
bispos e os sacerdotes acusados de delito comum não mais seriam
julgados por tribunais eclesiásticos, mas por tribunais civis), o di-
reito de asilo (até então a polícia não podia prender pessoas acu-
sadas de delito se se refugiassem numa igreja ou num convento), a
possibilidade de aumentar os bens da Igreja.
No dia 8 de abril, as Leis Siccardi foram aprovadas pela Câmara
e pelo Senado. No dia 9, foram sancionadas pelo rei. Soltaram-se,
na cidade, bandos de anticlericais, improvisando cortejos aos gritos
de “Abaixo os padres! Viva Siccardi!”. O ponto de encontro foi o
palácio do arcebispo. De começo, houve apenas gritos e insultos:
“Morte a Fransoni! Fora o delegado pontifício!”. Seguiram-se depois
as pedras: quebraram-se os vidros das janelas e tentou-se pôr abaixo
o portão de entrada. Foi preciso que a polícia montada interviesse
de espadas desembainhadas.
A reação do clero foi imediata. Pio IX, por meio de uma carta
do cardeal Antonelli, protestou energicamente. O núncio pontifício
pediu o passaporte, e deixou o Piemonte. No dia 18, o arcebispo
expediu a todos os párocos uma circular secreta: proibia a todo
sacerdote comparecer perante um tribunal civil sem sua permissão
pessoal.
21 de abril. A polícia invade a tipografia Botta (onde fora im-
pressa a circular), as agências do correio, o palácio do arcebispo. A
circular é sequestrada e julgada uma “instigação à revolta”. Citado
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25.4 Page 244

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perante o tribunal civil e recusando-se a comparecer, dom Fransoni
é condenado a pagar 500 liras de multa e a um mês de prisão. Aos 4
de maio, às 13 horas, foi preso e levado à cidadela militar.
Turim vive de novo momentos de grave tensão. A oposição ca-
tólica, ainda que pouco representada no Parlamento (para a qual
sempre votam 2% da população), é muito forte. O major conde
Viallardi, guardião da fortaleza, acolhe o arcebispo chorando; o co-
mandante-geral, Imperor, cede-lhe os próprios aposentos. Numero-
sas delegações pedem ao rei permissão para visitar o prisioneiro. O
mesmo Dom Bosco ali comparece e manda várias delegações dos
seus meninos.
Em fins de agosto, a corda entre o governo e o arcebispo retesa-
-se de novo. Pedro Derossi di Santarosa, ministro da Agricultura,
adoece gravemente. Pede os sacramentos. O pároco, da Congrega-
ção dos servitas, recebe do arcebispo a ordem de exigir do enfermo
retratação pública da aprovação dada às Leis Siccardi. Santarosa re-
cusa. Morre a 5 de agosto sem Viático.
Pelas ruas de Turim, repetem-se os tumultos. Os servitas são
expulsos. O ministro da Guerra, Afonso La Marmora, pede a dom
Fransoni que renuncie ao arcebispado. Diante da recusa, a 7 de
agosto manda-o prender e encerrar na fortaleza de Fenestrelle,
junto à fronteira francesa, donde, em 28 de setembro, será banido
do Estado.
Quadrilhas atacam os conventos da cidade. Oblatos, barnabitas,
dominicanos devem entrincheirar-se em suas casas. A 14 de agosto,
chega a Valdocco certo Volpato e avisa Dom Bosco que também o
oratório será atacado no início da noite. E que é melhor que saia
logo com os meninos.
Dom Bosco reflete: decide ficar. Pelas 4 da tarde, a coluna dos
bandoleiros está descendo à periferia. Mas no meio daquela turma
(atesta o padre Lemoyne) há alguém que foi ajudado por Dom Bos-
co. Detém os primeiros grupos e diz:
– É inútil assaltar o oratório. Acharíamos apenas meninos pobres
e um padre que os ajuda a viver. Dom Bosco é do povo como nós.
Vamos deixá-lo em paz.
Discutem. A coluna toma outro caminho.
243

25.5 Page 245

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O segundo quarteto
Sob a grande borrasca, Dom Bosco prossegue trabalhando em
silêncio. Reviglio, Bellia, Buzzetti e Gastini continuam a “escola in-
tensiva”. Estão quase prontos para o exame que os habilita a rece-
ber a batina.
No verão de 1850, Miguelzinho Rua (quem se lembra dele?) ter-
minou a séries elementares na escola dos Irmãos das Escolas Cris-
tãs. Dom Bosco não o perde de vista. Um dia, o chama à parte:
– Que pensa fazer no ano que vem?
– Minha mãe falou com o diretor da Fábrica de Armas. Aceitam-
-me para trabalhar no escritório e, assim, poderei ajudar a família.
– Eu também falei com alguém. Seus professores me disseram
que Deus lhe deu uma bela inteligência e que seria uma pena se não
continuasse a estudar. Você toparia?
– Sem dúvida. Mas minha mãe é pobre. Papai já morreu. Onde
quer que busque o dinheiro para pagar a escola?
– Deixe por minha conta. Só pergunte à sua mãe se lhe dá licen-
ça de começar o curso de latim.
Dona Joana Maria fixou longamente seu filho já alto e pálido.
Ouviu-o falar com entusiasmo de Dom Bosco e respondeu:
– Estou muito contente, Miguelzinho. Mas será que sua saúde vai
aguentar? Deus já levou 4 dos seus irmãos. E você é o mais fraco de
todos... Diga a Dom Bosco que não o faça estudar demais.
Como Miguel morava a poucos metros do oratório e era mesmo
muito fraco de saúde, Dom Bosco deixou que ficasse em casa mais
dois anos. Mas, em novembro, começou a mandá-lo à escola parti-
cular do professor José Bonzanino. À tarde, repassava, ele mesmo,
aritmética e sistema métrico decimal. Junto com Rua estavam os
jovens Ângelo Sávio, Francésia e Anfonsi, o segundo quarteto que
Dom Bosco esperava levar até o sacerdócio.
Aos domingos, enquanto Buzzetti e outros ajudavam Dom Bos-
co, Miguel Rua e Ângelo Sávio partiam para os oratórios de Vanchi-
glia e Porta Nuova, onde assistiam os meninos e davam catecismo.
2 de fevereiro de 1851. Após quatorze meses de “escola intensi-
va”, seus primeiros 4 rapazes lograram superar com brilhantismo o
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25.6 Page 246

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exame perante a Cúria turinense. Buzzetti, Gastini, Bellia e Reviglio
recebem a batina no oratório. Dom Bosco está radiante. Parece-
-lhe que os primeiros cordeiros estão, finalmente, virando pastores.
Engana-se: dos 4 rapazes (que no dia seguinte começam as aulas
de filosofia), só Bellia e Reviglio chegarão ao sacerdócio, mas não
ficarão no oratório. Gastini logo desanimará e deixará os estudos.
Buzzetti ficará com Dom Bosco, mas não como padre. A primeira
esperança a se realizar plenamente será aquele rapaz alto e pálido,
que continua a viver com sua mãe: Miguel Rua.
Trinta mil liras e um pouco de vertigem
Após a vestidura dos primeiros 4 “coroinhas”, Dom Bosco pen-
sou na casa. Não podia viver em casa alheia que, de repente, podiam
vender a estranhos.
Num domingo de tarde, enquanto padre Borel pregava, enfren-
tou o senhor Francisco Pinardi:
– Se me fizer um preço honesto, compro toda a sua casa.
– Farei! Quanto me dá?
– Mandei avaliá-la por uma pessoa de bem, o engenheiro Spezia.
Diz-me que, como está, vale de 26 a 28 mil liras. Dou-lhe 30 mil.
– Em dinheiro e à vista?
– Feito!
– Aperte cá a mão. Dentro de quinze dias firmaremos o documento.
Dom Bosco apertou-lhe a mão, mas sentiu um pouco de verti-
gem, pois 30 mil liras daquele tempo valiam uns 50 milhões, ou
mais, das de hoje. Onde achar esse dinheiro?
Eis o que escreve Dom Bosco, com simplicidade:
Começou, então, uma elegância da Divina Providência. Naquela mesma
tarde, coisa insólita aos domingos, o padre Cafasso veio visitar-me e me
disse que uma pessoa piedosa, a condessa Casazza-Riccardi, encarregara-o
de dar-me 10 mil liras para serem empregadas no que eu julgasse da maior
glória de Deus. No dia seguinte, chega um religioso rosminiano, que me
traz de empréstimo 20 mil liras. [O empréstimo era de 4%. Depois disto, o
abade Rosmini nunca mais me falou em reaver nem juros nem capital.] As
3 mil liras de despesas acessórias foram fornecidas pelo cavalheiro Cotta,
em cujo banco foi passada a suspirada escritura.
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25.7 Page 247

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Era o dia 19 de fevereiro de 1851. Difícil não ver aí a mão da Pro-
vidência. Mais difícil ainda, para Dom Bosco, não seguir pela mesma
estrada.
A porciúncula salesiana
Certa noite daquele mesmo mês, enquanto com Mamãe Margari-
da remenda a roupa dos rapazes, que já dormiam, murmurou quase
de si para si:
– E agora quero fazer uma bela igreja em honra de São Francisco
de Sales.
Agulha e linha caíram das mãos de Mamãe Margarida:
– Uma igreja!? E o dinheiro, onde vai buscar? Quase não damos
conta de arranjar pão e roupa para estes pobrezinhos, e você vem
falar de uma nova igreja? Veja lá. Pense duas vezes. E entenda-se
bem com Nosso Senhor antes de meter-se numa coisa dessas.
– Escute, mãe: se a senhora tivesse dinheiro, me daria?
– Daria. Mas não tenho mais nada.
– E acha que Deus, que é muito melhor e mais generoso que a
senhora, não me dará?
– !?
Como “discutir” com um filho assim?
Por outro lado, Dom Bosco tinha todas as razões. A capela Pinar-
di já fora ampliada. Assim mesmo, os meninos não cabiam. Nem
que tivesse três andares. Além disso, “para entrar, era preciso des-
cer dois degraus – escreve Dom Bosco. – No inverno e em tempo
de chuva, ficávamos alagados. No verão, ao invés, éramos sufoca-
dos pelo calor e excessivo cheiro de mofo”.
O projeto foi feito pelo cavalheiro Blanchier e o empresário foi
Frederico Bocca.
– Previno-o – disse-lhe Dom Bosco, sorrindo – que, de vez em
quando, não terei dinheiro para pagar-lhe.
– Nesse caso, iremos mais devagar com o serviço.
– Não, senhor! Quero que vamos depressa. E que a igreja fique
pronta dentro de um ano.
Frederico Bocca deu de ombros:
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– Se é assim, iremos depressa. Mas o senhor também se apresse
com as liras.
“Abertos os alicerces – lembra Dom Bosco –, procedeu-se, em
20 de julho de 1851, à bênção da pedra fundamental.” Colocou-a o
cavalheiro José Cotta, um dos maiores benfeitores de Dom Bosco.
Miguel Rua, 14 anos, leu uma composição de agradecimento. O dis-
curso foi pronunciado pelo célebre orador padre Barrera. Exagerar
em circunstâncias como essas é normal: buscam-se imagens de efei-
to. Barrera, porém, em nada exagerou na linda imagem que pintou.
Disse: “Esta pedra é o grãozinho de mostarda. Crescerá como uma
árvore. E nela muitos meninos virão refugiar-se”.
O problema era o dinheiro. Dom Bosco bateu a todas as portas
conhecidas. E a muitas outras. Só conseguiu juntar 35 mil liras. Fal-
tavam outras 30 mil.
O bispo de Biella, dom Losana, mandou uma circular a todos os
seus párocos. Aludiu a “todos os pequenos serventes de pedreiro
de Biella” ajudados pelo oratório. Pediu que se fizesse uma especial
coleta dominical. Dom Bosco confiava muito nela. Mas o fruto foi
magro: mil liras... Só!
Os meninos ajudavam como podiam. O padre João Turchi lem-
brava:“As paredes da nova igreja já estavam à altura dos janelões. Eu
e os meus colegas levávamos tijolos para o alto dos andaimes”.
Para conseguir aquelas benditas 30 mil liras restantes, Dom Bos-
co aventurou-se, pela primeira vez, a uma rifa pública. Lembrava:
“Recolheram-se 3.300 prendas. O papa, o rei, a rainha mãe e a rai-
nha consorte distinguiram-se por suas ofertas”. Os prêmios foram
expostos ao público. Em vasta sala, atrás da igreja de São Domingos.
Um fôlder publicou a lista dos prêmios.
A venda dos bilhetes custou a Dom Bosco muitas humilhações.
O dinheiro juntado, porém, foi deveras notável: limpo, 26 mil liras.
Daí por diante, quando estiver em apuros, será das rifas que Dom
Bosco lançará mão. Nas últimas cartas de sua vida, já escritas com
mão trêmula, pedirá ainda o favor de “aceitar um bloquinho de
minha rifa”.
A igreja foi consagrada no dia 20 de junho de 1852. Continua lá,
na extremidade da casa Pinardi, um tanto humilhada pela grandeza
da Basílica de Maria Auxiliadora que lhe chega a 3 metros da porta.
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25.9 Page 249

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É a “porciúncula” salesiana.113Dentro daquelas paredes, por dezes-
seis anos (de junho de 1852 a junho de 1868), pulsou o coração da
obra de Dom Bosco.
Era lá que o juveníssimo São Domingos Sávio ia rezar. Foi diante
do altarzinho de Nossa Senhora, à direita, que a Ela se consagrou. Foi
nessa igreja que entraram Miguel Magone, o moleque de Carmag-
nola, e Francisco Besucco, o rapazinho de Argentera, que em 1863
repetiu a bondade heroica de São Domingos Sávio.
Nela celebrou a primeira Missa o padre Miguel Rua. Nela, por
quatro anos, e várias vezes ao dia, Mamãe Margarida, já velha e can-
sada, achava forças para, todo dia, recomeçar de novo o trabalho
pelos meninos pobres.
O diabo, talvez
Dom Bosco anota que,
com a nova igreja, facilitava-se aos meninos que o desejassem a
assistência às sagradas funções, e também às aulas noturnas e diurnas (a
capela Pinardi, a igreja e a sacristia eram usadas durante o dia como salas
de aula). Mas como atender à multidão de meninos pobres que, a todo
momento, pediam morada?”
Conclui, tranquilo:“Naquele momento de suprema necessidade,
decidimos acrescentar um novo braço ao edifício”.
Apesar do outono adiantado, trabalhando a todo vapor, chegou-
-se até a cobertura. Então começou o mau tempo:
A chuva caiu torrencialmente por dias e noites a fio e, escorrendo e
filtrando, levou consigo a massa recente, deixando a descoberto os tijolos
e as pedras. Perto da meia-noite de 2 de dezembro ouve-se um rumor
violento, mais e mais intenso e assustador. Eram as paredes que caíam
fragosamente.”
Aos meninos aterrorizados Dom Bosco disse: “É uma brincadeira
do diabo, mas, com o auxílio de Deus e de Nossa Senhora, levanta-
remos tudo de novo”.
1Alusão à primeira pequena capela franciscana (Porciúncula), em Assis, onde São Francisco, por Deus
cumulado de dons, fundou a Congregação e irradiou seu espírito (N.T.).
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25.10 Page 250

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O diabo terá feito a sua parte. Mas o ecônomo, padre Giraudi,
que pôde examinar os restos daquelas paredes, afirma que estavam
recheadas com pedras e areia de rio. A cal, era muito magra. Se Dom
Bosco pechinchava nos preços o empresário também queria ganhar
alguma coisa...
Para Dom Bosco o prejuízo foi de 10 mil liras. Os trabalhos só
puderam serem retomados na primavera e o edifício ficou pronto
em outubro de 1853.
Escreve Dom Bosco: “Tendo aguda necessidade de locais, voamos
a ocupá-los. Aulas, refeitório, dormitório puderam ser instalados e
organizados. O número dos internos cresceu para 65”.
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26 Pages 251-260

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26.1 Page 251

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29
E Deus mandou um cão
Nos dias 17 de fevereiro e 29 de março de 1848, Carlos Alberto
concedeu “paridade de direitos civis” aos protestantes e aos
judeus, que até então haviam sido apenas “tolerados”.
Os católicos pensavam que, obtida a paridade, os protestantes se
quedariam quietos e tranquilos. Viram, ao contrário, com apreen-
são, que a seita dos valdenses estava pronta a desencadear uma ver-
dadeira campanha de proselitismo. Fundou três jornais: La Buona
Novella (A boa nova), La Luce Evangelica (A luz evangélica) e Il
Rogantino Piemontese (O corajoso piemontês). Editou e difundiu,
a preços populares, vários livros de propaganda. Organizou ciclos
de conferências.
Era o primeiro impacto seco com o “pluralismo”. Os católicos
piemonteses nada souberam fazer além de indignar-se. “Fiando-se
nas leis civis que até então os havia protegido e defendido – escreve
Dom Bosco –, dispunham apenas de alguns jornais, algumas obras
de cultura. Mas não tinham um só jornal, nenhum livro de se pôr
nas mãos do povo simples.”
Os bispos piemonteses reuniram-se em 1849 em Villanovetta
(Cúneo). “Indignar-se não leva a nada – concluíram. – É preciso
reagir, empenhar-se na imprensa e na pregação.”
Frutos concretos das reuniões foram a publicação da Coleção
dos Bons Livros (setembro de 1849), do jornal La Campana (O
sino) (março de 1850) e das Leituras Católicas (março de 1853).
As Leituras Católicas (uma série de livrinhos ágeis) foram idea-
das por Dom Bosco, e apoiados especialmente pelo bispo de Ivrea.
O Programa explicava a intenção dos editores:
1. Os livros serão de estilo simples, linguagem popular, e conterão
matéria que se refira exclusivamente à religião católica.
2. Publicar-se-á um fascículo mensal de 100 a 108 páginas.Assinatu-
ra anual: 1 lira e 80 centavos”.
250

26.2 Page 252

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Diálogo, não. Duro com duro
Os seis primeiros livrinhos foram escritos por Dom Bosco. Saí-
ram de março a agosto de 1853. Tiveram como título geral O Cató-
lico Instruído na sua Religião.
Dom Bosco relembrava sorrindo que, para aqueles seis primeiros
fascículos, penou para achar um bispo que lhes desse a “aprovação
eclesiástica”. O vigário-geral de Turim lhe disse: “Não me atrevo a
assinar esse escrito. O senhor desafia e ataca os inimigos de frente”.
Dom Bosco os tinha escrito com a mesma decisão de quem vai à
guerra. Nem sequer sabia o que fosse “diálogo”. Seu estilo era “duro
com duro”. Era preciso salvar os jovens e o povo humilde para a
igreja, para Deus, para a vida eterna. Por isso, era necessário lutar.
Bater-se. Opor-se com todos os meios “à torrente que tenta arrastar
em suas ondas corruptas a sociedade e a religião”.
Lembrado da falência de O Amigo da Juventude, Dom Bosco
estava apreensivo. Ao contrário, as Leituras Católicas foram aco-
lhidas com entusiasmo geral. O número dos leitores foi extraordi-
nário. “De aí a fúria dos protestantes.”
A Valdocco desceram, um após outro, os pastores valdenses Bert
e Meille, e o evangélico Pugno. Buscavam persuadir Dom Bosco a
interromper a publicação das Leituras ou, ao menos, moderar-lhes
o tom. Mas nada conseguiram.
Num domingo à noite do mês de janeiro, anunciaram-me a chegada de
dois senhores. Entraram e me cumprimentaram:
– O senhor teólogo tem um grande dom: o de fazer-se compreender e ler
pelo povo. Deveria dedicar-se a expor a história, a geografia, a física. Deveria,
ao invés, deixar de lado as Leituras Católicas: são assuntos muito batidos.
– Em obras de cultura, sim, estes assuntos já foram tratados. Mas ninguém
os tratou de modo acessível ao povo.
– Nós estamos prontos a financiá-lo se começar uma obra de história
(apresentaram-me 4 notas de mil liras) e interromper este trabalho inútil.
– Se é um trabalho inútil, por que gastar dinheiro para obrigar-me a
deixá-lo? Vejam, fazendo-me padre, consagrei-me ao bem da Igreja e do
povo pobre. E pretendo continuar, também escrevendo e publicando as
Leituras Católicas.
Aí mudaram de tom. As vozes tornaram-se ameaçadoras:
– O senhor está cometendo um erro. Se sair de casa, estará certo de voltar?
Levantei-me. Abri a porta da sala:
– Buzzetti – disse –, leve estes senhores até a rua.
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Vinho e castanhas
Ao saírem, aqueles “senhores” rosnaram:“Até mais!”. Dom Bosco,
no último capítulo de suas Memórias, refere-nos como foi o reen-
contro e anota: “Parecia que houvesse uma trama pessoal contra
mim”. Reportemos sua narração, condensando-a onde nos parece
necessário:
Certa noite, enquanto dava aula, dois homens vieram chamar-me às
pressas: na taberna do Coração de Ouro, à Rua Cottolengo, 34, havia
um agonizante. Fui. Mas quis fazer-me acompanhar de alguns dos jovens
maiores, embora tentassem dissuadir-me.
Chegados ao Coração de Ouro, levaram-me para um cômodo no rés do
chão, onde alguns boas-vidas estavam comendo castanhas. Quiseram que
me servisse e comesse com eles. Recusei.
– Um copo do nosso vinho, ao menos. Um gole por certo não lhe fará mal.
Serviram vinho para todos. Ao chegar a minha vez, alguém se virou
bisonhamente para pegar de outra garrafa.Tomei do copo, disse “Saúde!”,
e o repus na mesa.
– Não faça isso. É uma ofensa...
– ... um insulto!
– Mas eu não sinto desejo de beber – respondi.
Então se tornaram ameaçadores:
– Precisa beber, custe o que custar!
Aí um deles segurou-me pelo ombro esquerdo, outro pelo direito:
– Por bem ou por mal, deverá beber.
– Se querem mesmo que eu beba, me larguem os braços – disse,
desvencilhando-me deles. – E como eu não posso beber, dá-lo-ei a um dos
meus rapazes, que beberá em meu lugar.
Dizendo isto, dei uma passada em direção à saída, escancarei a porta, e
convidei os jovens a entrar.
Diante daqueles rapazes taludos, murcharam. Pediram desculpas. Disseram
que o doente se confessaria no dia seguinte.
Um meu amigo pesquisou o caso e me disse que certa pessoa lhe havia
pago um jantar com a condição de que me fizessem beber do vinho que
ela me tinha preparado.
“Queriam matar-me”
Parecem fábulas os atentados que estou contando, mas, infelizmente, são
verdadeiros e tiveram muitíssimas testemunhas.
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Num domingo de setembro, à noite, fui chamado às pressas à casa Sardi,
perto do Refúgio, para confessar uma enferma em fim de vida. Convidei
vários jovens mais crescidos a me acompanharem: a essa altura, já
desconfiava de tudo. Deixei alguns rapazes ao pé da escada. José Buzzetti
e Jacinto Arnaud me acompanharam até o patamar, a pouca distância da
porta da doente.
Entrei e vi uma mulher arfando como se estivesse para exalar o último
respiro. Convidei as quatro pessoas ali presentes a se afastarem para
confessá-la.
– Antes de confessar-me – gritou a velha –, quero que esse patife me peça
perdão.
– Eu não lhe fiz nada!
– Silêncio! – berrou outro, pondo-se de pé.
Seguiu-se acesa discussão e, antes que eu pudesse compreender do que
se tratava, alguém apagou as luzes e caiu uma chuva de cacetadas em
minha direção. Mal houve tempo de agarrar uma cadeira, erguê-la para
proteger a cabeça, e correr rumo à porta para o meio dos meus rapazes.As
cacetadas que deviam acabar comigo quebraram a cadeira. Uma somente
esmagou-me o polegar da mão esquerda, arrancando-me a unha e metade
da falange. Voltei para casa protegido pelos jovens.
“Parece – anota Dom Bosco – que tudo estava urdido para fazer-
-me desistir de caluniar os protestantes.”
O “Gris” ou “Cinzento”
As frequentes brincadeiras de mau gosto de que eu era alvo, aconselha-
ram-me a não andar sozinho quando fosse à cidade de Turim ou dela voltas-
se (então, entre o oratório e a cidade mediava um bom pedaço de campo,
tomado de espinheiros e acácias).
Certa noite escura, voltava para casa sozinho e não sem um tanto de
medo, quando me vejo acompanhar por um enorme cachorro gris, isto é,
cinzento (grígio,em italiano; Dom Bosco chamou-o L’ Gris,em piemontês),
cachorrão que, a princípio, me assustou. Tendo-se aproximado festivo
como se eu fosse o dono, fizemos logo amizade e me seguiu até o oratório.
Isto aconteceu muitas outras vezes. Posso dizer que o Gris me prestou
relevantes serviços. O que vou contar é a pura verdade.
Fins de novembro de 1854. Noite nevoenta e chuvosa.Voltava sozinho da
cidade. De repente percebo que dois homens caminham à minha frente, a
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pouca distância de mim. Aceleram ou diminuem o passo toda vez que eu
acelero ou diminuo o meu.Tento voltar, mas já é tarde: com dois pulos para
trás, em silêncio, me atiram um manto sobre a cabeça. Tento não deixar-me
envolver, quero gritar, mas não consigo. Nesse momento aparece o Gris:
lança-se, latindo, com as patas contra o rosto de um; depois, com a boca
escancarada, avança sobre o outro.
– Chame o cão! – põem-se a gritar.
– Só chamo se me deixarem em paz.
– Chame logo! – imploram.
O Gris continua uivando como lobo enfurecido. Os dois fogem imediata-
mente, e o cão, sempre ao meu lado, acompanha-me até em casa.
Sempre que voltava de noite sozinho, bastava eu chegar às árvores que
o Gris apontava. Os rapazes do oratório viram-no muitas vezes entrar no
pátio. Certa vez, assustados, dois meninos quiseram expulsá-lo a pedradas,
mas José Buzzetti interveio:
– Não façam isso! É o cachorro de Dom Bosco.
Puseram-se então a acariciá-lo e o acompanharam até o refeitório, onde eu
jantava com alguns clérigos e minha mãe. Estes ficaram apavorados:
– Não tenham medo, disse eu. É o meu Gris. Deixem-no vir.
De fato, dando uma longa volta ao redor da mesa, veio ter comigo, todo
festivo. Dei-lhe sopa, pão e carne. Mas nada comeu. Apoiou a cabeça em
meus joelhos, como se quisesse desejar-me boa noite. Depois, deixou-se
acompanhar pelos meninos. Lembro-me de que, naquela noite, eu voltara
tarde para casa, e que um amigo me trouxera em sua carruagem.
Carlos Tomatis, que naqueles anos frequentava o oratório como
estudante, testemunhou: “Era um cão de aspecto verdadeiramente
formidável. Muitas vezes, Mamãe Margarida, ao vê-lo, exclamava:‘Oh,
o feio animalaço!’. Com um metro de altura, pelo gris, orelhas retas
e focinho alongado, parecia um lobo”. Certa noite – testemunhou
o padre Miguel Rua, que viu o cão duas vezes – Dom Bosco devia
sair para afazeres urgentes, mas encontrou o Gris deitado na solei-
ra. Tentou afastá-lo, depois passar-lhe por cima. Mas o cão sempre
rosnava e empurrava Dom Bosco para trás. Mamãe Margarida que
afinal já o conhecia, disse ao filho:
– Se não me quer ouvir a mim, ouça ao menos o cão. Não saia!
No dia seguinte, Dom Bosco veio a saber que um mal-intencio-
nado, armado de pistola, o estava esperando numa curva da estrada.
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Mais de uma vez sentiu Dom Bosco o desejo de descobrir a pro-
veniência daquele cão. Nada achou.Ainda em 1872, a baronesa Azé-
lia Fassati lhe perguntou o que pensava daquele cão. Dom Bosco
respondeu, sorrindo:
– Dizer que seja um anjo faria rir. Mas também não se pode dizer
que seja um cão ordinário.
Cochilo na sapataria
De dia, Dom Bosco trabalhava pelos seus meninos, corria atrás
de recursos, confessava e pregava em muitos institutos da cidade.
De noite, roubava muitas horas para remendar roupas, consertar sa-
patos e escrever seus livros. O sono ia-se amontoando e, por vezes,
o assaltava traiçoeiramente.
Às vezes, lembrava João Cagliero, depois do almoço adormecia,
de repente, sentado à mesa, cabeça inclinada sobre o peito. Então
os presentes, pé ante pé, saíam todos, em silêncio, para não acordá-
-lo.
Para ele, aquela era a hora mais pesada do dia. Então saía para
a cidade atrás de seus afazeres, visitava os benfeitores para pedir
auxílios. “Andando, espanto o sono”, dizia. Mas nem sempre con-
seguia.
Uma tarde, viu-se na pequena praça diante da Consolata com tan-
to sono que já não lembrava onde estava nem para onde ia. Havia,
ali, perto, uma sapataria. Dom Bosco entrou e pediu ao dono que o
deixasse dormir uns minutos numa cadeira.
– Venha, venha, reverendo. Sinto apenas que o meu martelo o
vá incomodar.
– Não se preocupe, não vai incomodar.
Sentou-se perto de uma mesinha e dormiu das 2 e meia às 5.
Quando acordou, correu os olhos, viu a hora, e disse pesaroso:
– Por que não me acordou?
– Só faltava essa! – respondeu o bom sapateiro. – O senhor dor-
mia tão profundamente que seria um crime acordá-lo. Quisera eu
dormir assim!
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Meia dúzia de oficinas
Conservam-se no arquivo da Congregação Salesiana dois docu-
mentos raros: um contrato de aprendizagem, em papel comum,
datado de novembro de 1851; e um segundo, também de apren-
dizagem, em papel selado com estampilha de 40 centésimos, com
data de 8 de fevereiro de 1852. Ambos assinados pelo patrão, pelo
aprendiz e por Dom Bosco.
Eis as partes essenciais do primeiro:
Em força da presente escritura particular, feita na casa do Oratório de São
Francisco de Sales, fica avençado que:
1. o senhor Carlos Aimino recebe como aprendiz de sua arte de vidreiro o
jovem José Bordone, natural de Biella; promete e se obriga a ensinar-lhe a
referida arte, por um período de três anos, e a dar-lhe durante o curso de
aprendizagem as necessárias instruções e as melhores regras respeitantes a
tal arte, e também os oportunos avisos relativos a seu bom comportamento,
corrigindo-o em caso de alguma falta, com palavras e não de outro modo;
obriga-se, outrossim, a ocupá-lo, continuadamente, em trabalhos relativos a
essa arte e não em outros, estranhos a ela, cuidando que não lhe excedam
as forças;
2. o referido mestre deverá deixar inteiramente livres ao aprendiz todos os
dias santos do ano;
3. o mesmo mestre se obriga a pagar diariamente ao aprendiz, no primeiro
ano 1 lira; no segundo 1 lira e 50 centésimos; no terceiro 2 liras; e a
conceder-lhe, cada ano, quinze dias de férias;
5. o jovem José Bordone promete prestar, durante todo o tempo de
aprendizagem, seu serviço ao mestre seu patrão, com presteza, assiduidade
e atenção; ser dócil, respeitoso e obediente;
7. o Diretor do oratório promete prestar sua assistência para o bom êxito
do comportamento do aprendiz.
O dedo em muitas chagas
Nesse contrato Dom Bosco põe o dedo em muitas chagas.Alguns
patrões serviam-se dos jovens aprendizes como se fossem criados
e ínfimos serviçais; ele os obriga a empregá-los só no seu ofício.
Os patrões batiam; Dom Bosco exige que as correções só se façam
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oralmente. Preocupa-se com a saúde, com o repouso festivo, com as
férias anuais. Exige um salário “progressivo”, porque o terceiro ano
do aprendizado era, na prática, um ano do verdadeiro trabalho.
O segundo contrato traz, junto ao selo com o escudo real, o se-
guinte cabeçalho:
Avença entre o senhor José Bertolino, mestre de marcenaria, residente
em Turim, e o jovem José Odasso, natural de Mondovi, com a intervenção
do reverendo sacerdote João Bosco e com a assistência e a garantia
do pai do mencionado jovem, Vincenzo Odasso, natural de Garessio,
domiciliado nesta capital.
O texto é quase uma cópia xerográfica do primeiro. Só um deta-
lhe relevante: Dom Bosco força o empregador a comportar-se não
como “patrão”, mas como “pai”. Lê-se no artigo 1o:
O senhor José Bertolino, mestre de marcenaria, obriga-se a dar ao jovem
José Odasso, no decurso de sua aprendizagem... relativamente ao seu
comportamento moral e civil, aqueles oportunos salutares avisos que
daria um bom pai ao próprio filho; corrigi-lo com amor no caso de
alguma falta, mas sempre e só com palavras de advertência, nunca com
maus-tratos.
Não foi Dom Bosco o inventor dos contratos de aprendiza-
gem. Fazia tempo que a Obra da Mendicidade Instruída, fundada
em 1774, estipulava esses contratos. Mas os dois firmados por
Dom Bosco continuam entre os mais antigos conservados em
Turim. Talvez nos seja lícito pensar (ao menos enquanto novos
documentos não nos desmintam) que, além da Obra da Mendici-
dade Instruída e de Dom Bosco, quase ninguém se preocupava
com a defesa dos aprendizes.
Não cuidavam os pais, quase sempre pobres e ignorantes. Não se
preocupavam as autoridades civis que, de acordo com as doutrinas
liberais, deixavam que os jovens fossem explorados segundo as leis
da “livre concorrência”.
Isolado e indefeso nas mãos do patrão
No início, a “casa do oratório” é um internato que acolhe, de pre-
ferência, jovens trabalhadores. Depois do primeiro menino de Val-
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sésia que chega à cozinha de Mamãe Margarida debaixo de chuva,
depois de Buzzetti e Gastini, são dezenas os que aí aportam anual-
mente. Uns ficam três anos, outros dois meses, alguns a vida inteira.
Só a partir de 1856 é que os estudantes serão maioria.
A preferência dada aos jovens trabalhadores é motivada por sua
situação miserável. Os editos reais de 1844, que aboliram as corpo-
rações, abandonaram o operário isolado e indefeso nas mãos do
patrão. Especialmente o jovem operário. Foi com muita dificuldade
que o rei Carlos Alberto permitiu a formação de “sociedades de as-
sistência”. Mas os liberais eram contrários também a isso.
Dom Bosco coloca seus jovens junto a patrões, defende-os com
bons contratos, visita-os todas as semanas nos mesmos locais de
trabalho como “responsável perante a família”. Se o patrão não res-
peita o contrato, retira o aprendiz.
Em 1853, terminada a construção do novo edifício, decide iniciar,
em sua própria casa, as primeiras oficinas. Dois são os motivos: 1.“os
maus costumes e a irreligião” que os rapazes encontram entre os
operários adultos; 2. o auxílio que as oficinas internas de sapataria,
alfaiataria e tipografia poderão proporcionar ao oratório.
Para começar, duas mesinhas
No outono de 1853, Dom Bosco iniciou as oficinas de sapataria e
alfaiataria.A de sapataria foi colocada no ambiente estreitíssimo que
ora funciona como minissacristia da capela Pinardi, perto da torre:
duas mesinhas e quatro banquinhos. O primeiro mestre foi Dom
Bosco: sentou-se à banca e martelou uma sola na frente de quatro
meninos. Depois ensinou-lhes a manejar a sovela e o barbante en-
cerado. Poucos dias depois, cedeu o lugar de “mestre” a Domingos
Goffi, porteiro do oratório.
Os alfaiates foram alojados na sala da cozinha, uma vez que esta
se transferira para o novo edifício. Os primeiros mestres de alfaiata-
ria foram Mamãe Margarida e ainda Dom Bosco, que ensinou a cor-
tar e costurar como aprendera em Castelnuovo com João Roberto.
Nos primeiros meses de 1854, quase brincando, abriu a terceira
oficina: encadernação de livros. Nenhum dos seus rapazes conhecia
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este ofício. Um dia, rodeado dos seus meninos, espalhou sobre uma
mesa as folhas impressas do seu último livrinho, Os anjos da guar-
da. Depois, apontou com o dedo para um dos meninos:
– Você vai ser encadernador.
– Eu? Nem sei o que é isso, Dom Bosco.
– É fácil.Veja estas folhas grandes, impressas. É preciso dobrá-las
ao meio: u-ma vez, du-as ve-zes, três ve-zes, qua-tro ve-zes! Viu?! Ex-
perimente!
Com o auxílio dos outros rapazes que estavam ali, todas as folhas
foram dobradas. Dom Bosco pôs todas, uma sobre as outras:
– Pronto! O livro está feito! Agora é preciso costurá-lo.
Pede-se então a ajuda de Mamãe Margarida. Com uma agulha e
algumas picadelas nos dedos, chega-se ao fim. Um pouco de amido
misturado com água foi a cola que fixou a capa. Faltava uma última
operação: refilar as bordas. Como fazer? Ao redor da mesa, cada qual
dava o seu palpite: usar a tesoura, o facão, a raspadeira... Dom Bosco
foi à cozinha, pegou do facão de picar cebola e salsa, deu uns golpes
bem firmes, e cortou as bordas:
– Pronto!
Os meninos riram.Riu-se Dom Bosco. A oficina estava“inaugurada”.
Foi instalada numa sala do edifício novo.
Um ano para ter a tipografia
Pelo fim de 1856, começou-se, com muita seriedade desde o iní-
cio, a quarta oficina: a marcenaria. Um bom grupo de rapazes foi re-
tirado das oficinas da cidade e instalado numa sala ampla, mobiliada
com bancos, ferramentas do ofício, depósito de madeira. O primeiro
mestre foi o senhor Corio.
A quinta oficina – a mais desejada – foi a tipografia. Dom Bosco
teve de lutar quase um ano para obter a autorização da prefeitura.
Foi-lhe concedida aos 31 de dezembro de 1861. Começou sob a di-
reção do mestre de arte André Giardino e com a assistência de José
Buzzetti.
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27 Pages 261-270

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Não sabemos ao certo o dia em que começou a funcionar. Mas
os mesmos aprendizes deram notícia do acontecimento aos seus
benfeitores por meio de uma circular impressa.
E o primeiro livro impresso na Tipografia do Oratório de São
Francisco de Sales foi um opúsculo do cônego C. Schmid: Teófilo,
ou seja, o jovem solitário, história amena. Saiu como número das
Leituras Católicas, em maio de 1862. Desde então, salvo poucas ex-
ceções, as Leituras Católicas foram sempre impressas na Tipografia
do Oratório.
Os inícios foram modestos: duas “rodas”, movidas pelos braços
dos rapazes. Mas, ainda em vida de Dom Bosco, aquela tipografia
tornou-se grandiosa e moderna, podendo competir com as me-
lhores da cidade: 4 prensas, 12 máquinas tocadas a eletricidade,
estereotipia, fundição de caracteres, calcografia.
Em 1862, Dom Bosco abriu a sexta e última oficina: a serralheria,
precursora das atuais oficinas de mecânica.
Quatro estradas em busca do rumo certo
Não foi fácil pôr as oficinas em funcionamento.Teve de experi-
mentar sucessivamente fórmulas diferentes.
De começo, contratou mestres de arte com salário normal. Con-
sequência: preocupavam-se com o trabalho, mas não com o progres-
so dos alunos e do bom andamento da oficina.
Segunda fórmula.Aos mestres de arte confia a inteira responsabi-
lidade, com o incômodo de buscarem serviço como se foram donos.
Consequência: os jovens passam a ser tratados como serviçais, sub-
traídos à autoridade do diretor.
Terceira tentativa. Dom Bosco assume a total responsabilidade
moral e administrativa, deixando aos chefes de arte só a formação
profissional dos aprendizes.Ainda uma consequência negativa:rece-
ando serem suplantados pelos melhores, os chefes ensinam pouco,
deixando-os na ociosidade.
A fórmula exata, Dom Bosco encontrou-a quando conseguiu
formar mestres de oficina inteiramente ligados a ele: os salesianos
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coadjutores, religiosos como os clérigos e os padres, mas dedicados
às escolas profissionais.
“Quem não é verdadeiramente pobre está fora de lugar nesta casa”
O internato do oratório não devia ser uma “fábrica de operários”,
mas verdadeira casa de educação. Por isso, durante o ano letivo
de 1854-55 Dom Bosco inaugura um primeiro “regulamento”, que
delineia a fisionomia da Obra para os jovens aprendizes (dos jovens
estudantes, trata-se num apêndice do regulamento).
O jovem artesão aceito deve ter de 12 a 18 anos, ser “órfão de pai
e mãe, e totalmente pobre e abandonado. Se tem irmãos ou tios que
possam assumir-lhes a educação, está fora da finalidade desta Casa”.
O regulamento apresenta “as pessoas às quais cada filho deverá
obedecer e que são consideradas como superiores da Casa”: o Di-
retor (responsável pelos deveres de todos e pela moralidade dos
filhos da Casa); o Prefeito ou ecônomo; o Catequista ou diretor es-
piritual (tem a incumbência de prover às necessidades espirituais
dos jovens); o Assistente (distribui o pão, assiste no refeitório, nas
oficinas, nos dormitórios).
Recomenda como virtudes fundamentais a piedade para com
Deus, o trabalho, a obediência aos superiores, o amor aos colegas,
a modéstia. Dá normas de procedimento para dentro e fora de casa.
Elenca “três males que se devem evitar a todo custo”: a blasfêmia, a
desonestidade, o roubo.
O horário previa levantar cedo, a Missa com as orações e o
Terço, o café, o trabalho. Todos se reuniam para o almoço e a
grande recreação pós-meridiana. A seguir, retomava-se o trabalho.
À noitinha, estavam previstos exercícios escolares.
O dia terminava com as orações da noite e breves palavras de
Dom Bosco a toda a família: a “boa-noite”.
Os jovens eram convidados a participar todos os meses de breve
retiro espiritual (Exercício da Boa Morte) e, todos os anos, de um
breve curso de Exercícios Espirituais (retiro).
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No campo religioso, Dom Bosco sempre foi menos exigente
com os aprendizes do que com os estudantes. Vendo, porém, que
havia entre eles rapazes de grande espiritualidade, favoreceu, em
1859, a fundação da “Companhia de São José”: um grupo que devia
reunir os melhores, empenhando-os num aprofundamento da vida
cristã e apostólica.
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Estudantes com capote militar
1O de novembro de 1851. Dom Bosco chega à sua terra natal, Cas-
telnuovo d’Asti. Pelo fim da tarde, deve fazer, na igreja, a prédica
para a comemoração dos fiéis defuntos.
Entre os coroinhas está um rapazinho que o acompanha até o
púlpito e que se fica a olhá-lo durante todo o sermão. De volta à sa-
cristia, Dom Bosco vê que continua a olhá-lo em silêncio e o chama:
– Você quer me dizer alguma coisa, não é verdade?
– Sim, senhor. Quero ir a Turim com o senhor para estudar e ser
padre.
– Muito bem. Então diga à sua mãe que depois do jantar vá à casa
do pároco.
O menino se chama João Cagliero. É órfão de pai. A mãe chega
com ele depois da ceia:
– Então,Teresa – graceja Dom Bosco –, é verdade que quer ven-
der-me seu filho?
– Oh, não – responde, sorrindo, a mãe –, cá entre nós só se ven-
dem os bezerrinhos. Os filhos a gente os dá de presente.
– Melhor ainda. Prepare-lhe um pouco de roupa que amanhã eu
o levo comigo.
No dia seguinte bem cedo, João estava na igreja. Ajudou à Missa
de Dom Bosco, tomou café com ele, beijou a mãe e, com sua trouxi-
nha debaixo do braço, disse impaciente:
– Então vamos, Dom Bosco?
“Dormir no cesto do pão”
Fizeram o longo caminho a pé. João, na prática, o fez duas
vezes, porque, enquanto falava com Dom Bosco, corria à frente,
espantava passarinhos nos prados, saltava os fossos. Quem lem-
bra é Cagliero:
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Durante a viagem, Dom Bosco me fez mil perguntas e eu lhe dei mil
respostas. Desse dia em diante, não tive segredos para ele. Ouvindo minhas
artes, dizia-me brincando que para o futuro eu devia melhorar. Finalmente
chegamos a Turim. Era a noite de 2 de novembro. Estávamos cansados.
Dom Bosco apresentou-me a Mamãe Margarida, dizendo:
– Mamãe, trouxe-lhe um garotinho de Castelnuovo.
Margarida respondeu:
– Oh, sim. Você não faz outra coisa: só vai à cata de meninos. E eu já não
sei onde pô-los.
– Este aqui é tão pequeno – brincou Dom Bosco – que, para dormir, o
poremos no cesto do pão e, com uma corda, o levantaremos até o forro,
como gaiola de passarinhos.
A mãe pôs-se a rir. Procurou um lugar, mas não achou. Nem um canto livre.
Por aquela noite, tive que dormir no chão, ao lado da cama de um colega.
No dia seguinte vi quanta pobreza havia naquela casa. Os nossos
dormitórios, no térreo, eram estreitos, pavimentados com pedras de
rua. Na cozinha, umas poucas tigelas de estanho e respectivas colheres.
Garfos, facas, toalhas só anos mais tarde iríamos ver. O refeitório era um
telheiro. Dom Bosco nos servia à mesa, nos ajudava a manter em ordem o
dormitório, limpava e remendava nossa roupa, fazia todos os serviços mais
humildes.
Levávamos vida comum em tudo. Mais que num colégio, nós nos sentíamos
numa família, sob a direção de um pai que nos queria bem e que só se
preocupava com o nosso bem espiritual e material.
João Cagliero demonstrou desde os primeiros dias engenho vivo
e ânimo alegre. Gostava tanto de brincar que transbordava.
Miguel Rua continuava em casa, com a mãe. Mas pela manhã che-
fiava o pequeno grupo de estudantes que juntos iam à escola do pro-
fessor Bonzanino. Por encargo de Dom Bosco, Rua devia funcionar
como “assistente”, cuidar para que ninguém matasse as aulas. Poucas
vezes logrou Miguel controlar o miúdo Cagliero.Apenas fora do ora-
tório, ele tomava outro caminho: alcançava correndo Porta Palazzo
onde parava encantado diante dos charlatães, das barracas. Depois,
toca de volta. Sempre às carreiras. Até a escola. Quando os colegas
chegavam, já estava na porta, suado, mas feliz. Miguel o mirava de
esguelha:
– Por que não vem conosco?
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– Porque gosto de outro caminho. Que mal há nisso?
– Deve ser obediente.
– E eu não sou? Devo vir à escola, e venho. Devo ser pontual, e
sou. Que lhe importa se eu gosto de ver os charlatães?
Tornar-se-ia o primeiro bispo e cardeal salesiano. Ao lado do pa-
dre Rua viria a ser uma das colunas mais sólidas da Congregação Sa-
lesiana. Como temperamento, Rua e Cagliero seriam sempre muito
diferentes. Miguel: diligente, constante, reflexivo. João: extrovertido,
entusiasta, exuberante. Mas prontos ambos a dar a vida por Dom
Bosco.
“Atravessarás o Mar Vermelho e o deserto”
22 de setembro de 1852. Miguel Rua entra definitivamente como
aluno interno no oratório. No dia seguinte, com Dom Bosco, Mamãe
Margarida e 26 colegas, parte a pé para os Becchi. Dom Bosco pre-
gará a novena de Nossa Senhora do Rosário, em Castelnuovo, e os
rapazes ficarão hospedados com seu irmão José.
Antes de partir, Dom Bosco chamou Miguel e lhe disse:
– No ano que vem, preciso que me ajude seriamente a tocar o
barco para a frente. Dia 3 de outubro será a festa de Nossa Senhora
do Rosário. O pároco de Castelnuovo irá aos Becchi e, na capeli-
nha, lhe dará a batina preta dos clérigos. Voltando ao oratório será
assistente e professor de seus colegas. Certo?
– Certo.
Na noite da festa – lembrava o padre Rua –, na diligência que os
devolvia a Turim, Dom Bosco quebrou o silêncio e disse:
– Meu caro Rua, agora você começa uma vida nova. Saiba, po-
rém, que antes de entrar na Terra Prometida, terá que atravessar o
Mar Vermelho e o deserto. Se me ajudar, passaremos tranquilos, um
e outro. E chegaremos à Terra Prometida.
Miguel pensa no que ouve. É pouco o que entende. Quebra, por
sua vez, o silêncio e pergunta:
– Lembra-se do nosso primeiro encontro? O senhor tinha distri-
buído medalhas. Para mim não sobrara nenhuma. Então me fez um
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gesto estranho, como se quisesse dar-me a metade de sua mão. O
que é que queria dizer?
– E ainda não entendeu? Queria dizer que nós dois dividiríamos
tudo. Tudo o que for meu será também seu, inclusive as dívidas, as
responsabilidades, as dores de cabeça.
Dom Bosco sorri.
– Mas haverá também muita coisa bonita. Verá. E, no fim de tudo,
a coisa mais bela: o Céu.
Garantia por cinquenta anos
1853. Terça-feira de Páscoa. O céu de Turim é um emaranhado
de nuvens negras. João Francésia e Miguel Rua, colegas de aula e
amigos perfeitos, repassam juntos a lição de italiano. Miguel, po-
rém, está ausente, distraído: uma grande tristeza parece esmagá-lo.
Francésia, após repetir duas vezes a mesma coisa, fecha bruscamen-
te o livro e explode:
– Afinal, o que é que você tem hoje?
Mordendo os lábios para não chorar, Miguel murmura:
– Meu mano João morreu... E o próximo sou eu...
Era o último irmão que vivia em casa. Agora, a mãe, no quartinho
junto à Fábrica de Armas, ficaria sozinha. Dom Bosco vem a saber
da notícia, e, para distraí-lo, leva-o consigo pelas ruas de Turim.
Precisa resolver um problema perto da igreja da Gran Madre, às
margens do rio Pó. Andam rápido e falam do oratório. Nesses dias
Turim celebrou o oitavo cinquentenário do famoso “milagre do SS.
Sacramento”, e Dom Bosco publicou um livrinho que teve larga
aceitação. De repente Dom Bosco para e diz-lhe lentamente:
– Daqui a cinquenta anos celebrar-se-á o nono cinquentenário
do milagre. Eu estarei morto, mas você viverá. Lembre-se, então, de
mandar reimprimir o meu livrinho.
Miguel pensa naquela data fabulosamente distante: 1903! Me-
neia a cabeça:
– Para o senhor é fácil dizer que estarei vivo. Eu, porém, estou
mesmo com medo que a morte me faça em breve uma brincadeira
de mau gosto.
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– Nenhuma brincadeira. Nem boa nem má. Eu lhe garanto que
daqui a cinquenta anos você estará vivo. Mande reimprimir esse
livrinho, entendidos?
(De fato, em 1903, o padre Rua vive. É o sucessor de Dom Bosco
à frente da Congregação Salesiana. Tem 66 anos. E manda reimpri-
mir o livrinho.)
Filhinhos de papai e pobretões
Enquanto se dedica aos jovens operários, Dom Bosco não des-
cuida os estudantes. A sua finalidade – já o indicamos várias vezes
– é preparar colaboradores, clérigos e sacerdotes, que o ajude em
suas obras, e preparar também vocações sacerdotais para as dioce-
ses, escolhendo-as dentre rapazes “que crescem entre a enxada e o
martelo”, para suprir a diminuição dos sacerdotes.
Como já dissemos, o primeiro “quarteto” preparado tê-lo-ia de-
cepcionado um pouco. Mas Rua, Cagliero e Francésia refariam ple-
namente as suas esperanças. E junto deles vicejavam Ângelo Sávio,
Rocchietti, Turchi, Durando, Cerruti...
O internato para estudantes nasceu assim, de mansinho, mas
desenvolveu-se vigoroso: 12 internos em 1850, 35 em 1854, 63 em
1855, 121 em 1857...
Os alunos dos três primeiros anos de latim iam às aulas de Bonza-
nino. Depois, passavam às classes de humanidades e de retórica de
Mateus Picco, que ensinava nas vizinhanças da Consolata.
Essas duas escolas eram frequentadas por filhos de “famílias
bem” de Turim, que pagavam regiamente. Os rapazes de Dom Bos-
co, ao invés, eram aceitos gratuitamente.
No início, os senhorzinhos zombavam dos pobretões que che-
gavam à escola carregando às costas velhos e pesados capotes mi-
litares, o que “lhes dava um ar de contrabando ou de caricatura”.
(Esses capotes e gorros de soldado eram doação do Ministério a
Dom Bosco; mais pareciam coberta que roupa, relembra o padre
Lemoyne, mas defendiam da chuva e da neve.) Bonzanino, porém,
não tolerava troças:“O valor de um rapaz – declarou severo – não
se mede pela cor do capote, mas pelas páginas dos exercícios”. E, a
julgar pelas notas, os filhos de papai se tornavam, com frequência,
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“pobretões”. Os rapazes de Dom Bosco estudavam. O amor de Dom
Bosco sabia ser exigente, não tolerava poltrões. Em 1863, o profes-
sor Prieri, da Universidade de Turim, teria declarado: “Na casa de
Dom Bosco se estuda e se estuda de verdade”.
“No meio dos jovens me sinto bem”
Esse ir e vir da cidade, não era o ideal para Dom Bosco.Além dis-
so, as salas de aula de Bonzanino e de Picco já não eram suficientes
para acolher todos os estudantes do oratório.
Logo que João Batista Francésia, 17 anos, terminou com brilhan-
tismo os estudos de latim, foi-lhe confiada a terceira ginasial.114Era
novembro de 1855.
No ano seguinte, começaram a funcionar também a primeira e a
segunda,215dirigidas por um leigo amigo de Dom Bosco, o professor
Bianchi.
Em 1861, os alunos das três classes ginasiais eram mais de 200.
Professores eram os jovens clérigos Francésia, Provera,Anfossi, Du-
rando, Cerruti.
No apêndice do “regulamento” dedicado aos jovens estudantes,
prescrevia-se que, para ser aceito no oratório, um estudante devia
ter três qualidades:“especial aptidão para o estudo”,“eminente pie-
dade” e “vontade de abraçar o estado eclesiástico, ficando, porém,
livre de seguir a sua vocação, uma vez terminado o curso de latini-
dade”.
Não se insistia drasticamente sobre a condição de órfão e de po-
breza total.A maior parte dos meninos estudantes, porém, o confir-
ma suficientemente.
O horário dos artesãos e dos estudantes coincidia. Com a diferen-
ça evidente de que as horas passadas pelos primeiros nas oficinas,
eram empregadas pelos estudantes na aula e no estudo.
“Até 1858 – relembra o padre Lemoyne –, Dom Bosco governou
e dirigiu o oratório como um pai regula a própria família. Os jovens
não sentiam grande diferença entre o oratório e a casa paterna. Não
1 8o ano, no Brasil (N.T.).
2 6o e 7o, no Brasil (N.T.).
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havia filas ordenadas para se ir de um lugar a outro, nem assistência
rigorosa e regulamento minucioso.”
Sempre que podia, Dom Bosco estava com os meninos. Dizia:
“Não aguento ficar sem os meus rapazes”. Só um motivo grave po-
dia impedi-lo de estar com eles, conversando e jogando. Por muito
tempo ia com eles à sala de estudo. Não porque faltassem assis-
tentes, mas porque “ali se sentia bem”, e num banco como o dos
meninos “escrevia ou meditava o seu novo livro”.
Terminada a ceia (e isto até 1870), uma onda de rapazes invadia
a sala onde Dom Bosco acabava de comer. Fazia-se de tudo para
chegar perto, vê-lo, ouvi-lo, fazer-lhe perguntas, e rir de suas facé-
cias. Ficavam à sua volta, sobre as mesas da frente, sentados, em pé
e alguns até de joelhos. A Dom Bosco muito agradava esse encontro
familiar, “o melhor prato de sua pobre ceia”.
“Dom Bosco não pôde compreender”
A atmosfera religiosa que circundava os rapazes estudantes era
muito intensa. Eles eram os delicados renovos das futuras vocações
sacerdotais. E Dom Bosco os queria imersos num clima de religiosi-
dade sacramental, mariana, eclesial.
A confissão era um hábito semanal ou quinzenal para todos. Dom
Bosco ouvia confissões por duas ou três horas, todos os dias. Na
véspera das festas, até durante toda a tarde. A fama, mui difundida,
de sua capacidade de “ler os pecados” animava a uma confiança
total. Poucos anos depois do início do internato, a Comunhão já
era sacramento cotidiano para muitos meninos. Pouquíssimos não
recebiam a Eucaristia ao menos uma vez por semana.
A devoção a Nossa Senhora se respirava. Atingirá esplêndida in-
tensidade nos anos de Domingos Sávio e, depois, durante a constru-
ção do grande santuário de Maria Auxiliadora.
O amor ao papa permaneceu um ponto fixo na mentalidade cris-
tã de Dom Bosco. Chamá-lo-ão “mais papista que o papa”, e não
estarão de todo errados. Não era só questão de palavras: para obe-
decer ao convite de um papa, Dom Bosco queimará os últimos anos
de sua vida. E os rapazes absorviam a sua mentalidade.
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Também Dom Bosco tinha o direito de errar. E, segundo os mo-
dernos psicólogos e eclesiólogos, errou redondamente no que res-
peita às férias com a família dos seus estudantes. Queria-as abrevia-
das ao máximo. Julgava-as “um grave perigo” para as vocações.
“Filho do seu tempo – dizem hoje os entendidos –, Dom Bosco
não pôde compreender o valor da família e da paróquia como Igreja
local para o germinar de uma vocação”. Ante juízo tão drástico, as
cifras, talvez, façam surgir uma pequena hesitação: só em 1861, no
oratório, brotaram 34 vocações sacerdotais; sua casa foi definida
pelos anticlericais como “a fábrica de padres”; no fim de sua vida,
os padres saídos de Valdocco contavam-se aos milhares e não eram
um exército de reprimidos.
Dom Bosco estava convencido de que, se do padre se requer
a castidade, é preciso defender o “coroinha” durante o delicado
período da puberdade. É uma consideração que, sem descuidar os
valores da família e da Igreja local, será preciso – quem sabe – voltar
a meditar.
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32
1854:
“Chamar-nos-emos Salesianos”
26de janeiro de 1854. Frio polar em Turim. No quartinho de
Dom Bosco, ao invés, há um calor especial. Dom Bosco fala,
e quatro jovens galopam fantástica e confiadamente atrás de
suas palavras:
– Como veem, Dom Bosco faz o que pode, mas está sozinho. Se,
ao contrário, vocês me ajudarem, faremos milagres de bem. Milhares
de meninos pobres esperam por nós. Prometo-lhes que Nossa Se-
nhora nos dará oratórios amplos e espaçosos, igrejas, casas, escolas,
oficinas, e muitos padres prontos a nos ajudar. E isto na Itália, na
Europa e também na América. E já vejo no meio de vocês uma mitra
de bispo...
Os quatro rapazes entreolham-se espantados. Parece-lhes sonhar.
Entretanto, Dom Bosco não brinca. Fala sério. Parece ler no futuro.
– Nossa Senhora quer que fundemos uma sociedade. Pensei lon-
gamente que nome lhe dar. Decidi chamar-nos Salesianos.
Entre os quatro estão as pedras fundamentais da Congregação
Salesiana. Em seu canhendo, naquela noite, Miguel Rua anota dili-
gentemente:
Reunimo-nos, no quarto de Dom Bosco, Rocchietti,Artiglia, Cagliero e Rua.
Foi-nos proposto fazer, com o auxílio de Deus e de São Franscisco de Sales,
uma experiência de exercício prático de caridade para com o próximo.
A seguir, faremos uma promessa. Depois, se for possível, um voto a Deus.
Aos que fazem esta prova, e aos que fizerem depois, deu-se o nome de
Salesianos.
O caramanchão e as rosas
As “previsões futuras” que Dom Bosco comunica a seus jovens
nessa noite são as mesmas que, anos atrás, o fizeram passar por lou-
co e quase o mandaram para o hospício.
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28.3 Page 273

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Dom Bosco, porém, as repete com teimosa segurança, porque
(como disse ao padre Borel) “as vê em sonho”. Em 1847 teve um “so-
nho fundamental”, que lhe serve de programa – são palavras suas
– na ordenação das coisas por fazer. Contá-lo-á somente em 1864,
na antessala de seu quarto, aos primeiros salesianos, dentre os quais
os padres Rua, Cagliero, Durando, Barbéris:
Certo dia, em 1847, após meditar muito sobre o modo de fazer o bem
à juventude, apareceu-me a Rainha do céu (expressão raríssima em
Dom Bosco. Geralmente diz: sonhei ver uma linda senhora...) que
me levou a um jardim encantador. Nele havia um longo pórtico, com
plantas trepadeiras carregadas de folhas e flores. O pórtico dava para um
caramanchão encantador, flanqueado e coberto de maravilhosos rosais
em plena florescência. Também o terreno estava todo coberto de rosas.
Nossa Senhora me disse:
– Tire os sapatos e avance por esse caramanchão. É o caminho que deve
fazer.
Gostei de tirar os sapatos: teria sentido muito machucar aquelas rosas.
Comecei a andar. Mas logo percebi que aquelas rosas escondiam espinhos
muito agudos. E tive que parar.
– Aqui precisa usar sapatos – disse eu à guia.
– Sem dúvida. E dos bons.
Calcei os sapatos e retomei o caminho com certo número de companheiros
que haviam aparecido naquele momento e me pediram para caminhar
comigo.
Pendiam do alto muitos ramos como festões. Rosas! Só se viam rosas: em
cima, dos lados, no chão, a meus pés. Minhas pernas, porém, enredando-se
nos ramos estendidos por terra, acabavam feridas. Espinhava-me ao afastar
os ramos transversais. Sangrava nas mãos, por todo o corpo. Todas as rosas
escondiam muitíssimos espinhos.
Todos os que me viam caminhar diziam: “Dom Bosco só caminha sobre
rosas! Tudo lhe vai bem!”. Não viam que os espinhos me rasgavam os
membros.
Muitos clérigos, padres e leigos por mim convidados haviam-se posto
a seguir-me, alegres, atraídos pela beleza daquelas flores. Mas, ao
perceberem que deviam caminhar sobre espinhos começaram a gritar:
“Fomos enganados!”. Não poucos retrocederam. Fiquei praticamente só.
E comecei a chorar. “Será possível – dizia eu – que tenha de percorrer
todo este caminho, só?”
Mas fui logo consolado: vi avançar para mim um grupo de padres, clérigos,
leigos, os quais me disseram: “Somos todos seus e prontos para segui-lo”.
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28.4 Page 274

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Precedendo-os, reiniciei o caminho. Só alguns desanimaram e pararam.
Grande parte foi comigo até o fim.
Percorrido todo o caramanchão, vi-me num belíssimo jardim. Os meus
poucos seguidores estavam macilentos, desgrenhados, ensanguentados.
Levantou-se, então, uma brisa suave. A seu sopro, se curaram. Soprou outro
vento e, como por encanto, me vi circundado de um número imenso de
jovens e de clérigos, de coadjutores leigos e também de padres, que se
puseram a trabalhar comigo, guiando aquela juventude. Reconheci alguns,
mas muitos outros não os conhecia.
Então a Santa Virgem, que fora a minha guia, perguntou-me:
– Sabe o que significa o que você está vendo e viu antes?
– Não.
– Saiba que o caminho por entre as rosas e os espinhos significa o cuidado
que deverá tomar com a juventude. Deverá andar com o calçado da
mortificação. Os espinhos significam os obstáculos, os padecimentos, os
desgostos que lhe caberão. Mas não desanimem. Com a caridade e com a
mortificação, irão superar tudo e chegar às rosas sem espinhos.
Logo que a Mãe de Deus acabou de falar, acordei. Estava em meu quarto.
Contei-lhes isto – conclui Dom Bosco – para que cada um de nós tenha a
certeza de que é Nossa Senhora que quer a nossa Congregação. E para que
nos animemos sempre mais a trabalhar para a maior glória de Deus.
Guiado por essa tranquila segurança, Dom Bosco “lançava”, to-
dos os dias, “as redes” para o meio dos seus jovens a fim de au-
mentar o número dos seus futuros salesianos. Dizia-lhes como por
acaso: “Você quer bem a Dom Bosco? Gostaria de ficar comigo?”. Ou
então: “Não quer me ajudar a trabalhar pelos meninos? Veja: se eu
tivesse cem padres e cem clérigos, teria trabalho para todos. Pode-
ríamos ir para o mundo inteiro”.
Essas conversas eram comuns entre os meninos. Falava-se aberta-
mente dos “futuros oratórios”, dos sonhos de Dom Bosco, de “ficar
ou não” com ele.
Uma tarde de 1851, de uma janela do primeiro andar, Dom Bos-
co jogou um punhado de balas para o meio dos meninos. Acendeu-
-se uma grande alegria. Um deles, vendo-o sorrir à janela, gritou:
“Oh, Dom Bosco, se o senhor pudesse ver todos os lugares do mun-
do e em cada um deles muitos oratórios!”. Dom Bosco, fixando nos
ares seus olhos serenos, respondeu: “Quem sabe não chegará o dia
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28.5 Page 275

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em que os filhos do oratório estarão, de fato, espalhados por todo
o mundo!?”.
“Qual será o meu salário?”
Havia, em Avigliana, um sacerdote três anos mais velho que Dom
Bosco. Chamava-se Vitório Alasonatti. Dom Bosco se encontrara
com ele muitas vezes nos Exercícios Espirituais, em S. Ignazio so-
pra Lanzo. Tornaram-se amigos. O padre Alasonatti era professor
primário, em Avigliana, e sabia levar muito bem os seus pequenos.
Com uma pitada de severidade, exigia certa gravidade. Mas gosta-
vam dele.
Dom Bosco já o provocara várias vezes jocosamente:
– Quantos meninos tem? Só 30? Que vergonha! Eu tenho 600!
Como pode trabalhar só para 30 menininhos? Ora, vamos! Venha a
Turim me ajudar!
– E qual seria o salário?
– Pão, trabalho e Paraíso. Liras, poucas. Sono, à vontade.
Brinca daqui, brinca dali, Alasonatti começa a pensar seriamen-
te no caso. Dom Bosco percebe. E nos primeiros meses de 1854
manda-lhe uma carta em que apenas lhe diz: “Venha ajudar-me a
rezar o breviário”.
14 de agosto. Liberado de seus compromissos, o padre Alasonat-
ti chega ao oratório, com a maleta na mão e o breviário debaixo do
braço. Abraça Dom Bosco e lhe diz:
– Aqui estou. Onde vamos rezar o breviário?
Dom Bosco o leva à sala destinada aos livros da contabilidade:
– Aqui. Este será o seu reino. Já ensinou tanta aritmética que,
estou certo, se sairá muito bem nas contas de somar e diminuir.
O padre Alasonatti ficou sério:
– De hoje em diante, mande que eu obedeço. E não me poupe,
porque eu quero ganhar o Céu.
Desse dia em diante, o padre Alasonatti se transforma na som-
bra suave, um tanto severa, de Dom Bosco. Alivia-o de todos os
trabalhos que pode: da administração geral da casa, da assistência,
da escrituração da contabilidade, da correspondência mais árida e
espinhosa.
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28.6 Page 276

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Quando se cansa, quando a saúde começa a declinar, lê no bre-
viário um cartãozinho que leva à maneira de marcador. “Vitório,
que veio fazer aqui?”. Ao lado, havia escrito também uma frase que
Dom Bosco repetia aos seus quando os via cansados: “Descansare-
mos no Céu”.
No dia seguinte ao de sua chegada, o padre Alasonatti teve de ini-
ciar sua missão em Valdocco de modo, digamos, insólito: foi chama-
do a atender um colérico. A cólera-morbo invadira Turim de modo
violento.
A morte pelas ruas do bairro do Dora
A pavorosa notícia chegara a Turim no mês de julho. A cólera
invadira a Ligúria, fazendo, em Gênova, 3 mil vítimas. Em Turim, os
primeiros casos se verificaram nos dias 30 e 31 de julho.
O rei, a rainha e a casa real partiram em carruagens fechadas.
Refugiaram-se no castelo de Caselette, na embocadura dos vales de
Lanzo e Susa.
O epicentro da pestilência foi o bairro do Dora, a poucos passos
de Valdocco.Ali, em casebres e barracas, se amontoavam os emigra-
dos, o povo mal nutrido e sem possibilidade de higiene. Dos 800
atingidos num só mês, 500 morreram.
O prefeito Notta dirigiu um apelo à cidade: precisava-se de gente
corajosa que fosse assistir os doentes, transportá-los aos lazaretos,
para que o contágio não se alastrasse.
5 de agosto, festa de Nossa Senhora das Neves. Dom Bosco fala
aos rapazes. Começa com uma promessa:
– Se vocês se puserem na graça de Deus e não cometerem nenhum
pecado mortal, eu lhes garanto que ninguém será atingido pela cólera.
Depois, fez um convite:
– Sabem que o prefeito lançou um apelo. Há necessidade de en-
fermeiros e assistentes para cuidar dos coléricos. Muitos de vocês
são demasiado pequenos. Mas se alguns dos maiorzinhos tiverem
coragem de me acompanhar aos hospitais e às casas particulares,
faremos juntos uma obra boa e agradável a Deus.
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Naquela mesma noite, alistaram-se 14. Poucos dias depois, em-
bora muito pequenos, outros 30 arrancaram a licença de juntar-se
aos primeiros.
Foram dias de trabalho duro e nada agradável. Os médicos acon-
selhavam cuidar dos doentes com massagens e fricções nas pernas,
para provocar abundante transpiração. Os rapazes se dividiram em
três grupos: os mais altos, a serviço em tempo integral, nos lazare-
tos e nas casas dos doentes; um segundo grupo ia pelas ruas para
ver havia novos casos de doentes; um terceiro (dos pequenos) fica-
va no oratório, pronto a atender qualquer chamado.
Dom Bosco exigia todas as precauções. Cada um levava consigo
um vidrinho de vinagre e, após ter tocado os doentes, devia lavar as
mãos. Narra o padre Lemoyne:
Acontecia frequentemente que faltavam lençóis, cobertores, roupa-
-branca para os doentes. Os rapazes vinham dizê-lo a Mamãe Margarida.
Ia à rouparia e dava-lhes o pouco que tinham: em breve, tudo acabou.
Certo dia, veio um jovem dizer-lhe que um doente se agitava num míse-
ro estrado sem lençol:“Não teria nada para cobri-lo?”. A mulher pensou
um pouco, buscou a toalha branca do altar e a deu ao rapaz:“Leve-a ao
seu doente. Jesus não vai reclamar”.
Os gigantes de rosto triste
Fim de agosto. Uma noite, João Cagliero, 16 anos, volta do lazare-
to e sente-se mal. Provavelmente, no calor asfixiante daqueles dias,
comera alguma fruta passada. O diagnóstico do médico, que Dom
Bosco chama imediatamente, é muito feio: “Tifo”.
A febre judia dele todo o mês de setembro. Nos últimos dias,
reduzido a pele e osso, Cagliero sente-se definhar. Dois médicos,
chamados para uma consulta, declaram o caso desesperador. Acon-
selham ministrar-lhe os sacramentos.
Dom Bosco fica profundamente perturbado. Gosta tanto desse
rapaz que não tem coragem de dar-lhe a tristíssima notícia. Pede a
Buzzetti que o faça com extrema delicadeza enquanto desce à igre-
ja para buscar o Viático.
Mal Buzzetti acaba de falar com Cagliero, eis que Dom Bosco
reaparece no quarto com o Viático. Mas detém-se, parado, por al-
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28.8 Page 278

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guns segundos, fixando o vazio, como se visse alguma coisa que
os outros não veem. Em seguida, aproxima-se da cama do doen-
te. Nele, porém, alguma coisa mudou profundamente: a tristeza, a
perturbação de antes desapareceram. Está alegre e sorridente.
Cagliero murmura:
– É minha última confissão? Vou mesmo morrer?
Com voz firme Dom Bosco responde:
– Ainda não está na hora de ir para o Céu: tem ainda muita coisa
para fazer. Você ficará bom. Vestirá a batina... Ficará padre... E de-
pois... e depois, com o breviário debaixo do braço, terá de andar mui-
to... Fará rezar o breviário a muita gente... Irá para longe, muito longe.
Ditas estas palavras, levou o Viático de volta para igreja.
Poucos dias depois, a febre baixa de repente. João pode ir a Cas-
telnuovo para uma longa convalescença.
Por algum tempo, Buzzetti e Cagliero se perguntam que teria
Dom Bosco “visto” ao reentrar no quarto. A resposta deu-a ele mes-
mo, mais tarde:
Ao pôr os pés na soleira da porta, vejo, de repente, uma grande luz. Uma
pomba alvíssima, com um ramo de oliveira no bico, desce sobre o leito
do doente. Detém-se a poucos centímetros do rosto pálido de Cagliero e
deixa o ramo cair sobre a fronte.
Logo depois, parece-me que as paredes do quarto se abram e ampliem
em horizontes longíquos e misteriosos. Ao redor da cama aprece uma
multidão de estranhas figuras primitivas. Semelham selvagens de estatura
gigantesca. Alguns, têm pele escura, tatuada de misteriosos ornamentos
avermelhados. Dois daqueles gigantes, de rosto altivo e triste, curvam-se
por sobre o doente e, trepidantes, se põem a cochichar:
– Se ele morrer, quem virá nos ajudar?
A visão dura poucos instantes, mas eu sinto a certeza absoluta de que
Cagliero vai sarar.
Oito minutos para uma página
Com as primeiras chuvas do outono, os flagelados da cólera di-
minuíram sensivelmente. Embora ainda se verificasse algum caso às
portas do inverno, no dia 21 de novembro declarou-se encerrada a
“emergência”. De 1o de agosto a 21 de novembro, registraram-se na
cidade 2.500 casos, com 1.400 mortes.
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28.9 Page 279

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Os rapazes de Dom Bosco – nenhum atingido pelo flagelo – pu-
deram tranquilos voltar ao estudo. Alguns foram para casa para
umas curtas férias.
Como fazia todos os anos, Dom Bosco sobe aos Becchi para a
festa de Nossa Senhora do Rosário. E enquanto lá esteve, recebeu a
visita de um seu antigo colega do seminário, padre Cugliero, profes-
sor de elementares, em Mondônio.
– Escute – lhe diz após os cumprimentos –, disseram-me que,
junto com os pequenos bandidos, você aceita em seu oratório tam-
bém rapazes de boa índole que dão esperança de vocação sacerdo-
tal. Tenho em Mondônio um menino que lhe vai servir. Chama-se:
Domingos Sávio. Não tem lá muita saúde, mas, quanto à bondade,
aposto que nunca viu outro igual. É um verdadeiro São Luís.
– Exagerado! – sorriu Dom Bosco. – Em todo o caso, para mim
está bem. Ficarei aqui alguns dias. Faça com que eu me encontre
com ele e o pai. Falaremos e veremos de que pano se trata.
2 de outubro de 1854. Foi no pequeno pátio da casa de José que
se deu o encontro. Dom Bosco ficou tão impressionado que o con-
tou nos mínimos detalhes, como se o tivesse gravado. A linguagem
é de 1800. Mas a cena é viva: parece-nos vê-la.
Era a primeira segunda-feira de outubro, bem cedo, quando vejo um
menino acompanhado do pai aproximar-se de mim para falar-me. O
semblante alegre, o ar sorridente mas respeitoso atraíram sobre ele o meu
olhar.
– Quem é você e de onde vem?
– Sou Domingos Sávio de quem lhe falou o padre Cugliero. Vimos de
Mondônio.
Chamei-o então à parte e nos pusemos a falar dos estudos feitos, da vida
que levara. Criou-se logo entre nós um clima de confiança total e recíproca.
Percebi naquele menino um ânimo todo plasmado segundo o espírito de
Deus. E fiquei muito admirado ao verificar o trabalho que a graça divina
havia operado em tão pouca idade.
Após um diálogo um tanto prolongado, antes que eu chamasse o pai,
disse-me exatamente estas palavras:
– Então, que lhe parece? Levar-me-á a Turim para estudar?
– É! Parece-me que a fazenda é boa.
– E para que pode servir esta fazenda?
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28.10 Page 280

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– Para fazer um belo traje e dá-lo de presente a Deus.
– Então, eu sou a fazenda, o senhor, o alfaiate. Leve-me, pois, consigo e fará
um belo traje para Nosso Senhor.
– E quando terminar o estudo do latim, que deseja fazer?
– Se Deus me conceder tamanha graça, desejo ardentemente ser sacerdote.
– Bem, agora quero ver se tem capacidade suficiente para os estudos.
Tome este livrinho (era um fascículo das Leituras Católicas). Hoje, estude
esta página. Amanhã, voltará para me dá-la de cor.
Dizendo isto, deixei-o em liberdade para que fosse brincar. Em seguida,
pus-me a falar com o pai. Tinham passado não mais de oito minutos e
Domingos se aproximou sorridente e disse:
– Se quiser, recito agora a página.
Tomei do livro e, para minha surpresa, percebi que não só estudara
literalmente a página marcada como também compreendera perfeitamente
o sentido do assunto nela contido.
– Muito bem – disse-lhe eu. – Você antecipou o estudo da lição e eu
antecipo a resposta. Levá-lo-ei a Turim e, desde já, pertence ao número dos
meus queridos filhos. Comece você também, desde já, a pedir a Deus que
nos ajude a fazer sua santa vontade.
Não sabendo como exprimir melhor sua alegria e gratidão, tomou-me a
mão, apertou-a, beijou-a várias vezes e, por fim, me disse:
– Espero proceder de tal forma que nunca tenha de queixar-se de minha
conduta.
Relembrando as palavras do padre Cugliero, Dom Bosco teve de
admitir que o colega não exagerara. Se São Luís tivesse nascido por
entre as colinas do Monferrato e tivesse sido filho de camponeses,
não havia de ser diferente daquele menino sorridente que queria
tornar-se “um belo traje para dar de presente a Nosso Senhor”.
Um cartaz misterioso
Nesses mesmos dias, Cagliero, enquanto convalescia em Caste-
lnuovo, cometeu a imprudência de chupar muita uva (era o tem-
po de vindima). A febre voltou violenta. Dom Bosco o soube e foi
visitá-lo. Achou a mãe desesperada:
– Meu João vai morrer! Delira, fala em vestir batina, enquanto a
febre o vai levando...
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– Não, minha boa Teresa, seu filho não delira. Pode ir preparando
a batina que, em novembro, no oratório, ele a vai vestir. A febre não
o levará: tem muita coisa ainda que ele precisa fazer neste mundo.
Assim foi realmente. Dia 22 de novembro, festa de Santa Cecília,
João Cagliero, perfeitamente restabelecido, vestia o hábito dos cléri-
gos. O reitor do seminário metropolitano, cônego Vogliotti, conce-
dia ao clérigo Cagliero licença de frequentar as aulas do seminário,
continuando a morar na casa de Dom Bosco.
Entretanto, em 29 de outubro, entrara no oratório Domingos Sá-
vio. Subira com o pai ao escritório de Dom Bosco e notara, de ime-
diato, na parede, um grande cartaz, com algumas palavras misterio-
sas: Da mihi animas, caetera tolle.
Depois que o pai foi embora, superada a primeira hesitação, per-
guntou a Dom Bosco o significado daquelas palavras afixadas à pa-
rede. Dom Bosco ajudou-o a traduzir: “Dai-me almas, Senhor, e ficai
com todo o resto”.
Era o lema que Dom Bosco escolhera para o seu apostolado. As-
sim que Domingos captou o sentido – diz Dom Bosco –, ficou um
instante pensativo e depois acrescentou: “Compreendi: aqui não
se trata de comércio de dinheiro, mas de almas. Espero que minha
alma faça parte desse comércio”.
Começou assim para Domingos a vida de todos os dias. Vestiu,
quem sabe, também ele um capote militar e, toda manhã, partiu
para a escola de Bonzanino com o pequeno time guiado por Rua.
Seu dia era aquele, um tanto cinzento, de um pequeno estudante:
tarefas, lições, aulas, livros, colegas. Dom Bosco, que o observara dia
após dia, escreveu: “Mostrou, desde a sua entrada, tamanha exatidão
no cumprimento do dever que dificilmente ela pode ser superada”.
Lanterninhas coloridas às margens do Pó
Pelo fim de novembro desse ano de 1854, o oratório entra num
“clima” especial: começa a novena da Imaculada. Pio IX anunciara,
de Roma, que aos 8 de dezembro definiria solenemente o dogma da
Imaculada Conceição de Maria. Avivava-se em todo o mundo cató-
lico o amor a Nossa Senhora e preparavam-se festejos grandiosos.
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Dom Bosco, que se sentia “guiado pela mão” de Nossa Senhora,
falava disso aos rapazes todas as noites. Vivia-se a novena com gran-
de fervor.
Conversando, no pátio ou no escritório, perguntava aos meninos
que coisa queriam “dar de presente a Nossa Senhora” por ocasião
de sua festa. Domingos Sávio respondera: “Quero fazer uma guerra
impiedosa ao pecado mortal, e quero pedir muito a Nosso Senhor
e a Nossa Senhora que me façam antes morrer que deixar-me cair
em pecado”.
Era a repetição de um propósito feito na primeira comunhão:
“Antes morrer que pecar”. Não era uma frase original, inventada
por ele, mas as últimas palavras do Ato de contrição que, naqueles
tempos, se rezava depois da confissão. Muitas crianças as escreviam
como empenho do primeiro encontro com Jesus-Eucaristia.
Causa certa curiosidade encontrá-las até entre os “propósitos”
sugeridos pela rainha ao príncipe herdeiro, Humberto de Saboia
(depois rei Humberto I), quase da mesma idade que Sávio (nascido
em 1842, Humberto em 1844).
O que causa, porém, uma intensa comoção é que milhares de jo-
vens deixaram aquele empenho esquecido no meio dos brinquedos
da infância, ao passo que Domingos lhe foi heroicamente fiel até a
morte.
8 de dezembro. Pio IX, diante de grande número de cardeais e
bispos, proclama como dogma de fé que Maria, desde o primeiro
instante de sua existência, não foi nunca manchada pelo “pecado
original”.
Domingos Sávio, numa pausa desse dia especialmente festivo do
oratório, entra na igreja de São Francisco de Sales, ajoelha-se diante
do altar de Nossa Senhora, tira do bolso um papel em que escreveu
algumas linhas.
É a sua consagração à Mãe de Deus, uma breve oração que se
tornará famosa em todo o mundo salesiano:
“Maria, eu vos dou meu coração. Fazei que seja sempre vosso. Je-
sus e Maria, sede sempre os meus amigos. Mas, por piedade, fazei-me
morrer antes que me aconteça a desgraça de cometer um só pecado”.
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Naquela noite, toda Turim resplandeceu numa iluminação fan-
tástica. Milhares de lanterninhas multicoloridas brilhavam nos bal-
cões, nos terraços, nas margens do rio Pó. O povo desceu às ruas e
grandiosa procissão se encaminhou para o santuário da Consolata.
Também os meninos de Valdocco passaram cantando pelas ruas da
cidade, junto com Dom Bosco.
O pequeno órfão de São Domingos
O ano de 1854, já muito intenso na vida de Dom Bosco, con-
cluiu-se com a assunção de mais um empenho. Junto da igreja de
São Domingos, a prefeitura tivera de improvisar um orfanato, para
acolher uma centena de menininhos que a cólera havia deixado
órfãos de pai e mãe.
À chegada dos primeiros frios, o prefeito Notta dirigiu-se às ins-
tituições católicas para que acolhessem alguns. Dom Bosco aceitou
vinte. Um desses pequeninos chamava-se Pedro Enria, que assim
relembrava aqueles momentos:
Um dia, chegou Dom Bosco que eu nunca tinha visto. Perguntou-me pelo
nome e sobrenome, e depois me disse:
– Quer vir comigo? Seremos sempre bons amigos.
– Sim, senhor.
– E este. É seu irmão?
– Sim, senhor.
– Diga que venha também.
Poucos dias depois, fomos levados ao oratório com mais alguns outros.
Minha mãe morrera de cólera e meu pai estava atacado da mesma doença.
Lembro-me que a mãe de Dom Bosco lhe chamou a atenção:
– Você continua aceitando crianças. Mas como fazer para mantê-los e vesti-
-los?
De fato, quando entrei, tive de dormir, por várias noites, sobre um monte
de folhas, enrolado apenas num cobertor. Dom Bosco e sua mãe nos re-
mendavam, de noite, a calça e o casaco rasgados. Só tínhamos aquilo.
Para os órfãos, Dom Bosco preparou uma repartição especial no novo edi-
fício. Por mais de um ano, deu-lhes aula.Antes sozinho, depois com o auxí-
lio dos clérigos e de amigos. Os outros alunos do oratório chamavam-nos
“a classe dos baixinhos”, porque eram pequeninhos.
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Pedro Enria ficou com Dom Bosco a vida inteira: foi ele quem o
assistiu como filho na última doença. E lhe fechou os olhos.
A cólera, entre os tantos males semeados pela cidade, trouxera,
ao menos de reflexo, um bem para o oratório: a assistência que os jo-
vens haviam prestado generosamente aos coléricos fê-lo conhecido
e estimado pela população. Um elogio público do prefeito deu-lhe
crédito perante as autoridades.
Além disso, houve um fato quase inacreditável: nenhum daqueles
jovens (como que imersos no contágio) foi atacado pela pestilência.
Isso persuadiu muitos a considerarem com mais seriedade as pala-
vras “loucas” de Dom Bosco.
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A
C
B
F
D
E
Reconstrução da casa Pinardi e do pátio do oratório, com as casas
vizinhas (1847-1851): A) Capela Pinardi; B) Casa Pinardi; C e D)
Pátios; E) Horta de Mamãe Margarida; F) Prado
Desenho do primeiro oratório de Dom Bosco (1847-1851)
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A primeira sede fixa do oratório e arredores, em 12 de abril de 1846
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1855:
Os pequenos “delinquentes” da Generala
Oano de 1855 assistiu a um novo e duríssimo choque entre o
Estado e a Igreja.
Em outubro de 1852, Camilo Cavour sucedeu a Massimo
D’Azeglio, no cargo de primeiro-ministro. Esse inquieto e riquíssi-
mo descendente de família aristocrática estava dando uma chico-
tada no sonolento Piemonte. Os pequenos advogados de província
habituados a declamar, nas cadeiras do Parlamento, versos de Dante
e de Mameli, eram chamados a pronunciar-se sobre déficit e balan-
ços, despachos alfandegários e capitais de investimento.As ferrovias
chegaram a 850 quilômetros, igual ao total das ferrovias de toda a
Itália. Nasceram, na Ligúria, o complexo industrial Ansaldo (o maior
da Itália) e os estaleiros Odero e Orlando. Impulsionou-se a canaliza-
ção na região de Vercelli.Abolindo o imposto do trigo, favoreceu-se
a agricultura.
Pelo fim de 1854, camuflado como manobra econômica, apresen-
tou-se à Câmara um projeto de lei do ministro Urbano Rattazzi,“um
plano preciso – escreve o historiador Francisco Traniello – tendente
a reduzir a influência da Igreja”. Propunha a dissolução das ordens
religiosas contemplativas, isto é, das que não se dedicavam à instru-
ção, à pregação ou à assistência aos enfermos, e a transferência de
todos os seus bens ao Estado, que “poderia, assim, prover às paró-
quias mais pobres”.
Essa intromissão do Estado na vida da Igreja era especialmente
grave – escreve Traniello –, porque se arrogava o direito de decidir,
pelo critério da produtividade, quais as ordens religiosas que ainda
podiam ser úteis à sociedade. Aliás, teve Cavour a ousadia de afir-
mar que as ordens a serem dissolvidas já não eram úteis sequer à
própria Igreja. As forças católicas, chefiadas pelos bispos, puderam
assim sustentar que a então denominada lei dos frades violava exa-
tamente aqueles princípios de separação entre a Igreja e o Estado
que Cavour havia dito várias vezes estar na base da sua política.
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Previa-se que, não obstante a forte oposição católica, a lei passa-
ria na Câmara e também no Senado. Só o rei a poderia sustar.
“Grandes funerais na corte!”
Numa tarde gélida de dezembro de 1854 (as testemunhas lem-
bravam que Dom Bosco usava velhas e rasgadas luvas, e tinha nas
mãos um punhado de correspondência), Dom Bosco contou ao
padre Alasonatti, Rua, Cagliero, Francésia, Buzzetti e Anfossi que
tivera um sonho estranho. Estava no meio do pátio, quando viu
chegar um mensageiro da Corte, vestido de vermelho, anunciando:
“Grande funeral na Corte! Grande funeral na Corte!”. Disse aos seus
clérigos que, logo ao acordar, tomara da pena e escrevera ao rei,
contando-lhe o sonho.
Cinco dias depois, o sonho se repete. O valete vermelho entra
no pátio a cavalo e grita: “Anuncie: não um grande funeral na Corte,
mas grandes funerais na Corte!Ao amanhecer, Dom Bosco escre-
ve uma segunda carta ao rei, sugerindo-lhe que “tome providências
para esquivar-se dos castigos ameaçados, enquanto lhe pede que
impeça a todo custo aquela lei”.
5 de janeiro de 1855. A rainha-mãe Maria Teresa adoece grave-
mente. Após um rápido declínio, morre aos 12 de janeiro. Tem 54
anos. Seus restos mortais são transportados para a cripta dos Sa-
boias, em Superga, no dia 16, sob uma temperatura frigidíssima.
20 de janeiro. Ministram-se os últimos sacramentos à rainha Maria
Adelaide, esposa do rei. (Doze dias antes dera à luz um menino. E
não mais se recuperara.) Morre no mesmo dia, com apenas 33 anos.
11 de fevereiro. Após vinte dias de grave enfermidade, morre o
irmão do rei, príncipe Fernando de Saboia, duque de Gênova, de
33 anos.
Os clérigos do Oratório (só eles conheciam os sonhos e as cartas
de Dom Bosco) “estavam apavorados ao verem realizar-se, de modo
tão fulminante, as profecias de Dom Bosco – escreve o padre Le-
moyne. – Nem mesmo em tempo de pestilência se haviam aberto
três tumbas reais no espaço de um só mês”.
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O padre Francésia afirmava que o rei Vítor Emanuel II descera a
Valdocco duas vezes para encontrar-se com Dom Bosco e que esta-
va furioso com ele.
Apesar disso, a lei de supressão passou na Câmara (94 votos con-
tra 23) e no Senado (53 contra 42). O rei firmou-a no dia 29 de maio.
Foram, assim, suprimidas – segundo as cifras do padre Lemoyne –
334 casas religiosas que abrigavam 5.456 membros. De Roma foi
anunciada a “excomunhão maior” (cuja absolvição é reservada ao
papa) contra “autores, fautores, executores da lei”.
Entretanto, a 17 de maio falecera também o último filho do rei,
Vítor Emanuel Leopoldo, com apenas quatro meses.
Infelizmente, santo ou bruxo (segundo o prisma por que se
olhasse), Dom Bosco previra certo.
O primeiro salesiano
Sem fazer alarde, Dom Bosco continuou a reunir toda a semana
os seus clérigos. Falou-lhes da pobreza, da castidade e da obediên-
cia, as três virtudes que a Igreja sempre considerou como “cami-
nho para chegar a Deus”. Explicou-lhes que quem se torna religio-
so “faz voto” dessas virtudes, isto é, promete solenemente a Deus
praticá-las em sua vida.
No fim do primeiro ano de conferências, parece-lhe que o mais
preparado é Miguel Rua. Diz-lhe: “Que tal fazer os votos da pobre-
za, castidade e obediência, por três anos?”. Miguel – di-lo-á mais
tarde – acredita que se trate apenas de “ligar-se mais a Dom Bosco”.
Aceita.
25 de março de 1855, festa da Anunciação. No quartinho pobre
de Dom Bosco, desenrola-se uma cerimônia sem solenidade. Dom
Bosco, de pé, ouve. Miguel Rua, ajoelhado diante do crucifixo, mur-
mura uma fórmula: “Faço voto a Deus de ser pobre, casto, obedien-
te, e me ponho em suas mãos, Dom Bosco...”. Não há testemunhas.
Todavia, nasce, naquele momento, uma congregação religiosa. Dom
Bosco é o fundador. Miguel Rua, o primeiro salesiano.
Desde então, tanto para ele como para Cagliero e Francésia, a
coisa mais difícil será dormir. Não que falte sono (por vezes adorme-
cem em pé), mas porque não há tempo.
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Devem continuar os estudos, fazer todos os exames que, nesse
tempo, são frequentes e duríssimos. Ao mesmo tempo, Dom Bosco
confia-lhes as aulas de religião, a assistência no refeitório e nas ofi-
cinas, as aulas para os órfãos.
Aos domingos, mandava-os para os oratórios. O do Anjo da Guar-
da, em 1855, viu-se, de improviso, sem diretor. Dom Bosco nomeou
Miguel Rua, de 17 anos. Era frequentado especialmente pelos pe-
quenos limpa-chaminés, meninos que, no outono, desciam do Valle
d’Aosta, carregando aos ombros a corda e a raspadeira. Passavam
pelas ruas anunciando-se com um grito característico e aguardavam
que alguma família os convidasse a limpar o interior das chaminés,
antes que começasse o inverno, quando as lareiras deviam funcio-
nar bem.
Eram meninos muito pequenos, porque os condutores de fuma-
ça, pelos quais deviam subir, eram estreitos. Tinham o rosto e as
mãos pretas de fuligem.
Aos domingos de manhã, Miguel entrava cedo no oratório. Var-
ria as saletas, arrumava a igreja. Quando chegavam os primeiros
meninos, ajudava-os a confessar-se com o sacerdote que ia cele-
brar a Missa. Pelas 9, já havia uma centena. E Miguel “fazia de Dom
Bosco” o dia inteiro: aviava os brinquedos, falava com os meninos,
informava-se de seus pequenos problemas, dava catecismo.
À noite, enquanto pelas ruas se acendiam os lampiões de gás, os
meninos partiam. Alguns o acompanhavam na direção de Valdoc-
co. “Até domingo, Miguel!”
Rua voltava, exausto. Engolia um pouco de janta, deixada em
banho-maria para ele e para Cagliero, Francésia e Anfossi, que tam-
bém regressavam dos outros oratórios tão cansados quanto ele. Su-
biam, depois, até as águas-furtadas onde estavam suas camas. Mi-
guel – lembrava – adormecia de golpe, como que fulminado. Certa
manhã de segunda-feira, Cagliero acordaria sentado na cadeira com
as meias na mão: não conseguira chegar à cama; adormecera ali.
De manhã, o despertador soava cedo, terrivelmente cedo. Às 4.
Cagliero lembrava:
O inverno, em Turim, não é de brincar. Em nossas mansardas, debruçadas
sobre o telhado, não havia aquecimento. Nem água corrente. Para o asseio,
enchíamos, na véspera, nossas bacias de água. Mas, ao chegar a manhã, o
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frio mudara a água em gelo. Para lavar-nos, devíamos abrir a janela, colher
neve do telhado e friccionar energicamente as mãos, o rosto, o pescoço.
Depois de alguns instantes a pele fumegava.A seguir,nos enrolávamos num
cobertor e começava o tempo de estudo. Rua estudava hebraico, Francésia
burilava versos latinos, eu compunha exercícios de música.
Novembro de 1855. Começa o ginásio interno. A todas as demais
ocupações, Francésia acrescenta a de professor de letras, Rua, de
matemática, Cagliero, de música.
Poder-se-ia, às vezes, pensar: não era louco Dom Bosco ao deixar
que os seus clérigos se matassem, assim, por entre o estudos e o
trabalho? Acaba-se, depois, por verificar que João Cagliero, cardeal,
morreu aos 88 anos; Miguel Rua, chefe da Congregação Salesiana,
viveu até os 73; João Francésia, latinista de fama europeia, alcançou
os 92. Dom Bosco “sabia” que o trabalho, mesmo duríssimo, não os
iria matar tão cedo.
Frente a frente com o ministro
Os caricaturistas políticos desses anos, quando representavam o
governo, desenhavam Camilo Cavour com o corpo de gato e longos
bigodes, e Urbano Rattazzi (ministro do Interior) como um grande
rato: Gatáss (gatarrão) e Ratáss (ratazana) eram os apelidos cor-
rentes, em Turim.
A Rattazzi (não obstante a posição claramente contrária para
com quase todas as ideias políticas) Dom Bosco tinha livre acesso.
O ministro o estimava porque “trabalhava para o bem do povo”. E
também porque, acolhendo os rapazes pobres, livrava o governo de
um mundo de aborrecimentos.
Em 1845, na estrada para Stupinigi, fora aberta uma nova pri-
são, em Turim: a Generala. Era um reformatório de rapazes, com
capacidade para 300. Dom Bosco frequentava-a regularmente. Pro-
curava fazer-se amigo daqueles pobres rapazes, condenados (quase
sempre) por roubo ou vadiagem.
Dividiam-se em três categorias: “vigiados especiais” que, à noite,
eram trancados em celas; “vigiados simples”, levados adiante ape-
nas com os meios normais de uma prisão; “periclitantes”, que ali se
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achavam só porque alguém, já cansado deles, os confiara à polícia.
Passavam o tempo em trabalhos agrícolas ou em oficinas internas.
Na Quaresma de 1855, Dom Bosco deu a todos um caprichado
curso de catecismo, seguido de três dias de Exercícios Espirituais
(nada menos), concluídos com uma confissão deveras geral.
Dom Bosco ficou tão impressionado pela boa vontade geral que
lhes prometeu “alguma coisa excepcional”. Foi ao diretor e propôs-
-lhe organizar para os rapazes (abatidos pela reclusão) um belo pas-
seio a Stupinigi.
– Está mesmo falando sério, reverendo? – exclamou o homenzi-
nho espantado.
– Com a maior seriedade do mundo.
– E não sabe que eu sou responsável por aqueles que fugirem?
– Ninguém fugirá. Dou-lhe a minha palavra.
– Ouça. Não vamos gastar saliva à toa. Se quer essa licença, dirija-
-se ao ministro.
Dom Bosco foi ter com Rattazzi e lhe expôs com tranquilidade
o seu projeto.
– Pois não – lhe disse o ministro. – Um passeio fará muito bem
a esses jovens detentos. Darei as ordens necessárias para que, ao
longo do caminho, se distribuam guardas à paisana, em número su-
ficiente.
– Isso não – interveio decidido Dom Bosco. – É a única condição
que eu ponho: que nenhum guarda nos “proteja”. E vossa Excelên-
cia deve dar-me sua palavra de honra. O risco é meu: se alguém
fugir, pôr-me-á na cadeia a mim.
Ambos riram. Depois Rattazzi ficou sério:
– Dom Bosco, entenda. Sem guardas, não trará de volta ninguém.
– E eu, ao contrário, lhe garanto que vou trazer de volta todos.
Vamos apostar?
Rattazzi pensou um pouco.
– Está bem. Aceito. Confio no senhor. Mas confio também nos
guardas: em caso de fuga, não levarão muito tempo para recapturar
esses frangotes.
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Um dia de liberdade
Dom Bosco voltou à Generala e anunciou o passeio. Uma ex-
plosão de alegria. Numa brecha de silêncio, Dom Bosco continuou:
– Dei minha palavra: todos se comportarão bem, e nada de fugas.
O ministro também deu a sua: nada de guardas, nem fardados, nem à
paisana. Agora chegou a vez da palavra de vocês: basta que um fuja
e minha honra se vai. Não me deixarão mais pôr os pés aqui dentro.
Posso confiar?
Cochicharam lá algum tempo entre si. Depois, os maiores disse-
ram:
– Damos a nossa palavra! Voltaremos todos! Nós portaremos
bem!
O dia seguinte foi dia de sol tépido, primaveril.
E lá se foram para Stupinigi, pelos caminhos dos campos. Pu-
lavam, corriam, gritavam. Dom Bosco seguia em meio à pequena
tropa, brincando e contando estórias. À frente de todos, o burro.
Com as provisões.
Em Stupinigi, Dom Bosco celebrou a santa Missa. Depois, hou-
ve almoço ao ar livre, seguido de animadas partidas à margem do
rio Sangone. Visitaram o parque e o castelo real. Houve merenda
e, ao pôr do sol, o retorno. O burro estava livre e Dom Bosco
cansado. Os rapazes fizeram-no montar e, puxando as rédeas e
cantando, chegaram. O diretor apressou-se em contá-los. Estavam
todos.
Houve um adeus triste no portão do cárcere: Dom Bosco se des-
pediu de um por um e voltou para casa com um aperto no coração:
só pudera libertá-los por um dia.
O ministro, ao contrário, ao saber de tudo, ficou exultante como
de um triunfo.
– Por que é que o senhor consegue fazer essas coisas e nós não?
– perguntou a Dom Bosco um dia.
– Porque o Estado manda e castiga. É só o que pode fazer. Eu, ao
contrário, quero bem a esses rapazes. E como sacerdote tenho uma
força moral que V. Excia. não pode entender.
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Nove páginas para explicar o seu “sistema”
Muitas vezes pediram a Dom Bosco que pusesse por escrito o
seu “sistema de educação”. A falta de tempo, a impossibilidade de
uma pausa para refletir organicamente sobre as linhas mestras de
sua atitude educativa, não permitiram que Dom Bosco nos desse
uma obra “científica”.
Em 1876, armou-se de coragem e lançou no papel um “esboço”
do sistema educativo “em uso nas casas salesianas”. São nove pági-
nas que os salesianos encontram no apêndice de suas Constituições,
e com as quais estão convidados a se confrontarem com frequência.
Aqui as condensamos, repetindo que não se trata de obra “cien-
tífica”, mas tão somente de apontamentos condicionados pela pres-
sa, pela urgência, pelos grandes problemas daquele ano. Dele, po-
rém, transparece algo vivo, a “carga” que Dom Bosco levava em si e
que, provavelmente, nenhum escrito jamais teria podido exprimir
adequadamente.
Dom Bosco começa por dividir (de modo bem rudimentar, pen-
so se possa dizer assim) os modos de educar em dois setores:
o sistema repressivo (usado pelo Estado, pelo exército...).
“Consiste em fazer com que os súditos conheçam a lei, e depois
vigiar para saber os seus transgressores e puni-los. Nesse sistema,
as palavras devem ser severas; o superior deve evitar toda familia-
ridade com os dependentes e achar-se mui raramente entre eles”;
o sistema preventivo (que ele quer seja usado em suas obras).
Aqui Dom Bosco explica o “sistema preventivo” como ele o en-
tende, como sempre o aplicou no oratório.
Esse sistema se apoia todo inteiro na razão, na religião e na bondade,
Exclui todo o castigo violento, e procura evitar até as punições leves.
O diretor e os assistentes são como pais carinhosos. Falam, servem de guia
em todas as circunstâncias, dão conselhos e corrigem com bondade.
O aluno, previamente avisado, não fica abatido, torna-se amigo, vê no
assistente um benfeitor que quer fazê-lo bom, livrá-lo de dissabores,
castigos e desonra.
O educador, uma vez conquistado o ânimo do discípulo, poderá segui-lo
mesmo quando adulto, aconselhá-lo e também corrigi-lo.
A prática desse sistema baseia-se toda nas palavras de São Paulo, que diz:
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“A caridade é benigna e paciente; tudo sofre, mas espera tudo e suporta
qualquer incômodo”. Por isso, somente o cristão pode aplicar com êxito
o sistema preventivo. Razão e religião são os instrumentos de que o
educador se deve servir constantemente.
O diretor, pois, deve ser um homem totalmente consagrado aos seus
educadores, achar-se sempre no meio deles quando estiverem em tempo
livre.
Daqui em diante, Dom Bosco tem em vista, de modo especial,
os colégios, que, em 1876, monopolizavam a maior parte das forças
salesianas. Nem sempre transparece o “Dom Bosco dos oratórios”.
A moralidade dos professores, mestres de oficina e assistentes deve
ser notória. Esforcem-se eles por evitar, como epidemia, toda a sorte
de afeições ou amizades sensíveis com os alunos. Quanto possível, os
assistentes sejam os primeiros em achar-se no lugar onde se devem reunir
os alunos; nunca os deixem desocupados.
Dê-se ampla liberdade de correr, pular e gritar à vontade. Os exercícios
ginásticos e desportivos, a música, a declamação, o teatro, os passeios, são
meios eficacíssimos para se alcançar a disciplina, favorecer a moralidade e
a saúde.“Fazei quanto quiserdes, dizia São Felipe Néri, a mim me basta que
não cometais pecados”.
A confissão frequente, a comunhão frequente e a Missa cotidiana são as
colunas que devem sustentar um edifício educativo. Nunca se obriguem
os jovens a frequentar os santos Sacramentos; basta animá-los e dar-lhes
comodidade de se aproveitarem deles.
O educador é um indivíduo consagrado ao bem de seus alunos. Por
isso, deve estar pronto a enfrentar qualquer incômodo e canseira para
conseguir o fim que tem em vista: a formação cívica, moral e científica
dos seus alunos.
O educador procure fazer-se amar, se quiser fazer-se respeitar (outras
vezes Dom Bosco havia escrito: “antes que fazer-se respeitar”, “depois
fazer-se respeitar”). A subtração da benevolência é um castigo que
desperta emulação, infunde coragem sem deprimir. O elogio quando uma
ação é bem-feita, a desaprovação quando há desleixo, é já um prêmio ou
um castigo.
Salvo raríssimos casos, as correções nunca se deem em público, mas em
particular, longe dos companheiros, e empregue-se a máxima prudência e
paciência para que o aluno compreenda a sua falta à luz da razão e da religião.
Bater, de qualquer modo que seja, deve-se absolutamente banir, porque
irrita sobremaneira os jovens e desmoraliza o educador.
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O sonho do antigo oratório
Se é difícil para Dom Bosco escrever tratados, é um mago no
recontar, no comunicar a vida vivida. Por isso, muitos peritos afir-
maram que, enquanto O pequeno tratado do sistema preventivo
é cheio de lacunas, o “sonho” que Dom Bosco contou numa carta
de 1884 é a expressão mais viva e fascinante da sua sensibilidade
educativa.
Dom Bosco achava-se em Roma, no mês de maio daquele ano,
tratando de assuntos importantes para a sua Congregação. De noi-
te, “sonha” com o antigo oratório (aquele no qual viviam Domingos
Sávio, Miguelzinho Rua, João Cagliero) e pode confrontá-lo com
esse que, no momento, existe em Valdocco. Dita, então, uma carta
com a data de 10 de maio de 1884. “Pode ser considerada um dos
mais eficazes e mais ricos documentos pedagógicos de Dom Bos-
co”, afirma Pedro Stella.
Condensamo-la:
Parecia-me estar no antigo oratório na hora do recreio. Era uma cena cheia
de vida, movimento, alegria. Quem corria, quem pulava, quem fazia outros
pular. Aqui brincava-se de rã, de barra, ou com bola. Num lugar, uma roda
de jovens pendia dos lábios de um padre que lhes contava uma estória.
Noutro, um clérigo no meio de outros meninos brincava de burro voa
e de jerônimo. Cantava-se, ria-se por todos os cantos e em toda parte
encontravam-se padres e clérigos, e, ao redor deles, jovens brincando e
gritando alegremente. Via-se que entre jovens e superiores reinava a maior
cordialidade e confiança. Eu estava encantado com o espetáculo, e o meu
guia me disse:
– Veja, a familiaridade gera o afeto e o afeto produz confiança. É isto que
abre os corações, e os jovens manifestam tudo sem temor aos mestres,
assistentes e superiores. Tornam-se sinceros na confissão e fora da
confissão, e se prestam docilmente a tudo o que porventura lhes mandar
aquele de quem têm certeza de serem amados.
Nesse instante, aproximou-se de mim um antigo aluno, José Buzzetti, e
me disse:
– Quer ver os jovens que estão atualmente no oratório?
Vi a todos vocês no recreio. Mas já não ouvia gritos de alegria e cantos,
não mais aquele movimento, aquela vida como na cena anterior. Lia-se no
rosto o enfado, o cansaço, a desconfiança. Muitos brincavam com feliz
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despreocupação. Mas outros estavam a sós, encostados à colunas, ou pelas
escadas. Outros lançavam, ao redor, olhares desconfiados: São Luís não se
sentiria à vontade em sua companhia.
– Como são diferentes do que éramos nós outrora! – exclamou Buzzetti.
– É pena! Mas como reanimar estes meus caros jovens?
– Com o amor.
– Porventura os meus jovens não são amados suficientemente? Você sabe
as privações, as humilhações que sofri e sofro para lhes dar pão, casa,
professores, e especialmente para garantir-lhes a salvação da alma? E os
diretores, prefeitos, mestres, assistentes consomem sua juventude por
eles.
– Falta o melhor – insistiu Buzzetti. – Que os jovens não só sejam amados,
mas saibam, vejam que são amados.
– Mas, afinal, não veem que tudo quanto fazemos é por amor deles?
– Não.
– Que é preciso, então?
– Que, sentindo-se amados naquelas coisas que lhes agradam, aprendam,
com participar dos seus gostos infantis, a ver o amor também nas coisas
que, naturalmente, pouco lhes agradam como a disciplina, o estudo, a
mortificação de si mesmos. Explico melhor: olhe, veja os jovens no
recreio. Onde estão os nossos salesianos?
Observei e vi que poucos padres e clérigos se misturavam com os jovens
e que em menor número ainda tomavam parte em seus divertimentos. Os
superiores já não eram a alma do recreio. A maior parte deles passeava,
conversando entre si, sem ligar para os alunos. Outros vigiavam de longe.
Um ou outro avisava, mas com atitude ameaçadora. Um que outro sale-
siano gostaria de introduzir-se no meio dos jovens, mas estes tratavam de
afastar-se dele.
Então Buzzetti continuou:
– Nos tempos antigos o senhor estava sempre no meio de nós, especial-
mente na hora do recreio. Lembra aqueles belos anos? Era um pedaço de
Céu, uma época que lembramos sempre com saudade, porque o afeto era
coisa normal, e nós não tínhamos segredos para o senhor.
– Certamente. E então tudo era alegria para mim. Agora, porém, os afazeres
multiplicados e a minha saúde me impedem de fazer como naquele tempo.
– Mas se o senhor não pode, por que os seus salesianos não tomam o seu
lugar? Amem o que agrada aos jovens e os jovens amarão o que agrada aos
superiores. Agora os superiores são considerados como superiores e não
como pais, irmãos e amigos; são, pois, temidos e pouco amados. Por isso,
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se se quiser formar um só coração e uma só alma, é preciso que por amor
de Jesus se rompa a barreira da desconfiança e seja ela substituída por uma
confiança cordial. Que a obediência, pois guie o aluno como a mãe guia o
filhinho. Reinarão, então, no oratório a paz e a antiga alegria.
– Como fazer para romper tal barreira?
– Familiaridade com os jovens. Sobretudo no recreio. Sem familiaridade
não se demonstra afeto, e sem essa demonstração não pode haver con-
fiança. Quem quer ser amado deve mostrar que ama. Jesus Cristo se fez
pequeno com os pequenos, e carregou as nossas enfermidades. Eis aí o
mestre da familiaridade! O professor, visto apenas na cátedra é, professor
e nada mais. Mas, se está no recreio com os jovens, torna-se irmão. Quem
sabe que é amado, ama. E quem é amado, tudo obtém especialmente dos
meninos. A confiança estabelece uma corrente elétrica entre os jovens e
os superiores. Esse amor faz os superiores suportarem canseiras, aborre-
cimentos, ingratidões, desordens, faltas, negligências dos meninos. Jesus
Cristo não quebrou a cana já partida, nem apagou a mecha fumegante. Eis
o modelo. Então, não se verá ninguém mais trabalhar por vanglória; punir
só para satisfazer o amor-próprio ofendido; deixar-se roubar o coração por
uma criatura e, para cortejá-la, descuidar todos os outros meninos; deixar,
por respeito humano, de advertir quem deve ser advertido.
Por que se quer substituir a caridade pela frieza de um regulamento?
Concluía a longa carta com estas palavras, que (segundo o teste-
munho do secretário) Dom Bosco ditou chorando:
Basta que um jovem entre numa casa salesiana para que a Virgem SS. o
tome imediatamente debaixo de sua especial proteção. Ó meus caros filhi-
nhos, aproxima-se o tempo em que me deverei separar de vocês e partir
para a minha eternidade. Querem saber o que deseja este pobre velho
após gastar toda a vida por seus caros jovens? Nada mais que retornem os
dias felizes do oratório: os dias do afeto e da confiança entre os jovens e
superiores; o espírito de condescendência e tolerância por amor de Jesus
Cristo de uns para com outros; os dias dos corações abertos com toda a
simplicidade e candura; os dias da caridade e da verdadeira alegria para
todos.
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Adeus a uma mãe e a um menino
No primeiro domingo de abril de 1855, Dom Bosco fez a seus ra-
pazes uma prédica sobre a santidade. Alguns torceram o nariz.
Domingos Sávio, ao contrário, ouviu-a com atenção. À medida
que a voz cálida e persuasiva de Dom Bosco avançava, parecia a
Domingos que a prédica fosse feita só para ele. Alcançar a santida-
de como o pequeno príncipe São Luís, como o grande missionário
Francisco Xavier, como os mártires da Igreja...
Desde esse momento, Domingos começou a sonhar. Sonhar com
a santidade.
24 de junho, dia onomástico de Dom Bosco. Como todos os
anos, grande festa no oratório. Para retribuir o afeto e a boa vonta-
de, Dom Bosco disse:
– Cada um escreva num bilhete o presente que deseja receber
de mim. Garanto-lhes que farei todo o possível para contentá-los.
Um bilhete com cinco palavras
Ao ler os bilhetes, Dom Bosco achou pedidos sérios e sensatos.
Achou também alguns extravagantes, que o fizeram sorrir. Um deles
pedia 100 quilos de torrão, “que desse para o ano todo”. No bilhete
de Domingos encontrou cinco palavras: “Ajude-me a ser santo”.
Dom Bosco levou a sério as palavras. Chamou Domingos e lhe
disse:
Quero dar-lhe de presente a fórmula da santidade. Ei-la: 1. Alegria. O que
perturba e tira a paz não vem de Deus. 2. Seus deveres de estudo e de
piedade. Atenção na aula, aplicação ao estudo, empenho na oração. Fazer
tudo isso não por ambição, mas por amor de Deus. 3. Fazer o bem aos
outros. Ajude sempre os seus colegas. Mesmo que lhe custe sacrifício. A
santidade está toda aqui.
Domingos dedicou-se com afinco. Na Vida de Domingos Sávio,
que Dom Bosco escreveu logo depois de sua morte, contam-se mui-
tos fatos. Simples e comoventes. Lembramos apenas um.
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Certo dia, um aluno levara para o oratório um jornal, ilustrado
com figuras pouco decentes. Logo, logo, cinco ou seis colegas se
reuniram em volta dele: olhavam e sorriam. Também Domingos se
aproximou. Mas tomou o jornal das mãos do dono e o fez em pe-
daços. O rapaz protestou, mas Domingos protestou muito mais do
que ele:
– Lindas coisas você traz para dentro do oratório! Dom Bosco a
matar-se para fazer-nos crescer como bons cidadãos e bons cristãos,
e você aí a lhe trazer para dentro de casa essas coisas... Isso aí ofen-
de a Deus. E aqui não deve entrar!
As férias escolares de 1855 chegaram e passaram velozes. Quan-
do em outubro os alunos voltaram ao oratório, Dom Bosco reviu
Domingos Sávio e ficou preocupado:
– Você não descansou durante as férias, descansou?
– Descansei Dom Bosco. Por quê?
– Está mais pálido que antes. Como é isto?
– Talvez o cansaço da viagem… – e sorriu tranquilamente.
Não era cansaço passageiro. Olhos fundos e brilhantes, rosto pá-
lido e macilento diziam claramente que a saúde de Domingos não
andava bem. Dom Bosco decidiu tomar algumas precauções.
– Nada de aulas na cidade este ano. Sair com chuva ou neve po-
deria fazer-lhe mal. Irá às aulas de Francésia, aqui em casa. Assim,
pela manhã, poderá descansar mais. Modere-se no estudo: a saúde
é um dom de Deus. Não devemos estragá-la.
Domingos obedeceu. Mas, alguns dias depois, como se previsse
que algo de grave lhe iria suceder disse a Dom Bosco:
– Ajude-me a ser santo depressa.
A “Companhia da Imaculada”
Domingos ficara amicíssimo de Miguel Rua e de João Cagliero, em-
bora tivessem, respectivamente, cinco e quatro anos mais do que ele.
Os outros seus amigos eram ótimos rapazes, que naqueles anos tinham
aportado do oratório: Bongiovanni, Durando, Cerruti, Gávio, Masságlia.
No início de 1856, os internos do oratório eram 153: 63 estudan-
tes e 90 aprendizes.
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Na primavera, Domingos teve uma ideia. Por que não se unirem
todos os jovens mais decididos numa “sociedade secreta”, para se
tornarem um grupo unido de pequenos apóstolos no meio da mas-
sa dos outros? Falou disso com alguns.A ideia agradou. Resolveram
chamar a sociedade de “Companhia da Imaculada”.
Dom Bosco deu licença, mas sugeriu prosseguir com calma. Ex-
perimentassem. Estabelecessem um pequeno regulamento. Depois
voltariam a falar.
Experimentaram. Na primeira “reunião” decidiu-se sobre quem
convidar a inscrever-se: poucos, de confiança, capazes de guardar
segredo. Discutiu-se sobre o nome de Francésia, o juveníssimo pro-
fessor de letras, rapagão cândido, amigo de todos. Foi descartado,
por ser muito falador: segredo com ele teria vida curta.
A assembleia encarregou três inscritos para que esboçassem o
regulamento: Miguel Rua, de 19 anos, José Bongiovanni, de 18, e Do-
mingos Sávio, de 14. Dom Bosco, porém, afirma que autor do texto
foi Domingos. Os outros o retocaram.
O pequeno regulamento era formado de 21 artigos. Os sócios
se comprometiam a tornar-se melhores sob a proteção de Nossa
Senhora e com o auxílio de Jesus Eucaristia; a ajudar Dom Bosco,
tornando-se, com prudência e delicadeza, pequenos apóstolos entre
os colegas; a difundir alegria e serenidade em torno de si.
O artigo 21, conclusivo, condensava o espírito da Companhia:
“Uma sincera, filial, ilimitada confiança em Maria, um especial cari-
nho para com Ela; uma devoção constante nos tornará vencedores
de qualquer obstáculo, firmes nos propósitos, rígidos para com
nós mesmos, amáveis com o próximo e exatos em tudo”.
A Companhia foi inaugurada a 8 de julho de 1856, diante do altar
de Nossa Senhora, na igreja de São Francisco de Sales.Todos prome-
teram ser fiéis ao compromisso.
Naquele dia, realizara Domingos a sua obra-prima. Restavam-lhe
apenas nove meses de vida, mas sua “Companhia da Imaculada” iria
durar mais de cem anos (exatamente, até 1967). Em todas as casas
e em todos os oratórios salesianos, tornar-se-ia um manípulo de jo-
vens comprometidos e de futuras vocações sacerdotais.
Os sócios da Companhia escolheram “cuidar” de uma categoria
de rapazes que, na sua linguagem secreta, chamaram de “clientes”:
os indisciplinados, inclinados a blasfemar e a brigar. Cada sócio to-
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mava um deles sob seus cuidados e lhe servia de “anjo da guarda”
por todo o tempo necessário a reconduzi-lo ao bom caminho.
Uma segunda categoria de “clientes” eram os novatos. Ajudavam-
-nos a passar com alegria os primeiros dias, quando não conheciam
ninguém, não sabiam os jogos, só falavam o dialeto de seu povoado,
morriam de saudades.
Na Quaresma de 1856, Domingos Sávio (que tanto lembrava a
Dom Bosco a figura pálida e tensa de Luís Comollo) acabou por exa-
gerar. Ouvindo, nas leituras litúrgicas do tempo, contínuos convites
à penitência, quis fazer alguma também ele. Dom Bosco, advertido
por um assistente de refeitório que Domingos jejuava, procurou-o
imediatamente.
Em colóquio franco veio a saber que não só havia começado a
“jejuar a pão e água, ao menos aos sábados”, mas se lançara para
mais longe: tirara da cama o cobertor (enquanto o clima era ainda
frio), colocara cacos de tijolos debaixo dos lençóis, para tornar o
sono mais incômodo. Dom Bosco impediu-o terminantemente:
– Proibo-lhe, absolutamente, qualquer penitência. Ou melhor,
concedo-lhe uma só: a obediência. É uma penitência que custa,
agrada a Deus e não prejudica a saúde. Obedeça. Para você basta.
Mamãe Margarida se vai
15 de novembro de 1856. Mamãe Margarida adoece. Uma vio-
lenta pneumonia manifesta-se logo mortal para os seus 68 anos, já
minados de tanto trabalhar. Por um instante, a vida do oratório pa-
rece parar. Como ir adiante sem ela? Ao pé do leito, alternam-se os
clérigos de Dom Bosco, os alunos maiores. Quantas vezes haviam
entrado na sua cozinha, dizendo:
– Mãe, tem uma maçã para mim?
– Mãe, está pronta a sopa?
– Mamãe, não acho mais meu lenço...?!
– Mamãe, rasguei a calça.
O heroísmo dessa grande mulher que está se apagando foi todo
feito à base de remendar trapos, ceifar feno e trigo, lavar roupas e
panelas. Entretanto, nesses humildes serviços, havia a fortaleza de
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jamais se cansar, a confiança na Providência. Enquanto descascava
batatas, fazia polenta, brotavam-lhe dos lábios os ensinamentos da
fé, o bom senso prático, a suave bondade da mãe.
Foi dela que Dom Bosco aprendeu o seu sistema educativo. Foi
ele o primeiro a ser educado, com razão, religião e bondade. A
Congregação Salesiana foi embalada nos joelhos de Mamãe Margari-
da, que agora vai-se apagando como vela.
Chega dos Becchi José com os netos maiores. O padre Borel, seu
confessor desde que ela chegou a Turim, traz-lhe o Viático.
Reúne as últimas forças para dizer ao seu João:
– Cuidado! Muitos, em vez da glória de Deus, só procuram o seu
proveito... Há a seu lado dos que só amam a pobreza nos demais,
não em si. O que se pede aos outros, devemos começar a fazê-lo
nós mesmos.
Não quer que João a veja sofrer. Pensa nos outros até o último
momento.
– Vá, Joãozinho, vá... Você sofre demais em ver-me assim. Lem-
bre-se de que esta vida consiste em sofrer. A verdadeira felicida-
de está no Céu... Agora vá, peço-lhe, por favor... Reze por mim.
Adeus!
Nessas palavras simples, Margarida Bosco expressou a genuína
“concepção cristã da vida” do povo camponês, as convicções que
têm ajudado homens e mulheres dos campos a continuar vivendo,
não obstante a carestia, a morte dos filhos, o trabalho extenuante.
E isto, por séculos.
Ao lado da velha mãe que agoniza ficam José e o padre Alasonatti.
Expira às 3 da madrugada de 25 de novembro: José vai ao quarto de
João e abraçam-se chorando.
Duas horas depois, Dom Bosco chama Buzzetti. É o amigo das
horas mais amargas, o único de quem não tem vergonha de mos-
trar-se chorando. Vai celebrar a Missa por sua mãe na capela sub-
terrânea do Santuário da Consolata. Depois, se ajoelham diante da
imagem de Nossa Senhora, e Dom Bosco murmura: “Agora, eu e
meus filhos estamos sem mãe sobre a terra. Acompanhai-nos. Fazei-
-nos de Mãe”.
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– Depois que Mamãe Margarida morreu, não sabemos como fa-
zer. Não há ninguém para fazer a sopa, remendar as meias... Não
gostaria de ir lá conosco, mamãe?!
Com 56 anos, dona Joana Maria segue o filho. Transforma-se na
segunda Mãe do oratório. Por vinte anos...
Um menino que fala com Deus
Dezembro. Caem as primeiras neves aspergindo de branco as
ruas de Turim. É noite. Pelas vias públicas ardem lampiões. Dom
Bosco se curva à mesa de trabalho. Uma pilha de cartas espera res-
posta: irá trabalhar até depois da meia-noite. Alguém bate, discre-
tamente, à porta.
– Entre! Quem é?
– Sou eu – diz Domingos Sávio, entrando rápido. – Depressa,
venha comigo. Temos de fazer uma obra de caridade.
– Agora, de noite? Aonde me quer levar?
– Depressa, Dom Bosco! Depressa!
Dom Bosco hesita. Mas, observando Domingos, nota que seu
rosto, de costume tão sereno, está muito sério. Também suas pa-
lavras são firmes. Como as de uma ordem. Dom Bosco levanta-se,
toma o chapéu e o acompanha.
O rapaz desce velozmente as escadas, sai do pátio, toma decidi-
do o caminho da cidade, dobra uma esquina, depois outra. Não fala
nem para. Avança seguro pelo dédalo de ruas e vielas. Sobe uma
escada: Dom Bosco o segue. Primeiro andar. Segundo. Terceiro.
Domingos para: bate. Antes que venham abrir, diz a Dom Bosco:
– É aqui. – E volta para casa.
A porta se abre. Uma mulher, toda desgrenhada, vê Dom Bosco
e exclama:
– É Deus quem o manda! Depressa, depressa, senão não chega
a tempo. Meu marido teve a desgraça de abandonar a fé há muitos
anos. Agora está para morrer e pede por piedade a confissão.
Dom Bosco se aproxima da cama onde jaz um pobre homem
apavorado e à beira do desespero. Confessa-o, dá-lhe a absolvição.
Poucos minutos depois, morre.
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Passam os dias. Dom Bosco está ainda impressionado pelo acon-
tecido. Como pôde Domingos saber daquele doente? Aborda-o
numa hora em que ninguém os ouve:
– Domingos, aquela noite em que foi ao meu escritório chamar-
-me, quem lhe havia falado daquele doente? Como foi que veio a
saber?
Acontece então uma coisa que Dom Bosco não espera: o rapaz
fixa-o com olhar tristonho e põe-se a chorar. Dom Bosco não se
atreve a fazer-lhe outras perguntas. Mas compreende que no seu
oratório há um menino que fala com Deus.
“Do Céu poderei ver os meus colegas?”
Fevereiro de 1857. O inverno de Turim se torna muito rigoroso
e Sávio cada vez mais pálido. Acomete-o uma tosse profunda. As
forças diminuem rapidamente. Preocupado, Dom Bosco chama os
melhores médicos. Após acurado exame, o doutor Vallauri diz:
– A compleição delicada e a contínua tensão do espírito são
como limas que lhe roem a vida.
– E que posso fazer por ele? – insistiu Dom Bosco.
Vallauri, desolado, encolheu os ombros. A medicina, nesse tem-
po, praticamente não existia.
– Mande-o de volta a seus ares. Suspenda-lhe por algum tempo
os estudos.
Quando soube da decisão, Domingos resignou-se. Mas lhe doía
muitíssimo deixar os estudos, os amigos, principalmente Dom
Bosco.
– Por que não quer ir gozar da companhia dos pais?
– Não é isso. É que gostaria de acabar os meus dias aqui, no ora-
tório.
– Nem pense nisso. Você vai para casa, recupera a saúde, e volta.
– Isso não – sorriu Domingos, meneando a cabeça. – Vou e não
volto mais. Dom Bosco, é a última vez que podemos conversar. Diga-
-me: que posso ainda fazer para Deus?
– Ofereça-lhe muitas vezes os seus sofrimentos.
– E que mais?
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– Ofereça-lhe também a vida.
– Do céu poderei ver meus companheiros do oratório, meus
pais?
– Sim – murmurou Dom Bosco, procurando vencer a comoção.
– E... poderei também visitá-los?
– Se agradar a Deus, poderá.
Era domingo, 1o de março. O adeus mais comovido foi para os
amigos da “Companhia”. Depois, chegou a caleche do pai que o
levaria a Mondônio. Na esquina, agitou ainda uma vez a mão para
saudar o oratório, os amigos, o “seu” Dom Bosco, que ficou a con-
templar com dor profunda a carruagem que se afastava. Partira o
seu melhor aluno, o santinho com que, por três anos, Nossa Senho-
ra presenteara o seu oratório.
Apagou-se quase de improviso aos 9 de março de 1857. Junto
dele estava o pai. Teve apenas força para murmurar:
– Adeus, papai... o pároco me dizia... mas não me lembro... Que
coisa bonita estou vendo!...
Pio XII declarou-o santo aos 12 de junho de 1954. O primeiro
santo de 15 anos. Incompletos.
A faixa cor de sangue
Dom Bosco vê-lo-ia mais uma vez, no grande “sonho” que teve
em Lanzo, na noite de 6 de dezembro de 1876. Sua narração ocupa
dez páginas compactas no 12o volume das Memórias Biográficas.
Somos obrigados a condensá-lo.
Pareceu-me estar à borda de uma imensa planície azul como o mar. Não
era água: parecia um terso e luzente cristal. E uma música dulcíssima
perpassava os ares...
E eis que me aparece uma turba numerosíssima de jovens. A muitíssimos
deles eu conhecia: haviam estado no oratório e noutros colégios salesianos.
A maior parte, porém, desconhecia completamente.
A multidão interminável vinha em minha direção. À frente de todos
caminhava Domingos Sávio. Logo a seguir, muitos e muitos outros clérigos
e padres, cada qual guiando uma turba de jovens.
Domingos Sávio adiantou-se sozinho. Parou tão perto de mim que, se eu
tivesse estendido a mão, tê-lo-ia tocado certamente.
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Como estava lindo! Uma túnica candidíssima descia-lhe até os pés. Uma
ampla faixa vermelha cingia-lhe os flancos. À cabeça, trazia uma coroa de
rosas. Parecia um anjo...
Então, Domingos abriu a boca e disse:
– Por que não fala? Não é o senhor aquele homem tão corajoso de
antigamente, que enfrentava destemido as calúnias, as perseguições, os
inimigos, as angústias e os perigos de todo gênero? Por que não fala?
– Então é você Domingos Sávio?
– Sim, sou eu. Não me reconhece? Vim para falar-lhe. Lembra quantas vezes
conversamos na terra? Quantos sinais de amizade o senhor me deu! E
esse seu vivo amor não era, porventura, correspondido por mim? Quanta
confiança eu depunha no senhor!
– Mas, afinal, onde estamos?
– Está no lugar da felicidade.
– Por que essa túnica esplendente e essa faixa cor de sangue aos flancos?
Uma voz cantou as palavras da Bíblia: São virgens e seguem o Cordeiro
aonde quer que Ele vá. Então compreendi que aquela faixa vermelha era
o sinal dos grandes sacrifícios feitos, como de um martírio sofrido para
conservar a virtude da pureza. O esplendor da veste era o símbolo da
inocência batismal conservada.
– Por que caminha à frente dos outros? – perguntei-lhe ainda.
– Porque sou embaixador de Deus. Quando ao passado, digo-lhe que a
sua Congregação já fez muito bem.Vê esse número incontável de jovens?
Foram salvos pelo senhor, ou por seus padres e clérigos, ou por outros que
o senhor encaminhou pela via da vocação. Contudo, seriam muito mais
numerosos, se o senhor tivesse tido mais fé e confiança em Deus.
– E o presente?
Domingos entregou-me um ramalhete de flores: rosas, violetas, lírios,
gencianas, espigas de trigo... E disse:
– Apresente-o a seus filhos. A rosa é o símbolo da caridade; a violeta, da
humildade; a genciana, da penitência; o lírio, da castidade; as espigas, do
amor à Eucaristia.
– E para o futuro?
– Saiba que Deus prepara grandes coisas para a sua Congregação. Grande
glória. Mas procure que os seus salesianos não se afastem do caminho
reto que o senhor já lhe indicou. Se forem dignos de sua alta missão, o
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porvir será esplendidíssimo: levará a salvação a uma infinidade de pessoas.
Com a condição, porém, de que os seus filhos sejam devotos de Nossa
Senhora e saibam conservar a virtude da castidade, que tanto agrada aos
olhos de Deus.
– E quanto a mim?
– Oh, se soubesse quantas lutas deverá ainda sustentar!
Então, estendi as mãos para as daquele meu santo menino. Mas suas mãos
me fugiram como se fossem de ar. E não as pude apertar...
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31.9 Page 309

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“Frade ou não frade, eu fico com Dom Bosco”
Num dia de verão de 1857, Dom Bosco foi recebido pelo minis-
tro Rattazzi. A conversa foi cair sobre a “obra dos oratórios”
que o ministro apreciava, especialmente depois da dedicação
dos jovens em favor dos coléricos e o episódio da Generala. Segun-
do a relação de Lemoyne, a conversa teve este desenvolvimento:
– Dom Bosco, desejo que viva longamente. Mas também o se-
nhor pode vir a faltar. Que seria, então, de seus rapazes?
– Devolvo a pergunta, senhor ministro. Que poderei fazer para a
sobrevivência de minha obra?
– A meu ver, deveria escolher, dentre os leigos e os eclesiásticos
de sua confiança, algumas pessoas. Impregná-las de seu espírito.
Adestrá-las no seu sistema. E formar uma Sociedade. Por ora, serão
seus auxiliares; amanhã, seus continuadores.
Dom Bosco sorriu.
– Mas V. Excia., há dois anos, fez aprovar uma lei para a supres-
são de muitas Comunidades religiosas. Ora, o que está propondo é
justamente uma nova Comunidade religiosa. Deixá-la-á sobreviver
o governo?
– Eu conheço muito bem a lei da supressão – sorriu, por sua vez,
Rattazzi.– O senhor pode fundar uma Sociedade que nenhuma lei
poderá jamais afundar.
– E como?
– Um Estado leigo não poderá nunca reconhecer uma “Socieda-
de religiosa” como dependente da Igreja, isto é, de uma autoridade
diferente da sua. Mas, se nasce uma Sociedade, em que cada mem-
bro conserva os direitos civis, se submete às leis de Estado, paga
os impostos, então o Estado nada poderá objetar. Perante ele, tal
Sociedade é apenas uma associação de cidadãos livres, que se unem
e vivem juntos com uma finalidade de beneficência, assim como
outros se unem para uma finalidade de comércio, de indústria, de
mútuo socorro. Se, depois, internamente, esses sócios aceitam tam-
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31.10 Page 310

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bém a autoridade dos bispos e do papa, o Estado lava as mãos. Qual-
quer associação de cidadãos livres é permitida. Basta que respeite
as leis e a autoridade do Estado.
Dom Bosco agradeceu ao ministro e prometeu pensar no caso.
Rattazzi nada mais fizera que dar uma forma límpida a uma ideia
que Dom Bosco, fazia anos, alimentava em si. Estava, de fato, es-
tudando como fundar uma Congregação que, “perante a Igreja”,
fosse de religiosos e,“perante o Estado”, fosse de livres cidadãos.A
principal dificuldade consistia nisso: iria a Santa Sé admitir esta nova
forma que, na prática, aceitava a separação entre a Igreja e o Estado
(princípio liberal) e revolucionava os esquemas clássicos da vida
religiosa? Até então, os religiosos haviam sido tais “perante a Igreja
e perante o Estado”.
Um esboço da Congregação que nascia
Enquanto pensava na “fórmula”, Dom Bosco preocupava-se com
as pessoas que iriam formar sua Congregação. Um a um, os colabo-
radores adultos haviam-no abandonado. O caminho a seguir fora-
-lhe indicado por Nossa Senhora, em seus sonhos: suscitar os pasto-
res dentre o rebanho.
Miguel Rua fora o primeiro, em março de 1855, a pronunciar
os votos.
Alguns meses depois, fê-los o padre Alasonatti.
Em 1856 foi a vez de João Batista Francésia, que compôs para a
ocasião um solene carme latino.
Mas nenhum dos três achava que fazia parte de uma “Congre-
gação”. Julgavam apenas ter-se unido mais ainda a Dom Bosco
“para ajudá-lo”.
E Dom Bosco continuava com muita prudência: congregações e
frades não estavam na moda nesse tempo. Evitou, com muito cuida-
do, toda a “aparência de vida religiosa: nada de meditações regula-
res, longas orações, austeras observâncias” (E. Céria).
De resto, até 1859 nada autorizava Dom Bosco a declarar-se “che-
fe de uma congregação religiosa”. Estava rodeado de um bom nú-
mero de clérigos, que dele haviam recebido a batina. Isso, porém, só
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32.1 Page 311

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tinha sido possível porque o arcebispo via no fato uma necessidade
“para a obra dos oratórios”.
Por outro lado, esses clérigos haviam sido obrigados a prestar
um exame preliminar perante a Cúria da cidade e, exceto uns pou-
cos dispensados porque seu trabalho era indispensável no oratório,
compareciam às aulas do seminário. Dom Bosco governava os ora-
tórios, o internato de Valdocco, os clérigos, sob a autoridade do
arcebispo de Turim, dom Fransoni.
Não havia a aparência, mas a substância ia-se condensando. Pre-
cisava bosquejar alguma coisa a respeito da nascente Congregação,
uma “regra” que fixasse os pontos essenciais do espírito e do mé-
todo.
Dom Bosco iniciou trabalho, silenciosamente, em 1855: bebeu
de sua própria experiência, dos “regulamentos” que traçara para o
oratório, pediu conselho, documentou-se cuidadosamente nas re-
gras das ordens antigas e das congregações mais recentes, como o
Instituto da Caridade, de Rosmini, e os oblatos, do abade Lanteri.
O colóquio com Rattazzi (no qual o ministro lhe repetiu tão so-
mente o que expusera publicamente na Câmara dos Deputados)
foi “um jato de luz” que lhe fez compreender como podia adaptar
a substância da vida religiosa às novas condições impostas pelas
injunções políticas. Dom Bosco defenderá com decisão os “direitos
civis” dos seus religiosos.
Pelo fim de 1857, o primeiro texto da “regra” salesiana (que indi-
ferentemente será chamado Regras ou Constituições) estava pron-
to. Começava o extenuante trabalho para obter a aprovação das
autoridades religiosas.
Posto a par da iniciativa de Dom Bosco, dom Fransoni, em seu
exílio de Lião (França), mostrou-se muito incentivador. Para maior
segurança, aconselhou-o que fosse falar do seu projeto com o papa
Pio IX.
Encontro com o papa
1858. Primeiros dias de fevereiro. Miguel Rua passa horas e horas
da noite a copiar, com elegante grafia, o manuscrito das Regras. Dom
Bosco havia recomendado:
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– Capriche! Iremos juntos levá-las ao papa.
A 18 de fevereiro partem para Roma. Viagem, naquele tempo,
longa e difícil. Parte por terra, parte por mar, munidos de passa-
porte regular. Antes de viajar, Dom Bosco julga oportuno fazer o
testamento. Confia o oratório ao padre Alasonatti.
9 de março. Primeira audiência com Pio IX. O papa demonstra-
-lhe uma benevolência jamais desmentida. Não esconde a própria
admiração diante da exuberante atividade do sacerdote de Turim.
Aprova a intenção de fundar uma Congregação adaptada aos tem-
pos, mas acrescenta algumas recomendações: a mais importante é a
de ligar os sócios entre si, não só com “promessas” (como sugerira
Rattazzi), mas com verdadeiros “votos religiosos”. Diz a Dom Bosco
que também o papa precisa pensar no caso. “Ide, rezai. Depois de
alguns dias, voltai. Então, dir-vos-ei o meu pensamento.”
Feliz pela acolhida, Dom Bosco revê o texto das Regras e fá-lo,
copiar novamente por Rua.
21 de março. Segunda audiência com Pio IX, que pensou e defi-
ne sua ideia:
Convenci-me de que o vosso projeto poderá fazer muito bem à juventu-
de. É preciso realizá-lo. As Regras sejam suaves e de fácil observância. A
maneira de vestir, as práticas de piedade não vos façam distinguir no meio
mundano. Para esse fim, talvez, seria melhor chamá-la Sociedade em vez de
Congregação. Afinal, fazei de modo que cada um de seus membros seja
um religioso perante a Igreja e um cidadão perante a sociedade civil.
Dom Bosco viu logo que Pio IX e Rattazzi andavam bastante de
acordo. Apresentou ao papa o breve texto das Regras:
“Neste regulamento, retocado segundo vossas recomendações,
está contida a disciplina e o espírito que nos guia há vinte anos”.
Tais Regras nada tinham de monástico. Tratava-se de uma socie-
dade de eclesiásticos e de leigos unidos pelos votos e desejosos de
consagrar-se ao bem da juventude pobre. Perante o Estado eram ci-
dadãos:“Cada qual, ao entrar, não perderá os direitos civis, mesmo
depois de fazer os votos, porque conserva a propriedade dos seus
bens”. Perante a Igreja eram religiosos: “O fruto de seus bens, por
todo o tempo em que permanecerem na Congregação, deve ser
cedido em favor da Congregação”.
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32.3 Page 313

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6 de abril. “Numa terceira e última audiência – narra o padre
Céria nos Anais da Sociedade Salesiana –, Pio IX devolveu-lhe o
manuscrito, dizendo-lhe que o passasse ao cardeal Gaude”.
Esse cardeal piemontês tinha ótimas relações com Dom Bosco.
Leu, emendou e aconselhou Dom Bosco a fazer uma experiência
com as Regras assim retocadas. Mais tarde, deveriam ser reapresen-
tadas ao papa.
14 de abril de 1858. Dom Bosco deixa Roma.
Uma semana para decidir a vida
9 de dezembro de 1859. Dom Bosco julga ter chegado a hora de
falar abertamente de Congregação religiosa. Aos 19 “salesianos”,
reunidos em seu quartinho, fala mais ou menos, nestes termos:
Faz muito tempo que penso em fundar uma Congregação. Chegou a
hora de passar aos fatos. O santo padre Pio IX encorajou-me e louvou
meu propósito. Na verdade, esta Congregação não vai nascer agora: já
existia naquele conjunto de Regras que vocês vieram observando por
tradição... Trata-se, agora, de ir mais adiante, de constituir formalmente
a Congregação e aceitar-lhe as Regras. Saibam, porém, que nela só serão
inscritos aqueles que, depois de madura reflexão, quiserem emitir a seu
tempo os votos de pobreza, castidade e obediência... Deixo-lhes uma
semana de tempo para pensar.
À saída da reunião, houve um silêncio insólito. E logo que as lín-
guas se soltaram, pôde-se verificar que Dom Bosco tinha razão para
proceder com prudência e vagar. Alguns murmuravam que Dom
Bosco queria fazê-los frades. Dominado por sentimentos contradi-
tórios, Cagliero media o pátio com largas passadas.
Na maioria, porém, o desejo de “ficar com Dom Bosco” levou a
melhor. Cagliero rompeu na frase que se tornaria histórica:“Frade
ou não frade, eu fico com Dom Bosco”.
À “conferência de adesão”, realizada na noite de 18 de dezembro,
faltaram apenas dois dos 19 que haviam participado da conferência
anterior. Eis o resumo da ata redigida pelo padre Alasonatti:
No aposento do sacerdote João Bosco, reuniram-se, às 21 horas, Dom
Bosco, o sacerdote Vitório Alasonatti, os clérigos diácono Ângelo Sávio,
312

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subdiácono Miguel Rua, João Cagliero, João Batista Francésia, Francisco
Provera, Carlos Ghivarello, José Lazzero, João Bonetti, João Anfossi, Luís
Marcellino, Francisco Cerruti, Celestino Durando, Segundo Pettiva,
Antônio Rovetto, César José Bongiovanni e o jovem Luís Chianale.
Aprouve aos mesmos congregados erigirem-se em Sociedade ou
Congregação...
Pediram por unanimidade a Dom Bosco, iniciador e promotor, que
aceitasse o cargo de Superior Maior, aceitou-o com a reserva de poder
nomear ele próprio o Prefeito: parecia-lhe não devesse remover desse
cargo o escrivão destas linhas...
O subdiácono Rua foi eleito por unanimidade Diretor espiritual. Como
Ecônomo foi reconhecido o diácono Ângelo Sávio. Os três conselheiros
eleitos foram os clérigos João Cagliero, João Bonetti e Carlos Ghivarello.
Constituiu-se deste modo, definitivamente, o corpo de administração
(chamado depois Capítulo Superior) para a nossa Sociedade.
“Que está fazendo aí no oratório?”
A Congregação havia nascido. Dom Bosco sentiu uma grande
satisfação. Acho, porém, que naquele dia, uma ruga de melancolia
lhe ficou no fundo da alma: entre os 17 que aceitaram não estava o
seu caríssimo José Buzzetti.
Manejando uma pistola (para defender os objetos expostos na
primeira rifa), sofrera um grave acidente; tiveram que amputar-lhe
o indicador da mão esquerda. Isto, naquele tempo, era considerado
um impedimento sério para o sacerdócio. O incidente, “unido à
humildade”, observa o padre Lemoyne, haviam persuadido Buzzetti
a renunciar ao hábito clerical.
Mas dedicava cada hora do dia ao “seu” Dom Bosco e ao orató-
rio. Cuidava da manutenção da casa – descreve padre Lemoyne –,
assistia no refeitório, preparava as mesas, providenciava tudo para
as limpezas, dava aulas de catecismo, administrava e cuidava da
expedição das Leituras Católicas. Dirigiu, igualmente, a escola de
canto até 1860, quando a passou a João Cagliero. “Perspicaz e sem-
pre atento, era a alma de todas as rifas, procurava trabalhos para as
oficinas, encomendava o pão, fazia as compras.”
Sentia o oratório como carne de sua carne. Quando desmoro-
nou o edifício quase terminado (1852), examinou meticulosamen-
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32.5 Page 315

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te as faturas: achou fornecimento de material inferior e atacou o
empresário com palavras duras. O próprio Dom Bosco teve de
acalmá-lo:
– Devemos ter paciência. Verá que Deus nos ajudará.
– Sim, sim, nos ajudará! Enquanto isso, o senhor não dorme, tra-
balha dia e noite para juntar algumas centenas de liras e esses aí lhe
roubam milhares num instante. Precisaria é dar-lhes uma lição para
valer.
– Deixe estar. Se a merecem, recebê-la-ão de Deus.
Buzzetti (continua Lemoyne, de quem tomamos o diálogo) era
o guarda-costas de Dom Bosco. Acompanhava-o quando se temia
algum perigo. E ia esperá-lo ao anoitecer. Seu porte atlético, espes-
sa barba de fogo, tirou de vários mal-intencionados a vontade de
atacar o padre de Valdocco.
Seus irmãos pedreiros (Carlos se tornara um ótimo mestre de
obras) várias vezes lhe disseram:
– Se não quer ser padre, que está fazendo aí no oratório? E se
Dom Bosco morresse, como se arranjaria, sem saber nenhum ofí-
cio?
E ele:
– Dom Bosco me garantiu que, mesmo depois de sua morte,
sempre haverá um pedaço de pão e para mim basta.
Pois bem, esse jovem senhor (em 1859 tinha 27 anos) que por
Dom Bosco teria dado, de boa vontade, a própria vida, não ousava
fazer os votos, fazer-se salesiano.
O primeiro “leigo” admitido na Sociedade Salesiana foi José Ros-
si. O “Capítulo da Sociedade Salesiana” se reuniu para decidir da
sua admissão no dia 2 de fevereiro de 1860. Com Rossi, a palavra
“coadjutor” aparece no vocabulário da Congregação com o signifi-
cado de “salesiano leigo”.
A crise de José Buzzetti
O dia 14 de março de 1862 assinalou uma nova etapa na consoli-
dação da Sociedade Salesiana. Reunidos no quartinho de Dom Bos-
co, os “coirmãos”, respondendo a seu convite, “prometeram a Deus
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32.6 Page 316

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observar as Constituições, fazendo voto de pobreza, de castidade e
de obediência por três anos”. Eram 22, sem incluir o fundador.
Ao final, Dom Bosco disse: “Enquanto vocês faziam a mim esses
votos, eu os fazia a este Crucifixo, por toda a vida, oferecendo-me
a Deus em sacrifício”.
Do grupo de 22 faziam parte outros dois leigos, muito diferentes
entre si. O primeiro, José Gaia, seria, por muitos anos, cozinheiro
no oratório. O segundo, Frederico Oreglia di Santo Stefano, perten-
cia à aristocracia turinense. Dom Bosco o havia conquistado duran-
te um curso de Exercícios Espirituais, levando-o encerrar um perío-
do de “vida aventurosa e galante”. Por nove anos iria prestar muitos
serviços no oratório. Depois entraria para os jesuítas.
Nos anos que se seguiram, e que viram outros leigos aderirem à
Congregação, a tentação de considerar os não sacerdotes e os não
clérigos como “criados” da casa, ou, ao menos, como “categoria de
segunda ordem, era fácil”.
Foi provavelmente nesse contexto que nasceu a crise de José
Buzzetti. Narra-a o padre Lemoyne, no quinto volume das Memórias
Biográficas. Condensamo-la:
Buzzetti intuía que a antiga vida patriarcal de família seria modificada pelos
regulamentos. Via, pouco a pouco, passar às mãos dos clérigos a direção
da casa, as incumbências que antes eram confiadas a ele. Melancolia
e desânimo decidiram-no a retirar-se. Achou emprego em Turim e foi
despedir-se de Dom Bosco. Disse-lhe, com a costumada franqueza, que já
estava virando sobressalente, que devia obedecer aos que ele vira chegar
menininhos e ensinara a assoar o nariz. Manifestou sua grande tristeza de
ter de deixar aquela casa que ele vira crescer desde os dias do telheiro.
Dom Bosco não disse: “Você me deixa só. Como farei sem você?”. Não
ficou a lamentar-se. Pensou nele, no seu amigo mais querido: “Você
achou emprego? Terá um bom salário? Como você não tem dinheiro, irá
certamente precisar dele para as primeiras despesas”.Abriu as gavetas da
escrivaninha:“Escute, José, você conhece estas gavetas melhor do que eu.
Pegue tudo o que precisa. E se não der, me diga: vou arrumar tudo o que
for necessário. Não quero que sofra nenhuma privação por minha causa,
ouviu José?!”. Depois, fitou-o com aquele amor que só ele dedicava aos
seus jovens.“Nós sempre nos quisemos bem. Espero que nunca se esqueça
de mim”.
Aí Buzzetti desatou a chorar. E chorou longamente... Depois disse: “Não,
não quero deixar Dom Bosco. Ficarei sempre com o senhor”.
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32.7 Page 317

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O “coadjutor,,, segundo o coração de Dom Bosco
Foi talvez esse acontecimento que estimulou Dom Bosco a defi-
nir melhor a figura do Salesiano Leigo, do “Coadjutor”, na Congre-
gação Salesiana.
31 de março de 1876. Numa “boa noite” reservada aos apren-
dizes, explicou em que consistia a vocação do Salesiano Leigo:
“Notem que entre os sócios da Congregação não há nenhuma di-
ferença. Todos são tratados da mesma maneira, artesãos, clérigos e
padres. Consideramo-nos todos como irmãos”.
Em 1877, José Buzzetti se decidiu a fazer o pedido para entrar
na Sociedade Salesiana. Dom Bosco pessoalmente quis apresentar o
seu pedido ao “Capítulo Superior”, constituído quase inteiramente
por aqueles rapazinhos a quem José “havia ensinado a assoar o na-
riz”. Foi aceito por unanimidade. E acho que aquele foi um dos dias
mais intimamente belos para Dom Bosco.
Já eram muitos os “coadjutores” que faziam parte da Sociedade
Salesiana, com encargos variadíssimos: Pelazza e Gambino eram di-
retores de oficinas; Marcelo Rossi, porteiro; Nasi, enfermeiro; José
Rossi, administrador; Enria, factótum; Falco e Ruffato, cozinheiros.
Mas todos “coadjuvavam o sacerdote” com responsabilidades apos-
tólicas: ensinavam catecismo, eram assistentes e educadores.
A “tentação” de que falávamos há pouco ressurgiu nos últimos
anos de vida de Dom Bosco. No terceiro “Capítulo Geral” da Con-
gregação, realizado em 1883, alguém propôs: “É preciso conservar
por baixo os coadjutores, formar para eles uma categoria diferen-
te”. Dom Bosco reagiu com vivacidade: ‘Não, não, não. Os irmãos
coadjutores são como todos os outros”. Nesse mesmo ano, falando
aos salesianos leigos, afirmava com energia:
Vocês não devem ser quem trabalha diretamente ou se cansa, mais sim
os que dirigem. Devem ser como patrões para os demais operários e, não
como empregados... Esta é a ideia do Coadjutor Salesiano. Tenho muita
necessidade de auxiliares assim! Estou, por isso, satisfeito que tenham
roupa adequada e limpa, camas e celas convenientes. Não devem ser
empregados, mas patrões. Não súditos, mas superiores.
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32.8 Page 318

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Pedro Braido, estudioso do problema, afirma: “A figura do
coadjutor (na mente de Dom Bosco) não surgiu de repente, como
uma criação totalmente nova e original, mas emergia gradualmente,
entre oscilações e incertezas”.
Atrevemo-nos a afirmar que, talvez, a “figura ideal” do Coadjutor,
que por tantos anos Dom Bosco trazia no coração, era a de José
Buzzetti: merecedor de toda a confiança, humilde, sempre presente
nos momentos difíceis e delicados, que sentia o oratório como a
sua família e carne viva da sua vida, que se sentia realizado porque
a “sua família” se realizava, que não entendia muito de coisas jurídi-
cas, mas que, a todo custo,“queria ficar com Dom Bosco”.
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Sete guardas para um menino
Apartir de 1850, Dom Bosco está todo voltado à criação da sua
“Congregação Salesiana”. Mas seria um erro gravíssimo supor
que os pensamentos, as viagens, os encontros para fundar a
Sociedade o afastavam dos rapazes. Dom Bosco não foi nunca um
“chefe de empresa”. Foi um “pai de família”. E na sua família, a pre-
sença dos jovens considerava-se essencial.
Tão logo voltava de viagens, encontros, compromissos, retomava
as confissões dos rapazes. Pensava neles continuamente: nas ante-
câmaras de Roma, na plataforma da estação, enquanto esperava por
um trem.
Numa nevoenta noite de outono de 1857, estava, de fato, na
estação de Carmagnola. Esperava pelo trem que o levaria a Turim.
Naquele frio úmido, qualquer outro passageiro buscaria refúgio na
sala de espera. Dom Bosco, ao contrário, ouvira vozes de meninos
que brincavam, e os procurou, fixando os olhares na neblina.
“No meio daqueles gritos – escreveu –, ouvia-se, distinta, uma
voz que dominava as outras. Era como a voz de um capitão, que
todos repetiam e seguiam como um comando. Senti um vivo desejo
de conhecer o diretor de tão notável vozerio.”
Dom Bosco se aproxima. Logo que a batina preta emerge da ne-
blina, os moleques fogem em disparada. “Um deles fica. Adianta-se.
E, pondo as mãos nas cadeiras, começa a falar-me com ar imperioso:
– Quem é o senhor? Que deseja de nós?”
Perder o trem ou perder um menino
Dom Bosco fixa o rapagote de cabelos desgrenhados. E vê, no
fundo daqueles olhos tão altivos, uma vida borbulhante que infe-
lizmente está indo à deriva. Com um diálogo de poucos minutos,
vence a desconfiança. Conhece-lhe o nome: “Miguel Magone”. A
situação: “13 anos e sem pai”. E a prospectiva do futuro: “aprendi
o ofício de fazer nada”.
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32.10 Page 320

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O trem apita e arrisca-se a perdê-lo. Mas perder aquele garoto
seria uma infelicidade muito maior. Põe-lhe nas mãos uma medalha
de Nossa Senhora e diz-lhe rápido:
– Vá falar com o padre Aríccio, o vice-pároco. Diga-lhe que o pa-
dre que lhe deu esta medalha deseja informações a seu respeito.
Poucos dias depois, Dom Bosco recebeu uma carta do vice-páro-
co de Carmagnola. Dizia:
Miguel Magone é um pobre menino órfão de pai.A mãe deve ganhar o pão
da família e não pode dar-lhe assistência. Volúvel e avoado, já foi expulso
da escola várias vezes. Entretanto, concluiu bastante bem a terceira
elementar.
Quanto à moralidade, julgo-o bom de coração, de costumes simples. Mas
difícil de se levar: nas aulas e no catecismo, é um perturbador universal.
Quando não está, impera a paz. E quando se retira, presta um benefício a
todos.
A idade, a pobreza, a índole, o engenho fazem-no digno de todo o caridoso
cuidado.
Dom Bosco respondeu que se o menino e a mãe aceitassem, es-
tava disposto a recebê-lo como interno no seu oratório.
O padre Aríccio chamou Miguel. Falou-lhe daquele padre que, em
Turim, tinha uma casa enorme, com centenas de rapazes que cor-
riam, se divertiam, e estudavam ou aprendiam algum ofício.
E concluiu: “Ele está disposto a aceitar também você nessa casa.
Gostaria de ir para lá? Resposta: “Oh, se gostaria!”.
A mãe acompanhou-o até a estação com uma trouxinha de roupa
e o coração apertado de comoção. E Magone aportou em Valdocco.
Dom Bosco relembrava assim o primeiro diálogo:
– Cheguei! – disse, correndo para mim. – Eu sou aquele Miguel Magone
que o senhor encontrou na estação de Carmagnola.
– Ah, sim. Lembro, lembro. Veio de boa vontade?
– Sim, senhor. Boa vontade é o que não falta.
– Então vou pedir-lhe que não me revire a casa de pernas para o ar.
– Oh, fique tranquilo. Não lhe darei nenhum desgosto. No passado procedi
muito mal. Mas no futuro vai ser diferente. Dois de meus colegas já foram
para a cadeia, e eu...
– Fique tranquilo. Diga-me apenas se prefere estudar ou aprender um
ofício.
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– Estou disposto a fazer o que quiser. Mas se eu pudesse escolher, preferiria
estudar.
– E acabados os estudos, que deseja ser?
– Se um levado da breca... – disse, e depois abaixou a cabeça, sorrindo.
– Continue. Se um levado da breca...
– Se um levado da breca pudesse tornar-se tão bom que um dia pudesse
ser padre, eu gostaria de ser padre.
– Então vamos ver o que saberá fazer um levado da breca. Vou pô-lo a
estudar.
Desde então, cantar, gritar, correr, pular, fazer barulho tornou-se
a sua vida. Não, por certo, a vida de um santinho. A “Companhia
da Imaculada” pôs-lhe ao lado um “anjo da guarda reforçado”, para
que o ajudasse e o corrigisse com bondade. Não foi fácil! Palavrões,
ditos vulgares, meias blasfêmias... Mas, embora vivacíssimo, toda
vez que o colega o corrigia, Miguel agradecia. E se censurava.
Havia uma coisa profundamente antipática para Miguel: o sino.
O sino que marcava o fim do recreio e chamava ao estudo, às aulas.
Com os livros debaixo do braço, parecia um pequeno condenado a
trabalhos forçados.
A tristeza de um menino
Muito mais simpático lhe era o sinal que indicava o fim das aulas.
Dom Bosco, que o seguia com afetuosa atenção, escreveu: “Parecia
que saísse da boca de um canhão: voava a todos os cantos, punha
tudo em movimento”. No jogo era o capitão de um time que, desde
a sua chegada, se tornou quase invencível.
E assim foi durante um mês.
Certo dia, porém, Miguel começou a ficar triste. Desde um canto
solitário olhava os colegas brincarem, desviava da companhia dos
amigos barulhentos, e, por vezes, às escondidas, chorava. Parecia
que um véu de melancolia tivesse caído sobre seu rosto. Cedamos
a palavra a Dom Bosco.
Eu acompanhava tudo quanto acontecia nele. Por isso, um dia o mandei
chamar e lhe disse:
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– Caro Magone, eu precisaria que me fizesse um favor. Mas não gostaria de
receber uma recusa.
– Pode dizer – respondeu prontamente. – Pelo senhor eu estou disposto
a tudo.
– Precisaria que você me deixasse por um instante ser o dono de seu
coração e me dissesse por que, de uns dias para cá, está assim tão triste.
– Sim, é verdade... Estou desesperado. E não sei como fazer.
E desatou a chorar. Deixei-o desabafar e depois lhe disse em tom de
brincadeira:
– Mas, afinal, você é ou não é aquele general Miguel Magone, chefe de todo
o bando de Carmagnola? Que general é esse que não é capaz de dizer o
que o deixa tão triste!?
– Gostaria de fazê-lo, mas não sei como me exprimir...
– Diga-me só uma palavra.
– Estou com a consciência embrulhada.
– Basta. Entendi. Você pode ajeitar tudo com a máxima facilidade: diga
apenas ao confessor que tem alguma coisa a rever em sua vida passada.
Aí ele pegará o fio de suas coisas, de tal forma que você só terá que dizer
algum sim ou algum não.
Havia sacerdotes que iam ao oratório para ajudar nas confissões. Quase
todos os meninos, porém, se confessavam com Dom Bosco. Naquela
mesma noite, Miguel foi bater à porta do seu escritório.
– Dom Bosco, talvez incomode... Mas é que Deus já me tem esperado tanto
que não quero fazê-lo esperar até amanhã.
Com a ajuda de Dom Bosco, Magone depôs aos pés do Crucifica-
do as suas pequenas misérias, que a ele pareciam tão grandes. E Lhe
pediu perdão...
Testemunha daquela jovem ressurreição, Dom Bosco anotou:
Miguel perdeu a alegria quando começou a compreender que o verdadeiro
contentamento não nasce do pular e do saltar,mas da amizade com Deus e da
consciência tranquila.Via os colegas comungarem e tornarem-se melhores,
ao passo que ele, sem paz na consciência, era assaltado pela inquietação.
Terminada a confissão, exclamou comovido: “Oh! Como sou feliz!”.
No dia seguinte, Miguel voltou à frente de seu time e o levou a
uma vitória memorável. Retornara o rei da alegria.
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33.3 Page 323

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Boxe na Piazza Castello
Narrando a história de Magone, Dom Bosco nos mostra o enre-
do segundo o qual se desenrolaram centenas e centenas de seus
encontros com rapazes “nos quais o mal havia começado a traba-
lhar”. Ele sabia, com meios muito simples, reconciliá-los com Deus e
lançá-los pelo caminho da santidade.
“Agora – continua Dom Bosco –, o sino que chamava à igreja não
era mais antipático a Miguel: era um convite a encontrar-se com
Cristo Jesus, agora seu amigo.”
Assistido por Dom Bosco, traçou um “plano de batalha” para
conservar e desenvolver essa amizade. Em primeiro lugar, o empe-
nho para conservar uma pureza perfeita na vida. E, em segundo,
um empenho fundo para difundir a bondade e a alegria no meio
dos colegas.
Em seu canhenho pessoal, Magone escreveu sete propósitos que
chamou de “sete carabineiros” para defender a sua amizade com
Deus. Ei-los:
1. Encontrar-me muitas vezes com Jesus na Comunhão e na Con-
fissão.
2. Amar ternamente a Virgem Santíssima.
3. Rezar muito.
4. Invocar frequentemente Jesus e Maria.
5. Não usar de excessiva delicadeza com o corpo.
6. Estar sempre a fazer alguma coisa.
7. Ficar longe dos maus companheiros.
(É fácil ver nestes sete pontos o plano que Dom Bosco sugeria a
muitos rapazes para se conservarem bons.)
No front da bondade e da alegria. Miguel conduziu a batalha
com seu estilo voluntarioso. Estilo bem diferente do usado por Do-
mingos Sávio.
Num grupinho afastado, debaixo dos pórticos, um rapazola con-
tava piadas pouco decentes. Havia ao redor os que se riam sarcas-
ticamente. Um que outro teria preferido afastar-se, mas faltava-lhe
a coragem. Miguel entendeu tudo. Aproximou-se das costas do ra-
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33.4 Page 324

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paz, meteu os dedos na boca e, à moda dos vaqueiros, enfiou-lhe
nos ouvidos um assobio potentíssimo. O tal deu um pulo de susto
e virou-se furioso:
– Você está louco?
– Louco eu, ou você a contar essas porcarias?
Outro dia, Dom Bosco o levara consigo para fazer algumas enco-
mendas. Passavam pela Piazza Castello e havia dois rapazes jogando
a dinheiro. Um deles explodiu em blasfêmias, cobrindo de insultos
o nome de Deus. Miguel não se conteve: foi-lhe em cima, direto,
e o fulminou com dois sopapos. Pego de surpresa, o blasfemador
assimilou, meio aturdido, os golpes recebidos, mas logo partiu para
o revide. Os dois já se esmurravam duramente, em meio do povo
que parava para ver, quando Dom Bosco interveio e os separou.
Miguel sibilou:
– Agradeça a este padre. Senão você ia ver o que é ficar inchado.
Dom Bosco teve de persuadi-lo de que não era o caso de meter o
braço em todos aqueles que blasfemassem.
Boxear, porém, não era a única coisa que Magone sabia fazer.
Tornava-se, dia a dia, mais serviçal e generoso. Ajudava os mais pe-
quenos a arrumar a cama, a engraxar os sapatos. Repassava as lições
com os mais atrasados.
A mão sobre a cabeça de Miguel
Dom Bosco ficou tão contente com seu procedimento que, no
outono, o levou com os meninos melhores a passar alguns dias de
férias nos Becchi.
Em outubro de 1858, Miguel começou o segundo ano letivo em
Valdocco.
A 31 de dezembro, dando a “boa-noite”, Dom Bosco recomen-
dou a todos que começassem e continuassem bem o ano novo, na
graça de Deus, porque, talvez, “para algum de vocês – disse – será o
último ano de vida”. Enquanto falava, a mão de Dom Bosco pousava
sobre a cabeça de Miguel. E ele pensou: “Será para mim este avi-
so?”. Não se apavorou. Apenas disse consigo: “Estarei preparado”.
323

33.5 Page 325

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Três dias depois acusou dores no ventre: dores que já tivera, nos
anos anteriores, e que de vez em quando, retornavam. Uma apendi-
cite crônica, talvez. Recolheu-se à enfermaria. A coisa parecia não
preocupar, tanto que Dom Bosco, avistando-o da janela, perguntou-
-lhe o que tinha. Ouviu a resposta: “As dores de sempre”.
Mas na noite do 19 de janeiro o mal se agravou de repente. Cha-
maram a mãe com urgência. Veio o médico, e ouvindo a respiração
pesada, difícil, alargou os braços na desconsolada impotência da
medicina do tempo. E disse apenas: “Vamos mal”. (As primeiras
operações de apendicite só se tentariam pelo fim do século.)
21 de janeiro. Miguel chega ao fim. Os amigos, consternados,
rezam por ele. Ministram-lhe o Viático.
Avizinha-se a meia-noite. A mãe tivera que voltar para casa para
cuidar dos filhos mais pequenos. Dom Bosco, no entanto, está ali,
ao lado de Miguel.
– Chegou a hora! – disse de improviso. – Ajude-me, Dom Bosco...
Diga à mamãe que me perdoe todos os desgostos... Diga-lhe que a
amo muito, que tenha coragem... Que a espero no Céu...
Já é meia-noite. Miguel fica um instante adormecido. Depois,
como se acordasse de um profundo sono, diz a Dom Bosco com o
rosto sereno:
– Diga aos meus colegas que os espero a todos no Céu... Jesus,
José e Maria...
Seu rosto quedou-se imóvel na serenidade da morte.
A “grande política”
Foi com essa pequena, mas dolorosíssima tragédia que o ano de
1859 começou no oratório. Irá terminar (como dissemos no capítu-
lo 35) com a fundação oficial da Sociedade Salesiana.
Esse mesmo ano de 1859 trará à Itália acontecimentos e desesta-
bilizações.
Nos anos seguintes a 1848, a história italiana e europeia continua
evoluindo. Primeiro, silenciosamente. Depois, com clamores cada
vez mais altos.
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33.6 Page 326

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Em dezembro de 1852, Luís Napoleão, sobrinho de Napoleão Bo-
naparte. Dá um golpe de Estado e se proclama imperador da França,
com o nome de Napoleão III. Apresenta-se à Europa como o con-
tinuador da glória napoleônica: dispõe-se a apoiar os países que
querem independentizar-se do Império Austríaco.
Em outubro de 1852, em Paris, morre Gioberti, Em 1853, em Tu-
rim, morrem também Sílvio Péllico e César Balbo. Encerrava-se com
eles uma época: o Risorgimento romântico e neoguelfo. A nova
fase risorgimental é dominada por Cavour, astuto e cinicamente
concreto. Em 1855 manda um corpo expedicionário à Guerra da
Crimeia, ao lado das tropas francesas e inglesas que faziam guerra à
Rússia. Contra o “projeto louco” trovejaram, no Parlamento, Solaro
della Margarita e Brofferio, isto é, a direita e a esquerda. De Londres
imprecou Mazzini. Como enviar soldados a morrer numa guerra lon-
gínqua, enquanto no Piemonte há miséria (um quilo de pão custa
80 cêntimos, o salário de um operário é de três a quatro liras por
dia) e as legítimas aspirações italianas estão ainda por se realizar?
Cavour, porém, olha para mais longe. Na primavera de 1856, à
conferência de paz em Paris, pode sentar-se entre os “grandes da
Europa”. Seu bilhete de entrada foram os mortos da Crimeia, que
lhe permitem “reabrir o debate sobre o problema da Itália”.
A 14 de janeiro de 1858, em Paris, enquanto Napoleão se dirige à
Ópera, o mazziniano Orsini faz explodir algumas bombas: uma cen-
tena de feridos. Napoleão escapa ileso. Aos 13 de março Orsini é
justiçado, mas da prisão escrevera duas cartas a Napoleão: condena
o seu “fatal erro mental” e convida-o a libertar a Itália.
Cavour aproveita a oportunidade. Torna a chamar a atenção do
imperador francês para a perigosa inquietação da península italiana.
Ou se decide, ou pode rebentar uma revolução extremista (os “Or-
sinis” são muitos).
No mês de julho de 1858, dá-se o encontro secreto (segredo de
Polichinelo) de Plombières, França. Napoleão III e Cavour concor-
dam numa guerra contra a Áustria e sobre o futuro arranjo da Itália:
ao norte, o reino do Piemonte-Lombardia-Vêneto, sob os Saboias;
no centro, um reino a ser dado a um príncipe francês; no sul, um
terceiro reino para um descendente do general napoleônico Joa-
quim Murat. O Estado Pontifício, reduzido ao Lácio, ficará com o
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33.7 Page 327

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papa, que se tornará o presidente da Confederação dos três reinos.
Como recompensa, a França receberá Nice e a Saboia.
“Se for necessário, barricadas em Turim”
10 de janeiro de 1859. O rei Vítor Emanuel pronuncia perante as
Câmaras o famoso discurso do “grito de dor”: “Não sejamos insensí-
veis ao grito de dor que de tantas partes da Itália se dirige até nós”.
Uma frase combinada com Napoleão III. Um desafio de guerra à
Áustria.
23 de abril. Ante o avolumar-se dos voluntários no Piemonte, a
Áustria envia um últimato. Recusado no dia 26, é o início da guer-
ra. O exército piemontês de 60 mil homens alcança a fronteira. Da
França, a 30 de abril, chega a divisão Bataille, vanguarda de um exér-
cito de 120 mil homens, chefiados pelo mesmo imperador Napo-
leão III.
Turim delira com a chegada dos franceses.
Eu estava à sacada do ministério com Farina e Ricasoli – escreve Costanza
D’Azeglio – e os vi desfilar na Piazza Castello sob as aclamações da
multidão. O conde Cavour, reconhecido pelo povo, foi entusiasticamente
aplaudido. Não mais reconheço a tranquilíssima e monótona Turim. Luzes
às janelas, cantos, gritos, aplausos.
Os austríacos, 160 mil homens tentam bater os piemonteses an-
tes que cheguem as tropas de Napoleão. Com marchas forçadas
alcançam Novara, Vercelli, Trino, ameaçam Ivrea, chegam com as
vanguardas a Chivasso (a 25 quilômetros de Turim). A inundação da
planura baixa dificultou-lhes a passagem, mas não os deteve.Turim
está em pânico. O general de Sonnaz é encarregado de formar uma
linha de defesa às margens do rio Dora Báltea. Cavour telegrafa ao
rei: se for necessário, combater-se-á ao longo do rio Stura, levantar-
-se-ão barricadas pelas ruas de Turim.
Mas Napoleão III chega. Transporta rapidamente as tropas por
trem. A primeira grande batalha entre franceses e austríacos se tra-
va em Magenta (4 de junho). Após um dia de incerteza, a vitória é
dos franceses.
Quatro dias depois, chega a Turim a grande notícia: “8 de junho: o
imperador e o rei entram em Milão”. Depois, outra notícia: o impera-
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33.8 Page 328

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dor austríaco Francisco José deixa Viena para assumir pessoalmen-
te o comando do exército. Prepara-se uma batalha terrível.
Pedro Enria, que naqueles meses completava 18 anos, lembrava:
Em 1859, como já nos anos de 1848-49, reacendera-se um vivo fermento de
guerra nos jovens humildes de Turim. Invadiam, às centenas, os extensos
campos nos arredores da cidade e, dividindo-se em dois grupos, brincavam
de guerra. As batalhas deviam ser simuladas, mas os ânimos acabavam por
se acender e desencadeavam-se verdadeiras tempestades de pedras. Pode-
se dizer que isso acontecia em todos os dias santos.
Eu me lembro que, um domingo, Dom Bosco entrou na igreja para fazer
a pequena pregação aos oratorianos. Mas, com surpresa, lá só encontrou
os internos. “Onde estão os outros?”, perguntou. Ninguém sabia. Então
saiu e se meteu pelos prados: achou os rapazes do oratório pegando-se
ferozmente. Eram mais de 300. E as pedras que sibilavam pelo ar não eram
pequenas. Dom Bosco entrou na confusão. Eu o olhava de longe: temia
que fosse atingido. Deu umas cinquenta passadas até ao centro da batalha.
Quando todos o viram, pararam. “Agora que já fizeram a guerra – disse
sorrindo –, vamos para o catecismo.” Ninguém pensou em fugir. Todos
entraram com ele na igreja.
Às 10, o inferno
A terrível batalha entre austríacos e franco-piemonteses travou-
-se a 24 de julho, ao sul do lago de Garda.
Já de madrugada, a primeira divisão piemontesa, guiada pelo ge-
neral Durando, atacara os austríacos em Madonna della Scoperta
(Nossa Senhora da Descoberta), e a terceira e a quinta, sob o coman-
do de Molland e de Cucchiari, lançaram os primeiros vigorosos ata-
ques contra a elevação de San Martino, eriçada de baionetas austría-
cas. Napoleão III, ao pé das alturas de Solferino, está para mandar as
divisões contra o centro do exército austríaco, resolvido a quebrar
a resistência a qualquer preço.
Pelas 10, é o inferno. Há o troar dos canhões, o crepitar da fu-
zilaria, a grita imane de dezenas de milhares de combatentes. Os
embates são terríveis: os urros dos feridos se misturam aos dos re-
gimentos que contra-atacam, ao patear das turmas de cavalaria que
carregam com as espadas faiscantes, ao baque surdo e aos relâm-
pagos ofuscantes das granadas que explodem sobre as linhas dos
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33.9 Page 329

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combatentes. Os contra-ataques das casacas brancas austríacas são
terríveis. É uma selva de baionetas que avança com a força do de-
sespero.As massas dos fuzileiros franceses que recuam são relança-
das ao remoinho pelas espadas da cavalaria. Os soldados correm ao
assalto pela décima e mais vezes: muitos, apertando o pesado fuzil,
choram; outros, para vencer o medo, gritam.
Logo depois do meio-dia, o ataque francês se transforma numa
cena de selvagens corpo a corpo pela posse do cemitério, da colina
dos ciprestes e da torre de Solferino. Os zuavos, tropas africanas de
Napoleão III, parecem embriagados: caem sobre os austríacos, pro-
vocando carnificina.
Às 3 da tarde, a bandeira francesa tremula sobre a fortaleza de
Solferino. Mas, em sua ala esquerda, os piemonteses não conse-
guem avançar. Decide-se por um ataque maciço às 5. Enquanto se
dirigem ao assalto, o céu se tolda de nuvens baixas cor de chumbo.
Os primeiros relâmpagos cortam o ar. E no tempo em que, deses-
peradas, as brigadas piemontesas atacam as fileiras do feldmarechal
Benedek, a chuva e o granizo inundam o campo de batalha. Finda a
borrasca, brilham, por entre as nuvens rasgadas pelo vento, as pri-
meiras estrelas sobre o cimo de San Martino e o ataque recomeça.
Às 9 da noite, Vítor Emanuel lança à refrega os cavaleiros do Mon-
ferrato: é o terrível choque final. Após catorze horas de combate, os
austríacos são, afinal, derrotados.
Mas, pelos campos de Solferino e San Martino, jazem caídos 30
mil homens. Os gritos dos feridos e moribundos ressoam conjun-
tamente num coro espantoso... O jovem senhor suíço, Henrique
Dunant, que um dia fundará a Cruz Vermelha, percorre com uma
lanterna o campo de batalha: “Era como lançar um olhar ao inferno
– escreverá –, ao mais profundo dos infernos: cadáveres estraçalha-
dos; mutilados que choram, rezam, blasfemam; feridos que se arras-
tam, cá e acolá, à procura de um alívio impossível”.
Ao surgir do sol de junho, o ambiente ficará espantoso: mau
cheiro de cadáveres, nuvens de moscas, feridas que gangrenam,
gritos selvagens.
Esta é a guerra, a guerra verdadeira. Não a que os jornais de Tu-
rim, nesse mesmo dia, exaltam como uma grande festa.
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33.10 Page 330

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Num pequeno volume que publicará em fins de 1859, Dom Bos-
co se insurgirá contra todas as exaltações do momento e escreverá:
“Depois da batalha de Solferino, sempre disse que a guerra é uma
coisa horrível. Julgo-a verdadeiramente contrária à caridade”.
Êxito da “real-politik”
Também Napoleão III se dá conta das reais dimensões do mas-
sacre. Outras notícias vêm perturbá-lo: Toscana, Parma, Módena e
as Legações Pontifícias levantaram-se. Aderem ao Piemonte. Vem
à tona o projeto acordado em Plombières, do “reino central” italia-
no a confiar-se a um príncipe francês. As derrotas austríacas, além
disso, está provocando, como reação, uma concentração de tropas
prussianas nos confins do Reno.
A 11 de julho, sem avisar os aliados piemonteses, Napoleão III
firma um armistício em Villafranca. Só a Lombardia passará a Vítor
Emanuel.
A notícia cai sobre Turim como ducha gelada. Cavour, num mo-
mento de depressão, pensa em suicídio. Napoleão III volta à Fran-
ça, passando por Turim: acolhida glacial, O rei acompanha o impe-
rador até Susa. Agradece-lhe quanto fizera pela Itália. Tão logo o rei
embarca no trem, desabafa: “Finalmente se foi!”.
Nos tumultuosos meses que se seguem, a Toscana e a Emília-Ro-
manha se unem ao Piemonte, à Ligúria, à Sardenha e à Lombardia.
No ano seguinte, 1860, Garibaldi, com a expedição dos Mil, con-
quistará a Sicília e a Itália meridional. Em fevereiro de 1861, o novo
Parlamento proclamará Vítor Emanuel “rei da Itália”.
A “real-politik” de Cavour dera certo. Grazia Mancini, que o vira
passear pela praça San Carlo nos primeiros meses de 1861, escre-
veu: “Seu rosto bonachão, expressivo, satisfeito, dizia claramente:
tudo vai bem. Seus olhos pequenos e vivos brilhavam por detrás
dos óculos. Caminhava devagar, balouçando o sólido corpo sobre
as pernas sutis, esfregando as pequenas mãos aristocráticas sem lu-
vas.”
Mas a 7 de junho, uma notícia quase incrível invade Turim: o
conde Cavour morreu. Um golpe duríssimo para o jovem reino da
Itália.
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34 Pages 331-340

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34.1 Page 331

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Passeios pelo Monferrato e vida no oratório
Todos os anos, pela festa de Nossa Senhora do Rosário (7 de ou-
tubro), Dom Bosco leva aos Becchi seus melhores alunos: uns
20, nos primeiros anos. Depois, o número cresceu: de 1858 em
diante, chegava a uma centena.
“Nos primeiros dias de outubro – escreve o padre Lemoyne –,
partia do oratório a turma dos cantores, dos músicos e de outros
alunos. Cada qual levava num pequeno embrulho a roupa necessá-
ria para as férias, pão, queijo e frutas.”
Hospedava-os o irmão José, sempre cordial, sempre disposto a
fechar os olhos quando os rapazes invadiam a vinha para lhe dimi-
nuir o trabalho da vindima...
No primeiro domingo de outubro celebrava-se a festa. No dia se-
guinte, começavam os passeios, que se prolongavam por dez, vinte
e mais dias.
Até 1858, o quartel-general ficava nos Becchi de onde saíam de
manhã para uma aldeia não muito distante, voltando à noite.
A partir de 1859, os passeios se transformaram em verdadeiros
“itinerários” através das colinas do Monferrato. Dom Bosco prepa-
rava o roteiro com antecedência: párocos e benfeitores estavam
sempre prontos para acolher a turba faminta e cansada. A viagem
se desenrolava pelas estradas do campo, entre colinas e vinhedos.
Caminhavam em grupos, cantando, rufando, tambores, tangendo
burricos que portavam no lombo os cenários e os bastidores para as
representações teatrais. Atrás de todos seguia Dom Bosco, rodeado
sempre de um bom grupo de jovens que não se cansavam de ouvi-
-lo contar a história das aldeias por que passavam.
Chegando à meta, a turba se punha em ordem. E, com a banda
de música à frente, entravam solenemente no povoado.
Escrevia o padre Anfossi:
Não posso esquecer aquelas viagens aventurosas. Enchiam-me de encanto
e satisfação. Acompanhei Dom Bosco pelas colinas do Monferrato de 1854
a 1860. Éramos uma centena de rapazes e já então podíamos ver a grande
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34.2 Page 332

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fama de santidade de que gozava. Sua chegada naqueles lugares era um
triunfo. Os párocos dos arredores acorriam à sua passagem e, geralmente,
também as autoridades civis.
Os moradores se achegavam às janelas ou saíam às portas das casas; os
camponeses deixavam os trabalhos para verem o Santo; as mães se
aproximavam apresentando-lhe os filhinhos e, genuflexas, mesmo por
terra, lhe pediam a bênção. Como o nosso costume era ir diretamente à
igreja paroquial para adorar Jesus Sacramentado, em breve o templo ficava
repleto de fiéis, aos quais Dom Bosco, subindo ao púlpito, fazia logo uma
alocução. Cantava-se, depois, o Tantum ergo (“Tão sublime Sacramento”)
e dava-se a bênção do Santíssimo.
A seguir comia-se uma matula bem reforçada, à moda dos colonos: o povo
trazia generosamente para aqueles rapazes cestas de frutas, enormes pães
de forma caseiros, queijo e jarras de vinho.
Dormia-se debaixo de telheiros ou em salões, estirados sobre sacos de
folhas ou na palha.
Uma coisinha de 5 anos: Filipe Rinaldi
Nos anos de 1859 e 1860, foram visitadas as aldeias de Villa San
Secondo, Montiglio, Marmorito, Piea, Moncucco,Albugnano, Monta-
fia, Primeglio, Cortazzone, Pino d’Asti...
Em 1861, a alegre brigada chegou até Casale Monferrato, Mira-
bello, Lu, San Salvatore e Valenza. Continuou de trem até Alessan-
dria. E de Alessandria a Turim.
Em 1862, fez o seguinte itinerário: Calliano, Grana, Montemag-
no, Vignale, Casorzo, Camagna e Mirabello. As ferrovias estatais,
nesse ano também, puseram à disposição de Dom Bosco dois va-
gões para a volta de Alessandria a Turim.
Nos anos de 1863 e 1864, essa facilitação foi estendida também
à ida. Pôde-se, assim, em 1863, chegar a Tortona, visitando Asti e
indo a Broni, Torre Garofoli, Villavernia e Mirabello. Em 1864, foi-se
até Gênova e, depois, a Serravalle, fazendo a pé o trecho Serravalle-
-Acqui, passando por Gavi, Mornese, Ovada e todos os povoados
intermediários.
Depois desse ano, uma série de dificuldades fez suspender tais
passeios. Continuou-se apenas com a excursão aos Becchi e a Mon-
dônio, povoado de Domingos Sávio.
331

34.3 Page 333

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Aqueles passeios foram aventuras inesquecíveis para os meni-
nos, e, para Dom Bosco, a “carta de apresentação” aos povoados do
Monferrato, dos quais conseguiu levar para o oratório, esplêndidas
vocações salesianas.
Quando em 1861 chegou a Lu, viu diante da casa dos Rinaldis
9 meninos, uma escadinha como tubos de órgão. O oitavo, uma
“coisinha” desse tamanhinho, chamava-se Filipe, de 5 anos. Olhava
encantado aquele padre que, com gestos, fazia a banda tocar. No
fim da marchinha, bateu palmas também, todo cheio de alegria.
Dom Bosco voltou a ver aquela “coisinha” meia hora depois, no
terreiro da casa Rinaldi, onde o senhor Cristóvão (pai de Filipe)
lhe emprestou a caleche para ir até San Salvatore. Antes de partir,
fez uma carícia em todos aqueles menininhos tímidos que o con-
templavam encantados, fixando longamente os olhos do pequeno
Filipe. Tornar-se-ia seu terceiro sucessor à frente da Congregação
Salesiana.
Um menino de cabelos ruivos e a chuva
Em 1862, o grupo chega a Montemagno. Um menino de 12 anos,
que brincava num vale, ouviu acordes de banda. Deixou os colegas
e os sapatos e correu para a praça da aldeia. Infiltrou-se, a cotovela-
das, por entre o povo e chegou até a primeira fila. Dom Bosco viu
aquele olhar curioso, aquele tufo de cabelos ruivos e, antes que fos-
se embora, perguntou:
– E você, quem é?
– Luís Lasagna.
– Quer vir comigo a Turim?
– Para quê?
– Para estudar. Como todos esses rapazes.
– E por que não?
– Então, diga à sua mãe que, amanhã, venha falar comigo em
Vignale, na casa do pároco.
Lasagna tinha 12 anos. Entrou no oratório pelo fim do mês. Era
vivacíssimo, mas também muito sensível: ficou com saudades. De-
pois de alguns dias, fugiu.Alguém da direção achava que não devia
mais ser aceito. Dom Bosco, porém, garantiu por ele:“Esse menino é
coisa boa.Vocês vão ver”.
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34.4 Page 334

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Luís voltou. Afeiçou-se a Dom Bosco. Foi o segundo bispo sale-
siano. E grande missionário.
Dois anos mais tarde, no mês de agosto, Dom Bosco voltará a
Montemagno, onde será protagonista de um acontecimento extra-
ordinário.
Fazia três meses que não chovia. As videiras secavam nas colinas.
Dom Bosco chegou para pregar o tríduo de preparação para a festa
da Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto) e logo na primeira
pregação anunciou:
– Se nestes três dias se reconciliarem com Deus por meio de uma
boa confissão, e se no dia da festa todos receberem a Eucaristia, eu
lhes prometo em nome de Nossa Senhora que terão uma chuva
abundante.
Quando desceu do púlpito, achou o pároco, padre Clívio, de
cara fechada.
– Mais essa – lhe disse. – Precisa ter muita coragem!
– Para quê?
– Para prometer chuva. Em público. Para o dia da festa.
– Eu disse isso?!
– Todos nós ouvimos. Eu, por mim, não gosto muito dessas coi-
sas.
O povo respondeu com fé. Mesmo depois de anos, o padre Rua
e o padre Cagliero, que acompanhavam Dom Bosco, lembravam-se
das canseiras pelas longas horas de confessionário.
A “profecia” deu que falar também nas aldeias vizinhas. Muitos
esperavam curiosos. Outros céticos.
O dia da festa amanheceu brilhante. Depois do meio-dia, nem
sombra de nuvens.
O padre Luís Porta testemunhou:
Enquanto eu ia à igreja para as vésperas junto com o marquês Fassati,
falava-se da chuva prometida. O suor gotejava de nossas frontes, embora
do palazzo do marquês até a igreja não se gastasse mais que dez minutos
a pé. Chegando à sacristia, o marquês disse a Dom Bosco:
– Desta vez, senhor Dom Bosco, vai ser um fiasco. Prometeu chuva, mas o
que temos por aqui é coisa bem diferente.
Acabadas as vésperas, Dom Bosco revestiu a sobrepeliz, pôs a estola, subiu
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34.5 Page 335

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ao púlpito. Mas, já antes, enquanto rezava a Ave-Maria (antes da prédica),
a luz do sol começou a diminuir. Falava havia poucos minutos, quando
começaram relâmpagos e trovões. Vivamente comovido, Dom Bosco
parou de falar por um instante... Uma chuva pesada e contínua começou
a forçar os vitrais da igreja.
Imaginem, pois – continua sempre o padre Porta, de quem condensamos,
o testemunho –, imaginem a eloquente palavra que brotava do coração de
Dom Bosco, enquanto a chuva enfurecia: foi um hino de ação de graças
a Maria.
Mesmo depois da bênção, o povo esperou na igreja e no grande átrio,
porque a chuva continuava a cântaros.
Muitas vezes, no Monferrato, os grandes temporais de verão se
acompanham de granizo. Foi o que também aconteceu nesse dia.
Os “zelosos” foram logo pesquisar e contaram que “havia caído pe-
dra sobre as vinhas dos de Grana” (aldeia vizinha) que, naquele dia,
celebravam a festa da Padroeira com baile em praça pública (coisa
que muito irritava os párocos).
Uma jovem de Mornese: Maria Mazzarello
No passeio outonal daquele ano de 1864, Dom Bosco chega até
Mornese. Já é noite. O povo lhe vai ao encontro precedido pelo
pároco padre Valle e pelo padre Pestarino. A banda toca. Muitos
se ajoelham à passagem de Dom Bosco, pedindo que os abençoe.
Jovens e povo entram na igreja: dá-se a bênção do Santíssimo.
Em seguida, todos à ceia.
Depois, encorajados pelos aplausos, os rapazes de Dom Bosco
dão um breve concerto de marchas e músicas alegres. Na primeira
fila está uma moça de 27 anos, Maria Mazzarello. Por último, Dom
Bosco dirige umas poucas palavras: “Estamos todos cansados. Meus
rapazes precisam de uma boa dormida. Amanhã poderemos falar-
-nos mais à vontade”.
No dia seguinte, pela manhã, o padre Pestarino apresenta a Dom
Bosco as “Filhas da Imaculada”. Entre elas está Maria Mazzarello.
Dom Bosco fica impressionado pela bondade e pela laboriosi-
dade daquelas jovens e lhes fala brevemente, animando-as a serem
constantes na vida que escolheram e na prática da virtude. Maria
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34.6 Page 336

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Mazzarello será a primeira superiora da Congregação das Filhas de
Maria Auxiliadora.
Um sucessor, Filipe Rinaldi, um bispo, Luís Lasagna, a co-fundado-
ra das Filhas de Maria Auxiliadora: uma colheita mais que discreta
naqueles passeios de outubro.
Para falar dos passeios no Monferrato, tivemos que dar alguns
passos à frente, na história. Pedimos desculpas e retomamos o fio
dos acontecimentos.
A primeira Missa do padre Rua
Miguel Rua deveria ser ordenado sacerdote em 29 de julho de 1860.
Dom Bosco mandou-o preparar-se com um curso de Exercícios
Espirituais junto aos padres da Missão. Pelo fim do retiro, Miguel
escreveu a Dom Bosco uma carta em francês (língua usada pelos
padres da Missão) pedindo-lhe uma lembrança para o dia mais im-
portante da sua vida.
Dom Bosco estava em Santo Ignazio, perto de Turim, fazendo
também ele os Exercícios Espirituais. Respondeu-lhe em latim:
“Escreveu-me em francês e fez bem. Seja francês só na língua e
no falar. Mas de ânimo, de coração e de ação seja romano intrépido
e generoso”.
O padre João Batista Francésia escreve:
No mesmo dia 29 de julho, Dom Bosco voltava de Santo Ignazio. Eu estava
junto.Viajar dentro da carruagem fazia mal a Dom Bosco. Sentávamos, por
isso, do lado de fora, perto do cocheiro. E qual não foi a nossa surpresa
quando vimos aparecer ao longe três batinas pretas, que finalmente
descobrimos serem o diácono Rua, o clérigo Durando e o clérigo Anfossi.
Dom Bosco pediu ao cocheiro que parasse a diligência e perguntou:
– Aonde vão?
– A Caselle, onde está o bispo dom Balma, encarregado de dar-me a
ordenação sacerdotal – disse Rua.
– Oh, como estou contente! Rezei por você, meu caro Rua, e espero que
Deus o ouça. Recomendações a dom Balma.
Olhávamos com prazer aqueles três colegas que, a pé, à moda franciscana,
iam-se para a ordenação sacerdotal.
335

34.7 Page 337

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A grande festa para a primeira Missa do padre Rua foi celebrada,
no oratório, no domingo seguinte. Ao pé do altar havia um gran-
de ramalhete de flores brancas: tinham-nas trazido seus pequenos
limpa-chaminés do oratório São Luís...
Quando, depois de um dia de festas, o padre Rua subiu ao seu
quartinho, achou sobre a mesinha uma carta de Dom Bosco. Leu:
Você verá melhor do que eu a obra salesiana transpor os confins da Itália
e estabelecer-se em muitas partes do mundo. Terá que trabalhar e sofrer
muito. Mas você sabe: só através do Mar Vermelho e do deserto é que se
chega à Terra Prometida. Sofra com ânimo e, mesmo cá embaixo, não lhe
faltarão as consolações e os auxílios de Deus.
Depois da primeira Missa do padre Rua, Dom Bosco alcança uma
tranquilidade mais clara, um sentido de segurança que impressiona.
O oratório é já uma casa enorme. Os jovens internos são quase 500.
Nas quatro oficinas, em plena eficiência, aprendem ofícios 300 “pe-
quenos artesãos”. Dom Bosco precisa ausentar-se com frequência:
alimentar tantas bocas não é problema fácil. Ele, porém, parte tran-
quilo para os seus giros de beneficência: o padre Rua já é o “segun-
do Dom Bosco” do oratório.
Mas o dia 23 de junho desse mesmo ano de 1860 trouxe a Dom
Bosco uma dor profunda: a morte de padre José Cafasso. Foi avisado
mui tardiamente das condições gravíssimas do seu grande amigo.
Acorreu imediatamente, acompanhado pelo jovem Francisco Cer-
ruti: quando chegou, havia expirado.
A poucos devia tanto quanto ao padre Cafasso: tinha acreditado
nele, na sua missão, mesmo quando ele próprio duvidava; tinha-o
o ajudado e animado sempre. Fora, no sentido mais real da palavra,
seu “pai espiritual”.
400 pães num cesto vazio
22 de outubro de 1860. Francisco Dalmazzo, 15 anos, entra no
oratório. Nascido em Cavour, fizera os primeiros estudos em Pine-
rolo. Mas ali, “tendo lido os fascículos das Leituras Católicas, per-
guntei quem era Dom Bosco. Sabendo que mantinha em Turim um
colégio para meninos, resolvi agregar-me a seus filhos”. Foi aceito
para frequentar o último ano de ginásio.
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34.8 Page 338

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Vinte dias depois, Francisco está desanimado. “Acostumado em
casa a um modo de viver delicado, não podia adaptar-me ao alimen-
to demasiado modesto da mesa comum e aos costumes do Instituto.
Escrevi, por isso, à minha mãe para que viesse buscar-me. Queria
terminantemente voltar para casa”.
11 de novembro. A mãe vai buscá-lo.
Mas antes de partir, eu queria confessar-me mais uma vez com Dom Bosco.
Esperei a minha vez, durante a Missa, depois da qual, ao sair, cada aluno
recebia um pãozinho para o lanche da manhã.
Enquanto esperava a minha vez de confessar-me, chegam os dois serventes
que deviam distribuir ao pão e disseram a Dom Bosco:
– Não tem mais pão.
– E que posso fazer eu? – respondeu Dom Bosco. – Vão lá, com o Magra,
nosso padeiro. Peçam a ele, tá?
– O Magra disse que não dá mais nada porque ainda não pagaram a conta.
– Então vamos pensar nisso. Deixem-me confessar.
Eu ouvi aquele diálogo feito aos cochichos. Chegara a minha vez e comecei
a confessar-me. A Missa já estava na consagração. E eis que os dois rapazes
voltam:
– Dom Bosco, não tem mesmo nada para o café.
– Mas me deixem confessar em paz! Depois veremos. Procurem na
despensa, nos refeitórios que alguma coisa deve haver.
Enquanto os dois se afastavam, continuei a confissão. Tinha apenas
terminado, quando um dos rapazes voltou pela terceira vez:
– Recolhemos tudo. Só tem alguns pães.
– Ponham no cesto. Eu mesmo vou distribuir. E me deixem confessar em
paz.
E continuou a confessar o menino que lhe estava perto. Enquanto isso,
perto da porta que se abria depois do altar de Nossa Senhora, fora
colocado o cesto do pão. Eu, repassando na mente os fatos milagrosos
ouvidos a respeito de Dom Bosco e tomado de curiosidade, fui colocar-me
em posição conveniente para ver o que iria acontecer.
À porta estava minha mãe, que me esperava:
– Venha, Francisco! – me disse.
Fiz-lhe sinal para que esperasse um pouquinho. Quando Dom Bosco
chegou, peguei por primeiro um pãozinho e olhei para o fundo do cesto:
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34.9 Page 339

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havia só mais uns 15 ou 20. Depois, sem ser notado, pus-me bem atrás de
Dom Bosco, sobre o degrau, de olhos bem abertos.
Dom Bosco começou a distribuição: os meninos desfilavam à sua frente,
contentes por receberem das mãos dele o pãozinho. Beijavam-lhe a mão,
enquanto ele a uns e a outros dizia uma palavra ou dispensava um sorriso.
Todos os alunos, cerca de 400, receberam o seu pãozinho. Terminada
a distribuição, voltei a examinar aquele cesto de pão. E foi com grande
admiração que vi no fundo do cesto a mesma quantidade de pães que
havia no início. Fiquei embasbacado. Corri, em disparada, para minha mãe
e lhe disse:
– Não vou mais! Não vou mais! Fico aqui. Desculpe por tê-la feito vir a
Turim.
E contei o que vira com meus próprios olhos, e lhe disse:
– Não vou deixar um santo como Dom Bosco.
Foi esse o único motivo que me induziu a ficar no oratório e, depois, a
juntar-me ao número dos filhos de Dom Bosco.
Francisco Dalmazzo tornou-se salesiano. Foi por oito anos diretor
do colégio de Valsálice, e por sete, procurador-geral da Congregação
Salesiana junto à Santa Sé.
Caridade para os pobres e só para eles
Ao aproximar-se o ano letivo de 1860-61, Dom Bosco verificou
que os pedidos para admitir estudantes no oratório eram muito nu-
merosos. Receava “dar os frutos da caridade” a quem não precisava.
Mandou, por isso, reimprimir o programa do internato com uma
nova cláusula: os estudantes, nos dois primeiros meses. Deveriam
pagar uma mensalidade fixa; só depois de haverem demonstrado,
com o bom comportamento, serem dignos da caridade é que a pen-
são seria diminuída e até cancelada. O padre Lemoyne, relatando
esta notícia, anota: “Dom Bosco, porém, na sua caridade, sabia fazer
muitas exceções”.
Eis as condições impressas e distribuídas para o ano de 1860-61:
Para os aprendizes:
– Ser órfão de pai e mãe.
– Ter 12 anos completos e menos de 18.
– Ser pobre e abandonado.
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Para os estudantes:
– Haver terminado as classes elementares e querer fazer o curso
ginasial.Assim se denominava então a “escola média”.116
– Recomendar-se por engenho e moralidade.
– Submeter-se a dois meses de estágio por 24 liras mensais, para,
depois, classificar-se segundo o mérito.
Entre as “disposições gerais” que se seguiam, é notável a seguin-
te: “Todas as peças de vestuário correm por conta do aluno, a não
ser que façam constar impossibilidade por motivo de pobreza”.
A “comissão secreta” de 1861
Verifica-se no oratório, em 1861, um fato insólito, quase único e
de excepcional importância. O padre Alasonatti, o padre Rua, os clé-
rigos Cagliero e Francésia e outros dez salesianos se reúnem em“co-
missão secreta”. Estão todos convencidos de que o que acontece ao
redor de Dom Bosco tem frequentemente caráter excepcional, se
não mesmo sobrenatural. Perder a memória desses acontecimentos
seria jogar fora um tesouro. Empenham-se, por isso, em “documen-
tar tudo” fielmente. Cada qual irá anotando e, em sessões regulares
da comissão, os apontamentos serão lidos a todos e corrigidos se-
gundo o testemunho de cada um, para que só se transmitam coisas
exatas.
O padre Lemoyne, registrando a notícia no volume sexto das Me-
mórias Biográficas, anota:“Podemos, pois, estar certos da verdade
de quanto nos transmitiram essas testemunhas. No decorrer dos
anos, foram eles se substituindo por outros sócios, para continuar-
-lhes o trabalho, com igual afeto por Dom Bosco e pela verdade”.
Somos muito gratos àqueles primeiros salesianos que, embora já
carregados de trabalhos, subtraíram horas ao sono para tão incom-
parável, preciosíssima empresa, sem a qual muitíssimas notícias so-
bre Dom Bosco ter-se-iam perdido ou estariam envoltas na névoa
da lenda.
Isto, porém, não impede que se lhes possa e deva fazer alguma
observação, a eles a aos que escreveram a vida de Dom Bosco ba-
1 6o – 8º anos do 1o Grau no Brasil (N.T.).
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seados no seu testemunho. Não para acusá-los (o que seria pura
tolice), mas para entender melhor o acontecimento Dom Bosco.
Primeiro. Dom Bosco, muitas vezes, narrava com familiar des-
preocupação. E tinha para isso todos os direitos. Quem fala aos
meninos, a seus jovens alunos, normalmente não está nas condi-
ções de espírito de quem “dita para a história”. É preciso anotar
suas palavras como “familiares” e não como rigorosos documentos
históricos. Tal acontecera a Napoleão em suas narrações feitas em
Santa Helena, a Lutero durante as conversações convivais e a tan-
tos outros. As narrações de Napoleão estão repletas de emoções,
lampejos, recordações, mas não se devem tomar quais rigorosos e
detalhados depoimentos para a história. Será preciso, ao contrário,
filtrá-las através da documentação, dos mapas das batalhas, das car-
tas e dos tratados. Foi o que não se fez com Dom Bosco: várias de
suas conversas familiares foram tomadas como absoluta e rigorosa-
mente exatas, em cada pormenor.
Segundo. Esses solertes coletores de memórias e palavras de
Dom Bosco, pelo enorme trabalho que tinham no oratório, pelo
pouco conhecimento que tinham da cidade, registraram tudo aqui-
lo que Dom Bosco fazia, mas não registraram quase nada do que
contemporaneamente acontecia na cidade e seus arredores. As-
sim, tudo o que dizem de Dom Bosco é absolutamente verdadeiro,
mas desses seus escritos transparece que só Dom Bosco estaria
fazendo essas coisas, enquanto que, em Turim, havia, certamente,
vários a tentar as mesmas empresas apostólicas, a levar avante as
mesmas instâncias sociais. Ora, quem está só é sempre o primeiro
da classe e, assim, Dom Bosco, por essas memórias, parece ter sem-
pre a primeira intuição, ser o único a tomar a iniciativa. Ao passo
que, verificando os fatos globalmente, descobre-se que ele foi gran-
díssimo, mas que ao lado dele, antes e depois dele, havia muitos
outros que se esforçavam por trabalhar como ele.
O Santuário de Maria Auxiliadora, por exemplo, (de que fala-
remos no capítulo seguinte) aparece como um milagre de realiza-
ção: tantas despesas, tantas ofertas, rapidez de construção, enorme
concurso de povo na inauguração. Examinando, depois, a história
de Turim, vê-se que, no mesmo período, foram edificadas outras
quatro igrejas de custo notável e de rápida realização (paróquia de
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Santa Júlia, 1863, 650 mil liras; paróquia dos Santos Pedro e Paulo,
1865, 540 mil liras; paróquia da Imaculada Conceição, 1867, 220
mil liras; santuário de Maria Auxiliadora, 1868, 890 mil liras; paró-
quia de Santa Bárbara, 1869, 336 mil liras. E antes, em 1853, fora
terminada a igreja paroquial de São Máximo, com o custo de 1,5
milhão de liras).
O Santuário de Maria Auxiliadora nada perde, com isso, de sua
grandeza. Continua um milagre de vontade, de fé, de beneficência.
Posto, porém, entre as outras quatro igrejas, assume perspectiva di-
ferente. Uma coisa é um pinheiro no deserto e outra num grupo de
pinheiros: é sempre a mesma esplêndida árvore, mas não a única a
monopolizar o apelativo de “portentosa”.
Pode-se dizer o mesmo das escolas noturnas, das oficinas, das
expedições missionárias: coisas todas formidáveis, mas que exis-
tiam num contexto de realizações católicas não menos formidáveis.
Dom Bosco já não é aí um “monstro sagrado”, mas um santo que,
num ambiente de catolicidade empenhada, leva a sua fé a fazer au-
tênticos milagres, tendo ao lado outros padres que (embora nem
sempre santos como ele) trabalham com muita fé e dedicação.
Terceiro. Dom Bosco recebera de Deus dons misteriosos. Tinha
sonhos que lhe escancaravam o futuro. Fazia profecias que se veri-
ficavam pontualmente. Mas era também um homem, um pobre pa-
dre que, muitíssimas vezes, procurava somente enxergar um pouco
mais além do próprio nariz. Como todos nós. Que tinha o direito
de dar palpites, alimentar esperanças, fazer prognósticos. Prognós-
ticos que, por vezes, eram certos, mas que, por outras, estavam er-
rados (como no caso do padre Guanella, que Dom Bosco procurou
conservar no oratório, quando a sua missão era outra).217Registrar
“todos” esses prognósticos, esperanças, e alimentar um pouco de
pretensão de os ver a todos realizados infalivelmente, é falsear a fi-
gura de Dom Bosco. É negar-lhe o direito de ser um homem, sujeito
como todos às vicissitudes da vida. Este foi talvez um limite no “es-
pírito” com que foram coletadas as memórias e as palavras de Dom
Bosco. Hoje, especialmente, devotaríamos maior reconhecimento
2 Luís Guanella (1842-1915), hoje bem-aventurado, foi salesiano três anos. Fundou a Congregação dos
Servos da Caridade e das Filhas da Divina Providência (N.T.).
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35.3 Page 343

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àquelas testemunhas se nos tivessem transmitido não só os êxitos
sublimes, mas também as dúvidas, as perplexidades e os enganos
daquela tão grande e tão “humana” pessoa que foi Dom Bosco.
Tudo isto, porém, não quer nem pode ser uma censura ao traba-
lho daqueles primeiros salesianos, que, embora com limites preci-
sos, foi de um valor incalculável.
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O grande santuário visto em sonhos
Em outubro de 1844, Dom Bosco teve dois sonhos. A eles já nos
referimos no capítulo 18. Agora, porém, devemos retomá-los,
ampliando-lhes as citações. À primeira, tomamo-la das Memó-
rias autógrafas de Dom Bosco. A segunda, da relação escrita pelo
padre Barbéris e pelo padre Lemoyne.
A pastorinha me convidou a olhar para sul. Olhei e vi um campo semeado
de milho, batata, beterraba, couve, alface e muitas outras hortaliças.“Olhe
de novo”, me disse. Olhei: vi então uma igreja estupenda, alta. Um conjunto
de música, instrumental e vocal, convidava-me a cantar missa. No interior
da igreja havia uma faixa branca, na qual estava escrito com letras garrafais:
Hic domus mea, inde gloria mea (Aqui a minha casa, daqui a minha
glória)” (Memórias).
O sonho das três igrejas
Pareceu-me estar numa grande planície, cheia de uma multidão incontável
de jovens. Uns brigavam, outros blasfemavam. Uma nuvem de pedras
cruzava os ares, lançadas por aqueles que travavam batalha entre si. Estava
para afastar-me daquele lugar, quando me vi ao lado de uma Senhora que
me disse:
– Vá para o meio desses jovens e trabalhe.
Eu fui. Mas que fazer? Não havia um local para os reunir.
Voltei-me, então, para aquela Senhora, que me disse:
– Eis o lugar!
E me mostrou um prado.
– Mas aqui só tem um prado – disse eu.
– Meu Filho e os Apóstolos não tinham um palmo de terra onde pousar a
cabeça – respondeu.
Comecei a trabalhar naquele prado, admoestando, pregando, confessando.
Mas vi que todo esforço seria inútil se não achasse um local com alguma
construção onde recolhê-los. Então aquela Senhora me disse:
– Observe.
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35.5 Page 345

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Olhando, vi uma igreja pequena e baixa, um pátio pequeno e meninos em
grande número. Retomei o trabalho. Mas tornando-se pequena a igreja,
recorri ainda a ela, e ela me mostrou outra igreja bem maior, com uma
casa ao lado. Depois, levando-me consigo para ali perto, a um pedaço de
terreno cultivado, quase diante da fachada da segunda igreja, acrescentou:
– Neste lugar, onde os gloriosos Mártires de Turim, Aventor e Otávio,
sofreram o martírio, nesta terra que foi banhada e santificada por seu
sangue, quero que Deus seja honrado de modo muito particular.
Assim dizendo, adiantou um pé até descansá-lo no ponto exato onde se
deu o martírio, indicando-o com precisão. Eu queria pôr algum sinal para
depois reencontrá-lo. Mas nada achei em meu redor. Contudo, fixei-o na
memória com toda a exatidão.118
Entretanto, vi-me rodeado de um número imenso e sempre crescente de
jovens. Olhando para a Senhora cresciam os meios e o local. Vi, depois,
uma igreja muito grande, precisamente no lugar em que me mostrara ter
ocorrido o martírio dos Santos da legião tebeia, com muitas construções
ao redor e um lindo monumento no centro219(Memórias Biográficas, vol.
II, p. 298).
Dom Bosco não perdia de vista aquele“campo semeado de milho,
batata, couve, beterraba, alface e muitas outras hortaliças”, que ele
reconheceu estar logo além do muro que circundava o seu oratório.
Rebatizou-o com o nome de “o campo dos sonhos” e comprou-o
logo que pôde, a 20 de junho de 1850. Mas em 1854 (ano da cólera
e dos 20 órfãos acolhidos), teve de vendê-lo para pagar algumas dí-
vidas muito urgentes.Tornou a reavê-lo em 11 de fevereiro de 1863.
Entretanto, algo novo já havia acontecido naqueles últimos meses.
“Será a igreja-mãe da nossa Congregação”
Numa noite de dezembro de 1862, Paulinho Álbera (rapaz de
17 anos, que naquele exato ano fora aceito na Sociedade Salesia-
na), ouviu uma confidência de Dom Bosco. Era sábado. Dom Bosco
havia confessado até as 23 horas. Só então foi que pôde descer (do
1 O lugar, indicado com precisão por Dom Bosco, fica na atual “Capela das Relíquias” da Basílica de
Maria Auxiliadora. Indica-o no chão uma cruz dourada.
2 O belo monumento lá está, na praça do santuário de Nossa Senhora Auxiliadora, desde 1920. Ergue-
ram-no a Dom Bosco os Antigos Alunos Salesianos.A estátua é de bronze, do escultor Caetano Cellini
(N.T.).
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35.6 Page 346

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escritório ao refeitório) acompanhado pelo Paulinho, para comer
alguma coisa. Estava preocupado e a certa altura começou a dizer:
Confessei tanto e, para dizer a verdade, quase não sei o que tenha dito
ou feito, de tal forma me preocupava uma ideia que me distraía e quase
me punha fora de mim. Pensava: nossa igreja é muito pequena, não
pode conter todos os nossos jovens. Por isso, faremos outra, mais bela,
maior. Que seja magnífica. Daremos o título de igreja de Nossa Senhora
Auxiliadora. Não tenho um vintém, nem sei onde buscar o dinheiro. Mas
isso não importa. Se Deus a quiser, ela se fará.
Pouco depois, falou do projeto também a João Cagliero. Eis seu
testemunho:
Em 1862, Dom Bosco me disse que pensava em construir uma igreja
grandiosa e digna da Virgem Maria.
– Até agora – disse – temos celebrado com solenidade a festa da Imaculada.
Mas Nossa Senhora quer que a honremos sob o título de Maria Auxiliadora:
os tempos que correm são tão tristes que temos mesmo necessidade de
que a SS. Virgem nos ajude a conservar e defender a fé cristã. E sabe o
outro porquê?
– Creio – respondi – que será a “igreja-mãe” da nossa futura Congregação,
e o centro do qual emanarão todas as outras obras em favor da juventude.
– Adivinhou – me disse. – Maria Santíssima, é a fundadora. E será a sustenta-
dora de nossas obras (Memórias Biográficas, vol.VII, p. 334).
Uma igreja maior que possa conter todos os jovens, a “igreja-mãe”
da Congregação. Estes os motivos básicos pelos quais Dom Bosco
projeta o santuário de Maria Auxiliadora. Mas refere-se também a
um terceiro motivo: os tempos correm tão tristes... Achamos con-
veniente comentar estas palavras, para que não se classifiquem
como um daqueles “lamentos genéricos” que, em todos os tempos,
florescem nos lábios dos profissionais da lamúria.
Os fatos de Spoleto e a Auxiliadora
Escreve o historiador Giácomo Martina:
A história da Igreja pela metade de Oitocentos, caracteriza-se por um
choque violento entre velho e novo, entre estruturas de uma sociedade
oficialmente cristã e a afirmação sempre mais decidida da cidade secular.
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35.7 Page 347

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Emerge o quadro de um período nodal na história da Igreja, que propõe os
termos do confronto entre o cristianismo e as culturas das diversas épocas
históricas com as quais ele vem se encontrar.
Um dos momentos mais agudos deste “choque violento” é a ques-
tão de Roma e do Estado Pontifício. Depois da Segunda Guerra da
Independência – citamos Pedro Stella – o Estado Pontifício, julgado
pelos católicos indispensável à independência do papa, parecia ir-
remediavelmente destinado a ser conquistado pelo “reino da Itália”.
Os bispos da Úmbria, no dia 2 de dezembro de 1860, convidavam
os fiéis a rezar a Deus “por intercessão do Coração Imaculado de
Maria, Mãe de Deus, Auxiliadora dos Cristãos”.
Justamente numa cidadezinha da Úmbria, Spoleto, houve, segun-
do a voz popular, um grandioso milagre. Em março de 1862, de uma
imagem conservada em uma igreja desmoronada, Nossa Senhora
falou a uma criança de 5 anos e curou um jovem camponês. À igreja
em ruínas começaram a afluir peregrinos.
O arcebispo de Spoleto, dom Arnaldi, mandou uma entusiástica
relação dos acontecimentos ao jornal católico A Harmonia, de Tu-
rim. Falava de imponentes peregrinações a chegar de Todi, Perugia,
Foligno, Nocera, Narni, Norcia.
O mesmo arcebispo, em setembro de 1862, lançou a ideia de um
grande templo no local dos milagres, dando à imagem de Nossa Se-
nhora (denominada até então Senhora da Estrela) o nome oficial
de Auxílio dos Cristãos (Auxilium Christianorum).
Dom Bosco leu a relação de dom Arnaldi aos seus jovens “com
grande contentamento”. E foi precisamente nesse tempo que teve
o grande sonho das “duas colunas”, contado aos jovens em 30 de
maio: a nau da Igreja, guiada pelo papa, viaja segura por entre o ím-
peto das ondas e os projéteis disparados por numerosíssimas naus
inimigas. E acha finalmente refúgio junto a duas colunas entre as
quais o papa lança a âncora: a primeira encimada pela Eucaristia, a
segunda por uma estátua da Imaculada que traz a inscrição Auxi-
lium Christianorum.
Este conjunto de “tempos difíceis” e de grandes esperanças cons-
tituem o terceiro motivo que força Dom Bosco a iniciar a empresa
do santuário de Maria Auxiliadora.
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35.8 Page 348

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Um título que faz torcer o nariz
Dom Bosco confiou ao engenheiro Antônio Spezia o encargo de
preparar a planta. Desenvolveu um projeto em forma de cruz latina
sobre uma superfície de 1.200 metros quadrados. O comprimento
máximo da igreja era de 48 metros.
Com o rolo das plantas debaixo do braço foi Dom Bosco à prefei-
tura para a aprovação.Sobre os projetos,nenhuma observação. Antes,
uma promessa (só de “palavras”) de conceder também a essa igreja a
subvenção extraordinária de 30 mil liras com que a prefeitura costu-
mava contribuir para a construção de qualquer igreja paroquial.
O que, ao invés, fez torcer o nariz foi o título: Igreja de Maria
Auxiliadora. Os fatos de Spoleto, a carta dos bispos da Úmbria, as
polêmicas do jornal A Harmonia, causavam suspeita nas autorida-
des municipais. Aquele nome cheirava à contestação.
– V. Revma. não poderia trocar esse título estranho? Chame-a igre-
ja do Rosário, da Paz, do Carmo... Nossa Senhora tem tantos títulos!
Dom Bosco pôs-se a rir:
– Os senhores me aprovem o projeto. Quanto ao título, havere-
mos de pôr-nos de acordo
E não se pôs de acordo de maneira nenhuma: deixou-o como
estava.
Oito vinténs para começar
Conseguida a licença para construir, Dom Bosco confiou o em-
preendimento ao mestre de obras Carlos Buzzetti (o menino, irmão
de José Buzzetti, com quem se encontrara na igreja de São Francis-
co de Assis e que se tornara um apreciado construtor de casas).
Chamou o ecônomo padre Sávio e mandou que desse início aos
trabalhos de escavação.
– Mas, Dom Bosco, como faremos? Não se trata de uma capela,
mas de uma igreja muito grande e dispendiosa. Esta manhã não tí-
nhamos em casa nem dinheiro para pagar os selos das cartas.
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35.9 Page 349

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– Comece as escavações – respondeu Dom Bosco. – Quando foi
que começamos uma obra com todo o dinheiro na mão? Precisa-
mos deixar alguma coisa também para a Divina Providência fazer.
As escavações se fizeram, em parte, no outono de 1863, sendo
retomadas em março de 1864.
Pelo fim de abril, a convite do mestre de obras, Dom Bosco,
acompanhado de seus padres e por muitos alunos, desceu às esca-
vações para lançar a primeira pedra. Terminada a função, voltou-se
para Buzzetti e lhe disse:
– Quero dar-lhe logo algo por conta das grandes obras.
Tirou do bolso o porta-níqueis, abriu-o e deixou cair nas mãos do
mestre de obras tudo quanto havia: 40 centésimos. Menos de meia
lira. Mas vendo Buzzetti mortificado, acrescentou imediatamente:
– Fique tranquilo. Nossa Senhora mesma pensará em fazer apare-
cer o dinheiro necessário.
A Mãe de Deus pensou, deveras. Mas, para fazê-lo chegar, serviu-
-se de todo o esforço e suor de Dom Bosco.
Quem estuda as figuras dos dois grandes santos turineses qua-
se contemporâneos, Cottolengo e Dom Bosco, fica surpreso por
esta diferença. Ambos foram ajudados, dia a dia, pela Providência,
viveram de Providência. Mas, enquanto Cottolengo dizia: “A Provi-
dência já preparou o dinheiro de que precisamos. Esperamos que
chegue”. Dom Bosco dizia: “A Providência já preparou o dinheiro
de que precisamos. Vamos procurá-lo”.
O padre Paulo Álbera, segundo sucessor de Dom Bosco, que es-
teve ao seu lado nesses tempos, dizia: “Só quem foi testemunha
pode fazer uma ideia exata do trabalho e dos sacrifícios que o nosso
Pai se impôs durante esses anos, para levar a termo a igreja de Ma-
ria Auxilidora, tida por muitos como empresa temerária, de muito
superior às forças do humilde sacerdote que a isso se entregara”.
Dom Bosco espremeu a sua imaginação para forçar a caridade
pública. Inundou Turim e o Piemonte com cartas e circulares; abriu
subscrições; solicitou o auxílio dos “grandes” do mundo em Turim,
Florença, Roma; organizou uma rifa impressionante. Em maio de
1866, Dom Bosco escrevia ao cavalier Oreglia: “Os quarenta pe-
dreiros que deviam trabalhar na igreja foram, por falta de meios,
reduzidos a oito. Número bastante calamitoso para nós”.
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35.10 Page 350

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Nossa Senhora faz a coleta para Dom Bosco
Se o “pobre Dom Bosco” logrou superar todas as dificuldades, ele
o deveu à ajuda de Nossa Senhora Auxiliadora, que se pôs a “fazer
as coletas mais frutuosas”.A fama das “graças”, pequenas e grandes,
que Nossa Senhora concedia a quem ajudava a construção da Igreja
difundiu-se rapidamente por Turim e por muitas partes da Itália.
A graça mais “clamorosa”, quiçá, foi a do banqueiro e senador
José Cotta, antigo benfeitor de Dom Bosco, e muito conhecido nos
ambientes políticos e financeiros de Turim.
Quando o senador, de 83 anos, jazia enfermo já desenganado pe-
los médicos – narra o padre Lemoyne – Dom Bosco foi visitá-lo. O
doente pôde apenas dizer-lhe num fio de voz:
– Mais uns poucos minutos. Depois preciso partir para a eterni-
dade.
– Não, senador – replicou-lhe alegre Dom Bosco. – Nossa Senhora
precisa ainda do senhor neste momento: deve viver para me ajudar
a construir sua igreja.
– Não há mais esperança... – suspirou o velho.
A fé de Dom Bosco aliou-se a uma audácia tranquila, quase hu-
morística:
– E que faria se Maria Auxiliadora lhe obtivesse a graça de sarar?
O senador sorriu, fez um esforço e apontou com dois dedos para
Dom Bosco:
– Duas mil liras. Se eu sarar, pago 2 mil liras, por mês, durante seis
meses, à igreja de Valdocco.
– Pois bem, eu vou mandar os meninos rezar e o fico esperando.
Três dias depois, lá estava, de fato, o senador curado.
– Nossa Senhora me curou.Vim pagar minha primeira dívida.
Referimos apenas mais duas “graças”, embora Dom Bosco, a 11
de fevereiro de 1868, escrevesse ao cavalier Oreglia:“Dia após dia,
coisas cada vez mais estrepitosas de Maria Auxiliadora pela igreja.
Precisaríamos de volumes”. E no processo para a beatificação de
Dom Bosco, dom Bertagna atestou sob juramento:
Durante um curso de Exercícios Espirituais em Santo Ignazio, Dom Bosco
me pediu conselho sobre se devia continuar a dar a bênção aos doentes
com as imagens de Maria Auxiliadora e do Salvador, porque, dizia, dava que
falar pelas muitas curas que aconteciam e que tinham ar de milagroso.
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36 Pages 351-360

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36.1 Page 351

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Bem ou mal, achei que devia aconselhar Dom Bosco a continuar com suas
bênçãos.
Uma mãe, uma criança e pequenas joias
Um dia, Dom Bosco saíra para a cidade. Voltando para o orató-
rio, viu perto da portaria uma pobre mãe carregando nos braços
uma criança de cerca de 1 ano, macilenta, cheia de crostas, imóvel,
sem voz. Um cadáver... Parou e perguntou à mãe:
– Desde quando está doente?
– Sempre foi assim. Desde que nasceu.
– Já levou ao médico?
– Já. Mas diz que não adianta.
– E se sarasse, ficaria contente?
– Oh! Imagine só, o meu pobre filhinho! – e o cobria de beijos.
– Acha que Nossa Senhora pode curar seu filhinho?
– Sim. Mas não mereço tão grande graça. Se o curasse, dar-lhe-ia
tudo quanto tenho de mais caro.
– Então, quando puder, confesse e comungue. Reze, por nove
dias, o Pai-nosso e a Ave-Maria, e convide seu marido a rezar tam-
bém. Nossa Senhora a ouvirá.
E abençoou o pequenino com a bênção de Maria Auxiliadora.
Quinze dias depois, num domingo, na sacristia do santuário, en-
tre as pessoas que buscavam falar com Dom Bosco, havia uma mu-
lher trazendo nos braços uma criança de olhos límpidos e vivazes.
Chegada à presença de Dom Bosco, exclamou radiante:
– Eis o meu filho!
– E o que deseja minha senhora?
Dom Bosco esquecera da bênção que dera à criança. A mulher
lho lembrou e disse que no terceiro ou quarto dia da novena o me-
nino havia sarado.
– Agora – continuou – vim cumprir minha promessa.
E dizendo isso, mostrou uma caixinha em que guardava as suas
pobres joias: um colarzinho de ouro, um anel, dois brincos. Ao vê-
-los quase iguais talvez aos de sua mãe. Dom Bosco se comoveu.
Entretanto, a mulher dizia:
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36.2 Page 352

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– Prometi a Nossa Senhora que lhe daria o que tinha de mais
caro. Rogo-lhe, pois, que as aceite.
Dom Bosco meneava a cabeça:
– Minha boa senhora, tem algum recurso para viver?
– Não. Vamos levando, dia por dia, com o que meu marido ga-
nha, trabalhando na fundição de ferro.
– Puderam fazer alguma poupança?
– Que poupança se pode fazer com 3 liras por dia?
– E seu marido sabe que quer doar estes objetos a Nossa Senho-
ra?
– Sim, sabe. E está contente.
– Mas, se os senhores se desfizerem de tudo, que farão se lhes
sobrevier alguma desgraça, alguma doença?
– Deus sabe que somos bem pobres. Pensará em nós. Eu devo
dar o que prometi.
Dom Bosco estava profundamente comovido:
– Escute, façamos assim. Nossa Senhora não lhe pede um sacri-
fício tão grande. Se quiser mesmo deixar um sinal de sua gratidão,
deixe-lhe apenas o anel. O mais, colares e brincos, leve-os para casa.
– Isso não. Prometi tudo. Devo dar tudo.
– Faça como lhe digo. Nossa Senhora está contente assim.
– Acha mesmo? Olhe que eu não quero faltar com a palavra.
– Não faltará. Eu lho garanto em seu nome.
A mulher parecia ainda indecisa, depois concluiu:
– Está bem. Seja como diz. Mas se quiser todo o meu ouro, aqui
o tem.
Dom Bosco repetiu que ficasse tranquila e fez uma carícia no
menininho (Memórias Biográficas, vol. X, p. 94-95).
O trabalhador de Alba
Um pobre homem viera a pé de Alba, viajando dia e noite. Confes-
sou-se comungou e depois apresentou-se a Dom Bosco para cum-
prir uma promessa. Contou-lhe que ficara doente e os médicos dis-
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36.3 Page 353

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seram que seria o fim. Então prometeu que se sarasse traria a Nossa
Senhora todo o dinheiro que tinha. Sarou de repente.
Dom Bosco estava a olhar aquele homem tão pobremente ves-
tido que tirava do bolso um pedaço de papel e o ia desdobrando
com cuidado, quando do meio das dobras surgiu o... dinheiro: 1 lira!
Entregou-a Dom Bosco com solenidade, dizendo:
– Eis aqui tudo o que possuo, toda a minha riqueza.
– Em que trabalha meu senhor?
– Em trabalhos braçais. Por dia.
– E como fará para voltar?
– A pé, como vim.
– E não está cansado?
– Um pouco, porque a viagem é um bocado longa.
– Está ainda em jejum?
– Sim, senhor. Queria comungar. Antes da meia-noite, porém,
comi um pedaço de pão que tinha no bolso.
– E para o café, que tem?
– Nada.
– Então, vamos fazer assim: hoje o senhor fica aqui em casa comi-
go. Dou-lhe café e janta. E amanhã, se quiser, voltará para casa.
– Só faltava essa: eu lhe dou 1 lira e o senhor me dá de comer no
valor de 2 ou 3!...
– Escute: o senhor trouxe a sua oferta a Nossa Senhora. E agora
chegou a vez de Dom Bosco fazer a sua oferta ao senhor: um pouco
de sopa, um copo de vinho...
– De modo nenhum. Eu sei que Dom Bosco e Nossa Senhora têm
a mesma bolsa, mas eu já vou. A pé. Se tiver fome, pedirei esmola.
Se ficar cansado, sentarei à sombra de uma árvore. Se tiver sono,
alguém me deixará dormir no feneiro. Quero cumprir minha pro-
messa com seriedade.Adeus, Dom Bosco. Reze por mim.
E, sem mais, partiu (Memórias Biográficas, vol. X, p. 97-98).
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36.4 Page 354

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Os Sonhos de Dom Bosco – Nota
Neste capítulo falamos de três sonhos de Dom Bosco: aquele em que vê
“uma grande igreja no campo de milho”, o “das três igrejas” e o “das duas
colunas”.
Permitam-me uma observação pessoal.
Sobre os “sonhos de Dom Bosco” já se escreveram muitíssimas páginas. No
mais das vezes, sérias e importantes. Algumas, porém, tão extravagantes
que levam a pensar que quem as escreveu tenha sonhado mais do que
Dom Bosco.
Para “explicar” esses sonhos e para “eliminar” todo sinal de “extraordinário”
da vida de Dom Bosco, algum estudioso empregou todas as hipóteses de
trabalho: desde a parapsicologia (posta, hoje, seriamente em discussão e
negada pelos melhores cientistas), à “mitificação” por parte de quem refe-
ria fatos e ditos de Dom Bosco (e é fora de dúvida que alguma testemunha
“mitificou” algumas coisas), até a acusação explícita de falso testemunho.
Achamos lícito criar “hipóteses de trabalho” e tratar de verificá-las. Menos
lícito nos parece tomar em consideração todas as hipóteses de trabalho,
menos uma: a intervenção extraordinária de Deus na vida de Dom Bosco.
Para ser honestos, devemos tomar em consideração também esta e veri-
ficá-la seriamente. Ora, uma verificação séria da parte de um historiador
deve basear-se, antes de tudo, no exame acurado dos depoimentos, que
no caso de Dom Bosco são muitas vezes “jurados” nos processos de beati-
ficação. Negar a priori testemunhos jurados, para logo se agarrar a teorias
duvidosas, significa que o trabalho histórico já não está sendo executado
com seriedade mas com preconceitos. É cair nos dogmas do positivismo
(“o sobrenatural não é admissível, portanto, é inútil levá-lo em consi-
deração”).
Não somos especialistas nesse campo. Mas achamos que, para se ter uma
ideia exata dos sonhos de Dom Bosco, é importante, antes de mais nada,
conhecer a opinião do mesmo Dom Bosco e dos que lhe viviam ao lado.
(É claro que isto não basta para o historiador. Mas é o ponto de partida
para qualquer pesquisa séria.)
Permitimo-nos, portanto, transcrever algumas citações de Dom Bosco e de
quem lhe viveu ao lado por tantos anos.
Sonho dos 9 anos. Testemunho autógrafo de Dom Bosco
A vovó que, de todo analfabeta, entendia muito de teologia, deu a sentença
definitiva:“Não se deve fazer caso dos sonhos”. Eu era do parecer de minha
avó, todavia não pude nunca tirar aquele sonho da minha cabeça. O que
vou doravante expor dará a isso alguma explicação (Memórias).
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36.5 Page 355

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Sonho da grande igreja no campo de milho. Testemunho autógrafo
de Dom Bosco
Este (sonho) durou quase toda a noite, com muitos detalhes. Então
pouco entendi do seu significado, porque não dava muito crédito, mas fui
entendendo-o à medida que as coisas iam-se realizando. Posteriormente,
junto com outro sonho, serviu-me de programa em minhas deliberações
(Memórias).
Testemunho de Dom Bosco referido pelo padre Lemoyne
Nos primeiros anos, tardava em depositar nos sonhos toda a fé que
mereciam. Muitas vezes os atribuía a brincadeiras da fantasia. Contando
aqueles sonhos que anunciavam mortes iminentes, prediziam o futuro,
eu ficava na incerteza, receando não os ter entendido e temendo dizer
mentiras. Algumas vezes me confessei com o padre Cafasso desse, no
meu entender, arriscado modo de falar. Ouviu, pensou um pouco, depois
disse: “Desde que o que diz se realiza, pode ficar tranquilo e continuar”.
Só anos mais tarde, porém, quando morreu o jovem Casalegno e o vi no
caixão sobre duas cadeiras, no pórtico, exatamente como no sonho, só
então é que não mais hesitei em crer firmemente que aqueles sonhos eram
avisos de Deus (Memórias Biográficas, vol. V, p. 376).
Testemunho do padre Lemoyne
Até o ano de 1880 mais ou menos, Dom Bosco, ao contar os sonhos, nunca
pronunciara a palavra “visões”. Mas, comigo, nos últimos anos, embora
nunca dissesse por primeiro, aceitava todavia a frase usada por mim nesses
colóquios familiares (Memórias Biográficas, Introdução, vol. XVII).
Testemunho do padre Berto, secretário de Dom Bosco
por mais de vinte anos
Ele predisse, bem antes que acontecesse, a morte de quase todos os jovens
do oratório, indicando o tempo e as circunstâncias do seu passamento
à outra vida. Uma vez ou duas avisou claramente o jovem. Muita vez o
entregou aos cuidados de um bom colega. Alguma vez disse em público as
iniciais do nome. Por quanto me lembro, posso assegurar que todas essas
predições se verificaram plenamente. Alguma raríssima exceção houve,
o que, porém, serviu para confirmar o espírito profético de Dom Bosco.
Eu, padre Berto, testemunha ocular e auricular, escrevo estas coisas
(Memórias Biográficas, vol.V, p. 387).
354

36.6 Page 356

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Parecer do padre Eugênio Céria
Este biógrafo de Dom Bosco, que compilou os últimos nove volumes das
Memórias Biográficas e entrou para a Congregação três anos antes da
morte de Dom Bosco, na introdução ao volume XVII, classifica os sonhos
de Dom Bosco em três grupos:
– Sonhos que são apenas sonhos (como os que temos em noites de má
digestão): em rigor não deviam figurar na vida de Dom Bosco. Um que
outro foi registrado nas Memórias Biográficas para se conhecer o maior
número de elementos possíveis da vida de Dom Bosco.
– Sonhos que não foram sonhos, mas verdadeiras visões: acontecidos em
pleno dia, como a revelação do futuro de João Cagliero.
– Sonhos tidos de noite, que revelam coisas obscuras ou futuras.
É difícil,porém,distinguir – observa o padre Céria – entre as três categorias.
Certa vez, não sabemos quando, Dom Bosco sonhou estar na basílica de
São Pedro, dentro do grande nicho que se abre sob a grande cornija, à
direita da nave central, perpendicularmente à estátua de bronze de São
Pedro e ao medalhão em mosaico de Pio IX; e não consegue entender
como ali tenha ido parar. Quer descer. Chama. Grita. Ninguém responde.
Finalmente, vencido pela angústia, acorda.
Sonho por má digestão, dir-se-ia. Mas quem olha para aquele nicho, na
basílica de São Pedro, neste 1936 – continua o padre Céria (em 1936) –
vê ali a grandiosa estátua de Dom Bosco do escultor Canônica. E então
compreende que não se trata de má digestão.
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36.7 Page 357

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Padre Rua: de Mirabello à inauguração do Santuário
Em Mirabello, na diocese de Casale Monferrato, o pároco queria
ter um colégio no âmbito de sua paróquia. Dom Bosco aceitou,
mas só depois de certificar-se de que “poderia mandar na sua
casa” e ficar estabelecido que o instituto deveria acolher sobretudo
jovens aspirantes ao sacerdócio.
Já estava por demais empenhado na construção da igreja de Ma-
ria Auxiliadora que recém-começara. Mas tomou todas as precau-
ções para que a iniciativa de Mirabello tivesse êxito. Dom Calabiana,
bispo de Casale, que tinha pouquíssimas vocações sacerdotais, deu
sua total aprovação. Nome da casa:“Pequeno Seminário”.
No outono de 1863, Dom Bosco chamou o padre Rua e lhe
disse:
– Preciso pedir-lhe um grande sacrifício. Chamam-nos a abrir
um “Pequeno Seminário” em Mirabello, no Monferrato. Pensei man-
dar você como diretor. É a primeira casa que os salesianos abrem
fora de Turim.Teremos milhares de olhos cravados em nós para ver
“como nos sairemos”. Confio plenamente em você. Dar-lhe-ei todos
os irmãos necessários para que aquela casa comece bem.
Rua tinha 26 anos. Dom Bosco estudou com ele a lista dos sale-
sianos que o acompanhariam. Foram escolhidos os clérigos Provera,
Bonetti, Cerruti, Álbera, Dalmazzo e Cuffia.
Também para os rapazes, estudaram uma fórmula que permitisse
obter rapidamente bons resultados: alguns dos jovens melhores do
oratório de Turim seriam transferidos para o colégio de Mirabello
para “servirem de bom fermento” entre os 90 meninos aceitos para
o primeiro ano.
Quatro páginas com valor de testamento
O padre Rua partiu para Mirabello depois da festa do Rosário.
Levava consigo quatro páginas de preciosos conselhos que Dom
Bosco escrevera para ele.
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36.8 Page 358

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Com referência a essas páginas, Pedro Stella escreve:“Têm um va-
lor quase de código e de testamento. Nele Dom Bosco espelha toda
a gama de suas preocupações de pai, de educador, de sacerdote que
visa a salvação das almas”.
O mesmo Dom Bosco percebeu ter conseguido traçar naque-
las linhas uma das melhores sínteses do seu “sistema de educação”,
tanto que, em seguida, transcreverá aquelas páginas (com algumas
variações e acréscimos) para todos os diretores salesianos, com o
título Lembranças Confidenciais aos Diretores.
Tentemos breve síntese.
Falo-lhe com a voz de um terno pai que abre o coração a um dos seus mais
caros filhos.
Consigo mesmo
– Nada o perturbe.
– Evite as mortificações no alimento. Não menos de seis horas de repouso
por noite.
– Celebre a santa Missa e recite o breviário com piedade, devoção e
atenção.
– Toda manhã, um pouco de meditação. Durante o dia, uma visita ao
Santíssimo.
– Procure antes fazer-se amar que temer. Mandando e corrigindo, dê
sempre a perceber que deseja o bem, nunca o seu capricho. Suporte tudo
quando se trata de impedir o pecado.
– Em coisas importantes, não delibere nada imediatamente.
– Antes de julgar, trate de entender bem quanto lhe foi relatado a respeito
de alguém.
Com os professores
– Procure conversar com eles frequentemente. Sabendo de alguma
necessidade, faça o possível para satisfazê-la.
– Fujam da amizade particular e da parcialidade com os seus alunos.
Com os assistentes
– Detenha-se com eles para ouvir seu parece a respeito do comportamento
dos jovens. Que sejam pontuais nos seus deveres. Façam sua recreação
com os jovens.
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36.9 Page 359

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Com os jovens estudantes
– Por nenhum motivo aceite um jovem já expulso de outros colégios ou
que lhe conste, de outra forma, ser de maus costumes.
– Faça quanto puder para passar no meio dos jovens o tempo da recreação;
e procure dizer-lhes ao ouvido alguma palavra afetuosa que você conhece,
à medida que se apresentar a ocasião e perceber a necessidade. É esse o
grande segredo para ganhar o coração dos jovens.
– Procure iniciar a Companhia da Imaculada Conceição.
Com as pessoas externas
– A caridade e a cortesia sejam as características de um diretor, tanto para
com os internos, quanto para os externos.
– Em questões materiais, tolere tudo o que for possível, mesmo com algum
prejuízo, contanto que se salve a caridade.
– Nas coisas espirituais, ou simplesmente morais, tudo se resolva para a
maior glória de Deus e o bem das almas. Sacrifique-se tudo, neste caso:
empenhos, caprichos, espírito de vingança, amor próprio, razão, pretensões
e até a honra.
E eis os principais “acréscimos” que fez ao reescrever estas linhas
como Lembranças Confidenciais aos Diretores:
– Cuide de nunca impor coisas superiores às forças ou danosas à saúde.
– Antes de deliberar, eleve sempre e brevemente o coração a Deus.
– Faça-se conhecido dos alunos e procure conhecê-los, passando com
eles todo o tempo disponível.
– Confiem-se aos outros as partes odiosas e disciplinares.
– Cuide ao máximo de favorecer as inclinações de cada um, confiando-
lhes, de preferência, aqueles encargos de que mais gostam.
– Faça-se economia em tudo, mas de modo nenhum falte alguma coisa
aos doentes.
– O estudo, o tempo, a experiência fizeram-me ver que a gula, o
interesse, a vanglória foram a ruína de florescentíssimas Congregações
e de respeitáveis Ordens religiosas. Os anos far-lhe-ão compreender as
verdades que ora lhe pareceriam inacreditáveis.
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36.10 Page 360

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As “palavrinhas ao ouvido” de Dom Bosco
Dom Bosco sugerira ao padre Rua:“Procure dizer-lhe ao ouvido
aquelas afetuosas palavras que você conhece”. A “palavrinha” de
Dom Bosco “ao ouvido”, segundo o testemunho dos seus alunos,
era um de seus segredos educativos. O padre Lemoyne procurou
recolher tais “palavrinhas”, interrogando aqueles que tinham sido
os meninos de Dom Bosco. Eis algumas:
– Como vai? E de alma, como está?
– Você precisa ajudar-me num grande empreendimento. Sabe qual é? De
tornar-se melhor.
– Quando começará a ser a minha consolação?
– Quer que nos tornemos amigos nos negócios da alma?
– Receia que Deus esteja zangado com você? Recorra a Nossa Senhora.
– O céu não é feito para os preguiçosos.
– Reze, reze bem e certamente se salvará.
– Está havendo tempestade? Invoque Nossa Senhora. É a estrela do mar.
– Pense no juízo de Deus.
– Não confie demais em suas forças.
– Pense em Deus, ficará melhor e mais contente.
– Se você me ajudar, quero fazê-lo feliz, nesta e na outra vida.
– Se me ajudar, quero fazer de você um São Luís.
– Quem perseverar até o fim, será salvo.
– Trabalhemos, trabalhemos. Repousaremos no Céu.
– Coragem! Um pedaço de Céu conserta tudo.
Uma mãe e muito trabalho
Dom Bosco quis que a mãe do padre Rua o acompanhasse a Mi-
rabello. Uma gentileza! Mais do que cuidar da roupa dos meninos,
foi um elemento equilibrador precioso nos infalíveis momentos de
depressão do seu jovem filho.
Houve dificuldades iniciais por causa dos títulos de professor.
Mas logo os salesianos de Mirabello obtiveram excelentes resulta-
dos, especialmente, no suscitar “vocações” sacerdotais.
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37 Pages 361-370

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37.1 Page 361

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O diretor era o principal artífice do êxito. Uma crônica refere, em
tom de elogio, que “o padre Rua em Mirabello se comporta como
Dom Bosco em Turim”. Assim, por dois anos.
Início de 1865. A Sociedade Salesiana tem 80 membros, dos quais
11 são sacerdotes. Dos clérigos mandados a Mirabello com o padre
Rua, Bonetti e Provera ordenam-se padres. Em Turim, ao lado de
Dom Bosco e do padre Alasonatti chegam ao sacerdócio Cagliero,
Sávio, Francésia, Ruffino, Ghivarello e Durando.
Este ano, porém, submeterá a jovem Sociedade a dura prova. No
espaço de poucos meses, cinco dos principais salesianos serão pos-
tos fora de combate, os alunos passarão de 700, o santuário de Maria
Auxiliadora engolirá enormes quantias de dinheiro e levará o padre
Rua à quase exaustão total.
O quadro de Maria Auxiliadora
Nos primeiros meses, o pensamento de Dom Bosco está absorto
pelo grande quadro de Maria Auxiliadora que deverá campear no
santuário. Confia a execução ao pintor Lorenzone e procura comu-
nicar-lhe tudo o que “quer ver” naquele quadro:
– No alto, Maria SS. entre os Anjos; ao redor dela, os Apóstolos,
os profetas, as virgens, os confessores. Na parte inferior, os povos
das diversas partes do globo com as mãos estendidas para ela, pe-
dindo auxílio.
Lorenzone deixa-o acabar. Depois:
– E onde vai por esse quadro?
– Na nova igreja.
– E acha que vai caber? Onde encontrar uma sala para pintá-lo?
Para achar um espaço adaptado às dimensões que imagina, precisa-
ríamos da Piazza Castello!
Dom Bosco teve de admitir que o pintor estava certo. Ficou, por-
tanto, assentado que ao redor de Maria só seriam pintados os Após-
tolos e os evangelistas. Aos pés do quadro apareceria o oratório.
Lorenzone alugou um salão muito alto no Palazzo Madama e co-
meçou um trabalho que durou quase três anos.
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37.2 Page 362

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Conseguiu dar ao rosto de Maria Auxiliadora uma expressão ma-
ternal e dulcíssima. Um padre do oratório contava:
Um dia entrei no estúdio para ver o quadro. Lorenzone estava na escadinha
dando as últimas pinceladas no rosto de Maria. Não se virou ao barulho
que fiz ao entrar e continuou o seu trabalho. Daí a pouco desceu e pôs-se
a olhar. De repente, apercebeu-se da minha presença, tomou-me por um
braço e me levou a um ponto de plena luz:
– Observe como é bela! – me disse. – Não é obra minha, não. Não sou eu
que pinto. Há outra mão que conduz a minha. Diga a Dom Bosco que o
quadro será belíssimo.
Estava entusiasmado mais do que se possa imaginar. Em seguida, voltou
ao trabalho.
Quando levaram o quadro para o santuário – relembrava Lemoy-
ne – e o puseram em seu lugar, Lorenzone caiu de joelhos e pôs-se
a chorar como uma criança.
O adeus do padre Alasonatti e a chegada do padre Rua
Manhã de 8 de outubro. Chega, de Lanzo, a Valdocco o clérigo
Cibrario. Traz a notícia de que o padre Alasonatti (que lá subira
para buscar um pouco de saúde) falecera durante a noite e passa
às mãos de Dom Bosco uma carta que o sacerdote escrevera antes
de morrer. O padre Alasonatti consumira seus últimos onze anos
de vida num trabalho silencioso e sacrificado. A quantidade de
processos, de faturas, de registros, chegara a tal ponto que, nos
últimos tempos, passava também as noites em claro. O Céu – como
dissera ao chegar – ganhara-o de verdade. Em setembro, uma úlcera
na garganta fizera-o sofrer de modo atroz.
Dom Bosco evocou sua figura diante dos meninos com fraterna
comoção. Para o oratório foi uma perda muito grave.
Em Mirabello, o padre Rua estava programando as coisas para o imi-
nente início do ano letivo, quando chega de Turim o padre Provera:
– Dom Bosco o espera no oratório. O padre Bonetti assumirá a
direção do colégio.Venha logo que puder.
O padre Provera lembrava:“O padre Rua estava escrevendo à es-
crivaninha. Não hesitou um instante: sem fazer nenhuma pergunta
nem pedir explicações, levantou-se, tomou do breviário e disse:‘Es-
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37.3 Page 363

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tou pronto!”. Deixou a mãe em Mirabello até que se encontrasse
uma ajuda para a rouparia dos meninos.
Em Turim, Dom Bosco lhe disse simplesmente:
– Fez de Dom Bosco em Mirabello.Agora deve fazê-lo em Valdocco.
Entregou-lhe tudo: as oficinas dos 350 aprendizes, o canteiro de
obras do santuário, a publicação das Leituras Católicas (12 mil as-
sinaturas), até a incumbência de ler e responder a maior parte das
cartas a ele endereçadas.
A manhã absorvida pelas audiências
Todas as manhãs de Dom Bosco já eram consumidas pelas audi-
ências. Lembra o padre Lemoyne:
Essas audiências começaram desde o princípio, isto é, em 1846. E, pouco
a pouco, foram crescendo. Em 1858, pelas 10h30 ou 11 horas da manhã,
Dom Bosco ainda podia sair de casa. Mas em 1860 tornaram-se tão
numerosas que foi obrigado a ficar no escritório toda a manhã, das 9 às
13 horas. E assim continuou até a última doença. Com a morte do padre
Cafasso tornou-se praticamente o herdeiro do seu espírito: tudo quanto
havia em Turim de bom, de escol, de emergente, nas várias classes sociais,
tudo ia parar em Dom Bosco.
O padre Cagliero acrescenta:
Vi sempre muitíssimas pessoas subirem para visitá-lo. Vinha receber sua
bênção, pedir-lhe orações, aconselhar-se sobre boas obras a fazer, trazer-lhe
ofertas para os seus jovens. Alguns só para vê-lo ou falar-lhe. Era gente do
povo, mas também autoridades e ministros, reitores de seminário e bispos.
Um advogado, que foi recebido muitíssimas vezes por Dom Bos-
co, lembrava: “Tinha certamente coisas urgentes a fazer. Entretan-
to, nunca demonstrava impaciência para abreviar os colóquios. Era
respeitoso, bonachão, afetuoso. Ouvi muitos dizerem: “Como Dom
Bosco trata bem as pessoas!”.
O padre Joaquim Berto, seu secretário, ouviu-o com frequência
consolar os doentes, enquanto os amparava ao entrarem no escri-
tório, repetindo-lhes: “Deus é um bom pai: nunca permite que se-
jamos afligidos além das nossas forças”. Se os sofredores lhe conta-
vam as boas obras praticadas, Dom Bosco exclamava: “Deus nada
362

37.4 Page 364

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esquece. Pagará tudo com generosidade no Céu. É o melhor paga-
dor do mundo”.
Certa vez – contou o padre Dalmazzo –, viera vê-lo um negociante muito
rico,sem fé. Só por curiosidade.Vi-o,depois,sair todo confuso,exclamando
três ou quatro vezes: “Que homem! Que homem é este!”. Perguntei-lhe
o que ouvira de Dom Bosco. “Ouvi coisas que de outros padres não se
ouve. Ao me despedir, Dom Bosco me disse: Cuidemos para que, um dia,
o senhor com o seu dinheiro e eu com a minha pobreza possamos estar
no Céu.”
De Amicis viu a grande estátua sobre a cúpula
1866. Os trabalhos do Santuário chegam à altura da cúpula. E
param: não há mais dinheiro. Dom Bosco, após alguns dias de he-
sitação, dá ordem para que substituam a cúpula por uma simples
abóbada e encerrem assim os trabalhos.
O mestre de obras Buzzetti e o ecônomo padre Sávio ficam do-
lorosamente surpresos: a igreja vai perder muito de sua beleza. De-
cidem, pois, esperar um mês, levando avante, enquanto isso, outros
serviços, esperando que talvez Dom Bosco mude de ideia. Entre-
mentes aparece o senador Cotta:
– É verdade que estão querendo abolir a cúpula?
– Ninguém está querendo abolir coisa nenhuma. São os meios
que estão faltando. E aqui se precisa fechar o teto antes do inverno.
– Executem a planta como está: os meios não faltarão.
E a Dom Bosco:
– Percebo com os fatos que Deus já me dá agora o cêntuplo do
que dou por seu amor.
A cúpula foi levantada. Em 23 de setembro, domingo, Dom Bosco
subiu aos andaimes com um menino: juntos colocaram a pedra que
fecharia o último anel de tijolos.
Em 1867, uma grande estátua de Nossa Senhora foi posta no
vértice da cúpula.
A estátua – escreve Dom Bosco – tem cerca de quatro metros de altura e
é encimada por doze estrelas. É de cobre dourado e, quando nela incide o
sol, resplende luminosa para aqueles que a contemplam de longe. Parece
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37.5 Page 365

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querer-nos falar e dizer: aqui estou para acolher as preces dos meus filhos,
para enriquecer de graças e bênçãos aqueles que me amam.
Valdocco, como o bairro do Dora, continuava periferia pobre, às
vezes esquálida.Várzea inculta, casas e tugúrios de gente sem meios,
a grande casa do sofrimento chamada “O Cottolengo”, as obras da
marquesa Barolo, as obras de Dom Bosco.
Tangendo a carruagem em direção ao descampado, desciam, com
frequência, a essa parte, as famílias aristocráticas e abastadas da cidade.
Ali baixou também Edmundo De Amicis, célebre escritor na
moda. No seu volume La Città (A Cidade), anotava:
À tristeza daquele bairro singular corresponde a campanha circunstante,
plana e silenciosa, especialmente no inverno, à hora do ocaso, quando por
sobre as casas e os campos cobertos de neve, já imersos na sombra azulada
da tarde, ainda cintila, ao último raio de sol, a alta estátua dourada de Maria
Auxiliadora, ereta sobre a cúpula da sua igreja solitária, com os braços
estendidos para os Alpes.
A hora das “profecias loucas”
O Santuário de Maria Auxiliadora foi consagrado no dia 9 de ju-
nho de 1868.
Às 10h30 subiu ao altar-mor, para a primeira Missa, o arcebispo
de Turim, dom Riccardi. Logo depois, celebrou Missa Dom Bosco,
ladeado pelo padre Francésia e pelo padre Lemoyne. Presentes na
igreja estavam 1.200 rapazes.
Foi um momento de intensa comoção para todos! As “profecias
malucas” de Dom Bosco eram realidade concreta diante dos olhos
de todos. A “estupenda e alta igreja” crescera como um milagre no
campo “semeado de milho e batatas”. Ao redor da cúpula, havia a
faixa branca “em que estava escrito com letras garrafais: “Hic domus
mea, inde gloria mea”. Rodeavam o altar “um número incontável
de jovens”.
Alguém o proclamou em alta voz, como se quisesse compensar
Dom Bosco por tantas amarguras engolidas naqueles anos. Mas ele
respondeu com simplicidade: “Eu não sou o autor destas grandes
coisas. É Deus, é Maria Santíssima que se dignaram servir-se de um
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37.6 Page 366

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pobre padre para realizá-las. Cada pedra desta igreja é uma graça de
Nossa Senhora”.
Dois dias após, a Unità Cattolica (Unidade Católica), jornal de
Turim, fazia a crônica da consagração. E escrevia, numa frase que
muito agradou a Dom Bosco: “A igreja foi construída pelos pobres
e para os pobres”.
Esse dia de grande festa não subiu certamente à cabeça de Dom
Bosco. Se tal tentação o tivesse acometido, as pungentes dificulda-
des que voltaram a surgir no dia seguinte lha teriam arrebatado ime-
diatamente. Escreveu naqueles dias: “O preço do pão nos deixam
desolados. Entre Turim, Mirabello e Lanzo (o terceiro colégio que
fundara em 1864), devemos pagar 12 mil liras por mês. Só de pão”.
O padre Rua desaba
A pessoa que mais se sacrificou nesse tempo (e sempre em si-
lêncio) foi o padre Rua. Por mais de um mês não dormiu mais que
três ou quatro horas por noite. O excesso de trabalho acabou por
esgotar-lhe as forças.
No dia 29 de julho desabou. Caiu de peso nos braços de um ami-
go à porta do oratório. Transportado para o quarto, veio o médico.
Ficou alarmado: peritonite em estado avançado.
Dom Bosco estava ausente e foi logo mandado chamar. Voltou
bem de tarde. Quando chegou, porém, a sacristia estava apinhada
de meninos que queriam confessar-se com ele. Dom Bosco estava
estranhamente alegre.
– Venha logo ver o padre Rua – disse o padre Sávio. – Pode mor-
rer de uma hora para outra.
– De jeito nenhum: o padre Rua não partirá sem a minha licença.
Vou confessar os meninos.
Confessou até de noite. Depois, em vez de subir à enfermaria,
foi jantar. Em torno dele se formou um silêncio pesado: não dava
para entender como, sendo ele sempre tão solícito com os doentes,
fosse dessa vez tão descortês com o seu principal colaborador que
pedia insistentemente para vê-lo.
Terminada a ceia, Dom Bosco subiu ao quarto para guardar a
maleta, e só então se decidiu a visitar o padre Rua. O doente tinha
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o rosto coberto de suor frio. Estava muito mal. Viu Dom Bosco e
sussurrou:
– Se for a minha vez, diga logo... Não tenho medo de morrer...
– Morrer! – exclamou Dom Bosco. – Meu caro padre Rua, eu não
quero, entende? Não quero que morra. Sem você eu estaria frito!
Temos ainda muito que trabalhar. Por isso, nada de morrer!
Viu sobre a mesinha o santo Óleo para a Unção dos Enfermos e
perguntou:
– Quem é o santo homem que quer ungir o padre Rua?
– Sou eu – respondeu o padre Sávio.
– Vocês são mesmo gente de pouca fé. Padre Rua, não se apavore!
Veja: mesmo que você se atirasse da janela agora, não morreria. Por
isso, levem embora esses santos Óleos. E deixem-no em paz.
Três semanas depois, o padre Rua estava curado. Mais um mês e
meio de convalescença, e desceu ao vasto pátio para brincar como
um menino. Ainda não podia correr, mas jogava birosca com os
pequenos: agachado, atirava a bolinha de gude com o polegar que
era puro nervo.
Quase dez anos mais tarde, em agosto de 1876, depois da ceia,
um salesiano perguntou, de repente, a Dom Bosco:
– É verdade que alguns salesianos morreram por causa de muito
trabalho?
– Se fosse verdade – respondeu –, não seria nenhuma desonra
para a nossa Congregação, muito ao contrário; mas não é verdade.
Um só poderia merecer o título de vítima do trabalho: o padre Rua.
Mas, para nossa felicidade, Deus no-lo conserva forte e vigoroso.120
1 O padre Miguel Rua, nascido em Turim em 1837, só faleceu em 1910. Foi chamado “outro Dom Bos-
co”. O papa Paulo VI proclamou-o bem-aventurado em 29 de outubro de 1972 (N.T.).
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Uma “nova fase” para os Salesianos
Tem-se a impressão que, a partir do momento em que Dom Bos-
co começa a empenhar-se na construção do santuário de Maria
Auxiliadora, ele fica encapsulado, quase aprisionado por sua
obra. Parece que a história que lhe corre ao lado já não afete a sua
história.
Começa – parece – a “história salesiana”, a qual avança paralela
à “outra” história, mas independente dela. Com suas etapas, seus
êxitos, suas batalhas particulares: a fundação das Filhas de Maria Au-
xiliadora, a partida dos missionários, o início dos Cooperadores, a
luta respeitosa mas áspera com a hierarquia de Turim pela indepen-
dência da Congregação, as desgastantes manobras romanas para a
aprovação das Regras salesianas.
Mas só parece e a impressão é equivocada.
A história portões afora
A história da Itália que continua a trabalhosa marcha para a uni-
ficação, os atritos raivosos das autoridades políticas com a Igreja, a
história “não oficial” com suas lutas operárias, a emigração maciça,
a tensão das massas populares por uma instrução e cultura melhor
– tudo se entrelaça capilarmente com a ação de Dom Bosco, orien-
tam-na, carreiam-lhe novas sensibilizações.
Por isso, parecer-nos-ia perigoso (e superficial) ignorar os gran-
des acontecimentos que se verificam fora dos portões do oratório.
Depois da morte de Cavour (6 de junho de 1861), sucedem-se,
por quinze anos, no vértice do governo, várias pessoas que serão
denominadas “a direita histórica”. Cresceram ao lado de Cavour.
Mas, se lhe absorveram o mister político, não lhe possuem as cen-
telhas da genialidade. São os piemonteses Sella, Lanza e Rattazzi, os
lombardos Jacini e Visconti Venosta, os emilianos Minghetti e Fa-
rini, os toscanos Ricasoli e Peruzzi, os sulistas Spaventa e Massari.
Conservam a mentalidade (e os interesses) da burguesia rica e da
aristocracia agrária.
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No confronto com a Igreja, seguem firmes na linha de Cavour da
separação entre a Igreja e o Estado, mas não renunciam aos duros
ataques ao clero e aos bispos que suspeitem serem defensores dos
direitos pontifícios.
No Parlamento, diante da “direita histórica” senta a esquerda.
Bem diferente do que entendemos hoje por “esquerda”. Também
os seus componentes provêm da aristocracia e da burguesia (em 22
milhões de italianos, o direito do voto é reconhecido apenas a 400
mil e exercido por 200 mil).
Os principais expoentes da esquerda – Crispi, Depretis, Bertani
– têm como programa moderadas reformas democráticas (amplia-
ção do direito de voto) e uma ação anticlerical mais decidida.
A Itália, antes mesmo de ocupar o Lácio e as três Venezas, tem
uma população de 22 milhões de habitantes. Desses, 80% não sa-
bem nem ler nem escrever. Os estudantes universitários são ape-
nas 6.500; 70% dos italianos vivem nos campos e trabalham a terra.
Só 18% se empregam na indústria. O maior parque industrial é o
Ansaldo, na Ligúria. Emprega mil operários. As estradas de ferro
atingiram o comprimento de 2 mil quilômetros. E a frota mercantil
italiana é a terceira do mundo (depois da Inglaterra e da França).
A luta contra os bandoleiros e a grande emigração
1861. Na Itália do sul começa a guerra contra o banditismo, qui-
çá a página mais trágica e dolorosa da história nacional. Algumas
vezes, os bandoleiros eram grupos armados que tinham ficado fiéis
aos Bourbons. Mas, na maioria dos casos, eram somente núcleos de
marginais entregues à clandestinidade, vivendo de extorsões e de-
predações.“A explosão do banditismo – escreve Francisco Traniello
– pôs a nu os limites da política seguida pela direita liberal. Em
muitas partes do Sul, a unificação nacional era sentida como uma
imposição do alto, autêntica ‘conquista’.”
Os políticos da direita alimentavam um desprezo entranhado
pelo Sul: “Isso não é Itália – escrevia Farini em 1861 – é África: os
beduínos, em comparação com esses primitivos, são flores de civili-
zação”. Combatem, de feito, o banditismo, mas sem o cuidado de en-
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37.10 Page 370

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frentar-lhe as causas profundas: o analfabetismo que atingia 90% da
população, a miséria secular, a desesperada revolta das populações
do campo contra um Estado que as gravara com pesadíssimos im-
postos e lhes levava embora os jovens com a leva militar obrigatória.
A luta contra o banditismo foi uma verdadeira guerra, levada a
efeito com um exército de 120 mil homens, com batalhas, estados
de sítio, tribunais militares, fuzilamentos.
Os bandoleiros mortos nos anos de 1860-65 foram mais de 5 mil:
venceu-se a guerra, mas não os problemas do sul. E os sulistas, pisa-
dos e humilhados, iniciaram aquele triste fenômeno de fuga chama-
do “emigração”. Miguel Marotta escreve: “Nos anos imediatamente
seguintes a 1861, a emigração italiana assume um caráter de massa,
com uma média anual de 123 mil emigrantes. Depois de 1876, toca-
rá extremos de meio milhão por ano”.
Dom Bosco, ao mandar os seus primeiros missionários para a
Argentina, lhes dirá: “Vão e procurem esses nossos irmãos, que a
miséria e a desventura levaram para terra estrangeira”.
Guerrilha em Turim
1862. Recomeçam os choques ásperos entre o Estado italiano
e a Santa Sé pela posse de Roma. Garibaldi, com o consentimento
tácito do ministro Rattazzi, deixa Caprera, desembarca em Palermo
e prepara uma expedição para a conquista do Lácio e da cidade de
Roma. Somente em face das violentas reações de Napoleão III e dos
católicos italianos é que o governo decide intervir com tropas re-
gulares para deter Garibaldi que já havia desembarcado na Calábria.
No encontro de 29 de agosto aos pés do Aspromonte, os bersa-
glieri do coronel Pallavicini ferem e capturam Garibaldi.
No dia 15 se setembro de 1864, a Itália firma uma convenção
com Napoleão. O imperador aceita retirar as tropas francesas ali-
nhadas em defesa do papa e o governo italiano se compromete a
respeitar a soberania papal sobre Roma. Como prova de boa vonta-
de, obriga-se a transferir, de Turim para Florença, a capital do Reino.
Ao tomar conhecimento da notícia,Turim se incendeia. Seis mil
pessoas, no dia 20 de setembro, se amontoam na Piazza Castello
bradando:“Abaixo o rei, viva a república!”.
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38 Pages 371-380

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38.1 Page 371

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No dia seguinte, a multidão se reúne, ameaçadora, na Piazza San
Carlo, contra a Gazzetta del Popolo. De repente, das ruas laterais,
caem sobre a multidão patrulhas de guardas de segurança pública
com espadas desembainhadas. Há feridos e mortos. A multidão se
dispersa. Mas volta a reunir-se poucas horas depois e toma de assal-
to a sede do Comissariado da Polícia.
Na Piazza Castello, entretanto, se realiza uma manifestação pací-
fica, mas os nervos já estão à flor da pele. Um esquadrão de carabi-
neiros recebe ordem para disparar sobre a multidão: dez mortos. A
esta altura, desencadeia-se a fúria popular: os escritórios da Gazzet-
ta são destruídos com violenta nuvem de pedradas e as lojas dos
armeiros assaltadas. O povo se arma. O ministro do Interior, temen-
do uma guerra civil, manda confluir à cidade 28 mil soldados e 100
canhões. Posiciona a artilharia sobre o Monte dos Capuchinhos,
com as bocas voltadas para o centro da cidade.
Na noite daquele 21 de setembro, Dom Bosco reúne todos os jovens
sob os pórticos e, juntos, rezam por Turim e pelos seus habitantes.
Às 9h50 do dia 22, os tumultos recomeçam. Uma fila de carabi-
neiros que defendem a sede da Polícia recebe uma saraivada de pe-
dras sendo dois deles gravemente feridos. Exasperados, os colegas
começam a disparar: 26 mortos.
O rei, indignado, pede ao governo que se demita: nomeia o gene-
ral La Marmora como novo primeiro-ministro. Cessam os tumultos.
Mas a capital é transferida rapidamente para Florença.
Turim sente-se traída.
Crise religiosa: Bíblia e cotação da bolsa
O papa também se sentiu traído. Pio IX, ao ver-se abandonado da
proteção militar de Napoleão, endureceu suas posições antiliberais.
Com o documento chamado Syllabus condenou em bloco as “dou-
trinas modernas”. Nas últimas linhas do documento, o papa nega
que a Igreja “possa e deva reconciliar-se e pactuar com o progresso,
o liberalismo e a civilização moderna”.
O papa (e muitíssimos ambientes católicos) estava espantado
pela grave crise religiosa que parecia mudar a face da terra.
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38.2 Page 372

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Os novos grupos dirigentes e empresariais – citamos Traniello – preferiam
a leitura das cotações da bolsa à Bíblia. As novas massas proletárias,
desenraizadas e exploradas, convertiam-se mais facilmente à luta de classe
que às bem-aventuranças evangélicas. As migrações do campo para a
cidade, as forçadas mudanças de ofício e de ocupação, as novas condições
de vida e, em geral, a dissolução do velho tecido social, provocavam
mudanças profundas no modo de pensar, subtraíam vastas categorias
de pessoas aos párocos e aos pastores. Tudo isso parecia uma rejeição
dos princípios católicos tradicionais, um abandono ou uma atenuação da
prática cristã e, sobretudo, uma rebelião às autoridades eclesiásticas, que
com frequência se mantinham ligadas a um mundo já extinto.
Esta situação de crise, que atingirá o seu ápice em 1870 com
a conquista de Roma pelas tropas italianas, leva os católicos a se
protegerem, a se organizarem como “um Estado dentro do Estado”.
Para salvar os próprios valores e formar as novas gerações num cli-
ma cristão, os católicos criam (ao lado dos organismos estatais anti-
clericais) instituições de mútuo auxílio “católico”, bancos popula-
res “católicos”, sociedade de seguro “católicos”, escolas e colégios
“católicos” para a educação dos seus filhos.
Dom Bosco vive, em plenitude, esse momento da história italia-
na. Endereça boa parte das suas energias a abrir “colégios e escolas
católicas”, chegando ao ponto de fazer sua Congregação viver uma
“nova fase”: a dos colégios. Dela falamos amplamente na segunda
parte deste capítulo.
A história não oficial dos trabalhadores
Ao lado da história oficial da Itália, desenrolam-se outros acon-
tecimentos com frequência esquecidos pelos livros que contam a
“grande” história.
São esses, os anos da “grande miséria” do povo miúdo. No Pie-
monte, os operários trabalham nas fábricas 12 horas por dia, com
salários de fome, sem previdência social, sem seguros de espécie
alguma. Os camponeses, já acenamos, são a grandíssima maioria
e, em março, levam ainda seus filhos de 10-12 anos às praças do
mercado, para que sejam “alugados” pelos proprietários de terras,
como nos tempos de Joãozinho Bosco. E assim será por muitos
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38.3 Page 373

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anos (em certos vilarejos da Puglia o é ainda hoje...). Quanto às
adolescentes, cuidam da “longa trança” dos seus cabelos. Cortá-la-
-ão e venderão quando tiverem 18 anos: será a maior “entrada” para
começar a preparar seu enxoval de noiva.
Também do Piemonte, desprovido de leis que regulamentem o
trabalho e as previdências sociais, partem multidões de migrantes:
temporariamente, para a França e a Suíça; definitivamente, para a
América.
Em 1864, nasce, em Londres, a “Primeira Internacional dos Tra-
balhadores”. Compõe-se inicialmente de três correntes principais:
o sindicalismo inglês, que visa a reformas graduais para melhorar
a situação dos operários, para que possam participar mais direta-
mente da atividade política; os seguidores do socialista francês
Proudhon, que rejeitam a luta de classe e o comunismo marxista,
e procuram organizar “cooperativas operárias” com a finalidade de
suprimir lentamente o capitalismo; os mazzinianos, que constituí-
ram na Itália 450 “sociedades operárias” com 120 mil inscritos.
Pouco a pouco, porém, a Internacional ver-se-á dominada por
Marx, que, com sucessivas “depurações”, fará desaparecer quem
não pensa como ele e imporá as suas ideias comunistas.
No mesmo ano de 1864, dom Ketteler, bispo de Mogúncia, Ale-
manha, publica A questão operária e o cristianismo. É o programa
do forte catolicismo social alemão. Pede a intervenção do Estado
para uma legislação sobre o trabalho e sobre a previdência social.
As leis deverão garantir um salário mínimo, limitar as horas de tra-
balho, garantir o repouso festivo, proibir o trabalho das mulheres e
das crianças, criar os seguros sociais, devolver importância às “so-
ciedades intermédias” entre o indivíduo e o Estado: a família, o mu-
nicípio, as entidades locais, as associações livres.
Sob o impulso de tais movimentos e das lutas dos trabalhadores,
esses anos assistem a conquistas lentas e custosas. Em 1864, o go-
verno francês de Napoleão III reconhece aos operários o direito de
greve. Em 1866, o governo alemão de Bismarck concede a todos o
direito do voto. Os trabalhadores podem, pela primeira vez, mandar
seus representantes ao Parlamento. Ainda em 1866, o governo belga
reconhece os primeiros sindicatos dos trabalhadores (graças às for-
tes pressões das associações católicas). Seguir-se-ão iguais reconhe-
cimentos na Áustria (1870), na Inglaterra (1876), na França (1884).
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38.4 Page 374

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A 1o de maio de 1866 começa também a “campanha internacio-
nal” para se reduzir o dia de trabalho a 8 horas. Fizeram-se 5 mil
greves e muitíssimas manifestações. Por toda parte, polícia e exér-
cito reprimem duramente. Em Chicago, numerosos os mortos; os
responsáveis pela demonstração são enforcados.
Nos últimos decênios do século, quase todos os Estados euro-
peus reduzem, por lei, o dia de trabalho a 10 horas, proíbem nas
fábricas o emprego, em tempo integral, de rapazes menores de 13
anos, aprovam normas sobre a prevenção de acidentes, dispõem
sobre higiene e repouso festivo. Entre 1883 e 1889, solicitado pe-
los católicos do “Centro” e pelos socialistas de Lasalle, o governo
germânico introduz o seguro obrigatório contra acidentes, doenças
e velhice. Logo será imitado pela Áustria, Suíça, Dinamarca, Bélgica
e Itália.
O “imposto sobre a fome”
Em 1866, a população campesina italiana, já muito pobre, foi
castigada pelo iníquo imposto “sobre a farinha”. Taxava-se pesada-
mente a moagem do trigo e dos cereais. Feria-se com ele, os que
se alimentavam de pão e polenta, isto é, os mais pobres. Houve, em
todo o país, uma onda de verdadeiras insurreições.“Contra os revol-
tosos, que se levantavam algumas vezes aos gritos de ‘Viva o papa
e os austríacos’ – escreve Francisco Traniello –, usou-se mais uma
vez o exército. Centenas de mortos e feridos. O governo manteve o
imposto sobre a fome.”
Também no oratório e nas outras casas de Dom Bosco, onde os
seus rapazes “arrasam com montanhas de pãezinhos”, o imposto “so-
bre a farinha” assinala um aumento notável nas despesas:“Os preços
do pão afligem-nos profundamente”, escreveu nesses meses Dom
Bosco.
Nasce o “colégio salesiano”
A partir de 1863, com a abertura do “pequeno seminário” de Mi-
rabello, Dom Bosco é chamado a muitas partes da Itália para fundar,
não oratórios, mas colégios. Dom Bosco aceita (mas, ao lado do co-
légio, sempre abre um oratório).
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38.5 Page 375

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A Congregação Salesiana vê-se, dessa forma, empenhada, no de-
curso de poucos anos, em numerosas escolas que ministram ensino
elementar, secundário e profissional.
Como explicar que os salesianos de Dom Bosco, nascidos num
oratório, se tornem, com o passar de poucos anos,“especialistas de
colégio para rapazes de classe popular”?
Já acenamos ao motivo em páginas precedentes. Agora damos
uma resposta mais completa, citando Pedro Stella:
O florescimento de colégios católicos, o seu multiplicar-se, é próprio
da segunda metade do Oitocentos, quando e à medida que a política e
a legislação italiana se foram orientando por bases liberais... O profundo
dissídio entre a Itália legal, constituída pela classe dirigente, política,
liberal, e a Itália real, constituída por largas camadas de oposição católica
e de outras forças então em desenvolvimento (socialismo...), teve como
efeito nas escolas públicas italianas a orientação aconfessional e mesmo
anticlerical (com ásperas lutas a respeito do ensino da religião nas escolas).
Como contragolpe, surgiu nos católicos a tendência a se organizarem em
tudo: criar associações religiosas, entidades de socorro mútuo, bancos
populares, sociedades de seguro, colégios para educação dos filhos,
orientados seriamente às classes da baixa burguesia e do povo operário e
agricultor, quase criando uma sociedade dentro da sociedade estatal.
Explica-se assim como, desde 1863, se assista a um multiplicar-se de colé-
gios, de internatos para pobres, de escolas para aprendizes, de escolas agrí-
colas, de seminários (abertos ou dirigidos pelos salesianos) e sua preferên-
cia pelos internatos... O colégio salesiano contribuiu para alimentar, com
uma cota maciça de levas juvenis, as forças católicas na Itália e no mundo.
“Educai os jovens pobres”
Chamaram-se ospizi (internatos) as casas para jovens aprendizes
(artes e ofícios); aceitavam-se sempre e somente “rapazes órfãos e
abandonados”. Denominaram-se, ao invés, collégi (colégios) as casas
para estudantes; elas também decididamente voltadas para os meni-
nos pobres. Esta foi sempre a vontade explícita de Dom Bosco.
Ao voltar de Roma em 7 de março de 1869, transmitia aos seus
salesianos algumas recomendações de Pio IX:
Atenham-se sempre aos pobres filhos do povo. Eduquem os jovens
pobres, que não tenham nunca colégios para ricos e nobres. Conservem
modestas as pensões: não as levantem. Não assumam a administração de
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38.6 Page 376

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casas ricas. Se educarem os pobres e forem pobres deixá-los-ão em paz e
farão o bem” (Memórias Biográficas, vol. IX, p. 566).
A realidade correspondeu a essas diretrizes. Não só nos primei-
ros anos. Em 1875, Dom Bosco podia escrever:“Em Alassio,Varazze,
Sampierdarena, as finanças indicam zero”. Em 1898, dez anos depois
da morte de Dom Bosco, no Instituto de Bolonha, dirigido pelo seu
ex-secretário, havia 181 alunos internos, dos quais 49 (órfãos) rece-
biam tudo gratuitamente. Só 33 rapazes pagavam a pensão comple-
ta (25 liras mensais). Os outros, 99, contribuíam com uma quantia
que mal chegava a meia pensão.As entradas anuais eram de 23 mil
liras, as saídas 46 mil liras. Um “sadio” passivo de cem por cento...
Os primeiros cinco colégios
Em 1864, abriu-se o colégio de Lanzo. Dom Bosco mandou para
lá como diretor o padre Ruffino (24 anos) e sete clérigos. A compa-
nheira dos primeiros meses foi a pobreza mais dura.
Um local desprovido de tudo, algumas paredes caindo aos pedaços
– escreveu o clérigo Sala, que, mais tarde, seria ecônomo-geral da
Congregação. – Cadeiras: nenhuma. Mesas: tampouco. Givone preparou o
rancho, que comemos sobre uma porta, deitada sobre dois cavaletes. As
janelas, sem vidro, foram tapadas com toalhas e cobertores. Dormimos na
palha...
No primeiro ano, os alunos internos foram só 37, com mais uma
nuvem de externos indisciplinados. Em março, uma doença (agra-
vada pelo esgotamento) reduziu o clérigo Provera à completa ina-
tividade. Em julho, vítima da tuberculose, morreu o jovem diretor
(padre Ruffino). O colégio ficou entregue apenas às mãos dos seis
clérigos supérstites. “Como trabalhamos! – recordava o padre Sala
– Não queríamos que se dissesse que o colégio ia mal porque está-
vamos somente nós, os clérigos.”
No seguinte foi dirigi-lo o padre Lemoyne. E as coisas começa-
ram a melhorar.
1870. Abre-se o colégio de Alassio. Diretor: o padre Cerruti, 26
anos.
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38.7 Page 377

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1871. Começa um internato para pobres em Marassi. Três anos
mais tarde será transferido para Sampierdarena. Diretor: o padre Ál-
bera, 26 anos. Começa-se com três oficinas para “meninos pobres e
abandonados”. Ao lado das escolas profissionais, Dom Bosco quer
uma seção para rapazes “que pensam na vocação sacerdotal”.
1871. 20 salesianos entram no Colégio Cívico de Varezze. Guia-
-os o padre Francésia, um dos primeiríssimos alunos de Dom Bosco
(esses vinte salesianos já haviam mantido aberto por três anos um
colégio em Cherasco, mas tiveram que deixá-lo).
Quando Dom Bosco foi visitar o colégio, disse, falando a uma
multidão de varazzenses que o aplaudiam: “Para manter os meni-
nos – disse sorrindo – não preciso de gente que bata palmas, mas
de gente que bata as próprias carteiras! Se, ao chegar a hora do
almoço, eu me pusesse a bater palmas, os meus rapazes estariam
fritos...”.
1872. Dom Bosco aceita o colégio de Valsálice, para jovens de
famílias aristocráticas.
É um momento angustioso para a Congregação. Uma socieda-
de de sete sacerdotes de Turim abrira, sobre a colina turinense, um
colégio para jovens nobres, mas as finanças foram água abaixo. O
novo arcebispo, dom Gastaldi, já de relações tensas com os salesia-
nos, chama Dom Bosco e impõe-lhe aceitar o colégio. Dom Bosco
não quer nem saber. Anos antes afirmara: “Isso não! Enquanto eu
estiver vivo, jamais acontecerá! Seria a nossa ruína”. Mas o arcebis-
po está disposto a impor-lho por obediência.
Dom Bosco submete a questão ao parecer do jovem capítulo da
Sociedade. Todos dão parecer negativo. Vai a Lanzo pedir conselho
ao padre Lemoyne e o ouve responder: “Recuse. Já não nos disse
e repetiu que aceitar colégios de nobres marcaria a decadência da
nossa Congregação e que nós devemos sempre ficar com os pobres
filhos do povo?”.
Ao final, para evitar choques com a autoridade eclesiástica, Dom
Bosco aceita. Mas com sumo desgosto. Por bem cinco anos, o co-
légio é um peso para a Congregação. Alunos: muito poucos. Des-
pesas: ingentes. O oratório de Valdocco deve acudir com vultosas
contribuições. Dom Bosco exclama com amargura:
– Toca aos pobres ajudar aos ricos!
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38.8 Page 378

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Finalmente, em 1887, após desembolsar ingentíssima quantia
(130 mil liras), Dom Bosco se torna proprietário da casa e substitui
os nobres pelos clérigos salesianos estudantes. Um grande cartaz
sobre a porta de ingresso anuncia a nova finalidade do colégio: Se-
minário das Missões Estrangeiras. Após quinze anos, resolvera-se o
problema de consciência de Valsálice.
A reviravolta que marca um princípio fundamental
No elenco das novas fundações, paramos aqui. À morte de Dom
Bosco, as casas da Congregação serão 64, espalhadas em seis países.
Os salesianos, 768.
Permitimo-nos uma consideração conclusiva.
Desde 1864, ao lado dos oratórios, dos internatos para pobres e
aprendizes, surgem os colégios para estudantes.
O oratório festivo (e cotidiano, onde é possível) permanece “a
primeira obra da Congregação”. Afirmam-no as Regras dos salesia-
nos e o diz a realidade da sua ação. Ao lado das grandes obras que
se abrem na Itália e que logo se abrirão nos bairros populares da
Argentina, da Espanha, do Brasil, revive-se a esplêndida barafunda
do oratório de Valdocco. Os sucessores de Dom Bosco insistirão:
cada obra salesiana, um oratório.
Mas Dom Bosco, a partir de 1864, percebeu uma nova exigên-
cia dos filhos do povo: escolas sérias e qualificadas que deem uma
instrução sólida e cristã. É uma reviravolta para a sua Sociedade: da
barafunda oratoriana, um número sempre maior de salesianos passa
às filas ordenadas dos colégios.
Não tendo hesitado em operar essa reviravolta, parece-nos que
Dom Bosco tenha fixado um princípio fundamental para a sua
congregação:
O elemento-base, imutável da missão salesiana é a juventude
pobre, os filhos do povo: a eles os seus salesianos deverão adap-
tar a sua obra com uma leitura rápida e corajosa dos sinais e
das exigências dos tempos. Numa palavra: não é a juventude
pobre que deverá adaptar-se aos salesianos e às suas obras, mas
são os salesianos e suas obras que deverão adaptar-se às exigên-
cias da juventude popular.
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38.9 Page 379

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Mornese como Valdocco
24de junho de 1866. Celebra-se no oratório a festa onomástica
de Dom Bosco: São João. Acorreram também os diretores
das duas primeiras casas salesianas, Mirabello e Lanzo.
Pusera-se sol – descreve o padre Lemoyne, diretor de Lanzo – e uma
lindíssima lua esplendia no céu. Subi ao escritório de Dom Bosco e fiquei
com ele, a sós, por quase duas horas. Erguia-se do pátio o alegre vozear
dos meninos em festa. Várias centenas de chamas em copos coloridos
bruxuleavam por sobre as janelas e grades das sacadas. No meio do pátio,
a banda de música iniciou o concerto. Dom Bosco e eu nos achegamos
à janela: o espetáculo era encantador. Dom Bosco sorria. De repente,
exclamei:
– Dom Bosco, lembra-se dos sonhos de antigamente? Aí estão os meninos,
os padres, os clérigos que Nossa Senhora lhe prometia. Já se passaram
quase vinte anos e nunca faltou pão a ninguém.
– Deus é bom! – respondeu Dom Bosco.
E recaímos no silêncio cheio de emoções. Depois, falei uma segunda vez:
– O senhor não acha, Dom Bosco, que falta alguma coisa para completar
a sua obra?
– O quê?
– Não quer mesmo fazer nada para as meninas? Não lhe parece que, se
fundasse também um instituto de irmãs, coroaria sua obra? Quanto
trabalho não poderiam fazer as irmãs em proveito dos nossos pobres
alunos. Poderiam fazer pelas meninas o que nós fazemos pelos meninos.
Pensou um pouco, depois respondeu:
– Sim. Isso também será feito. Teremos as Irmãs. Não já. Um pouco mais
tarde.
Pedro Stella acha que Dom Bosco alimentou por algum tempo a
esperança de ter, ao lado da Congregação Salesiana, as obras de Ma-
ria Luísa Angélica Clarac, irmã da Caridade que trabalhava a pouca
distância do oratório de São Luís.
Se elaborou tal projeto, durou muito pouco.
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38.10 Page 380

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Foram, ao invés, decisivos para Dom Bosco os encontros tidos
com duas pessoas: o padre Domingos Pestarino e Maria Domingas
Mazzarello.
Tifo, bruxas e mau-olhado
1860. Pleno verão. Explode o tifo sobre as colinas de Mornese. A
Segunda Guerra de Independência já havia levado, no ano anterior,
alguns pais de família. Agora, o tifo, desenvolvido num daqueles
poços em que, no verão, a água estagna e apodrece, leva o terror
àquela região de Alessandria.
Volta-se a falar de feitiço e mau-olhado, como em todas as vezes
em que se alastra alguma doença infecciosa. Micróbios, higiene, de-
sinfecção são palavras ainda desconhecidas.
As famílias atingidas pelo tifo são abandonadas por todos. E fe-
cham-se todas as casas em que as pessoas estão bem.
Uma família de sobrenome Mazzarello é das primeiras a ser ataca-
da. Antes o pai. Depois a mãe e todas as crianças. Passados alguns
dias, o pai e o garoto mais velho estão nas últimas.
O padre Pestarino, que em Mornese lhe chamam previn (“pa-
drezinho”, por ser baixinho e simpático), vai visitar aquela gente e
percebe que eles têm absoluta necessidade de uma pessoa que os
ajude. Desvia direto para uma casa de parentes, Mazzarellos também
eles, e apela para Maria. É uma sólida moça de 23 anos: trabalha
como um homem e reza como um anjo.
– Na casa do tio, há dois que estão morrendo. Teria coragem de
ir lá ajudá-los?
Longa pausa... Maria tem medo. Como todos. O padre observa-a
tranquilo. E espera. Maria murmura:
– Se o pai deixar, eu vou.
O pai é um verdadeiro cristão. Maria entra naquela casa: a ordem
e a limpeza voltam rapidamente; remédio e comida quentes sempre
prontos e nas horas certas.
Enquanto, porém, os doentes se curam, o tifo se abate sobre ela.
Seu belo rosto oval reduz-se, em poucos dias, a um triângulo pálido
e chupado. Quando o médico chega, abana a cabeça: a morte estava
a passos. Receita outros remédios. Maria, exausta, lhe diz:
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– Muito obrigada, mas, por favor, não me faça engolir mais com-
primidos. Não preciso de mais nada. Só que Deus me venha buscar.
Sua hora, porém, não chegara. Devia trabalhar ainda muito na
terra antes que o Céu a viesse buscar.
Confidências a Petronilla
Assim, sem comprimidos, Maria se vê, de repente, sem febre.
Voltam ao rosto as cores da saúde. Fica-lhe, porém, pelo corpo,
torpor e fraqueza. A febre altíssima alguma coisa quebrara naquele
organismo robusto...
E o que fará agora? Mais de um moço quereria falar-lhe de casa-
mento: nada lhe falta para tornar-se uma linda esposa e mãe exce-
lente. Ela, porém, nem quer começar tais conversas. E se pergunta:
“Que farei na vida?”.
Maria Mazzarello já se inscrevera na Pia União das Filhas de
Maria SS. Imaculada. A ideia do grupo partira da jovem professo-
ra do lugar, Ângela Maccagno. Por sugestão do padre Pestarino, tra-
çara um esquema de regulamento que fora mandado a um célebre
pároco de Gênova, padre Frassinetti. Em 1855, baseado naqueles
traços, o padre Frassinetti compusera o Regulamento da Pia União
das Filhas de Maria Imaculada, que se difundiu rapidamente e com
inesperado êxito por toda a Itália.
O padre Pestarino funda a primeira “Pia União”, em Mornese,
no dia 9 de dezembro de 1855. Iniciavam-na cinco moças. A mais
jovem delas era Maria Domingas Mazzarello, de 18 anos.
Maria tem uma amiga com a qual não tem segredos. Chama-se
Petronilla, é Filha da Imaculada também e traz o mesmo sobrenome,
Mazzarello. Um dia, em 1861, Maria lhe diz:
– Tomei a decisão de ser costureira. Quando souber bem, abrirei
uma pequena oficina e ensinarei as meninas pobres a costurar. Gos-
taria de ser costureira também? Ficaremos juntas, viveremos como
numa família.
Passa-se um ano. Maria e Petronilla acabam de abrir uma peque-
na oficina de costura no fim do povoado. Frequenta-a uma dezena
de meninas. Eis, porém, que uma novidade transtorna tudo.
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Quatro olhos espantados
1863. Pleno inverno. As menininhas, protegendo-se da neve com
tamancos e guarda-chuvas, acabam de sair para casa, quando Maria
e Petronilla ouvem bater à porta. Veem-se diante de um vendedor
ambulante que ficou viúvo com duas meninas. Pede que fiquem
com elas. Não só de dia, mas também de noite, porque ele tem de
viajar e, por isso, não poderá cuidar delas. As meninas estão ali:
quatro olhinhos espantados. A maiorzinha tem 8 anos, a menor, 6.
Petronilla toma pela mão a primeira, Maria pega nos braços a segun-
da. Acendem um grande fogo na lareira.
Assim, sem nenhum “plano preestabelecido”, a pequena oficina
de costura se transforma, a partir daquela noite, em casa de meni-
nas pobres. Maria e Petronilla saem a bater na porta de vizinhos
para pedir emprestadas duas caminhas e um pouco de farinha para
fazer a polenta.
Quando em Mornese o povo fica sabendo que as Mazzarellos “re-
cebem em casa meninas órfãs”, vai um grupo de pessoas levar-lhes
um feixe de lenha, um par de cobertores, meio saco de farinha. Mas
levam também outras meninas que precisam de casa. Em pouco
tempo são 7.
Antes de começar o serviço na oficina, as meninas rezam uma
Ave-Maria. Quando o campanário soa as horas, Maria comenta:
“Uma hora a menos no mundo! Uma hora mais perto do Céu!”. E
quer que as suas pequenas costureiras trabalhem para Deus: “Que
cada ponto seja um ato de amor de Deus”.
Também aos domingos, Maria quer “fazer o bem a todas as meni-
nas do lugar”. Nasce, assim, uma espécie de oratório. Nos dias san-
tos, as duas amigas reúnem as crianças, acompanham-nas à igreja,
mantêm-nas alegres com jogos e passeios.
Um baixinho em busca de trabalho
O padre Domingos Pestarino nascera em Mornese. Fora orde-
nado sacerdote no seminário de Gênova com 22 anos. Ficara, por
algum tempo, trabalhando no seminário. Mas aos 30 voltara à sua
terra, para ajudar o velho pároco. Fez, do púlpito, aos seus conterrâ-
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39.3 Page 383

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neos, sua apresentação com estas palavras: “Procuro trabalho. Não
nas vinhas, mas aqui, na igreja, na vinha do Senhor. Foram-me ofe-
recidos vários cargos, mas, se me derem o trabalho que procuro,
ficarei aqui no meio de vocês.
Com Dom Bosco encontrou-se a primeira vez em Gênova, na
casa do padre Frassinetti. O encontro decisivo, todavia, se deu no
trem, enquanto viajavam de Ácqui a Alessandria. Dom Bosco con-
vidou-o a visitá-lo no oratório de Valdocco. Pestarino lá apareceu
alguns meses depois.
A vista de tantos rapazes que cresciam alegres numa escola de
trabalho e de fé entusiasmou o “padrezinho”. Disse a Dom Bosco:
“Fique comigo”. Dom Bosco aceitou que se fizesse salesiano (e, de
fato, no ano seguinte o padre Pestarino faria a profissão religiosa),
mas quis que ficasse em Mornese, onde muitas coisas importantes
precisavam dele. O relacionamento com Dom Bosco, em todo caso,
resultou em colaboração e dependência: o padre Pestarino esteve
presente, desde então, às reuniões dos diretores salesianos.
Em Mornese, entretanto, há outra novidade. Mais duas “Filhas da
Imaculada” pedem a Maria e Petronilla para “fazer como elas”. Con-
sultam o padre Pestarino, que responde: “Por que não? Sozinhas,
vocês já não dão conta.Têm tanto que fazer”. Forma-se, assim, uma
espécie de comunidade: as quatro Filhas, como são chamadas na
aldeia, ensinam costura às pequerruchas, fazem de mães para as 7
que vivem com elas dia e noite.
1864. Como acenamos no capítulo 37, Dom Bosco chega a Mor-
nese com os seus jovens, durante os passeios outonais. Ali fica cin-
co dias. Maria Mazzarello ouve a conferência que faz às Filhas da
Imaculada. Todos os dias consegue ouvir a “boa-noite” que dá aos
seus rapazes. Há quem a censure por isso, achando que o fato é in-
conveniente. E ela responde: “Dom Bosco é um santo: eu o sinto”.
No ano seguinte, as Filhas de Maria SS. Imaculada dividem-se
em dois grupos: as que se decidiram por levar vida comum, junto
com Maria e Petronilla, passam a morar numa casa melhor, prepara-
da pelo padre Pestarino, perto da paróquia, e chamam-se Filhas da
Imaculada; as outras, que, como Ângela Maccagno, preferem viver
com a família, chamam-se Novas Ursulinas.
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39.4 Page 384

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Um caderninho que se perdeu
Os habitantes de Mornese que moram no local chamado Borgo
Alto estão construindo um colégio para as suas escolas. Dom Bosco
prometeu mandar os seus salesianos logo que o terminassem.Toda
a vila ajuda nos trabalhos, com ofertas e com prestação gratuita de
mão de obra.
1867. A construção da capela do colégio está terminada. Em de-
zembro Dom Bosco celebra a primeira Missa. Invoca “sobre o colé-
gio nascente e o povo de Mornese as bênçãos de Deus”. Para na vila
quatro dias e faz uma conferência particular ao pequeno grupo das
Filhas da Imaculada.
1869. Dom Bosco encurta os prazos para a fundação da sua “se-
gunda família”. Já concentrou seus planos nas “Filhas” simples de
Mornese e manda, sem muito barulho, a Maria e Petronilla um ca-
derninho “escrito de próprio punho, contendo um horário e um
pequeno regulamento, para que, junto com as meninas, comecem
uma vida mais regular” (Memórias Biográficas, vol. X, p. 591).
O caderninho se perdeu. Mas a irmã Petronilla se lembra que “se
davam estes conselhos: procurar viver habitualmente na presença
de Deus; rezar frequentemente orações jaculatórias; ter um modo
de agir doce, paciente e amável; assistir atentamente as meninas,
mantê-las sempre ocupadas e fazê-las crescer para uma vida de pie-
dade simples, sincera e espontânea (Memórias Biográficas, vol. X,
p. 592).
1870. Dom Bosco vai passar três dias em Mornese, não só para
um breve descanso, mas também para observar de perto a vida das
“Filhas”. Quer ver o efeito do seu “caderninho” em suas vidas. Ficou
plenamente satisfeito.
1871. 30 de janeiro. Realiza-se no oratório a reunião dos diretores
salesianos. Dela participa também o padre Pestarino, que fala sobre
o andamento de Mornese.
24 de abril de 1871. Dom Bosco tem uma reunião com o Ca-
pítulo da Congregação. Estão presentes os padres Rua, Cagliero,
Sávio, Ghivarello, Durando e Álbera. Anuncia tê-los convocado
para um “assunto de grande importância”. Eis suas palavras, co-
lhidas da ata:
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Muitas pessoas exortaram-me repetidamente a fazer também pelas
meninas o pouco de bem que, pela graça de Deus, fazemos pelos meninos.
Se devesse ater-me somente à minha inclinação, não me lançaria a esse
gênero de apostolado. Receio, porém, contrariar um plano da Providência.
Convido-os, portanto, a refletir diante de Deus, para podermos tomar a
deliberação que for da maior glória de Deus e vantagem para as almas.
Durante este mês as nossas orações tenham por finalidade obter de Deus
as luzes necessárias para este importante empreendimento.
Quando faltava a farinha para a polenta
Felicina Mazzarello, irmã de Maria, lembrava assim a vida daque-
les primeiríssimos tempos:
Muitas vezes faltava à pequena comunidade o alimento necessário. Faltava
até farinha para a polenta. E quando havia, faltava lenha para fazê-la.
Maria, então, saía pelos campos com alguma Filha a catar lenha seca em
alguma mata. Voltava depois com a carga às costas para fazer a comida.
Pronta a polenta, levava-a ao pátio numa travessa, depunha-a no chão e
convidava as companheiras ao lauto banquete. Faltavam pratos e talheres,
mas sobravam apetite e alegria.
Pelo fim de maio de 1871, Dom Bosco reuniu novamente o Capí-
tulo e pediu o parecer de cada um. Todos julgaram muito oportuna
a iniciativa em favor da juventude feminina. Dom Bosco concluiu:
Pois bem, agora podemos estar certos de que é da vontade de Deus que
nos ocupemos também das meninas. E para concretizar alguma coisa,
proponho que se destine a essa obra a casa que o padre Pestarino está
terminando em Mornese.
Em meados de junho, o padre Pestarino é convocado com ur-
gência por Dom Bosco. O relato que Pestarino deixou do encontro
é muito calmo. Aliás, burocrático. O diálogo deve ter sido bem di-
ferente, aceso e contrastado, uma vez que a irmã Petronilla recor-
dava: “Enquanto das outras vezes ao retornar de algum encontro
com Dom Bosco parecia beatificado, desta vez voltou pensativo,
perturbado, aflito”.
Dom Bosco – diz o relato do padre Pestarino – expôs o desejo de pensar
na educação cristã das meninas do povo. E declarou que achava Morne-
se o lugar mais adequado. De fato, estando ali as Filhas da Imaculada,
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poder-se-iam escolher aquelas que fossem chamadas a levar vida comum
e retirada do mundo para começar o Instituto das Filhas de Maria Auxi-
liadora, para o bem de tantas meninas do povo. Sem nenhuma hesitação
– é sempre o relato que o afirma –, o padre Pestarino respondeu: Se Dom
Bosco aceita a sua direção e proteção, eu estou em suas mãos.
Nesse tempo, junto com Maria e Petronilla, já estavam também
Teresa Pampuro, Catarina Mazzarello, Felicina Mazzarello, Giovan-
nina Ferretino e as meninas Rosina Mazzarello Baroni, Maria Gros-
so, Corina Arrigotti.
As dificuldades que tornavam o padre Pestarino “pensativo e
perturbado” eram especialmente duas:
1. a nenhuma dessas excelentes jovens cristãs lhes passara ja-
mais pela cabeça a ideia de se fazerem freiras;
2. Dom Bosco queria destinar o colégio de Borgo Alto para sede
das nascentes Filhas de Maria Auxiliadora, quando o povo havia
trabalhado pensando em construir um colégio para escola de rapa-
zes: a mudança iria causar uma meia revolução.
O parecer do papa e o mau humor da vila
Naquele mesmo junho de 1871, Dom Bosco foi a Roma e expôs o
seu novo projeto a Pio IX. Depois de pedir alguns dias para “pensar
no assunto”, o papa lhe disse:
Seu desígnio parece-me ser segundo Deus. Acho que essas irmãs devem
ter como fim principal a instrução e a educação das meninas, tal como
os salesianos fazem com os meninos. Dependam do senhor e de seus
sucessores. Pense, nesse sentido, nas suas Constituições, e comece a
experiência. O mais virá depois.
29 de janeiro de 1872. Por ordem de Dom Bosco, o padre Pes-
tarino reúne as 27 Filhas de Maria Auxiliadora para que elejam a
sua primeira superiora; 21 votos são para Maria Mazzarello. Estarre-
cida, pede imediatamente às companheiras que a dispensem. Mas
elas insistem e o padre Pestarino decide submeter tudo à vontade
de Dom Bosco. Maria sente-se aliviada: Dom Bosco sabe que ela é
incapaz e, por certo, a dispensará. Dom Bosco, porém, conhece a
sua capacidade e, para sua grande desolação, confirma-a no cargo.
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39.7 Page 387

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Agora é preciso dar às Filhas uma residência estável. E como
fará Pestarino para não provocar o descontentamento do povoado?
Vem-lhe em socorro um incidente. A casa do pároco ameaça ruir. O
Conselho Comunal resolve pô-la abaixo e refazê-la. Roga, entretan-
to, ao padre Pestarino que coloque à disposição do pároco a casa
que possui ao lado da igreja.
– E as Filhas, que dão aulas de costura e têm meninas pobres
internas, aonde as mandarei? – objeta o sacerdote.
Na Prefeitura se pensa nisso e sugerem:
– Mande-as a Borgo Alto. O andar térreo já está pronto e ainda
não mora ninguém.
O padre Pestarino respira fundo: mandam-lhe fazer o que não
ousava pedir. As Filhas fazem a mudança em carros de campo, le-
vando consigo até os casulos do bicho-da-seda, uma das suas pau-
pérrimas entradas.
Na hora, a mudança não causou a mínima admiração. Mas apenas
se espalhou a notícia de que as Filhas (cujo número aumentava ra-
pidamente) iriam ficar no colégio para sempre, iniciando um novo
Instituto religioso, “houve murmuração e queixa geral” (Memórias
Biográficas, vol. X, p. 613).
Morand Wirth escreve mais explicitamente: “Os habitantes de
Mornese sentiram-se traídos. Foi num clima de incompreensão,
quase de hostilidade, que as Filhas de Maria Auxiliadora se inicia-
ram na vida religiosa. A tudo acresciam pobreza e privações, que
eram grandes”.
Na vila correu o boato de que a coisa não iria durar muito – escrevia a irmã
Felicina Mazzarello. – E, humanamente falando, de vez que faltava tanta
coisa, era o que devia acontecer. Maria Domingas, porém, não perdeu
a cabeça. Continuou a sua vida dura e de sacrifício. Não estando ainda
acabada a construção, passava o dia a juntar pedras. E a lavagem da roupa?
O rio Roverno fica um pouco longe da vila. Chegado o dia de lavar a roupa,
Mazzarello pegava pão, ou mesmo algumas fatias de polenta, e lá se ia ao
rio com mais alguma outra. Ali faziam todo o trabalho. Voltava cansada.
Também molhada. E enquanto mandava as demais vestir roupa enxuta, ia
preparar-lhes algo quente para comer. Era mãe amorosa.
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39.8 Page 388

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O cheiro das castanhas
5 de agosto de 1872. As primeiras 15 Filhas de Maria Auxiliadora
recebem o hábito religioso. Onze fazem os votos trienais. Inclusive
Maria Mazzarello.
Dom Sciandra, bispo de Ácqui, entrega o crucifixo às 15 irmãs:
“Recebei, amadas filhas, a imagem do vosso dileto Jesus. Ele vos
será de conforto nas dificuldades que encontrardes”.
Dom Bosco assiste à vestidura e à profissão. Depois, com afe-
tuosa simplicidade, diz:
– Vejo com meus próprios olhos que estão aflitas: todos as per-
seguem e riem-se de vocês. Os próprios parentes lhes viram as cos-
tas. Não se assustem. Leram, no ofício de Nossa Senhora: “O meu
nardo exalou suave perfume”. Sabem quando é que o nardo exala
suave perfume? Quando bem pisado. Não fiquem tristes, portanto,
minhas caras filhinhas, por serem assim maltratadas, agora, no mun-
do. Tenham ânimo. Consolem-se. Porque só deste modo se tornarão
capazes de realizar a sua missão. Se viverem dignas da sua condi-
ção, poderão fazer um grande bem às suas almas e às almas de seu
próximo.
A pobreza continuou a tocar os limites da miséria: “prato forte”
da comunidade é polenta e castanhas secas cozidas. “Começáva-
mos a sentir-lhe o cheiro – recordava uma irmã daqueles primeiros
tempos – horas antes da refeição. Fazia-nos desfalecer.”
O travesseiro de muitas irmãs era um toco de madeira enrola-
do em farrapos; os verdadeiros travesseiros iam para as meninas.
Mazzarello não queria que as irmãs mais jovens fizessem tal morti-
ficação. Mas não podia falar muito: fora ela a excogitar o sistema...
A morte bate à porta
29 de janeiro de 1874. A morte visita o colégio pela primeira vez.
Foi-se a Maria Poggio, uma jovem irmã do primeiríssimo grupo,
alegre e sempre pronta a ajudar, a servir e a assistir as doentes de
noite. Passara muita fome e tanto frio naquele inverno! Partiu em
silêncio. Sem incomodar ninguém.
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O funeral daquela jovem irmã de Mornese reuniu todo o povoa-
do. “Muitos choravam”, lembrava o padre Pestarino. Foi o momento
da paz entre o povo e aquelas mocinhas esqueléticas que desfila-
vam vestidas de freiras, rezando o terço. Daquele dia em diante, nun-
ca mais faltou na despensa farinha de milho para a polenta ou de
trigo para o pão.
Assim mesmo, a morte voltou a bater àquela casa.
No dia 15 de maio, o padre Pestarino estava lendo para as irmãs
uma página sobre a brevidade da vida. Dizia: “Pode ser que a morte
me surpreenda daqui a um ano, daqui a um mês, a uma semana, a
um dia, a uma hora, e, quem sabe, apenas ao findar esta leitura...”.
Nesse instante, o padre começou a chorar. As irmãs ficaram muito
aflitas.
Às 11 horas, enquanto trabalhava, o padre Pestarino caía por ter-
ra. Poucas horas depois, morria. Tinha 57 anos.
Partem três debaixo de neve
9 de fevereiro de 1876. Polvilhada de neve miúda, partem as 3
primeiras irmãs. Vão a Vallecrosia, na Ligúria, para abrir um orató-
rio e uma escola para meninas.
29 de março. Outras 7 irmãs partem para Turim.A 50 metros do
oratório de Valdocco, dão início a um oratório e a uma escola femi-
nina. A casa tornar-se-á por mais de quarenta anos a sede central das
Filhas de Maria Auxiliadora.
Durante o ano de 1876, outras 26 irmãs partem de Mornese: vão
abrir escolas e oratórios em Biella, Alassio, Lu Monferrato, Lanzo
Turinese. Sete vão a Séstri Levante; fundam a primeira colônia ma-
rinha, para 100 meninas e meninos escrofulosos. No meio daqueles
rostinhos repugnantes trabalha, com alegria serena, também a irmã
Henriqueta Sorbone, jovem órfã que chegara a Mornese puxando
pela mão mais 4 irmãzinhas.
1878. As Filhas de Maria Auxiliadora já são uma família numerosa,
espalhada pelo mundo inteiro. O centro da Congregação, por or-
dem de Dom Bosco, se transfere de Mornese para Nizza Monferrato.
É uma separação dolorosa para Maria Mazzarello: um adeus ao pai
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39.10 Page 390

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e à mãe já idosos, ao cemitério onde repousam o padre Pestarino e
algumas das primeiras colegas, à casa humilde onde ensinou a cos-
turar às primeiras meninas.
O fato de ser superiora-geral nunca fez Maria Mazzarello perder
o sentido das proporções: continuou a assistir as meninas mais pe-
quenas no dormitório, com olhar amoroso e atento. Uma garotinha,
cujas frieiras haviam colado num só bloco pés, meias e sapatos,
correu o olhar ao redor para ver se ninguém a estava observando e
enfiou-se debaixo das cobertas com sapato e tudo. A Madre perce-
beu a manobra. Não disse nada. Desceu à cozinha, pegou de uma
bacia de água morna, gaze e algodão. Levou tudo para perto da
cama da menina e disse baixinho:
– Deixe-me ver esses pezinhos. Não tenha medo. Não vou ma-
chucar.
Com as flores de maio, também a morte
Janeiro de 1881. As irmãs começam a notar que a saúde da Ma-
dre declina. Alguém lhe sussurra que deve cuidar da saúde, mas ela
responde sorrindo:
– É melhor para todas que eu me vá. Assim elegerão para supe-
riora alguém mais hábil que eu.
A saúde desmorona enquanto acompanha um grupo de Filhas
missionárias que vão partir para a América. Devido a contratempos,
teve que passar uma noite encolhida num canto, tremendo de fe-
bre. De manhã, não consegue levantar-se. Só mais tarde, com gran-
de esforço, acompanha ao porto as filhas que partem. Poucas horas
depois, suas forças estão à deriva.
“Pleurite grave” declara o médico. Quarenta dias de febre, longe
de casa, martirizada pelas aplicações de ventosas, único remédio
conhecido naqueles tempos, e que lhe esfolam as costas.
Depois, a febre desaparece. Mas o médico é claro até à brutalida-
de: só mais uns poucos meses de vida.
Voltando a Nizza Mare, encontra-se com Dom Bosco e lhe diz:
– O médico foi muito claro. Mas eu lhe pergunto: posso ainda ter
esperança de cura?
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Dom Bosco respondeu contando-lhe uma parábola: “Certo dia,
a morte foi bater à porta de um mosteiro. A cada irmã que achava
dizia: ‘Venha comigo’. Mas todas se esquivavam, alegando que ti-
nham muitas coisas para fazer. Então se apresentou à superiora e
disse: ‘Cabe a você dar bom exemplo. Venha’. A superiora teve de
abaixar a cabeça e obedecer”.
Madre Mazzarello compreendeu. Abaixou a cabeça. Sorriu.
Pálida e fraca chega a Nizza Monferrato, acolhida com tal festa
que se comove. Agradece com poucas palavras:
– Neste mundo, seja o que for que aconteça, não nos devemos
alegrar nem entristecer demais. Estamos nas mãos de Deus, que é
nosso Pai. E devemos estar sempre prontos a fazer a sua vontade.
O fim chega na primavera. Pelos vidros da janela viam-se o verde
e as flores. E ela gosta de ouvir o vozear das meninas que correm e
brincam despreocupadas.
Quer ainda falar com suas irmãs:
– Queiram-se bem. Fiquem sempre unidas.Abandonaram o mun-
do: não vão fazer outro aqui dentro. Pensem no “por que” entraram
na Congregação.
Sofria muito. Mas até o fim não quis entristecer ninguém. Tentou
até cantar.
Buscou-a Deus às 3h45 do dia 14 de maio de 1881. Pôde ainda
murmurar: “Até o céu!”.
Tinha 44 anos.121
Sucedeu-lhe à frente das FMA uma irmã muito jovem, Catarina
Daghero, de 25 anos. Entrara com 18 e Madre Mazzarello ajudara-
-a a superar as saudades e a dureza dos primeiros dias. Em 1879,
tornara-se diretora da obra de Turim.A proximidade de Dom Bosco
tinha como que despertado seu espírito empreendedor pelo ora-
tório e pela escola, revelando qualidades profundas: solidez, equilí-
1 Maria Domingas Mazzarello (1837-1881), beatificada em 1938 por Pio XI, canonizada em 1951 por
Pio XII (N.T.).
390

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brio, bondade. Sob seu impulso, as FMA aumentaram sua presença
na Itália, na França, na América do Sul. E à morte de Dom Bosco
(1888), já haviam andado um longo caminho: 50 casas, 390 irmãs,
uma centena de noviças.
391

40.3 Page 393

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42
A conquista de Roma e o sobressalto do fim
Em 1870 verificaram-se dois fatos de extraordinária importância
para a história da Igreja e da Itália: o Concílio Vaticano I e a ocu-
pação de Roma pelo exército italiano.
Concílio em Roma, anticoncílio em Nápoles
O Concílio abriu-se oficialmente no dia 8 de dezembro de 1869.
Os objetivos principais indicados por Pio IX eram dois: a exposição
clara da doutrina católica diante dos erros modernos e a definição
da infalibilidade do papa.
Fazia trezentos anos que se realizara o último Concílio, o de Tren-
to. Pio IX dirigiu calorosos apelos aos bispos das igrejas cismáticas
orientais para que participassem. As respostas foram negativas e
pouco corteses.
Também os protestantes foram convidados. Mas a frase do con-
vite acenava à “boa ocasião para reentrar no único redil de Cristo”.
E soou muito mal aos seus ouvidos.
A maçonaria italiana, em fase de anticlericalismo virulento, pro-
clamou um “anticoncílio” em Nápoles e recebeu as primeiras ade-
sões de José Garibaldi e do escritor francês Vitor Hugo.Também em
várias províncias organizaram-se manifestações populares por “uma
guerra implacável ao papa”.
Os bispos presentes à abertura de Concílio eram: 200 italianos,
70 franceses, 40 austro-húngaros, 36 espanhóis, 19 irlandeses, 18
alemães, 12 ingleses, 50 orientais, 40 estadunidenses, 9 canadenses,
mais 100 de outros países e de terras missionárias. Com os bispos,
estavam presentes também os superiores das ordens e das congre-
gações religiosas. Ao todo, cerca de 700 “padres conciliares”.
A 20 de janeiro de 1870, Dom Bosco partiu para Roma. Chegou
no dia 24.Aos 8 de fevereiro manteve dois longos colóquios priva-
dos com o papa. Pio IX pediu-lhe que espalhasse entre o povo um
opúsculo de história eclesiástica que pusesse em evidência a infa-
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40.4 Page 394

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libilidade do papa. Dom Bosco iria satisfazer esse desejo no fim do
ano: expediu a todos os assinantes das Leituras Católicas uma nova
edição da sua História Eclesiástica, com uma parte final dedicada
ao Vaticano I e à infalibilidade pontifícia.
“A voz do Céu ao Pastor dos Pastores”
Na audiência seguinte (a 12 de fevereiro), Dom Bosco entregou
ao papa algumas páginas de “previsões sobre o futuro”. Nas primei-
ras linhas estava escrito:“Na véspera da Epifania deste ano de 1870,
desapareceram os objetos materiais do quarto e me vi a considerar
coisas sobrenaturais. Questão de poucos instantes. Mas pôde-se ver
muita coisa”.
O estilo da exposição (conserva-se o autógrafo de Dom Bosco) é
imaginoso, profético. Mistura invectivas, previsões, apelos, frequen-
temente misteriosos e confusos. A parte que mais impressionou o
papa (e que parece bastante clara também para nós) é a seguinte:
Agora a voz do Céu é para o Pastor dos Pastores. Tu estás na Grande
Reunião com teus Assessores; mas o inimigo do bem não descansa um
instante sequer. Levanta todas as maquinações contra ti. Semeará a
discórdia entre os teus Assessores; suscitar-te-á adversários entre os meus
filhos. As potências do século vomitarão fogo e quereriam que as palavras
fossem sufocadas na garganta dos Guardas da minha lei, mas tal não se dará:
prejudicarão a si mesmos. Tu, pois, apressa-te: se não puderes resolver
as dificuldades, corta-as. Embora angustiado, não te detenhas. Segue em
frente, até que se corte a Cabeça da Hidra do erro. O golpe fará tremer a
terra e o inferno, mas o mundo estará a salvo e todos os bons exultarão.
Reúne, pois, em torno de ti os teus Assessores, ainda que fossem só dois.
Mas, aonde quer que tu vás, continua e termina a obra que te foi confiada.
Os dias correm velozes. Teus anos avançam para o fim. Mas a Grande
Rainha será sempre o teu auxílio. Também no futuro, como o foi no
passado, será sempre o magnum et singulare in Ecclesia praesidium (o
grande e poderoso auxílio da Igreja).
Vinte linhas adiante, Dom Bosco fala do futuro do papa:“Agora
está velho, fraco e inerme. Despojado embora, fará tremer, com sua
palavra cativa, o mundo inteiro” (a ocupação do Estado Pontifício
só se daria em 20 de setembro de 1870).
393

40.5 Page 395

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Negras ameaças sobre a França
A página que, no momento, pareceu mais incompreensível dizia
respeito à França. Naqueles meses, Napoleão III era ainda o sobe-
rano mais poderoso da Europa. A desastrosa guerra com a Prússia
(início em 19 de julho de 1870) e o massacre da “Comuna de Paris”
(março-maio de 1871) eram, então, de todo impensáveis. Eis as pa-
lavras escritas por Dom Bosco:
As leis da França já não reconhecem o Criador, e o Criador dar-se-á a
conhecer visitando-a três vezes com a vara do seu furor.
Há de abater-lhe a soberba com as derrotas,com o saque e com a destruição
das colheitas, dos animais e dos homens... Os teus inimigos te cingirão de
angústia, de fome, de pavor, e serás abominada pelas nações. Mas, ai de ti,
se não reconheceres a mão que te flagela!... Cairás em mãos estrangeiras.
Os teus inimigos verão de longe os teus palácios arderem em chamas.Tuas
casas acabarão num amontoado de destroços, banhados no sangue dos
teus bravos já mortos.
Nos dias seguintes, Dom Bosco encontrou-se com muitos bispos
e valeu-se do prestígio de que gozava para encorajá-los a acelerar a
definição da infalibilidade. Parece que a intervenção mais insistente
tenha sido com dom Gastaldi, então bispo de Saluzzo e seu grande
amigo.
O padre Lemoyne afirma que Pio IX ficou “tão satisfeito com o
zelo de Dom Bosco, que um dia lhe disse: ‘Não poderia deixar Turim
e vir morar em Roma? Perderia alguma coisa a sua Sociedade?’.‘Seria
a sua ruína, Santo Padre!’” (Vida de São João Bosco, vol. II, p. 44).
Aos 22 de fevereiro, Dom Bosco deixou Roma. E em 24 de abril,
o Concílio aprovou unanimemente o documento Dei Filius. É uma
exposição densa e clara da doutrina católica sobre Deus, sobre a
Revelação e sobre a fé. Sublinha especialmente a ideia de que a ci-
ência e a fé, se forem entendidas retamente, não podem entrar em
conflito, pois ambas promanam de Deus.
Infalível o papa?
A 15 de maio, na aula conciliar, começa o debate sobre a infalibi-
lidade do papa.A discussão geral continua até 4 de junho. O cardeal
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Bonnechose escreve, nesse dia, em seu diário:“Dir-se-ia que embar-
camos para uma navegação difícil, a bordo de uma nave sacudida
pelas ondas e na qual estamos todos mareados”.
Os padres conciliares estavam divididos em duas correntes que
se enfrentavam num debate áspero dentro e fora do Concílio. A
maioria era pela infalibilidade.A minoria (uns sessenta entre bispos
alemães, franceses, italianos e americanos) via na definição um gra-
ve obstáculo para a aproximação das Igrejas protestantes. Pio IX fez
sentir várias vezes o peso de sua autoridade em favor da definição.
No dia 18 de julho o Concílio aprovou o texto referente à infa-
libilidade. “Foi dia de chuva torrencial sobre Roma e de repetidos
temporais violentíssimos – lembrava uma testemunha. – Enquanto
dom Valenziani lia o texto, as janelas eram sacudidas pelos trovões
e, quando não havia a luz dos relâmpagos, reinava uma oprimente
escuridão.”
A decisão do Concílio, subscrita pelo papa, define como dogma
de fé esta verdade:
O Romano Pontífice, quando fala ex cáthedra, isto é, quando, exercitando
o ofício de pastor e doutor de todos os cristãos, em força da sua autoridade
apostólica, define uma doutrina referente à fé ou aos costumes como
vinculante para toda a igreja, graças à autoridade divina a ele prometida
na pessoa de Pedro, goza daquela infalibilidade de que o divino Redentor
quis dotada a sua Igreja. Por isso, essas definições do Romano Pontífice são
imutáveis por si mesmas, não em força do consenso da Igreja.
Terminadas as sessões da infalibilidade, estabeleceu-se uma pau-
sa de quatro semanas. Dever-se-ia recomeçar o Concílio com a dis-
cussão sobre os bispos. Mas graves acontecimentos se anteciparam
na Europa.
Os bersaglieri na Porta Pia
19 de julho. Napoleão III declara guerra à Prússia. Descalabro.
As derrotas francesas sucedem-se, uma à outra, até Sedan (2 de se-
tembro), em que cai prisioneiro o próprio Napoleão. A França não
se rende. Proclama a república, transfere o governo para Tours, mas,
por fim, deve dar-se por vencida. A paz humilhante é firmada em
Frankfurt, em maio de 1871, após Paris tentar transformar-se numa
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república de tipo jacobino (a “Comuna”) e ser ferozmente esmaga-
da pelas próprias tropas francesas (14 mil mortos).
Derrotado Napoleão em Sedan, o governo italiano sentiu-se “de
mãos livres” em relação a Roma. Apoderara-se do Vêneto com uma
infeliz “terceira guerra da independência” (1866). Agora 60 mil ho-
mens, sob o comando do general Rafael Cadorna, receberam ordem
de se concentrarem nos confins do Lácio para conquistar Roma. O
exército pontifício, às ordens do general Kanzler, confiava em 14,6
mil homens.
Muitos, naquelas difíceis circunstâncias, aconselharam Pio IX a
deixar a cidade. Um navio inglês estava pronto para transportá-lo a
Malta. Outros sugeriam a Espanha, os Estados Unidos. O papa, que
considerava um erro a sua fuga para Gaeta em 1848, estava decidi-
do a ficar. Em todo caso, fez consultar algumas pessoas de sua con-
fiança. Também Dom Bosco, cuja inspiração apreciava ao máximo,
interpelado sobre o que conviesse fazer, respondeu: “A sentinela, o
Anjo de Israel, fique no seu posto, guardando a cidadela de Deus e
a Arca Santa”. A carta, expedida a Roma com urgência, fora passada
a limpo pelo padre Cagliero.
Civitavecchia, atacada por terra e bloqueada por mar, rendeu-se
a Nino Bixio na noite de 15 de setembro. Entrementes, as tropas de
Cadorna já haviam entrado no Lácio e cercado Roma.
Às 5h30 de 20 de setembro, uma bateria da divisão Angioletti
abriu fogo contra a Porta San Giovanni. Era uma ação diversiva: o
“verdadeiro” objetivo era a Porta Pia. Os bersaglieri abriram cami-
nho penetrando no parque de Vila Patrizi, desalojando os fuzileiros
que perturbavam o avanço da artilharia. Chegando à via Nomen-
tana, a artilharia italiana abriu fogo sobre a Porta Pia. Antes das 9,
abrira-se nas muralhas uma brecha de 30 metros. Por ela penetra-
ram o 12o e o 34o de atiradores.
Dois ou três minutos antes das 10, chegou sobre a mesa do papa
a comunicação da queda das muralhas. Segundo plano preestabele-
cido, o papa deu ordens para que sobre o Castel Sant’Ângelo fosse
alçada a bandeira branca e expediu ao general Kanzler a ordem da
rendição.
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O cômputo de perdas humanas deu cifras mínimas, embora, na
verdade, sempre tristíssimas: da parte italiana, 56 mortos e 141 feri-
dos; da parte pontifícia, 20 mortos e 49 feridos.
Contra os responsáveis pela conquista de Roma “ainda que inves-
tidos da dignidade mais soberana”, o papa lançou a excomunhão
maior.
Dom Bosco, escreve o padre Lemoyne, “recebeu a notícia da
tomada de Roma enquanto estava em Lanzo e, com admiração dos
presentes, recebeu-a com tranquilidade, como se ouvisse uma coisa
de há muito conhecida”.
O papa fez chegar às mãos dos padres conciliares ainda presen-
tes em Roma um comunicado: “Nesta lutuosa situação, sabendo
que os padres do Concílio não poderiam ter a necessária liberdade,
segurança e tranquilidade para tratar conosco dignamente das coi-
sas da Igreja... suspendemos a celebração do Concílio Ecumênico
Vaticano”.
O susto de Varazze
A ocupação de Roma, o fim do Estado Pontifício teve enorme
ressonância. Inimaginável.Acabava uma época que durara mil e qui-
nhentos anos. A muitos pareceu o fim da Igreja.
À distância de um ano, também a jovem e delicada Congregação
Salesiana sentiu, por um momento, o sobressalto do fim. De fato, em
6 de dezembro de 1871, enquanto Dom Bosco se encontra na esta-
ção de Varazze, cai por terra desmaiado. Os presentes receiam um
ataque apoplético. Carregam-no à casa salesiana, onde foi preciso
acamá-lo qual criança.
Depois de alguns dias de incerteza, a doença revela-se muito gra-
ve. Com pequenos intervalos, o corpo de Dom Bosco se cobre de
bolhas pequenas e duras. Dores lancinantes e febre que sobe espan-
tosamente. Dom Bosco chega à beira da sepultura. Administram-lhe
o Viático.
Em Turim, reina a consternação. Se Dom Bosco morrer, que
se salvará de sua obra? O padre Rua, seu braço direito, só tem 34
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anos. Muitos salesianos oferecem, nesses dias, a própria vida por
Dom Bosco. Parece que mais tarde tenha dito:“Eu devia morrer em
Varazze. Os anos que vieram depois são um presente de Deus a
alguns dos meus filhos”.
A doença durou dois meses. As notícias, de começo, são tão alar-
mantes que, para não perturbar a vida do oratório, são mandadas só
por telegrama, com frases de preferência genéricas.
Mas é justamente este particular que cria a ocasião para um dos
mais comoventes testemunhos do amor que circunda Dom Bosco.
Entre Varazze (aonde desceu, para cuidar de Dom Bosco, Pedro
Enria, o órfãozinho da cólera de 1854) e José Buzzetti (que em Tu-
rim freme porque não tem notícias precisas sobre a saúde do “seu”
Dom Bosco) entra em função uma espécie de “correio clandesti-
no”. As cartas desses dois “ex-meninos” de Dom Bosco são pobres,
cheias de lugares-comuns, mas contêm um afeto dulcíssimo, abso-
lutamente genuíno.
As cartas dulcíssimas
Transcrevemos alguns fragmentos.
23 de dezembro. Enria a Buzzetti:
É com suma dor que devo dar-lhe notícias não lá tão boas do nosso pobre
pai. Hoje a febre não o deixou um instante. Passou o dia encharcado, tanto
suou. Assustou-me muitas vezes porque, sonhando, gemia alto. Corria
para ele, mas ele me dizia que não era nada.
Ah!, caro Buzzetti, já não consigo escrever de tanta dor que sinto. Por
favor, diga aí que rezem, mas de todo o coração, e o Menino Jesus terá
pena de nós. São 2 da madrugada. Agora parece que pegou no sono.
Desejo a todos boas festas. Eu as passarei com o coração condoído ao pé
do leito do meu e seu caríssimo pai.
Buzzetti responde:
Não pude terminar a leitura da sua de 23 por causa da grande dor, do
desgosto e pelas lágrimas que não pude conter ao saber que o caro Dom
Bosco sofre cada dia mais.
Tenho rezado e recomendado a todos que rezem. Disse mesmo ao Menino
Jesus que me faça sofrer a mim todas as dores que sofre Dom Bosco,mesmo
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40.10 Page 400

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que seja a morte, contanto que ele volte a ter saúde e viva por muitos anos.
Continue a escrever. Não tenha medo de me desagradar. Antes, me
desgostaria se deixasse de nos informar, por um dia que fosse da preciosa
saúde do nosso caro pai. Beije-lhe a sagrada mão por mim e diga-lhe que
me abençoe.
3 de janeiro. Enria a Buzzetti:
Caro Buzzetti; a saúde do nosso amoroso pai vai melhorando, mas devagar.
Continuam saindo uns pequenos furúnculos, que incomodam um pouco e
causam também um pouco de febre.
Buzzetti responde:
Caro Pedro, estamos esperando boas notícias. Ontem terminou a novena,
por isso hoje, se Maria Auxiliadora nos achar dignos do seu amor, nos
restituirá são o nosso caro Dom Bosco; em caso contrário, continuaremos
a importuná-la até que for necessário.
Deve saber que aqui faz um frio dos pecados. Todos os dias, há jarros
estourados pelo gelo. A mesma sorte teve o que você tinha lá em cima no
seu quartinho.
Quando Dom Bosco começou a melhorar de fato, Enria mandou
um telegrama a Buzzetti: “Ontem festa. Papai de pé. Sua visita agra-
daria. Hoje bem”. As palavras “Papai de pé” correram o oratório
como um relâmpago, causando grande alegria.
Continuando as melhoras, Enria passa dois ou três dias sem man-
dar notícias. Buzzetti escreve:“Caro Pedro, você está ainda vivo? E
se está, como espero, por que não mantém a promessa de escrever
todos os dias para dar-me notícias do caro Dom Bosco: Veja lá, não
embrome!”.
Enria responde imediatamente: “A saúde de Dom Bosco conti-
nua melhorando. Às vezes exclama: Ah! O dia em que voltarmos ao
oratório”. Depois, comove-se e fica absorto no pensamento daquilo
que experimentará quando retornar à nossa abençoada casa”.
15 de fevereiro. Dom Bosco volta a Turim. Entra no santuário de
Maria Auxiliadora pela porta principal. Dentro da igreja esperam-no
os meninos de Valdocco e muitos amigos. Apenas chegado ao pres-
bitério, Buzzetti entoa o salmo Laudate, pueri, Dominum (Louvai,
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41 Pages 401-410

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41.1 Page 401

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ó meninos, ao Senhor). Ajoelhado aos pés do tabernáculo e de Ma-
ria Auxiliadora, Dom Bosco reza longamente. Depois agradece aos
meninos e convida-os a agradecer a Nossa Senhora.
“Enria ficara ajoelhado no presbitério – lembra o padre Amadei. –
E Buzzetti, tomando-o pelo braço, levou-o para fora”. Abraçaram-se.
E choraram...
400

41.2 Page 402

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43
Cooperadores, Salesianos no mundo
Foi nos anos setenta que se foi concretizando o projeto dos Coo-
peradores Salesianos. Como todas as ideias de Dom Bosco, não
nasceram de improviso: tinha raízes longínquas.
Apenas começou a obra dos oratórios em 1841 – escreveu Dom Bosco
– alguns piedosos e zelosos sacerdotes e leigos vieram ajudar no cultivo
da messe, que desde então se apresentava copiosa na classe dos jovens
periclitantes. Tais colaboradores ou cooperadores foram sempre o
sustentáculo das obras que a Divina Providência punha em nossas mãos.
Adeus ao padre Borel
Em primeiro lugar, Dom Bosco lembra os sacerdotes. Encontra-
mo-los também nós no decorrer de sua história. Antes, no oratório
ambulante. A seguir, em Valdocco. Houve divergências por suas
ideias “malucas”, depois por sua atitude “política”. Mas o amor con-
creto à juventude fez superar barreiras e obstáculos. Pedro Merla,
Luís Nasi, Leonardo Murialdo,122Inácio e José Vola, Jacinto Carpano,
especialmente o padre Cafasso e o “padre baixinho” Borel, estarão
para sempre ligados à obra salesiana, como cooperadores fiéis e
sacrificados de Dom Bosco.
O “padre baixinho” fechou os seus olhos a 9 de setembro de
1873: enquanto se apagava, Dom Bosco chorava ao seu lado. Disse:
“Parecia uma coisa de nada. No entanto, dez bons padres não fa-
riam todo bem que fez este grande operário de Deus”.
Ao morrer, não deixou nem sequer o necessário para o seu se-
pultamento. Mas Dom Bosco sabia quantas vezes lhe tinha esva-
ziado o porta-níqueis nas mãos, pouco importando se nele havia
miúdos ou também marénghi (florins) de ouro. Os diretores sale-
sianos, que Dom Bosco convidara para os seus funerais, levaram aos
ombros o seu caixão. Os clérigos, os jovens, a banda do oratório
1 Leonardo Murialdo (1828-1900), hoje Bem-aventurado.Ajudou Dom Bosco nos oratórios do Anjo da
Guarda e de São Luís. É o fundador dos josefinos (Pia Sociedade Turinense de São José).
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acompanharam-no ao campo-santo. Eram os padres, os clérigos, os
jovens de que Dom Bosco lhe falara quase trinta anos antes, em
1844: “Entretanto existem, porque eu os vejo”.
Homens e mulheres de boa vontade
Ao lado dos sacerdotes, havia os leigos. Uns pertenciam a famí-
lias aristocráticas: o conde Cays (que depois, em idade avançada,
se fará salesiano e sacerdote), o marquês Fassati de Montemagno, o
conde Callori de Vignale, o conde Scarampi de Pruney. Outros eram
simples trabalhadores e comerciantes. Dom Bosco lembrava com
muita gratidão um quinquilheiro, José Gagliardi, que consagrava aos
meninos do oratório o seu tempo livre e as suas economias.
A cooperação desses leigos era bem diversificada. Dom Bosco
encarecia sobretudo a sua disponibilidade para “o ensino do cate-
cismo” nos domingos e, na Quaresma, também nos dias da semana.
Alguns o ajudavam nas escolas noturnas, assistindo os meninos. Ou-
tros iam à cata de bons empregos para os seus rapazes, especialmen-
te para os egressos das prisões.
Não se tratava só de homens. Já acenamos às “mamães” que tra-
balhavam no oratório: Mamãe Margarida e sua irmã, as mamães do
padre Rua, de Miguel Magone, do cônego Gastaldi (futuro arcebispo
de Turim).
Esta última encarregara-se de fazer lavar a roupa dos rapazes e
de distribuí-las aos sábados.“Bem que havia necessidade – lembrava
Dom Bosco. – Entre aqueles pobres rapazes havia alguns que nunca
podiam trocar os trapos de camisa que vestiam, ou andavam tão su-
jos que nenhum patrão queria recebê-los em sua oficina.”
Aos domingos, a senhora Gastaldi reunia os rapazes e,“como um
general do exército”, inspecionava minuciosamente a roupa e o as-
seio de cada um, inclusive as camas, que frequentemente se trans-
formavam em pequenas e malcheirosas tocas...
Muitos cooperavam com trabalho. Outros com dinheiro. Um sa-
cerdote doava, em favor dos meninos mais pobres, todo o dinheiro
que recebia de seus pais abastados. Um banqueiro pagava uma pen-
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41.4 Page 404

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são regular, como se fosse um “interno” de Dom Bosco. Um artesão
levava regularmente as suas economias.
Salesianos externos: bombeados
Dom Bosco foi-se aos poucos convencendo de que seria oportu-
no reunir esses colaboradores numa associação.
Em 1850 fez uma primeira tentativa, juntando 7 homens de con-
fiança,“todos católicos e leigos”. Sem êxito.
1864: segunda tentativa. Nas Regras de sua Sociedade que apre-
sentou em Roma enxertou um capítulo que fez torcer o nariz a
muitos monsenhores. Falava de “salesianos externos”. Qualquer
pessoa, mesmo vivendo no seio da família, poderia tornar-se sale-
siano. Não faria votos, mas colaboraria no trabalho dos salesianos
em favor dos jovens pobres. No artigo 5o previa até que todo sa-
lesiano, que “por motivos razoáveis” deixasse a Congregação, se
tornaria um “membro externo”.
O capítulo foi bombeado. Obstinado como todo bom piemontês,
Dom Bosco reapresentou-o. Primeiro, modificado. Depois, em apên-
dice. Não houve jeito: para obter a aprovação das Regras (só se dará
em 1874) teve de resignar-se a suprimi-lo. Hoje talvez se consideras-
se “uma intuição genial”.
Bombardeado o desígnio dos “salesianos externos”, Dom Bosco
pôs-se logo a trabalhar em algo semelhante. Em 1874 traçou as gran-
des linhas de uma União de São Francisco de Sales. Os diretores
por ele consultados demonstraram pouco entusiasmo: parecia-lhes
uma das tantas confrarias. Dom Bosco meneou a cabeça:
– Vocês não me estão entendendo. Verão que esta União será o
sustentáculo da nossa Sociedade. Pensem nisso.
Os fins principais que Dom Bosco prefixava à União eram três:
– fazer o bem a si mesmo, com o exercício da caridade para
com o próximo, especialmente para com os meninos pobres e
abandonados;
– participar das obras de piedade e de religião a que se dedicam
os salesianos;
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41.5 Page 405

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– reunir meninos pobres, instruí-los na própria casa, defendê-los
dos perigos.
Os Cooperadores Salesianos
No ano de 1876 deu-lhe forma definitiva. A pia União dos seus
colaboradores chamou de Cooperadores Salesianos. Escreveu e im-
primiu rapidamente o regulamento, enviando-o ao papa para a sua
aprovação. Chegou com um “breve” de Pio IX em 9 de maio de 1876.
As finalidades eram idênticas às enumeradas dois anos antes:
fazer o bem a si mesmos com uma vida cristã empenhada, ajudar
os salesianos nos seus empreendimentos, “remover” os males que
ameaçam a juventude.
Os meios sugeridos eram semelhantes aos usados pelos salesia-
nos: catecismos, exercícios espirituais, apoio às vocações sacerdo-
tais, difusão da boa imprensa, oração e esmola.
Esta última palavra causou muitos equívocos. Não poucos sale-
sianos reduziram, de fato, a atividade dos cooperadores ao auxílio
em dinheiro para as suas obras. Dom Bosco interveio energicamen-
te contra esse aviltamento do Cooperador.
É necessário compreender bem a finalidade da pia União – disse em
Toulon, França, em 1882. – Os Cooperadores Salesianos não devem só
recolher esmolas para as nossas obras, mas também valer-se de todo meio
possível para cooperar na salvação dos seus irmãos, especialmente da
juventude.
Nas viagens pela Itália e pelo exterior, Dom Bosco dedicou-se
sobremaneira a aumentar o exército dos seus Cooperadores.
Gênova e a Ligúria forneceram-lhe compactos contingentes – escreve
Morand Wirth. – Na França, Nice tornou-se um centro importante, devido
ao caráter cosmopolita da cidade; em Marselha, os Cooperadores eram tão
entusiastas que, entre eles, Dom Bosco tinha a impressão de achar-se em
família.
Na Espanha, viveu uma das figuras mais características dos
Cooperadores: dona Dorotea de Chopitea.Tornou-se a “mamãe das
obras salesianas” (dela iniciou-se a causa de beatificação).
404

41.6 Page 406

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O Boletim Salesiano chega também a Sotto il Monte
Aos Cooperadores Dom Bosco quis dar um instrumento que ser-
visse para conservá-los unidos entre si e com o centro das obras
salesianas. Foi o Boletim Salesiano, periódico mensal. O primeiro
número saiu em agosto de 1877.
Ao Boletim Dom Bosco ligava tão grande importância que ele
mesmo preparou os primeiros números. Quando já não pôde acom-
panhá-lo, privou os seus colégios de um válido diretor, para pô-lo
nas mãos do padre João Bonetti (que fez parte do Capítulo Supe-
rior). Quando lhe perguntavam “a quem mandá-lo”, Dom Bosco res-
pondia: “A quem quer e também a quem não quer”.
No Boletim publicaram-se as primeiras cartas dos missionários
salesianos, avidamente lidas por jovens e adultos. Numa série de ar-
tigos, publicou-se também a primeira “História do Oratório de Dom
Bosco”, essa também esperada com vivíssima curiosidade. Apare-
ciam regularmente as notícias das obras salesianas espalhadas pelo
mundo, as graças mais insignes de Nossa Senhora Auxiliadora.
Esse modesto fascículo mensal penetrou em toda a parte, con-
quistando muitíssimos amigos para Dom Bosco e para as suas
obras.223O papa João XXIII relembrava:
Os meus primeiros anos foram alegrados e protegidos pela querida imagem
de Nossa Senhora Auxiliadora: uma reprodução muito simples, recortada
do Boletim Salesiano que o tio Xavier recebia e lia para todos nós com
grande emoção.A piedosa imagem lá estava, à cabeceira da cama. Quantas
orações e quantas confidências diante daquela humilde imagem! E Maria
Auxiliadora sempre me ajudou.
Em 1884. Falando com o padre Lemoyne, Dom Bosco externou-
-lhe uma ideia que se viera tornando cada vez mais clara nele: “O
fim direto dos Cooperadores não é o de ajudar os salesianos, mas
sim o de ajudar a Igreja, os bispos, os párocos, sob a alta direção dos
salesianos”.
2 O Boletim Salesiano atualmente é publicado no mundo todo em 55 edições e 29 línguas, com tira-
gem anual estimada em mais de 10 milhões de exemplares no total.
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À morte de Dom Bosco, em 1888 – escreve Morand Wirth –, impunha-se
um fato evidente: a força apostólica da modesta Congregação Salesiana
havia-se multiplicado por dez, graças ao auxílio fraterno dos seus Coopera-
dores. Muitos deles merecem ser considerados de fato, se não juridicamen-
te, verdadeiros salesianos no mundo.
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44
Francisco, Eusébio, Filipe, Miguel
e milhares de outros
Dom Bosco tem 55 anos em 1870. Sua vida, que nos primeiros
decênios fora intensa e vibrante como torrente que desce a
montanha, agora se espraia e se torna caudal majestoso. Os
últimos dezoito anos de vida, minuciosamente registrados em cen-
tenas de quilos de documentos e testemunhos, foram condensados
em 9 volumes das Memórias Biográficas. Dois deles ultrapassam
mil páginas.
É claro que todo biógrafo de Dom Bosco é obrigado a usar de-
cididamente do verbo “descartar”. Os fatos, os encontros, as falas
aos jovens, os sonhos são tocantes, humaníssimos. É uma pena que
se devam preterir às dezenas. Entretanto, o cálculo das páginas faz
com que nos resignemos a cortar, a podar com vigor.
Neste capítulo, porém, nos permitimos pequena vingança: va-
mos dar livre curso à narração de alguns dentre os fatos e encon-
tros desses anos que mais nos tocaram. Pedimos desculpas se não
conseguimos dar-lhes uma certa sequência “lógica”. Nem sempre a
“lógica” é o caminho principal usado pela vida.
“Roubei dois pães”
Agosto de 1872. Soa o sino. Uma turba imensa de rapazes deixa
as salas de aulas e oficinas, gritando:“Merenda!”.
Dois serventes acabam de pôr nos fundos do pátio quatro enor-
mes cestos repletos de pãezinhos frescos, cheirosos...
– “Um só! Um só!” – gritavam os serventes.
Um novato de Pecetto Torinese, Francisco Picollo, 11 anos, olha-
va todo aquele atropelo e aguardava a sua vez. Comera muita sopa
ao meio-dia. Mas, depois, com o passar das horas, o apetite acorda-
ra: achava, por isso, que um pãozinho só era pouco para acalmá-lo.
Quereria duplicar, ao menos, a ração. Mas o oratório era pobre e,
naquele 1872 também o pão não era à vontade.
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Enquanto assim pensava, percebeu que alguns colegas, após en-
fiar no bolso um primeiro pãozinho, retornavam tranquilamente à
fila para um segundo um... terceiro, sem que ninguém percebesse.
Eu também – contava mais tarde Francisco – me deixei vencer pelo apetite,
roubei dois pães e fugi para trás do pórtico para comê-los com avidez. Mas
depois senti remorso.
– Roubei – pensava comigo – e, amanhã, como ousarei fazer a Comunhão?
Preciso ir me confessar!
Mas o meu confessor era Dom Bosco e sabia que ele iria ficar muito triste
se soubesse que eu tinha roubado. Como fazer? Não tanto pela vergonha,
mas para não causar desgosto a Dom Bosco, fugi pela porta da igreja e fui
correndo ao santuário da Consolata, não muito distante.
Entrei na igreja semiescura, escolhi o confessionário mais escondido e
comecei a confissão:
– Vim confessar-me aqui, porque tenho vergonha de confessar-me com
Dom Bosco! (Era uma coisa que eu não precisava dizer, mas eu estava de
tal modo habituado à sinceridade que isso me pareceu importante.) Uma
voz me responde:
– Diga, diga. Dom Bosco nunca virá a saber de nada.
Era a voz de Dom Bosco! Misericórdia! Eu suava frio. Mas se Dom Bosco
estava no oratório, como podia estar aqui? Um milagre? Não. Nada de
milagres. Dom Bosco fora convidado, como de costume, a ouvir confissões
na Consolata e eu fora me encontrar justamente com aquele de quem
desejava fugir.
– Fale, meu filho – me disse com bondade. – Que foi que lhe aconteceu?
Eu tremia que nem vara verde.
– Roubei dois pães!
– Dois pães!
– É!
– E lhe fizeram mal?
– Não.
– Nesse caso, não se incomode. Estava com fome?
– Sim.
– Fome de pão e sede de água: boa fome e boa sede! Escute: quando pre-
cisar de alguma coisa, fale com Dom Bosco. Dar-lhe-á tudo o que precisar,
todo o pão que quiser. Mas lembre-se: Dom Bosco prefere a sua confiança
a julgá-lo perfeito. Com a sua confiança ele poderá ajudá-lo. Com a sua ino-
cência, ao contrário, você poderia escorregar e cair. E ninguém lhe daria
uma mão. A riqueza de Dom Bosco é a confiança dos seus filhos. Não se
esqueça nunca, ouviu, Francisco!?
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No ano seguinte, frequentava o segundo ano. E um dia, no almoço, me
disseram que minha mãe me esperava na portaria. Encontrei-a chorando.
– Que houve, mãe?
– Nada, Chiquinho, nada. É que nós somos pobres e o ecônomo me disse
que, se continuarmos a não pagar a pensão, deverá mandar você para casa.
Ela chorava por causa da ameaça. Eu, devendo ir para a aula, deixei-a em
pranto.
Na hora do recreio, voltei a ver minha mãe. Continuava a me esperar na
portaria. Mas, desta vez, mais alegre. Sorridente.
– Veja, Chiquinho, falei com Dom Bosco. E ele me disse: Minha boa
senhora, diga a seu filho que, se o ecônomo o mandar embora pela porta,
ele entre pela igreja e venha falar comigo. Dom Bosco nunca o mandará
embora.
Então minha mãe me beijou e partiu. Naquela mesma noite o ecônomo
mandou-me chamar. Eu, assustado, fui antes falar com Dom Bosco. Bati à
porta:
– Quem é?
– Sou eu, Francisco Picollo.
– Venha, venha! Muito bem, Francisco! – e tomou de uma folha de
papel. – Quantos meses de pensão, a sua mãe está devendo?
Disse-lhe o número, e Dom Bosco, com delicadeza, fez um recibo de toda
a pensão, assinou e me deu.
Ninguém soube da sua generosidade. Nem mesmo o ecônomo a quem
entreguei o recibo. Fiquei comovido. Mais pelo modo delicado com que
fui ajudado do que pela própria obra de caridade.
Passaram-se outros três anos. Já estava na quinta série. Um dia, nós
maiorzinhos, rodeávamos Dom Bosco, passeando sob os pórticos. Eu
teria querido falar a sós com ele, mas não ousava. Porém, como sempre,
percebeu e, sem mais, me levou à parte.
– Quer dizer-me alguma coisa, não é verdade?
– Adivinhou: não queria que os outros ouvissem.
Ao dizer isto, falei-lhe ao ouvido:
– Quero dar-lhe um presente. Acho que vai gostar.
– E que presente seria?
– Eu mesmo. Fique comigo.
Dom Bosco sorriu:
– Que quer que eu faça com um tipo como você?!
Mas logo, ficando sério, me disse:
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– Obrigado, Francisco. Não poderia dar-me um presente melhor. Eu o
aceito: não para mim, mas para oferecê-lo e consagrá-lo todo a Deus e a
Nossa Senhora.
Francisco Piccollo ficou salesiano e padre. Trabalhou trinta anos
na Sicília (sul da Itália), como professor, diretor e inspetor das obras
salesianas. Viveu até 1930.
Eusébio Calvi, de Palestro
Nesse mesmo ano de 1872, outro excelente rapaz, Eusébio Cal-
vi, de Palestro, estava preocupado porque a família não podia mais
pagar a pensão. Dom Bosco o viu triste e perguntou:
– Que tem, Eusébio?
– Ah, Dom Bosco, meu pai não pode mais pagar a pensão e serei
obrigado a deixar os estudos.
– Mas você não é amigo de Dom Bosco?
– Oh, sim.
– Então tudo se acomodará facilmente: escreva a seu pai que,
quanto ao passado, não se preocupe mais. Quanto ao futuro, pague
o que puder.
– Mas papai gostaria de saber a conta exata, porque desejaria
pagar tudo o que puder.
– Quanto era a pensão até hoje?
– 12 liras por mês.
– Escreva-lhe que fixamos 5. E que pagará se puder. Agora venha
ao meu escritório, que lhe darei um bilhetinho para o ecônomo.
Eusébio Calvi também chegou a ser salesiano e sacerdote, traba-
lhou na Calábria e na Sicília, e viveu até 1923. “Quantos milhares de
garotos – escreve o padre Amadei – não receberam esses sinais de
afeto de Dom Bosco!”
Dom Bosco não ficou satisfeito
Quando, nos passeios de outono, Dom Bosco chegou a Lu (veja
o capítulo 37), no terreiro da casa Rinaldi fez uma leve carícia numa
“coisinha” de 5 anos, Filipe.
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Quando o guri completou 10 anos, o nome de Dom Bosco voltou
a ecoar em sua vida. Na aldeia de Mirabello, a um tiro de espingarda
de Lu, Dom Bosco abrira o Pequeno Seminário. O senhor Cristóvão
Rinaldi pensou em mandar para lá o seu filho Filipe.
O rapazinho robusto e doce pegou da sua trouxinha, beijou a
mãe e lá se foi para o colégio na velha caleche do pai. Sentia o co-
ração um tanto apertado, como todos os meninos que saem de casa
a primeira vez. Mas era sério e reflexivo, e já entendia, talvez, que
tal sacrifício podia abrir à sua vida outros horizontes diferentes dos
campos e vinhas do pai.
Teve como professor o clérigo Paulinho Álbera. “Para mim o pa-
dre Álbera – escrevia – foi um anjo da guarda. Foi ele o encarregado
de cuidar de mim. E o fez com tanta caridade que me espanto toda
vez que penso nisso.” Mas não havia só o clérigo Paulinho, infeliz-
mente. Havia outro assistente de modos grosseiros. Que magoavam.
Dom Bosco foi duas vezes de Turim a Mirabello visitar o Pequeno
Seminário. E conversou longamente com Filipe. Tornaram-se amigos.
Na primavera, infelizmente, um caso desagradável. Filipe andava
cansado pela intensidade dos estudos nos meses de inverno. O olho
esquerdo começou a incomodá-lo seriamente. Nesse dia, então, es-
tava muito tenso e o assistente de modos grosseiros ofendeu-o de
maneira especial. Filipe não perdeu as estribeiras: foi direto ao Dire-
tor e disse-lhe que queria ir para casa. Parecia capricho passageiro.
Mas não era. Filipe decidira. E não houve santo capaz de fazê-lo
voltar atrás.
Quando Dom Bosco, naquele ano, foi a Mirabello pela terceira
vez e foi informado de que Filipe Rinaldi voltara para casa, ficou
desgostoso. Escreveu-lhe uma cartinha em que lhe pedia repensas-
se a decisão.
Cartas que não faltaram de Dom Bosco a Filipe, nos anos que se
seguiram. Muitas. Há, em todas, o convite a reconsiderar e voltar:
“Lembre-se, Filipe, que as casas de Dom Bosco estão sempre aber-
tas para você”.
Raramente Dom Bosco insistiu tanto com um rapaz. Até pare-
cia que visse alguma coisa de preciso em seu futuro. Mas o rapaz,
embora continuando amigo de Dom Bosco, não se sentia em con-
dições.
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1874. Filipe tem 18 anos. Dom Bosco vai a Lu visitá-lo. Justamen-
te em sua casa se apresenta uma pobre mulher: anda de muletas
e tem um braço doente. Foi pedir a Dom Bosco que a curasse. O
Santo lhe dá a bênção de Nossa Senhora Auxiliadora, e aquela mu-
lher, aí sob os olhos de Filipe, larga as muletas e volta para casa,
curada. O moço está muito emocionado, mas a um enésimo convite
de Dom Bosco para que o siga a Turim, responde não. Esse não lhe
pesará por toda a vida:“Queira Deus e Nossa Senhora que, após ha-
ver resistido tanto à graça no passado – dirá um dia com humildade
–, nunca mais abuse dela no futuro.”
Aquele não a Dom Bosco converte-se para Filipe no primeiro de
uma série: às orações, à mãe que o repreende por frequentar amiza-
des perigosas, ao pároco que o convida a frequentar mais a igreja.
Uma verdadeira “crise religiosa” que superará graças às orações de
sua mãe.
Dom Bosco volta ao ataque
1876. Filipe completa 20 anos. Os pais de uma excelente moci-
nha vão ter com o pai, Cristóvão, avançando uma proposta de casa-
mento. Mas de Turim também chega Dom Bosco, decidido a lutar
para levar consigo Filipe.
Há um longo e decisivo colóquio. Com a tenacidade simples dos
camponeses, Filipe vai expondo uma a uma todas as suas dificulda-
des. Mas Dom Bosco também é camponês. E as rebate, uma a uma,
com tranquilidade. Descobre naquele rapagão a matéria-prima de
um grande salesiano e não quer deixá-lo escapar. “Conquistou-me,
pouco a pouco – escreverá um dia Filipe. – Os pais me deixavam
livre e a minha escolha caiu em Dom Bosco.”
Novembro de 1877. Filipe Rinaldi chega a Sampierdarena, onde
Dom Bosco abrira uma casa para “vocações adultas”. Com 21 anos,
o camponês de Lu reabre a gramática italiana e a latina. Os primei-
ros meses são duríssimos. Na primeira tarefa escolar, em meio a um
cemitério de cruzes vermelhas e azuis, há uma nota acachapante.
Todavia, com a mesma tenacidade com que resistiu por tantos anos
à voz de Dom Bosco, Filipe vai galgando, dia após dia, a íngreme
estrada dos estudos.
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Diretor, em Sampierdarena, é aquele mesmo Paulinho, agora pa-
dre Álbera, que o encantara em Mirabello. Nas horas ingratas é nele
que busca conforto.“Um dia eu lhe disse:‘Temo fazer uma das mi-
nhas, fugindo’.‘E eu iria te buscar’, respondeu.”
13 de agosto de 1880. Ajoelhado aos pés de Dom Bosco, Filipe
faz os votos de pobreza, castidade e obediência. É salesiano. Tem
24 anos.
No outono começa a subida para o sacerdócio: recebe as ordens
menores, o subdiaconato, o diaconato. Há um pormenor que surpre-
ende: Filipe não vai para a frente porque o queira, mas porque Dom
Bosco – em quem confia cegamente – o manda.
Contará:“Dom Bosco me dizia que só no dia tal prestasse exame,
recebesse tal Ordem. E eu obedecia”. Nunca Dom Bosco fizera tal
coisa com outra pessoa: exortava, convidava, mas deixava à pessoa
decidir. Com Filipe, porém, Dom Bosco manda. Devia ler muito cla-
ramente no futuro daquele moço.
Na véspera do Natal de 1882, Filipe Rinaldi celebra a sua primei-
ra Missa. Dom Bosco está presente. Abraçando-o, lhe pergunta: “E
agora, está contente?”. A resposta é de espantar:“Se me conservar
consigo, sim. Doutra forma, não saberia o que fazer”.
Alguns meses depois, volta das missões da América do Sul o pa-
dre Tiago Costamagna. O padre Filipe Rinaldi, pela primeira vez, em-
polgado pelo entusiasmo, pede a Dom Bosco para ser missionário.
Desta vez é Dom Bosco que diz não.
– Você ficará aqui: às Missões mandarei outros.
O primeiro sucessor de Dom Bosco será o padre Rua. O segundo,
o padre Paulinho Álbera. O terceiro, o padre Filipe Rinaldi.
O velho padre Francésia dirá dele:“De Dom Bosco só lhe falta a
voz.Tudo o mais tem”.124
Cônego em repouso
Em 1872, Dom Bosco foi a Gênova para uma rápida visita. Conta
o padre Amadei:
1 Filipe Rinaldi foi beatificado por João Paulo II, no dia 29 de abril de 1990 (N.T.).
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Entre outros foi visitá-lo o cônego Ampugnani, que vivia em Marassi e o
havia ajudado a comprar o colégio de Alassio. Dom Bosco lhe perguntou:
– E agora, que está fazendo?
– Eu? Nada. Descanso.
– Como descansa?! Com tanta saúde e tão moço!...
– Trabalhei muitos anos na América. Agora descanso.
Dom Bosco ficou muito sério:
– E não sabe que o descanso do padre é o Céu? E que prestaremos contas
rigorosíssimas a Deus pelo tempo perdido?
O cônego ficou tão chocado com aquelas palavras que não sabia de que
lado voltar-se para sair. No dia seguinte, apresentou-se na casa salesiana,
pedi ao diretor que o mandasse tocar, dar aula de canto, pregar... E
acrescentou:
– Dom Bosco me disse palavras terríveis!
Encontrou-se também com o Superior Geral dos Mínimos de São Francisco
de Paula, homem doutíssimo e também pároco. Após cumprimentá-lo
respeitosamente, Dom Bosco lhe disse:
– Só imagino quanto trabalho deve ter como Geral da Ordem!
– Na verdade, pouca coisa. Ou quase nada. Somos tão poucos!
– Quantos noviços têm?
– Nenhum.
– E clérigos?
– Também nenhum.
– Mas como? – o rosto de Dom Bosco tornou-se sério, grave, e voz
enérgica. – E o senhor não se interessa por impedir que desapareça uma
Ordem tão benemérita da Igreja, que ainda não cumpriu a finalidade
para a qual foi fundada, e que possui ainda tantas profecias gloriosas por
realizar?
– Mas se não se acham vocações!?
– Se não acham vocações na Itália, vá à França, à Espanha, à América, à
Oceania. O senhor tem uma gravíssima responsabilidade e grandes contas
que prestar a Deus. Quantas lutas, quantas aflições não suportou São
Francisco de Paula para fundar a sua Ordem! E o senhor permitirá que se
percam tantas orações, tantas canseiras, tantas esperanças?
O bom padre Geral se sentia aniquilado. Prometeu fazer o possível para
achar vocações.
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Serventes de pedreiro no oratório
Quem acompanha a vida de Dom Bosco nesses anos pode ter a
impressão de que o oratório festivo de Valdocco, que com ele vive-
ra tantos dias gloriosos, lhe tenha desaparecido de vista. De modo
nenhum. É claro que 90% do tempo de Dom Bosco está absorvido
quer pela grande casa para estudantes e aprendizes que hospeda
800 jovens, quer pelas demais obras salesianas que estão que se mul-
tiplicando. Mas não esquece o “seu” oratório. Os testemunhos não
são muitos, mas suficientes para fotografá-lo também neste setor.
Vim a Turim na Quaresma de 1871 – narra Henrique Ângelo Bena. –
Chegava de Magnano Biellese e fazia questão de trabalhar como servente
de pedreiro. No primeiro domingo, como nos havia recomendado – a
mim e aos outros rapazes migrantes – nosso pároco, fui ao oratório de
Dom Bosco. Gostei. Voltando a Turim de março a novembro, continuei a
frequentá-lo todos os anos, até o serviço militar.
A entrada para o oratório nesse tempo ficava no lado esquerdo do
santuário de Maria Auxiliadora. Havia um portão rústico, de madeira.
Cuidavam de nós três ou quatro padres e vários clérigos. Dom Bosco vinha
ordinariamente, de manhã, para a Missa e, à tarde, para o catecismo.
No segundo ano que vim para Turim, fiz no oratório a primeira Comunhão.
Todos de roupa limpa: quem não podia tê-la da família, recebia-a de Dom
Bosco. Foi ele mesmo que nos celebrou a Missa na igreja de São Francisco
de Sales e nos deu a Comunhão. Saindo da Igreja, havia uma mesa preparada
para nós: pão, queijo, salame. Dom Bosco veio servir-nos um cálice de
vinho. Também distribuiu biscoitos.
Se o menino chegasse com roupa rasgada ou calçado gasto, Dom Bosco
os substituía por algo remendado ou consertado, mas bom. No oratório,
atraíam-nos o carrossel, o passo de gigante, os presentes. A banda de
música era um bom atrativo.
Nesse mesmo ano de 1871 começou a frequentar o oratório fes-
tivo de Valdocco Francisco Alemanno, jovem operário de Villa Mi-
roglio. Transferira-se para Turim com a família. No primeiro dia que
foi ao oratório, encontrou-se com Dom Bosco. Depois das funções
houve uma pequena rifa e Alemanno ganhou uma gravata. Dom
Bosco lha pôs no pescoço e perguntou:
– Como se chama?
– Francisco Alemanno.
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– Faz tempo que vem ao oratório?
– Esta é a primeira vez.
– E conhece Dom Bosco?
– O rapaz ficou atrapalhado. Depois levantou os olhos timida-
mente:
– Dom Bosco é o senhor.
– Mas você conhecerá melhor Dom Bosco, se deixar que lha faça
bem à alma.
– É justamente o que estou procurando. Um amigo que cuide de
mim.
– Que maravilha! Hoje ganhou uma gravata, e eu, com ela, e vou
amarrá-lo ao oratório, de modo que nunca mais o deixará!
Francisco tornou-se deveras amigo de Dom Bosco. Do oratório
passou à Congregação Salesiana.
Serventes de pedreiro, distribuição de roupa aos mais pobres,
diálogos abertos com os rapazes: sempre o mesmo oratório de Dom
Bosco, continuando a viver e a prosperar à sombra do santuário.
Por algum tempo, Dom Bosco confiou a direção ao padre Júlio Bar-
béris. Depois, por muitíssimos anos, ao padre Pavia, ajudado pelo
legendário irmão coadjutor João Garbellone. Este homem, de tem-
peramento um tanto excêntrico e caprichoso, foi uma prova viva do
extraordinário poder formador de Dom Bosco, que sabia exaltar os
dotes naturais também dos temperamentos mais pobres.
Por cinquenta anos, Garbellone foi a alma do oratório festivo.
Guardava num caderno 6 mil nomes de rapazinhos que ele prepa-
rara para a primeira Eucaristia. Desde 1884 foi o mestre da banda.
Banda que ele regeu, com pomposa altivez, até 1928, quando mor-
reu.
Dom Bosco ganhara-lhe a amizade com um gesto de grande con-
fiança: colocara-lhe nas mãos 30 mil liras (quantia fabulosa nesse
tempo) para que fosse pagar uma dívida. Garbellone tinha 28 anos
e era um pobre coitado sem nada. O gesto comoveu-o de tal forma
que, desde então, por Dom Bosco ter-se-ia jogado no fogo.
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Miguel Únia, camponês
19 de março de 1877. Chega ao oratório um camponês de 27
anos. Chama-se Miguel Únia. Diz a Dom Bosco que quer estudar
para ser padre. Mas não salesiano.
– Gostaria de voltar a Roccaforte de Mondovi, minha aldeia.
– E se Deus o quisesse para uma missão maior?
– Se Ele me fizer compreender que essa é a sua vontade...
– E se Deus me revelasse o seu interior e eu lho dissesse agora,
acharia isto um sinal suficiente de que Deus o quer padre salesiano?
Miguel Únia não sabia se devia levar a coisa a sério ou em brinca-
deira. Pensou um pouco e depois disse:
– Está bem. Diga o que vê na minha consciência.
Dom Bosco lhe disse tudo: fez-lhe a lista das boas obras e dos
pecados. Nos mínimos detalhes. A Únia, parecia-lhe sonhar:
– Como faz para saber todas essas coisas?
– E sei mais: você tinha 11 anos. E, um domingo, estava no coro
da sua igreja, à hora das vésperas. Um seu colega, perto de você,
dormia de cabeça para cima e de boca aberta. Você pegou da maior
ameixa que tinha no bolso e a deixou cair na boca daquele pobrezi-
nho. Sentindo-se sufocar, pulou em pé e pôs-se a correr de cá para
lá, como um doido. Foi necessário suspender a oração. Você ria a
valer, mas acabou levando do pároco meia dúzia de bons pesco-
ções...
Únia ficou com Dom Bosco. Foi o primeiro missionário salesia-
no a trabalhar com leprosos na Colômbia. Viveu numa localidade
longínqua chamada Agua de Diós, entre 730 flagelados da terrível
enfermidade com um trabalho extenuante que por fim o abateu.
Devolveu um rosto à dignidade daqueles homens e filhos de
Deus.
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A longínquas plagas
Entre 1871 e 1872, Dom Bosco teve um sonho. Dramático. Con-
tou-o antes a Pio IX, parece. Depois, a alguns dos seus salesia-
nos. Dois deles, o padre Barbéris e o padre Lemoyne, tomaram
nota do sonho cuidadosamente.
Pareceu-me estar numa região selvagem, totalmente desconhecida. Era
uma planície imensa, inculta. Nela não se viam nem montes, nem colinas.
Nas longínquas extremidades, porém, erguiam-se montanhas fragosas. Vi
turbas de homens que a percorriam. Estavam quase nus. Sua estatura era
extraordinária e o seu aspecto, feroz. Tinham cabelos hirsutos, longos,
bronzeados, escuros. Vestiam apenas folgados mantos de peles de animais,
que lhes desciam dos ombros. Por armas usavam uma lança comprida e a
funda.
Essas tribos dispersas ofereciam aos olhares cenas variadas: uns corriam
dando caça às feras; outros caminhavam levando, enfiada na ponta das
lanças, carne a sangrar. Uns lutavam entre si; outros com soldados vestidos
à europeia. O chão estava semeado de cadáveres. Àquele espetáculo eu
fremia...
Senão quando surgem da extremidade da planície muitas pessoas: pelo
modo de vestir e de agir compreendi que eram missionários de várias
Ordens. Vinham para pregar aos selvagens a religião de Jesus Cristo. Fixei-
-os atentamente, mas não reconheci ninguém. Foram para o meio daque-
la gente, mas os bárbaros, apenas os viram, lançaram-se contra eles e os
mataram, espetando os macabros troféus na ponta de suas longas lanças.
Mais gente disposta a arriscar
Depois de ver aquelas cenas terríveis, pensei comigo mesmo: “Como fazer
para converter essa gente tão brutal?”.
Nesse instante, vi ao longe um grupinho de outros missionários que se
aproximavam alegremente dos selvagens, precedidos de multidão de
jovens. Eu tremia pensando: “Essa gente quer morrer!”. Aproximei-me
deles. Eram padres e clérigos. Olhei-os com atenção, e vi que eram nossos
salesianos. Aos primeiros eu conhecia. E, embora não pudesse reconhecer
pessoalmente muitos dos que lhe vinham depois, tive certeza absoluta de
que também eles eram missionários salesianos.
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42.10 Page 420

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Como é possível?, pensei comigo mesmo. Quisera que não prosseguissem.
E estava ali para detê-los: temia que, de repente, lhes coubesse a mesma
sorte que aos primeiros missionários. Mas notei que a sua presença causa-
va alegria a todas aquelas tribos de bárbaros. De fato, abaixaram as armas.
Depuseram toda a ferocidade. Acolheram os nossos com todas as demons-
trações de cortesia. Maravilhado, dizia comigo: “Vamos ver como tudo
isso vai acabar!”. Vi que os nossos missionários se aproximavam daqueles
selvagens, os instruíam: e eles ouviam com prazer a sua palavra. Ensina-
vam e eles aprendiam com interesse. Admoestavam e eles aceitavam e
punham em prática suas admoestações.
Quedei-me a observar: os missionários recitavam o Terço e os selvagens
o rezavam com eles. Instantes depois, os salesianos foram para o meio
da turba que os rodeou. Ajoelharam-se e os selvagens, depostas as armas,
também se ajoelharam. E eis que um dos salesianos entoou o canto: Lodate
Maria, o lingue fedeli (Louvai a Maria, ó línguas fiéis) e todas aquelas
turbas, a uma só voz, continuaram o canto com tanta força que eu, meio
espantado, acordei.
O sonho pesou grandemente na vida de Dom Bosco. Ele mesmo
afirmou:“Depois dele, senti renascer no coração o antigo anseio do
apostolado missionário”.
Dom Bosco já pensara nas missões quando era jovem estudante,
em Chieri.“Então no Piemonte – narra o padre Lemoyne – agigantava-
-se a Obra da propagação da fé. Os escritos que descreviam os tra-
balhos e os martírios dos missionários eram lidos com avidez. E João
Bosco acariciava o desejo de consagrar-se às missões no exterior.”
O Concílio Vaticano I (1869-70) contribuiu notavelmente para o
desenvolvimento das missões. Bispos das Américas, da África e da
Ásia, aproveitando da ida à Itália (onde o clero era numerosíssimo
em comparação com o de suas regiões), procuraram arregimentar
sacerdotes e religiosas para os seus territórios.
Também a Valdocco chegaram pedidos concretos. Dom Barbero
pediu a Dom Bosco irmãs para Hyderabad, na Índia. Dom Alemany,
bispo de San Francisco, na Califórnia, pediu-lhe a abertura de uma
escola profissional. Dom Bosco deixou que as ofertas chegassem.
Não pensava ainda “concretamente” nas missões.
Um ano depois, Dom Bosco tem o sonho “da imensa planície e
dos homens de aspecto feroz” e sente renascer-lhe “o antigo anseio”.
Desse momento em diante procura saber qual seja a região missio-
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nária destinada pela Providência aos seus salesianos. Os pedidos de
fundações no além-mar continuam chegando à sua mesa. Mas agora
os examina com uma atenção diferente.
À procura de dois rios e um deserto
De começo – conta ele – pensava que os homens amorenados do sonho
fossem africanos da Etiópia. Mas depois de perguntar a pessoas que
conheciam esses lugares e ter lido livros de geografia, deixei de lado essa
ideia. Pus então os olhos sobre Hong Kong, ilha da China; informei-me
da Austrália. De dom Quin indaguei o estado daqueles indígenas, mas sua
descrição não concordava com quanto eu havia sonhado. Voltei-me então
para Mangalore, Malabar...
Finalmente, em 1874, o cônsul argentino em Savona, Gazzolo, falou dos
salesianos ao arcebispo de Buenos Aires. Este expressou o desejo de
que um grupo de salesianos se transplantasse para a Argentina. Busquei
então livros geográficos sobre a América do Sul e os li atentamente. Coisa
maravilhosa: por eles e pelas ilustrações que traziam, vi perfeitamente
descritos os selvagens e a região vista em sonho: a Patagônia, região
imensa, ao sul da Argentina.
Havia um pormenor que Dom Bosco procurava obstinadamente
nos mapas, para descobrir o “lugar assinalado por Deus”. Lembra-o
o padre Amadei, um dos mais cuidadosos biógrafos do Santo:
No campo de apostolado visto em sonho, notara dois rios à entrada
de vastíssimo deserto, que não conseguia descobrir nos mapas que ia
pacientemente examinando. Só veio a saber que eram o rio Colorado e
o rio Negro, na Patagônia, quando teve em Turim o primeiro colóquio
com o comendador Gazzolo, cônsul da Argentina, em Savona. Lembro ter
visto eu mesmo um dos velhos atlas examinados por Dom Bosco, no qual
se liam, no extremo sul da América, as palavras: Região dos Patagônios,
onde os habitantes são gigantes” (Memórias Biográficas, vol. X, p.
1273).
Refletindo sobre esses acontecimentos, Pedo Stella comenta:
Resulta clara a orientação de Dom Bosco à procura de um caminho para
a expansão de sua obra fora da Europa. Ele pensa e sonha as missões no
sentido mais estrito, in partibus infidelium (nos países dos infiéis) e
no sentido mais romântico de então: entre povos cruéis e selvagens... Na
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Argentina, ele tinha os selvagens, aliás, os “seus” selvagens... Selvagens
era palavra mágica, a suscitar interesse, curiosidade... Clima de legenda
circundava os selvagens da Patagônia, descritos pelos exploradores mais
antigos como gigantes; reproduzidos, ainda no século XIX, pela fantasia
dos ilustradores de livros de viagem, como colossos: a seu lado, os
europeus, com seus tricórnios, apenas chegavam acima da cintura, eram
quase da altura dos indígenas recém-nascidos. Selvagens que, ainda em
1864, eram apresentados no Dicionário de conhecimentos úteis, editado
em Turim, como de “ombros largos, cabeça enorme, cabelos negros e
hirsutos, pouca barba, fisionomia inexpressiva, com cerca de seis pés de
altura (perto de dois metros), de tal forma que seriam, talvez, os mais altos
do globo”. Sua ferocidade era adequadamente ambientada em paragens
incultas, sem árvores, inóspitas, onde sopravam ventos fortíssimos. Por
elas circulavam a cavalo velozmente, armados de laço, de boleadeiras e de
lanças, lanças que eles brandiam com destreza.
Uma circular para chamar voluntários
O pedido concreto veio do arcebispo de Buenos Aires no fim de
1874.“Li as primeiras cartas ao Capítulo da Congregação na noite
de 22 de dezembro”, declara Dom Bosco.
A proposta era dupla: assumir em Buenos Aires uma paróquia
habitada por imigrantes italianos, dedicada à Madre della Miseri-
córdia (Mãe da Misericórdia); fazer funcionar, em San Nicolás de
los Arroyos, um colégio para rapazes, colégio terminado havia pou-
co. San Nicolás era um centro muito importante na arquidiocese de
Buenos Aires.
Dom Bosco respondeu que aceitava ir à Argentina, traçando o
seu programa em três pontos:
– primeiro, mandaria alguns sacerdotes a Buenos Aires para aí
estabelecer o ponto-base dos salesianos na América; dedicar-se-iam
“especialmente à juventude pobre e abandonada, a catecismos,
escolas, pregações, oratórios festivos”;
– num segundo momento, os salesianos assumiriam também a
obra de San Nicolás;
– dessas duas primeiras bases,os salesianos poderiam,em seguida,
“ser enviados a outros lugares”.
Neste terceiro ponto, Dom Bosco incluía e quase velava o
desígnio de “alcançar o mais cedo possível os povos selvagens”.
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Estava, assim, delineado, em termos práticos e concretos, um
método particular de evangelização missionária: os religiosos de
Dom Bosco não se haveriam de lançar, imediatamente, por entre
as tribos distantes da chamada civilização, mas iriam criar bases em
território seguro, trabalhando entre emigrados italianos, numerosís-
simos na Argentina e verdadeiramente necessitados de assistência
religiosa e moral. Dali partiriam para empreender as suas tentativas
apostólicas “de primeira linha”.
No dia 27 de janeiro de 1875, Dom Bosco recebeu do cônsul
comunicação oficial de que as suas condições haviam sido aceitas.
O Santo, então – narra o padre Céria –, sem que em casa se dessem pela
coisa, preparou um belo golpe teatral. Na noite de 29 de janeiro, festa de
São Francisco de Sales, mandou reunir aprendizes, estudantes e irmãos,
na sala de estudo, onde se erigia um palco. Subiram a ele Dom Bosco, o
cônsul Gazzolo em pitoresco uniforme, os membros do Capítulo Superior
e os diretores das casas salesianas.
À atentíssima assembleia Dom Bosco anunciou que, em breve,
com a aprovação do papa, partiriam os primeiros salesianos para as
missões do sul da Argentina. Essas palavras não causaram temor pe-
los riscos e por uma empresa que parecia temerária. Provocaram,
ao invés, incontido entusiasmo. Nos jovens e nos salesianos.
“Fora lançado um novo fermento entre alunos e jovens sale-
sianos. Viram-se multiplicadas as vocações ao estado eclesiástico.
Cresceram sensivelmente os pedidos para entrar na Congregação.
O ardor missionário apossou-se de todos”. Eugênio Céria, que es-
creve essas palavras nos Anais da Congregação, comenta:
Para aquilatar a impressão produzida, devemos voltar àqueles tempos
em que a jovem Congregação mais se assemelhava a uma família,
estreitamente unida ao redor do chefe. O estímulo dado naquele instante à
fantasia, levou, de improviso, a imaginar horizontes infindos, e agigantou,
ao mesmo tempo, o já grande conceito que se tinha de Dom Bosco e da
sua obra.
Começava, de fato, para o oratório e para a Sociedade Salesiana,
uma nova história.
A 5 de fevereiro, Dom Bosco anunciava a todos os salesianos que
residiam fora de Valdocco a primeira expedição missionária. Pedia,
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em sua circular, que os voluntários apresentassem o pedido por
escrito. A data estava fixada para o mês de outubro, o mais tardar.
O entusiasmo multiplicou-se por toda a parte. Quase todos se ofe-
receram para ir às missões. Dizer, pois, que “começava uma nova
história” não parece exagerado.
Chefe da expedição: o menino dos gigantes
Serão 11 as expedições missionárias que Dom Bosco irá organi-
zar pessoalmente. Nenhuma irá superar o entusiasmo e a febre da
primeira.
Preparou-a nos mínimos detalhes: pôs-se em contato com per-
sonalidades de Buenos Aires para que seus filhos fossem acolhidos
“como amigos entre amigos”. A fim de fornecer-lhes todo o neces-
sário, recorreu aos Cooperadores: ficou deveras surpreso com sua
generosidade.
Os missionários que iriam partir deviam representar o melhor da
jovem e pequena Congregação. Dentre os que tinham respondido
ao seu convite (eram multidão), Dom Bosco escolheu seis sacerdo-
tes e quatro irmãos, coadjutores. Um ou outro depois acabou mal.
Nem sempre Dom Bosco acertava. Nem sempre tinha luzes do céu.
O chefe da expedição seria João Cagliero, jovem sobre o qual, um
dia distante, vira curvarem-se dois índios gigantescos, cor de cobre.
Com 37 anos, sacerdote robusto e jovial, inteligente e com uma ati-
vidade exuberante, o padre Cagliero preparava-se para ser na Amé-
rica o homem da situação. Quase impossível imaginar o oratório
sem ele: laureado em teologia, professor dos clérigos, maestro insu-
perável e compositor de música, tinha em mãos encargos delicados
e dirigia espiritualmente vários Institutos religiosos da cidade. Sua
partida seria uma perda muito grave.
Foi curioso o “método” com que Dom Bosco o incluiu na expe-
dição. Narra o padre Céria:
Num dia de março, Dom Bosco, após ficar em silêncio e pensativo, disse ao
padre Cagliero, que lhe estava ao lado:
– Gostaria de mandar à América um dos nossos padres mais antigos para
acompanhar os missionários. E que ficasse lá uns três meses com eles, até
que estivessem bem assentados. Abandoná-los, assim, sozinhos, sem um
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apoio, sem um conselheiro em quem confiar, parece-me uma coisa um
tanto dura.
O padre Cagliero respondeu:
– Se Dom Bosco não encontrasse ninguém e pensasse em mim para isso,
estou pronto.
– Está bem – concluiu Dom Bosco.
Os meses se passavam sem que se tocasse mais no assunto. Aproximando-
-se, porém, a data da partida, Dom Bosco, um dia, lhe disse de repente:
– Quanto a ir para a América, continua pensando do mesmo jeito? Ou,
quem sabe, só falou por brincadeira?
– O senhor sabe que com Dom Bosco eu não brinco nunca.
– Está bem. Prepare-se então. Chegou a hora.
O padre Cagliero começou os preparativos. Em poucos dias, trabalhando
febrilmente, tudo estava ajeitado.
Foi assim, com a costumeira bonachona simplicidade, que o pri-
meiro e o maior dos missionários salesianos começou a sua missão.
Feitas as contas, os três meses previstos duraram trinta anos.
Outro sacerdote de valor a partir, alma de pioneiro, ex-soldado
de Garibaldi, foi o padre Fagnano. Havia mais quatro sacerdotes:
Cassinis, Tomatis, Baccino e Allavena. E quatro coadjutores: Scalvi-
ni, mestre de carpintaria; Gioia, cozinheiro e mestre de sapataria;
Molinari, mestre de música; e Belmonte, administrador.
Vinte lembranças escritas a lápis
Os partintes dedicaram o verão ao estudo da língua espanhola.
Em outubro, o padre Cagliero acompanhou-os a Roma para rece-
berem a bênção do papa.
Logo que Pio IX entrou na sala, disse: Eis aqui um pobre velho. Onde estão
os meus pequenos missionários? Então vocês são os filhos de Dom Bosco
e vão pregar o Evangelho na Argentina. Terão um campo vasto para fazer
o bem. Expandam no meio daqueles povos as suas virtudes. Desejo que se
multipliquem, porque grande é a necessidade. Copiosíssima a messe entre
as tribos selvagens.
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Depois voltaram a Turim. Eugênio Céria relembra:
Uma expedição de missionários ao extremo sul da América, naquele ano
de 1875, representava uma epopeia aos olhos de todos os que viviam na-
quele recanto afastado de Turim chamado Valdocco. Olhava-se para os
expedicionários como a generosos campeões que se movessem, ousados,
ao encontro do mistério. Vendo-os andar pela casa, em seus hábitos exóti-
cos, cada qual procurava aproximar-se e trocar com eles algumas palavras.
No dia 11 de novembro, no Santuário de Maria Auxiliadora, Dom
Bosco lhes deu o adeus. Às 16 horas, a igreja estava lotada, trans-
bordante. Terminadas as vésperas, Dom Bosco subiu ao púlpito e
traçou aos missionários o programa de ação: em primeiro lugar,
iriam se ocupar dos italianos que haviam migrado para a Argentina:
Recomendo-lhes com particular insistência a situação dolorosa de muitas
famílias italianas. Haverão de encontrar numerosos meninos e mesmo
adultos que vivem na mais deplorável ignorância: não sabem ler nem
escrever e desconhecem os princípios religiosos. Vão procurar esses
nossos irmãos que a miséria ou a desgraça levou para terra estrangeira...
Só depois passariam a evangelizar a Patagônia:
Damos assim início a uma grande obra. Não porque se pense em converter
o mundo inteiro em poucos dias, não. Mas quem sabe não seja esta partida,
e este pouco, uma como sementinha da qual deva surgir uma grande
planta! Quem sabe não seja como o grãozinho de milho ou de mostarda
que se vai lentamente estendendo até produzir muito bem!?
Ao terminar, Dom Bosco deu aos que partiam seu abraço pater-
no. A comoção foi grande quando os dez missionários atravessaram
a igreja, por entre os cumprimentos dos jovens e dos amigos que
os apertavam. Dom Bosco chegou por último à porta da igreja. Um
espetáculo grandioso: a praça apinhada de gente, uma longa fila de
carruagens à espera os missionários, clarão de lanternas iluminando
a noite. O padre Lemoyne estava perto de Dom Bosco e disse:
– Dom Bosco, está começando agora a realizar-se o Inde exibit
gloria mea (Daqui sairá a minha glória)?
– É verdade – respondeu Dom Bosco, profundamente comovido.
Nesses momentos pode-se perder o senso do limite. Mas Dom
Bosco trazia os pés firmemente plantados no chão. Poucos meses
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antes dissera: “Que é neste mundo o nosso oratório de Valdocco?
Um átomo. Entretanto nos dá que fazer. E deste cantinho se pensa
em mandar gente para cá e para lá. Pura bondade de Deus!”.
Cada um dos expedicionários levava consigo um folheto com
“20 lembranças especiais” escritas por Dom Bosco. Traçara-as a lá-
pis numa caderneta durante uma recente viagem de trem e as passa-
ra a cada um para que as copiassem. São a “essência” de como Dom
Bosco queria os missionários salesianos. Transcrevemos as cinco
mais significativas:
1. Procurem almas e não dinheiro, honras, dignidades.
5. Cuidem de modo especial dos doentes, meninos, velhos e po-
bres, e ganharão as bênçãos de Deus e a benevolência dos homens.
12. Façam que o mundo conheça que são pobres no vestuário,
no alimento, na habitação, e serão ricos diante de Deus, e conquis-
tarão o coração dos homens.
13. Amem-se, aconselhem-se e corrijam-se mutuamente, mas não
haja nunca entre vocês inveja nem rancor; antes, o bem de um seja
o bem de todos; as penas e os sofrimentos de um considerem-se
como penas e sofrimentos de todos, e procure cada um afastá-los
ou ao menos minorá-los.
20. Nas fadigas e sofrimentos não nos esqueçamos de que nos
aguarda um grande prêmio no Céu. Amém.
No mesmo dia 11 de novembro, Dom Bosco acompanhou os
missionários até Gênova, onde embarcaram no dia 14 no vapor
francês Savoie. Uma testemunha recorda que Dom Bosco estava
todo vermelho pelo esforço de conter a comoção.
O futuro não se desenhava fácil. Mas o padre Cagliero levava
consigo um bilhete em que Dom Bosco escrevera: “Façam o que
puderem: Deus fará o que nós não pudermos fazer. Confiem todas
as coisas a Jesus Sacramentado e a Maria Auxiliadora: verão o que
são os milagres”.
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Patagônia, terra prometida
A14 de dezembro de 1875, os missionários aportaram em Bue-
nos Aires, onde se viram rodeados de amigos. Com o arcebispo
da cidade e os sacerdotes, havia 200 emigrados italianos, a lhes
gritarem, ruidosamente, as boas-vindas. E acharam nada menos que
um grupo de ex-alunos do oratório de Valdocco.
Mas ficaram espantados diante do espetáculo de uma população de boa
índole, de boas tradições, respeitosa dos sacerdotes, até mesmo generosa,
mas extremamente ignorante e, mais do que nenhuma outra, carente de
assistência religiosa. Segundo as primeiras cartas, havia mais ou menos 30
mil italianos em Buenos Aires, e cerca de 300 mil em toda a Argentina,
quase abandonados a si mesmos, por falta de sacerdotes de sua terra. O
padre Cagliero e demais salesianos sentiram-se como chuva avidamente
absorvida por terreno requeimado (Pedro Stella).
Depois de alguns dias, como fora estabelecido ao partirem de
Turim, se dividiram em dois grupos: o padre Cagliero, mais dois
companheiros, ficaram junto à igreja da Mãe da Misericórdia, a fim
de atender à paróquia povoada de imigrantes italianos; o padre Fag-
nano levou os outros seis a San Nicolás, para abrir um colégio de
meninos.
O que em Buenos Aires se tornou verdadeiramente providencial
foi o oratório festivo, que abriram imediatamente. Na grande cidade
faltava completamente a assistência aos meninos.
O padre Cagliero e os seus colaboradores caíram das nuvens ao verem-se
rodeados benevolamente por rapazes na maior parte italianos, que, con-
vidados a fazer o sinal da cruz, olhavam maravilhados, não entendendo o
que queriam dizer. Indagados se iam à Missa nos dias santos, respondiam
que nunca se lembravam disso, porque não sabiam quando era ou não
domingo (Padre Stella).
Por toda parte faltavam escolas. Em questão de poucas semanas,
o padre Cagliero foi assediado de pedidos, não só da Argentina,
mas também do vizinho Uruguai. O delegado apostólico de Monte-
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vidéu, exortando-o a levar para lá os salesianos, confidenciava-lhe
cifras dolorosas: em todo o Uruguai, tão vasto quando a metade de
Itália, não havia um só seminário: nem pequeno, nem grande; ne-
nhum clérigo; e, na capital da República, nenhuma escola católica.
E os índios?
Foi pensando nos índios que os missionários atravessaram o
oceano, porém isso teria de esperar. A “missão” verdadeira estava
ali, naquelas cidades, onde a evangelização era urgentíssima.
O padre Cagliero fixou sua atenção em três obras que lhe pare-
ceu necessário abrir quanto antes. Em primeiro lugar, achava que
faria época uma escola profissional, “uma casa de artes e ofícios.
Seria um acontecimento a entrar para a história pátria. Encheria de
admiração toda a República. Faria um bem imenso” (carta a Dom
Bosco, em 5 de fevereiro de 1876). Depois, um colégio em Monte-
vidéu: o primeiro colégio cristão na capital do Uruguai. Finalmente,
uma obra para meninos no bairro mais pobre de Buenos Aires, “La
Boca”, cheio de italianos e dominado pela maçonaria.
Nenhum padre ousava andar pelas ruas daquele bairro. O padre
Cagliero foi para lá imediatamente. Reuniu um grupo de meninos
e distribuiu medalhas de Nossa Senhora. Conseguiu falar com algu-
mas famílias. Quando o arcebispo soube, lhe disse:
– Cometeu uma grave imprudência. Eu nunca fui e não permito
a nenhum dos meus sacerdotes que ande por lá. Seria expor-se a
grandes perigos.
– Entretanto, eu sinto mesmo a tentação de voltar para lá.
Dois ou três dias depois, lá estava de fato. Os meninos correram-
-lhe ao encontro gritando em genovês: “O padre das medalhas!”.
Repetiram-se então as antigas cenas de Dom Bosco na periferia de
Turim: “Darei a quem for o melhor... A quem for o pior... Sabe fazer
o sinal da cruz? E a Ave-Maria?...”.
Homens e mulheres saíam às portas para ver aquele padre que
ousava estar com os seus pequenos bandidos e que prometia um
pátio com jogos, cantos, música, alegria.
De Valdocco, porém, chegavam pedidos insistentes de notícias
sobre os índios. “Patagônia – escrevia Eugênio Céria, testemunha
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43.10 Page 430

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direta – era palavra que inflamava as imaginações juvenis. Quantos
não sonhavam aventuras entre os índios, em correrias por aquelas
terras abertas!” Dom Bosco precisava alimentar as fantasias juvenis,
não deixando arrefecer o entusiasmo.
E os missionários mandavam em suas cartas notícias, colhidas cá
e acolá: no início, muito imprecisas; depois, pouco a pouco, mais
exatas. Uma carta de 10 de março de 1876, dizia:
As condições materiais e espirituais dos índios, ou seja, das tribos dos
Pampas e dos Patagônios, enchem-nos a alma de profunda tristeza.
Seus caciques lutam contra o governo. Queixam-se de opressões e
prepotências, evitam as tropas acantonadas para reprimi-los, depredam
os campos, roubam e, armados de carabinas Remington, sequestram
homens, mulheres e crianças, cavalos e ovelhas. Os soldados do governo,
em contrapartida, movem-lhes guerra cruel, de tal modo que os ânimos,
longe de se apaziguarem,se exacerbam e incitam cada vez mais.Quem sabe
não seria diferente se, ao invés de soldados, se mandasse para lá um grupo
de capuchinhos ou de outros missionários: salvar-se-iam muitas almas, e o
vigor e o bem-estar social, poriam pé no meio daqueles selvagens. Nesse
estado de confronto e exasperação em que se encontram os índios contra
o governo, pouco ou nada podem fazer os missionários...
De Turim chegam meninos
De Valdocco, Dom Bosco compreende a situação: Buenos Aires,
saturada de imigrantes, lhe relembra a Turim dos rapazes que des-
ciam dos vales, quando ele era jovem sacerdote.
Prepara uma segunda expedição. Para que o padre Cagliero pos-
sa fundar as obras que parecem mais urgentes, dia 7 de novembro
de 1876, manda à América 23 salesianos. Entre eles estão o padre
Bodrato e o padre Luís Lasagna (o “rapaz dos cabelos ruivos”), que
darão um impulso notabilíssimo à obra salesiana. É um esforço que
custa sangue à jovem e ainda frágil Congregação. Escreve ao padre
Cagliero: “Esta expedição nos engolfou até o pescoço, mas Deus
nos ajuda. E nos arranjaremos”.
Dom Bosco, porém, não quer que se deixe de lado tão depressa
o desígnio inicial: a evangelização dos índios.
Propõe um plano, que, montado de longe, parece funcionar:
abrir colégios nas cidades que confinem com as terras dos índios,
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44.1 Page 431

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acolher neles filhos de selvagens, por meio deles aproximar-se dos
adultos, “ao mesmo tempo em que se cultivam aquelas vocações
eclesiásticas que, porventura, se manifestem entre os alunos. Deste
modo espera-se preparar missionários para os Pampas e os Patagô-
nios. Os selvagens tornar-se-iam assim os evangelizadores dos mes-
mos selvagens”.
No local, porém, o plano não funciona. O padre Costamagna, o
padre Fagnano, o padre Lasagna entregam-se a viagens missioná-
rias para muitos quilômetros longe dos centros da vida nacional,
entre fazendas dispersas nas imensas campanhas. Mas nem sinal
de rosto de selvagem. “Cidades que confinem com as terras dos
índios” simplesmente não existem. Para chegar às terras dos índios
é preciso juntar-se aos aventureiros e aos comerciantes, que viajam
para o sul, em caravana ou em veleiros, percorrendo um milhar de
quilômetros. O que há são aglomerados de poucas casas e muitos
barracos: as cidades do futuro.
Em novembro de 1877, Dom Bosco envia para a Argentina um
terceiro grupo de salesianos: 18. Alguém a definiu como a “cruzada
das crianças”, porque havia também oito clérigos juveníssimos. Os
resultados, porém, a justificarão.
Com os salesianos, partem, pela primeira vez, as Filhas de Maria
Auxiliadora: um grupo pequeno, uma das costumadas “coisas de
nada”, com que Dom Bosco sempre iniciou empresas gigantescas.
Após essas primeiras FMA (que a Madre Mazzarello acompanhou
até o navio), milhares de missionárias atravessarão o oceano.
O arcebispo de Buenos Aires percebe que Dom Bosco está fa-
zendo por sua diocese “coisas além do limite do possível”. E quer
mostrar seu reconhecimento. Para secundar os seus desejos, envia
o seu vigário, monsenhor Espinosa, e dois salesianos numa excur-
são até à Patagônia, às terras dos índios. Assim Dom Bosco poderá
finalmente ter as desejadas notícias “a respeito dos selvagens”.
Em 7 de março de 1878, às margens do rio Paraná, o padre Cos-
tamagna, o padre Rabagliati e o vigário monsenhor Espinosa em-
barcam num vapor que vai ao sul. Deverão desembarcar em Bahia
Blanca (mil quilômetros por mar). Dali prosseguirão “de alguma
maneira” por mais 250 quilômetros até Patagones, no rio Negro
(que separa os Pampas da Patagônia).
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44.2 Page 432

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A tentativa não só faliu como quase mudou-se em tragédia: de-
sencadeou-se uma tempestade e de tal forma, por três dias e duas
noites, o vento pampero sacudiu e balançou o vapor que, por fim,
desarvorado, teve de voltar ao porto de Buenos Aires.
A coloridíssima carta, com que a tempestade foi descrita a Dom
Bosco pelo padre Costamagna, foi um êxito fabuloso entre os rapa-
zes de Valdocco e os leitores do Boletim Salesiano.
“A cruz segue a espada. Paciência!”
A segunda expedição para a terra dos índios iniciou-se a 16 de
abril de 1879. Júlio Roca, general e ministro da Guerra estava de
partida para o sul com 8 mil soldados. Era uma vasta expedição
de “rastelamento” contra as tribos indígenas que provocavam
contínuas sublevações e guerrilhas.
Em expedições anteriores muitos índios haviam sido massacra-
dos, outros levados a Buenos Aires e distribuídos como escravos pe-
las famílias. Nas tribos supérstites reinava um ódio profundo contra
os brancos. Fácil prever que os índios preferiam ser exterminados a
ter que render-se. Fácil, igualmente, prever que os soldados deixar-
-se-iam arrastar aos costumados massacres.
O ministro da Guerra quis, por isso, tentar o uso de “meios mo-
rais”. Pediu ao arcebispo sacerdotes que fossem capelães militares
entre as tropas e missionários entre as tribos dos índios. O arcebis-
po mandou-lhe o seu vigário e os salesianos padre Costamagna e
padre Botta.
“Isso não agrada muito ao padre Costamagna – escreve, nesses
dias, o padre Bodrato a Dom Bosco. – Teme que o padre, misturado
aos soldados, afaste aquela gente do Evangelho. Seja como for, ago-
ra, mais do que nunca, devemos rezar por eles.”
Buenos Aires, Azul, Carhué, Choele-Choel, Patagones: perto de
1.300 quilômetros percorridos a cavalo ou em carretas chacoalhan-
tes, estilo faroeste. É a primeira “viagem missionária” levada a cabo
por dois salesianos, narrada com vivacidade bem popular nas cartas
que o padre Costamagna envia a Dom Bosco durante o trajeto. Lidas
com grande comoção em Valdocco, publicadas no Boletim Salesia-
no e nos jornais católicos, essas cartas despertam um entusiasmo
sem limites.
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44.3 Page 433

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Apresentamos alguns fragmentos.
Com o ministro da Guerra e muitos militares, partimos de Azul. É o último
povoado da Argentina. Depois dele começa o grande deserto dos Pampas.
A cruz segue atrás da espada. Paciência! O arcebispo aceitou, e nós
inclinamos a cabeça.Aos três deram-nos um cavalo e uma carreta: nela vão
o altar, o harmônio e a bagagem.
No primeiro dia avistamos, de quando em quando, toldos ou cabanas
feitas com peles de animais: são índios Pampas, já quase civilizados, de cor
bem morena, rosto largo e achatado. Passando perto, os saudamos com
algumas palavras de sua língua. E seguimos em frente, através do deserto...
Carhué é uma estação no coração do deserto dos Pampas, linha de fronteira
entre a Argentina e as tribos índias.A estação é formada por um forte todo
de terra, umas quarenta entre casas e toldos de duas tribos de índios, os
Eripaylá e os Manuel Grande. Pedi um cavalo e fui até aquelas tribos.
À medida que eu ia me aproximando das tolderias, não deixava de sentir
o coração bater: e agora, como fazer?... Mas eis que me vem ao encontro
o filho do cacique Eripaylá, o qual, para minha sorte, sabe falar espanhol.
Recebeu-me cordialmente, levou-me à presença do pai e serviu-me de
intérprete. O cacique me acolheu com toda bondade e me disse que era
seu vivo desejo que todos se instruíssem na religião católica e recebessem
o batismo. Sem mais, reuni os meninos e comecei o catecismo. Com um
pouco de esforço, ensinei-lhes o sinal da cruz...
Em Carhué pudemos administrar uns cinquenta batismos às crianças dos
índios e uns vinte a filhos de cristãos. Oxalá pudéssemos ficar aí ao menos
um mês! Mas o ministro pediu que o seguíssemos. Foi com pesar que
partimos, mas com o desejo vivíssimo de ali retornar quanto antes...
Seguimos pelo caminho do deserto, não só em companhia do exército
mas também de grupos de indígenas que por ordem do ministro deviam
transferir-se e levar seus toldos para Choele-Choel e formar nessas novas
fronteiras um povo novo. Por um mês inteiro, deserto e mais deserto...
Aos 11 de maio, após passar por vales e montes, lagoas e rios, chegamos
finalmente ao rio Colorado, curso d’água que pode, mais ou menos,
comparar-se ao nosso rio Pó, em Turim. À sua margem, celebrei a Santa
Missa.
Pedi e obtive o privilégio de acompanhar a vanguarda do exército, que,
deixando o comboio dos carros, antecipar-se-ia à chegada ao rio Negro.
Três dias a cavalo. Em meio a bosques de espinheiros. Fiz de tudo para
que minha batina não virasse trapo. Na manhã de 24 de maio, levantei
bem cedo. Sacudida a geada que caíra sobre aquilo que devo chamar de
minha cama, aqueci-me ao pé de um lindo fogo e, depois, parti a cavalo.
Ora trotando, ora galopando, cheguei a Choele-Choel, às 16h34 min.
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Nessa hora em que o sol se punha atrás dos Andes, tocava os pés no chão,
às margens do rio Negro, isto é, nos confins da Patagônia.
Entoei, do fundo d’alma, um hino de ação de graças à nossa querida mãe,
Maria Auxiliadora, no dia da sua festa...
Caça ao homem
No dia seguinte, procurei logo em Choele-Choel os índios prisioneiros de
guerra, para catequizá-los. A miséria em que os achei é algo de penoso.
Alguns estavam seminus, não tinham toldos, dormiam ao relento, sem
agasalho. Pobre gente! Ao verem-me chegar, homens e mulheres, meninos
e meninas me rodearam...
Os missionários chegaram até Patagones, centro de 4 mil habi-
tantes no rio Negro, e de lá, pelo fim de julho, regressaram a Buenos
Aires.
Mas a campanha militar do rio Negro continuou por quase dois
anos. Até abril de 1881. Vítimas do medo e do desespero, os índios
fugiram para o Chile através da Cordilheira ou se renderam. O alti-
vo cacique Manuel Namuncurá, com pequenas unidades de índios
guerreiros, fugiu para as bandas da Cordilheira, refugiando-se num
alto vale.
Desde então os índios deixaram de constituir unidades milita-
res. Os agrupamentos supérstites, reduzidos ao medo e à pobreza,
serão, nos anos seguintes, objeto de uma caça silenciosa e cruel,
que procurará reduzi-los a escravos nas estâncias ou, simplesmente,
eliminá-los.
Em 5 de agosto de 1879, o arcebispo de Buenos Aires ofereceu
a Dom Bosco a missão de Patagones. Dom Bosco encarregou o pa-
dre Costmagna de tratar seriamente com o arcebispo “a abertura de
uma casa central de irmãs e de salesianos. Eu cuidarei do pessoal e,
todos juntos, dos meios materiais”.
Na carta de Ano-Novo aos Cooperadores, datada de 1o de janeiro
de 1880, anunciava o começo da missão de Patagones. “Aceitei-a
cheio de confiança em Deus e na vossa caridade”.
Na foz do rio Negro, em margens opostas, tinham crescido dois
aglomerados de habitações: Patagones e Viedma. No dia 15 de de-
zembro de 1879, partiram de Buenos Aires dois grupinhos de sale-
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sianos. A eles haviam sido confiadas as missões de Patagones e de
Viedma. O padre Fagnano, pároco de Patagones, junto com dois
sacerdotes, dois coadjutores e quatro irmãs, teria que pensar em
todas as colônias e tribos, entre o rio Negro e o rio Colorado: um
território chamado La Pampa, vasto quanto a alta Itália, do Piemon-
te ao Vêneto. O padre Milanésio, pároco de Viedma, pensaria em
todos os habitantes ao sul do rio Negro, região chamada Patagô-
nia: território tão vasto como a Itália, do Pó à Calábria.
O padre Fagnano adotou como tática “acolher o maior número
possível de pessoas em casa” Em questão de dez meses, levantou
duas escolas para meninos e meninas. A primeira fornada foi de 88
jovens, alguns, filhos de índios.
O padre Milanésio adotou uma tática totalmente diferente: “vi-
sitar o povo em suas casas”. Montou a cavalo e foi à procura dos
índios. Em pouco tempo, aprendeu a língua, visitou numerosas tri-
bos, fez-se amigo delas; salvou das injustiças dos brancos grupos e
famílias isoladas. Com sua barba esvoaçante, converteu-se na figu-
ra típica do missionário pioneiro. Os índios confiavam nele. E lhe
devotavam grande reverência: invocavam seu nome como palavra
mágica, quando os brancos, chamados civis, os maltratavam.
As táticas dos dois grandes missionários integraram-se perfeita-
mente. Viedma e Patagones tornaram-se sedes de eficientes escolas
e colégios, onde se preparava uma nova geração de cidadãos: ho-
nestos, cristãos, respeitosos dos índios. Tornaram-se pontos estra-
tégicos de onde os missionários itinerantes, seguindo o curso dos
rios, mergulhavam nos vales, colinas e montanhas, para visitar os
toldos dos índios e as fazendas dos colonos brancos.
Manuel Namuncurá, o último grande cacique araucano, quando
decidiu render-se ao governo argentino, escolheu o padre Milané-
sio como mediador da paz. Sob sua proteção, no forte Roca, a 15 de
maio de 1883, o cacique depôs as armas. Em troca, recebeu o título,
o uniforme, o salário de coronel do exército.
“Eu via o interior das montanhas”
Naquele mesmo ano de 1883, a milhares de quilômetros de dis-
tância, Dom Bosco vê, num novo sonho, o futuro da América do Sul
e dos seus missionários.
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...Eu olhava pelas janelas do vagão e via fugirem-me dos olhos variadas
mas estupendas regiões. Bosques, montanhas, planuras, rios intermináveis
e majestosos... Por mais de mil milhas, costejamos a orla de uma floresta
virgem, ainda hoje inexplorada...
Eu via no interior das montanhas e nas profundezas das planícies. Tinha
debaixo dos olhos as riquezas incomparáveis daqueles lugares que um
dia serão descobertas. Via numerosas minas de metais preciosos, minas
inexauríveis de carvão fóssil, depósitos de petróleo tão abundantes como
nunca até agora se encontraram em outros lugares...125
O trem retomou sua corrida através dos Pampas e da Patagônia... Chegamos
ao estreito de Magalhães. Descemos.
Tínhamos à frente Punta Arenas. O chão, por várias milhas, estava atulhado
de carvão fóssil, tábuas, traves, lenha, montes imensos de metais, parte em
bruto, parte trabalhado. O meu amigo acenou a essas coisas e disse: “O
que agora está em projeto um dia será realidade”.
Concluí: “Já vi bastante. Agora leve-me a ver os meus salesianos na
Patagônia”.
Voltamos à estação e subimos ao trem. Depois de percorrer longuíssimo
trecho de estrada, a máquina parou diante de uma povoação considerável.
Desci e achei-me logo com os salesianos...
Fui para o meio deles. Eram muitos. Mas eu não os conhecia, e entre
eles não havia nenhum dos meus antigos filhos. Todos me olhavam
maravilhados. Como se eu fosse um desconhecido. Eu lhes dizia:
– Não me conhecem? Não conhecem Dom Bosco?
– Oh, Dom Bosco, nós o conhecemos de fama. E só o vimos nas fotografias.
Pessoalmente, não.
– E o padre Fagnano, o padre Costamagna, o padre Lasagna e o padre
Milanésio, onde estão?
– Não chegamos a conhecer. São os que vieram aqui antigamente. Em
tempos passados. Os primeiros salesianos que chegaram a estas regiões,
vindos da Europa. Faz muitos anos que morreram.
Diante dessa resposta, pensava admirado:
– Mas isto é sonho ou realidade?
1 Omitida pelo autor, há também uma parte que se referiria ao Brasil e, mais especificamente, a Brasília,
inspirando e motivando até, como se sabe, a sua construção. É por isso que Dom Bosco tem, na nova
Capital, a Ermida, e é um dos Patronos da Cidade.
Eis um trecho (do sonho): “Entre os paralelos 15 de 20, havia um leito muito largo e muito extenso,
que partia de um ponto onde se formava um lago. Então uma voz disse repetidamente: Quando cava-
rem as minas escondidas nesses montes, aparecerá aqui a terra prometida, onde correrá leite e mel.
Será uma riqueza inconcebível...” (cf. Memórias Biográficas, vol. XVI, p. 385-394) (N.T.).
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Embarcamos de novo. A locomotiva apitou e seguimos viagem para
o norte... Por horas e horas avançou pelas margens de um rio muito
longo. O trem corria ora pela margem direita, ora pela margem esquerda.
Entretanto, apareciam sobre as margens numerosas tribos de índios. E o
meu acompanhante repetia:
– Eis a messe dos salesianos! Eis a messe dos salesianos!
Durante o longo e fantástico sonho, o misterioso acompanhante
de Dom Bosco lhe predisse o tempo da completa “redenção” dos
povos selvagens da América do Sul:
– Antes que se cumpra a segunda geração. Cada geração compre-
ende 60 anos.
Indicou também o método com o qual os missionários o ob-
teriam:
– Com suor. E sangue.
O último sonho missionário de Dom Bosco
Na noite de 9 para 10 de abril de 1886, Dom Bosco teria o último
sonho missionário. Contou-o com a voz já quebrada pela fraqueza
e pela comoção ao padre Rua e ao seu secretário, padre Viglietti. É
uma visão grandiosa e serena do futuro.
Dos apontamentos desses seus ouvintes transcrevemos apenas
os trechos que nos parecem essenciais:
... Daquela altura lançou o olhar para o fundo do horizonte. Viu um número
imenso de meninos que lhe corriam ao encontro dizendo:
– Quanto o esperamos! Mas finalmente chegou! Está no meio de nós e não
nos deixará!
Uma pastorinha que guiava um grande rebanho de cordeirinhos, lhe disse:
– Olhe para lá. Vocês também. Todos. O que estão vendo?
– Vejo montanhas. Depois, mar. Depois, colinas. E, de novo, montanhas e
mares.
– Leio Valparaíso – dizia um menino.
– Eu leio Santiago – dizia outro.
– Pois bem – continuou ela – parta desse ponto e verá quanto deverão
fazer os salesianos no futuro.Tire uma linha e olhe.
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Os meninos, aguçando a vista, exclamaram em coro:
– Lemos Pequim.
– Agora – disse a pastorinha – una com uma só linha uma extremidade à
outra, Pequim a Santiago. Marque um centro no meio da África e terá uma
ideia exata de quanto devem fazer os salesianos.
– Mas como fazer tudo isso? – exclamou Dom Bosco. As distâncias são
imensas. Os lugares difíceis. E os salesianos poucos.
– Não se perturbe. Farão isso os seus filhos, os filhos dos seus filhos e dos
filhos deles...Tire uma linha de Santiago ao centro da África. Que vê agora?
– Dez centros de estações.
– Pois bem, nesses centros que está vendo haverá escolas, noviciado, de
onde sairão muitos missionários com que prover a essas terras. Agora vire-
-se para esse outro lado: do meio da África até Pequim, pode ver mais dez
centros. Esses centros também fornecerão os missionários para todas essas
terras. Lá está Hong Kong. Depois, Calcutá. Mais além, Madagáscar. Esses
centros, e outros mais, terão casas, escolas e noviciados.
Quando a vida terrena de Dom Bosco chegou ao fim (1888),
trabalhavam na América Latina 150 salesianos e 50 Filhas de Maria
Auxiliadora, firmemente estabelecidos em cinco países: Argentina,
Uruguai, Brasil, 2 Chile e Equador.
Em treze anos, fizera-se um grande trabalho.26
2 Os salesianos chegaram ao Brasil em 14 de julho de 1883, via Uruguai.A primeira casa aberta foi o
Colégio Salesiano Santa Rosa, em Niterói (RJ). Foi seu fundador o padre Luís Lasagna (o menino dos
cabelos de fogo que Dom Bosco pescou num passeio de outono). Hoje, são cerca de 250 as obras que
os salesianos (seis províncias), as Filhas de Maria Auxiliadora (nove inspetorias) e os Cooperadores
levam avante no Brasil (N.T.).
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Viagens dos missionários salesianos
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Dom Bosco e o arcebispo Gastaldi
Em 1882, falando com o cônego Colomiatti, disse Dom Bosco do
arcebispo de Turim, Lourenço Gastaldi:
– Agora só falta que ele me crave um punhal no coração.
Uma afirmação gravíssima, capaz de bloquear a “causa de
beatificação” de quem quer que a tivesse pronunciado. Entretanto,
os peritos da Santa Sé, após examiná-la ao microscópio por longo
tempo, declararam igualmente que as virtudes de Dom Bosco eram
heroicas: todas as virtudes, também a da paciência. Não viram nessas
palavras nenhum insulto ao seu arcebispo. Nem mesmo um ato de
raiva. Ou de impaciência. Somente o desabafo humaníssimo de um
pobre padre nos limites (não “além dos limites”) da tolerância.
Neste capítulo narramos acontecimentos julgados “escabrosos”
no passado e, por isso, silenciados ou passados por alto pelos bió-
grafos de Dom Bosco.
Esperamos que, hoje, os cristãos já tenham crescido, se tornado
adultos. Esperamos que não cause escândalo e seja, ao invés, cons-
trutivo conhecer como até os maiores “homens de Deus” se tenham
enganado. Como, em nome de Deus, possam não só sofrer, como
também fazer sofrer. É que, na face da terra, somos todos pobres
humanos, qualquer que seja o uniforme que vistamos ou as gradua-
ções que levemos sobre nós.
A frieza de dom Riccardi
O choque com o seu arcebispo – um choque longo, humilhante,
aflitivo como uma coroa de espinhos – teve-o Dom Bosco durante
os anos das suas mais esplêndidas realizações.
Dom Fransoni morreu no exílio, em Lião, em 1862. Ele ordenara
Dom Bosco sacerdote. Vira nascer e crescer a sua obra. Apoiara-o
sempre. Chamara o oratório “a paróquia dos rapazes sem paróquia”.
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45 Pages 441-450

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Por litígios políticos, só em 1867 Turim recebeu um novo arce-
bispo, dom Alexandre Riccardi, da família dos Condes de Netro.
Tinha sete anos mais que Dom Bosco. E os dois eram grandes ami-
gos. Quando Riccardi foi nomeado para Turim era bispo de Savona.
Dom Bosco foi visitá-lo e ele o abraçou efusivamente. Disse-lhe que
conhecia a sua notável capacidade de trabalho entre os jovens e o
bem que estava fazendo com os seus padres no “pequeno seminá-
rio” de Mirabello. Ia a Turim com um plano bem definido: confiar-
-lhe a regeneração dos pequenos seminários de Giaveno e de Brá e
a reestruturação do seminário de Chieri.
Porém, já no primeiro encontro em Turim, dera-se também uma
primeira ruptura. Dom Bosco lhe manifestou que, desde 1859, fun-
dara uma Congregação religiosa e que a Santa Sé lhe dera uma pri-
meira aprovação com o “decreto de louvor” em 1864. Dom Riccar-
di caiu das nuvens. Disse-lhe um tanto agitado:
– Pensava que sua instituição fosse diocesana e, por conseguin-
te, dependente apenas de mim. Pensava que iria trabalhar somente
para a minha diocese...
O estupor e a tristeza de dom Riccardi, eram mais que compre-
ensíveis: num momento em que, depois de tantas contrariedades,
se tratava de reunir as forças da diocese, de unir-se firmemente em
torno do bispo, Dom Bosco parecia esquivar-se. Ele mirava a uma
missão maior e já olhava mais para a Igreja universal do que para a
diocese de Turim.
A frieza de dom Riccardi por Dom Bosco e por sua obra foram
crescendo nos três anos seguintes.
Quando se fechara o seminário metropolitano, muitos clérigos
se haviam refugiado no oratório de Valdocco, outros no Cottolen-
go. Isso atraíra sobre Dom Bosco muitas simpatias, fazendo o ora-
tório aparecer como uma cidadela providencial, como um refúgio
para as esperanças juvenis do clero turinense.
Agora a situação mudava radicalmente. No dia 11 de setembro
de 1867, o arcebispo escreveu a Dom Bosco:
Quanto a meus clérigos diocesanos, não mais permito que lecionem, deem
aulas particulares,assistam os meninos nos dormitórios,façam de prefeitos.
E isto para favorecer o estudo dos clérigos. Estabeleci também não conferir
Ordens Sacras senão àqueles que estão no seminário.
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Começavam para Dom Bosco tempos sombrios: muitos clérigos
que não tinham intenção de ficar com Dom Bosco para sempre
deixaram o oratório e foram para o seminário. Quanto aos que já
estavam ligados a ele pelos votos, perguntavam-se com apreensão
quando, afinal, poderiam ordenar-se sacerdotes.
Dom Bosco foi falar com dom Riccardi e se expressou com certa
vivacidade:
– Segundo as suas ordens, os jovens padres devem ir para o Co-
légio Eclesiástico, os clérigos para o seminário. Deverá Dom Bosco
ficar sozinho no meio de todos os seus rapazes?
O arcebispo fincou pé na sua posição. Felizmente, a corda man-
teve-se esticada por pouco tempo: a 1o de março de 1869, um de-
creto da Santa Sé (vivamente solicitado por Dom Bosco) aprovara
oficialmente a Sociedade Salesiana. Um outro decreto concedia a
Dom Bosco, por dez anos, a faculdade de dar as “cartas dimissórias”
aos clérigos que haviam entrado no oratório antes dos 14 anos. Isso
significava que quem tivesse crescido no oratório desde pequeno
podia ser apresentado por Dom Bosco para receber as Ordens Sa-
cras com um seu atestado de garantia (cartas dimissórias), mesmo
que não tivesse frequentado o seminário.
Dom Riccardi faleceu em outubro de 1870.
“O senhor o quer, eu lho dou”
Pio IX apreciava grandemente a Dom Bosco e o consultou para
a escolha do novo arcebispo de Turim. Dom Bosco propôs dom
Lourenço Gastaldi, bispo de Saluzzo. Eram muito amigos, e dele a
sua Congregação recebera muita ajuda. Pio IX, que conhecia o jeito
muito vivo de Gastaldi, não era do mesmo parecer. Mas Dom Bosco
insistiu. E o papa (segundo o testemunho do padre Amadei) acolheu
a proposta dizendo:
– O senhor o quer, eu lho dou. Deixo-lhe o encargo de levar ao co-
nhecimento de dom Gastaldi que o estou nomeando para arcebispo
de Turim e no prazo de um par de anos fá-lo-ei alguma coisa mais.
(Era uma alusão bastante explícita à púrpura cardinalícia.)
Dom Bosco telegrafou imediatamente a dom Gastaldi:
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“Excelência, tenho a honra de participar-lhe por primeiro que
será nomeado arcebispo de Turim”.
Apenas Dom Bosco voltou de Roma, dom Gastaldi voou a Tu-
rim. “Encontrando o padre Lemoyne, abraçou-o e subiu com ele
(ao escritório de Dom Bosco). Estava inquieto, presa de vivíssima
impaciência. E eis que comparece Dom Bosco. O bispo toma-lhe da
mão, acompanha-o, detendo-se com ele demoradamente em íntimo
colóquio” (Memórias Biográficas, vol. X, p. 446). Com um vislum-
bre de imprudência, pelo fim do colóquio, Dom Bosco deixou-lhe
perceber que ele mesmo havia contribuído para a sua nomeação.
Comunicou-lhe as palavras precisas do papa: “Agora arcebispo.
Dentro de dois anos, algo mais”. O bispo cortou: “Deixemos agir a
Divina Providência”. Era um ato de humildade, mas já havia um véu
de susceptibilidade.
A amizade de Dom Bosco com Gastaldi podia-se dizer inabalável.
A mãe do bispo havia trabalhado por muitos anos no oratório: con-
siderava Dom Bosco como um filho (Dom Bosco e dom Gastaldi
tinham a mesma idade).
Quando Dom Bosco procurou ter de algum bispo uma carta de
recomendação, para que Roma aprovasse a Congregação, dom Gas-
taldi escreveu-lhe uma. Belíssima:
Dou testemunho de que o arcebispo Fransoni, enquanto estava no triste
exílio de Lião, afirmou considerar esta Congregação como uma bênção
especial do Céu, porque, enquanto os seminários diocesanos iam sendo
fechados, nela muitos jovens podiam se preparar para o sacerdócio (11 de
julho de 1867).
Dez meses depois, tornava a escrever:
Aqui o misericordioso Deus expande em medida superabundante as suas
bênçãos. Aqui vê-se uma missão particular pela juventude... O abaixo-
-assinado viu como por milagre surgir no seio da Congregação uma igreja
colossal (o santuário de Maria Auxiliadora), que causa maravilha a quem
a examina, e que pela despesa de mais de meio milhão de liras, susten-
tada por pobres sacerdotes que nada possuem, é como um portento, o
qual prova que Deus abençoa esta Sociedade.
Em seu volume Memórias históricas, escrevera do bairro de
Valdocco:“Este território mostra-se evidentemente abençoado por
Deus em razão dos vários institutos de caridade e piedade que aí
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45.4 Page 444

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surgem. Basta dizer que ali se podem admirar a Pequena Casa da
Divina Providência e o oratório de São Francisco de Sales”.
Dom Bosco sempre se dirigiu a ele como a um amigo fraterno.
Chegou mesmo a mandar-lhe o projeto de construção do santuário
de Maria Auxiliadora para que o revisse e aceitou algumas modifica-
ções sugeridas por ele.
Foi um grande arcebispo
Em Turim, dom Gastaldi foi um grande arcebispo.
Dom Duc, bispo de Aosta, traçou dele este perfil:
Nascera para ser bispo. O ascendente do caráter, o vigor dos projetos e da
vontade, a extensão da ciência, a facilidade da palavra, o fervor da piedade,
o apego à doutrina de Roma, o amor apaixonado pelas almas e pela Santa
Igreja, tudo prenunciava nele o chefe de um povo.
Para uma ideia mais global, é necessário integrar essas palavras
com as de dom Re, bispo de Alba, que depôs sob juramento:
O arcebispo tinha, a par das muitas boas qualidades, também uma ideia
um pouco exagerada da própria autoridade e da própria ciência, além
de um caráter açodado, pelo qual às vezes se precipitava nas decisões e
dificilmente, depois, voltava atrás por receio de diminuir o prestígio da sua
autoridade.
Os tempos dos caóticos entusiasmos do Risorgimento haviam
passado. O Concílio Vaticano I dera uma firme virada em direção à
“centralidade” da Igreja. Cada diocese reorganizava-se decididamen-
te em torno do próprio bispo, o qual dependia diretamente do papa.
Dom Gastaldi foi um grande reorganizador da arquidiocese de
Turim. Infundiu vida e disciplina ao seminário. Concentrou em suas
mãos todas as forças eclesiásticas da cidade. Nas cartas pastorais fez
sentir aos fiéis os vivos problemas da Igreja, conclamou a um maior
vigor na vida de fé. Citamos só dois exemplos.
Da carta pastoral de 1873:
No ano findo, passaram à eternidade mais de 40 sacerdotes diocesanos.
Ordenamos apenas 14. Que acham disso, caríssimos irmãos e fiéis? Que
restará do clero, daqui a poucos anos, se não vierem nosso auxílio e não
nos fornecerem todos os meios com que prover esta arquidiocese, de
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meio milhão de almas, com sacerdotes (entenda-se: sacerdotes dignos) de
que ela precisa?
Da carta pastoral de 1877, sobre a educação das meninas:
A educação que se limita a cultivar a sensibilidade religiosa das moças,
a apresentar-lhes como amável quanto há de sentimental nas práticas
da fé; que se contenta com imagens que representem Maria Santíssima
bem arrumada nos cabelos, luminárias, ornamentos do altar, esplendor de
funções, melodias, fragrância de incensos e prédicas, as quais despertam
as simpatias do coração, mas que nunca chega à prática da mortificação,
da abnegação, da humildade, do perdão por amor de Jesus; essa educação
jamais poderá dizer-se cristã, a não se em sentido imperfeitíssimo, jamais
fará donzelas realmente cristãs, realmente imitadoras de Jesus Cristo.
Teve forte e viril devoção a Nossa Senhora. Na véspera da sua
morte, quis ir ao santuário da Consolata, dizendo: “Vamos visitar a
nossa querida Mãe, vamos colocar-nos debaixo do seu manto. Sob
o manto de Maria é consolador viver. E morrer”.
Quando a notícia da sua morte (25 de março de 1883) chegou ao
Vaticano, o cardeal Nina, protetor oficial da Congregação Salesiana,
ficou tomado de grande tristeza: “Achava – escreveu depois – que
os últimos atos de sua atividade pastoral, cometidos em detrimento
dos meus pobres salesianos, iriam dificultar a sua canonização”. É
que só se pensa em canonização para figuras de corpo inteiro.
O erro fundamental de Dom Bosco
Por que, então, entre Dom Bosco e Gastaldi desencadeou-se tão
amarga tempestade? Por que chegou a ser tão grave a tensão, que
foi preciso instaurar um processo no Vaticano, com a intervenção
do próprio papa?
Dom Bosco cometeu um erro fundamental e por ele pagou bem
caro. Numa longuíssima carta ao arcebispo, expedida de Borgo San
Martino, a 14 de maio de 1873, tangeu todas as cordas a fim de
persuadi-lo a voltar a ser o grande amigo de outrora. Mas, entre
outras coisas, escreveu estas linhas infelizes: “Desejo que V. Excia.
seja informado de que certas notas, guardadas nos gabinetes do go-
verno por obra de alguém, estão agora correndo por Turim. Consta
444

45.6 Page 446

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dessas notas que se o cônego Gastaldi tornou-se bispo de Saluzzo,
foi por proposta de Dom Bosco. Se o bispo se tornou arcebispo de
Turim, foi também por proposta de Dom Bosco”.
O erro fundamental de Dom Bosco foi pensar que palavras e
atitudes como essas poderiam despertar reconhecimento, ao passo
que, em dom Gastaldi, só iriam provocar uma extrema susceptibili-
dade.
Ao tempo da citada carta, as intervenções do arcebispo já tinham
atingido extremos dolorosos. E a carta só fez aumentar a irritação
de dom Gastaldi. Devia já tê-lo compreendido nos primeiríssimos
dias, quando cometera esse mesmo erro, embora de forma bastante
atenuada.
Imediatamente após a nomeação, havia-lhe sugerido, sem que o
pedisse, o nome de um pró-vigário, o teólogo Bertagna. Estava-lhe
ao lado no momento da entrada em Turim, e lhe assegurava haver
obtido das autoridades anticlericais uma entrada solene (que, ao
invés, não se realizou). Para uma pessoa de susceptibilidade normal
seriam atitudes de amigo. Mas, para quem a tinha além do normal
(como testemunharia dom Re), eram atitudes de “padrinho”.
Apenas chegado à catedral, tendo subido ao púlpito, dom Gas-
taldi afirmou com energia que “a sua eleição era um gesto inespe-
rado da Divina Providência, para o qual não havia contribuído
nenhum favor humano. Fora o Espírito Santo, e somente ele, a pô-
-lo à frente da Arquidiocese de Turim”. Repetiu tais palavras várias
vezes no mesmo discurso e, isso, com um vigor insólito. Era, pois,
sinal claro de que queria alijar dos ombros “toda a proteção”. E era
também sinal de que não lhe agradava a voz corrente de que fora
Dom Bosco a obter-lhe a nomeação (boato que corria a cidade). O
cônego Sorásio, presente à alocução, murmurou:
– A coisa vai mal para Dom Bosco! Vai mal! (Memórias Biográ-
ficas, vol. X, p. 230).
O padre Amadei escreve que esse foi “o primeiro relâmpago da
terrível e imprevista tempestade”.
A carta de 14 de maio de 1873 desencadearia a tempestade toda.
Dom Gastaldi jamais digeriu aquelas cinco linhas. Se até para um
simples amigo é difícil fazer deglutir a tirada: “Fui eu que lhe conse-
gui esta condecoração”, para um arcebispo como Gastaldi, então,
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45.7 Page 447

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“que tinha uma ideia um tanto exagerada da própria autoridade”,
tais palavras devem ter sido como fel. Mesmo quatro anos depois,
ao teólogo Tresso, ex-aluno afeiçoado de Dom Bosco, que tentava
uma pacificação, disse com acentos de amargura:
– Vangloria-se de ter conseguido a minha nomeação para bispo.
Aliás, escreveu-me até uma carta, lançando-me isso em rosto. Mas
eu a remeti a Roma, para que vejam o grande santo em quem tanto
confiam.
A responsabilidade dos jornais
Os jornais anticlericais farejaram a possibilidade de jogar dom
Gastaldi contra Dom Bosco, aproveitando, repetidas vezes, a
oportunidade. O Fanfulla de 16 de outubro de 1871 escrevia:
“Para a nomeação dos bispos nas dioceses italianas, recorreu-se
às propostas de Dom Bosco de Turim, chamado expressamente a
Roma”. Em Milão, certo jornal definiu Dom Bosco “o pequeno papa
do Piemonte” (e, é claro, um arcebispo deve depender do papa). A
Gazzetta di Torino, em 8 de janeiro de 1874, escreveu: “Encontra-
se em Roma o célebre Dom Bosco. Muito bem acolhido no Vaticano,
goza do apreço do papa. Também perante o governo, goza de ampla
receptividade”. No número de 6-7 de maio de 1876, a Lanterna
del Ficcanaso (Lanterna do Intrometido) chegou a escrever que o
arcebispo proibira Dom Bosco de rezar Missa porque “tinha muito
apoio de Roma”, se subtraía à sua autoridade e extorquia heranças a
moribundos. E concluía: “Vamos ver quem é mais poderoso: se Dom
Bosco ou dom Gastaldi”.
Essas insinuações da imprensa (e muitíssimas outras que não é
possível catalogar) exacerbaram as feridas.
Posto, porém, apenas nesses termos, a dissensão entre Dom Bos-
co e Gastaldi apareceria distorcida. Nele muito jogou a grande po-
pularidade de Dom Bosco e a demasiada susceptibilidade de Gas-
taldi, “que em Turim não queria bancar o vigário de Dom Bosco”
(palavras ditas ao teólogo Belásio em 1876). Papel igualmente im-
portante, tiveram vários outros elementos: procuraremos destrinçá-
-los (com a máxima brevidade) da meada, que, por treze anos, se foi
emaranhando.
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O tempo do poder e do superpoder
O arcebispo fez grandes coisas pela organização da diocese. Mas
o preço humano com que fez pagar tais realizações foi muito alto:
suspensões, dureza, decisões discutíveis, maneiras odiosas.
Com o passar dos anos, o seu “temperamento forte” acentuou-se
ainda mais. O cônego Sorásio, secretário da Cúria que deveu naque-
le tempo endossar certas intervenções pesadas, escreverá em 1917
ao cardeal prefeito da Congregação dos Ritos:“Deus que me perdoe.
Aquele era o tempo do poder e do superpoder. Para não dizer outra
coisa”.
Suspendia com muita facilidade seus padres da faculdade de re-
zar Missa e de confessar (penas gravíssimas no campo eclesiásti-
co). Muitos intentaram causas em Roma contra ele. Em fevereiro
de 1878, perante a Santa Sé, havia umas trinta causas entre dom
Gastaldi e sacerdotes da diocese de Turim.
Nos primeiríssimos tempos (quando a corda não estava ainda
muito tensa), Dom Bosco intercedeu por um cônego de Chieri, um
tanto cabeçudo, mas pessoa excelente. O arcebispo suspendeu-o
da mesma forma, da Missa e da confissão. Em Chieri foi um escân-
dalo e o pobrezinho, envergonhado, teve de sair da cidade.
O caso mais clamoroso foi o do teólogo Bertagna (o mesmo que
Dom Bosco sugerira como pró-vigário). Depois de ensinar, por vinte
e dois anos, teologia moral nada menos que no Colégio Eclesiástico,
foi, de improviso, exonerado, em setembro de 1876. Suportou em
silêncio, retirou-se para a sua terra, Castelnuovo, enquanto o Colé-
gio foi sem mais fechado. Também pela humilhação, o padre Ber-
tagna adoeceu gravemente.A seguir, em 1879, o bispo de Asti, dom
Sávio, o chamou, fazendo-o seu vigário-geral. Era, com justiça, consi-
derado um dos teólogos moralistas mais autorizados do seu tempo.
Em 1884, o cardeal Alimonda (sucessor de Gastaldi) consagrou-o
seu bispo auxiliar, nomeando-o reitor do seminário arquiepiscopal.
O padre Luís Testa, jesuíta muito acatado em Roma, escrevia nes-
se tempo: “Harmonizei muitas divergências entre dom Gastaldi e
várias pessoas influentes... Em Roma já estamos cansados e mais
que enfarados com todas essas coisas da arquidiocese”.
Seria, contudo, superficial pensar que dom Gastaldi fosse um
bicho-papão. Pessoalmente, era humilde, generoso. Amável. Tinha,
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como se diz, um “coração de ouro”. Tão logo, porém, ao tratar dos
negócios, se sentisse investido da sua autoridade de arcebispo,
acontecia-lhe o que na história da Igreja (creio seja lícito dizê-lo)
se descobre em não poucas pessoas: tornam-se autoritárias. Infle-
xíveis. “Desapiedadas em nome de Deus.” Percebe-se nelas mais o
representante do Onipotente que do carpinteiro-Filho de Deus que
se fez servo dos servos, dedicado a lavar os pés de outros servos. E
se deixou pregar na cruz.
Primeiro elemento: a indisciplina
A mesma inflexibilidade, tornada mais dura pelo temor de apa-
recer em face da diocese como “uma criatura de Dom Bosco”, ele
usou com a jovem e ainda inacabada Congregação Salesiana.
O primeiro elemento que investiu com violência foi a “indiscipli-
na” do oratório:
Estava desgostoso com o fervor vulcânico do oratório e da Sociedade
Salesiana – escreve Pedro Stella –, que Dom Bosco levava com mão firme,
mas que, a estranhos, podia aparecer como um conjunto rumoroso e
caótico de forças desorganizadas que, num amanhã, quiçá iminente,
poderia requerer dolorosas intervenções da parte da legítima autoridade.
Outros também, em Turim, colhiam uma impressão negativa da-
quele clima de serena familiaridade (que constituía, ao invés, as
delícias de Dom Bosco). Dom Caetano Tortone, encarregado dos
negócios da Santa Sé junto ao governo de Turim, em longo relató-
rio, escrevera em 1868:
Experimentei bem penosa impressão ao ver, nas horas de recreio,
aqueles clérigos misturados com os outros jovens, que lá aprendem a
profissão de alfaiate, carpinteiro, sapateiro etc., a correr, jogar, pular, com
pouco decoro... O bondoso Dom Bosco, satisfeito com que os clérigos
mantenham recolhimento na igreja, pouco se interessa em infundir neles
aqueles sentimentos de dignidade do estado que querem abraçar.
Segundo dom Tortone, Dom Bosco devia ensinar aos clérigos a
“conservar as distâncias” dos... vulgares alfaiates e sapateiros. Nada
mais distante, porém, da sensibilidade de Dom Bosco.
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Outro motivo de tensão
A essa “indisciplina” parece que dom Gastaldi quisesse remediar
pessoalmente. E aqui referimos dois episódios um tanto misteriosos,
que não conseguimos explicar totalmente, e que revelam, talvez,
outro motivo de “tensão”.
Logo depois da posse do novo arcebispo, em Turim, Dom Bosco
adoeceu gravemente em Varazze (como já narramos). Dom Gastaldi
pediu notícias. Sabendo da gravidade da doença, perguntou ao pa-
dre Cagliero:
– Quantos de vocês estão firmes e decididos na vocação?
– Mais de 150.
– E se papá Dom Bosco viesse a morrer?
– Procuraremos um tio para lhe suceder.
– Está bem, está bem. Mas esperemos que Deus o conserve.
“Pareceu ao padre Cagliero – comenta Amadei – que, se Dom
Bosco viesse a morrer, o arcebispo esperava que os salesianos se
voltassem a ele para os dirigir.”
Essa foi também a impressão do cônego Marengo, a quem o pa-
dre Cagliero contou o encontro, e que comentou:“Menos mal que
você não disse mais nada. Qualquer proposta teria sido prejudicial
à Congregação”.
Quando Dom Bosco voltou de Varazze curado, o arcebispo foi vi-
sitá-lo. O cônego Anfossi, presente em Valdocco, conta que, enquan-
to os rapazes procuravam improvisar uma breve recepção em hon-
ra de dom Gastaldi, viu “o arcebispo deixar a escada (que vinha do
escritório de Dom Bosco) com passo apressado, de tal forma que, a
custo, Dom Bosco o podia acompanhar. Não ligou para os vivas dos
meninos. Enfiou-se na carruagem sem cumprimentar ninguém. E de-
sapareceu. Então eu disse a Dom Bosco:‘A festa não terminou bem.
Aconteceu alguma coisa?’ E ele respondeu:‘Imagine só: o arcebispo
quereria estar, ele, à testa da Congregação. E isso não é possível. Em
todo o caso, se verá...’” (Memórias Biográficas, vol. X, p.311).
O que teria proposto de concreto dom Gastaldi? Que Dom Bosco
reconsiderasse sua obra, se contentasse em fazer dos salesianos uma
Congregação diocesana sob sua direção? É a opinião mais provável.
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Talvez, porém, não seja arriscado pensar que acariciava o projeto
de tornar-se o chefe efetivo da Congregação Salesiana. Escreverá ao
cardeal Bizzarri em 1874: “Dom Bosco tem talento especial para
educar os jovens seculares, mas não parece dispor à perfeição des-
se mesmo talento para educar jovens eclesiásticos”. Ele é que pen-
sava possuir esse talento e poder tomar estavelmente nas mãos as
rédeas da Congregação, e “pôr as coisas no lugar”. Dom Bosco, já
combalido, continuaria a ser o valente paizinho do oratório.
Esvaídas, como quer que seja, essas possibilidades, pôs-se a exi-
gir dos salesianos uma disciplina férrea, que logo se transformou
em perseguição: toda imperfeição, qualquer atraso foi por ele rotu-
lado de “desobediência”, “rebelião”, “indisciplina”.
Descer a muitos pormenores seria de mau gosto: desavenças são
sempre, e só, desavenças.
A aprovação definitiva das Regras
Aos 30 dezembro de 1873, Dom Bosco partiu para Roma.
Debatia-se perante a Santa Sé, após extenuantes adiamentos e
ponderações, uma questão vital para a Congregação Salesiana: a
aprovação definitiva das Regras.
O papa nomeou uma comissão de quatro cardeais.
As discussões e as sucessivas correções do texto prolongaram-se
até abril. Dom Gastaldi interveio contra a aprovação, mandando ao
cardeal Bizzarri a opinião a que já nos referimos: Dom Bosco tinha
capacidade para educar jovens, não para dirigir clérigos e padres.
No início de abril houve a votação final da comissão cardinalícia:
três votos a favor, um contra. Pio IX, informado de que faltava um
voto para se resolver o debate, disse:
– Esse voto é meu.
Era o dia 3 de abril. Dez dias depois saiu publicado o decreto de
aprovação definitiva das Regras Salesianas. A Congregação depen-
dia agora firmemente do papa, que por dez anos concedia a Dom
Bosco a faculdade de apresentar qualquer salesiano às Ordens Sa-
cras (“cartas dimissórias”).
Em Turim, porém, as coisas não mudaram.
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As listas dos “atos punitivos”
No dia 16 de dezembro de 1876, Dom Bosco teve de expor em
uma carta ao cardeal Ferrieri os principais “pontos de atrito”. Eis a
lista:
– em setembro de 1875, Dom Bosco foi suspenso da faculdade
de confessar (o vigário, cônego Zappata, comentou num ímpeto de
ira: “Mas estas são medidas que só se tomam contra beberrões!”).
Dom Bosco teve de deixar Turim porque os meninos costumavam
confessar-se com ele. O arcebispo nunca expôs os motivos dessa
medida;
– proibição nas casas salesianas de pregar exercícios espirituais
a professores externos;
– suspensão da faculdade de pregar de alguns padres salesianos;
– recusa de participar das celebrações mais solenes do oratório e
proibição de se convidarem outros prelados (também a expedição
dos primeiros missionários fora celebrada sem a presença de um
bispo);
– recusa de administrar a Crisma aos meninos do oratório e proi-
bição de que outros prelados a administrem.
“Essas medidas supõem motivos graves – comenta Dom Bosco
na carta – motivos que não conhecemos. E causam escândalo na
cidade.”
No dia 25 de março de 1878, Dom Bosco deu a conhecer novo
elenco de “providências punitivas” ao cardeal Oreglia:
– Dom Bosco é ameaçado de suspensão imediata das confissões
se escrever qualquer coisa em desfavor do arcebispo, exceto nas
cartas ao papa, ao cardeal secretário de Estado, ao cardeal que deve
cuidar dos religiosos;
– vários padres salesianos foram “suspensos” e continuam sus-
pensos após oito meses;
– recusa-se a ordenar os clérigos salesianos que lhe são apresen-
tados, com grave dano para as casas e as missões salesianas.
Mas também dom Gastaldi mandava os seus relatórios a Roma.
“O contínuo suceder-se de denúncias por qualquer motivo que o
arcebispo considerasse pouco honroso a respeito de Dom Bosco e
da sua Congregação – escreve o padre Ceria – lhe insinuava o des-
crédito perante os cardeais que não estavam a par dos fatos.”
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46.3 Page 453

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O cardeal Ferrieri, por exemplo, por toda a vida se opôs aos
salesianos, convencido de que fossem “um ajuntamento postiço e
provisório de pessoas”.
Mas o que mais fez Dom Bosco sofrer foi o fato de que também
Pio IX, desde sempre amigo e grande protetor, diminuíra o seu afeto.
“Aquela contínua apresentação de Dom Bosco como homem obsti-
nado e quase perverso influiu também no ânimo do papa”, escreve
o padre Ceria.
Pio IX morreu a 7 de fevereiro de 1878. Dom Bosco, que estava
em Roma e fazia de tudo para obter uma audiência, não conseguiu
revê-lo.
O novo papa põe Dom Bosco à prova
O novo papa, eleito a 20 de fevereiro, foi Leão XIII. Dom Bosco
obteve a primeira audiência no dia 16 de março. A relação que es-
creveu logo em seguida é triunfal: o papa aceita ser inscrito entre
os Cooperadores, reconhece que nas obras salesianas há o “dedo de
Deus”, envia bênçãos calorosas aos missionários. Num ponto ape-
nas a relação é rápida: sobre “nossas pendências com o arcebispo
de Turim, disse que aguardava um relatório oficial da Congregação
dos Religiosos”.
Na relação particular que fez a alguns salesianos, Dom Bosco fa-
lou menos triunfalmente. “Fez compreender claramente quanto ha-
via sofrido: audiências impedidas, cartas interceptadas, oposições
claras e secretas de mais de um lado, palavras duras e mortificantes.”
O papa Leão XIII estava, evidentemente, a par das graves con-
trovérsias que pendiam sobre a cabeça daquele padre de Turim e,
se oficialmente o tratava com luvas, procedia cautamente para ver
com clareza. Em seu redor, os adversários de Dom Bosco eram mui-
tos. E aguerridos.
No momento, um de seus amigos de maior confiança era o car-
deal Alimonda, que procurou um meio para “provar” a Leão XIII a
santidade de Dom Bosco. Uma prova difícil, em que brilharia todo
o valor daquele pobre padre.
Em Roma tentava-se construir um santuário ao Sagrado Coração
de Jesus. Não obstante o empenho pessoal do papa, o apelo aos
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bispos do mundo inteiro e as coletas feitas em muitos países, os
trabalhos pararam à flor da terra.
O papa Leão XIII sentia-se aviltado. Foi então que interveio o
cardeal Alimonda:
– Santo padre, eu proporia um modo certo para o bom êxito da
empresa.
– Qual!?
– Confiá-la a Dom Bosco.
– E Dom Bosco aceitaria?
– Santidade, eu conheço Dom Bosco e a sua plena, ilimitada de-
voção ao papa. Quando Vossa Santidade lha propuser, estou certís-
simo de que aceitará.
Dom Bosco naquele momento estava se afogando em despesas...
Construía duas igrejas: em Turim (São João Evangelista) e em Val-
lecrosia (Maria Auxiliadora) e estava empenhado na construção de
três casas: Marselha, Nice, La Spezia. Tinha 65 anos.
No dia 5 de abril de 1880, o papa Leão XIII mandou-o chamar.
Fez-lhe a proposta e disse que, se aceitasse, faria coisa “santa e agra-
dabilíssima” ao papa. Dom Bosco respondeu:
– Para mim o desejo do papa é uma ordem. Aceito o encargo
que Vossa Santidade tem a bondade de me confiar.
– Mas eu não poderei dar-lhe dinheiro.
– E eu não lho peço. Dê-me apenas a sua bênção. E se o papa
mo permite, junto da igreja levantaremos um oratório festivo com
um grande internato, onde possam ser encaminhados ao estudo e
às artes e ofícios tantos pobres meninos, especialmente daquele
bairro abandonado.
– Pois está bem! Abençoo-o e a todos os que cooperarem para
esta obra santa.
Processo no Vaticano
Nesses meses, as relações com o arcebispo continuaram a piorar.
Dom Bosco, para defender a sua Congregação, levou a causa ao Vati-
cano, onde se procedeu a processo regular.
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46.5 Page 455

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A sobrinha do arcebispo, Lorenzina Mazé de La Roche, quando
se tratou da beatificação de Dom Bosco, depôs sob juramento:
A começar do ano de 1873, houve divergências dolorosas entre Dom
Bosco e dom Gastaldi, meu venerado tio... Soube de tais litígios, quer pela
opinião pública, quer pelas confidências feitas por Dom Bosco a mim e
à minha mãe, para exortar-nos a achar um meio de informar diretamente
o arcebispo dos boatos que corriam, principalmente no meio do clero,
também por meio da imprensa, prejudiciais a ambas as partes. Tais
dissídios foram um espinho constante no coração de minha mãe e meu...
Em todas as conversas com minha mãe e comigo a tal respeito, via-se
quão intensamente sofresse Dom Bosco por todas essas provações... Mas
sempre nos falava do arcebispo com tamanho respeito e caridade que
ficávamos edificadas.
Em meu diário daqueles anos deparo registradas estas minhas palavras:
“Por que é que meu tio bispo mudou assim? Ah! Quem exerceu o triste
ofício de suscitar tal discórdia, deverá, por certo, sentir grande remorso”.
Tenho para mim que um dos principais sugestores de tais infortúnios era o
secretário do meu tio arcebispo, isto é, o teólogo Tomás Chiuso, já falecido
há vários anos. É a ele que aludo nas palavras acima referidas. Convidado
com frequência à mesa por meu tio arcebispo, ouvia de seu secretário
frequentes argúcias mordazes e sarcasmos, dirigidos aos de Valdocco: dos
de lá de baixo...
Anotei no meu diário estas palavras de Dom Bosco: “Tem-se, é claro, todo
o desejo de ser forte, ter ânimo nas adversidades, mas, à força de acumular
desgosto sobre desgosto, o pobre do estômago se ressente e cede”. Nunca
vira, em minha vida, Dom Bosco mudar de aspecto, mas, dessa vez, enquanto
falava, tornava-se alternadamente pálido e, a seguir, inflamado no rosto...
Por outro lado, posso e devo atestar que também o meu veneradíssimo
tio, falando comigo, mostrava-se pesaroso, mais com a expressão do que
com palavras, por não serem as suas atuais relações com Dom Bosco,
semelhantes às do início do oratório.
No Vaticano, a causa entre Dom Bosco e o arcebispo foi discuti-
da no dia 17 de dezembro de 1881. Dela participavam 8 cardeais.
Dois votaram pelo arcebispo, 4 por Dom Bosco. O papa, ouvido o
relatório, sustou o debate.“É necessário salvar a Autoridade – disse
ao cardeal Nina protetor oficial dos salesianos. – Dom Bosco é tão
virtuoso que a tudo se adapta.”Era uma segunda carta de que o papa
pretendia lançar mão para medir a santidade de Dom Bosco.
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Cálice amargo para Dom Bosco
E fixou, ele próprio, as condições para a “Concórdia”, com tal
exatidão de palavras que só se encontra em documento de fina di-
plomacia. Para além de toda a sutileza, porém, a substância era cla-
ríssima: Dom Bosco devia escrever uma carta pedindo perdão ao
arcebispo, e o arcebispo responder que estava feliz por esquecer o
passado.
Dom Bosco engoliu amargo. Reuniu o Capítulo da Congregação
e leu o texto da “Concórdia”: todos ficaram consternados. Alguém
propôs pedir tempo para pensar no assunto. Foi o padre Cagliero,
porém, que, com sua franqueza, cortou todas as dificuldades:
– O papa falou e é preciso obedecer. O papa decidiu assim por-
que conhece Dom Bosco e sabe que pode confiar nele. Não se deve
esperar mais nada. Obedecer e pronto.
Dom Bosco escreveu a carta. Recebeu a resposta: “De coração
concedo o perdão implorado”.
Logo após, porém, Dom Bosco escreveu ao cardeal Nina uma
carta da qual se pode medir o “sapo” que devera engolir, e as con-
sequências amargas que estavam em pleno andamento:
As humilhações a que submeteram Dom Bosco são celebradas pela Cú-
ria (de Turim). Tais comentários, ampliados e mal-interpretados, abatem
os pobres salesianos. Dois professores, diretores de casas, pedem para
retirar-se de uma Congregação que lhes aparece como o ludíbrio das auto-
ridades. Outros nossos padres e clérigos fazem o mesmo pedido. Quero,
contudo, guardar rigoroso silêncio, segundo já escrevi a Vossa Eminência.
Sereno. E destruído
Leão XIII, grandíssimo papa na história da Igreja, teve desde esse
momento gestos de extrema gentileza para com Dom Bosco. Foi
ele que nomeou o padre João Cagliero primeiro bispo salesiano, e
concedeu os “privilégios” que tornaram a Congregação “isenta”, não
por dez anos, mas para sempre, da autoridade dos bispos na delica-
da questão das Ordenações.
Mas, ao ser eleito papa, encontrara no Vaticano um ambiente hos-
til a Dom Bosco e, com dois gestos, lhe medira a santidade.
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46.7 Page 457

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Para ver se uma pedra contém ouro, se lança no cadinho, à tem-
peratura de fusão. Se aparece ouro, a pedra é de valor; se não apa-
rece, é escória. Dom Bosco foi provado no crisol. Deu ouro. Ouro
de altíssimo valor. Mas sua humanidade se queimou. Incinerou-se.
“A partir de 1884 – citamos Morand Wirth –, Dom Bosco não passa
de uma sombra de si mesmo.”
Pedir perdão ao arcebispo que o flagelara por dez anos custou-
lhe muitíssimo. Não havia nascido, repitamos, para apresentar a
outra face. Impunha-o a si mesmo. Mas com um esforço violento.
A construção da Igreja do Sagrado Coração, que lhe iria engolir
1 milhão e meio de liras, obrigou-o, nos anos do declínio físico, a
fadigas desumanas.
Dom Bosco aceitou por fé no Vigário de Cristo e por amor à sua
Congregação que tinha necessidade absoluta da estima do papa.
Das duas provas, Dom Bosco saiu sereno e destruído. Por isso, sua
Congregação floresceu admiravelmente: nasceu de um padre cru-
cificado.
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46.8 Page 458

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As grandes viagens: França e Espanha
Começou para Dom Bosco a “cruz do Sagrado Coração”. Antes de
tudo, mandou a Roma o padre Dalmazzo e, depois, o padre Ânge-
lo Sávio, para a avaliarem os trabalhos e “controlar as despesas”.
Difundira-se, infelizmente, por Roma, o costume de “que nos tra-
balhos do papa todos podem comer”. Com frequência Dom Bosco
fará chegar ao padre Damalzzo insistentes advertências nesse senti-
do: “Falta controlar quais provisões entram, quais não”, “Verificar os
preços”, “Fiscalizar o material que deve ser transferido para outro
lugar”, “Trabalha-se pouco, rouba-se em casa e fora, estraga-se ma-
terial; mesas, especialmente”, “Ponha-se um prático para cuidar”...
Logo em seguida, repôs em movimento toda a engrenagem que
tantas vezes se revelara eficaz para angariar fundos: circulares em
várias línguas, rifas, subscrições, cartas pessoais. Tal engrenagem
não era uma varinha de condão. Implicava canseiras, humilhações,
controle, sobrecarga de trabalho para muitíssimos irmãos. A sobre-
carga maior tomou-a sobre si o próprio Dom Bosco.
“Carrego às costas a igreja do Sagrado Coração”
O padre Rua, nos depoimentos juramentados para a beatificação
de Dom Bosco, testemunhou: “Era doloroso vê-lo subir e descer
escadas para pedir esmolas, submetendo-se também a duras humi-
lhações. Sofreu tanto que, alguma vez, na intimidade, a quem dos
seus, vendo-o encurvado, lhe perguntava por que se inclinava tanto
para o chão, respondia: “Carrego às costas a igreja do Sagrado Co-
ração”. Doutras vezes, brincava amavelmente: “Dizem que a Igreja é
perseguida. Eu, ao contrário, posso dizer que a Igreja me persegue
a mim”.Adiantado em anos, saúde precária, pode-se afirmar que tal
obra consumiu-lhe grande parte das forças”.
O trabalho mais duro a que se submeteu foi a grande “viagem à
França” que realizou esmolando de cidade em cidade, por quatro
meses: de 31 de janeiro a 31 de maio de 1883.
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46.9 Page 459

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Permitimo-nos uma observação, de passagem.
Dom Bosco tem 68 anos. Restam-lhe apenas cinco de vida. Sua
Congregação teve um vasto crescimento e o mundo atravessa um
dos mais profundos períodos de recomposição, nas ideias e nas es-
truturas. Dom Bosco precisaria poder dispor de todo o seu tempo
para tentar uma síntese do seu pensamento, das suas intuições; uma
síntese que ficasse como base estável das suas obras. Precisaria em-
pregar o pouco de tempo que lhe resta para repensar seus esque-
mas de ação num contexto social de rápida mudança, para dar uma
organização sólida à sua Congregação.
Nesses últimos anos válidos de sua vida, ao contrário, é obrigado
a “buscar dinheiro”. E não para atender à urgência dos seus jovens
pobres, mas para levantar as paredes de uma igreja de Roma. Telhas
abaixo, algo desconcertante.
Mas são exatamente esses anos “queimados” que obrigam Dom
Bosco a duas grandes viagens (à França e à Espanha) que lhe acen-
dem ao redor um triunfo como “homem de Deus”. Dão-lhe ocasião
de reavivar em enormes massas populares o “senso de Deus”.
Marx definira a religião como “o ópio dos povos”; o anárquico
Bakunin exigia dos seus adeptos uma aberta profissão de ateísmo; a
“Comuna de Paris” havia, pouco antes, manifestado inequívocos si-
nais de ateísmo militante.“As Igrejas cristãs estavam ajustando con-
tas não mais com fenômenos de incredulidade limitados a setores
relativamente restritos dos grupos dirigentes, mas com um preocu-
pante afastamento de vastos estratos sociais da prática religiosa e da
obediência eclesiástica” (Francisco Traniello).
A sociedade inteira estava perdendo o senso de Deus e do respei-
to divino pela vida humana. Nos dias da “Comuna”, a crueldade dos
seus adeptos ateus não era, certamente, superior à dos burgueses
que a sufocaram a canhonaços, massacrando 14 mil trabalhadores
(e trabalhadores, nesse tempo, eram homens, mulheres e... meni-
nos).
Não foi, pois, a serviço de uma igreja, nem dos seus jovens po-
bres, esta última fadiga de Dom Bosco. Foi a serviço de toda uma
geração que corria o risco de perder o senso de Deus e os maiores
valores da vida. Essa geração, na França e na Espanha, redescobre
nele o “sentido de Deus”. E o “sentido de gastar-se pelos outros”.
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46.10 Page 460

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Incandescência em Paris
Seguimos o fio da viagem à França segundo o relato elaborado
por Henri Bosco, que o verificou não só nos documentos salesia-
nos, mas, também nos jornais da França daquele tempo.
Quando partiu, quase não mais enxergava, as pernas mal o sus-
tentavam, sofria de varizes. Seu físico estava totalmente gasto. En-
trou na França por Nice, francesa havia apenas dezoito anos. Subiu
em direção a Paris, via Toulon, Marselha, Avinhão, Lião, Moulins.
Subida lenta. Dois meses e dezenove dias.
Ninguém, ele menos ainda, previa a emoção extraordinária, o
entusiasmo, a afluência de povo, a incandescência da fé que a pre-
sença “de um pobre padre do interior” devia provocar.
A prudência de alguns lhe havia aconselhado: “Não vá à França.
Em Paris, já estão construindo a ‘sua’ igreja ao Sagrado Coração de
Jesus, em Montmartre. Já custou milhões e ainda não acabaram.
Quem lhe dará um vintém?”.
Dom Bosco mais uma vez iria desmentir os “prudentes”. Em Avi-
nhão, o povo se aglomerou desde a estação. Na cidade, corriam
atrás de sua carruagem. Com tesouras, cortavam-lhe pedaços da ba-
tina (tiveram de arranjar-lhe outra às carreiras).
Em Lião, as igrejas se encheram. Rodeavam-no, bloqueavam seus
passos e a carruagem de seus hospedeiros. “Prefiro levar o diabo na
carruagem a um padre como este”, disse um cocheiro, irritado com
a violência do povo.
Em Paris, temia-se um fiasco. A Itália oficial mal passara da alian-
ça com França para aliança com a Alemanha e a Áustria (com o tra-
tado da “Tríplice”). E Dom Bosco era italiano. O governo, além disso,
era rigorosamente anticlerical.
Paris, tão susceptível, acolheu o apóstolo dos pobres com um
fervor incandescente. Ali chegou a 19 de abril e ali ficaria cinco
semanas (salvo breve estada em Amiens e Lille). Hospedou-se em
casa de uma família parisiense amiga, no número 34 do Corso
Messina. Para receber os visitantes, porém, dirigia-se todas as tar-
des à rua Ville-l’Évêque, junto aos Oblatos do Sagrado Coração. E
isto para aliviar os seus hospedeiros da pressão que o povo desen-
cadeava.
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Viagens de Dom Bosco à França e à Espanha
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“É um santo”, diziam. Afirmação perigosa: há sempre o grupo
daqueles que procuram duvidar. E basta uma ninharia para que sur-
ja o ridículo. Deixava-se fotografar com facilidade, quer sozinho,
quer acompanhado. Censuravam-no por isso: vaidade. Mas ele res-
pondia: “É um bom meio, não para me fazer conhecido, mas para
interessar as pessoas por minha obra”. Igualmente facilitou aos seus
biógrafos, como ao doutor D’Espiney, que foi o primeiro a escrever,
em francês, a biografia de Dom Bosco. As inexatidões do livro eram
notáveis, mas publicou 50 mil exemplares, em poucos meses.
Uma fotografia em Paris
Há um retrato de Dom Bosco, o mais famoso feito em Paris. O
rosto de Dom Bosco, naquela foto, é velho, gasto, estragado. Ve-
lho de uma velhice incrível, enrugado como papel amarrotado. Há
sulcos cortando aquela fronte devastada. E um cansaço insanável
deforma-lhe a boca descaída de ambos os lados. Os mesmos olhos,
encovados atrás de hirtas sobrancelhas, não deixam passar senão
um fio de luz. Um olhar quase cego. O homem que está atrás daque-
le rosto sabe o que é o sofrimento. O seu sofrimento e o de todos os
outros que ele fez seus, que salvou para que tivessem neste mundo
menos dificuldade para viver e uma visão do Céu na hora de sua
morte.
À primeira vista, mais que entusiasmo, aquele rosto devia inspi-
rar piedade.
Naquela foto, contudo, veem-se também as mãos de Dom Bosco.
Mãos de trabalhador. Trabalhador honesto. Poderoso trabalhador
da vida. Mãos que se estenderam para abençoar os doentes, para
acariciar as crianças; que restituíram a saúde como as águas de Lour-
des. Vendo aquelas mãos trabalharem, os parisienses não sentiram
pena de Dom Bosco. Pediram-lhe que ele tivesse pena deles. Viram
nele o mensageiro da esperança, o homem de Deus, o dispensador
providencial das curas. E das graças.
Repetiram-se na capital as mesmas cenas da província. Maior a
afluência de povo. Mais cerrada. E Dom Bosco sofreu assaltos mais
rudes e extenuantes. Aí é que estava toda a diferença.
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Escreve Le Figaro daqueles dias:
Diante da casa da Rua Ville-l’Évêque, onde se hospeda Dom Bosco, há filas
de carruagens estacionadas o dia inteiro, durante uma semana. Damas
da mais alta sociedade suplicam-lhe faça para elas, e para os parentes, os
milagres que, dizem, faz com tanta facilidade.
E Le Pélerin:
Contavam-se, inventavam-se até, milagres... As damas da alta sociedade
corriam no encalço desse Santo que não se importa com os aplausos
do mundo, que prepara as prédicas que pronuncia na Madeleine tanto
quanto prepara o que diz a um mendigo: que dispensa a um operário tanto
tempo quanto a um príncipe.
O dia de um pobre padre
Levanta-se muito cedo, às 5. Vai dormir, extenuado, à meia-noite.
Às 6, começam as visitas. Depois vai rezar Missa, nesta ou naquela
paróquia, sempre espionado à saída, assaltado por perguntas, per-
seguido por pedidos, envolvido por súplicas e preces. Querem fa-
lar-lhe. Tocá-lo. Vê-lo ao menos. Detêm-no por toda a parte: numa
escada, numa antessala, à porta de uma sacristia, pela rua. É com
desprazer que chega sempre atrasado a todos os seus compromis-
sos. Seu francês é ruim; o sotaque, estrangeiro; a eloquência, mo-
desta.
Prepara-se para rezar Missa na Arquiconfraria pela conversão
dos pecadores. A multidão é enorme. Alguém quer entrar; não
pode e admira-se: “Que acontece?”. Então uma mulher do povo lhe
diz: “Viemos para a Missa dos pecadores. O celebrante é um santo”.
Quando lhe pedem um “seu” milagre, responde: “Eu sou um pe-
cador, rezem por mim. Mas elevaremos juntos a nossa oração a Nos-
sa Senhora Auxiliadora. Ela sim é quem cura, escuta, compreende
e se compadece. Ela responde lá do Céu. Eu só posso invocá-la”.
Quando, porém, aquele “pobre pecador” a invoca, a Senhora
responde. Sempre. Parece estar ali, ao seu lado. À sua disposição.
As autoridades religiosas mais eminentes o acolheram com cor-
dialidade. O cardeal Lavigerie o esperou na igreja de São Pedro e
falou ao povo recomendando calorosamente fossem generosos.
Chamou-o de “São Vicente de Paulo da Itália”.
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Os apelos à generosidade não foram acolhidos só pelas famílias
ricas. Também pelas pessoas pobres do povo. Todos davam. Dom
Bosco recebeu cheques, moedinhas miúdas, moedas de ouro. Até
joias. Chegou uma hora em que não sabia mais onde pôr as ofertas.
Ausentou-se de Paris uma semana para ir a Lille e Amiens. O
mesmo entusiasmo. Diante das terríveis tesouras que lhe cortavam
a batina, exclamava: “Nem todos os loucos estão no manicômio!”.
Enfim, a partida. No trem que o levava de volta a Turim, seus dois
companheiros – o padre Rua e o padre De Baruel – mantinham-se
calados. Relembravam aqueles dias como um sonho que não mais
poderiam esquecer. Em dado momento, Dom Bosco quebrou o si-
lêncio:
– Lembra-se, padre Rua, da estrada que leva de Buttigliera a Mo-
rialdo? Lá, à direita, há uma colina. E na colina uma casa. Pequena.
Era minha casa e de minha mãe. Naqueles prados eu, menino, leva-
va duas vaquinhas a pastar. Se todos aqueles senhores soubessem
que levaram assim em triunfo a um pobre camponês dos Becchi...
Um cardeal portador de paz
A 18 de novembro de 1883, de forma muito simples, chegou a Tu-
rim o novo arcebispo: o cardeal Caetano Alimonda. Numa audiência
que Dom Bosco terá com o papa Leão XIII, em 1884, ouvi-lo-á dizer:
“Ao nomeá-lo pensei no senhor. O cardeal Alimonda lhe quer bem,
muito bem”.
“A bondade do cardeal – escreveu o padre Céria – foi, para os últi-
mos quatro anos de vida de Dom Bosco, um conforto providencial.”
Pouco depois de sua chegada, Dom Bosco mandou saber se o
arcebispo estava e se podia recebê-lo. O cardeal subiu à carruagem
e desceu imediatamente a Valdocco:
– Para fazer mais depressa, vim eu mesmo, em pessoa.
Eram 10 e meia – relembra o biógrafo, que estava presente. – O
colóquio no escritório de Dom Bosco passou de uma hora. Entre-
mentes, avisaram-se os meninos nas oficinas e nas aulas: os músicos
buscaram rápidos os instrumentos, alguém pendurou velozmente
festões e bandeiras ao longo dos balcões. Quando o cardeal apa-
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receu no passadiço por que se saía do escritório de Dom Bosco, a
banda tocou e os meninos aplaudiram. Disse-lhes sorrindo o arce-
bispo: “Queria fazer-lhes uma surpresa. Mas vocês é que acabaram
fazendo-a para mim”. Acenou com os braços e acrescentou:
– Caríssimos filhos, eu lhes agradeço, os abençoo e me recomen-
do às suas orações.
Visitou as oficinas e ficou longo tempo em oração diante do qua-
dro de Maria Auxiliadora.
“Se eu não voltar mais”
O dinheiro recolhido na França fora abundante. Mas a igreja do
Sagrado Coração se revelava um poço sem fundo. No início de 1884,
havia dívidas enormes para pagar. Mas os cofres estavam vazios.
A 28 de fevereiro, não obstante a saúde abalada, Dom Bosco dis-
se aos seus:
– Vou de novo à França.
O padre Rua e o padre Cagliero procuraram dissuadi-lo. Chama-
ram o médico Albertotti para uma consulta. O doutor, após um
longo exame, disse explicitamente:
– Para mim, se o senhor chegar vivo até Nice será um milagre.
– Se eu morrer, paciência – murmurou Dom Bosco. – Isto quer
dizer que, antes de partir, deixarei as coisas principais em ordem.
Mas eu preciso ir.
Logo ao sair do quarto, Albertotti disse ao padre Rua:
– Fiquem muito atentos. Não me admiraria se morresse de repen-
te, sem que o percebam. Não se iludam.
Dom Bosco chamou depois o padre Rua e o padre Cagliero e,
indicando sobre a mesa o documento oficial, lhes disse:
– Aqui está o meu testamento. Deixei vocês dois como meus
herdeiros universais. Se eu não voltar mais, já sabem como estão as
coisas.
Rua saiu do quarto com o coração partido. Cagliero ficou, mas
tão deprimido a ponto de chorar.
– Afinal, quer mesmo viajar neste estado?
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– Que se pode fazer diversamente? Não percebe que não temos
mais nada para ir para a frente? Se eu não for, onde achar os meios
para pagar as dívidas? Deixar os meninos passar fome? Só da França
posso esperar auxílio.
O padre Cagliero desatara a chorar. Depois, contendo-se a custo,
disse:
– Sempre fomos para a frente à força de milagres. Verá que Nos-
sa Senhora fará mais este. Pode ir, que nós ficaremos a rezar.
– Sim, eu vou. Meu testamento está aqui. Entrego-lho nesta cai-
xa. Conserve-a como minha última lembrança.
A viagem não foi longa. Mas tocando, embora, apenas o sul da
França, foram consideráveis os fundos coletados. Os condes Colle,
de Toulon, puseram-lhe nas mãos, de uma só vez, 150 mil liras.
Em Marselha, o padre Álbera, preocupado com suas condições,
quis consultasse Combal, celebridade médica. Acabado o minucio-
so exame, Combal expressou o seu diagnóstico, com uma imagem:
– O senhor é como uma roupa gasta. Vestiu-a nos dias úteis e nos
dias santos. O único modo de evitar que se rasgue é guardá-la no ar-
mário. Deve ter entendido que lhe aconselho um repouso absoluto.
– Agradeço-lhe, doutor. Mas é o único remédio que não posso
tomar.
As dificuldades financeiras levá-lo-iam ainda a uma última viagem
de peditório.
Em 1886, a dois anos apenas de sua morte, partiu para a Espanha.
Em Barcelona, repetiu-se a acolhida de Paris: ruas repletas, terraços
tomados, aglomerados humanos em torno dos lampiões. Muitas es-
molas! Ofereceram-lhe até uma colina, do “Tibi Dabo”, que domina
a cidade com uma vista maravilhosa.
Voltou pelo sul da França: Montpellier, Tarascon, Valence, Gre-
noble. Um retorno lento para a sua Itália. Pela última vez. A quem
o acompanhava dizia:
– Tudo é presente de Nossa Senhora. Tudo vem daquela Ave-
-Maria rezada com um menino, quarenta e cinco anos atrás, na
igreja de São Francisco de Assis.
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Quanto mais o físico de Dom Bosco se ia curvando, tanto mais ia
crescendo coruscante o seu espírito. O padre Belmonte, diretor de
Sampierdarena, foi um dia desabafar-se com ele:
– Não aguento mais de cansado. Como posso viver assim?
Dom Bosco então curvou-se para a frente, levantou um tanto a
batina, e a calça, mostrou-lhe as pernas, que totalmente inchadas
transbordavam como fofas almofadas por sobre os sapatos. E disse:
– Coragem, meu caro. Descansaremos no Céu.
Na noite de 25 de junho, os ex-alunos prestaram-lhe calorosa ho-
menagem pelo seu onomástico (São João). Dom Bosco agradeceu
comovido. Depois, cansadíssimo, conseguiu somente dizer:
– Sou apenas uma cigarra que canta. E depois morre.
Quem o visse caminhando, sozinho e curvo, e, querendo ajudá-
-lo, perguntasse: “Para onde vai, Dom Bosco?”, ele o fixava com o
seu sorriso doce e respondia: “Para o Céu!”.
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João Cagliero, bispo
Nos planos de Dom Bosco, o padre João Cagliero devia ficar na
América três meses, para reforçar a primeira missão e depois
voltar. Ficou, ao contrário, dois anos.
Em 1877, Dom Bosco mandara para além-mar dois novos grupos
de salesianos, chefiados por dois homens que podiam dominar a
situação: o padre Luís Lasagna e o padre Tiago Costamagna.
Então, o padre Cagliero voltou. Em 1877, realizava-se em Lanzo
o primeiro Capítulo Geral da Congregação. Diretor espiritual da So-
ciedade e único entendido em problemas missionários, convinha
que dele participasse.
Nos anos seguintes, Dom Bosco lhe confiou dois outros encar-
gos delicados: começar a obra salesiana na Espanha e dirigir a Con-
gregação das Filhas de Maria Auxiliadora, que ensaiava os primeiros
passos.
“Quem poderia ocupar o meu lugar?”
1879. Dom Bosco tem apenas 64 anos. Entretanto, sente-se aca-
bado e em rápido declínio. Quer indicar, dentre os primeiríssimos
que o seguiram, alguém que, pouco a pouco, vá assumindo todos
os negócios da Congregação e que, a qualquer momento, o possa
substituir. Um “vigário”, afinal. Nomes possíveis: dois. Rua e Caglie-
ro. Ambos de suma confiança e muito capazes. Aos dois consagra
Dom Bosco um afeto imenso que retribuem na mesma medida. Mas
a escolha de um não iria ofuscar o outro?
Vejamos com que delicadeza Dom Bosco agiu. Certa manhã de
outono de 1879, devendo ir a Foglizzo, pediu ao padre Cagliero que
o acompanhasse. Durante a viagem perguntou-lhe, de improviso:
– Se eu morresse, quem você acha que poderia ocupar o meu
lugar?
O padre Cagliero não fez esconjuros. Só arregalou os olhos:
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– Dom Bosco, não acha que é um tanto cedo para falar dessas
coisas?
– Admitamos que seja. Mas façamos uma hipótese: que nomes
você indicaria?
– Um só. Há um só capaz de ocupar o seu lugar.
– Eu, ao contrário, indicaria dois. Ou antes, três.
– Depois, sim, talvez, haverá dois ou três. No momento, porém,
não creio. E quem seriam esses seus três?
– Antes diga o seu candidato.
– O padre Rua. Só tem o padre Rua.
– De fato. Sempre foi meu braço direito.
– O braço, a cabeça e o coração. Ele é o único capaz de ocupar o
seu lugar, quando Deus quiser mesmo chamá-lo para o Céu.
Dom Bosco foi muito delicado e Cagliero, com igual delicadeza,
se havia esquivado.
Nem uma sombra de nuvem sequer iria perturbar a escolha do
“segundo Dom Bosco”.
Jamais lho disse, mas Dom Bosco ficou sempre muito reconheci-
do ao padre Cagliero por aquelas palavras ditas com franca humil-
dade dentro de uma caleche que os levava a Foglizzo.
O forte abraço do primeiro bispo
Nos dias 16 e 20 de novembro de 1883, emanavam da Santa Sé
dois importantes documentos. A Patagônia setentrional e central
(território de Rio Negro, Chubut e Santa Cruz) era declarada Vicaria-
to Apostólico confiado ao padre João Cagliero, nomeado pró-vicário
apostólico. A Terra do Fogo (extremo território ao sul da Patagô-
nia) era declarada Prefeitura Apostólica e o padre Fagnano nomeado
prefeito apostólico.
O padre Cagliero deveria, pois, agora voltar à América como pró-
-vicário, não como bispo: só mais tarde seria elevado à dignidade
episcopal. Dom Bosco, porém, não estava de acordo. Falou com
o cardeal Alimonda, escreveu ao protetor dos salesianos, cardeal
Nina, pediu vivamente ao papa. Lá estava o cardeal Ferrieri que não
queria saber de tal coisa, mas, desta vez, Leão XIII aceitou o pedido
de Dom Bosco.
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Aos 9 de outubro de 1884, partiu de Roma uma carta para Valdoc-
co:“O Santo Padre, na audiência de domingo passado, consentiu em
investir do caráter episcopal o padre Cagliero, novo Vigário Apos-
tólico na Patagônia”.
Para Dom Bosco foi um dia feliz. Verificava-se o antigo sonho
da pomba e do ramo de oliveira. As palavras ditas a um menino
moribundo “Fará rezar o breviário a muita gente... Irá para longe,
muito longe...” não tinham sido ilusões de um momento. Estavam-
-se realizando.
A consagração se deu no santuário de Maria Auxiliadora no dia 7
de dezembro de 1884. Para Valdocco foi um acontecimento memo-
rável. Um dos primeiros meninos de Dom Bosco, entrado no orató-
rio com 13 anos, órfão de pai, era, aos 46 anos, consagrado bispo de
imensa região missionária.
Dois pormenores.
Ao cabo da imponente função, o jovem bispo, afastando-se do
cortejo, dirigiu-se para sua mãe. A velhinha, de 80 anos, foi-lhe ao
encontro amparada por um filho e por um sobrinho. Dom Cagliero
apertou contra o peito a cabecinha branca, em meio à comoção
dos presentes, acompanhou-a com ternura para que de novo se as-
sentasse.
No caminho da sacristia, em meio à turba, esperava-o Dom Bos-
co com o barrete na mão. O bispo correu-lhe ao encontro, dando-
-lhe um abraço vigoroso. Mantivera oculta por entre os paramentos
a mão com o anel episcopal: de pleno direito, o primeiro beijo per-
tencia ao “seu” Dom Bosco.
O padre Rua, vigário de Dom Bosco
Só depois da nomeação do padre Cagliero para bispo da Patagô-
nia é que Dom Bosco anunciou a escolha de um seu “vigário”. No
dia 24 de outubro de 1884, disse ao Capítulo Superior da Congrega-
ção: “Preciso de uma pessoa a quem possa confiar a Congregação,
pondo-lha nos ombros, deixando a ele toda responsabilidade. O
papa gostaria que Dom Bosco se retirasse totalmente. Minha pobre
cabeça já não aguenta mais...”.
Escreveu ao papa propondo o nome do padre Miguel Rua.
A resposta afirmativa chegou no início de dezembro.
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48.1 Page 471

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Dom Bosco tomou-o pelas mãos
Dom Cagliero devia partir de Turim para América do Sul em 1o de
fevereiro de 1885. Levava consigo 18 salesianos e 6 Filhas de Maria
Auxiliadora. Mas na noite de 1o de fevereiro, acompanhando os mis-
sionários até o trem, Cagliero sentiu-se cansado e voltou a passar a
noite em Valdocco. Subiu ao quarto de Dom Bosco, sentou-se perto
dele e ficaram em silêncio. Depois de uma longa pausa, Dom Bosco
perguntou:
– Seus colegas já partiram?
– Já.
– E você, quando irá?
– Preciso estar em Sampierdarena amanhã.
– Se puder, vá de tarde. Descanse bem.
– Não se preocupe, Dom Bosco. E agora me dê a sua bênção.
– Por que agora? Venha amanhã cedo. Falaremos ainda, com
tranquilidade.
– Não, Dom Bosco. Preciso sair muito cedo.
– Mas se está cansado... Em todo o caso, faça como achar melhor.
– Então me abençoe e também aos meus colegas.
O bispo ajoelhou-se. Dom Bosco tomou-o pelas mãos:
– Então, faça uma boa viagem. Se não nos virmos mais nesta ter-
ra, voltaremos a ver-nos no Céu.
– Não diga isso. Ver-nos-emos ainda.
– Será como Deus quiser. Ele é o patrão. Na Argentina e na Pa-
tagônia, terão muito que fazer. Trabalharão muito e Nossa Senhora
os ajudará.
Começou a fórmula da bênção. A voz chegava lenta. De vez em
quando não se lembrava das palavras. Dom Cagliero as sugeria de-
vagar, e Dom Bosco as repetia docilmente, segurando-lhe sempre as
mãos. No fim, o bispo se levantou:
– Então, boa-noite, Dom Bosco.Agora, repouse.
– Recomendações aos companheiros de viagem, aos salesianos
que trabalham na América, aos Cooperadores... Teria ainda muitas
coisas para lhe dizer... Deus o abençoe.
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“A casa do bispo era uma cabana de troncos”
Nos seus últimos anos, Dom Bosco acompanhou com muito afe-
to e comoção as peripécias missionárias desse seu rapagão vigoroso
e entusiasta. Lia suas cartas e as passava imediatamente ao Boletim
Salesiano para a publicação.
Em julho de 1886, dom Cagliero comunicou-lhe que a parte da
Patagônia setentrional mais importante e povoada estava já inteira-
mente conhecida, visitada e catequizada pelos missionários salesia-
nos.
Naquele mesmo mês de julho, apresentou-se à residência de Pa-
tagones o filho do cacique Sayuhueque, que pediu ao bispo subisse
ao vale de Chichinal para evangelizar os adultos da tribo.
No imenso vale do Chichinal – contou dom Cagliero – batizamos 1.700
indígenas. Dávamos, todos os dias, três horas de catecismo pela manhã e
três horas pela tarde. A casa do bispo era uma cabana feita de troncos e
barro, com teto de ramos que me defendia do sol; e da chuva quando... não
chovia. Nada de camas. Dormíamos sobre peles de animais que com muito
carinho nos deram aqueles bons indígenas, de índole dócil e capazes de
entusiasmo.
Em 1887, dom Cagliero empreendeu uma nova e longa missão
em companhia do padre Milanésio e de mais dois salesianos. A via-
gem de evangelização devia estender-se por 1.500 quilômetros:
vale do Rio Negro, vales dos Andes, passo das Cordilheiras, e desci-
da para Concepción, no Chile.
Por 1.300 quilômetros feitos a cavalo tudo correu bem. O bis-
po pôde administrar 997 batizados, quase todos de índios adultos;
abençoar 101 casamentos; distribuir um milheiro de Comunhões;
administrar 1.513 Crismas. Incalculáveis as horas passadas a dar ca-
tecismo aos pequenos e a evangelizar os grandes.
Manhã de 3 de março.Tinham apenas deixado Malbarco, às mar-
gens do Neuquém, quando acontece um gravíssimo incidente. Rela-
ta o próprio bispo em carta:
Atravessada a Cordilheira a 2 mil metros de altitude, devíamos galopar bem
outros mil. O caminho se desenrolava ao flanco de ásperas paredes de
granito, caindo a pique no abismo. De repente o meu cavalo se empinou e
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48.3 Page 473

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começou a pular como doido. Invoquei Maria Auxiliadora e pulei da sela.
Uma ponta rochosa penetrou-me na carne, quebrou duas costelas e furou-
-me o pulmão. Fiquei como morto. Respirava com dificuldade. Não conse-
guia falar. Os meus companheiros acorreram e, quando pude gaguejar algu-
ma coisa, procurei, para reanimá-los, levar a coisa em brincadeira, dizendo
que, como temos 24 costelas, poder-se-ia muito bem sacrificar algumas
delas.Tivemos que voltar,atravessar dois rios e duas cordilheiras para achar
onde parar e fazer um tratamento. Qual tratamento, porém! Havia apenas
um prático que curava as doenças por sistemas primitivos. Perguntei-lhe se
era também ferreiro para consertar as minhas costelas. Fiquei aí um mês.
E, como Deus quis, sarei.
Ainda convalescente, montei a cavalo e, com meus missionários, numa via-
gem de quatro dias, passei de novo a Cordilheira, a mais de 3 mil metros
de altitude, descendo à doce planura chilena, junto às praias do Oceano
Pacífico. Ali fixei as bases para as novas Casas salesianas de Concepción,
Talca, Santiago e Valparaíso.Assim, nesse ano, com meus três colegas e sem-
pre a cavalo, dormindo em valetas e debaixo de árvores, eu havia cruzado
a América, de um a outro Oceano.
Entrevista com Dom Bosco
Em abril de 1884, Dom Bosco teve que ir a Roma. Alguns benfei-
tores lhe haviam prometido quantias enormes para a igreja do Sa-
grado Coração. Mas depois não lhe deram mais notícias. “É preciso
ir tocar a campainha”, disse Dom Bosco, com um sorriso tristonho.
Nessa ocasião, pela primeira vez em sua vida, Dom Bosco se
submeteu a uma entrevista (técnica jornalística inventada em 1859
pelo americano Horácio Greely). Acreditamos ser mais do que uma
curiosidade ler como Dom Bosco respondeu às “perguntas diretas”
de um repórter do Journal de Rome. A entrevista saiu publicada no
jornal, a 25 de abril de 1884.
Pergunta. Com que milagre foi que o senhor pôde fundar tantas casas em
tão diversos países do mundo?
Resposta. Pude fazer mais do que esperava. Mas “como”, nem mesmo eu
sei. A Santa Virgem, que conhece as necessidades dos nossos tempos,
nos ajuda.
P. E de que modo Ela o ajuda?
R. Veja. Certa vez, para a nossa igreja que se constrói em Roma, escreveram-
-me a Turim que precisavam, no prazo de oito dias, de 20 mil liras. Naquele
momento eu estava sem dinheiro. Pus a carta perto da pia da água benta,
fiz uma fervorosa prece a Nossa Senhora, e fui me deitar, pondo o negócio
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48.4 Page 474

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em suas mãos. Na manhã seguinte recebo uma carta de um desconhecido,
que em resumo me dizia: “Eu tinha feito uma promessa a Nossa Senhora
que, se me concedesse certa graça, daria 20 mil liras para uma obra de
caridade. Recebi a graça e ponho à sua disposição esta minha quantia”.
Outra vez, achando-me na França, recebo a péssima notícia de que uma
das minhas casas precisava dispor imediatamente de 70 mil liras para não
correr grave risco. Não vendo, na hora, como acudir, recorro novamente
à oração. Pelas 22 horas, estava para deitar-me, quando ouço bater à porta
do quarto. Abro. Entra um meu amigo com um pacote nas mãos e me diz:
“Dom Bosco, eu havia destinado no meu testamento uma quantia para as
suas obras. Hoje, porém, me lembrei de que é melhor não esperar a morte
para fazer o bem.Trago-lhe, pois, agora, tal quantia. Ei-la: 70 mil liras”.
P. Estes são milagres. Permita-me uma indiscrição: já fez outros milagres?
R. Sempre pensei em cumprir o meu dever. Rezei e confiei em Nossa Se-
nhora.
P. Quereria dizer-nos qual é o seu sistema educativo?
R. Muito simples: deixar aos meninos plena liberdade de fazer as coisas
que lhes são mais simpáticas. O ponto está em descobrir quais são os
germes das suas boas qualidades, e depois procurar desenvolvê-las.Todos
fazem com prazer só aquilo que sabem poder fazer. Regulo-me por este
princípio. E todos os meus alunos trabalham não só com a atividade, mas
também com amor. Em 46 anos, jamais infligi um castigo. E ouso afirmar
que os meus alunos me querem muito bem.
P. Como fez para estender as suas obras até à Patagônia e à Terra do Fogo?
R. Um pouco por vez.
P. Que acha das condições atuais da Igreja na Europa, na Itália, e do seu
futuro?
R. Eu não sou um profeta. Um pouco, ao invés, são-no todos vocês, jornalis-
tas. Logo, é a vocês que precisaria perguntar o que vai acontecer. Ninguém,
exceto Deus, conhece o futuro. Todavia, humanamente falando, prevê-se
que o futuro será difícil. As minhas previsões são muito tristes, mas não
temo nada. Deus salvará sempre a sua Igreja. E Nossa Senhora, que visi-
velmente protege o mundo contemporâneo, saberá fazer com que surjam
redentores.
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48.5 Page 475

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O grande pranto
Nos últimos anos, a espiritualidade de Dom Bosco se vai afinan-
do cada vez mais. O sofrimento pode levar ao cinismo deses-
perado ou fazer brotar a santidade. Em Dom Bosco, esse brotar
se ia notando quase que diariamente. E como que transfigurava tam-
bém a sua humanidade.
No último decênio de vida – escreve Pedro Stella – principalmente
depois de 1882, Dom Bosco aparece como o homem que já assimilou o
ensinamento oferecido por uma longa experiência. Parece não mais sofrer
aqueles contrastes que teve de sustentar com Antônio, com os primeiros
colaboradores, com o arcebispo Gastaldi. Mais que nunca ele aborrece
a polêmica; não gosta que se guerreie; deseja que, mesmo durante as
hostilidades e os vexames, não se levante a voz; não se replique, não se
siga o exemplo de alguns jornais católicos de polêmica áspera e corrosiva.
Quer que sob a borrasca se esforcem por passar por entre as gotas sem se
molhar. Seus últimos anos são ainda de grandes contradições, de pouco
apoio oficial, frequentemente de pressões fiscais da parte de autoridades
administrativas e políticas. Mas ele parece, mais que nunca, compenetrado
de um ideal de amabilidade, de benevolência.
Um padre de pequena estatura, sério, pensativo
Em 1883, foi visitá-lo, vindo da Lombardia, um padre baixo, sé-
rio, pensativo. Chamava-se Aquiles Ratti. Conversaram durante uma
boa meia hora: deu à visita todas as informações que queria. Por
último, disse:
– Agora, considere-se o dono da casa. Não posso acompanhá-
-lo porque estou muito ocupado. Mas vá e venha: veja tudo o que
quiser.
Nesse dia estavam presentes, em Valdocco, os diretores das ca-
sas salesianas, chamados para algumas reuniões. Depois do almoço,
enquanto Dom Bosco estava de pé, apoiado à mesa, cada qual ia
expor-lhe as suas dificuldades. O padre Ratti fez menção de retirar-
-se. Mas Dom Bosco, estranhamente, lhe disse:
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– Não, não, não. Fique.
O padre miúdo será, um dia, o papa Pio XI.127Então, quarenta e
nove anos depois, falando dele aos seminaristas romanos, contará
esse fato e dirá:
Havia gente que vinha de todos os lugares, cada qual com suas dificuldades.
E ele, em pé, como se fosse coisa de momento, ouvia tudo, compreendia
tudo, respondia a tudo. Um homem que estava atento a tudo quanto se
passava em seu redor e que, ao mesmo tempo, dir-se-ia não prestasse
atenção a nada, que tivesse o pensamento alhures. E era assim de fato:
estava alhures. Com Deus. E, coisa admirável, tinha a palavra exata para
tudo.
Esta a vida de santidade, de assídua oração que Dom Bosco levava em meio
às ocupações. Ocupações contínuas. Implacáveis.
Uma flor para pensar na eternidade
Em abril de 1885, caminhava com o seu secretário, padre Vi-
glietti, pelos jardins de uma senhora que o convidara à sua mesa.
Caminhava lentamente. Parou ao pé de um canteiro todo florido,
colheu uma violeta e a ofereceu àquela senhora:
– A senhora foi muito gentil em convidar-nos à sua mesa. E eu
quero retribuir-lhe com uma flor, que é um pensamento.
– E que pensamento, Dom Bosco?
– O pensamento da eternidade. É um pensamento que nos deve
sempre acompanhar. Tudo passa neste mundo: só a eternidade fica
para sempre. Trabalhemos para que a nossa eternidade seja feliz.
Dom Bosco pensava na morte, no encontro com Deus. E tal pen-
samento, por vezes, tornava-o sério, pensativo. Um dia de 1885,
cumprimentando um senhor em São Benigno, lhe disse:
– Reze por mim.
– Oh, Dom Bosco, o senhor não precisa!
O padre Piscetta, que estava presente, testemunhou: “Então ele
ficou muito sério. Seus olhos brilharam de lágrimas e disse, com
acento de profunda sinceridade: ‘Preciso e muito’”.
1 Que em 1o de abril de 1934 canonizará Dom Bosco (N.T.).
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“Nossa Senhora está aqui”
Agosto desse mesmo ano (1885). Dom Bosco está em Nizza Mon-
ferrato para a vestidura e a profissão das Filhas de Maria Auxiliado-
ra. Está tão fraco que só pode dar a Comunhão a algumas irmãs. À
vestidura e à profissão ele só assistiu, sentado em uma cadeira de
braços. Ao final quis dizer algumas palavras.
A voz estava muito fraca. O padre Bonetti, ao seu lado, “funcio-
nou como alto-falante”, repetindo para todos as frases que não se
ouviam.
– Ora, pois, quereis que vos diga alguma coisa. Se pudesse falar,
quantas coisas vos quereria dizer! Mas, como vedes, estou velho.
Velho decaído. Quero dizer-vos que Nossa Senhora vos quer muito,
muito bem. E, como sabeis, ela está aqui no meio de vós...
E o padre Bonetti, em voz alta:
– Dom Bosco quer dizer que Nossa Senhora é vossa mãe, que
vela por vós e vos protege.
– Não, não – retomou Dom Bosco. – Quero dizer que Nossa Se-
nhora está mesmo aqui, nesta casa, e que está contente convosco...
O padre Bonetti ainda:
– Dom Bosco vos diz que, se perseverardes no bem, Nossa Se-
nhora ficará contente convosco.
Dom Bosco, então, procurou dominar suas forças, estendeu os
braços e disse:
– Não, não e não! Quero dizer que Nossa Senhora está de fato
aqui! Aqui! No meio de vós! Nossa Senhora caminha por esta casa.
E a cobre com o seu manto.
Dom Bosco e os ricos
Nos últimos vinte e cinco anos, passaram pelas mãos de Dom
Bosco somas muito elevadas. Colossais. Verdadeiros milhões (mi-
lhões dos anos oitocentos).
Dom Bosco foi sempre paupérrimo, é claro; suas mãos jamais se
apegaram a um centavo. Mas houve quem perguntasse: “Será que
Dom Bosco não tranquilizou de modo excessivo os ricos, a esses
que lhe davam grandes quantias? Não acabou por anestesiar-lhes a
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consciência perante a responsabilidade social que lhes incumbia?”.
Uma pergunta legítima.
Depois de examinar a vida de Dom Bosco, parece-nos que ele
usou de grande gentileza para com todos aqueles que o ajudaram:
tanto com o camponês e o operário, que lhe ofereciam centésimos,
quanto com o conde Colle, que lhe passava às mãos 150 notas de
mil.
Algumas pessoas tiveram para com ele uma generosidade extra-
ordinária. A condessa Callori, por exemplo, última reserva a que
Dom Bosco recorria nos casos “impossíveis” sem ser jamais desilu-
dido, foi por ele chamada de “mãe”. Parece-nos uma atitude justa.
Mais do que palavras (principalmente quanto à “anestesia das
consciências”) gostaríamos de apresentar fatos.
Em Sampierdarena, em 1882, foi visitá-lo um padre capuchinho,
confessor de um nobre genovês multimilionário, já velho e sem fi-
lhos. A conversa caiu no assunto e Dom Bosco perguntou-lhe:
– Como é que esse senhor não pratica a beneficência em propor-
ção às suas riquezas?
– Engana-se, Dom Bosco. Todos os anos ele dá 20 mil liras para
os pobres (mais de 20 milhões de liras hoje).
– Só 20 mil liras? Se quiser obedecer a Jesus Cristo, isto é dar, na
proporção do que possui, não bastarão 100 mil por ano!
– Compreendo. Mas não sei como persuadi-lo a isso. Como agiria
o senhor em meu lugar?
– Dir-lhe-ia que não quero ir para o inferno por causa dele e que,
se ele quiser ir, que vá sozinho. Portanto, impor-lhe-ia fazer uma be-
neficência proporcionada ao seu estado. Caso não queira, dir-lhe-ia
que não me sinto disposto a continuar respondendo por sua alma.
– Pois bem, lho direi – prometeu o padre.
Fez. O nobre não gostou e despediu o confessor (Memórias Bio-
gráficas, vol. XV, p. 520).
O mestre de obras Borgo, também em Sampierdarena, presta-
ra muitos favores à casa salesiana para rapazes paupérrimos. An-
tecipara quantias notáveis sem exigir juros. Fizera gratuitamente
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48.9 Page 479

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as plantas. Por dois anos não exigira nenhum estipêndio pelo seu
acompanhamento dos trabalhos.
Morrera-lhe a mulher fazia vinte anos e ele conservava em casa
suas joias e vestidos preciosos. Certo dia, quase por acaso, disse a
Dom Bosco que queria fazer alguma coisa em memória da sua espo-
sa, também como sufrágio por sua alma. Dom Bosco, quase brusco,
lhe disse:
– Se quer agir como cristão, por que conserva em casa tanta coi-
sa preciosa e inútil?
– Que me aconselharia fazer?
– Traga-as para estes rapazes, que não têm nem mesmo o neces-
sário.
O mestre de obras afastou-se quase ofendido. Era um sacrifício
que lhe custava muito. Caminhou, pensou e repensou. Depois de
alguns dias voltou. Dom Bosco estava ainda em Sampierdarena.
Entregou-lhe pessoalmente todas as preciosas lembranças da sua
esposa.
A muitos salesianos parecia dura a linguagem com que Dom Bos-
co se dirigia aos ricos, e ele, em 4 de junho de 1887, disse:
Algumas noites atrás, sonhei com Nossa Senhora. Repreendeu-me porque
algumas vezes não falo da obrigação de dar esmolas. Queixou-se porque os
sacerdotes, do púlpito, têm medo de explicar o dever de dar o supérfluo
aos pobres, e, assim, por sua culpa, os ricos vão acumulando ouro em seus
cofres.
Em 22 de abril de 1887, dirigiu-se, com o padre Belmonte e o pa-
dre Viglietti, de Sampierdarena a Sestri Ponente para visitar a senho-
ra Luísa Cataldi, sua grande benfeitora. Ao final da visita, enquanto
o acompanhava à porta, a senhora perguntou:
– Dom Bosco, que devo fazer para me salvar?
– Para salvar-se deverá tornar-se pobre como Jó.
A senhora ficou desconcertada, e também o padre Belmonte
que ouvira o rápido diálogo. Mas Dom Bosco não acrescentou mais
nada. Já na carruagem que os levava de volta à casa, o padre Bel-
monte, com a costumada franqueza dos primeiros salesianos, disse:
– Dom Bosco, como teve a coragem de falar assim àquela pobre
mulher? Não é pouca a esmola que ela faz...
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– Veja – respondeu Dom Bosco –, nunca há alguém que diga a
verdade aos ricos.
Durante sua última viagem à França, Dom Bosco fez uma peque-
na parada em Hyères. O presidente da Sociedade Marselhesa para
o Comércio, senhor Abeille, quis passar pessoalmente pela igreja
paroquial, para fazer a coleta para Dom Bosco. Ao final, congratu-
lou-se com ele, porque muitos senhores haviam esvaziado a carteira
na bandeja. Dom Bosco lhe disse:
– Acho uma coisa normal. Se são cristãos, devem dar o supérfluo
aos pobres. Veja, senhor Abeille, uma vez que o senhor reserva para
si 100 francos por mês, e 100 francos por mês é muito dinheiro, o
resto deve dá-lo a Deus.
Ficara dolorosamente impressa na mente de Dom Bosco a morte
de uma marquesa de 84 anos, sua benfeitora. Mandara chamá-lo,
confessara-se e, depois olhando-o com olhar desmaiado, dissera-lhe:
– Então devo mesmo morrer?
Dom Bosco procurava falar-lhe de Deus. Mas ela corria os olha-
res em redor, angustiada, e continuando a murmurar:
– Meu lindo palacete, meus aposentos, meu salão tão acolhe-
dor..., deverei mesmo deixá-los?
Ordenara aos servos que lhe trouxessem um rico tapete persa.
Acariciava-o e, como que fora de si, continuava a repetir:
– É tão bonito! Por que o devo deixar?
Ao padre Antônio Sala, que hesitava em sair em busca de benefi-
cência, Dom Bosco disse com energia:
Vá em frente! Os ricos nos ajudam a nós. Mas nós também os
ajudamos, dando-lhes ocasião de socorrer os pobres.
Em 1876, passando por Chieri, Dom Bosco viu José Blanchard, o
moço que tantas vezes esvaziara a fruteira de casa para matar-lhe a
fome. Virara um velhote ele também. Passava pela rua carregando
na mão um prato e uma garrafa de vinho. Dom Bosco, deixando os
padres que com ele conversavam, foi-lhe ao encontro com alegria:
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– Caro Blanchard! Como me sinto feliz por revê-lo! Como vai?
– Vai-se indo, senhor cavalheiro – respondeu com timidez. O
rosto de Dom Bosco ficou triste:
– Por que me chama de cavalheiro? Por que não me trata por
você? Eu sou o pobre Dom Bosco, sempre pobre como quando me
matava a fome.
E virou-se para os padres que estavam perto:
– Meus senhores, este é um dos primeiros benfeitores do pobre
Dom Bosco. Faço questão de que todos saibam, viu Blanchard?!
Porque você fez tudo o que podia por mim. Faço, pois, questão ab-
soluta de que, todas as vezes for a Turim vá almoçar comigo.
Dez anos mais tarde, em 1886, Blanchard soube que Dom Bosco
não ia bem de saúde. E foi a Turim para visitá-lo. Na sala de espera,
o secretário lhe disse:
– Dom Bosco não está bem. Repousa. Não pode receber nin-
guém.
– Diga-lhe que sou Blanchard. Verá que vai me receber.
Do lado de dentro, Dom Bosco reconheceu-lhe a voz. Levantou-
-se com dificuldade e foi-lhe ao encontro. Tomou-o pela mão e o fez
entrar, sentando perto dele:
– Bravo! Blanchard. Você se lembrou do pobre Dom Bosco.
Como vai a sua saúde, a sua família?
Conversaram longamente... Estava quase na hora do almoço:
– Veja, estou velho e alquebrado. Não vou poder descer para
almoçarmos juntos: minhas pernas já não suportam as escadas. Mas
quero que você desça e almoce com os meus salesianos.
Chamou o secretário e disse:
– Acomode este meu amigo no meu lugar, no refeitório do Ca-
pítulo. Rezarei por você, Blanchard: não se esqueça do seu pobre
Dom Bosco.
Naquele dia, o velhinho de Chieri almoçou, confuso, no centro
do Capítulo Superior da Congregação. Contou de sua amizade com
João Bosco, em Chieri. E também do encontro havido dez anos
antes.
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49.2 Page 482

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Dez dias para chegar a Roma
Praticamente terminada, a igreja do Sagrado Coração de Jesus, em
Roma, devia ser consagrada em maio de 1887. Havia naquelas pare-
des sete anos de trabalho, de lutas. E de saúde perdida.
Dom Bosco não poderia suportar uma viagem até Roma. Pensou-
-se em fazê-la dividir em pequenas etapas, com muitas paradas.
Partiu na manhã de 20 de abril. “Saiu de casa – escreveu o padre
Lazzero – que parecia não pudesse aguentar nem mesmo até Mon-
calieri”. Acompanhavam-no o padre Rua e o padre Viglietti. Pela pri-
meira vez na vida, permitiu Dom Bosco que o acomodassem numa
carruagem de primeira classe:
Fez longas paradas nas casas salesianas que havia no trajeto, e em
casas de benfeitores previamente avisados.
Em Florença encontrou-se com a idosa condessa Uguccioni (que
o convidara à sua mansão). Chegou amparado pelo padre Viglietti, e
ela conduzida numa cadeira de rodas. Dom Bosco gracejou:
– Salve, senhora condessa! Algum baile em vista?
– Oh, Dom Bosco! Veja em que estado me encontra...
– Está bem, está bem. Não se assuste: deixaremos nosso baile para
o Céu!
Na estação de Arezzo, um encontro inesperado. O chefe da esta-
ção, apenas o viu, correu para ele, abraçou-o e, chorando de alegria,
lhe disse:
– Dom Bosco, não se lembra de mim? Eu era um moleque sem
pai e sem mãe, em Turim. E o senhor me acolheu, me instruiu, me
quis bem. Se hoje tenho uma linda família e este emprego, o devo ao
senhor.
Chegou a Roma na tarde de 30 de abril.
Levaram-no a visitar o Seminário Lombardo. Quiseram que falasse
aos seminaristas. Conseguiu apenas dizer:
– Pensem sempre naquilo que Deus pode dizer de vocês, não na-
quilo que de vocês, bem ou mal, podem dizer os homens.
Foi recebido pelo papa, que o fez sentar-se perto de si e lhe pôs
nos joelhos uma grande peliça de arminho.
Estou velho, Santo Padre – murmurou Dom Bosco – e esta é a mi-
nha última viagem. Para mim, é a conclusão de tudo. Há muito por
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fazer, mas não preciso recomendar o trabalho aos meus filhos. Antes
– e piscava para o padre Rua que lhe estava ao lado –, devo recomen-
dar-lhes moderação. Há muitos sacrificando a saúde, trabalhando não
só de dia mas também de noite.
– Santo Padre – disse então o padre Rua –, foi Dom Bosco quem
nos deu esse mau exemplo.
O papa sorriu e deu-lhes um sábio conselho:
– A vós e ao vosso vigário devo recomendar que vos preocupeis
mais com a santidade dos salesianos do que com o número. Não é o
número que aumenta a glória de Deus, mas a virtude, a santidade. Por
isso, sede cautos e rigorosos na aceitação.
Enquanto desciam a escadaria, os guardas suíços tomaram posição
de sentido. Dom Bosco lhes disse sorrindo:
– Fiquem tranquilos. Não sou um rei. Sou um pobre padre todo
encurvado.
O longo pranto
Em 14 de maio, realizou-se a solene consagração do templo do
Sagrado Coração.
Dia 15, Dom Bosco quis descer à igreja e celebrar a Missa no altar
de Maria Auxiliadora.
Apenas começara, e o padre Viglietti, que o assistia, viu-o debu-
lhar-se em lágrimas.
Foi um pranto longo, irrefreável. Praticamente durante toda a Mis-
sa. No fim, quase tiveram de carregá-lo à sacristia. O padre Viglietti
sussurrou-lhe, preocupado:
– Que está havendo, Dom Bosco? Sente-se mal?
– Tinha diante dos olhos, viva, a cena do meu primeiro sonho, aos
9 anos. E via e ouvia minha mãe e irmãos discutindo o que eu tinha
sonhado...
Naquele sonho distante, Nossa Senhora lhe havia prometido:
– “A seu tempo tudo compreenderá”.
Agora, olhando para trás na vida, parecia-lhe compreender tudo.
Valera a pena fazer tantos sacrifícios, trabalhar tanto, para a salvação
de tantos rapazes.
A 18 de maio, deixou Roma pela última vez.
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Luís Orione: três cadernos de pecados
Mesmo nesses últimos anos, consumidos embora por viagens e
dívidas, nunca afastou-se Dom Bosco dos seus jovens. Vê-los, ouvi-
-los, dar alguns passos com eles faziam-no reviver, mesmo depois
de dias estafantes.
Em outubro de 1886, entrou no oratório um rapaz de 14 anos,
de Pontecurone. Chamava-se Luisinho Orione. Era filho de um po-
bre calceteiro: passara também ele, junto com o pai, horas e horas,
de joelhos na areia úmida, a assentar pedras, uma em seguida da
outra, ajeitando-as na terra a golpes de maço. Quisera fazer-se frade
em Voghera. Mas ficara doente e viu-se obrigado a voltar para casa.
Aceitaram-no os salesianos de Valdocco.
Luisinho ficou fascinado, encantado, por Dom Bosco.
Quando desce ao pátio (“Agora sempre mais raramente”, recor-
da), os jovens, às dezenas, às centenas, rodeiam-no. Disputam os pri-
meiros lugares, felizes por ouvir dele uma palavra que seja.
Luisinho também se enfia, o mais que pode, por entre os cole-
gas. Dom Bosco fixa-o, sorri-lhe e pergunta se a lua em sua terra é
tão grande como em Turim. E quando o vê sorrir, diz-lhe brincan-
do: Você é mesmo uma coisa!
Luisinho Orione tem um grande desejo: confessar-se com Dom
Bosco. Mas como fazer? Dom Bosco está no extremo das forças.
Confessa apenas alguns salesianos e os alunos do quinto ano de
ginásio, que se preparam para entrar no noviciado. De modo quase
inexplicável, Luisinho alcança esse singularíssimo privilégio. Preci-
sa preparar-se seriamente.
É o mesmo padre Orione quem conta: “No exame de consciên-
cia que fiz, enchi três cadernetas de pecados”. Para não esquecer
nada, consultara alguns formulários. Recopiara tudo, acusara-se de
tudo. Só a uma pergunta, “Você matou?”, respondera não. Depois,
cadernetas no bolso, mãos ao peito, olhos baixos, entrou na fila e
esperou sua vez. Tremia de emoção.
– Que dirá Dom Bosco ao ler todos estes pecados? – e com a mão
apalpava as cadernetas.
Chegou sua vez. Ajoelhou-se. Dom Bosco olhou-o e sorriu.
– Dê-me os seus pecados.
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O rapaz tirou do bolso o primeiro caderninho: Dom Bosco pe-
gou-o, fingiu calcular-lhe o peso e depois o rasgou.
– Os outros.
Também eles tiveram o mesmo fim. O rapaz olhava-o, desorien-
tado.
– A confissão está feita – disse Dom Bosco. – Não pense mais no
que escreveu.
E sorriu. Luisinho nunca mais esquecerá aquele sorriso. Depois
daquela confissão, conseguiu fazer outras.
Um dia Dom Bosco fixou-o nos olhos e disse:
– Lembre-se de que nós dois seremos sempre amigos.
Luisinho não se esquecerá da promessa. Quando souber que
Dom Bosco está à morte, oferecerá a Deus sua vida pela saúde do
amigo. Quando se tornar pai de uma Congregação com oratórios,
casas para rapazes paupérrimos, dirá, pensando em Dom Bosco:
– Caminharia sobre brasas ardentes para vê-lo de novo e dizer-
-lhe:“obrigado”.
Passou três anos em Valdocco. Chamou-os “a estação feliz da mi-
nha vida”.228
2 Luís Orione (1872-1940) fundou os Filhos da Divina Providência. É bem-aventurado. Sua festa se
celebra em 12 de março (N.T.).
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O Oratório ao tempo da morte de Dom Bosco (1888)
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Adeus à terra
Pelo fim de agosto de 1887, realizavam-se, na colina turinense
de Valsálice, alguns cursos de Exercícios Espirituais para jovens
que haviam pedido para entrar na Congregação Salesiana. Dom
Bosco foi para lá e dispôs-se a atender às confissões.
Desde o dia 25 de maio deixara de presidir as reuniões do Ca-
pítulo Superior da Congregação, passando a incumbência ao seu
vigário, o padre Rua; mas participou da reunião feita em Valsálice,
a 12 de setembro.
Na segunda metade de setembro sentiu-se mal. Assaltavam-no a
febre e violentas dores de cabeça. Dias houve em que nem sequer
a santa Missa pôde celebrar. O secretário, padre Viglietti anota no
diário desses dias: “Entretanto, continua alegre, trabalha, escreve, dá
audiências. Precisaria de conforto, no entanto, é sempre ele quem
acaba confortando os outros”.
Uma noite, em fins de setembro. Tentava cear no quarto. Fazia-
-lhe companhia o padre Veronesi, diretor da colônia agrícola de
Mogliano Vêneto. A certa altura, disse:
– Resta-me ainda pouco tempo de vida. Os superiores da Con-
gregação não se convencem disso. Acham que Dom Bosco vai viver
ainda muito... Morrer não me aflige. O que me aflige são as dívidas
da igreja do Sagrado Coração. E pensar que se recolheu tanto di-
nheiro. Esse meu caro padre Dalmazzo é muito bom, mas não sabe
administrar... Que dirão os meus filhos sentindo esse peso nos om-
bros? Reze por mim. No ano que vem, nos Exercícios Espirituais,
não estarei mais...
Sentia a solidão envolvê-lo lentamente
O padre Paulo Álbera, inspetor das casas salesianas da França,
devia partir. E foi despedir-se. Dom Bosco olhou com afeto o seu
“Paulinho” e depois murmurou entre lágrimas:
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– Você também se vai. Todos me abandonam. Sei que o padre
Bonetti viajará esta noite. O padre Rua também partirá. E me dei-
xam aqui, sozinho.
E pôs-se a chorar em silêncio. Era um pobre homem cansado que,
depois de tanto trabalho, sentia a solidão envolvê-lo lentamente.
Também o padre Álbera deixou-se vencer pela emoção. Dom
Bosco, então, num esforço, lhe disse:
– Não pense que o censure, não, viu? Está cumprindo o seu de-
ver. Acontece que eu sou um pobre velho... Rezarei por você. Que
Deus o acompanhe.
Antes de deixar o colégio de Valsálice para descer novamente a
Valdocco, Dom Bosco se deteve um momento com o diretor, pa-
dre Barbéris. Enquanto falava baixinho, mantinha os olhos fixos na
escadaria:
– De ora em diante, estarei eu aqui a cuidar desta casa...
E depois de alguns instantes:
– Mande preparar o projeto.
O padre Barbéris pensava que se referisse à última parte do edi-
fício em construção e disse:
– Mandarei preparar. E nesse inverno lho apresentarei.
– Neste inverno, não. Na próxima primavera. Apresente-o ao pa-
dre Rua...
E continuava a olhar fixamente na escadaria.
Quatro meses depois, no patamar daquela escadaria, preparava-
-se o túmulo para o corpo de Dom Bosco. O projeto do pequeno
monumento que o enfeitaria apresentou-o, de fato, o padre Barbé-
ris ao padre Rua, na primavera de 1888. Então se lembrou daquelas
misteriosas palavras.
Como uma vela que se apaga
Dom Bosco voltou a Valdocco em 2 de outubro. Os meninos
acolheram-no com todo o entusiasmo. Acompanharam-no festiva-
mente, através de todo o pátio, até a escada que o levaria para o
quarto. Os maiores ajudaram-no a subir, degrau por degrau. Em lá
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49.9 Page 489

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chegando, Dom Bosco acenou do parapeito com a mão e os rapazes
responderam-lhe agitando as mãos e gritando: “Viva Dom Bosco!”.
Era uma vela que se ia apagando.
Rezava a Missa na capelinha particular, mas sempre assistido por
algum sacerdote.
Falava e respirava com dificuldade. Às visitas dizia brincando:
– Ando à procura de dois foles de reposição. Os meus não fun-
cionam.
4 de dezembro. O padre Cerruti, encarregado do andamento ge-
ral do oratório, sobe para falar com Dom Bosco. Após acurado exa-
me das coisas, Dom Bosco lhe diz:
– Vejo-o pálido. Como vai de saúde? Tenha cuidado. Faça por você
o que faria por Dom Bosco.
O padre Cerruti se comoveu. E ele:
– Coragem, meu caro Cerruti! Verá como no Céu seremos feli-
zes.
Os secretários entregam-lhe abertas as muitas cartas que che-
gam. Ele anota alguma palavra como traço de resposta: já não pode
responder pessoalmente. A última carta em que, pessoalmente,
acrescenta duas linhas é endereçada à senhora Broquier: “Demos
muito, se quisermos receber muito. Deus a abençoe e guie”.
Durante a Missa, falha a respiração. Celebra dia 4 e dia 6. Domin-
go, dia 11, tenta novamente: chega ao fim prostrado. Foi sua última
Missa.
Chega dom Cagliero
Na tarde de 7 de dezembro chega da América dom Cagliero. O
padre Rua telegrafara: “O Pai em estado alarmante”. Partiu imediata-
mente.
O bispo atravessa o pátio em meio a festivas demonstrações dos
meninos. Mas ele fixa os olhos lá para cima, para trás das janelas
fechadas onde Dom Bosco está se apagando. Entra no quarto. Dom
Bosco está sentado em modesto sofá.
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Dom Cagliero ajoelha-se diante dele, abraça-o, aperta-o ao cora-
ção e apoia a cabeça em seus ombros. A força e a coragem desse
seu antigo rapaz infundem-lhe vida. Apalpa-lhe o peito, onde, na
violenta queda nos Andes, se haviam quebrado as duas costelas e
lhe pergunta:
– Você já está bem?
– Sim, Dom Bosco. Estou muito bem.
Seus olhos, entretanto, se fixam em Dom Bosco: como envelhe-
ceu e desgastou-se em três anos!
Passam parte da noite sentados naquele sofá: o bispo a contar-lhe
tantas coisas das missões, dos salesianos que trabalham tão longe,
dos indígenas que salvaram e batizaram aos milhares... E, de repente,
como outrora quando era menino, lhe pede:
– Dom Bosco, agora me confesse.
Os conselhos que Dom Bosco lhe deu nessa longa conversa, o
bispo os passará ao papel e os levará consigo para América. Entre
outras coisas, Dom Bosco lhe dissera:
Desejo que fique aqui até que estejam sistematizadas todas as coisas depois
da minha morte.
Diga a todos os salesianos que trabalhem com zelo e ardor: trabalho,
trabalho.
Queiram-se todos bem como irmãos: amem-se, ajudem-se, suportem-se.
Nos dias seguintes, Dom Bosco lhe fala ainda demoradamente.
Em dado momento, como que angustiado, lhe diz:
– Estou no fim da vida. Agora cabe a vocês trabalhar, salvar a ju-
ventude. Mas devo manifestar-lhe um receio. Temo que alguns dos
nossos possam interpretar mal o afeto que Dom Bosco manifestou
pelos jovens, julgando se tenha deixado arrastar por demasiada sen-
sibilidade para com eles. E tomem isto como justificação para se
afeiçoarem de maneira inconsiderada a alguma criatura.
– Fique tranquilo, Dom Bosco. Ninguém de nós, jamais, interpre-
tou mal o seu modo de tratar os meninos. E quanto ao receio de que
alguém daí tome pretexto, deixe isso comigo: tal recomendação a
repetiremos a todos.
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16 de dezembro. O médico ordena um passeio de carruagem: o
ar livre lhe fará bem. O padre Rua e o padre Viglietti amparam-no
escada abaixo e o acompanham. Na volta, enquanto a carruagem
sobe lentamente o Corso Vittorio Emanuele, o padre Viglietti avista
sob os pórticos da calçada o cardeal Alimonda. Dom Bosco lhe diz:
– Vá pedir-lhe que venha até aqui um momento. Desejo falar-lhe.
Não posso caminhar até lá.
Rua também desce. Ouvido o recado de Viglietti, o cardeal se di-
rige solícito à carruagem, estende os braços e exclama:
– Oh, Dom Bosco!
Sobe ao veículo, abraça Dom Bosco e o beija com efusão.Vão-se
entretendo por meia hora, enquanto a carruagem prossegue, lenta-
mente, até a rua Cernaia.
Pensamentos com sabor de eternidade
17 de dezembro. As forças começam a abandoná-lo totalmente.
É sábado. Fora do quarto, uns 30 meninos esperam em fila para
confessar-se. Diz ao padre Viglietti:
– Sinto que não vai dar mesmo...
Mas depois de alguns instantes:
– Entretanto, é a última vez que poderei confessá-los. A última
vez... Diga que venham.
18 de dezembro. Visita do padre Eugênio Reffo, dos josefinos.
Diz-lhe com afeto:
– Meu caro, sempre lhe quis bem e sempre lhe quererei muito
bem. Minha vida está no fim. Reze por mim, que rezarei por você.
19 de dezembro. O padre Viglietti o encontra tão disposto que
lhe pede para escrever umas poucas palavras em algumas estampas
que deseja mandar a certos Cooperadores. “De boa vontade”, res-
ponde Dom Bosco.
Meio reclinado no divã, com uma mesinha à frente, escreve em
algumas estampas:
“Ó Maria, alcançai-nos de Jesus a saúde do corpo, se for para o
bem da alma. Assegurai-nos, porém, a salvação eterna”.
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“Fazei logo boas obras, porque poderia faltar-vos o tempo”.
Aí para:
– Sabia – diz admirado ao padre Viglietti – que realmente não sei
mais escrever? Estou muito cansado.
O padre Viglietti, então, sugere-lhe que pare. Mas ele:
– Não. Preciso continuar. Esta é a última vez que escrevo.
E continua a escrever, lentamente, em santinhos, pensamentos
com sabor de eternidade.
“Felizes os que se dão a Deus para sempre na juventude”.
“Quem demora em dar-se a Deus corre grande perigo de perder-se”.
“Meus caros filhos, conservai o tempo e o tempo vos conservará a vós
para sempre”.
“Se fizermos o bem, encontraremos o bem nesta e na outra vida”.
“Quem semeia boas obras, recolhe bom fruto”.
“No fim da vida se recolhe o fruto das boas obras”.
O padre Viglietti, que lhe está perto, lida esta última frase, não
consegue conter as lágrimas, e diz:
– Mas, Dom Bosco, escreva algo mais alegre.
Então ele, enternecido, com um sorriso indescritível:
– Oh, meu pobre Carlinhos, você é mesmo uma criança... Não
chore... Já não lhe disse que são as últimas palavras que escrevo? Em
todo o caso, procurarei obedecer-lhe.
E recomeça a escrever:
“Deus nos abençoe e nos livre de todo o mal”.
“Dai muito aos pobres se quiserdes ficar ricos”.
“Dai e dar-se-vos-á”.
“Deus nos abençoe e Maria Santíssima seja a nossa guia em todos os
perigos da vida”.
“Os meninos são a delícia de Jesus e de Maria”.
“Deus abençoe e recompense generosamente a todos os nossos
benfeitores”.
“Ó Maria, sede a minha salvação”.
E sem perceber, retorna aos pensamentos que sabem à eternidade:
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“Quem salva a alma, salva tudo. Quem perde a alma, perde tudo”.
“Quem protege os pobres será largamente recompensado por Deus no
divino Tribunal”.
“Que grande recompensa teremos por todo o bem que fizermos durante
a vida”.
“Quem faz o bem durante a vida, achará o bem na hora da morte”.
“No Céu, goza-se de todos os bens para sempre”.
Essa foi – numa letra já quase incompreensível – a última frase
que Dom Bosco escreveu.
Silêncio no grande pátio
Nesse mesmo dia concedeu as últimas audiências. Fazia quarenta
anos que dedicava todas as manhãs a aconselhar, abençoar, conso-
lar, socorrer, alegrar aqueles que desejavam falar-lhe. Foi uma das
grandes fadigas da sua vida. Coube à condessa Mocenigo fechar, às
12h30 do dia 20 de dezembro de 1887, a longa série dessas visitas.
De tarde, um novo passeio de carruagem, prescrito pelo médico.
Tinha absoluta necessidade de ar livre. Não obstante seus protes-
tos, desceram-no escada abaixo numa cadeira de braços. Enquanto
a carruagem percorria lenta o Corso Regina Margherita, um desco-
nhecido os para. É um senhor de Pinerolo, um aluno dos primeiros
tempos do oratório. Dom Bosco o reconhece, e o abraça:
– Meu caro, como vão suas coisas?
– Mais ou menos. Reze por mim. Disseram-me, na portaria, que
o senhor passaria por aqui. E eu quis cumprimentá-lo.
– Bravo. E de alma como vai?
– Procuro ser sempre um digno aluno de Dom Bosco.
– Muito bem, bravo. Deus o recompensará. Reze por mim. Seja
sempre um bom cristão.
Parecia que o ar lhe tivesse feito bem. Mas quando o médico,
doutor Albertotti, chegou, encontrou-o muito mal. Mandou que o
acamassem. Estava ali o clérigo Festa, que perguntou a Dom Bosco
como se sentia:
– Só me resta acabar bem.
Entre 20 e 31 de dezembro, o fim parecia iminente.
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O irmão Pedro Enria, que passava com ele todas as noites, resu-
miu em duas palavras esses dias penosos: “Sofria e calava”.
A febre é alta, a respiração difícil. O médico diz:
– É preciso que se alimente.
A seu lado, o padre Viglietti trata de fazer-lhe tomar um pouco
de sopa. Dom Bosco estende a mão para pegar da escudela, mas
o secretário não deixa, porque deseja ele mesmo segurar-lhe mais
perto. Sempre gentil e agradável com quem o servia, Dom Bosco
não deixa de gracejar:
– Está-se vendo que quer comer minha sopa!...
Já dentro da noite, sentindo-se melhor, insiste com humor:
– Viglietti, dê-me um pouco de café gelado, mas que esteja...
quente.
E ria.
No grande pátio, apinhado de jovens, reina um silêncio estra-
nho. Até os pequenos levantam os olhos para aquelas janelas, onde
o seu grande amigo está-se finando.
“Agora preciso que o digam a mim”
23 de dezembro. Ao meio-dia parece que seja o fim. Dom Bosco
sussurra ao secretário:
– Alguém esteja pronto para me dar a Unção dos Enfermos.
A seu lado está o padre Bonetti. Em certo momento aperta-lhe a
mão com força:
– Seja sempre o apoio firme do padre Rua.
Quando chega dom Cagliero, reúne as forças e diz:
– Diga ao papa que a Congregação e os salesianos têm por fina-
lidade especial sustentar a autoridade da Santa Sé, onde quer que
se encontrem, onde quer que trabalhem... Protegidos pelo papa,
vocês irão à África... Atravessá-la-ão... Irão à Ásia e a outros lugares...
Tenham fé.
Ali perto, está igualmente José Buzzetti, com sua imponente bar-
ba ruiva. Dom Bosco não pode falar, mas trata de troçar da mesma
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50.5 Page 495

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forma, esboçando uma saudação militar. Depois consegue murmu-
rar:
– Meu amigo! Será sempre o meu amigo.
À tarde, sentado perto dele está o missionário padre Cassini, que
voltou da América com dom Cagliero. Dom Bosco sussurra-lhe ao
ouvido:
– Sei que sua mãe é pobre. Fale-me livremente, e só a mim, sem
que outros venham a saber dos seus segredos. Dar-lhe-ei tudo o que
você achar necessário.
Pedro Enria presta-lhe os serviços mais humildes. Dom Bosco
contempla-o com reconhecimento e diz-lhe com um fio de voz:
– Pobre Pedro. Tenha paciência.
– Oh, Dom Bosco. Eu daria minha vida pela sua saúde. E não só
eu, sabe. Muitos outros lhe querem bem.
– A única separação que sentirei ao morrer – consegue respon-
der Dom Bosco – será o de afastar-me de vocês.
Já é tarde quando chega o cardeal Alimonda. Disseram-lhe que
aquela podia ser a última noite de Dom Bosco. Entra e abraça Dom
Bosco, que se esforça por dirigir-lhe alguma palavra:
– Reze, Eminência, para que eu possa salvar a minha alma.
– O senhor não deve ter medo de morrer, Dom Bosco. Recomen-
dou tantas vezes aos outros que estivessem preparados!
– Sim... agora preciso que o digam a mim.
Na manhã de 24, trazem-lhe o Viático. E dom Cagliero administra-
-lhe a Unção dos Enfermos.
Verifica-se uma leve melhora.
26 de dezembro. Visita-o Carlos Tomatis, aluno do oratório nos
tempos de Domingos Sávio. Apresenta-lhe o filho para que Dom
Bosco o abençoe. Mas não imaginava encontrá-lo tão acabado pela
doença. Ajoelha-se ao pé da cama e apenas consegue dizer-lhe: “Oh,
Dom Bosco! Oh, Dom Bosco!”. Quando sai do quarto, Dom Bosco
faz sinal ao padre Rua, que se inclina para ouvi-lo:
– Lutam com dificuldades – murmura. – Pague-lhes a viagem em
meu nome.
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No mesmo dia visita-o a Madre Catarina Daghero, Geral das Fi-
lhas de Maria Auxiliadora, que lhe pede uma bênção para todas as
irmãs. Dom Bosco murmura:
Oh, sim! Abençoo todas as casas das Filhas de Maria Auxiliadora,
abençoo a Superiora-Geral e todas as irmãs... Procurem salvar mui-
tas almas.
O médico prescreve ao doente rigoroso silêncio e suspensão das
visitas. Dom Bosco passa os dias sonolento e meio acordado.
29 de dezembro. No final do dia, manda chamar o padre Rua e
dom Cagliero. Toma-os pela mão e diz-lhes vagarosamente:
– Queriam-se bem como irmãos. Amem-se, ajudem-se e supor-
tem-se mutuamente como irmãos. O auxílio de Deus e de Maria
Auxiliadora não lhes faltará... Prometam-me que vão amar-se como
irmãos.
Alta noite, pede a Enria um gole de água. Depois diz:
– É preciso aprender a viver. E a morrer.
A hora em que “os monstros” voltam
Parecia o fim. Mas, de 1o a 20 de janeiro, houve uma incrível me-
lhora. Parecia que a saúde voltasse, que o velho tronco reflorisse.
Foi um tempo presenteado por Deus, mas também uma esperança
que logo feneceu.
21 de janeiro. Dom Cagliero entra no quarto:
– Meu caro Dom Bosco, parece que o perigo que temíamos te-
nha sido esconjurado. Chamam-me a Lu para a festa do padroeiro.
É uma terra que nos deu tantos bravos missionários, tantas irmãs.
Depois farei uma rápida visita aos nossos rapazes do bairro de San
Martino.
– Vá. Estou contente. Mas volte logo.
Na manhã de 22, cessaram as esperanças: Dom Bosco voltou a
piorar rapidamente.
Tarde de 24 de janeiro. As condições estão péssimas. Pode-se
perdê-lo a cada momento, dizem os médicos. Volta pesado o tor-
por, a semi-vigília em que se inicia o delírio.
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Pedro Enria, sempre presente, vê que, em dado momento ele
bate palmas e tenta gritar:
– Corram, corram! Depressa! Salvem aqueles rapazes!... Nossa
Senhora, ajudai-os... Mãe, Mãe!
Afirmou alguém que, nessas frases, ditas no delírio, Dom Bosco
manifestava temor relativamente aos jovens em vez de sentido de
confiança. A melhor psicologia afirma, hoje, o contrário: os senti-
mentos, os medos que, durante toda a vida, com grande esforço
de vontade, se “removeram”, parecem, nesses momentos, voltar a
viver. São os “fantasmas”, os “monstros”, que reaparecem, saindo
das jaulas do inconsciente, quando a vontade (que os havia aprisio-
nado) está paralisada, anulada pelo sono da enfermidade.
Dos recuados anos do seminário, trazia Dom Bosco (sedimenta-
do já no inconsciente) um esquema de educação condensado no
binômio temor-desconfiança. Mas, por toda a vida, guiado por seu
amor aos jovens, havia-o reformulado num outro: amizade-con-
fiança. Demonstrara-o, ainda pouco tempo antes, em sua singular
maneira de confessar um rapaz inseguro: Luís Orione.
Paradoxalmente, o que nele, neste momento, parece vencer, é
exatamente o que por ele foi vencido em toda a sua vida.
“Digam aos meus rapazes”
26 de janeiro. Dom Cagliero está de volta. E sobe direto à cabe-
ceira do enfermo. Compreende que o estado é gravíssimo. E tenta
“saber” de Dom Bosco se ainda resta alguma esperança.
– Dom Bosco, chamam-me a Roma. Posso ir?
– Irá, mas depois.
Sua clara voz desapareceu. É uma sombra. As dores são, por ve-
zes, insuportáveis. O padre Lemoyne lhe sugere:
– Pense em Jesus na cruz. Também sofria por não poder se me-
xer.
– Sim, é o que faço sempre.
O dia 27 e a manhã de 28 ficam marcados por um contínuo de-
lírio.
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Tarde do dia 28. A consciência de Dom Bosco reemerge num
dos últimos momentos de plena lucidez. Com ele está o padre Bo-
netti a quem Dom Bosco sussurra:
– Diga aos meus jovens que os espero a todos no Céu.
Dia 29, os médicos acham-no gravíssimo. O doutor Fissore diz-lhe:
– Coragem, espera-se que amanhã as coisas melhorem.
Mas ele, dedo apontado para o médico, o olhar já errante e com
humor:
– Quer ressuscitar os mortos, doutor?... Amanhã?... Amanhã?...
Farei uma longa viagem!...
Nas primeiras horas da noite, diz em voz alta:
– Paulinho, Paulinho, onde está? Por que não vem? (O padre Pau-
lo Álbera, inspetor das obras salesianas da França, não tinha chegado
ainda.)
30 de janeiro. Num momento de lucidez, diz ao padre Rua:
– Faça-se amar.
Perto da uma da tarde, estão com ele Buzzetti e o padre Viglietti.
Dom Bosco arregala os olhos, tenta sorrir. Levanta a mão esquerda
e os saúda. Buzzetti desata a chorar.
31 de janeiro. Pelas duas da madrugada, o padre Rua percebe
que o fim se precipita. Toma da estola e dá início as orações dos
agonizantes. Chamam-se às pressas os demais superiores da Con-
gregação.
Quando chega dom Cagliero, o padre Rua lhe cede a estola e pas-
sa à direita de Dom Bosco. Inclina-se sobre ele e diz-lhe ao ouvido:
– Dom Bosco, estamos aqui, os seus filhos. Pedimos perdão por
todos os desgostos sofridos por nossa causa. Como sinal de perdão
e de paterna bondade, dê-nos mais uma vez a sua bênção. Guiarei
sua mão e direi as palavras da bênção.
O padre Rua levanta-lhe a mão direita já insensível e profere as
palavras de bênção, para os salesianos presentes e ausentes.
Ressoa no quarto a respiração ofegante do moribundo.
Às 4 e meia, cessa de repente: o respiro torna-se curto por instan-
tes, depois desaparece. O padre Belmonte quase grita:
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– Dom Bosco está morrendo!
Mais três respiros. Difíceis. Com breve intervalo.
Dom Cagliero reza em voz alta a oração que dele aprendera
quando menino:
Jesus, José e Maria, eu vos dou meu coração e minha alma!
Jesus, José e Maria, assisti-me na última agonia!
Jesus, José e Maria, expire em paz entre vós a minha alma.
Tira a estola dos ombros e põe-na sobre os ombros de Dom Bos-
co, que já entrou na Luz.
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50.10 Page 500

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Bibliografia
Em nosso trabalho servimo-nos dos seguintes textos:
AA. VV., Don Rua vivo. Leumann (Turim), 1973.
Atti del Consiglio Superiore della Società Salesiana, janeiro-junho, 1978.
AUFFRAY, A., Beato Michele Rua. Turim, 1972.
AUFFRAY, A., San Giovanni Bosco. Nova edição de V. MESSORI. Turim, 1970.
BARGELLINI, P., Il Santo del lavoro. Leumann (Turim), 1976.
Bolletino Salesiano, 1877-1889.
BOSCO, H., San Giovanni Bosco. Turim, 1967.
CERIA, E., Annali della Società Salesiana (1841-1888). Turim, 1941.
CICCARELLI, P., Repertorio alfabetico delle “Memorie biografiche” di san
Giovanni Bosco. Turim, 1972.
DESRAMAUT, F., Don Bosco e la vita spirituale. Leumann (Turim), 1970.
Dizionario biografico dei Salesiani. A cura dell’Ufficio Stampa Salesiano.
Turim, 1969.
FAVINI, G., Don G. B. Lemoyne. Turim, 1974.
GIRAUDI, F., L’oratorio di Don Bosco. Turim, 1935.
LEMOYNE-AMADEI-CERIA-FOGLIO, Memorie Biografiche di Don Bosco. 20
volumes. S. Benigno Canavese e Turim, 1898-1948.
LEMOYNE, G. B. , Vita di Don Bosco. 2 volumes. Turim, 1911-1913.
MOLINERIS, M., Don Bosco inedito. Castelnuovo, 1974.
MOLINERIS, M., Fioretti di Don Bosco. Leumann (Turim), 1977.
ROMERO, C., I sogni di Don Bosco. Leumann (Turim), 1978.
SAN G. BOSCO, Il beato Domenico Savio. A cura di E. Ceria. Turim, 1950.
SAN G. BOSCO, Memorie dell’oratorio di san Francesco di Sales. Editado por
Eugênio Ceria. Turim, 1946.
499

51 Pages 501-510

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51.1 Page 501

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SERIÉ, G., San Giovanni Bosco nei ricordi e nella vita degli ex allievi. Turim,
1953.
STELLA, P., Don Bosco nella storia della religiosità cattolica. Vol. 1o. Zurique,
1968; vol. 2o. Zurique, 1969.
VON MATT, L.; Bosco, H., Don Bosco. Turim, 1965.
WIRTH, M., Don Bosco e i salesiani. Leumann (Turim), 1970.
ALFASSIO GRIMALDI, U., Il re “buono”. Milão, 1970.
ANDREOTTI, G., La sciarada di Papa Mastai. Milão, 1978.
COGNASSO, F., Storia di Torino. Milão, 1974.
FIRPO, F., (aos cuidados de), Storia delle idee politiche, economiche e sociali.
Vol. 5o: L’età della rivoluzione industriale. Turim, 1972.
LORTZ, J., Storia della Chiesa. Vol. 3o: Evo moderno. Alba, 1973.
MARTINA, G., La Chiesa nell’età dell’assolutismo, del liberalismo, del totalita-
rismo. Bréscia, 1970.
MONTANELLI, I., Storia d’Italia. Milão, 1971-1976.
MORONI, F., Corso di storia. Vol. 3o. Turim, 1961.
PRANDI, A., L’età moderna. Turim, 1974.
TOUCHARD, J., Storia del pensiero politico. Milão, 1974.
TRANIELLO, F., L’età contemporanea. Turim, 1974.
500

51.2 Page 502

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Índice
Apresentação da edição brasileira.................................................................... 5
Este livro: como e por quê................................................................................ 7
1. O pequeno migrante................................................................................. 11
Uma sacola e a cerração.................................................................... 12
Um sonho que marca o futuro.......................................................... 14
180 páginas para lembrar.................................................................. 15
2. A pequena e a grande tragédia................................................................. 17
Uma estação maldita......................................................................... 17
Um acontecimento que mudaria a face da terra............................... 19
Um general de 27 anos: Napoleão..................................................... 21
O rei atrasa quinze anos o relógio..................................................... 22
3. Os anos da infância.................................................................................. 27
Uma grande pessoa .......................................................................... 27
A bilharda e o sangue........................................................................ 28
Uma vara no canto............................................................................ 30
O diabo no sótão............................................................................... 32
A mancha de óleo que se espalha..................................................... 33
Não sou madrasta. Sou sua mãe!........................................................ 34
4. Março....................................................................................................... 36
Os pés do pobre................................................................................ 37
Bandidos na mata.............................................................................. 38
“Minha mãe me ensinou a rezar”....................................................... 39
Escola na estação morta.................................................................... 40
Um melro muito pequenino.............................................................. 42
Sua terra............................................................................................ 43
5. Pequeno saltimbanco................................................................................ 44
Trombetas na colina.......................................................................... 45
Espetáculo no prado......................................................................... 46
Primeira comunhão........................................................................... 47
O inverno mais triste da vida............................................................ 48
6. Três anos no “sítio” e um na canônica...................................................... 50
Dois grãos e quatro espigas............................................................... 51
Tio Miguel......................................................................................... 53
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Quatro soldos por uma prédica........................................................ 54
“Com ele morriam todas as esperanças”........................................... 56
7. A estrada para Castelnuovo...................................................................... 58
Almoço na marmita........................................................................... 58
“Nos Becchi só dá burro”.................................................................. 60
A batina que “separa”......................................................................... 62
8. “Preciso estudar”...................................................................................... 65
Um sonho que se repete................................................................... 65
A repugnância de pedir..................................................................... 67
A história caminhara......................................................................... 68
“Digam ao príncipe que...”................................................................. 69
“Rei pela graça de Deus e de ninguém mais”.................................... 71
“Comprido e triste como uma quaresma”......................................... 72
9. Os verdes anos em Chieri......................................................................... 74
Uma coluna no meio dos pequenos.................................................. 75
“Quando um pequeno incidente...”................................................... 76
“Sociedade da Alegria”....................................................................... 78
Quatro desafios ao saltimbanco........................................................ 79
Em Turim pela primeira vez.............................................................. 82
10. A estação da amizade................................................................................ 84
Clava humana.................................................................................... 85
Uma “lufada” de espiões.................................................................... 86
Tiago-Levi, apelidado Jonas................................................................ 87
As maçãs de Blanchard...................................................................... 88
11. Vinte anos................................................................................................. 90
Contas com a probreza..................................................................... 90
A camponesa de xale preto............................................................... 91
“Por que não consulta o padre Cafasso?”.......................................... 93
A marca de fábrica............................................................................ 94
12. O seminário e os pontos negros............................................................... 97
Sete linhas que revolucionam uma vida............................................ 97
Um horário de ferro.......................................................................... 99
Os pontos negros do seminário...................................................... 101
Quinta-feira: um respiro a plenos pulmões..................................... 102
Entre jovens ricos............................................................................ 103
O fascínio de Luís Comollo............................................................. 104
Clérigo perdido............................................................................... 105
502

51.4 Page 504

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13. “Profissão”: sacerdote............................................................................ 106
A ceifa do trigo................................................................................ 106
Os esquemas mentais...................................................................... 107
Julgar o próprio tempo................................................................... 108
Onde estavam Cavour, Mazzini, Garibaldi?...................................... 109
14. João Bosco se torna Dom Bosco.............................................................. 112
Um contrato estranho com o além................................................. 112
Um pão de milho e uma garrafa de vinho barbéra......................... 114
“Tremia ao pensamento de me comprometer por toda a vida”...... 115
“O padre não vai sozinho para o Céu”............................................. 115
Sacerdote para sempre.................................................................... 116
15. Primícias sacerdotais.............................................................................. 118
A primeira descoberta: a miséria das periferias............................... 119
O mercado de braços jovens........................................................... 120
A Revolução Industrial.................................................................... 120
O enorme progresso presenteado ao mundo................................. 122
O pavoroso custo humano.............................................................. 123
Matança de inocentes também na Itália.......................................... 124
Conclusões...................................................................................... 126
16. “Chamo-me Bartolomeu Garelli”............................................................ 128
Os párocos esperam........................................................................ 129
A experiência do padre Cocchi....................................................... 130
Para começar, uma Ave-Maria........................................................... 132
“Já”, palavra que é uma senha......................................................... 134
17. O Oratório dos pequenos pedreiros....................................................... 136
Santinhos, mas também pãezinhos.................................................. 137
Doze compassos musicais............................................................... 138
O rapazinho de Caronno................................................................. 138
“Se tivesse apenas um pedaço de pão”............................................ 139
“A presidência ao papa, a espada a Carlos Alberto”......................... 141
“Batina pouco resistente”................................................................ 141
Falava tranquilamente de Deus....................................................... 143
18. A marquesa e o padre miúdo.................................................................. 145
Cilício sob as vestes refinadas......................................................... 145
Os cordeiros transformavam-se em pastores................................... 147
“Onde está Dom Bosco? Onde é o oratório?”.................................. 148
Os flocos de neve crepitavam no braseiro...................................... 149
Falência em São Pedro in Víncoli.................................................... 151
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51.5 Page 505

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19. O Oratório migrante............................................................................... 154
“Os repolhos, meus caros meninos”................................................ 154
“Pegue, Miguelzinho, pegue!”.......................................................... 156
Livros roubados ao sono................................................................. 157
Três aposentos na casa Moretta....................................................... 157
Grande ponto de interrogação: o oratório...................................... 158
Um oratório diferente..................................................................... 160
Enforcamento em Alessandria......................................................... 161
20. Agonia no prado ressurreição no telheiro.............................................. 165
O marquês e os guardas.................................................................. 166
Louco Dom Bosco?.......................................................................... 167
Agonia no prado.............................................................................. 170
A humilde cepa de que tudo brotou............................................... 171
Quando repicaram os sinos............................................................. 172
21. O milagre dos pequenos pedreiros......................................................... 173
Era sacerdote................................................................................... 173
Adeus no rondò.............................................................................. 174
Sangue, hemoptise........................................................................... 176
“Senhor, não o deixe morrer”.......................................................... 178
“A bolsa ou a vida”........................................................................... 180
Forasteiros e pobres........................................................................ 182
22. Paiol prestes a explodir.......................................................................... 184
Salas iluminadas, cheias de rapazes................................................. 184
O papa Mastai-Ferretti toma o nome de “Pio IX”............................. 185
O choque de Dom Bosco com os “padres patriotas”....................... 187
Raivosas saraivadas de pedras......................................................... 188
Padre ladrão..................................................................................... 189
Bêbados: cantos e gritos.................................................................. 190
23. “Sou órfão, venho de Valsésia”............................................................... 192
A árvore e a neve............................................................................. 192
Um rapazinho todo molhado e enregelado..................................... 194
O pequeno barbeiro tremia feito vara verde................................... 196
A cabeçada do arcebispo................................................................ 197
Distintivos tricolores no pontifical.................................................. 199
Um fogo maravilhoso na sacristia.................................................... 200
24. A febre de 1848...................................................................................... 202
Nas barricadas, o liberal, o patriota e o operário............................. 202
A Constituição se chamará “Estatuto”.............................................. 203
Frente a frente, Dom Bosco e o marquês........................................ 205
504

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Os grupos anticlericais à solta......................................................... 205
Milão subleva-se e pede ajuda......................................................... 206
Guerra à Áustria.............................................................................. 207
Em Valdocco: batalhas verdadeiras e de brinquedo......................... 208
“Deixe-me voltar para casa”............................................................. 209
Guerra italiana na Lombardia.......................................................... 210
25. O fim das esperanças.............................................................................. 212
O fim do equívoco.......................................................................... 212
Marmita e rancho no oratório......................................................... 213
A fidelidade ao papa e aborrecimentos........................................... 214
Notícias dramáticas......................................................................... 216
Tiros na capela Pinardi.................................................................... 217
Trabalhar para formar padres diferentes......................................... 217
Trágicas notícias de Roma............................................................... 219
Dois sinais de esperança em Valdocco............................................ 220
26. Dom Bosco, a política, a questão social.................................................. 222
A política do Pai-nosso.................................................................... 222
Dom Bosco e a questão social......................................................... 224
Que significa “deixar de lado toda política”?................................... 226
Esquema simples, elementar........................................................... 227
E se a opção tivesse sido outra?...................................................... 228
27. 1849: ano espinhoso e estéril................................................................ 230
O Amigo da Juventude, uma falência............................................. 231
De novo a guerra............................................................................. 231
Último fragmento de liberdade....................................................... 232
Naufrágio dos “padres patriotas”..................................................... 233
33 liras para o papa......................................................................... 233
Dois pequenos corações “por graça recebida”................................ 234
Quatro garotos e um lenço branco................................................. 235
O batalhão do bairro de Vanchiglia................................................. 235
Quatro soldos de polenta................................................................ 237
“Chamei-o pelo nome: Carlos!”........................................................ 238
Um cesto de castanhas que não se esvazia...................................... 239
28. Uma casa e uma igreja............................................................................ 241
O arcebispo é preso........................................................................ 242
O segundo quarteto........................................................................ 244
Trinta mil liras e um pouco de vertigem......................................... 245
A porciúncula salesiana................................................................... 246
O diabo, talvez................................................................................. 248
505

51.7 Page 507

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29. E Deus mandou um cão.......................................................................... 250
Diálogo, não. Duro com duro.......................................................... 251
Vinho e castanhas............................................................................ 252
“Queriam matar-me”........................................................................ 252
O “Gris” ou “Cinzento”..................................................................... 253
Cochilo na sapataria........................................................................ 255
30. Meia dúzia de oficinas............................................................................ 256
O dedo em muitas chagas............................................................... 256
Isolado e indefeso nas mãos do patrão........................................... 257
Para começar, duas mesinhas.......................................................... 258
Um ano para ter a tipografia............................................................ 259
Quatro estradas em busca do rumo certo....................................... 260
“Quem não é verdadeiramente pobre...” .......................................... 261
31. Estudantes com capote militar................................................................ 263
“Dormir no cesto do pão”............................................................... 263
“Atravessarás o Mar Vermelho e o deserto”..................................... 265
Garantia por cinquenta anos........................................................... 266
Filhinhos de papai e pobretões....................................................... 267
“No meio dos jovens me sinto bem”............................................... 268
“Dom Bosco não pôde compreender”............................................ 269
32. 1854: “Chamar-nos-emos Salesianos”.................................................... 271
O caramanchão e as rosas............................................................... 271
“Qual será o meu salário?”............................................................... 274
A morte pelas ruas do bairro do Dora............................................. 275
Os gigantes de rosto triste............................................................... 276
Oito minutos para uma página........................................................ 277
Um cartaz misterioso...................................................................... 279
Lanterninhas coloridas às margens do Pó....................................... 280
O pequeno órfão de São Domingos................................................ 282
33. 1855: Os pequenos “delinquentes” da generala.................................... 286
“Grandes funerais na corte!”........................................................... 287
O primeiro salesiano....................................................................... 288
Frente a frente com o ministro....................................................... 290
Um dia de liberdade........................................................................ 292
Nove páginas para explicar o seu “sistema”..................................... 293
O sonho do antigo oratório............................................................. 295
34. Adeus a uma mãe e a um menino............................................................ 298
Um bilhete com cinco palavras....................................................... 298
A “Companhia da Imaculada”.......................................................... 299
506

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Mamãe Margarida se vai.................................................................. 301
Um menino que fala com Deus....................................................... 303
“Do Céu poderei ver os meus colegas?”.......................................... 304
A faixa cor de sangue...................................................................... 305
35. “Frade ou não frade, eu fico com Dom Bosco”........................................ 308
Um esboço da Congregação que nascia.......................................... 309
Encontro com o papa...................................................................... 310
Uma semana para decidir a vida...................................................... 312
“Que está fazendo aí no oratório?”.................................................. 313
A crise de José Buzzetti................................................................... 314
O “coadjutor”, segundo o coração de Dom Bosco.......................... 316
36. Sete guardas para um menino................................................................ 318
Perder o trem ou perder um menino.............................................. 318
A tristeza de um menino................................................................. 320
Box na Piazza Castello..................................................................... 322
A mão sobre a cabeça de Miguel..................................................... 323
A “grande política”........................................................................... 324
“Se for necessário, barricadas em Turim”......................................... 326
Às 10, o inferno............................................................................... 327
Êxito da “real-politik”....................................................................... 329
37. Passeios pelo Monferrato e vida no oratório.......................................... 330
Uma coisinha de 5 anos: Filipe Rinaldi............................................ 331
Um menino de cabelos ruivos e a chuva......................................... 332
Uma jovem de Mornese: Maria Mazzarello...................................... 334
A primeira Missa do padre Rua....................................................... 335
400 pães num cesto vazio............................................................... 336
Caridade para os pobres e só para eles........................................... 338
A “comissão secreta” de 1861.......................................................... 339
38. O grande santuário visto em sonhos....................................................... 343
O sonho das três igrejas.................................................................. 343
“Será a igreja-mãe da nossa Congregação”....................................... 344
Os fatos de Spoleto e a Auxiliadora................................................. 345
Um título que faz torcer o nariz...................................................... 347
Oito vinténs para começar.............................................................. 347
Nossa Senhora faz a coleta para Dom Bosco................................... 349
Uma mãe, uma criança e pequenas joias......................................... 350
O trabalhador de Alba..................................................................... 351
Os sonhos de Dom Bosco................................................. 353
507

51.9 Page 509

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39. Padre Rua: de Mirabello à inauguração do Santuário............................. 356
Quatro páginas com valor de testamento....................................... 356
As “palavrinhas ao ouvido” de Dom Bosco...................................... 359
Uma mãe e muito trabalho.............................................................. 359
O quadro de Maria Auxiliadora........................................................ 360
O adeus do padre Alasonatti e a chegada do padre Rua.................. 361
A manhã absorvida pelas audiências............................................... 362
De Amicis viu a grande estátua sobre a cúpula............................... 363
A hora das “profecias loucas”........................................................... 364
O padre Rua desaba........................................................................ 365
40. Uma “nova fase” para os salesianos........................................................ 367
A história portões afora................................................................... 367
A luta contra os bandoleiros e a grande emigração......................... 368
Guerrilha em Turim......................................................................... 369
Crise religiosa: Bíblia e cotação da Bolsa......................................... 370
A história não oficial dos trabalhadores.......................................... 371
O “imposto sobre a fome”................................................................ 373
Nasce o “colégio salesiano”............................................................. 373
“Educai os jovens pobres”............................................................... 374
Os primeiros cinco colégios........................................................... 375
A reviravolta que marca um princípio fundamental....................... 377
41. Mornese como Valdocco......................................................................... 378
Tifo, bruxas e mau-olhado............................................................... 379
Confidências a Petronilla................................................................. 380
Quatro olhos espantados................................................................. 381
Um baixinho em busca de trabalho................................................ 381
Um caderninho que se perdeu........................................................ 383
Quando faltava a farinha para a polenta.......................................... 384
O parecer do papa e o mau-humor da vila...................................... 385
O cheiro das castanhas.................................................................... 387
A morte bate à porta....................................................................... 387
Partem três debaixo de neve........................................................... 388
Com as flores de maio, também a morte......................................... 389
42. A conquista de Roma e o sobressalto do fim........................................... 392
Concílio em Roma, anticoncílio em Nápoles................................... 392
“A voz do Céu ao Pastor dos Pastores”............................................ 393
Negras ameaças sobre a França....................................................... 394
Infalível o papa?.............................................................................. 394
Os bersaglieri na Porta Pia............................................................. 395
O susto de Varazze........................................................................... 397
As cartas dulcíssimas....................................................................... 398
508

51.10 Page 510

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43. Cooperadores Salesianos no mundo....................................................... 401
Adeus ao padre Borel...................................................................... 401
Homens e mulheres de boa vontade............................................... 402
Salesianos externos: bombeados..................................................... 403
Os Cooperadores Salesianos........................................................... 404
O Boletim Salesiano chega também a Sotto il Monte.................... 405
44. Francisco, Eusébio, Filipe, Miguel e milhares de outros......................... 407
“Roubei dois pães”........................................................................... 407
Eusébio Calvi, de Palestro................................................................ 410
Dom Bosco não ficou satisfeito....................................................... 410
Dom Bosco volta ao ataque............................................................. 412
Cônego em repouso........................................................................ 413
Serventes de pedreiro no oratório.................................................. 415
Miguel únia, camponês.................................................................... 417
45. A longínquas plagas................................................................................ 418
Mais gente disposta a arriscar......................................................... 418
À procura de dois rios e um deserto............................................... 420
Uma circular para chamar voluntários............................................ 421
Chefe da expedição: o menino dos gigantes................................... 423
Vinte lembranças escritas a lápis..................................................... 424
46. Patagônia, terra prometida..................................................................... 427
E os índios?...................................................................................... 428
De Turim chegam meninos............................................................. 429
“A cruz segue a espada. Paciência!”................................................. 431
Caça ao homem............................................................................... 433
“Eu via o interior das montanhas”................................................... 434
O último sonho missionário de Dom Bosco................................... 436
47. Dom Bosco e o arcebispo Gastaldi.......................................................... 439
A frieza de dom Riccardi................................................................. 439
“O senhor o quer, eu lho dou”......................................................... 441
Foi um grande arcebispo................................................................. 443
O erro fundamental de Dom Bosco................................................ 444
A responsabilidade dos jornais........................................................ 446
O tempo do poder e do superpoder............................................... 447
Primeiro elemento: a indisciplina.................................................... 448
Outro motivo de tensão.................................................................. 449
A aprovação definitiva das Regras................................................... 450
As listas dos “atos punitivos”............................................................ 451
O novo papa põe Dom Bosco à prova............................................ 452
Processo no Vaticano....................................................................... 453
509

52 Pages 511-520

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52.1 Page 511

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Cálice amargo para Dom Bosco...................................................... 455
Sereno. E destruído.......................................................................... 455
48. As grandes viagens: França e Espanha.................................................... 457
“Carrego às costas a igreja do Sagrado Coração”............................. 457
Incandescência em Paris................................................................. 459
Uma fotografia em Paris.................................................................. 461
O dia de um pobre padre................................................................ 462
Um cardeal portador de paz............................................................ 463
“Se eu não voltar mais”.................................................................... 464
49. João Cagliero, bispo............................................................................... 467
“Quem poderia ocupar o meu lugar?”............................................. 467
O forte abraço do primeiro bispo................................................... 468
O padre Rua, vigário de Dom Bosco............................................... 469
Dom Bosco tomou-o pelas mãos..................................................... 470
“A casa do bispo era uma cabana de troncos”................................. 471
Entrevista com Dom Bosco............................................................. 472
50. O grande pranto..................................................................................... 474
Um padre de pequena estatura, sério, pensativo............................. 474
Uma flor para pensar na eternidade................................................ 475
“Nossa Senhora está aqui”............................................................... 476
Dom Bosco e os ricos...................................................................... 476
Dez dias para chegar a Roma.......................................................... 481
O longo pranto................................................................................ 482
Luís Orione: três cadernos de pecados........................................... 483
51. Adeus à terra.......................................................................................... 486
Sentia a solidão envolvê-lo lentamente........................................... 486
Como uma vela que se apaga.......................................................... 487
Chega Dom Cagliero....................................................................... 488
Pensamentos com sabor de eternidade........................................... 490
Silêncio no grande pátio................................................................. 492
“Agora preciso que o digam a mim”................................................ 493
A hora em que “os monstros” voltam.............................................. 495
“Digam aos meus rapazes”............................................................... 496
Bibliografia................................................................................................... 499
510

52.2 Page 512

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FOTOS
DOCUMENTAIS

52.3 Page 513

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52.4 Page 514

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Um grupo de casas: os Becchi (hoje Colle Don Bosco).
O campanário é o da capela erguida pelos Salesianos

52.5 Page 515

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Fotografia muito antiga da casa onde Joãozinho Bosco
viveu sua infância
João Melchior Bosco foi batizado em 17 de agosto de 1815,
dia seguinte ao do nascimento
(cf. arquivos paroquiais de Castelnuovo)

52.6 Page 516

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Quarto onde dormiam, lado a lado, em enxergas postas no chão,
os três irmãos: Antônio, José e João
Cozinha e rústico fogão da família Bosco

52.7 Page 517

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Eira da herdade dos Moglias. Joãozinho Bosco morou na casa
em primeiro plano, à esquerda

52.8 Page 518

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O palheiro do estábulo dos Moglias. Muitos empregadinhos passaram
por lá depois do Joãozinho do Sonho

52.9 Page 519

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Panorama de Castelnuovo (hoje Castelnuovo Don Bosco),
a 5 quilômetros dos Becchi

52.10 Page 520

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Chieri. Capela do seminário. Imaculada,
Sagrado Coração de Jesus, São Francisco de Sales...:
aí plasmou-se o coração do padre Bosco

53 Pages 521-530

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53.1 Page 521

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O arcebispo Fransoni que
ordenou e incentivou Dom
Bosco
O padre José Cafasso,
mestre e amigo de Dom Bosco
Dom Bosco, jovem sacerdote
O padre Borel,
cooperador de todas as horas

53.2 Page 522

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Altar (lateral) do Anjo da Guarda,
na Igreja de São Francisco de Assis, em Turim,
onde Dom Bosco celebrou a primeira Missa

53.3 Page 523

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Sacristia da Igreja de São Francisco de Assis.
Aí, em 8 de dezembro de 1841, Dom Bosco se encontrou
com Bartolomeu Garelli

53.4 Page 524

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Margarida,
a santa mãe de Dom Bosco
A marquesa Barolo,
grande dama, cristã generosa,
benfeitora de Dom Bosco
José Bosco,
irmão de Dom Bosco
Dom Bosco, jovem sacerdote

53.5 Page 525

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A estreita viela do Pequeno Hospital
foi o primeiro pátio dos meninos do oratório

53.6 Page 526

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Nossa Senhora da Consolação ou da Consolata,
primeira imagem de Nossa Senhora instalada por Dom Bosco
no oratório e que ainda hoje se pode ver
na restaurada Capela Pinardi

53.7 Page 527

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Capela do cemitério (desativado) de São Pedro in Víncoli
Primeira representação do telheiro Pinardi que Dom Bosco
transformou em oratório

53.8 Page 528

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O rei Carlos Alberto da Saboia
Rei Vítor Emanuel, filho de
Carlos Alberto
O conde Camilo de Cavour,
um fiel amigo de Dom Bosco
Urbano Ratazzi,
anticlerical sanhudo,
mas que ajudou Dom Bosco
a fundar uma Congregação
moderna

53.9 Page 529

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Ata da fundação da Sociedade Salesiana

53.10 Page 530

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A fonte: tudo o que ficou da casa Pinardi até os nossos dias

54 Pages 531-540

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54.1 Page 531

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Dom Bosco entre seus jovens (1861): um pai entre seus filhos

54.2 Page 532

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Dom Bosco à mesa de trabalho no quarto.
Acima da janela, o lema de toda a sua vida:
Da mihi animas, caétera tolle
(Dai-me almas, ficai com tudo o mais)
Dom Bosco, feliz, entre os músicos de Valdocco.
À sua direita, José Buzzetti

54.3 Page 533

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Igreja de São Francisco de Sales,
erguida em onze meses e inaugurada em 1851. Nela, ...
... se concentrou a vida religiosa do oratório de 1851 a 1868:
aí rezavam Sávio, Magone, Mamãe Margarida...

54.4 Page 534

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Primeiro edifício erguido por Dom Bosco.
Atrás das quatro janelas do último andar...
... ficavam o quarto e o escritório onde morou e trabalhou
por 35 anos, desde 1853 até a morte (1888)

54.5 Page 535

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Pórtico das "Boas Noites". Após as orações da noite,
antes de deitarem, Dom Bosco dirigia aos meninos breves palavras

54.6 Page 536

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Pio IX,
pai e protetor de Dom Bosco
Leão XIII,
o papa do mundo operário,
tão querido a Dom Bosco
O arcebispo Gastaldi,
semeador de obstáculos
no caminho de Dom Bosco
Dom Bosco aos 65 anos
(1880). Força, bondade.
Plena maturidade

54.7 Page 537

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Entre 1865 e 1868
1880
1878
Última foto: 1887
1888: o corpo de
Dom Bosco exposto
à visitação de seus
jovens e da cidade

54.8 Page 538

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Padre Miguel Rua,
adiantado em anos
Cardeal Cagliero,
grande salesiano e missionário
Padre Filipe Rinaldi,
3o sucessor de Dom Bosco
Domingos Sávio,
"o pequeno grande herói
da santidade"

54.9 Page 539

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Primeira expedição missionária. Dom Bosco entrega ao padre Cagliero
as Constituições da Sociedade Salesiana
Madre Maria Mazzarelo, com o segundo grupo de irmãs missionárias,
aperta a mão da irmã Josefina Pacotto (1o de janeiro de 1879)

54.10 Page 540

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Basílica do Sagrado Coração de Jesus, em Roma, e anexo colégio.
Fotos menores: em 1875, quando cônego, dom José Sarto, bispo de
Mântua (futuro Pio X), visitou Dom Bosco; o padre Aquiles Ratti
(depois Pio XI) visitou-o em 1883:
proclamou Dom Bosco bem-aventurado (1929) e santo (1934)

55 Pages 541-550

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55.1 Page 541

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O Santuário de Nossa Senhora Auxiliadora levantado por
Dom Bosco: "Esta é a minha Casa, daqui sairá a minha glória"

55.2 Page 542

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Altar, Urna com o corpo e Quadro de Dom Bosco Santo,
na Basílica (ampliada) de Maria Auxiliadora, em Turim

55.3 Page 543

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55.4 Page 544

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Basílica de São Pedro, em Roma. Dom Bosco, em sonho,
viu-se aí, acima da estátua de São Pedro e do medalhão de Pio IX

55.5 Page 545

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Colle Don Bosco (antigos Becchi).
Foto aérea do Templo de Dom Bosco construído
sobre o local em que Dom Bosco nasceu, a uns 100 metros
da casa onde Joãozinho viveu sua infância

55.6 Page 546

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ISBN 85-7741-265-5