2005_BrocardoP_Dom_Bosco_profundamente_homem_profundamente_santo


2005_BrocardoP_Dom_Bosco_profundamente_homem_profundamente_santo

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Pietro Brocardo, salesiano, nos dá uma visão
de Dom Bosco deliciosa e intensa, plenamente
atraente. O texto transcorre com o estilo imediato da
conversação familiar.
De Dom Bosco surgiu, a juízo do padre Brocardo,
uma verdadeira “escola de espiritualidade”: uma
espiritualidade da ação, informada pela plenitude da
caridade pastoral.
Quem, como nós, se inspira na gura
de Dom Bosco, quem pretende seguir seus passos,
encontrará nesta obra uma leitura agradabilíssima
e fácil, além de um indubitável estímulo à imitação,
justamente dos traços característicos da sua
espiritualidade. Por isso se recomenda a leitura
meditativa para salesianos e leigos.
Pe. Francesco Cereda
Na Apresentação

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Pietro Brocardo
Dom Bosco:
profundamente homem,
profundamente santo

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2005 © Pietro Brocardo
Título original: Don Bosco: profondamente uomo, profondamente santo
Tradução: Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva
Direção geral: Ailton A. dos Santos
Direção administrativa: Essetino Andreazza
Coordenação editorial: Dimas A. Künsch
Assistentes: J. Augusto Nascimento
João Luis Fedel Gonçalves
Bianca Fincati
Revisão: Cristina Kapor
Projeto gráfico e capa: Gledson Zifssak
Secretaria editorial: Márcia de Moraes
Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Brocardo, Pietro
Dom Bosco : profundamente homem, profundamente
santo / Pietro Brocardo; tradução Yvone Maria de Campos
Teixeira da Silva. – 2. ed. revista e ampliada – São Paulo :
Editora Salesiana, 2005.
Título original: Don Bosco : profondamente uomo,
profondamente santo.
Bibliografia.
1. João Bosco, Santo, 1815-1888 2. Santos cristãos –
Biografia I. Título.
04-7660
CDD-282.092
Índices para catálogo sistemático:
1. Santos : Igreja Católica : Biografia
282.092
1a Edição: 1986
2a Edição: 2005
Todos os direitos reservados:
EDITORA SALESIANA
Rua Dom Bosco, 441 – Mooca
03105-020 São Paulo - SP
Fone: (11) 3277-3211 – Fax: (11) 3209-4084
vendaslivros@editorasalesiana.com.br
www.editorasalesiana.com.br

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Sumário
Apresentação da quarta edição italiana ........................................5
Apresentação da segunda edição brasileira ................................7
Introdução .................................................................................11
Primeira parte
Traços de uma vida ..........................................................22
I Esforço para se fazer santo.................................................25
II Guinada espiritual ...............................................................33
III Profundamente homem ......................................................43
IV Profundamente santo .........................................................58
V Taumaturgo que não amedronta.........................................68
VI Um santo fundador.............................................................77
VII Santo astuto .......................................................................86
VIII Santo da alegria ..................................................................95
IX Santo com algumas sombras ...........................................107
X Lágrimas de um santo ......................................................116
XI Como Dom Bosco morre ..................................................122
Segunda parte
Nos caminhos de Deus ..................................................134
I A mística do Da mihi animas ............................................137
II Trabalho colossal..............................................................149
III Trabalho a dois .................................................................160
IV Forte mensagem de castidade ..........................................172
V Ascese da temperança e da morticação..........................186

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VI Vida intensa de fé, esperança e caridade ..........................198
VII Com Deus na oração.........................................................209
VIII Com Deus na ação............................................................225
IX Dons superiores ...............................................................236
Terceira parte
Nossas mãos o tocaram ................................................244
I Battistin ............................................................................249
II Giovanni Roda ..................................................................259
III Doutor Albertotti e o seu lho...........................................265
IV O professor Annibale Pastore ...........................................269
V Dom Luigi Cassani............................................................273
VI Padre Eugenio Ceria..........................................................288
VII Francesco Piccollo ............................................................296
VIII Padre Giovanni Vallino......................................................304
IX Ludovico Costa .................................................................306
Conclusão ................................................................................309

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Apresentação da quarta edição italia-
na
O livro Dom Bosco: profundamente homem, profunda-
mente santo, publicado pela LAS, de Roma, em 1985 [pri-
meira edição brasileira: Editora Salesiana, 1986], encontrou
nesses anos boa acolhida e um inesperado sucesso de
público, como demonstram as traduções em várias línguas.
Na apresentação da primeira edição se armava que, ao
evidenciar alguns dos traços mais característicos da santidade
de Dom Bosco, se delineava também, como em ligrana, os
elementos essenciais da santidade cristã que a tornam atual,
numa adesão el ao chamado de Deus, conforme as variadas
situações em que cada pessoa se encontra.
A segunda edição, de 1986, sofreu pequenos retoques. Es-
gotada em pouco tempo, se preparou uma terceira, publicada
três anos depois, em 1989. Esta quarta edição, além da riqueza
dos conteúdos das edições anteriores, ganha uma sionomia
atualizada pelos melhoramentos e pelas novas páginas, nas
quais não faltam testemunhos vivos e inéditos.
É preciso acrescentar ainda uma outra motivação: a
celebração do segundo milênio do nascimento de Cristo e
o excepcional Ano Jubilar, dois acontecimentos de máximo
alcance espiritual e histórico. Trata-se de celebrações carre-
gadas de fé, de salvação e de alegria, para as quais o Sumo
Pontíce João Paulo II chama a atenção nos discursos e nas
corajosas iniciativas que envolvem a santidade salesiana em
todas as suas formas.
Entre essas iniciativas cabe recordar o Dia do Perdão,
celebrado em 12 de março de 2000, na Basílica de São Pe-
dro, em Roma, e que pode ser considerado uma verdadeira
“revolução copernicana”.

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“O perdão feito em voz alta, em rede mundial de tevê, do
altar de Bernini, em um clima de espiritualidade tão vasto,
a ponto de reconduzir a liturgia dentro de trilhos solenes”,
comoveu o mundo, nas palavras de Igor Mann.
Essa puricação da memória, que não encontra prece-
dentes nos dois mil anos de história da Igreja, tem também
o mérito, pela lei dos contrários, de colocar em evidência
a “gloricação” da memória cristã, na qual brilham guras
extraordinárias de mártires, santos e bem-aventurados.
Vistos dessa forma, os caminhos de santidade trilhados
por Dom Bosco numa perspectiva de futuro podem ser
considerados sementes que certamente irão fecundar o
terceiro milênio.
Como a de outros santos, a santidade de Dom Bosco é um
mistério insondável, na qual transparece um fascínio, único e
irrepetível, que não cessa de apaixonar o homem moderno.
Gostaria de concluir com a armação de Walter Nigg, ha-
giógrafo de fama internacional, respeitoso da santidade, que,
citando Michele Baumgarten, notava como, “nesta noite de
autodissolução do Ocidente, a cristandade dos santos signi-
cará luz que ilumina cada um no seu caminho e desperta uma
inextingüível sede de santidade nova”. Nigg arma ainda:
Existem épocas nas quais discursos e escritos não são su-
cientes. Em tempos assim, as ações e os sofrimentos dos
santos devem criar um novo alfabeto, para desvelar novamente
o segredo da verdade. Vivemos esse tempo.
Desejamos que a leitura deste pequeno ensaio sobre Dom
Bosco torne atraente e familiar o seu alfabeto.*
Pietro Brocardo
*Agradeço sinceramente a todas as pessoas que me deram uma ajuda indispensável na revisão
deste livro. Em particular, agradeço a Massimo Bianco, Luigi Fiora e Giuseppe Roggia.

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Apresentação da segunda
edição brasileira
Dom Bosco: profundamente homem, profundamente
santo tem como nalidade aproximar o leitor de Dom
Bosco e sua espiritualidade. Escrito pelo padre Pietro
Brocardo, salesiano, apresenta-se agora na sua quarta
edição italiana, segunda brasileira, atualizada e ampliada.
O livro é um interessante e original documento de
espiritualidade salesiana. Pela sua rica história pessoal,
o autor, recentemente falecido, pertence à geração que
conheceu os salesianos formados por Dom Bosco e os
seus primeiros colaboradores. Cheio do espírito do fun-
dador, era jovial e austero ao mesmo tempo, inteiramente
apaixonado por Deus e pelos jovens, imerso naquela aura
carismática e entusiasta, geradora de heróico e fecundo
empenho apostólico, que caracterizou a fase da primeira
e surpreendente expansão da obra salesiana.
O padre Brocardo nos dá uma visão de Dom Bosco
deliciosa e intensa, plenamente atraente. Evitando a
retórica pietista e os artifícios jornalísticos, valoriza
com inteligência os dados historiográcos. Preocupa-
-se em sondar a rica sionomia humana e a profunda
personalidade espiritual do santo, colhendo todos os
sinais úteis, os que emergem de suas obras e os aqui
recolhidos pelas testemunhas. A leitura é envolvente.
Capítulo após capítulo, somos introduzidos num mundo
vital, constituído pelos quadros mentais de Dom Bosco,
pela sua humanidade e pela sua tensão espiritual, mas

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também impregnado da vida espiritual e da experiência
salesiana do próprio autor, tão intensamente enamorado
do seu e nosso fundador.
O texto transcorre com o estilo imediato da conver-
sação familiar. O leitor atento descobre referências a
muitos estudos, debates, tentativas de compreensão
de Dom Bosco e de atualização do seu carisma, que
têm caracterizado a Família Salesiana a partir dos
anos pós-conciliares. O autor o faz com a delicadeza
e a doçura de quem participou, amou, sofreu e atingiu
uma síntese tranqüila de grande intensidade. A falta de
referências bibliográcas e de notas não compromete a
qualidade do trabalho que, nas várias edições, documenta
o prolongar-se nos anos de uma entusiasta e incansável
reexão interior e de um grande conhecimento de fontes
e estudos.
O autor encontra-se por certo entre os que mais
aprofundaram o perl espiritual de Dom Bosco. Em 1977
tinha dedicado um ensaio sobre “Dom Bosco, profeta de
santidade para a nova cultura”, que apareceu no volume
Spiritualità dell’azione: contributo per un approfondimen-
to. No nosso querido pai tinha ele especicado a “graça
de unidade”, uma síntese vital de trabalho e oração, de
ação apostólica e vida espiritual.
Por insistência de muitos irmãos salesianos, o padre
Brocardo escreve, em 1980, um livro de lembranças e
de condências inéditas sobre Dom Bosco. Depois, em
1985, com a primeira edição do volume Dom Bosco:
profundamente homem, profundamente santo, tenta
um novo estudo do nosso pai “sob o perl da santidade
e da humanidade”. Resultou uma gura que, heróica e
canonizada, pode ser proposta a todo cristão. De Dom
Bosco surgiu, a juízo do padre Brocardo, não somente

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uma “corrente espiritual”, mas uma verdadeira “escola
de espiritualidade”: uma espiritualidade apostólica pela
precisão, vale dizer, uma espiritualidade da ação, infor-
mada pela plenitude da caridade pastoral.
Na edição atual, o livro está subdividido em três partes.
A primeira, “Traços de uma vida”, mostra a variedade de
aspectos e matizes da profunda humanidade e da autên-
tica santidade de Dom Bosco; depois do capítulo inicial
sobre o “Esforço para se fazer santo”, o autor traça os
lineamentos da sua gura espiritual. A segunda parte,
“Nos caminhos de Deus”, apresenta novos núcleos ou
aspectos característicos da espiritualidade do santo. A
terceira, “Nossas mãos o tocaram”, traz as impressões
de algumas testemunhas diretas, que nos restituem, na
diversidade de suas visões e lembranças, o fascínio e a
paternidade de Dom Bosco.
Daí emerge um mosaico acabado do santo turinense,
que embora apresentado em muitas facetas, é reco-
nhecível na sua síntese de santidade e humanidade, de
místico e de trabalhador, de personagem rico de virtu-
des teologais, mas por certo não privado das humanas.
Quem, como nós, se inspira na gura de Dom Bosco,
quem pretende seguir seus passos, encontrará nesta obra
uma leitura agradabilíssima e fácil, além de um indubitável
estímulo à imitação, justamente dos traços característicos
da sua espiritualidade. Por isso se recomenda a leitura
meditativa para salesianos e leigos.
Dom Bosco é verdadeiramente uma obra-prima do
Espírito Santo, um fruto da graça de Deus, um presente
de Maria à Igreja e ao mundo de nossos tempos. No clima
jubilar da “puricação da memória” cristã, nas intenções
do padre Brocardo a apresentação das várias expressões
da santidade resulta uma “gloricação da memória”.

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Enquanto agradecemos a Deus pela santidade de Dom
Bosco, ele mesmo, na simplicidade da sua vida, aponta
a todos um verdadeiro caminho de santicação.
Pe. Francesco Cereda
Conselheiro geral para a Formação
dos Salesianos de Dom Bosco
Roma, 8 de dezembro de 2004.
Solenidade da Imaculada Conceição de Maria

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Introdução
Fascínio dos santos
Para quem deseja abordar o tema da santidade cristã, se faz
necessária a referência aos santos, a sua mais viva encarnação.
Referência seja àqueles inúmeros santos não canonizados que
marcaram a vida e a fé do povo de Deus, seja àqueles que a
Igreja registra no álbum dos santos pela heróica resposta que
deram à iniciativa de Deus.
É fato incontestável que “há alguns anos a hagiografia
voltou à moda”, não apenas na obra de autores secundários,
mas também entre os pesquisadores universitários. A. Vauchez
explica que o retorno desse interesse pelos santos “é ainda mais
interessante por não ter nada a ver com fenômenos devocionais”:
(...) Não é sob esse aspecto, mas antes no nível de um fascínio exerci-
tado de modo geral por grandes homens – os heróis e os santos – que
é preciso procurar as motivações do crescente interesse suscitado pelos
textos hagiográficos: mais ou menos confusamente os pesquisadores
científicos, como o grande público, percebem que esses documentos
ainda não disseram a última palavra e veiculam uma mensagem que,
na sua essência, ainda não foi decifrada.
Essa citação, que poderá ser partilhada total ou parcialmente,
torna ainda mais atual uma reconsideração da vida de Dom
Bosco1 sob o perfil específico da santidade.
1 João Bosco nasce em 1815, no vilarejo dos Becchi, região do Piemonte, na Itália. Perde o
pai, Francisco, com apenas 2 anos. Recebe toda a educação da mãe, Margarida Occhiena, que
cuida também dos outros dois filhos: Antônio, do primeiro casamento de Francisco, e José.

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12 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Entretanto, é necessário reconhecer que nesta época de
mudanças de dimensões planetárias, caracterizada por uma
nova visão do homem, do mundo e da história – e, nos países
opulentos, por uma difusa indiferença religiosa –, o discurso
sobre a santidade, ainda que de um santo simpático e cativante
como o “santo dos jovens”, não é fácil. Hoje, a palavra “santi-
dade”, como escreveu o padre Egidio Viganò,2 “pode ser mal
compreendida por uma mentalidade defasada, bastante comum
e fruto de um contexto que opõe uma espécie de barreira cul-
tural aos conteúdos genuínos do seu significado”. Ele continua:
Poderia ser identificada com um espiritualismo de fuga do
concreto, com um ascetismo para heróis excepcionais, com um
sentimento de êxtase do real que subestima a vida ativa, com
uma consciência antiquada acerca dos valores da atual virada
antropológica. É de se lamentar tal caricatura.
Entretanto, todas as vezes que nos confrontamos com um
santo autêntico, essa representação confusa, distorcida e carica-
tural se dissolve no nada. “Os santos têm seu próprio reino, seu
próprio esplendor, suas próprias vitórias e majestade”, escreveu
Pascal (1623-1662).
O mistério dos santos é tão fascinante que se impõe freqüen-
temente até aos incrédulos.
Muito se escreveu e muito se disse sobre a santidade. Dei-
xando de lado as discussões acadêmicas, diremos, simplesmente,
que a santidade, dom de Deus e empenho do homem, é a “vida
transfigurada em Cristo” (Rm 8,29) – o “somente santo”, o “san-
to de Deus” (Mc 1,24) – por meio do dinamismo das virtudes
teologais e dos dons do Espírito Santo.3 Santidade é a vida de
Deus-Trindade em nós e a nossa vida nele. Todos os batizados
são “santos”; não, porém, no mesmo grau e nível.
2 O padre Egidio Viganò (1920-1995) foi o sétimo sucessor de Dom Bosco. [n.e.]
3 São três as virtudes teologais: fé, esperança e caridade. E sete, os dons do Espírito Santo: temor
de Deus, piedade, fortaleza, conselho, ciência, inteligência e sabedoria. [n.e.]

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Pietro Brocardo 13
Quando dizemos que Dom Bosco é “santo”, entendemos
afirmar que ele, se destacando da fileira dos cristãos comuns,
viveu a vida batismal com maior determinação e intensidade.
Ele alcançou a meta que a Constituição dogmática Lumen
Gentium propõe para todos os fiéis: a “plenitude de vida cristã”,
“a caridade como vínculo de perfeição e plenitude da lei”, a
“perfeita união com Cristo” (LG 40, 42 e 50).
Tal plenitude comporta um verdadeiro martírio, o heroísmo
cristão do qual o Mártir divino é arquétipo. Depois dele e em
comunhão com ele vêm os outros mártires que, com o derra-
mamento do próprio sangue, deram o supremo testemunho
de fé e caridade.
Todavia, conforme conceitos e critérios amplamente elabo-
rados e atualizados nos processos de beatificação e canonização,
há séculos é reconhecido como herói o fiel – pensemos em Dom
Bosco – que tenha praticado, ao menos por um longo período
antes da morte, as virtudes teologais e morais em grau máximo,
isto é, em medida superior ao modo de agir dos cristãos comuns,
em situações árduas e difíceis. Hoje se reconhece que a prática
perfeita, fiel e perseverante dos deveres inerentes à própria
condição de vida e ao próprio estado comporta um verdadeiro
heroísmo e, por isso, é critério de santidade. “As coisas mais
comuns podem se tornar extraordinárias quando são cumpri-
das com a perfeição da virtude cristã”, afirmou o papa Pio XI.
Dom Bosco é santo porque a sua vida foi plenamente heróica.
Escola de santidade turinense
A santidade não é quantificável. Só Deus conhece a sua
profundidade e o seu segredo. Há santos, porém, cujo destino
parece ter sido permanecer na sombra, enquanto outros, pelos
grandes serviços prestados à Igreja e à sociedade, se impuseram
e se impõem à atenção dos fiéis como homens extraordinários.
Entre estes se encontra Dom Bosco. O padre Giuseppe De Luca,

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14 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
erudito e literato insigne, profundo conhecedor da religiosidade
italiana, escreveu a seu respeito:
Na história da Itália do século XIX, João Bosco representa para a
santidade não menos que Alexandre Manzoni para a literatura ou
Camillo di Cavour para a política. Vale dizer: o máximo.
Pode-se discutir a comparação, mas será sempre verdade que
Dom Bosco é uma das figuras mais representativas da “escola
de santidade turinense”, como a chamou o papa Paulo VI. Em
pouco mais de um século essa escola, que abarca todo o Piemon-
te, na Itália, viu florescer inúmeros santos, beatos, veneráveis e
servos de Deus, como revelam pesquisas recentes. Trata-se de
pessoas de origem piemontesa ou que ali trabalharam, juntas
ou não, cujo anelo comum nos parece poder se exprimir nestas
duas palavras: rezar e fazer. Uma escola em sentido amplo, que,
segundo especialistas, foi marcada pelo sincretismo, fruto de
um pragmatismo característico do temperamento piemontês;
pelo equilíbrio prático feito de bom senso; pela prudência e
apartidarismo político ou ideológico; pelo tradicionalismo que
não exclui, de modo especial em Dom Bosco – o mais exposto
de todos pela corajosa tomada de posição contra o anticlerica-
lismo liberal dominante –, audácia criativa, grande espírito de
iniciativa, capacidade de abrir construtivamente as fronteiras
dos novos tempos às necessidades da Igreja. Os protagonistas
dessa história são, na maioria, sacerdotes. Paulo VI, no discurso
pronunciado durante a beatificação de Leonardo Murialdo,4 em
3 de novembro de 1963, lhe traçou um lúcido perfil:
A escola de santidade turinense do século XIX deu à Igreja um tipo
de eclesiástico santo, fidelíssimo à doutrina ortodoxa e ao costume
4 São Leonardo Murialdo nasce em Turim, Itália, em 1828. Ordenado sacerdote em 1850,
dedica-se à educação da juventude pobre, sobretudo dos aprendizes e operários. Funda a Con-
gregação de São José. Morre em 1900. O papa Paulo VI declara-o santo em 1970. Os outros,
citados pelo papa, são o Venerável Pio Brunone Lanteri (1759-1830), São José Cottolengo
(1786-1842), São José Cafasso (1811-1860) e o Beato José Allamano (1851-1928). [n.e.]

2.7 Page 17

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Pietro Brocardo 15
canônico. Homem de oração e de mortificação, aderia perfeitamente
ao esquema habitual de vida que se requeria de um sacerdote, que,
entretanto, exatamente por causa dessa generosa e íntima adesão, sente
na própria alma energias novas e potentes, percebendo ao seu redor
necessidades graves e urgentes que exigem a sua intervenção. Não
buscaremos nele novidade de pensamento, mas encontraremos novi-
dade de obras. A ação o qualifica. Impulsionado pelo interior do seu
espírito, chamado do exterior pelas novas vocações de caridade, esse
sacerdote ideal se entrega aos problemas práticos do bem, iniciando
assim, sem outros cálculos que não o do abandono à Providência, a
aventura imprevisível, a novidade, a fundação de um novo instituto,
modelado conforme o gênio da fidelidade original e conforme as in-
dicações experimentais das necessidades humanas, que o amor torna
evidentes e exigentes. Da mesma forma Cottolengo, Cafasso – já
declarados santos –, Lanteri e Allamano, que lhe seguem os passos,
mas especialmente Dom Bosco, cuja grande figura representativa
conhecemos. E assim Murialdo.
O ar de família que se respira na escola turinense e as diversas
semelhanças entre os servos de Deus, que induziram os estu-
diosos a falar de uma koiné – de afinidade comum e parentela
espiritual –, não são, entretanto, indício de uniformidade. Cada
santo tem o seu perfil, o seu estilo, a sua índole, exerce uma
missão específica, é igual e diferente. Dom Bosco, por exemplo,
não é Cafasso, quer pelas qualidades pessoais e históricas, quer
por ser fundador. Esta última característica comporta uma
configuração diferente de santidade e um carisma especial, isto
é, um “novo dom” à Igreja.
Memória e profecia
Dom Bosco é, simultaneamente, santo do passado e profecia
viva daquilo que, na história, Deus quer. Faz-se necessária, en-
tão, tanto uma abordagem histórica como profética. Histórica
porque apenas esta é capaz de ressuscitar o passado sem deformá-

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16 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
-lo. Dom Bosco é e será sempre um típico santo piemontês
da Itália que ressurgia, como Santo Inácio de Loyola é um
típico santo basco da Espanha do século XVI. Ele foi sensível
aos valores da cultura emergente, necessitada de fermentação
evangélica, e aos desvalores, ambigüidades e males a combater,
defender e prevenir. Foi ainda mais sensível às urgências da
juventude carente e abandonada, às novas necessidades da vida
religiosa e da Igreja do seu tempo, duramente combatida no
seu chefe e nas suas instituições. A aproximação a Dom Bosco
deve desembocar no conhecimento do “Dom Bosco total”, tal
como o forjaram os seus 72 anos de vida e o trabalho intenso
que realizou sobre si mesmo. Compreender-se-á, então, por
exemplo, como ele se nutriu da teologia e da espiritualidade
do seu tempo, como participou da consciência que a Igreja
tinha de si, sob o pontificado de Pio IX, e como determinadas
disposições suas são reflexo da formação eclesiástica recebida
no tempo da Restauração.5
Mas memória não é arqueologismo. Para ser significativa
e fiel ao Deus da história, deve ler o passado também em
perspectiva profética, portadora de futuro, de valores insupe-
ráveis e perenes. Entre esses valores, recordamos: as intenções
permanentes de Deus sobre a sua vida; os elementos essenciais
da sua índole e do seu espírito, dinamicamente aberto para o
futuro; a realidade vital e essencial da sua missão; os aspectos
positivos do seu tempo – a Igreja sempre se apropriou de quan-
to há de bom na vida dos povos –, relançados como profecia
em nossa cultura. Afirmou Paulo VI: “Os princípios humanos
e cristãos nos quais se baseia a sabedoria educadora de Dom
Bosco carregam em si valores que não envelhecem”, pois “esse
5 Após a derrota militar de Napoleão Bonaparte (1769-1821), em 1815, representantes dos
países europeus tentaram abafar os ideais liberais da Revolução Francesa e restaurar as monar-
quias locais. Uma das medidas foi a criação da Santa Aliança, cujo objetivo era fortalecer os
governos de natureza cristã. Marcam esse período o retorno a Roma do papa Pio VII, que se
encontrava exilado, e o restabelecimento do Estado Pontifício. [n.e.]

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Pietro Brocardo 17
incomparável exemplo de humanismo pedagógico cristão (...)
está enraizado no Evangelho”.
O discernimento entre memória e profecia não é fácil.
Empenha a autoridade dos sucessores de Dom Bosco e dos
Capítulos Gerais. Porém, a garantia suprema é sempre, em
última instância, a autoridade da Igreja, guardiã vigilante dos
carismas que Deus faz desabrochar no seio dela.
As páginas seguintes se propõem a evidenciar alguns ele-
mentos perenes da santidade de Dom Bosco, sublinhando
particularmente o seu dinamismo apostólico e a “graça de
unidade”, com a qual soube unir vitalmente oração e ação. De
fato, inegavelmente, Dom Bosco foi um santo ativo.
Santo ativo
À distância de anos, podemos constatar que Dom Bosco está
na origem não apenas de uma numerosa posteridade espiritual,
mas também de uma verdadeira e típica “corrente espiritual” da
Igreja, que permeia o mundo, e de uma “escola de espiritualida-
de”, como pesquisas em andamento estão demonstrando. Uma
espiritualidade apostólica, ou como se diz, da ação, modelada
pela plenitude da caridade pastoral onipresente.
A espiritualidade da ação, no contexto cultural de hoje,
pode induzir a uma série de ambigüidades. De fato, muitos
pensam que a ação é a única categoria com a qual o ser humano
se interpreta e age sobre si mesmo, sobre os outros, sobre o
mundo. Práxis e ortopráxis são sempre um ponto polêmico
da teologia espiritual, que é ciência do agir humano vivificado
pelo Espírito.
A Igreja não é alheia a esses problemas, como o demonstra
a história dos grandes apóstolos dos séculos passados. Em um
tempo que enfatiza fortemente palavras como práxis, trabalho,
atividade e ação, a vida de Dom Bosco, dominada, por assim
dizer, pela vertigem da ação, pode ser paradigmática para quem

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18 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
deseja se empenhar na edificação de um mundo na medida do
Evangelho. O agir dele está fortemente vinculado e dependen-
te do agir salvífico de Deus. O agir é uma noção primária da
existência, não se deixando circunscrever em uma definição
rigorosa. Menos ainda o agir cristão.
Podemos, entretanto, distinguir nisso um duplo movimento:
o imanente, que justifica e comanda as ações e as obras exter-
nas, e o movimento diretamente voltado à transformação das
coisas. Apenas o primeiro leva, de fato, à perfeição da pessoa
e dos seus valores. Dom Bosco vale por aquilo que faz ou leva
a fazer, mas muito mais por aquilo que é e deseja. Eis o modo
correto de considerá-lo.
Eixo da vitalidade espiritual
O cristão de hoje, desafiado pela dificuldade de conjugar
numa unidade vital o ser e o agir, o amor a Deus e o amor ao
próximo, a oração e o trabalho, a ação e a contemplação, en-
contrará em Dom Bosco um modelo concreto. Ele soube viver
a unidade espiritual no redemoinho da vida ativa.
Não há nele dicotomia ou dilaceração interior, mas perfeita
“graça de unidade”. Deus é verdadeiramente o sol, o eixo da sua
vida. Santo da ação, ele não abafa a oração, mas sabe fazer da
atividade o “lugar habitual” de encontro com Deus. Valoriza a
oração como caminho de perfeição, mas considera da mesma
forma a ação. Seu modo sacramental de ser Igreja consiste
exatamente no empenho em “agir como Igreja”. Sabe que en-
tre oração e trabalho existe uma relação dialética permanente:
uma conduz ao outro e vice-versa. Mas sabe também que essa
relação é regulada pela vontade de Deus, norma suprema. São
conceitos que retomaremos no momento oportuno.
Santo de sempre

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3.1 Page 21

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Pietro Brocardo 19
Por causa da sua união radical com Cristo, que é de “on-
tem, hoje e sempre”, Dom Bosco é também um santo de
todos os tempos. Sem dúvida, o santo de amanhã terá traços
e modulações inéditas, será diferente daquele do passado. Mas
uma coisa é absolutamente certa: essa diversidade nunca será
substancial. Com o cardeal De Lubac podemos dizer, com
segurança, que o santo de amanhã, como o de ontem, será
“pobre, humilde, desapegado”. E ainda:
Terá o espírito das bem-aventuranças. Não amaldiçoará nem se
vangloriará. Amará. Tomará o Evangelho ao pé da letra, isto é, no
seu rigor. Dura ascese o terá libertado de si mesmo. Herdará a fé
de Israel, mas se recordará de que essa fé passou por Jesus Cristo.
Tomará a cruz do Salvador e procurará segui-lo.
Os santos não envelhecem, disse João Paulo II: “São sempre
homens e mulheres de amanhã, homens do futuro evangélico
das pessoas e da Igreja, testemunhas do mundo futuro”. O fato
de que Dom Bosco ainda hoje atraia para si fileiras de jovens e de
fiéis demonstra que ele possui em si algo que desafia os séculos.
Os que vivem na sua órbita ou se sentem desejosos de entrar
em familiaridade com ele podem colher, sem medo de errar,
a sua mensagem de santidade, simples e profunda, cativante e
simpática, ainda que muito exigente. Dom Bosco, tão amável
e compreensivo, quer os salesianos “não mundanos, ainda que
no mundo; não estranhos, mas com identidade própria; não
antiquados, mas modernos profetas da realidade escatológica
da Páscoa; não simples imitadores da moda, mas corajosos
cultivadores de uma renovação exigente; não desertores das
vicissitudes humanas, mas protagonistas de uma história de
salvação”, como lembra E. Viganò. E conclui:
O nosso seguimento de Cristo segundo o espírito de Dom Bosco
utiliza todas as circunstâncias, eventos e sinais dos tempos, além

3.2 Page 22

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20 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
das situações mais negativas e injustas, para crescer e fazer crescer
na santidade.
Não diversamente, conclamou à santidade J. Vecchi,6 quan-
do escreveu, no comentário à Estréia de 2000:7 “Novamente,
partamos de Deus. Pode ser um conselho que se dá em época
de eclipse, de experiência religiosa fragmentada e subjetiva,
de queda do senso de pecado, de confusão de consciência”.
Nas suas publicações, e recentemente no livro Educadores na
era da informática,8 o padre Vecchi não hesitou em enfrentar
os problemas mais candentes e atuais da educação e formação
juvenil, como as formas inéditas do conflito de gerações, as
desigualdades sociais e o pluralismo cultural (plurirreligiosidade,
pluralismo étnico etc.), o mundo perturbador da internet, o
erotismo, a bioética, a ecologia.
Essa vertiginosa mudança cultural leva necessariamente a
adequar e repensar a forma do Sistema Preventivo e da sua
espiritualidade, do seu ímpeto apostólico etc.
O padre Vecchi não evita essa temática, conforme atesta o
seu entrevistador, C. Di Cicco:
No final de um século que celebrou os cem anos da morte do funda-
dor João Bosco (1888) e o início de um novo século, que em breve
celebrará os duzentos anos do seu nascimento (1815), os salesianos
são guiados por um sucessor seu, o primeiro não italiano e o primeiro,
na série de oito, que se chama João como Dom Bosco.
Um outro João que não ama os profetas da desgraça e aponta para
a atualização do patrimônio educativo em vista de obter bom êxito
no desafio feito aos educadores pelos novos tempos.
6 O padre Juan E. Vecchi (1931-2002) foi o oitavo sucessor de Dom Bosco. [n.e.]
7 Mensagem que o reitor-mor dos salesianos dirige no início de cada ano a todos os membros
da Família Salesiana. “Em nome de Cristo, nossa paz, deixai-vos reconciliar” foi a Estréia de
2000 [n.e.].
8 J. Vecchi, Educadores na era da informática: entrevista a Carlo di Cicco. São Paulo, Editora
Salesiana, 2001.

3.3 Page 23

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Pietro Brocardo 21
Padre Vecchi propõe fundar sobre a compreensão reencontrada e
recíproca o novo pacto entre gerações, necessário para garantir a
qualidade da vida de cada um, libertando-o da pressão indevida
de medo do futuro que uma sociedade envelhecida pode gerar.
É a opção – que não se fez nos anos 60 – de dialogar com os
jovens, numa passagem de época em que a juventude corre o
risco de extinção.9
Hoje como ontem, como se deduz de quanto estamos dizen-
do, o laborioso discernimento que se impõe por toda a parte será
sempre mais fácil, à medida que a vis ab intra [força interior],
isto é, a vida divina for, sem concessões, a força dominante da
existência dos membros da Família Salesiana. Em uma palavra,
permanece sendo verdadeiro que o maior dom de nós mesmos
aos demais é a nossa santidade.
Primeira parte
Traços de uma vida
9 J. Vecchi, Educadores na era da informática, p. 181.

3.4 Page 24

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A breve descrição da vida de Dom Bosco que apresentamos aqui
pode ajudar – cremos – a explicar a enorme simpatia e a fascinante
atração que ele continua a exercer sobre as pessoas do nosso tempo,
crentes e não-crentes. Como veremos, essa atração nasce, paradoxal-

3.5 Page 25

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mente, das esplêndidas antinomias complementares e
positivas, humanas e divinas, de que foi dotado numa
medida excepcional.
Na Igreja, há santos reconhecidamente grandes
diante de Deus, mas esquecidos pelos homens. Há
outros, ao contrário, aos quais é reservada também
uma grandeza terrena. Dom Bosco pertence a esta
constelação. Grande de vida natural, isto é, homem
entre os homens, tão profundamente homem que,
para muitos contemporâneos seus, o comum pareceu
esconder o que há nele de extraordinário.
Grande em humanidade, Dom Bosco foi igualmente
grande em vida sobrenatural, antes, imensamente
grande, porque a graça o alcançou com qualidades hu-
manas superiores às das pessoas comuns e encontrou
nele correspondência plena, total, heróica.
Quando a Igreja o elevou à glória dos santos, dom
De Luca escreveu: “Essa glória, mais semelhante e
mais próxima da glória de Deus, estejamos certos,
Dom Bosco a atingiu com a máxima grandeza que um
homem pode atingir”.
Recordemos, entretanto, que a Igreja não cria a
santidade, reconhece-a. Não lhe acrescenta nada, mas
assegura que o santo se aproximou do Deus-Trindade o
máximo possível, pela mediação de Cristo e do seu Es-
pírito. Do amor de Deus uiu o seu amor pelos homens.
A partir do momento em que estamos certos de que
Dom Bosco foi uma “das obras mais esplêndidas do
Divino”, é lógico deduzir que ele tenha exercido uma
poderosa força de atração e tenha suscitado energias
proféticas que zeram história. De fato, como armou
W. Nigg, um dos seus biógrafos, os santos “são com-
paráveis a símbolos incandescentes, portadores de
luz, que agitam o homem submerso no limo de cada

3.6 Page 26

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dia, apontando para a meta suprema”. Dom Bosco
foi, sem dúvida, um “pólo luminoso”, um “símbolo
incandescente”, como homem e como santo.
Dissemos que a sua intimidade com Deus perma-
neceu, com freqüência, um segredo impenetrável,
como em geral ocorreu com outros santos piemonte-
ses. Mas alguma coisa se via, se podia intuir. De sua
existência mágica algo lhe iluminava o rosto, irradiava
do seu olhar penetrante, do seu sorriso constante,
apenas esboçado. Alguma coisa de sobre-humano
se desprendia do seu comportamento, da sua calma
soberana de homem extraordinariamente empreen-
dedor. É o que as páginas seguintes se propõem a
revelar.
Capítulo I
Esforço para se fazer santo
“O que queremos conhecer em um beato, em um santo?”,
se pergunta Paulo VI no discurso da beatificação de Leonardo
Murialdo. O papa responde:

3.7 Page 27

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Se a nossa mentalidade fosse de curiosidade exterior, de certa
devoção medieval ingênua, poderíamos propor buscar os fatos
extraordinários no homem exaltado pelo extraordinário: os favores
singulares, (...) os fenômenos místicos e os milagres. Mas hoje
somos menos ávidos dessas manifestações excepcionais da vida
cristã. Agrada-nos conhecer a figura humana mais que a figura
mística ou ascética. Queremos descobrir nos santos aquilo que
têm em comum conosco, mais que aquilo que os distingue de
nós. Queremos trazê-los para o nosso patamar de gente profana
e imersa na experiência nem sempre edificante deste mundo.
Queremos encontrá-los como irmãos no nosso esforço e na nossa
miséria, para nos sentir próximos deles e participantes da mesma
difícil condição humana.
A vida de Dom Bosco é cheia de fatos maravilhosos e sobre-
naturais. Preferimos, no entanto, considerá-lo sobretudo na sua
condição de gente, “homem como nós”, quase um de nós. Tam-
bém sua existência está marcada pelas deficiências da natureza e
pelo seu jugo, tentada pelo mundo do pecado e pelo maligno.
Essa perspectiva, em que se confrontam limitação humana
e graça divina correspondida, já é um encorajamento à nossa
fraqueza.
Dom Bosco, como todo mundo, não nasceu santo. Tornou-
-se santo ao se entregar ao poder do Espírito Santo e, se contra-
dizendo a si mesmo, escalar passo a passo o cume da santidade.
Desse seu esforço para se tornar santo, apresentamos, aqui,
apenas algumas rápidas seqüências.
Temperamento difícil

3.8 Page 28

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26 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Embora dotado de inúmeras qualidades humanas, Dom
Bosco não era, por natureza, o homem paciente, manso e amável
que conhecemos. Dos dois filhos de Margarida, José e João, dir-
-se-ia que o primeiro, não o segundo, era mais salesiano. José é
recordado como uma criança mansa, afetuosa, dócil e paciente:
assim permanecerá durante toda a vida. Corria ao encontro dos
hóspedes, conversava prazerosamente com eles e logo se fazia
estimado. Já a respeito de Joãozinho, antigos testemunhos o
descrevem como uma criança séria, um pouco taciturna, quase
desconfiada. Não concedia familiaridade a estranhos, não se
deixava acariciar, falava pouco, era observador atento.
“Eu era ainda muito pequenino, e já estudava o caráter dos
meus companheiros. Olhando para o rosto de um deles, quase
sempre descobria os propósitos que tinha no coração”, Dom
Bosco escreve nas Memórias do Oratório.10
No sonho que teve entre 9 e 10 anos – ao qual retornare-
mos –, ele se mostra uma criança reflexiva e generosa, sensível
e zelosa na defesa dos direitos de Deus, mas se revela também
um temperamento fogoso, impulsivo e até violento, quando
se lança aos socos, impetuosamente sobre os pequenos blas-
femadores para fazê-los calar.
Sentia também – ele confessa – “grande repugnância à obe-
diência, à submissão”. Era levado naturalmente a defender com
obstinação os próprios pontos de vista: desejava “sempre fazer
as minhas infantis reflexões a quem me comandava ou me dava
bons conselhos”, comentava. Digamos claramente: era orgu-
lhoso e tinha um forte amor-próprio. Ele mesmo o afirmava.
As suas belas qualidades o inclinavam naturalmente à so-
berba: vontade enérgica, inteligência superior, boa memória,
vigor físico, são qualidades que permitiam a Joãozinho se impor
10 As Memórias do Oratório (trad. bras. São Paulo, Editora Salesiana, 2005. 3a ed.) foram
escritas por Dom Bosco entre 1873 a 1875 e ainda depois. Trata-se, na realidade, como bem
o demonstra P. Braido, de “memórias do futuro”. [n.e.]

3.9 Page 29

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Pietro Brocardo 27
facilmente aos seus companheiros. Nas Memórias do Oratório,
Dom Bosco registra esta condescendente afirmação: “Todos
os meus companheiros, também os de mais idade e maior
estatura, tinham medo de mim por causa da minha coragem
e da minha força”.
As testemunhas dos processos de beatificação e canonização
falam de suas belas qualidades, mas também de alguns traços de
personalidade nada positivos. O seu pároco em Castelnuovo,
teólogo Cinzano, o chama de “extravagante e cabeçudo”. O
cardeal Cagliero recorda o seu temperamento “fogoso e altivo”,
a ponto de não “poder sofrer resistências”. O seu companhei-
ro, padre Giacomelli, atesta: “Pode-se compreender que, sem
virtude, teria se deixado dominar pela cólera. Nenhum dos
nossos companheiros – e eram muitos –, tendia como ele a esse
defeito”. Dom Bertagna, moralista insigne e grande amigo de
Dom Bosco, confirma:
Creio verdadeiro que o servo de Deus tinha um temperamento
facilmente inflamável e, ao mesmo tempo, muito duro e inflexível
(...) diante dos conselhos que lhe eram dados, quando estes não
estavam de acordo com os seus desejos e com o seu modo de ver.
O padre Cerruti evidencia a “forte tendência à ira e ao afeto;
(...) era dado ao orgulho”. Dirá, por sua vez, o padre Cafasso:
“É inútil, quer fazer ao seu modo; é preciso deixá-lo fazer.
Mesmo quando um projeto não é aconselhável, Dom Bosco
tem sucesso”. Ressentida por não o ter conquistado para a sua
causa, a marquesa Barolo o tratará de “cabeçudo, obstinado,
orgulhoso”.
O doutor G. Albertotti que, de 1872 até à morte, cuidou de
Dom Bosco, também sublinha, na sua breve biografia, “a inata
e vivaz impetuosidade” do seu cliente, o seu caráter “pronto e
fogoso” e a “profunda convicção das próprias idéias”.
O padre Girolamo Moretti, pioneiro da grafologia,11 reco-

3.10 Page 30

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28 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
nhece, no seu célebre livro I santi dalla scrittura, que o tempe-
ramento de Dom Bosco é “bem difícil de ser definido”. É um
santo que, para ser moral, “tem necessidade de se submeter a
várias renúncias a que se rebelam as suas tendências inatas”, as
quais querem e pretendem agir sem qualquer obstáculo. Con-
clui: “É um condutor que, para fazer o bem, precisa contrariar
a si mesmo em grau máximo, a fim de se concentrar na retidão
de intenções e de obras”.
Esses testemunhos não nos dão, obviamente, a imagem
completa de Dom Bosco. Excluem muitos outros aspectos da
sua riquíssima personalidade. Entretanto, recolhem aspectos
como a inclinação à ira e à impetuosidade, como a tendência à
autonomia, à demasiada estima de si, à afirmação obstinada das
próprias convicções, à impetuosa irascibilidade etc. Se tivesse
se descuidado um pouco, teria sido um homem falido e um
santo frustrado. “Se o Senhor não me tivesse conduzido por
essa estrada [do trabalho com os jovens], temo que teria corrido
o risco de tomar um caminho errado.”
Sem essas fortes tendências não teríamos a espessura da
santidade de Dom Bosco. As inclinações naturais, em si, não
são boas nem más; não são vícios nem virtudes. A moralidade
dos atos depende da intenção do sujeito, do uso bom ou mal
que faz das próprias energias. Não há dúvida de que ele tenha
endereçado da melhor forma as suas qualidades naturais, mas
a custa de quanto esforço e de quantas lutas vitoriosas, só Deus
sabe. É um aspecto que vale a pena sublinhar.
Caminho ascendente
A respeito da vida de São Francisco de Sales12 se disse que,
no seu curso, no seu aperfeiçoamento e na sua plenitude, ela
11 Grafologia é o “estudo da forma das letras e do aspecto geral da escrita manuscrita, esp. com
objetivo de obter dados sobre a pessoa, como caráter, personalidade, grau de instrução, tipo
de inteligência, características emocionais” (Dicionário Houaiss). [n.e.]

4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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Pietro Brocardo 29
parece uma verdadeira obra-prima, na qual o escultor trabalhou
lentamente, com reflexão, segurança e alegria, até uma intan-
gível beleza, própria de obras excepcionais.
O mesmo se pode dizer de Dom Bosco: o senso da medi-
da, a progressão e a harmonia caracterizam o seu itinerário de
santidade. Mas é necessário considerar que o caminho foi mais
árduo para ele, por causa do seu temperamento mais obstinado e
inflexível. O santo savoiense era um nobre, educado com refina-
mento desde a infância. O santo dos Becchi tinha a índole rude
e instintiva do camponês que precisava enfrentar as asperezas
da vida e com um tipo de educação muito diferente. Apesar de
humilde e simples, era uma educação digna de admiração pelos
altos ideais humanos e cristãos que a distinguem.
Os primeiros passos na virtude, Joãozinho os aprendeu na
escola da sua mãe, mulher analfabeta, porém rica em sabedo-
ria divina. Margarida sabia atingir o coração do seu filho com
delicadeza materna, mas também com firmeza inarredável.
Auxiliava-lhe a índole naquilo que podia. Mais tarde, quando
o vê empenhado em fazer o bem aos seus pequenos amigos, o
encoraja e ajuda. No momento oportuno, no entanto, quando
o menino punha as manguinhas de fora, sabia corrigi-lo com
intervenções decisivas, mas arrazoadas e motivadas por pensa-
mentos de fé, de um modo que ele as aceitava.
O amor a Deus, a Jesus Cristo, a Maria Virgem; o horror ao
pecado; o temor dos castigos eternos; a esperança no paraíso:
essas e muitas outras coisas ainda, Dom Bosco as aprendeu dos
lábios maternos. Na casinha dos Becchi, a religião era coisa
natural. Detestava-se o mal por instinto e se amava o bem por
instinto. O ditado “Lembra-te que Deus te vê” penetrava pro-
fundamente na alma sensível de Joãozinho. Ele não se cansará,
12 Nascido na Savóia (ou Sabóia), hoje região pertencente à França, de família nobre, Francisco
de Sales (1567-1622) foi feito bispo de Genebra, Suíça. Mas não pôde assumir a diocese devido
à guerra entre católicos e calvinistas. Por causa de sua bondade no trato com as pessoas e do
respeito por todos, é chamado “Doutor da caridade”. [n.e.]

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30 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
por sua vez, de repeti-lo aos jovens. O amor materno que alegrou
e educou a sua infância permaneceu, por toda a sua vida, uma
daquelas profundas raízes de que o Senhor se serviu para fazê-lo
santo. Deve-se à educação materna o fato de a personalidade de
Dom Bosco ter podido se expandir plenamente, sem complexos
nem ansiedades.
Dele afirmou o cardeal Cagliero:
Nos trinta e cinco anos em que vivi com ele, nunca ouvi uma
expressão de temor ou dúvida. Nunca vi nele qualquer inquietação
acerca da bondade e da misericórdia de Deus para com ele. Nunca
pareceu perturbado por angústias de consciência.
Diferentes, sob esse aspecto, foram, por exemplo, São José
Cafasso, São Leonardo Murialdo e outros.
Quando foi que Joãozinho se converteu à santidade? Quan-
do disse a si mesmo, como São Domingos Sávio: “Quero ser
santo, e rapidamente!”? É o seu segredo. Uma antiga tradição
salesiana, porém, o quer santo em todas as fases da sua vida:
santo jovem, santo clérigo, santo sacerdote, santo educador.
Teria assim ensinado um caminho de “santidade jovem”, expe-
rimentado e vivido por ele. A sua primeira juventude é exem-
plar: caracterizam-na o profundo senso do divino e da oração, a
atividade apostólica entre os seus companheiros, a capacidade de
autodomínio, a coragem ao enfrentar os incômodos da pobreza
e as pretensões do meio-irmão Antônio, a humilhação de passar
dois anos como empregado na casa da família Moglia.
A expressão piemontesa “‘ndé da servitù” tem sabor amar-
go. Evoca trabalho escravo, superior às forças, maus-tratos,
distanciamento do ninho familiar. A ele eram forçados, para
sobreviver, moços e moças de famílias numerosas e pobres.
Sabemos que João Bosco foi bem tratado pelos patrões, cristãos
convictos, e também admirado pelas suas virtudes. Porém, nas
Memórias do Oratório ele não menciona esse período da sua

4.3 Page 33

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Pietro Brocardo 31
vida. Talvez por respeito à mãe. Os anos passados com a família
Moglia não foram, como sublinha oportunamente o P. Stella,
“inúteis, um parêntesis”.
São anos nos quais se enraizou mais profundamente nele o sentido
de Deus e da contemplação, nos quais pode se iniciar na solidão
e no diálogo com Deus durante o trabalho do campo. Anos que
podem ser definidos como de espera absorta e suplicante: de Deus e
dos homens. Nesses anos se deve colocar a fase mais contemplativa,
na qual o seu espírito deveria estar mais predisposto aos dons da
vida mística, do estado de oração e de esperança.
Na escola do padre Calosso, que freqüentou de novembro de
1829 a novembro de 1830, João, agora adolescente, progride na
virtude. O santo sacerdote o proíbe de fazer certas penitências,
inadequadas à sua idade. Elas revelam, porém, uma tendência
clara para a santidade. O sacerdote o inicia no exercício da
meditação e na leitura espiritual, e o encoraja a freqüentar os
sacramentos. Escreve nas Memórias do Oratório: “Desde então,
comecei a saborear a vida espiritual”. “Saborear” não é apenas
conhecer teoricamente Deus e as coisas divinas, mas experi-
mentar. É o efeito do dom da sabedoria, o mais perfeito dos
dons do Espírito Santo, pois aperfeiçoa a caridade, compêndio
de todas as virtudes. A sabedoria compreende a inteligência,
mas principalmente o amor, que vai mais longe e a supera.
Para um adolescente de 15 ou 16 anos, isso não é pouco.
Capítulo II
Guinada espiritual
Estudante em Chieri,13 João estreita uma forte amizade
com Luigi Comollo, uma pérola de jovem e depois de clérigo,
morto prematuramente. Dele Dom Bosco escreveu mais tarde
uma breve biografia. A amizade com Comollo constitui uma
guinada na vida espiritual do santo. Marca o início de uma

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32 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
intensa emulação, de um caminho autêntico para a santidade
sacerdotal. Deles se podia verdadeiramente dizer com Kalil
Gibran: “A aurora não os encontrava nunca onde o pôr-do-sol
os deixara”. Nasceram para se integrar e se complementar, em

4.5 Page 35

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primeiro lugar no plano espiritual, mas não apenas neste.
Escreve Dom Bosco: “Precisávamos um do outro: eu de ajuda
espiritual, ele de ajuda física”. Havia, de fato, estudantes mal-
-intencionados que se aproveitavam da timidez e da bondade
de Comollo e o aborreciam. João fremia. Um dia, alguns deles
dão dois tapas violentos no rosto pálido e amedrontado do
pobre Comollo, que suporta a afronta sem reagir. Mas Bosco
está presente e, diante daquele fato, fica cego de raiva, o sangue
ferve nas suas veias e ele provoca quase um massacre, como ele
mesmo conta:
Nesse momento perdi as estribeiras, e recorrendo não à razão mas
à minha força brutal, não tendo à mão nem cadeira nem bastão,
segurei com as mãos um colega pelos ombros e me servi dele como
bastão para bater nos adversários. Quatro deles rolaram por terra,
e os outros fugiram, gritando.
O amigo não aprova: “Meu amigo, a tua força me apavora.
Lembra-te, porém, que Deus não a deu para você massacrar os
colegas. Ele quer que nos amemos e nos perdoemos”.
A influência de Comollo sobre Dom Bosco foi notável,
como se deduz das Memórias do Oratório. “Impressionava-o” o
“amigo perfeito” e “modelo de virtude”, com quem João havia
aprendido “a viver como um verdadeiro cristão”, isto é, a levar
uma vida de forte entonação sacramental e mariana, de exercí-
cio intenso da caridade, de senso do dever e de tensão voltada
para o ideal do sacerdócio. Esse ideal estava de acordo com o
13 Em 1831, João Bosco se muda para Chieri, a 10 quilômetros de Turim, a fim de continuar
os estudos. Em 1834 é admitido no Seminário de Chieri, para os estudos de filosofia e teologia.
Deixará a cidade após dez anos, para se mudar definitivamente para Turim. [n.e.]

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34 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
modelo de sacerdote da reforma tridentina e da Restauração,
mais dedicado à liturgia que ao apostolado, mais retirado da
realidade humana que nela mergulhado, homem do eterno
mais que do temporal. O sacerdote é, seguramente, tudo isso,
mas é muito mais.
Na realidade, Dom Bosco será um padre diferente. Sempre
terá, no entanto, a consciência aguda e incisiva da grande
dignidade e responsabilidade sacerdotal, que lhe foi inculcada
no seminário. Considerará a condição de sacerdote não um
privilégio, mas um ministério perigoso, no qual, se descuida
dos próprios deveres, ainda que um pouco, coloca em risco o
destino eterno. O padre Cafasso costumava falar aos jovens
padres: “Infelizmente, é certo que alguém, entre os sacerdotes,
vai se perder, e cada um de nós pode correr esse risco se não
estiver bem atento”.
Quero ser um bom padre
O jovem Bosco entra no seminário com o propósito de mu-
dar radicalmente de vida: “Aquela vivida até então deveria ser
radicalmente mudada”. Por isso toma o propósito de renunciar
às “encenações públicas” e aos “jogos de mágica, de destreza”,
que julga “contrários à seriedade e ao espírito eclesiástico”. Vi-
verá “retirado e com sobriedade”. Lutará “com todas as forças”
contra tudo o que possa, ainda que de longe, ofuscar “a virtude
da castidade”. Dedicar-se-á à oração e ao apostolado entre os
colegas. Em uma palavra, lutará contra si mesmo também nas
tendências em si legítimas, se dedicando, como se exprime P.
Stella, a um contínuo “esforço ascético”:
Esse o levava pelo caminho dos jejuns, das abstinências e da raiva
de si mesmo quando se surpreendia, algumas vezes, sendo indul-
gente em relação à antigas habilidades mundanas, tais como se
exibir em jogos de destreza ou tocar violino. Essa tensão ascética
contribuiu para levar à morte o seu amigo Comollo, e Dom Bosco,

4.7 Page 37

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Pietro Brocardo 35
ao extremo limite das forças físicas.
A violência exercida sobre si mesmo nos anos de seminário
foi uma das causas do enfraquecimento físico, que atingiu Dom
Bosco repentinamente, e da enfermidade grave que se seguiu.
Confirma-o o testemunho do doutor Albertotti:
Dando-se conta de que o seu espírito impulsivo era um mal, fez
esforços tão grandes, como já havia feito no passado durante o
ginásio, para se corrigir, que, como depois contava de vez em
quando para os seus discípulos, entrou em crise e caiu doente,
correndo o risco de morrer.
Esse episódio da vida de Dom Bosco nos dá a medida do
duro corpo a corpo em que se lançou, para corrigir as tendências
erradas da natureza e para se tornar dono de si mesmo, todo de
Deus e dos outros, especialmente dos jovens.
“Toda vida realizada na beleza, ó Senhor, dá testemunho
de ti. Mas o testemunho do santo é como que arrancado da
carne viva com uma tenaz em brasa.” Com essa imagem, que
recorda o inferno de Dante Alighieri (1265-1321), G. Bernanos
exprime uma lei verdadeira da santidade cristã. Dom Bosco a
viveu na sua própria pele. O heroísmo cristão, cujo destino é
duradouro, não desponta de repente como o amanhecer do dia.
Nos três anos passados no Colégio Eclesiástico São Francisco
de Assis, em Turim (1841-1844), Dom Bosco molda a si mesmo
e remolda ainda, trabalha e volta a trabalhar continuamente
sobre o seu sacerdócio. Mas o faz numa linha pastoral e prática:
“Aqui se aprende a ser padre”. O padre Luigi Guala e o padre
Cafasso, “duas celebridades daquela época”, além do colega
Felice Golzio, eram “os três modelos que a divina Providência
me oferecia e dependia somente de mim lhes seguir as pegadas,
a doutrina, as virtudes”, afirma Dom Bosco.
O padre Cafasso se torna o seu confessor e diretor espiritual.

4.8 Page 38

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36 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Escreve nas Memórias do Oratório: “Se fiz alguma coisa boa, sou
devedor a esse digno eclesiástico, em cujas mãos entreguei cada
decisão, estudo e ação da minha vida”. Obstinado e quase teimo-
so nas suas idéias, “obedeceu sempre e sem discussão ao padre
Cafasso”, conta dom Bertagna. Foi por “obediência ao padre
Cafasso que me estabeleci em Turim” dirá aos seus religiosos:
Por seu conselho e orientação comecei a reunir, nos dias festivos,
os moleques da rua para a catequese; com o seu apoio e ajuda,
comecei a recolher no Oratório de São Francisco de Sales os mais
abandonados, para que fossem preservados dos vícios e formados
para a virtude. Lembrem-se disso!
A virtude de Dom Bosco, padre jovem, brilha como nova
luz na fundação e direção do Oratório festivo, antes no Co-
légio Eclesiástico, depois no Refúgio e, finalmente, na sede
permanente de Valdocco, inaugurada em 12 de abril de 1846,
festa da Páscoa. Nesse lugar, o santo teve de enfrentar dificul-
dades enormes, e de vários tipos. Havia dificuldades externas:
as angústias da pobreza, o abandono dos seus colaboradores,
as perseguições por parte das autoridades municipais. As in-
ternas eram provocadas pela heterogeneidade ou pelo caráter
dos freqüentadores do Oratório, que provinham dos bairros
pobres da cidade ou eram andarilhos sem trabalho, verdadeiros
desqualificados que não toleravam a ordem nem a disciplina.
Era preciso controlar os nervos e ter muita, muita paciência.
Uma idéia do que era o Oratório de Valdocco naqueles
inícios, temos nesta realista e tardia evocação de Dom Bosco:
Quando o meu pensamento confronta os tempos presentes com os
tempos passados, fico estarrecido. O que era Valdocco há trinta e
cinco ou trinta e seis anos? Nada, realmente nada. Eu corria para
lá e para cá atrás dos jovens mais irrequietos e dissipados. Mas eles
não queriam saber de ordem e de disciplina. Riam das coisas da
religião, em que eram muito ignorantes, e blasfemavam contra o

4.9 Page 39

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Pietro Brocardo 37
nome santo de Deus, e eu não podia fazer nada. Eram meninos de
rua e faziam guerras de pedra, brigando continuamente. As coisas,
naquela época, estavam mais no pensamento do que nos fatos.
Para “ficar com Dom Bosco”, virão mais tarde ótimos jovens:
Miguel Rua,14 Francesia, Cagliero, Domingos Sávio e outros.
Mas quanta violência ele terá de se impor, ao tratar com tipos
tão teimosos e difíceis, para permanecer fiel ao programa da
sua primeira missa: “A caridade e a doçura de São Francisco de
Sales me guiem em cada coisa!”.
O salesiano deve ter – era uma das suas máximas – “a doçura
de São Francisco de Sales e a paciência de Jó”. Uma doçura
sem languidez, sem debilidade, fruto da caridade pastoral, que
é “benigna e paciente, tudo sofre, tudo espera, tudo suporta”
(cf. 1Cor 13,4-7). Para conservá-la, “será necessário suar e suar
muito, talvez até derramar sangue”. Dom Bosco dirigiu essa
admoestação a todos os salesianos no chamado “sonho dos
confeitos”, mas antes ele a experimentou e comprovou em sua
própria vida.
Um dia, o amigo padre Giacomelli vai a Valdocco e encon-
tra Dom Bosco muito vermelho, correndo atrás de um grupo
de meninos. Era o momento de oração, e eles queriam fugir.
“É a segunda vez que o vejo alterado”, lhe diz o amigo. “Esses
benditos meninos!”, foi a sua resposta. Mas quão eloqüente!
Acontecia também de o surpreenderem prestes a bater em
meninos que brigavam entre si, mas as mãos permaneciam fir-
mes no ar. Ele não batia nos meninos, ainda que o costume da
época levasse a agir assim em muitos casos, e não tolerava que
outros o fizessem. Sabemos, pelo testemunho do padre Rua e
do cardeal Cagliero, que algum tapa escapou das mãos de Dom
Bosco, quando ainda jovem sacerdote. Mas se trata de casos
raros e que se referem a situações particulares. Porém, quando
14 O padre Miguel Rua (1837-1910) foi o primeiro sucessor de Dom Bosco. [n.e.]

4.10 Page 40

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38 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
isso acontecia, ele não ficava contente. Sabia, ao contrário, ser
compreensivo, tolerante, paciente, ainda quando sentia o sangue
lhe ferver nas veias.
Isso custa também para mim
Na terceira idade, já na maturidade completa, Dom Bosco
possui realmente um heróico e seguro domínio de si, uma pa-
ciência e uma calma superiores a todo elogio, e uma delicadeza
de trato sem igual. É como o artista que esboçou a sua obra-
-prima e a conclui agora com cuidado. Mas o “fundamento
que a natureza põe”, apesar de domado, não se extinguiu. Tem
ainda os seus sobressaltos, como ele mesmo disse aos salesia-
nos que faziam retiro em Lanzo Torinese, na manhã de 18 de
setembro de 1876:
Não creiam que não custe também para mim, depois de ter pedido
a alguém uma tarefa, ou depois de lhe ter encarregado de algo
importante, delicado ou premente, não ver a tarefa executada em
tempo ou malfeita. Custa-me manter a calma. Asseguro-lhes que
algumas vezes o sangue ferve nas veias, um formigamento domina
todos os sentidos. Mas como? Impacientar-me? Não se consegue
que o não-feito seja feito, e não se corrige o súdito com a fúria.
Assim fazia, assim ensinava: “Quando estiverem nervosos
ou agitados, evitem repreender ou corrigir”. E acrescentava:
Haverá casos em que serão obrigados a “gritar um pouco”. Façam-
-no, mas pensem um momento: como São Francisco de Sales
se comportaria neste caso? Posso lhes assegurar que, se fizermos
assim, obteremos o que falou o Espírito Santo: In patientia vestra
possidebitis animas vestras [Pela vossa perseverança conseguireis
salvar a vossa vida (Lc 21,19)].
O seu primeiro biógrafo fez esta penetrante observação a
respeito: “Quando Dom Bosco sentia em si algum conflito de

5 Pages 41-50

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5.1 Page 41

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Pietro Brocardo 39
paixão, parecia que a natureza se lamentava, e o tom de voz
tinha algo tão suave e afetuoso, que se dobrava à sua vontade
quem o escutava”.
Um reflexo da capacidade de autocontrole se encontra na
sua correspondência, numerosíssima e variada. Alguém que não
estivesse habitualmente unido a Deus dificilmente teria resistido
à tentação de responder com as mesmas armas a certas cartas
provocantes e injuriosas. Ao contrário, ele sabia ser conciliador
e delicado. Era lei sua não responder quando se sentia agitado:
rezava, deixava passarem as horas e os dias, e não respondia
enquanto não tivesse voltado à calma absoluta.
Na carta que escreve ao padre Valinotti, para tratar de pro-
blemas sobre as Letture cattoliche,15 comenta:
Muitas vezes ontem tentei responder, mas a agitação não me
deixou. Apenas esta manhã, depois de ter celebrado o sacrifício
da Santa Missa e recomendado cada coisa ao Senhor, respondo
simplesmente narrando as coisas em seus aspectos reais...
Dirá um dia ao padre Ruffino: “Estou furioso! Esta carta não
seria ditada por mim, mas pela indignação. Não é o momento
de escrever”. Tentará novamente mais tarde e várias vezes: nada
feito! Acabará rasgando tudo e não respondendo nada. Terá a
alegria de dizer a si mesmo: “Fiz bem”.
O cardeal Cagliero lembrou, nos processos canônicos, um
episódio da vida do santo que dá a medida da sua capacidade
heróica de reagir com calma às contrariedades. Era janeiro de
1875, Dom Bosco almoçava tranqüilamente com os confrades,
quando se aproxima padre Rua para lhe comunicar que deveria
pagar a quantia de 40 mil liras, soma muito elevada naquela
época. O santo era avalista de uma promissória assinada em
15 Leituras católicas, coleção de livros populares, com temas católicos. Com as primeiras pu-
blicações em 1853, a coleção alcançou grande repercussão e foi publicada em vários países,
inclusive no Brasil. [n.e.]

5.2 Page 42

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40 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
favor de um amigo, morto repentinamente, e cujos herdeiros
se negavam a pagar. Qual foi a sua reação? Relata uma teste-
munha: “Estava tomando a sopa e vi que, entre uma colherada
e outra – era inverno e a sala não tinha aquecimento –, da sua
testa pingavam no prato gotas de suor, mas sem afobação e sem
interromper a refeição modesta”.
É totalmente verdadeira esta afirmação do teólogo Ascanio
Savio:
Tinha conseguido dominar o seu caráter bilioso a ponto de parecer
tranqüilo e tão manso que se mostrava sempre condescendente
com os seus alunos, desde que não se comprometesse a glória de
Deus e o bem das almas.
Assim como nesta outra, do bispo dom Bertagna:
A meu juízo, ao vê-lo sempre tranqüilo nos últimos oito ou dez
anos, já cheio de achaques, sobrecarregado de ocupações, sem-
pre assediado por todo tipo de pessoas, sem dar nunca sinais de
impaciência, ainda que mínimos, sem mostrar pressa, sem nunca
se precipitar na tarefa que lhe era entregue, existem motivos
abundantes para afirmar que, se não era um santo, de um santo
mostrava as feições. O êxito da sua obra principal (como de toda
a sua vida), isto é, a sua Congregação, é o que mais me leva à
convicção de que Dom Bosco foi um santo.
O esforço para se tornar santo emerge de maneira emblemática
nas obras mais desafiadoras da sua vida. Pensemos, por exemplo,
nos trinta anos de obstinados esforços para obter de Roma o
reconhecimento da Congregação. Tendo alcançado o resulta-
do, pôde afirmar com plena verdade: “Se tivesse sabido antes
quanta dor, cansaço, oposições e contradições custa fundar
uma sociedade religiosa, talvez não tivesse tido coragem de
me dedicar a essa tarefa”.
Pensemos no árduo empreendimento missionário dos últi-

5.3 Page 43

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Pietro Brocardo 41
mos doze anos da sua existência. Com esse empreendimento
Dom Bosco podia pagar, por meio dos seus religiosos, a pro-
messa que trazia gravada no coração desde os tempos de jovem
padre: plantar a Igreja em terras longínquas, para a salvação de
todos. Mas isso significou preocupações e dificuldades sem-
-fim. Mais uma vez a sua ousadia exigiu o equilíbrio próprio
do santo. Contudo, no espaço de vinte anos, a Congregação
passou a figurar, a pleno título, entre as grandes sociedades
missionárias da Igreja. A lógica dos santos não é a dos homens
comuns, porque provém das regiões superiores.
Pensemos, enfim, no contínuo peregrinar em busca de ajuda
e apoio para as suas obras, marcado por grandes humilhações, e
que culminou com o “cansaço mortal” da sua viagem à Barce-
lona, na Espanha, em março de 1886, já no limite das forças.
Durante a extenuante viagem de volta, parou em Montpellier,
na França, onde foi várias vezes visitado pelo doutor Combal,
médico famoso, que já o havia anteriormente encontrado e
que quis submetê-lo a três minuciosos exames. O diagnóstico,
transmitido ao padre Rua e ao padre Viglietti após os exames,
é um hino elevado ao espírito de imolação de Dom Bosco, ao
seu heroísmo cristão:
Se Dom Bosco não tivesse nunca feito milagre algum, eu acredi-
taria ser este o maior de toda a sua existência. É um organismo
desfeito. É um homem morto pelo cansaço, e todos os dias con-
tinua trabalhando. Come pouco e vive. Esse é para mim o maior
dos milagres.
O esforço feito por Dom Bosco para se tornar santo foi
verdadeiramente grande, ainda que não alardeado e pouco
manifesto. Referindo-se à perfeição da sua santidade, Pio XI,
no discurso aos alunos dos Pontifícios Seminários Romanos, em
17 de junho de 1932, a sintetizou nestas vigorosas afirmações:
A sua vida cotidiana era uma oferta contínua de caridade, um
ininterrupto recolhimento na oração. É essa a impressão mais

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42 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
viva que se tinha nas suas conversações (...). Poder-se-ia afirmar
que ele não prestava atenção em nada do que se falava ao seu
redor. Poder-se-ia dizer que o seu pensamento estava em outro
lugar: com Deus, em espírito de união. Mas, logo depois, estava
pronto para responder a todos e tinha a palavra certa para tudo
e para si mesmo, a ponto de causar maravilha. Antes, de fato,
surpreendia e depois causava maravilha. Essa vida de santidade,
de recolhimento e de assiduidade à oração, o beato cultivava
nas horas noturnas e no meio de todas as ocupações contínuas e
implacáveis das horas diurnas.
Capítulo III
Profundamente homem
Sobre os santos, escreveu o famoso pregador J.-B. Bossuet
(1627-1704):
Se Deus quer fazer santos, alguém que seja digno dele, precisa
revirá-los de todos os lados, para moldá-los inteiramente à sua
maneira, e respeitar as suas disposições naturais somente o tanto
necessário para não lhes fazer violência.
Na santidade tudo é dom de Deus, inclusive a resposta
heróica ao seu chamado. Mas Deus respeita infinitamente a
personalidade dos santos, mais do que Bossuet dá a entender. A
sua graça, isto é, a sua ação divina em nós, perpassa a natureza
e a respeita, não lhe impõe limitações. Com certeza Deus pode

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fazer coisas grandes em criaturas limitadas. É o caso, por exem-
plo, de São José Copertino. Privado de dotes humanos básicos,
Deus fez dele uma pessoa eleita. Mas as grandes obras-primas
da graça nascem normalmente em pessoas muito dotadas, como
no caso de Dom Bosco, que Jörgensen define, não sem ênfase,
como “um dos homens mais completos e mais absolutos que a
história conheceu”. É a mesma impressão que teve Pio XI, nos
três dias de visita ao Oratório de Valdocco, em 1883:
Nós vimos de perto essa figura, numa visão atenta, numa prolon-
gada conversação. Uma figura magnífica, que a imensa e insondá-
vel humildade não conseguia esconder... Uma figura dominante
e atraente, muito além do comum. Uma figura completa, uma
daquelas almas que, qualquer que fosse o caminho escolhido, teria,
com certeza, deixado uma marca, pois estava magnificamente
equipada para a vida.
Também L. Hertling, conhecido estudioso da História
da Igreja, associa o nome de Dom Bosco aos espíritos hu-
manamente mais capazes: “Agostinho, Francisco, Catarina
de Sena e Dom Bosco devem ser incluídos entre as flores e
cumes da humanidade”. Apreciação semelhante exprimiu
recentemente C. Wackenheim: “O apóstolo Paulo, Agostinho
de Hipona, Francisco de Assis, Vicente de Paula e João Bosco
foram, evidentemente, pessoas excepcionais pelos seus dotes
e qualidades humanas”.
O que impressionava à primeira vista em Dom Bosco era
o homem, não o santo. Se a sua profunda união com Deus
não podia ser objeto direto de observação, as suas brilhantes
qualidades humanas, perpassadas e purificadas pela graça,
podiam. Eram verdadeiramente muitas, contrárias e com-

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44 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
plementares, entrelaçadas e harmoniosamente fundidas em
misteriosa simbiose.
Dom Bosco era, ao mesmo tempo, alegre e austero, franco
e respeitoso, preciso e de espírito livre, humilde e magnânimo,
tenaz e flexível, tradicional e moderno, otimista e previdente,
diplomático e sincero, pobre e caridoso. Cultivava a amiza-
de, mas não tinha preferências; era rápido nas idéias, mas pru-
dente na execução; amava as coisas bem-feitas, mas não era
perfeccionista. Tinha visão ampla e senso do concreto. Audaz até
à temeridade, procedia com cautela. Sabia conquistar a amizade
do adversário, mas não renunciava aos seus princípios. Dinâ-
mico sem extroversão, cheio de coragem mas não temerário,
fazia convergir tudo para as suas finalidades, sem manipular as
pessoas. Educava prevenindo e previnia educando. Avançava
com o mundo – quer estar na vanguarda do progresso – mas
não era do mundo.
Essas e outras antinomias positivas dão a medida da verda-
deira grandeza de Dom Bosco. A ele cabem bem as palavras
de H. Petitot:
Para medir a abertura das asas da águia, é preciso estendê-las e
reparar nas extremidades opostas. Só então se pode julgar a sua
força. O mesmo acontece com as virtudes dos santos, cuja extensão
não se consegue medir sem as contrapor.
As antinomias que delineiam a figura humana de Dom
Bosco, transfiguradas pela caridade pastoral, formam uma
maravilhosa concordância de natureza e de graça. A sua riqueza
humana estava tão harmoniosamente integrada à santidade,
que se tornava quase o sacramento desta, e os dons da graça,
quando se manifestavam, eram como a glorificação da sua
humanidade.
A natureza é, em primeiro lugar, a forma que Deus dá à sua
graça. E quando o ser humano corresponde, isso transparece

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Pietro Brocardo 45
também no seu exterior. Daniel-Rops disse: “Tudo é humano
em Dom Bosco e, ao mesmo tempo, de tudo emana misterio-
samente uma luz sobrenatural”.
A este respeito não podemos ignorar uma citação muito
expressiva, de dom De Luca:
Dom Bosco merece amor e estudo, não somente enquanto São
João Bosco, mas como João Bosco, isto é, como ser humano
entre os seres humanos. Algumas vezes sinto o desejo de escrever
a vida de Dom Bosco – todos os santos são raros, mas santos
como ele, inclusive profanamente admiráveis, são raríssimos – ...
escrever, dizia, a vida de Dom Bosco em termos e de modo que
os não-crentes também possam entendê-la e admirá-la. Escrever
a vida de um santo de tal forma que a leitura envolva quem não
acredita na santidade. Mostrar a estes, inclusive a quem ignora
e quer ignorar a vida interior e a graça, inclusive a quem não se
apercebe nem aprecia que a natureza tenha formado um homem
como Dom Bosco, tão extraordinário, que é mister inclinar a
fronte diante dele e, talvez, os joelhos também.
Estou certo de que, escrevendo assim do santo, se eu soubesse
escrever, acabaria por levar os incrédulos a crerem também. À
força de penetrar na alma do gigante disfarçado de gente normal,
como foi Dom Bosco, se acabaria por gerar a dúvida de que ele,
embora sendo tão grande, não podia estar sozinho, vivendo a vida
que vivia e criando a vida que criava. Com ele devia estar, com
ele certamente estava Deus.
Ao sair em busca do ser humano, somente do humano, encontrar-
-se-ia Deus. Este é exatamente o motivo pelo qual nasceram os
santos, é exatamente o que o próprio Jesus fez: se tornou homem
para nos conduzir, aliás, para nos carregar até Deus.
Entre as suas antinomias positivas, nos limitamos a subli-
nhar brevemente três: vontade indomável e flexível, bondade
paterna e exigente, sensibilidade profunda unida a uma grande
força de caráter.

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46 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Vontade indomável e exível
Dom Bosco foi, no seu tempo, segundo o escritor francês
J.-K. Huysmans,16 “um incrível homem de negócios de Deus”.
É difícil não concordar com esse parecer, que exalta o talento
organizador e realizador do santo e, implicitamente, a sua von-
tade férrea “indômita e indomável”, como afirmou Pio XI. É
a marca de fábrica da gente da região de Asti, que ele herdara
em medida fora do comum.
Ele a levava, por assim dizer, gravada no vigor da sua mente
– “tinha uma inteligência sutil”, atesta dom Bertagna, compa-
rando com as feições que revelavam a sua origem camponesa,
no vigor dos seus músculos, na capacidade inata de ação, na
forte segurança de si. Uma vontade que não parecia conhecer
a palavra “impossível”. Desde pequeno a exercitara na rudeza
da lavoura, destruindo os obstáculos que se opunham aos seus
estudos e à sua vocação. Vai exercitá-la, de maneira grandiosa,
quando adulto. Preocupado com o agir, se afastava das abstra-
ções acadêmicas. Dirá um dia ao bispo de Casale, que queria
arrastá-lo para uma disputa filosófica:
Dom Ferré, eu não tenho tempo para me dedicar a essas coisas,
porque o campo a mim confiado por Deus não está nas idéias,
mas nas obras. Embora seja verdade que, da maneira correta de
pensar, derive um correto agir, para agir retamente basta pensar
e sentir com o papa.
Forte no querer, Dom Bosco era lento no decidir. Meditava
longamente sobre os seus projetos, os comparava com a sua
experiência, se aconselhava, interrogava o Senhor na oração
contínua. Mas depois de ter tomado uma decisão, obstáculo
16 J.-K. Huysmans (1848-1907) publicou, em 1902, o livro Esquisse biographique de Don Bosco
(Esboço biográfico de Dom Bosco). [n.e.]

5.9 Page 49

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Pietro Brocardo 47
algum parecia detê-lo. Costumava dizer: “Dom Bosco não é
pessoa que pare na metade do caminho quando coloca as mãos
em um empreendimento”. E ainda:
Quando encontro uma dificuldade, me comporto como um cami-
nhante barrado por uma rocha: eu a tiro da estrada ou dou a volta
pelo lado. Quando começo a fazer algo e surge um obstáculo, paro
e inicio outra coisa, mas fico sempre atento. Nesse meio tempo,
as ameixas amadurecem e as dificuldades se aplanam.
O fato de ter sempre se inspirado no “critério do possível”
não significa que ele tenha sido um pragmático puro ou que
tenha feito unicamente da praxe a lei da sua vida. A sua ação é
sempre avaliada à luz de sólidos princípios sobrenaturais e de
profundas convicções religiosas, ou tomadas de modo racional,
simplesmente, mais do que dos livros, da experiência. Seu sin-
cero otimismo – outro critério de ação – se enraíza em regiões
superiores. Sabe e sente que Deus está com ele.
Determinado ao extremo, Dom Bosco também é flexível
e condescendente, não apenas em perseguir devagar as metas
prefixadas, mas também no exercício do seu próprio querer
e não querer. O seu sistema pedagógico é uma obra-prima
de “moderação, ternura e religiosidade”. Não há espaço
para a vontade intransigente, para a lei da inflexibilidade.
Sobre a “frieza do regulamento” devem prevalecer as razões
da bondade e do coração.
Para Dom Bosco a educação é, de fato, “coisa do coração”.
Sabia, por longa experiência, que o espírito dos jovens “é uma
fortaleza sempre fechada ao rigor e à aspereza”. Só é possível
cativá-los por meio do coração e da vontade livre.
Nele não há nada de rude ou de duro, como o seu tempera-
mento obstinado poderia levar a pensar, mas atitudes paternas,
amáveis, capazes de compreender e se adaptar aos gostos dos

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48 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
pequenos, para fazê-los amar as coisas que os adultos amam,
ainda que não gostem.
Mas, além de referências explícitas ao Sistema Preventivo,
existe o vasto campo da obediência. Dom Bosco nunca recusou
obedecer nem às autoridades religiosas – recorrendo, em caso
de desacordo, à autoridade superior, nas coisas que eram
contrárias à sua missão de fundador – nem às disposições
legítimas das autoridades civis. Temperamento de “resistência
ou de ataque”, como alguém o definiu, não era naturalmente
levado à submissão.
Na canonização, a Igreja proclamou que a sua obediência foi
heróica, como o prova, por exemplo, a aceitação incondicional
da famosa “Concórdia”, disposta pela Santa Sé para aplainar
os desentendimentos que se arrastavam havia anos entre ele
e o seu arcebispo, dom Gastaldi.17 O documento impunha
a Dom Bosco retratações pesadas, sem que houvesse motivo
para isso. Quando leu o texto do documento para os seus
conselheiros, o desalento foi geral. Todos, exceto Cagliero, o
aconselharam a ganhar tempo e a mostrar as suas boas razões.
Mas Roma havia falado e, para o santo, o assunto estava en-
cerrado. A “Concórdia” foi aceita e observada integralmente.
Mais tarde, Dom Bosco confidenciará que aquela obediên-
cia lhe havia custado muito. O sumo pontífice havia exagerado
na dose, pois sabia que podia contar com a sua santidade. Em
Dom Bosco, vontade férrea e flexibilidade se complementavam.
Paternidade amável e exigente
Escreveu o teólogo R. Guardini: “Nenhuma das grandes
realidades da vida humana surgiu do simples pensamento: todas
do coração e do seu amor”.
Não é possível pensar em Dom Bosco e na sua obra sem
lembrar a sua bondade paterna, o grande “coração oratoriano”,

6 Pages 51-60

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6.1 Page 51

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Pietro Brocardo 49
fundamento da sua pedagogia.
Não se trata do coração “monumental dos filantropos, que
é mármore e bronze”, como precisa o biógrafo de Dom Bosco
A. Caviglia. É o coração no qual vibram a “bondade paterna
e a ternura materna para com os pequenos e os pobres”. Dom
Bosco dizia: “Sinto tanta compaixão por esses pobres garotos
que, se fosse possível, daria a eles o meu coração dividido em
pedacinhos”. Era a imagem real daquela que São Gregório de
Nissa chama de “filantropia de Deus”.
A liturgia evoca Dom Bosco como “pai e mestre dos jovens”.
Mestre porque pai. Ele gostava do nome “pai” porque encerrava
uma aspiração e preocupação constantes na sua vida: construir
uma família dos “sem família” ao redor de si.
Testemunha o padre Filipe Rinaldi:18
Dom Bosco, mais do que uma sociedade, queria formar uma
família fundada quase unicamente sobre a paternidade suave,
amável e vigilante do superior, e sobre o afeto filial e fraterno dos
súditos. Aliás, ainda que mantendo o princípio da autoridade e
da respectiva submissão, não queria distinções, mas igualdade
entre todos em tudo.
Gostava de ser chamado de pai: “Chamem-me sempre de
pai e vou ficar feliz”. Os primeiros salesianos e os ex-alunos
só o tratavam assim. Também hoje é freqüente as pessoas se
dirigirem a Dom Bosco como “pai e fundador”. A paterni-
dade, assim como o paternalismo, era uma das características
do seu tempo. A centralidade do pai e o respeito dos filhos
representavam, ao mesmo tempo, um fato cultural e uma
atitude virtuosa.
17 A causa entre Dom Bosco e o arcebispo de Turim foi discutida no Vaticano, em dezembro de
1881. Após debate com os cardeais, o papa Leão XIII decidiu enviar uma carta ao santo com
as condições para a “Concórdia”. O conteúdo era claro: Dom Bosco devia escrever uma carta
pedindo perdão ao arcebispo e este devia responder que estava feliz por esquecer o passado.
Mas as razões para essa exigência não foram explicitadas. [n.e.]

6.2 Page 52

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50 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
As ideologias do nosso tempo, que impuseram pesadas hi-
potecas à figura paterna, estão hoje em dificuldade. O pai volta
à cena atual, não como personagem a ser removido, mas figura
central e necessária para o crescimento harmônico e equilibrado
dos filhos, ainda que isso signifique novas formas de presença,
que parecem pôr em crise os papéis clássicos. O pai deve ser
mais autorizado que autoritário, mais próximo do modelo que
da lei, mais amigo e irmão que personagem.
Nessa perspectiva, Dom Bosco, sob vários aspectos, se revela
nosso contemporâneo. O seu modo de ser pai está em sintonia com
as aspirações modernas. Ele recomendava aos seus diretores: “Mais
do que superiores, sejam pais, irmãos, amigos”. Sem dúvida, a sua
paternidade encontra a razão de ser mais profunda na paternidade
que nasce da fé, de que fala com freqüência São Paulo (1Ts 2,7-
8.10-11). Também aqui não falta o brilho humano.
Órfão de pai aos 2 anos, Dom Bosco teve de um pai natural
– exceto a carne e o sangue – praticamente tudo: o amor terno
e forte para com os filhos de adoção, a resistência ao cansaço
e aos sofrimentos próprios do pai, o sentido claro da respon-
sabilidade do chefe de família e a dedicação sem limites, que
tem correspondente somente no heroísmo materno. A sua vida
inteira é prova disso, e o são também afirmações extremamente
sinceras como as que seguem:
Qualquer dia, a qualquer hora, contem comigo, mas especial-
mente para as coisas da alma. Da minha parte, me dou a mim
mesmo a vocês: parece mesquinho, mas quando dou tudo para
vocês, não guardo nada para mim.
Dizia para os jovens em dificuldade: “Farei qualquer sacri-
fício; daria até o meu sangue para salvá-los”.
Aos superiores e aos jovens do Colégio de Lanzo escreve:
18 O padre Filipe Rinaldi (1856-1931) foi o terceiro sucessor de Dom Bosco. O papa João
Paulo II o declarou beato em 1990. [n.e.]

6.3 Page 53

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Pietro Brocardo 51
A carta de vocês, assinada por duzentas mãos amigas e caríssimas,
tomou conta do meu coração. Nada sobrou, a não ser o vivo
desejo de amar vocês no Senhor, de lhes proporcionar o melhor,
de salvar a alma de todos.
Expressão sublime de ternura paterna são, entre outras, as
duas famosas cartas enviadas de Roma, uma aos jovens e a outra
aos salesianos, no ano de 1884.19 Há nelas, se pode dizer, quase
uma síntese do seu espírito, da sua experiência pedagógica, da
sua espiritualidade. Nelas se encontra, sobretudo, o seu “cora-
ção”. Transcrevemos apenas duas frases: “Estar distante de vocês,
não poder vê-los nem ouvi-los, me causa uma dor que vocês
não podem imaginar”; “Quem quer ser amado precisa mostrar
que ama”. De que maneira? Com a familiaridade, a doçura,
a caridade, a intimidade, a confiança. Um bom testemunho
desse “saber se deixar amar” é oferecido pelo seu secretário, o
seminarista C. Viglietti.
A curiosidade levara o jovem a ler algumas cartas confiden-
ciais. Sentiu remorso e confessou tudo a Dom Bosco. Qual foi
a reação do santo? “Apertou-me comovido contra o coração,
recolheu todas as cartas que estavam na sua mesa, confidenciais
ou não, e as entregou a mim.”
A vida de Dom Bosco é entrelaçada de episódios semelhan-
tes, com esse mesmo grau de afetuosidade. Conta E. Ceria:
Este fato é inédito. Confidenciou-a para mim o nonagentário
padre Francesia, no final de 1929. Na época de Domingos Sá-
vio, ele era um seminarista ainda muito jovem. Um dia ficou de
cama, com febre. À tarde, Dom Bosco foi visitá-lo e o animou,
com amabilidade. Ao se despedir, lhe perguntou se desejava algo.
Francesia respondeu: “Gostaria de tomar um pouco da água do
balde dos pedreiros”. Tratava-se de um balde de água fresca, usado
19 A carta dirigida aos salesianos ficou conhecida como “Carta de Roma”. Considerada um dos
escritos pedagógicos de Dom Bosco, procurava traçar o perfil ideal do Oratório. Cf. Escritos
pedagógicos de Dom Bosco. São Paulo, Editora Salesiana, 2004. [n.e.]

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52 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
para a cal. Havia pedreiros trabalhando na casa. Será que Dom
Bosco riu daquilo? Não, como também não riu em outra circuns-
tância quando, perguntando a Sávio se sofria algum mal, o ouviu
responder: “Antes, sofro um bem”. Dom Bosco compreendeu que
ele estava com a saudade da santidade. Compreendeu, igualmen-
te, o desejo de uma pessoa febril, que queria atenção. O que ele
fez? Saiu do quarto e voltou pouco depois, trazendo uma caneca
com aquela água. Acostou-se ao enfermo e aproximou a caneca
dos lábios dele, que bebeu à vontade. Quando viu o bom pai se
afastar, o jovem chorou de ternura.
Nos primeiros tempos do Oratório, quando Dom Bosco
notava algum dos jovens doente, sofria tanto que pedia ao Se-
nhor a graça de assumir para si tal enfermidade. Isso aconteceu
várias vezes. Um dia, foi atingido pela dor de dentes de um
jovem, que não a agüentava mais. Durante a noite, porém, a
dor se tornou tão insuportável, que o santo, se levantando às
duas horas da madrugada, teve de ir em busca de um dentista
que lhe extraísse o dente. Mais tarde, devido aos muitos traba-
lhos, interrompeu essa prática. Isso mostra como ele assumia
os sofrimentos, inclusive físicos, dos seus jovens.
Essa bondade, assumida como sistema pedagógico, chegava
diretamente ao coração dos jovens e deixava, nos mais sensíveis,
traços indeléveis.
São Leonardo Murialdo pode afirmar com segurança: “A
caridade que Dom Bosco tinha para com os jovens permitia
que eles correspondessem ao seu amor com afeto sincero e
incomparável”.
Recordando o tempo vivido com Dom Bosco, o padre Luís
Orione20 terá a ousadia de dizer: “Caminharia sobre brasas
ardentes para vê-lo novamente e lhe dizer obrigado”.
O padre Paulo Albera21 deu este maravilhoso testemunho:
Devo dizer que Dom Bosco tinha por nós especial predileção,
própria dele, pelo que sentíamos fascínio irresistível. Eu me sentia

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Pietro Brocardo 53
como que preso por uma força afetiva que mexia com pensamen-
tos, palavras e ações. Sentia que era amado de um modo que nunca
tinha experimentado antes, de uma maneira singular, superior a
qualquer afeto. Ele nos envolvia a todos em uma atmosfera de
felicidade e alegria. Tudo nele tinha um poder de atração. Agia
nos nossos corações juvenis como um imã, ao qual era impossível
resistir. E ainda que pudéssemos, não o teríamos feito em troca de
todo o ouro do mundo, tamanha era a felicidade que experimen-
távamos por causa dessa influência excepcional sobre nós. Isso era
algo muito natural nele, sem planejamento e sem esforço algum. E
não podia ser diferente, porque de cada palavra ou ato seu emanava
a santidade da união com Deus, que é a caridade perfeita. Ele nos
atraía para si pela plenitude do amor sobrenatural que lhe ardia no
coração. Dessa singular atração brotava a ação que conquistava os
nossos corações. Nele, os dons naturais se tornavam sobrenaturais
pela santidade da sua vida.
“Sempre pai”, Dom Bosco nunca foi um pai permissivo e
fraco, nunca abdicou das suas responsabilidades. Deixava os seus
colaboradores resolverem as questões mais conflituosas. Mas
todos sabiam que ele era intransigente e firme, especialmente
quanto ao furto, à blasfêmia e ao escândalo. Costumava dizer:
“Dom Bosco é a pessoa mais bondosa do mundo: destruam,
quebrem, façam molecagens. Ele saberá compreendê-los. Mas
não arruínem as almas, porque nesse caso ele será inflexível”.
O cardeal Cagliero conta:
Quando eu era seminarista, um garoto simples e inocente foi
vítima de escândalo por parte de um adulto. Dom Bosco, logo
que soube do fato, sentiu uma dor muito grande, se perturbou
e chorou na minha presença. Com doçura paterna reparou a
20 O padre Luís Orione (1872-1940) foi aluno no Oratório de Valdocco de 1886 a 1889. Ordenou-se
sacerdote diocesano em 1895 e logo começou a se ocupar de jovens pobres. Fundou uma família
religiosa, chamada Pequena Obra da Divina Providência, com várias congregações e grupos leigos.
Faleceu em 1940 e foi declarado santo por João Paulo II em 2004. [n.e.]
21 O padre Paulo Albera (1844-1921) foi o segundo sucessor de Dom Bosco. [n.e.]

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54 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
inocência traída, mas depois, com igual firmeza, fez com que o
culpado fosse afastado.
Mesmo nesses casos, não lhe faltava o grande amor de pai.
Não castigava o culpado, mas chamava a sua atenção e o levava
a compreender a gravidade da ação. Exortava-o ao arrependi-
mento e, depois, com pesar, o devolvia aos familiares ou aos
benfeitores. Conservava, porém, a amizade. Era particularmente
severo com quem desobedecia voluntária e obstinadamente.
Dissolveu imediatamente, em 1859, uma banda musical, que
era o orgulho do Oratório, porque os membros não haviam
obedecido às suas repetidas e firmes orientações. Todos, exceto
quatro, foram expulsos do oratório.
Também com os seus colaboradores diretos era paternal,
mas intransigente. O padre C. Durando, conselheiro da escola,
havia mudado o programa da assim chamada “escola de fogo”,
transgredindo uma sua ordem. Os mais fracos, desanimados,
desistiram. Dom Bosco, chateado, manifestou seu desaponta-
mento: “Se tivessem obedecido, isso não teria acontecido”. A
pessoa envolvida tentou se justificar. Dom Bosco o interrompeu
com veemência: “A questão não é essa! Combinamos de um
jeito, e a obediência deveria ter levado a fazer como havíamos
combinado”. De quem tinha obrigação de maior perfeição, o
santo exigia mais.
Nunca exploraríamos suficientemente a profundeza da
bondade paterna de Dom Bosco. Mas, se no seu interior não
encontrássemos unidas, numa complementaridade positiva,
doçura e firmeza, bondade e severidade, não estaríamos diante
de uma verdadeira paternidade.
Sensível e forte
Esta é a terceira antinomia positiva sobre a qual queremos
chamar a atenção. Dom Bosco era de uma profunda sensibili-

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Pietro Brocardo 55
dade, capaz de intensa vibração. Emocionava-se e se enternecia,
regozijava-se e sofria com os outros. Seu médico disse que ficou
impressionado, durante as conversas freqüentes que teve com
Dom Bosco, “com a sua extrema sensibilidade, própria dos gê-
nios mais sublimes”, nunca separada do “extraordinário primor
da sua sensibilidade moral”. Uma sensibilidade natural, que
possuía algo de delicado e de materno, aprendido na escola da
sua mãe e da Virgem Maria, presença sempre ativa na sua vida.
Essa sensibilidade, que com os anos vai se tornando mais
refinada, se manifesta claramente desde a juventude.
Todas as crianças choram com facilidade, mas também es-
quecem rapidamente. Joãozinho, ao contrário, chora a morte
do seu pequeno melro e sofre durante vários dias. Mais tarde,
a morte repentina do padre Colosso e, depois, a do amigo
Comollo lhe causam um desalento duradouro e profundo.
Quando jovem padre, se comove profundamente ao ver jovens
abandonados nas estradas e nas praças de Turim, ou atrás das
grades da prisão. Não agüenta acompanhar a agonia da própria
mãe, e se retira para rezar no quarto vizinho. Anos depois, ao ler
a sua biografia, escrita pelo padre G. B. Lemoyne, não consegue
conter as lágrimas. A simples lembrança de Domingos Sávio o
comove: “Toda vez que corrijo o esboço desse livro [A vida de
Domingos Sávio], tenho que pagar o preço das lágrimas”.
Participa intensamente dos sofrimentos dos seus jovens por
causa de doença, de morte de familiares, de desgraças. Emo-
ciona-se com as menores manifestações de afeto, com as aco-
lhidas depois de longas ausências do Oratório e com os gestos
de bondade dos benfeitores e dos amigos.
A ternura se torna mais forte na velhice. Comove-se com a
lembrança dos missionários que estão longe: “Vocês partiram
e despedaçaram o meu coração”. Despontam lágrimas dos
seus olhos quando lhe dizem que ele não precisa de orações,
e responde: “Preciso muito!”. Chora também quando o padre

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56 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Rua prega sobre o tema do amor de Deus.
Além de uma ternura natural, Dom Bosco teve também o
dom espiritual das lágrimas, como se lê de outros santos. Hoje
simpatizamos pouco com esses aspectos da ascese cristã, porque
a humanidade se tornou adulta. Mas, pensando melhor, o dom
das lágrimas, quando é verdadeiro, é sinal de grande santidade.
Ele nasce na alma cheia de Deus, quando medita maravilhada
sobre a sua infinita grandeza, quando contempla o seu amor
salvífico, a sua misericórdia, a sua bondade e a sua justiça, e
quando reflete sobre a paixão do Senhor, a gravidade do pecado,
a condenação eterna e os outros mistérios da fé cristã.
Sobre esse tema, testemunha o cardeal Cagliero:
Quando Dom Bosco pregava sobre o amor de Deus, a perda
das almas, a paixão de Cristo, na sexta-feira santa, a santíssima
Eucaristia, a boa morte e a esperança do paraíso, notamos várias
vezes, eu e os meus companheiros, que ele derramava lágrimas,
seja de amor, de dor, ou de felicidade. Pudemos ver seu entusiasmo
quando falava da Virgem Santíssima, da sua bondade e da sua
imaculada pureza.
A sensibilidade de Dom Bosco era tão intensa, que o seu
delicado equilíbrio interior se teria rompido caso não tivesse
possuído, como virtude complementar, o pleno domínio dos
seus sentidos e das suas faculdades espirituais, e uma compro-
vada fortaleza de ânimo.
É conhecida, em pessoas muito sensíveis, a extrema vul-
nerabilidade do amor próprio, a instabilidade de humor, a
irritabilidade e a perturbação diante de pequenas coisas, e a
facilidade com que perdem o controle.
Já lembramos o heroísmo com que Dom Bosco soube
dominar e orientar para o bem os aspectos frágeis do seu tem-
peramento, que poderiam ter feito dele uma pessoa ruim e pe-
rigosa, ou um santo fracassado. Não vamos repetir. Lembramos

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Pietro Brocardo 57
apenas que, sem a sua profunda sensibilidade, teria faltado à
amorevolezza salesiana – que é a capacidade de amar e de se
deixar amar por meio de sinais visíveis – algo essencial. Tudo
isso seria impossível sem a sua ilibada pureza e sem o respeito
extremo para com a personalidade do jovem.
Também aqui, sensibilidade e domínio de si, ternura e for-
taleza são virtudes complementares: não é possível isolar uma
delas sem se defrontar com a outra.
Capítulo IV
Profundamente santo
Quando o jornalista inglês D. Hyde manifestou a I. Silone
o propósito de escrever a vida do padre Orione, foi esta a res-
posta do escritor:
Qualquer que seja a sua decisão, quando escrever sobre ele, lhe
peço que não o transforme em uma espécie de Beveridge [conhe-
cido economista inglês] católico. Seria diminuir-lhe a estatura.
O padre Orione, como muitos outros, se ocupou de obras de
caridade e de justiça social. A sua força excepcional se apóia,
porém, no fato de que, em tudo o que fazia, contava única e
completamente com Deus.
O mesmo se deve pensar de Dom Bosco. A sua existência
se explica apenas em Deus, apenas à luz da sua santidade, que
é, ao mesmo tempo, escondida e revelada.
Santidade escondida
Durante a sua vida terrena, Dom Bosco ocultou, mais do
que revelou, a sua santidade. Muitos se aproximaram dele sem
se dar conta disso e, mesmo quando a sua fama de santo já havia
ultrapassado as fronteiras da Itália e da Europa, houve sempre

6.10 Page 60

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quem o julgasse, paradoxalmente, mais intrigante que virtuoso.
É o que afirmou dele o cardeal Ferrieri:
Dom Bosco! Dom Bosco é um mentiroso, um impostor, um
prepotente que quer se impor à Sagrada Congregação (...). Afinal,
o que quer Dom Bosco? Ele não tem inteligência nem santidade.
Teria sido melhor ficar sob a direção de um bispo, sem se obstinar
em querer fundar uma congregação.
Era considerado “demasiadamente esperto”, “obstinado”,
“ávido de dinheiro”, alguém que gostava “de falar e de fazer
falar de si mesmo”.
No mundo dos santos vige a lei da gravidade: os santos se
atraem reciprocamente e logo se compreendem mutuamente.
São Murialdo, que conheceu Dom Bosco por volta de 1851,
confessa que custou para acreditar na sua santidade. Só mudou
de idéia quando “começou a estabelecer com ele uma relação
confidencial”, quando se deu conta de que “as suas obras, que
revelavam um homem extraordinário”, falavam em seu favor.
No ambiente do Oratório, porém, logo cedo se firmou a sua
fama de santidade. Mas, mesmo para quem viveu com ele desde o
início, adverte o cardeal Cagliero, a sua “vida parecia tão comum
como a de todo sacerdote exemplar”. O padre Ceria escreveu:
Poucos homens foram tão extraordinários sob aparência tão or-
dinária. Nas coisas grandes como nas pequenas, sempre a mesma
naturalidade, que à primeira vista não revelava nele nada além
de um bom padre.
Um “bom padre”, certamente, mas não a ponto de se pensar
em grande santidade, em santidade canonizável. Confidenciou

7 Pages 61-70

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7.1 Page 61

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Pietro Brocardo 59
o padre Gresino:
Eu via e sabia que Dom Bosco era um ótimo padre, que trabalhava
exclusivamente por nós e era querido por todos. Mas a idéia de
possíveis processos ou de santidade canônica não me aflorava à
mente.
Assim pensavam também o padre Rinaldi e outros. A essên-
cia mais verdadeira da sua santidade permanecia escondida no
seu jeito simples, afável e natural de fazer. Isso vinha do desejo
de não manifestar aos outros o segredo de Deus, do profundo
senso de humildade, mas também da sua natureza. Geralmente,
o temperamento piemontês foge das efusões intimistas. Quando
o marido, ainda hoje, se dirige à mulher, dificilmente a chama
pelo nome. Dirige-se a ela por “tu”, mas um “tu” que, como
escreve F. Piccinelli, “no dialeto de Asti, na alta Langa, significa
‘escuta’, significa laços profundos”.
Dom Bosco sempre falou muito dos seus projetos e das suas
obras. Ele sempre se abriu com simplicidade aos seus filhos:
“Para vocês não tenho segredos!”. Mas não revelava a ninguém
a sua vida íntima. Escreve o padre Stella:
As páginas da sua autobiografia, as suas recordações pessoais, não
são como as de Santa Teresa D’Ávila, e menos ainda como as de
Teresa de Lisieux. São, em grande parte, tardias e, raras vezes,
fugazmente, é possível surpreendê-lo exprimindo os seus senti-
mentos religiosos íntimos ou as motivações do seu agir.
Não era apenas o temperamento que estava em jogo. Quem
olhava Dom Bosco externamente se impressionava com a ativi-
dade incessante, com o talento organizador, com a imponência
das obras. O exterior, a fachada, escondia a profundidade inte-
rior, como observa o padre Ceria:
Diríamos que, nos anos de maior atividade, nem todos se deram
conta do homem de oração que era Dom Bosco. Ousamos afirmar

7.2 Page 62

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60 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
que nem sempre aqueles que escreveram a seu respeito, solicitados
a narrar os fatos grandiosos, penetraram profundamente no seu
íntimo espírito de oração.
A aparente desordem que nos anos mais difíceis reinava nas
casas de Dom Bosco também não depunha em favor da sua
santidade. Quem não conhecia a vida de família que se levava
em Valdocco, onde confraternizavam superiores e alunos, e onde
o temor a Deus e a caridade evangélica reinavam soberanos,
ou quem tinha em mente outros modelos educativos, podia
duvidar de que o modelo adotado por Dom Bosco fosse de
fato válido e formativo. O futuro cardeal Parocchi, aborrecido
com o barulho que os meninos faziam na sacristia, reclamou:
“Se Dom Bosco tivesse realmente espírito de piedade deveria
impedir essa desordem”.
O padre Tortone, responsável oficial da Santa Sé junto ao
governo italiano, no relatório enviado à Sagrada Congregação
dos Bispos e Regulares sobre o andamento do Oratório, em 6
de agosto de 1868, não esconderá a “impressão desagradável”
que teve ao ver, durante a recreação, clérigos e jovens “correrem,
brincarem, saltarem e até trocarem alguns safanões, com pouco
decoro por parte de alguns e pouco ou nenhum respeito por
parte de outros. O bom Dom Bosco, contente com o recolhi-
mento dos clérigos na igreja, não procura formar o coração
deles no verdadeiro espírito eclesiástico”.
Dom Bosco gostava das coisas bem-feitas, mas nunca foi
um perfeccionista. Tolerava, com bondade e paciência, a exu-
berância juvenil dos seus colaboradores, satisfeito de ver neles
o espírito de verdadeira piedade, o amor ao trabalho, a morali-
dade a toda prova. Ninguém mais do que ele estava convencido
de que as coisas não nascem perfeitas nem adultas; se tornam
assim com o tempo. “As obras de Deus geralmente acontecem
aos poucos”, era a sua máxima. Os fatos lhe davam razão: em

7.3 Page 63

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Pietro Brocardo 61
geral, os seus empreendimentos começavam na desordem e
terminavam na ordem. Em 1875, afirmou:
Nos primeiros tempos do Oratório não era pouca a desordem
exterior (...). Eu via aquela desordem, advertia de que não era
necessária, mas deixava que tudo caminhasse como podíamos,
pois não se tratava de ofensa a Deus. Se tivesse desejado acabar
de uma só vez com os inconvenientes, teria que mandar embora
todos os jovens e fechar o Oratório, pois os seminaristas não teriam
se adaptado a um novo regime. Permanecia sempre um certo ar
de independência que tornava odioso qualquer freio.
O padre Bonetti desejava que no seu colégio tudo fosse per-
feito. Dom Bosco lhe escreveu: “Buscamos o ótimo, entretanto,
em meio a muito mal, devemos nos contentar com o mediano”,
acrescentou realisticamente.
O padre Cafasso, seu diretor espiritual, não compartilhava des-
se modo de ver. Um dia, na praça do santuário de Santo Inácio,
em Lanzo, discutiram longamente a respeito, passeando de um
lado para outro. O padre Cafasso insistia: “O bem deve ser feito
bem”. “O bem às vezes basta fazê-lo como se pode, em meio a
muitas dificuldades”, sustentava seu discípulo. Cada um perma-
neceu na própria posição. O padre Cafasso não compartilhava
totalmente do estilo de vida levado em Vadocco, e aconselhou a
sua irmã a não mandar os filhos estudarem lá. No processo para
a causa de beatificação de Dom Bosco, em dezembro de 1916,
Giuseppe Allamano confirmou a veracidade desse episódio:
Padre Cafasso queria mais rigor na escolha dos jovens, mais vi-
gilância e ordem. Isso se deduz do conselho que padre Cafasso
deu à minha mãe e que me foi transmitido por ela: que os meus
irmãos e eu fôssemos estudar, mas não no Oratório, pois ali havia
pouca disciplina e pouca ordem.
Mas a mãe não seguiu o conselho do irmão santo. Allamano
concluiu os estudos ginasiais na escola de Dom Bosco.
A sua recorrente afirmação “o ótimo é inimigo do bom”

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62 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
interpreta realmente uma das convicções mais firmes na sua
vida. A mania de perfeição nunca paralisou as suas iniciativas.
Considera sempre mais útil à causa do Reino fazer o bem, ainda
que mais ou menos, antes que ceder em vista de um hipotético
“melhor”. Com o bagaço de um limão se pode ainda fazer uma
limonada aceitável. Com meias personalidades o santo sabia
fazer milagres.
Diremos, finalmente, que alguns modos de fazer do santo,
arguto e desenvolto, não davam sempre a medida exata da
sua santidade.
A senhora Beaulieu de Nice, tendo conhecido São João
Maria Vianney, estava convencida de ter formado uma idéia
adequada sobre a santidade. Ficou surpresa quando, partici-
pando de um banquete em homenagem a Dom Bosco, o viu se
levantar com o copo na mão e brindar em honra dos convidados.
“Esse é um santo?”, pensou consigo mesma. Mudou de idéia
quando o ouviu dizer benevolamente: “Quer comamos, quer
bebamos, que seja em nome do Senhor”.
Quando o monge beneditino francês A. Mocquereau o viu
com “barba por fazer, cabelos longos e despenteados, batina
surrada...”, se decepcionou: “Aquele primeiro instante foi para
mim puramente natural”.
De fato, tanto nas ruas de Turim como nas de Paris, a nobreza
do seu espírito podia permanecer ofuscada pela aparência do
homem humilde e simples, que ao andar “balançava o corpo
de um lado para o outro como o amigo do camponês, o boi,
do qual parecia imitar a mansidão de caráter, a força e a cons-
tância ao puxar o arado”, conforme o testemunho de um antigo
aluno. Era natural que algo da têmpera do antigo camponês
permanecesse nele para sempre.
Quem, porém, não se deixasse levar pela primeira im-
pressão e o observasse atentamente, sobretudo no último
período da sua vida, não teria precisado se esforçar para
descobrir nele, como escreveu Saint Genet, correspondente

7.5 Page 65

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Pietro Brocardo 63
do jornal francês Le Figaro, “a marca de um homem criado
por Deus para alguma coisa (...). O que nele impressiona é a
fineza do sorriso, o olhar arguto, um ar de bondade superior e
de vontade férrea”.
Santidade revelada
Santidade escondida e ao mesmo tempo revelada: eis outro
dos muitos paradoxos da vida de Dom Bosco. Por temperamento
e por deliberado espírito de humildade ele foi levado a esconder
o seu mundo interior, a ocultar o melhor de si. Mas a santidade
resplandecia nos seus olhos, se filtrava através de toda a sua pessoa
como a luz através do alabastro, e podia ser percebida no conjunto
do seu comportamento.
Como o artista que imprime a sua marca na própria obra,
Dom Bosco havia deixado impressa a sua santidade no que ha-
via pensado, dito, escrito, feito e levado a fazer. Os bons frutos
indicavam a qualidade da árvore. A confirmação disso está, entre
outras coisas, nas milhares de páginas dos atos processuais – que
tiveram passagens difíceis –, nos quais a vida de Dom Bosco foi
escrupulosamente passada no cadinho dos parâmetros oficiais
de santidade que, a partir do início do século XX, se tinham
refinado, se tornando mais científicos e rigorosos.
Estudando a sua causa, consultores e juízes não demoraram a
se dar conta de que, se aparentemente a sua vida parecia dispersa
em mil atividades exteriores, na realidade havia unicamente
Deus, apenas Deus, como supremo centro de gravidade. Era
verdadeiro o que escrevia o padre Albera a seu respeito:
Se trabalhar sempre até a morte é o primeiro artigo do código
salesiano de Dom Bosco, escrito mais com o exemplo do que com
tinta, lançar-se nos braços de Deus e nunca se afastar dele foi o
seu ato mais perfeito.

7.6 Page 66

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64 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Igualmente verdadeira era a afirmação do padre Rua:
O que pude continuamente discernir foi a sua contínua união
com Deus. (...) Eu aproveitava muito mais observando Dom
Bosco, mesmo nas pequenas ações, do que lendo ou meditando
tratados de ascética.
Insistia, por sua vez, o cardeal Cagliero:
O amor divino transparecia no seu rosto, em toda a sua pessoa e
em todas as palavras que brotavam do seu coração quando falava
de Deus no púlpito, no confessionário, nas homilias ou nas confe-
rências privadas. Eu o ouvia repetir milhares de vezes: “Tudo pelo
Senhor e pela sua glória!”. Estava em contínua união com Deus.
Testemunhos como esses, autorizados e dignos de crédito,
evidenciam que o impulso colossal que parecia multiplicar do
nada as suas obras benéficas saía da profundidade da sua vida
interior, da adesão total à vontade do Pai, a Cristo, ao Espírito
e à Igreja. Brotava, da forma sempre mais absoluta e transpa-
rente, da sua excepcional capacidade de união com Deus. “Uma
vida movida pelo sobrenatural”, se diz a partir de uma imagem
pitoresca de outros tempos. A força do exemplo, da luz, da
santidade que, especialmente nos últimos dez anos de vida, se
desprendia da sua pessoa, se tornava, aos poucos, irresistível.
Por terem se encontrado com Dom Bosco, às vezes apenas de
passagem, foram literalmente lançados no caminho da santidade
heróica – como se deduz das suas biografias – salesianos como
os veneráveis Augusto Czartoryski, príncipe polonês, e André
Beltrami; os servos de Deus Luís Variara e Vicente Cimatti; os
beatos Miguel Rua, Filipe Rinaldi e Luís Orione; o santo Luís
Versiglia, mártir na China. E esses não são os únicos exemplos.
A santidade de Dom Bosco era verdadeiramente contagiante.
Foi dito que todos os santos são, em sentido figurado, filhos
do período gótico: plenos de infinita aspiração pelo outro, para

7.7 Page 67

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Pietro Brocardo 65
os quais o suficiente não é nunca suficiente. Assim se revela
Dom Bosco. O postulador da causa de canonização, cardeal
Vives y Tuto, escreveu:
Sou feliz porque pude conhecer um grande santo. Toquei-o com as
mãos: que tesouros de virtude! Um amor por Maria equivalente ao
dos grandes santos; um amor pela paixão que lhe sufocava o peito;
e, sinal infalível de santidade, era extraordinário no ordinário,
de modo que, na vida comum, nada transparecia externamente.
Estudei muito a vida de Dom Bosco e a sua figura me parece
sempre mais providencial.
Dirá ainda: “Folheei tantos processos de causas de santos,
mas nunca encontrei outro tão transbordante de sobrenatural”.
O promotor da fé, futuro cardeal Salotti, tendo, por sua
vez, se aprofundado no conhecimento da vida de Dom Bosco,
confessou ter se impressionado não tanto com o seu “prodi-
gioso apostolado”, mas com o “edifício sábio e sublime da sua
perfeição cristã”. E acrescentava, se dirigindo ao papa Pio X:
Santo Padre, se todos tivessem conhecimento íntimo e completo
desse outro lado da figura de Dom Bosco, como esse homem teria
sido mais apreciado, embora já seja profundamente estimado no
mundo todo.
Diz o salmo: “Deus é admirável no seu santuário”. Mais
admirável e variado, porém, é o templo que Ele edifica para si
mesmo com as pedras vivas e eleitas que são os santos. Dom
Bosco é uma dessas pedras, pedra angular pelo papel de funda-
dor e arquétipo de uma grande descendência espiritual. Afirma o
cardeal Schuster: “Para encontrar outra figura da mesma estatura
de Dom Bosco é preciso recuar séculos na história da Igreja e
alcançar os santos fundadores das grandes ordens religiosas”.
E acrescentava, dirigindo-se ao padre E. Vismara, pioneiro do
movimento litúrgico na Itália: “Talvez vocês salesianos não co-
nheçam plenamente toda a riqueza de virtude e de vida interior
que animava Dom Bosco”. Vale lembrar que o grande arcebispo

7.8 Page 68

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66 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
de Milão tinha no seu criado-mudo um volume das Memorie
biografiche,22 e todas as noites lia alguma página.
A afirmação de J. Guitton, da Academia Francesa de Letras,
é paradoxal. À pergunta: “O que seria a religião sem a fé?”, o
filósofo dá a seguinte resposta:
A fé é a adesão à verdade revelada por Jesus Cristo, Deus feito
homem: de repente me vêem à mente duas testemunhas clamo-
rosas, a de São Paulo e a de São João Bosco.
De Dom Bosco se pode destacar a audácia, a coragem, a
imaginação criativa, “mas não se pode nunca separar essas
qualidades tão admiráveis do homem Dom Bosco, da riqueza
interior sustentada por rigorosa ascese, pelo profundo senso de
fé e pela contínua dedicação ao ministério da Igreja”, afirma o
cardeal Ballestrero.
A vida interior de Dom Bosco, de uma riqueza intensa e
ininterrupta, é proposta aos fiéis em intervenções memoráveis
dos sumos pontífices.
Sobre ele escreveu João Paulo II: “A sua estatura de santo
o coloca, com originalidade, entre os grandes fundadores de
institutos religiosos na Igreja”. O papa destaca “principalmen-
te o fato de que [Dom Bosco] realiza a sua santidade pessoal
por meio do empenho educacional vivido com zelo e coração
apostólico, propondo, ao mesmo tempo, a santidade como
meta concreta da sua pedagogia”. E continua:
Um intercâmbio entre “educação” e “santidade” é o aspecto ca-
racterístico da sua figura: ele é um “educador santo”, se inspira
em um “modelo santo” – Francisco de Sales –, é discípulo de um
mestre espiritual santo” – José Cafasso –, e sabe formar entre os
seus jovens um “educando santo” – Domingos Sávio (Iuvenum
22 Memórias biográficas. Obra em 29 volumes, escrita por G. Lemoyne (I-IX), A. Amadei (X)
e E. Ceria (XI-XIX). [n.e.]

7.9 Page 69

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Pietro Brocardo 67
Patris, n. 5).
Nessa breve síntese, as palavras “santo” e “santidade” apare-
cem sete vezes, interligadas ao nome de três santos que sempre
contaram com a atenção de Dom Bosco, também ele homem e
santo dentre os mais significativos. Nele igualmente se observa
a lei espiritual segundo a qual as criaturas mais plenas de Deus
são as que mais têm sede dele.
Capítulo V
Taumaturgo que não amedronta
Nas últimas décadas da sua vida, Dom Bosco viu crescer a
sua fama de taumaturgo, com repercussões além da Europa.
Na realidade, a convicção de que, sob a aparência comum, se
ocultavam virtudes e fatos extraordinários, tinha de tal forma
se imposto aos seus colaboradores mais fiéis, que estes criaram,
em 1861, uma “comissão” encarregada de anotar as palavras
e os fatos mais significativos do pai e fundador. O cronista
Domenico Ruffino nos transmite os relatos da primeira sessão:
Os grandes e luminosos dotes que acontecem com ele, e que
sempre admiramos, o modo singular como conduz os jovenzi-
nhos, os grandes projetos que arquiteta para o futuro, revelam
que há nele algo de sobrenatural. (...) Tudo isso nos impõe a
obrigação de impedir que aquilo que pertence a Dom Bosco caia
no esquecimento.
Seguem as assinaturas dos salesianos de maior prestígio nas
origens da Congregação: Alasonatti, Rua, Cagliero, Durando,
Francesia, Cerruti, Ruffino, Bonetti etc.
Dos seus escritos, dos seus testemunhos e, posteriormente,
das inumeráveis narrativas recolhidas ao longo do tempo,
emerge com vigor o perfil de Dom Bosco taumaturgo. Ele é,
de fato, o padre que lê os segredos das consciências, adivinha

7.10 Page 70

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qual será o curso de uma vida, tem sonhos ou visões misteriosas,
profetiza, age à distância, possui o dom da cura e dos milagres,
experimenta a perseguição diabólica e tem, no fim da vida,
fenômenos místicos.
Ainda que uma certa aura lendária tenha ampliado certos
episódios e ainda que algumas narrativas não sejam suficien-
temente confiáveis, ninguém pode pôr em dúvida os fatos
extraordinários criticamente seguros que abundam na vida de
Dom Bosco.
Acrescentemos que a hagiografia moderna valoriza plena-
mente o muito ou o pouco de lendário que floresce em torno
da figura dos grandes santos. Neles, de fato, “Deus de maneira
viva manifesta a sua presença e a sua face aos homens” (LG n.
50). Essa irradiação do alto determina no sentimento religioso
individual e coletivo uma sensação de estupor, de veneração, de
estima, que podem transcender o fato objetivo e desembocar
em ampliações mais ou menos lendárias. O hagiógrafo deve
considerá-las a partir do vigor espiritual que a lenda veicula.
Sobre isso, escreve A. Vauchez:
A aproximação positivista da vida e dos milagres dos santos que se
limitasse a romper a casca para extrair o núcleo das informações
“históricas”, deixando cair, aos olhos dos especialistas, a retórica
hagiográfica, com os seus lugares-comuns, hipérboles e interpre-
tações a posteriori dos seus méritos e dos seus atos, se revela, a esse
efeito, particularmente danosa e redutiva.
A conseqüência imediata dessa premissa é clara: a vida dos
santos, com o que nela existe de maravilhoso, e a leitura dos
textos que a transmitem têm a sua especificidade: “Não podem
ser tratados como documentos – diplomas, textos –, nos pren-

8 Pages 71-80

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8.1 Page 71

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Pietro Brocardo 69
dendo na problemática do verdadeiro e do falso, do autêntico
e do apócrifo”. Está em jogo uma dinâmica espiritual que a
supera, ainda que uma hagiografia que se respeite não possa
desconsiderar os cânones da crítica histórica. A ciência humana
é chamada a desenvolver uma tarefa muito elevada. Escreve, a
propósito da hagiografia, o teólogo R. Guardini: “Não podemos
lhe atribuir mais valor do que tem. Não podemos nos deixar
intimidar por ela naquilo que não lhe diz respeito”.
Esse grande pensador cristão já havia sublinhado que a
orientação íntima do santo, como toda conduta conseqüente,
exerce um efeito também sobre os acontecimentos, enquanto
instrumento das disposições divinas:
Daí a impressão que os acontecimentos dão à vida dos santos, e
que a lenda interpreta normalmente com o conceito do prodígio,
ainda que este não exista no caso em exame. Mas ela quer significar
algo que é verdade: na vida do homem que se entrega totalmente
a Deus, as coisas caminham de modo diverso daquele que vive
segundo a própria vontade.
O fato de o homem de hoje, diferentemente daquele da
Idade Média, ser excessivamente desconfiado em relação a tudo
quanto pareça extraordinário, não é razão suficiente para não se
falar a respeito. Entre a credulidade ingênua e a incredulidade
sistemática há espaço para a averiguação respeitosa. Disse o
papa Paulo VI:
Se a Igreja com freqüência se mostra cauta e desconfiada em rela-
ção às possíveis ilusões espirituais de quem manifesta fenômenos
singulares, ela é e quer ser extremamente respeitosa em relação
às experiências sobrenaturais concedidas a algumas almas e aos
fatos prodigiosos que, às vezes, Deus se digna miraculosamente
inserir na trama das vicissitudes naturais.
Não se justifica, então, a desconfiança apriorística em rela-

8.2 Page 72

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70 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
ção ao “maravilhoso” que transborda na vida de Dom Bosco.
Certamente nem os milagres, nem as profecias, nem outros
fatos extraordinários podem se confundir com a santidade, que
é dinamismo heróico da vida teologal e fato completamente
interior. Esses dons, essencialmente necessários para o bem da
Igreja, podem, entretanto, manifestá-la e estimulá-la.
Ora, o taumaturgo é um santo que incute, geralmente,
reverência e medo, pela sua proximidade de Deus, pelo poder
divino que atravessa a sua pessoa; um santo solene e grave. Esse
tipo de representação não se adequa, absolutamente, a Dom
Bosco, “um taumaturgo que não amedronta”.
Extraordinário do mais suave esplendor
A potência divina que irrompe silenciosa e quase escondida
na vida de Dom Bosco é tal, que nem todos a percebem. Ele
manifestava o extraordinário – escreve Lemoyne – “com tanta
simplicidade, que este parecia de suave esplendor, mais fácil de
a nossa pobre natureza compreender”.
Se, por exemplo, as hóstias consagradas se multiplicam nas
suas mãos, ele é o único a saber. Se os pãezinhos do café da
manhã se multiplicam às centenas, o único a se dar conta é
F. Dalmazzo, que ao suspeitar o prodígio, tinha se escondido
atrás do santo. Se, para tornar os seus filhos felizes, multiplica
as castanhas e as avelãs – tão apreciadas naquele tempo –, o faz
com a naturalidade do antigo prestidigitador que tira do copo
uma coisa após outra. E quando a notícia do fato extraordiná-
rio se espalha, ou algum jovem lhe pergunta com simplicidade
como fez aquilo, o santo, entre sério e faceiro, faz uma piada
e desvia o assunto.
Se possui, em medida extraordinária, o “dom da cura”, é
fácil para ele convencer que a verdadeira e única realizadora
dos prodígios é Maria: “É ela a taumaturga, a realizadora das

8.3 Page 73

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Pietro Brocardo 71
graças e dos milagres, pelo grande poder que obteve do seu
divino Filho”. Disso está tão convencido, que não hesita em
publicar as graças obtidas no nome dela.
Não poucos fatos, pela natureza deles, estavam destinados
a ficarem esquecidos: a manifestação dos pecados, a leitura dos
pensamentos ocultos, certas profecias destinadas a pessoas em
particular. Podia-se viver durante anos ao lado de Dom Bosco
e nada saber a respeito. É o caso de A. Sávio, que, em 1860,
declarou no processo:
Alguns dos meus confrades me garantiram que Dom Bosco re-
cebera de Deus dons especiais, como perscrutar os corações e o
dom da profecia: eu não estou em condições de me pronunciar
a respeito.
O bispo dom Bertagna afirma a mesma coisa: “Eu nunca
tive um firme argumento para crer nessas coisas”.
Dom Bosco era dotado de penetrante intuição psicológica. Por
isso, nem sempre era fácil estabelecer uma linha que separasse,
nele, carisma e natureza. Na afirmação surpreendente que ele
faz ao doutor Albertotti – “Dê-me um jovem menor de 14 anos
e farei dele o que quiser” –, cabe perguntar se está falando o
carismático ou o homem. Provavelmente um e outro.
Consideração especial merecem os seus “sonhos”. Sabe-se
que o sonho é o reino da fantasia desenfreada, produto do in-
consciente. O sonho é essencial para o homem: não é possível
viver sem sonhar. Como todos, Dom Bosco sonhava todas as
noites, mas alguns deles se distinguiam dos sonhos comuns.
Às vezes – ele mesmo afirma –, se “formavam” na sua mente
“fábulas”, “histórias” ou “apólogos”, de conteúdo moralizante
ou formativo, que de boa vontade ele contava para os jovens e
para os salesianos: “A historinha que vou lhes contar vai ensinar
alguma coisa”.
Outros sonhos se caracterizavam não apenas pela lógica per-

8.4 Page 74

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72 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
feita, mas por anteciparem acontecimentos futuros. Iluminavam
o seu destino de fundador, prenunciavam mortes iminentes e
assim por diante. No início, “não lhes dava crédito”, os exorci-
zava como insídias sutis do demônio, mas por fim teve de ceder,
pois se revelavam verdadeiros. Na maturidade não hesitará em
qualificá-los de sobrenaturais.
Sonhos-visões, cuja palheta reproduz o que está por trás
da sua vida de camponês e da sua experiência em Valdocco.
Sonhos com estranhas representações, mas sempre de denso
conteúdo moral e espiritual, que o santo educador soube utilizar
habilmente para manter longe da sua casa a ofensa a Deus, para
exaltar a beleza da vida na graça e na amizade com Deus e para
inflamar de entusiasmo todos os que haviam acreditado na sua
palavra sobre o futuro glorioso da sua obra.
Ao lado desses sonhos, que podemos considerar menores,
pois dizem respeito preferencialmente à vida do Oratório, se
deve recordar o grande afresco dos sonhos maiores, relativos
à origem e ao desenvolvimento da Congregação. Nele se en-
contram sonhos como o dos 9 anos, nas suas diversas versões,
e como os que se referem às missões, ao carisma e ao espírito
salesiano: do caramanchão de rosas, dos dez diamantes, dos
diabos em congresso para discutir o melhor modo de destruir
a obra salesiana e assim por diante. Esses sonhos maiores não
são muitos, mas a sua importância é incalculável. São, sob o
véu do símbolo e da visão, verdadeiros compêndios de ascética
e de espírito salesiano. A tradição nunca deixou de se referir a
eles como fonte de importância primordial.
Os aproximadamente cem sonhos de Dom Bosco contados
nas Memórias biográficas – embora sejam ainda mais numerosos
– formam um conjunto com a sua vida, o seu ensinamento, a sua
espiritualidade, o seu apostolado. Não há nada comparável na
biografia dos santos piemonteses contemporâneos. São típicos
da sua existência, e cada estudioso de salesianidade precisa se

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Pietro Brocardo 73
confrontar com eles, talvez sem nunca conseguir alcançar o se-
gredo de Deus que se esconde neles e o do homem que os narra.
É ímpar o fato de que se, por um lado, Dom Bosco dá a
máxima importância aos seus sonhos em geral, por outro, uma
vez mais parece recorrer às imagens dos sonhos para ocultar os
seus carismas. Parece dizer, e de fato diz: “Os sonhos se fazem
dormindo”, são apenas “sonhos”, no entanto, podem ensinar
muitas coisas; “Não dêem a esse sonho mais importância do
que têm”; “Esse é o meu sonho: cada qual o interprete como
quiser, mas saiba lhe dar sempre o peso que um sonho merece”.
Dom Bosco, como se vê, é um taumaturgo que tem jeito de
não o ser, que sabe se ocultar habilmente.
Avaliação correta
O extraordinário, o sobrenatural, ocupa amplo espaço na
vida de Dom Bosco. Trata-se de avaliá-lo corretamente: não
exagerar nem subestimar. Não exagerar porque Dom Bosco,
como se exprime A. Caviglia, “não é um santo cujos milagres
escapem das mãos, como São José de Copertino ou Francisco
de Paula, nem um Cottolengo que, confiante na Providência,
segue o próprio coração caso por caso”.
O que mais conta na sua vida não são os milagres, as pro-
fecias, as visões, mas a sua virtude heróica, o esforço cotidiano
para promover as inumeráveis turbas de jovens pobres e de gente
humilde, tanto no plano humano como no espiritual. Conta
o empenho constante pelo advento do Reino e a preocupação
contínua em agir, como se tudo dependesse dele, mesmo con-
tando unicamente com Deus, convencido de que “a Providência
quer ser ajudada pelos nossos imensos esforços”.
Não devemos subestimá-lo. Escreveu P. Stella: “O extraordiná-
rio impregnou a religiosidade de Dom Bosco e do seu ambiente
e estimulou um tipo de ascética e de ação apostólica”. Marcou

8.6 Page 76

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74 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
de modo significativo, sobretudo, a sua obra de fundador.
Quando, por exemplo, depara com dificuldades insupe-
ráveis para obter em Roma a aprovação das Constituições,
Dom Bosco realiza de imediato dois milagres humanamente
inexplicáveis: cura o sobrinho do cardeal Berardi e cura o
cardeal Antonelli, preso a uma cadeira por graves achaques.
A intervenção desses dois prelados é determinante para a
sua causa.
“Digam-me o que poderia ter feito o pobre Dom Bosco, se
do céu não lhe chegasse a cada momento uma ajuda especial?”,
confidenciava um dia aos salesianos.
Olhando para o sucesso dos seus empreendimentos, dizia:
“Aqui se vê a mão de Deus e a proteção de Nossa Senhora”.
Estava tão convencido de viver sob uma ação particular do divi-
no, que afirmava: “A Congregação não deu um passo sem que
algum fato sobrenatural o aconselhasse; não houve mudança,
aperfeiçoamento ou crescimento que não tenha sido precedido
por uma ordem do Senhor”.
Podemos nos perguntar: qual foi a sua reação interior diante
do sobrenatural que atravessou a sua vida? Foi uma reação de
adoração, profundamente humilde. Como o servo fiel que se
sente instrumento, apenas instrumento, nas mãos de Deus,
o único herói dos seus prodígios: “Eu não passo de humilde
instrumento dessas obras”. Confiou ao padre Felice Giordano,
dos Oblatos de Maria Virgem:
É nosso Senhor quem faz tudo. Se Ele tivesse encontrado na ar-
quidiocese de Turim um sacerdote mais pobre, mais mesquinho,
mais desprovido de qualidades, teria escolhido aquele, e não outro,
como instrumento das obras das quais me está falando, e deixado
de lado o pobre Dom Bosco.
Nas páginas do seu testamento espiritual encontramos esta
significativa declaração:

8.7 Page 77

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Pietro Brocardo 75
Eu recomendo calorosamente a todos os meus filhos que sejam
vigilantes quer no falar como no escrever, nunca contando ou
afirmando que Dom Bosco obteve graças de Deus ou, de algum
modo, realizou milagres. Isso seria cometer um erro terrível.
Ainda que Deus, na sua bondade, tenha sido generoso comigo,
eu nunca pretendi conhecer ou realizar coisas sobrenaturais.
A repercussão do maravilhoso na sua vida pessoal determi-
nou um duplo movimento. O primeiro é o do profeta assustado
diante do poder divino que o investe: “Essas coisas fazem crescer
de modo assustador a responsabilidade de Dom Bosco diante de
Deus”; “Estremeço ao pensar na minha responsabilidade pela
posição em que me encontro. As coisas que vejo acontecer são
tais, que me impõem imensa responsabilidade”.
O segundo movimento é o de Maria que glorifica o Senhor
pelos prodígios que nela se cumpriram. Para as pessoas mais
íntimas e para os benfeitores, Dom Bosco não hesita em con-
tar, com humildade, os fatos extraordinários que pontilham a
sua vida de educador e de fundador guiado pelo princípio: “É
necessário que as obras de Deus se manifestem”. Sentia que a
sua vida estava intrinsecamente unida à da Congregação. Por
essa razão costumava dizer:
Vejo que a vida de Dom Bosco se confunde com a vida da Con-
gregação: por isso falemos a respeito. É necessário para a maior
glória de Deus, para a salvação das almas e para o incremento da
Congregação que muitas coisas sejam conhecidas.
As coisas conhecidas são as magnalia Dei: os sinais extraor-
dinários, os sonhos proféticos, as curas prodigiosas que acom-
panham a sua vida de educador e fundador, que lhe arrancavam
expressões plenas de confiança e de abandono em Deus: “Deus
está conosco!”; “É obra sua tudo o que se fez e se faz”; “Deus
faz as suas obras com magnificência”; “A nossa Congregação é

8.8 Page 78

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76 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
conduzida por Deus e protegida por Maria Auxiliadora”.
Capítulo VI
Um santo fundador
Dom Bosco pertence à constelação dos santos fundadores.
É o pai de uma grande posteridade espiritual. Os salesianos,
as Filhas de Maria Auxiliadora e os cooperadores salesianos
foram fundados diretamente por ele. Outros grupos, susci-
tados pelo Espírito Santo, vivem o seu espírito e realizam a
sua missão com funções específicas diversas, dando origem à
Família Salesiana.
Concentraremos agora a nossa atenção na experiência caris-
mática de Dom Bosco fundador, refletindo sobre os elementos
que estão na raiz da vocação salesiana e do seu desenvolvimento,
e determinando a sua natureza e finalidade.
Para uma compreensão correta do carisma fundacional
de Dom Bosco, se faz necessário precisar e esclarecer melhor
a terminologia, nem sempre unívoca. Inspirando-nos em F.
Ciardi, chamamos a atenção apenas para alguns conceitos úteis
à nossa reflexão.
Assumimos a distinção que esse autor faz entre carisma de
fundador, dado ao fundador em vista da fundação, e carisma
do fundador, que se revela como uma experiência do Espírito,
transmitida aos seus discípulos para que a possam viver.
O primeiro é aquele “dom particular conferido pelo Espírito
a um homem ou a uma mulher, em vista da criação de uma
nova instituição de vida consagrada na Igreja”. Esse carisma

8.9 Page 79

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tem uma estrutura específica: comporta a irrupção do Espírito
do Pai e do Ressuscitado na alma do fundador, com aquele
conjunto de dons particulares, graças místicas e provações
interiores, absolutamente pessoais e, por isso, intransmissíveis.
Toma totalmente a pessoa e a guia irresistivelmente à realização
do projeto de Deus para a sua vida.
O segundo é uma experiência que “contém, como em código
genético, as intenções fundantes e o projeto, fruto da inspiração
originária, e que é destinada a ser revivida e ritualizada pelos
seguidores de ontem, de hoje e de amanhã”.
Os conteúdos ou os componentes da experiência caris-
mática de Dom Bosco são múltiplos: a sua predileção pelos
jovens, especialmente os necessitados; o método educativo
próprio, que sabe evangelizar educando e educar evangelizando;
o modo particular de viver a comunhão fraterna e a prática
dos conselhos evangélicos; o sentido de Igreja; a promoção
das vocações sacerdotais e religiosas; a urgência missionária,
entre outros. Surge então, espontaneamente, a pergunta sobre
a relação entre carisma e espírito salesiano. São realidades in-
dissociáveis. O primeiro acentua o dom do Espírito. O outro é
propriamente o estilo de vida e de ação dos salesianos, ou seja,
o conjunto das motivações, atitudes e comportamentos com
os quais se vive a realidade carismática.
Os discípulos crescidos diretamente na escola do fundador
têm uma presença e um significado relevantes enquanto con-
tribuem, com a própria vida, para expressar conteúdos e obras
do seu carisma e, por isso, são considerados participantes do
processo e quase co-fundadores.
Como se trata de uma realidade viva e dinâmica, o carisma
no seu caminho histórico deve se manter fiel à própria identi-

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78 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
dade e, ao mesmo tempo, se adaptar aos sinais dos tempos, para
desenvolver as suas capacidades imprevisíveis. É quanto afirma
o documento Mutuae Relationes: a experiência do fundador
não seja apenas vivida, mas sempre “guardada, aprofundada
e constantemente desenvolvida em sintonia com o Corpo de
Cristo em crescimento perene” (n. 11).
Declara explicitamente a Exortação apostólica Vita Conse-
crata:
O mesmo Espírito, longe de subtrair à história dos homens as
pessoas que o Pai chamou, as coloca a serviço dos irmãos, se-
gundo a modalidade própria do seu estado de vida, e as orienta
a desenvolver tarefas particulares, conforme as necessidades da
Igreja e do mundo, por meio dos carismas próprios dos vários
institutos (n. 19).
Sem essa contínua adequação e crescimento conforme as
necessidades, o carisma do instituto corre o risco, como pre-
cisou com autoridade João Paulo II, de “se autocondenar ao
desaparecimento”.
Referindo-nos ao carisma de Dom Bosco, não podemos
prescindir do fato de que esse carisma o qualifica como sinal e
portador do amor de Cristo para com os pequenos, princípio
e fonte de fecunda posteridade espiritual (a Família Salesiana)
e iniciador de uma corrente de espiritualidade que está entre
as mais ricas e atuais na Igreja.
O germe divino, presente nele desde o nascimento, permane-
ce durante quase trinta anos em estado germinal. Nesse período,
o Espírito Santo, por meio de um duro itinerário ascético e
místico, o eleva a graus sempre mais altos de perfeição. Fala-lhe
por meio de múltiplas mediações: pessoas, acontecimentos,
coisas; com inspirações interiores, visões e sonhos. Suscita nele
o desejo da vida religiosa.
Não podemos silenciar sobre o sonho dos 9 anos, que teve

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9.1 Page 81

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Pietro Brocardo 79
nos Becchi: é a primeira centelha que o Espírito Santo faz bri-
lhar na sua mente e no seu coração, ilumina o seu futuro, lhe
dá coragem e confiança, e o enche de alegria. Em 1880, Dom
Bosco está com o Capítulo Superior em San Benigno. Fala-se
no perigo de supressão das casas salesianas fundadas na França,
como já acontecera com outras congregações religiosas. O santo
afirma que os seus filhos não correm qualquer perigo, porque
Nossa Senhora estendeu sobre eles o seu manto protetor. O
padre Rua o interrompe para dizer que Nossa Senhora protege
a todos, especialmente os seus religiosos. Dom Bosco responde:
Nossa Senhora faz o que quer. Por outro lado, as nossas coisas
começaram de modo extraordinário desde quando eu tinha 9 ou
10 anos. Parecia que eu via no terreiro de casa muitos, muitos
garotos. Então, uma pessoa me disse: “Por que não vai instrui-
-los?”. “Porque não sei.” “Vá, vá, eu estou mandando.” Depois
disso eu fiquei tão contente que todos perceberam.
Parece que apenas esse sonho se renovará muitas vezes com
novas particularidades, lhe dando coragem mas não o socorren-
do nos momentos mais críticos da sua aspiração ao sacerdócio.
Não se trata de um sonho como outros. Dom Bosco o sentiu
como uma comunicação do alto, como um novo caráter divino
estampado indelevelmente na sua vida, que condicionou todo
o seu modo de ver e de pensar.
Por volta dos 60 anos, ao narrar o sonho nas Memórias do
Oratório, poderá interpretá-lo no luminoso afresco que conhe-
cemos e desenhá-lo à luz das maravilhas de Deus – mirabilia
Dei – realizadas ao longo da sua vida. Agora, finalmente, poderá
clarear a zona de sombra ainda obscura, integrá-la às luzes e às
obras que aos poucos a inspiração divina lhe foi sugerindo, nos
deixando, assim, o patrimônio de uma sugestiva síntese, ainda
que incompleta, da sua missão educativa, pastoral e espiritual.

9.2 Page 82

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80 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Qual é, portanto, a iluminação fundamental, com a qual o
Espírito entra na sua existência, manifestando-lhe o projeto
de Deus na sua vida?
Não foi fácil, para Dom Bosco, determinar esse momento.
Porém, podemos situá-lo entre a sua ida para o Refúgio da mar-
quesa Barolo (1844) e a tomada de posse da casa Pinardi (1846).23
Quando os seus mais íntimos colaboradores, um dia, em
1876, lhe perguntaram se era verdade que havia feito um pouco
de noviciado com os rosminianos, Dom Bosco, como observa
padre Giulio Barberis em uma das suas Cronachette autobiografi-
che, deu esta resposta: “Não, tive a idéia de me inscrever entre os
oblatos aqui de Turim ou entre os rosminianos”. E acrescentou:
Olhando bem o modo de pensar deles, preferi não fazer parte.
(...) Eu tinha um plano feito, preestabelecido, do qual não podia
nem queria me distanciar. Poderia tê-lo executado em alguma
congregação já existente. Mas me dei conta de que não podia, e
não me inscrevi em nenhuma instituição, pois pensava em me
rodear de irmãos nos quais pudesse infundir o que eu sentia.
A crônica continua afirmando que os seus projetos já estavam
maduros na sua mente por volta de 1843-1844. Mas as coisas
não batem. Naquele ano, o santo estava no Colégio Eclesiástico
e não tinha ainda uma idéia precisa de qual seria a sua missão.
Podemos, porém, completar essa clara consciência a respeito
do seu carisma de fundador com as palavras de abertura da
conferência aos diretores reunidos em Valdocco, em fevereiro
de 1876. Exorta-os nestes termos:
Um pobre padre tinha uma vaga idéia de fazer o bem, aqui neste
lugar mesmo, aos rapazes pobres. Essa idéia me dominava, e eu
não sabia como efetivá-la. Entretanto, ela não me deixava nunca,
dirigia cada um dos meus passos, cada uma das minhas ações. (...)
Isto eu sei: que Deus queria.

9.3 Page 83

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Pietro Brocardo 81
Qualquer que seja, pois, o tempo e o momento no qual Dom
Bosco teve a segurança da sua vocação específica de fundador,
é clara a percepção de que a sua vida era um instrumento, ape-
nas um instrumento, do projeto de Deus. Sentia-se chamado
a efetivar empreendimentos sempre mais audazes, superiores
às suas forças. Muitos estavam persuadidos de que ele estava
sob pressão divina muito especial, que dominava a sua vida e
que estava na raiz das suas decisões mais corajosas, pronta para
explodir em gestos incomuns.
Mas o caminho estava semeado por obstáculos e dificulda-
des de toda sorte. Mesmo os célebres sonhos, que aos 60 anos
deixou impressos nas Memórias do Oratório e pode reler à luz
da própria experiência, “apesar de lhe indicarem o êxito do seu
empreendimento, não lhe disseram nunca como alcançá-lo,
nem como devia fazer e com que meios”, escreve A. Caviglia.
Essa ignorância luminosa que nunca o abandonou era a prova
objetiva de que o plano estava nas mãos de Deus e, por isso,
chegaria a bom termo.
A aprovação definitiva das Constituições Salesianas pela
Santa Sé, em 3 de abril de 1874, sancionou oficialmente a Re-
gra de vida dos salesianos, mas custou a Dom Bosco, podemos
dizê-lo com segurança, sangue e lágrimas.
Eu tinha uma outra idéia da Congregação
Não é nossa tarefa contar a história da aprovação da Congre-
gação Salesiana, das suas Regras, dos seus privilégios, história
que tem os contornos de um prolongado martírio.
Nem sempre as suas idéias se ajustaram às da autoridade
23 Depois de ordenado sacerdote, em 1841, Dom Bosco permanece três anos no Colégio
Eclesiástico para continuar os estudos. Em 1844, padre Cafasso o envia ao Réfugio, para dar
assistência espiritual às meninas órfãs. Ali começa a reunir meninos e jovens aos domingos, e
por isso é obrigado a deixar o Refúgio. Depois de passar por vários lugares, consegue finalmente
comprar um terreno no bairro de Valdocco, onde estabelece definitivamente o Oratório. [n.e.]

9.4 Page 84

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82 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
eclesiástica, como se depreende dos longos relatórios enviados
à autoridade competente.
Que essas idéias vinham de longe e eram fruto de uma lenta
evolução, que ele desenvolveu pouco a pouco, sob pressão dos
acontecimentos, podemos deduzir das suas afirmações, como
a que fez em 18 de outubro de 1878:
Eu havia posto os votos trienais porque, no início, tinha em men-
te formar uma Congregação que ajudasse os bispos. Mas como
não foi possível e me obrigaram a fazer diferentemente, os votos
trienais se tornaram mais uma desvantagem que uma vantagem.
A mesma opinião ele exprimiu aos diretores reunidos em
Alassio, no ano seguinte:
Introduziram-se os votos trienais quando eu tinha uma outra
idéia da Congregação. Eu desejava estabelecer algo bem diferente
daquilo que é, mas me obrigaram a fazer assim e assim seja.
Estas asserções de Dom Bosco põem em causa a história da
Congregação e das suas Regras, aprovadas em 1874. Foi um ca-
minho gradual e cansativo, desde o primeiro esboço do projeto
e dos seus sucessivos desenvolvimentos, até a forma definitiva
da Congregação, configurada às exigências e legislação canônica
então vigentes. A respeito disso, escreve P. Stella: “Dom Bosco
é conduzido pela sabedoria romana a introduzir muitos ajustes,
quer quanto à natureza da Sociedade, quer quanto aos deveres
e direitos recíprocos dos superiores e dos súditos”.
Será que a Igreja distorceu o carisma de Dom Bosco? Não
é possível pensar nisso, pois a tarefa dela não é “extinguir o
Espírito, mas examinar tudo e reter o que é bom”, como diz
a Constituição dogmática Lumem Gentium (n.12). O Espírito
que faz nascer os carismas é a alma da Igreja; não se contra-
diz. Reconduzindo a instituição de Dom Bosco ao curso das
congregações clássicas, a Santa Sé a colocou na condição de

9.5 Page 85

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Pietro Brocardo 83
se expandir melhor, permanecendo ela mesma. Sob o efeito
dos fatos e das indicações da Igreja, o santo esclarece e precisa
aspectos ainda não bem definidos. É, de fato, o desenrolar dos
acontecimentos, portadores de graça, que, como diz P. Stella,
“configuram a Congregação não como ele a teria desejado, ou
como acreditava que devia se tornar. E isto não quer dizer que
ele não a tenha desejado como vem a se formar, e menos ainda
que tenha ficado descontente”.
Não significa que a Congregação, como se foi definindo,
não tenha conservado a sua originalidade e modernidade, ou
não reflita o verdadeiro perfil e o pensamento de Dom Bosco.
A autorizada confirmação vem do padre Rinaldi:
Ele havia idealizado uma pia sociedade que, embora sendo
verdadeira congregação religiosa, externamente não tivesse o
aspecto convencional: lhe bastava que o espírito religioso, único
fator da perfeição dos conselhos evangélicos, estivesse presente.
No mais, acreditava poder muito bem se dobrar às exigências
dos tempos. Essa capacidade de adaptação a todas as formas de
bem que vão surgindo continuamente no seio da humanidade é
o espírito próprio das nossas Constituições. No dia em que nela
se introduzisse uma variação contrária a esse espírito, a nossa Pia
Sociedade teria terminado.
Ainda não foi plenamente ilustrado o conceito que o nosso ve-
nerável fundador teve ao criar a sua sociedade religiosa. Ele lhe
atribuiu uma genial modernidade que, conservando rigidamente
o espírito substancial do seu método educativo, ao mesmo tempo
a impedisse de se fossilizar nas coisas acessórias e sujeitas a mu-
danças, com o passar dos tempos. As nossas Constituições são
permeadas por um sopro daquela perene vitalidade que emana do
santo Evangelho, que é, exatamente por isso, de todos os tempos
e sempre rico de novas fontes de vida.
Aquele seu “obrigaram-me a fazer assim e assim seja” não é
um ato de sofrida resignação, mas o amém jubiloso do profeta

9.6 Page 86

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84 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
que chega ao fim da corrida. Prova-o a solene declaração com
a qual abre a sua introdução às Constituições Salesianas:
As nossas Constituições, ó diletíssimos filhinhos em Jesus Cristo,
foram definitivamente aprovadas pela Santa Sé em 3 de abril de
1874. Esse fato deve ser comemorado por nós como um dos mais
gloriosos da nossa Sociedade. Ele nos assegura que, observando as
nossas Regras, nos apoiamos em bases estáveis, seguras e, podemos
dizer também, infalíveis, pois é infalível o juízo do Chefe Supremo
da Igreja que as sancionou.
As Constituições não são para o santo apenas a via estável
que conduz ao amor, mas também a púrpura de ouro que cobre
o seu carisma e o seu espírito, realidade viva e dinâmica em
perene crescimento. Apenas assim se explica a sua constante
recomendação sobre a importância e a prática das Constituições:
“Façam com que cada ponto da Regra seja uma recordação mi-
nha”; “O único meio para propagar o espírito da Congregação
é a observância das Regras”; “Nem mesmo coisas boas sejam
feitas contra ela”.
Só no fim de uma longa caminhada Abraão está em condi-
ções de perceber a amplitude e a profundidade da vontade de
Deus a seu respeito. O mesmo se deve dizer, no seu grau e nível,
de Dom Bosco. Celebrando a santa missa na igreja do Sagrado
Coração, em Roma, em maio de 1887 – poucos meses antes de
morrer –, quinze vezes os seus olhos se encheram de lágrimas.
Estava absorto em um mundo longínquo: se revia na casinha
dos Becchi e lhe voltavam à memória as palavras do primeiro
sonho: “A seu tempo você compreenderá tudo”.
Capítulo VII
Santo astuto
As palavras “astuto” e “astúcia” podem ter, no uso corrente,

9.7 Page 87

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Pietro Brocardo 85
um significado pejorativo. Nesse sentido a Gazzetta operaia,
em um venenoso artigo de 15 de outubro de 1887, intitulado
“Astuto Dom Bosco”, o apresentava como um padre intrigante,
ladino, capaz de manipular tudo em benefício próprio.
Mas existe também a conotação positiva. A astúcia, escreve
o padre E. Viganò, “pode ser expressão de um bom senso
inteligente, de aguda prudência no aproveitar-se santa e sana-
mente das situações”. Portanto, astuto é o homem previdente,
cauteloso, sagaz, que sabe se desvencilhar das dificuldades
usando a cabeça. É o homem que não se deixa enganar e sabe
alcançar os próprios objetivos usando meios honestos, embora
imprevisíveis.
É sob essa ótica que devemos olhar a astúcia de Dom Bosco,
sem esquecer que, por se tratar de um santo, ela remete ao dom
da ciência, cuja propriedade é aperfeiçoar, pela ação iluminadora
do Espírito Santo, a virtude da fé, que leva a julgar retamente
as coisas criadas nas suas relações com Deus, mas de modo
superior ao do cristão comum.
Fazer-se de ingênuo
A fama de padre santamente astuto sempre acompanhou Dom
Bosco. Escreve o padre Lemoyne: “Muitas vezes ouvimos pessoas
estranhas, que não o conheciam de perto, dizer: ‘É realmente
único: esse homem adivinha tudo. Que espertalhão!’”. Permane-
ceu sempre com ele a antiga habilidade do prestidigitador que
encantava o pequeno público e algo da refinada sabedoria do
camponês que sabe defender muito bem os próprios interesses.

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Amava o provérbio piemontês: Fé ’l bonom sensa eslo [Fingir-
-se de bobo, sem o ser]. Disse um dia a um dos seus sacerdotes:
Sabe o que significa ser esperto? Saber se fingir de bobo. Eu faço
o seguinte: deixo que digam tudo, escuto, presto bem atenção às
palavras, mas, na hora de decidir, pondero tudo e consigo conhecer
perfeitamente cada coisa.
A casa de Nice atravessava um período de grave dificuldade
econômica. O diretor, padre Roncalli, não tinha mais coragem
de se apresentar aos benfeitores, já incomodados com tanta insis-
tência. Disse-lhe Dom Bosco: “Banque o esperto. O dinheiro é
para os seus filhos; as mortificações, reserve-as para si”. E repetia:
“Não aborreça; insista, mas com santa esperteza”.
Para fazer o bem, seu bem – observa A. Caviglia – ele tem
necessidade de todos, “sejam guelfos ou gibelinos”.24 A sua
habilidade reside exatamente “no aproveitar o que de incons-
ciente há neles e o lado bom que existe em cada pessoa – se não
se quiser ser totalmente pessimista –, mesmo quando ela está
envolvida com um partido que parece ter bem pouco de bom”.
Para liberar o bem que há no coração de toda pessoa – nota
seu primeiro biógrafo –, ele sabia apelar, com meios honestos,
ao amor-próprio dos seus interlocutores. Se tivesse de tratar com
pessoas que lhe eram hostis e maldispostas, quando “percebia
que razões de conveniência, de caridade ou de dever tinham
levado a nada, ele, com delicadeza e sem sombra de adulação,
apelava ao amor-próprio delas”.
Ele sabia tocar de modo especial essa corda e fazer soar a nota que
tinha em mente. Uma palavra de louvor, uma recordação honrosa,
um ato e um gesto de estima, de confiança, de fé ou de respeito fazia
desaparecer, na maioria das vezes, toda dificuldade ou aversão.

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Pietro Brocardo 87
Costumava ser pródigo em louvor tanto com os salesianos
como com os benfeitores e outras pessoas. Quando atribui à
mãe a idade da filha, ou quando elogia a empregada avara de
um pároco amigo seu, sabe fazer elogios dos quais só resulta o
bem, e é isso o que ele quer.
As suas profecias contra a casa real, conhecidas como
“funerais na corte”, desencadearam a ira do conde general
d’Angrogna, que foi até Valdocco e cobriu Dom Bosco de in-
sultos, ameaçando-o. O santo reagiu com muita calma: apelou
ao senso de honra do homem de armas, que não poderia gol-
pear um indefeso, elogiou a sua coragem e bravura e acabou se
tornando seu amigo. No fim, os dois fizeram um brinde juntos.
A mensagem telegráfica com que agradece à condessa Giro-
lama Uguccioni, que lhe preparou o necessário para a viagem de
Florença a Roma, demonstra com quanta graça e simplicidade
sabia conquistar os seus benfeitores: “Minha boa mãe, nossa
viagem estupenda. Galeto ótimo, fez serviço estupendo. Vinho
excelente: garrafa ficou inteiramente vazia”.
À condessa Bonmariti Mainardi, de Pádua, escreve:
A última vez em que nos falamos, não recordo exatamente a cifra,
mas me parece que a senhora queria me fazer um presente de 10
ou 12 mil liras para me deixar contente. Não me lembro bem,
mas aceito uma ou outra das cifras: melhor a segunda.
Ao padre Baggio Foeri, cooperador de Lanzo, não hesita
em dizer:
A expedição de missionários está anunciada, mas me faltam os
meios para efetuá-la. Dizer-lhe para ir parece coisa estranha.
Mande, então, um missionário por sua conta, e as almas que ele
ganhará para Deus serão merecimento seu.
24 Guelfos e gibelinos eram facções rivais da Europa medieval. Os primeiros eram aliados da
Santa Sé. [n.e.]

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88 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Nesses, como em tantos outros pequenos trechos da sua
correspondência, vemos simplicidade e bom humor, mas não
podemos deixar de destacar a pitada de inocente esperteza que
lhe era tão natural.
Não se deixava enganar
Santamente esperto, Dom Bosco não era homem de se
deixar enganar ou ao qual se pudessem contar patranhas ou
urdir armadilhas. Ao padre Dalmazzo, escreveu uma vez: “O
cardeal te esperava para te fazer mudar de idéia. Mas sairemos
também dessa [situação]”.
O ministro do exterior lhe promete “céus e terra” para a
viagem dos seus missionários. Dom Bosco desconfia: “Veremos
se, deixando a ele a propriedade dos céus e da terra, me dará
algo para passar a vocês”.
Em Roma, a construção da igreja do Sagrado Coração de-
vora quantias altíssimas, que não dão sossego ao pobre Dom
Bosco. Muitos querem meter a mão, e tudo se complica. O
santo resolve encarar a situação e escreve ao padre Dalmazzo:
Acho imprescindível que o cardeal vigário não quebre mais a ca-
beça com coisas materiais e deixe ao encarregado de pagamentos
o encaminhamento dos negócios. (...) Em vez de censurar o que
fazemos em Roma, queria que alguns senhores pensassem em
nos dar dinheiro.
Quando acontece em Turim, em 1884, a Exposição Nacio-
nal da Indústria, Dom Bosco participa com a melhor máquina
tipográfica de que o mercado dispunha à época, “a rainha das
máquinas”, como foi logo batizada. Os visitantes podiam assistir
à transformação da polpa em papel, do papel à impressão, da
impressão ao acabamento do livro. Todos, especialistas e visi-
tantes, achavam que Dom Bosco merecia o primeiro prêmio.
A comissão, anticlerical e maçônica, lhe conferiu apenas a

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Pietro Brocardo 89
medalha de prata. O santo a recusou com dignidade e altivez.
Impôs também o silêncio à imprensa. Na sua carta de protesto
declarava, entre outras coisas:
Para mim já foi muito bom ter podido concorrer com uma obra
minha para a grandiosa exposição da inventividade e da indústria
italiana, e ter demonstrado com isso o empenho que, no curso de
mais de quarenta anos, sempre dediquei a fim de promover, junto
com bem-estar moral e material da juventude pobre e abandonada,
o verdadeiro progresso das ciências e das artes.
Quando interesses maiores estão em jogo, Dom Bosco
se revela não apenas um hábil diplomata, mas também um
lutador audaz: “Nas coisas que são para o bem da juventude
em perigo [como as suas instituições] ou servem para ganhar
almas para Deus, avanço até a temeridade”. Ao teólogo Rho,
seu companheiro, irmão do secretário da Instrução Pública e
seu aliado no projeto de fechamento das escolas de Valdocco por
problemas na habilitação dos professores, escreve em linguagem
insolitamente dura, quase cortante:
Teólogo Rho [sic!] (...) Tu apelas à lei que é superior a tudo
e todos. Eu diria que a justiça deve regular todas as leis... Tu
acrescentas que já são três anos que o senhor secretário insiste
para que eu me conforme à lei. Respondi que todos os secretá-
rios, todos os ministros da Instrução Pública sempre louvaram,
aprovaram, ajudaram e subsidiaram este Instituto durante mais
de trinta anos. Era necessário um amigo, um colega de escola para
propor o fechamento, e propor o fechamento justamente quan-
do, com muito incômodo, eu me conformara do modo mais
obediente à lei.
O homem mais compreensivo do mundo não tolerava que
os seus jovens fossem vítimas de vexações inúteis.

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90 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Benecência com charme
Dom Bosco foi acusado de astúcia descarada, de manipu-
lação dolosa e outras coisas mais. Não só a imprensa – deter-
minada imprensa – estava contra ele, mas também pessoas
bem-intencionadas, que não conseguiam compreender a gran-
deza de seus sentimentos e a retidão de intenção com a qual
agia, movido exclusivamente pelo desejo da glória de Deus e
da salvação das almas. Quem não o conhecia bem, observando
apenas os seus gestos mais audazes e a sua desenvoltura em se
expor à opinião pública, podia julgá-lo um padre temerário,
até mesmo exibicionista. As loterias públicas são um exemplo
disso. Não as loterias internas, com finalidade educativa, mas
as que ele organizava movido por necessidades extremas. De
fato, as suas contas estavam sempre no vermelho.
A loteria de 1861 não podia cair em momento mais inade-
quado: as relações entre Estado e Igreja andavam tensas como
nunca. A sua própria casa fora objeto de dois mandatos de busca
e apreensão (1860-1861). Mas havia tantas bocas a alimentar,
tantas faturas inadiáveis. Arregaçou as mangas e pôs mãos à
obra. Mobilizou meia Itália, para não dizer toda: o prefeito de
Turim, o marquês Rorengo Rorà, que assumiu a presidência,
os prefeitos das províncias anexas, os prefeitos do Piemonte,
os membros da Casa Real. Interessaram-se pela causa Pio IX,
inúmeros bispos, muitos do clero, leigos abonados, amigos.
Os bilhetes foram distribuídos aos milhares, tanto para quem
queria como para quem não queria. Depois de ter mandado
um primeiro bloco ao barão Feliciano Ricci di Ferres, enviou
um segundo, que foi recusado. Mas Dom Bosco não desistiu,
como se percebe nesta simpática cartinha:
A Senhora Baronesa nos devolveu os bilhetes. Pense bem: se eu
vier a me encontrar em absoluta necessidade, recorrerei do mesmo
modo à sua caridade e ela, na sua bondade, não saberá recusar.
Assim, o senhor mandará depois dinheiro sem que eu possa lhe

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Pietro Brocardo 91
dar bilhetes de loteria.
Foi um trabalho colossal, recorda o biógrafo, feito em grande
parte pelo esforço de Dom Bosco e dos seus colaboradores: “O
trabalho para enviar cartas e bilhetes de loteria a certo número
de pessoas, não só em Turim, mas nas províncias, assumiu
proporções colossais”. É claro que está em jogo o talento em-
presarial do santo, mas também a sua atenta visão de futuro,
seu modo sagaz e original de desenvolver “em tempos muito
difíceis” uma atividade de característica claramente religiosa,
mas em nada contrária ao clima patriótico do tempo. De fato,
todos viam que as somas recolhidas eram em favor dos jovens
e das classes mais necessitadas. Todos podiam se dar conta de
que os padres, atuando abertamente, não eram nem ociosos
nem retrógrados, como alguns pensavam.
Por meio dessas loterias e das incessantes solicitações de
ajuda, o santo oferecia aos políticos, crentes e não-crentes, aos
filantropos contrários à Igreja, a todos, em suma, um “modo
de fazer uma beneficência, por assim dizer, charmosa” – como
bem escreveram –, isto é, bem-aceita, não comprometedora. E
não se pode chamar isso de ingenuidade.
Cândida esperteza
A esperteza de Dom Bosco se exprime ainda em gestos
simples, quase irrelevantes, mas que têm seu significado. Para
mostrar a sua gratidão ao arcebispo de Buenos Aires, lhe envia,
da Itália, duas caixas dos melhores vinhos: Bordeaux, Málaga,
Grignolino etc. Mas as garrafas precisam ter a aparência de um
vinho muito maduro. Que faz Dom Bosco? Escreve ao seu se-
cretário que espalhe sobre as garrafas um pouco de poeira “para
enobrecer o nascimento do vinho e dar uma existência um tanto
antiga”, pois desse modo o presente será mais bem acolhido.
O objeto mais valioso de uma das suas tantas loterias não

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92 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
fora retirado pelo ganhador. Dom Bosco, segundo alguns tes-
temunhos, organizou uma miniloteria, mas guardou o número
premiado no bolso... O prêmio ficou para ele.
Quando passava pela costa da Ligúria, depois de uma frutu-
osa viagem à França em busca de auxílio, os diretores da região,
sempre no vermelho como ele, foram ao seu encontro na ilusão
de receber algum auxílio do bom pai. Mas ele lhes fez ver, com
toda simplicidade e franqueza, que não tinha dinheiro. E não
mentia: prevendo o assalto dos seus filhos, já tinha mandado
o dinheiro para Turim, por meio de uma pessoa de confiança,
diretamente ao padre Rua.
Para demonstrar gratidão aos benfeitores mais insignes,
Dom Bosco se esforçava para conseguir honrarias eclesiásticas
ou civis, mas queria ser ele a lhes oferecer. Escreveu ao padre
Dalmazzo: “Se houver despesas em Roma, sejam feitas, mas
desejo fazê-las eu mesmo para poder dizer que é um presente.
Isso dará bem mais resultado”. Desejava que, nos limites do
possível, a entrega dos diplomas ocorresse com solenidade,
com detalhes que, no clima cultural de hoje, podem fazer até
rir, mas que tinha à época uma eficácia psicológica infalível.
Escreveu ao padre Cagliero:
Quando receber o breve de Benítez e o diploma do padre Carelli, tu
te entendas com o padre Fagnano. Levarás tudo pessoalmente. Con-
vidarás a comissão do Colégio e os amigos de um e de outro. Pede
ao padre Tomatis para preparar um belo discurso para a ocasião.
Dois jovenzinhos levem o breve sobre um disco ao comendador, e
sobre outro o diploma. Mas tu e o padre Fagnano acompanhareis
os alunos, tomareis etc. e os entregareis pessoalmente a eles. Há
coisas às quais se deve dar toda a importância.
A sua perspicácia – ele fala também de “santa engenhosida-
de” – não era santa por eufemismo. Nada tinha de tortuoso ou
de turvo, e não descambava para a malícia. Ele tinha um sadio
senso prático, que o levava a usar todo meio lícito para atrair a

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Pietro Brocardo 93
atenção sobre a sua obra.
E queria os seus jovens santamente espertos. Dizia-lhes,
adotando as palavras de São Filipe Néri: “No mundo há muitos
loucos e espertos. Os espertos são os que se afadigam e sofrem
um pouco para ganhar o paraíso. Os loucos são os que se en-
caminham para a condenação eterna”.
Tendo falado das “astúcias” usadas por Santo Atanásio para
afastar as insídias dos inimigos, terminava a sua pregação com
esta exortação convicta:
Quero que todos vocês se tornem santos dessa espécie. Sim, meus
caros, busquem seriamente se fazer santos, mas santos que, quan-
do se trata de fazer o bem, sabem buscar os meios, não temem a
perseguição, não poupam esforços. Santos espertos que buscam
prudentemente todos os meios de alcançar os seus objetivos.
Esperteza sim, mas como caminho para a santidade.
Capítulo VIII
Santo da alegria
Escreveu o padre Viganò:
O primeiro aspecto que nos chama a atenção na santidade de
Dom Bosco, e que está ali quase a esconder o prodígio da in-
tensa presença do Espírito, é a sua atitude de simplicidade e de
alegria, que faz parecer fácil e natural o que na realidade é árduo
e sobrenatural.
O júbilo, cuja manifestação ou explosão externa é a alegria,
faz parte da santidade cristã. É realmente, como se exprime
Paulo VI na Exortação Gaudete in Domino, “participação espi-
ritual no júbilo insondável, simultaneamente humano e divino,
que está no coração de Cristo glorificado (...). Neste mundo,

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94 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
deriva da celebração conjunta da morte e da ressurreição do
Senhor”.
É o júbilo que o Espírito Santo infundiu em Maria Santís-
sima, em sua prima Isabel, em Simeão, em Jesus. Não existem
santos tristes, dizia São Francisco de Sales. “O demônio tem
medo de gente alegre”, repetia por sua vez Dom Bosco.
Mas nem todos os santos manifestaram a alegria do mesmo
modo. A vida de Santo Tomás Morus, de São Filipe Néri e de
Dom Bosco transmitem tanta alegria que poderiam oferecer
matéria para uma “teologia da alegria”.
Quando brinca, quando fala de coisas sérias ou quando
reza, Dom Bosco dá cor à vida e difunde alegria. Era possível
ler o júbilo nos seus olhos luminosos e profundos, no seu rosto
“invariavelmente sorridente, fascinante e inesquecível”, como
descreve o padre Albera. Era possível percebê-lo nas tiradas
engraçadas, cheias de argúcia e de bom humor. Depois do tiro
que por pouco não o mata, exclama: “Pobre batina, você é que
pagou o pato”. Também costumava dizer: “Vá do jeito que vá,
desde que vá bem”; “Enquanto encontremos um boi sem dono,

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é preciso que estejamos alegres”; “Laetare et benefacere [alegrar-se
e fazer o bem] e deixar cantar os pássaros”.
A um jovem descalço diz: “Venha a Turim, lá vou fazer você
colocar os pregos na sola dos sapatos”. Nem mesmo no leito de
morte deixou de ser brincalhão: “Viglietti, me dê um pouco de
café gelado, mas que esteja muito quente”.
A alegria ampla e profunda que se desprende da pessoa de
Dom Bosco é, como escreve o padre Viganò, muitas coisas ao
mesmo tempo:
É a alegria de viver testemunhada no cotidiano; é a aceitação dos
acontecimentos como estrada concreta e ousada para a esperança;
é a intuição das pessoas com seus dons e seus limites para constituir
família; é o senso agudo e prático do bem na íntima convicção de
que ele é (em nós e na história) mais forte que o mal; é o dom de
predileção pela juventude, que abre o coração e a imaginação ao
futuro, e infunde uma flexibilidade inventiva para saber assumir
com equilíbrio os valores dos novos tempos; é a simpatia do amigo
que se faz amar para construir pedagogicamente um clima de con-
fiança e de diálogo que leva a Cristo; é um jardim de rosas que se
percorre cantando e sorrindo, mesmo que bem munidos de botas
de defesa contra numerosos espinhos.
A juventude sente com maior ímpeto o anseio da felicidade.
Dom Bosco tinha compreendido isso, desde o tempo de acro-
bata e saltimbanco improvisado, quando sabia manter alegres
os seus jovens amigos para torná-los bons.
Estudante em Chieri, fundou a Sociedade da Alegria. Ob-
jetivo: manter longe a “melancolia e estar sempre alegres”, e
cumprir com “exatidão os deveres escolares e religiosos”. Mas
todo oratório ou instituto se tornará uma “sociedade da ale-

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96 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
gria” e em cada reunião ele mesmo tomará a direção da alegria.
Despedirá os seus amigos com um “Seja alegre!” que os levava
a exultar de contentamento.
Escreve o padre Lemoyne:
Pode-se dizer que não se passou um dia sem que, com maneiras
divertidas ou histórias amenas, ele provocasse risos em reuniões
públicas, nas falas para os alunos e nas rodas que os salesianos e
os jovens faziam ao redor dele, nas viagens, nas casas e palácios
dos senhores de sociedade, em suma, onde quer que aparecesse.
Mesmo que estejamos certos de que a sua vida tenha sido
um silencioso martírio, ele sempre manteve a alegria no rosto.
Quanto mais sofria, mais se mostrava contente.
Décimo primeiro mandamento
A alegria é o “décimo primeiro mandamento das casas
salesianas”, afirma o padre Caviglia. Esse é um dos grandes
segredos do Sistema Preventivo. Como São Filipe Néri, Dom
Bosco nunca se cansou se repetir aos jovens: “Fiquem sempre
alegres”; “Sirvam ao Senhor com alegria”; “Vivam o mais pos-
sível alegres, para não cometer pecado”.
Guiado pela experiência e por uma intuição pedagógica
segura, sabia que, para bem crescer tanto no espírito como no
corpo, os jovens têm tanta necessidade de júbilo e de alegria
quanto de pão. Como afirma M. Keilhacker, “a alegria corres-
ponde, em grau máximo, ao tom geral da vida da criança e do
jovem. Meninos e adolescentes só crescem bem em ambientes
onde haja muita alegria e uma atmosfera de serenidade geral”.
O santo compreendeu bem isso, como confirma P. Braido:
Dom Bosco, muito mais compreensivo e intuitivo do que muitos
pais, sabe e compreende que o adolescente é adolescente e permite
e quer que o seja. Sabe que a forma de vida do adolescente é a
alegria, a liberdade, a brincadeira, a Sociedade da Alegria. Ele sabe

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Pietro Brocardo 97
que, para uma ação educativa normal e profunda, o adolescente
precisa ser respeitado e amado na sua naturalidade, sem opressões,
constrangimentos, violências.
Durante um verão, entre 1850 e 1855, ou um pouco antes
disso, Dom Bosco levou consigo à casa de campo do barão
Bianco di Barbania, em Caselle, para umas breves férias, quatro
ou cinco adolescentes, escolhidos dentre os mais destacados. À
noite, quando subiam a escadaria que os conduzia aos quartos,
eram precedidos por um empregado que levava um candelabro
aceso. Num movimento rápido, o vivaz Cagliero se aproximou
dele e, com um sopro, apagou as duas velas, deixando todos no
escuro. O barão não escondeu a sua contrariedade. Dom Bos-
co, com voz doce e confiante, o acalmou murmurando ao seu
ouvido: “A son masmà! [São crianças!] Tenhamos compaixão”.
Esse relato foi contado por antigos salesianos. Mas há muitos
outros, mais significativos, que estão registrados na sua vida.
Na sua exortação, Paulo VI afirma que a alegria cristã supõe
uma pessoa capaz de alegrias naturais:
Haveria ainda necessidade de paciente esforço de educação para
aprender ou reaprender a gozar simplesmente as múltiplas alegrias
humanas que o Criador põe no nosso caminho: alegria arrebatadora
da existência e da vida (...); alegria e satisfação do dever cumprido,
alegria transparente da pureza, do serviço, da participação, alegria
arrebatadora do sacrifício. O cristão poderá purificá-las, completá-
-las, sublimá-las: não pode desdenhá-las.
Dom Bosco pode ser identificado nessas palavras, ele que
sempre se desdobrou para que não faltasse aos jovens a alegria
intensa dos recreios rumorosos, do esporte, dos passeios, da mú-
sica, do canto, do teatro, da ginástica. Enquanto as suas forças
lhe permitiram, quando estava em casa, ele mesmo era a alma
da diversão. O último desafio de corrida da qual tomou parte

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98 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
data de 1868. Tinha 53 anos, as pernas um pouco inchadas,
mas ainda capaz de uma agilidade maravilhosa.
No dia do carnaval, o oratório enlouquecia de alegria. A
crônica do padre Ruffino descreve o andamento da jornada:
santa missa logo cedo, depois café da manhã e uma hora e meia
de brincadeiras; almoço especial, com vinho e fruta; à tarde,
recreação com a clássica quebra de potes, classe por classe; no
começo da noite, as vésperas, animadas pelo divertido diálogo
entre o teólogo Borel e o padre Cagliero, e a bênção do San-
tíssimo. A sessão de teatro e o jantar especial fechavam o dia.
Após as orações da noite e a palavra paterna de Dom Bosco, os
jovens iam dormir mortos de cansaço, mas com a alma cheia
de felicidade.
Diferentemente do Beato Allamano, que durante o carna-
val nunca permitia a mais leve distração, Dom Bosco adorava
mostrar com os fatos que podemos estar santamente alegres,
sem ofender o Senhor.
Acompanhando os jovens nas coisas que agradavam a eles, o
santo conseguia levá-los a amar as coisas para as quais não se incli-
navam por natureza, como o estudo, o trabalho, o cumprimento
do dever, a piedade. Estava convencido de que o destino da pessoa
se decide na juventude, e advertia em Il giovane provveduto:25 “O
caminho que o homem começa na juventude continua até a
velhice. Se começamos uma boa vida agora que somos jovens,
seremos bons no avançado dos anos”. No Regulamento para
o Oratório escreveu: “Lembrem-se de que a idade de vocês é a
primavera da vida. Quem não se habitua ao trabalho no tempo
da juventude será sempre um poltrão até a velhice”.
Queria que eles fossem operosos, dispostos, ativos, sempre
empenhados. Não dava sossego aos acomodados. Sabia educar
os jovens a saborear a satisfação e a alegria interior pelo dever
cumprido, e a perceber a verdade do trinômio que ele sempre
privilegiou: alegria, estudo-trabalho e piedade. Esses são três

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Pietro Brocardo 99
grandes valores inseparáveis na sua pedagogia. Dom Bosco não
acreditava em uma piedade que não levasse ao compromisso,
nem em um compromisso desconectado da piedade. Nessa
síntese, ele via a fonte da felicidade: “Piedade, estudo e alegria
lhes darão muitas satisfações, doces como o mel”.
Na biografia do jovem Francesco Besucco escreveu:
Se quiserem ser bons, pratiquem apenas três coisas e tudo irá bem.
São elas: alegria, estudo e piedade. É esse o grande programa. Se
o praticar, você poderá viver feliz e fazer muito bem à sua alma.
Com razão comenta o filósofo F. Orestano: “Se São Francisco
santificou a natureza e a pobreza, São João Bosco santificou o
trabalho e a alegria. Ele é o santo da euforia cristã, da vida cristã
operosa e alegre”.
Ele queria que até os exercícios espirituais e a própria relação
com Deus fossem marcados pela euforia cristã. Por isso, bania
as prolixidades monótonas e repetitivas, que geram nos jovens
tédio e rejeição. Até mesmo o tempo passado na igreja deveria ser
“uma hora de alegria”, de “festa”. “Coisas fáceis que não espantam
nem cansam, e não orações prolongadas”, escrevia. As práticas de
piedade “são como o ar, que não oprime, nunca cansa, mesmo
que levemos às costas uma coluna muito pesada”.
O ano letivo era constelado de festas litúrgicas, exercícios
devotos, tríduos, novenas, mas nada disso era pesado. Dom
Bosco sabia preparar os jovens para a festa. Sabia fazer vivê-la
como um jubiloso encontro sacramental com Cristo, desfrutá-
-la como prelúdio da felicidade eterna, com a magia do canto
e o esplendor das cerimônias e dos ritos. As celebrações que se
faziam em Valdocco se tornaram, com o tempo, um verdadeiro
25 Publicado em 1847, foi um dos primeiros escritos de Dom Bosco. A obra, uma espécie de
manual para os jovens do Oratório, é dividida em três partes. A primeira traz orientações de
cunho pedagógico e espiritual; a segunda, orientações para as práticas de piedade; e a terceira,
ofício de N. Senhora, novenas, cantos, salmos e outras fórmulas de piedade. No Brasil, esse
manual foi traduzido com o título O jovem instruído. [n.e.]

11.2 Page 102

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100 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
centro de atenção para os fiéis da cidade de Turim.
Da igreja, a alegria desembocava na vida, nos recreios
despreocupados, na alegria da comida mais abundante. Dom
Bosco, que nunca admitiu dicotomias entre a alma e o corpo,
queria que “até o corpo estivesse alegre”. A melancolia devia
ser banida. “O barulho dos pratos e dos copos” devia formar
“uma bela harmonia”. Como se pode ver, todos os elementos
positivos não destruídos pelo pecado eram assumidos com
otimismo pelo seu método educativo.
Giuseppe Brosio, o famoso “soldado” que dirigia fantásticas
batalhas oratorianas combatidas com fuzis de madeira, fez um
minucioso relato da festa de São Luís, celebrada no oratório
em 29 de junho de 1852. É um testemunho precioso, que re-
produz ao vivo, no estilo exaltatório e cerimonioso do tempo,
o decorrer de uma cerimônia religiosa, organizada e preparada
por Dom Bosco com cuidado e imaginação criadora.
A festa, diz o cronista, foi incomparável: a igreja, atapetada
dentro e fora, “parecia um paraíso”; confissões e comunhões a
não acabar – mais de 300 sobre um total de cerca de 700-800
adolescentes e jovens –; depois da celebração, presidida por um
bispo, o “santo espetáculo de uma bela procissão” com muitos
convidados ilustres – clero, autoridades, nobres da cidade –; e,
após a função, o tradicional “pão e salame” para todos. Brosio
descreve como a alegria dos corações plenificados pela graça e
em paz com todos explodia pelos átrios, num grande júbilo:
Todos os colégios e oratórios passados, presentes e futuros não
tiveram e não terão nunca tantas diversões quanto tivemos nós
depois do almoço daquele dia. Simples, sim, mas motivo de grande
união, de grande vivacidade e cordialidade em quem as desfruta-
va. Havia a corrida de saco, jogos de copos, evoluções militares,
ginástica, fontes no átrio que lançavam jatos vermelhos e brancos,
por causa de substâncias misturadas à água, e globos aerostáticos.
E havia um sem-número de pequenas diversões.

11.3 Page 103

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Pietro Brocardo 101
E continua: sob uma tenda, “balas, confeitos, frutas, refri-
gerantes, cerveja, água doce e assim por diante”. Por ordem de
Dom Bosco e de outros senhores, ele próprio, sozinho e devagar,
distribuiu 10 liras de balas. Deu uma também a Dom Bosco,
“prostrado pelo calor sufocante”, para que molhasse a garganta.
“Mas ele deu metade da bala para um jovem. Tudo para nós,
nada para si”, eis o pai e o santo.
O padre dos Becchi realmente levou a sério o jovem na sua
extrovertida naturalidade.
A alegria: caminho de santidade
Falando da alegria na vida dos santos, o papa Paulo VI coloca
Dom Bosco “entre os que fizeram escola no caminho da santidade
e da alegria”. E merecidamente. Apesar de a alegria ser insepa-
rável da mensagem cristã, nem todos os santos a exprimiram
univocamente, nem todos fizeram dela “um caminho explícito”
de santidade, voltado preferentemente para os jovens, como ele
fez. Essa “escola”, esse “caminho”, não são uma idéia abstrata
para Dom Bosco. Ele os escreveu com a sua vida, com a força
do exemplo, inspirando-se em princípios simples e sólidos, cujas
raízes se aprofundam no húmus da tradição cristã.
“Só a religião e a graça podem tornar o homem feliz” dizia,
e era uma das suas convicções mais arraigadas. Já na primeira
edição de O jovem instruído escreveu: “Quem vive na graça
de Deus é sempre alegre e, até mesmo na oração, mantém o
coração contente”; ao passo que “quem se entrega aos prazeres
vive enraivecido (...), está sempre mais infeliz”. Ele quer que
os jovens compreendam que a felicidade terrena e a eterna se
decidem na relação com Deus.
Por isso só existe um caminho para atingir a felicidade e a alegria:
o que passa pela religião do amor e da salvação, e pela amizade e

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102 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
intimidade com Cristo e seu Espírito como acesso ao Pai.
A pedagogia de Dom Bosco é, nas palavras do padre Caviglia,
“radicalmente e por essência uma pedagogia espiritual das almas”.
Ou seja, é uma pedagogia da vida de graça, do crescimento e do
amadurecimento em Cristo, uma pedagogia da santidade e da
alegria, porque a alegria é elemento constitutivo da santidade. A
escola turinesa acreditava na vocação universal à santidade. São
José Cafasso falava dos seus “santos enforcados”. São Leonardo
Murialdo estimulava à santidade até mesmo as moças desviadas
do Retiro do Bom Pastor. Dom Bosco a propunha como meta
suprema tanto aos seus birichini26 e aos seus barabba quanto aos
seus jovens mais destacados. Uma santidade “na medida dos
jovens”, mas exigente e até mesmo heróica.
À época em que a práxis romana considerava improponível
a causa de beatificação e de canonização dos jovens, baseada
no pressuposto de que só uma pessoa adulta podia praticar a
virtude em grau heróico, o santo afirmava, se referindo a Do-
mingos Sávio: “Eu lhes asseguro que teremos jovens do Oratório
elevados à honra dos altares”. A Igreja lhe deu razão.
É mérito de Dom Bosco ter acreditado na santidade juvenil,
mas o merecimento maior é o de tê-la apresentado aos jovens
na estimulante perspectiva da alegria, não como obstáculo,
mas como caminho para a santidade: “Fico contente que vocês
se divirtam, joguem, estejam alegres. Este é um método para
fazer de vocês santos como São Luís, a fim de que busquem
não cometer pecados”.
Do famoso sermão sobre a santidade, em 1855, só conhece-
mos os enunciados mais incisivos: “É vontade de Deus que nos
tornemos todos santos; é muito fácil se fazer santos; um grande
prêmio está preparado no céu para quem se torna santo”. Logo
depois, Domingos Sávio se apresenta a Dom Bosco e lhe diz:
Não pensava que poderia me tornar santo com tanta facilidade.
Mas agora que compreendi que isso pode ser feito mesmo estan-

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Pietro Brocardo 103
do alegre quero plenamente e tenho absoluta necessidade de me
fazer santo.
Transportado pela sua fantasia de adolescente, Domingos
queria imitar os grandes ascetas, jejuando rigidamente e se dedi-
cando a longas orações. O mestre louva seu propósito de se fazer
santo, mas freia o excessivo idealismo e traça um programa de
santidade adaptado à sua idade e condição: “antes de tudo, uma
constante e moderada alegria”; depois, o exato cumprimento
“dos seus deveres de piedade e de estudo”; “a recreação com os
companheiros”; e “o esforço para conquistar almas para Deus,
visto que nada há de mais santo no mundo”, lhe sugere.
A proposta da caridade apostólica como projeto de santidade
feita aos jovens era, então, podemos dizer, um gesto bastante
inesperado, inovador e audaz. Esses conselhos, Dom Bosco os
desenvolve nas biografias de Domingos Sávio, Magone e Be-
succo, onde se torna evidente o esforço de demonstrar como
a vida dos jovens protagonistas foi, do princípio ao fim, um
caminho progressivo e gradual rumo à plenitude da santidade.
Mais uma vez, tudo se reporta, em síntese, ao trinômio recorren-
te: alegria, estudo-trabalho, piedade. A frase “Fazemos a santidade
consistir no estar sempre alegres”, dita por Domingos Sávio ao amigo
Camillo Gavio, é convicção profunda, um toque do Espírito. É,
segundo o padre Viganò, “um tesouro divino, mesmo revestido
de simplicidade e de alegria, quase a ocultar o prodígio”.
A santidade proposta por Dom Bosco nada tem de compli-
cado, de arcano, de extraordinário. É a santidade do cotidiano,
dos gestos ordinários vividos de modo incomum, como fazia
Domingos Sávio, a quem o santo louva “o teor de vida exemplar
e a exatidão no cumprimento dos seus deveres, além dos quais
26 Birichino significa criança vivaz, esperta, ou também mal-educada, delinqüente. O termo era
usado para os meninos que vagavam pelas ruas de Turim no tempo de Dom Bosco. Barabba
é termo sinônimo. [n.e.]

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104 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
dificilmente se pode ir”.
A proposta de santidade encerrada no trinômio não exclui,
antes implica evidentemente as outras virtudes cristãs que o santo
educador sempre inculcou. Quando falamos que a grande santi-
dade que floresceu em Valdocco foi o mais belo fruto do Sistema
Preventivo, pensamos imediatamente na ação do Espírito Santo,
autor da santidade. Não podemos, no entanto, esquecer que o
Espírito se serviu da ação delicada e discreta do servo fiel Dom
Bosco, e da extraordinária habilidade dele como diretor espiritual
dos jovens. Um dos maiores de todos os tempos.
O padre Caviglia revela, em uma síntese feliz, e que merece
ser recordada, em que critérios o santo baseava a sua missão de
guia e acompanhante espiritual:
Liberdade de espírito e de movimento, respeito à liberdade da gra-
ça, prática santificante do dever, atenção a Deus, direcionamento
para Jesus Sacramentado e Maria, mortificação da vida. Acima
de tudo, confiança em Deus, serenidade, alegria, sem terrores e
desencontros amedrontadores, mas com a visão no paraíso: tudo
com amor e por amor, tanto no interior como no exterior.
Isso certamente não é todo o Dom Bosco, mas é certamente
Dom Bosco.
Por fim, acrescentemos que a proposta de santidade feita por
Dom Bosco nunca se separa da idéia de “prêmio”, do paraíso:
“Um grande prêmio está preparado no céu para quem se torna
santo”. No firmamento de Valdocco, escreve o padre Viganò,
“se via sempre, de dia e de noite, com nuvens ou sem nuvens,
o paraíso”. O santo, tomando frases do padre Cafasso ou da sua
criação, diz sempre: “Um pedaço do paraíso conserta tudo”; “Nas
fadigas e nos sofrimentos jamais esquecer que temos um grande
prêmio preparado no paraíso”; “Pão, trabalho e paraíso”. Por
três noites consecutivas, de 3 a 5 de abril de 1861, ele sonha
dar um “passeio” com os seus jovens ao paraíso. Nas biografias
dos seus meninos, mesmo quando descreve a agonia deles,

11.7 Page 107

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Pietro Brocardo 105
gosta de ressaltar que, para além dos horrores da morte, eles
viveram a expectativa do paraíso. Era essa a perspectiva própria
da espiritualidade daquele tempo.
O pensamento do paraíso é um dos frutos da presença do
Espírito Santo, e Dom Bosco é “uma alma do Espírito Santo”.
Caminha nesta terra, mas o coração e a mente estão voltados
para o céu.
Capítulo IX
Santo com algumas sombras
O rigor com o qual a Igreja procede nos processos de bea-
tificação e de canonização é tanto, que bastaria qualquer culpa
grave cometida no último período de vida para comprometer
a causa de qualquer candidato à glória dos altares.
Mas a Igreja não pretende dos santos a perfeição absoluta
que, evidentemente, é própria só de Deus. Nem aquela per-
feição de que gozam os beatos compreensores, completa no
seu gênero. Nesta terra, a perfeição, mesmo nos estágios mais
elevados, ainda implica, como escreve o teólogo jesuíta J. De
Guibert, “algo de incompleto, de carente, talvez de precário,
sempre de inacabado”.
Em outras palavras, os santos e as santas permanecem
sempre, na admirável variedade dos seus carismas, filhos e
filhas de Adão e de Eva, às voltas com a sua natureza, com os
seus limites e – podemos até dizer – com os seus defeitos, que
sabem expiar e corrigir. Mesmo depois de um longo tirocínio
ascético, para mantê-los firmes na humildade e na oração, Deus
permite pequenas imperfeições, fraquezas repentinas, arroubos
temperamentais e outras fragilidades – geralmente resgatadas
de imediato pela delicadeza de consciência – que fazem parte
da natureza de que somos feitos. Santa Bernadete Soubirous,

11.8 Page 108

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106 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
afirma F. Trochu, “no seu refinado senso de espiritualidade, se
admirava de que a maior parte das biografias [dos santos] não
passava de panegíricos”. O biógrafo continua:
Teria preferido que os historiadores dessem mais destaque às im-
perfeições desses grandes amigos de Deus. Acho que se deveriam
assinalar os defeitos dos santos e indicar os meios que usaram para
se corrigir. Isso seria de muita utilidade.
É claro! Mas isso também comporta algumas conseqüências
práticas que devem ser levadas em conta. Segundo Guibert,
quando a Igreja “propõe como exemplo a ser imitado a vida
dos santos e beatos, de fato não pretende sancionar a perfeição

11.9 Page 109

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de cada um dos seus atos e, menos ainda, a sua imitabilidade
ou seu valor formativo”. O autor segue afirmando:
Só o conjunto dessas vidas é proposto como modelo, unido a esse
ou àquele aspecto enfatizado pelos decretos pontifícios, a essa ou
àquela virtude particularmente destacada por eles. Esses mesmos
santos, bem o sabemos, tiveram leves fraquezas, das quais pessoa
alguma é imune. Depois de se entregar a Deus, não chegam de
imediato ao cume. Em muitos deles poderemos notar “santas
loucuras”, admiráveis quando são consideradas segundo o espírito
que as determinou, mas pouco imitáveis sem uma inspiração
muito extraordinária da graça.
Algumas poucas imperfeições
Essas considerações devem ser levadas em conta quando fa-
lamos de Dom Bosco e o propomos como modelo de vida. Em
um quadro de beleza irretocável, algumas poucas imperfeições,
logo resgatadas por atos de caridade intensa, não estragam o todo.
São Jerônimo reprovava em Santa Paula o apego obstinado
às penitências, mas ele próprio, devido ao seu temperamento
difícil e arrebatado, não poucas vezes se chocou com vários dos
seus contemporâneos. São Bernardo usava com seus monges um
rigor julgado excessivo; sabemos, pela sua primeira biografia,
que usou expressões muito duras com o seu médico. Tendo
sido roubado, em Roma, por gente do ofício, se referiu a ela
em termos não exatamente “suaves”. São Vicente de Paulo re-
conhecia em certas características comportamentais de Santa
Joana de Chantal traços de culpa. Não admira, portanto, que
se possam ler na vida de Dom Bosco sombras de fragilidade
não-consentidas.

11.10 Page 110

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108 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
O cardeal Salotti, promotor da fé na causa do santo, escreve:
Se em um homem tão extraordinário encontramos algumas
sombras – de resto mais amplificadas do que seria normal –, elas
não obscurecem a luz esplêndida que promana das suas muitas
virtudes ou das suas santíssimas ações.
Dom Bertagna, testemunha autorizada da santidade de Dom
Bosco, declara por sua vez:
Se olho para alguns traços da sua vida, para a tenacidade com a
qual às vezes tentava alcançar o seu objetivo, me parece ver nele
quando menos um pouco de humanidade. Desse modo, no que
se refere ao primeiro aspecto, às vezes parece um tanto inoportuno
ao pedir esmolas, um pouco ardoroso e além do conveniente para
obtê-las, chegando a ser muito fácil em prometer recompensas do
Senhor a quem as dava e a provocar temor de que as coisas não
andariam bem se lhe negavam. Do mesmo modo, parece algumas
vezes muito renitente a abandonar as próprias opiniões.
É um juízo equilibrado e grave, mas que não chega ao pon-
to – como já se disse – de fazê-lo duvidar da santidade heróica
de Dom Bosco. O santo partilha, como é natural e como o
demonstram os seus escritos, os erros comuns da ciência pro-
fana e religiosa do seu tempo. Delicadíssimo de consciência,
não deu trégua, como se viu, ao seu temperamento irascível,
obstinado, rico de exuberante sensibilidade. Para padre Ber-
to, seu fidelíssimo secretário, Dom Bosco era um verdadeiro
sol, mas reconhecia que, como o sol, tinha as suas manchas.
Ocorria a ele, assim como a todos os santos, que a natureza,
em certas circunstâncias, prevenisse a graça com ligeiras imper-
feições – alguma impaciência, algum ímpeto, alguma variação
de humor etc. –, das quais humildemente logo se arrependia,
reconquistando a paz.
Dizem as Memórias biográficas que, uma vez, ao retornar

12 Pages 111-120

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12.1 Page 111

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Pietro Brocardo 109
de Roma, perdeu o trem em uma pequena estação e teve de
esperar por horas o próximo. “Mostrou-se muito contrariado”,
mas não tardou a se resignar e recobrar a calma.
Durante o segundo Capítulo Geral, em1880, padre Barbe-
ris – lê-se na ata – não parava de falar, impedindo até a Dom
Bosco de exprimir o seu pensamento. O santo não perdeu a
estribeira, como outros, mas, “um pouco aborrecido”, acabou
por calá-lo com um ditado piemontês que provocou gargalhada
geral. Pode ter sido, por exemplo, um piàntla lì tarluc, expressão
quase intraduzível, cujo sentido depende muito do tom de voz
com que é pronunciado: “Pára, boca rota!”.
Uma noite, em Alassio, em fevereiro de 1879, Dom Bos-
co desabafa com alguns íntimos. Revela os seus sofrimentos:
afrontas sofridas, audiências negadas, cartas interceptadas,
oposições radicais e secretas de várias partes, palavras duras,
mortificantes... Mas de repente pára, reflete um instante e depois
diz diante de todos: “Falei demais”. E naquela mesma noite quis
se confessar.
Na origem do longo e sofrido contraste que opôs, por uma
década, o arcebispo Gastaldi e Dom Bosco, dois homens su-
periores e antes muito amigos, havia da parte de Dom Bosco
erros de cálculo e excessiva confiança no homem. Interpondo-
-se junto a Pio IX para que dom Gastaldi fosse transferido da
diocese de Saluzzo para a arquidiocese de Turim, esperava poder
contar muito com a ajuda do bispo. Foi, porém, o início de
uma dolorosa via-sacra: “Aquela confiança no homem não foi
agradável ao Senhor”, reconhecerá humildemente. Suportou
as conseqüências do seu ato com ânimo forte e com heróica
obediência, mas a natureza reclamava seus direitos.
O padre Rua testemunha tê-lo visto “chorar pela dor que
experimentava ao se encontrar em conflito com o seu superior
e de tê-lo ouvido exclamar: ‘Com tanto bem a fazer, fico tão
perturbado que não posso fazê-lo’”. Em momentos de angústia

12.2 Page 112

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110 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
extrema, choro e palavras amargas saídas da sua boca foram
sussurradas a si mesmo, mas nunca dirigidas ao seu arcebis-
po, que respeitava e amava: “Só falta agora que me crave um
punhal no coração”; “Um sonoro e forte tapa não poderia me
mortificar mais”; “À força de acumular desgostos (...) o pobre
estômago se arrebenta”.
São palavras demasiado humanas, mas Dom Bosco nunca ce-
deu ao impulso do ressentimento ou da revolta. Seus desabafos só
aconteciam em um círculo muito restrito de pessoas. Sofria, calava
e continuava a fazer seu bem. Só “uma vez”, testemunha dom
Bertagna, com o qual o santo podia se abrir como a um homem
de ciência e de conselho, mas também como a um amigo, “me
parece [que] tenha falado do arcebispo com certo ardor”.
A quem um dia lhe reprovava por não ter usado as mesmas
armas do adversário, respondeu pacatamente: “É o Senhor que
guiou cada coisa”.
O cônsul argentino em Savona, comendador Gazzolo, se
dizia benfeitor dos salesianos. Na realidade defendia apenas os
seus próprios interesses. Escreveu ao padre Cagliero, que estava
na América do Sul:
O comendador Gazzolo, depois de uma semana de cálculos e
de falação, reduziu a sua proposta a 60 mil liras pelos seus 700
metros de terreno... Como você vê, ele pagou 19 mil e, para nos
beneficiar, nos vende por 60 mil. Ah! Rogna, rogna!
É uma expressão piemontesa, sutilmente irônica, mas bem
forte na boca do santo.
Ninguém está isento de erros práticos imprevistos, não-
-intencionais, inculpáveis, fruto da maior boa vontade. Fazem
parte da condição humana, e Dom Bosco não foi imune a eles.
De fato, nem sempre as suas apostas davam resultado: ocorria
que a confiança posta em certos colaboradores fosse desiludida;
ocorria que obras construídas com muita esperança tivessem

12.3 Page 113

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Pietro Brocardo 111
de ser abandonadas. Acontecia até que certos projetos, “depois
de longas, complicadas e cansativas conversas de fazer perder
a cabeça” – são palavras suas –, no fim dessem em nada. E deu
em nada, por exemplo, a sua paciente investida de pôr ordem,
por desejo expresso de Pio IX, no Instituto dos Irmãozinhos
Hospitaleiros de Maria Santíssima Imaculada, chamados
concettini, que atravessavam um período de grave dificuldade.
Dom Bosco aceitou de bom grado o difícil encargo porque
pensava em, de algum modo, incorporar o Instituto à sua obra.
Mas o empreendimento malogrou. Não faltou quem quisesse
desprestigiá-lo junto ao papa, como se vê na carta do cardeal
Billio, seu sincero admirador:
Caro e reverendíssimo Dom Bosco (...). Desagrada-me ter de lhe
dizer que o Santo Padre não me parece tão bem disposto como
no ano passado. Os motivos para isso, se não entendi mal, são
principalmente dois: primeiro, o caso dos concettini; segundo, a
opinião de que o senhor faz muitas coisas ao mesmo tempo. Tentei
tirar do ânimo do Santo Padre toda impressão menos favorável a
seu respeito, mas não sei se obtive êxito.
O santo era certamente vítima de insinuações e calúnias,
mas é preciso dizer também que a escolha do padre Giuseppe
Schiappini como o seu representante não fora a mais acertada.
A exemplificação sem dúvida não se completa com esses poucos
exemplos. Vale dizer que nenhum santo é um espírito angélico.
Dom Bosco – já o dissemos – foi certamente um grande
carismático: lia nos corações, profetizava, mas também podia
se enganar. Um dia, um jovem lhe recorda uma predição não
verificada. O santo fica sério. Depois, faz uma brincadeira e diz
sorrindo: “E mesmo que não se tenha verificado, que impor-
tância tem?”, e desviou a conversa.
A bula de beatificação e a de canonização reconhecem o seu
extraordinário dom de cura. Mas as curas nem sempre acon-

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112 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
teciam. O padre Rua pôde afirmar que Dom Bosco “contava
certos fatos em que se alcançara o resultado oposto aos desejos
de quem lhe implorava a sua bênção”.
O padre Guanella, futuro fundador dos Servos da Caridade e
das Filhas de Santa Maria da Providência, já era sacerdote quando se
tornou salesiano, mas Deus queria que ele voltasse à diocese. Dom
Bosco fez de tudo para mantê-lo consigo: “Quem está ligado em
religião, se não quer enganar, precisa renunciar a todo projeto que
não seja segundo a matéria dos votos e sempre com o beneplácito
do superior”. Essa carta e outras de mesmo teor foram “um grave
espinho” no ânimo delicado do padre Guanella, que decidiu por
fim deixar Dom Bosco. Dois santos em confronto: o Espírito que
os guia dá a um luzes superiores, que não concede ao outro. A
história é fecunda em exemplos semelhantes.
Hipérbole publicitária
Notaremos agora que nem mesmo os santos estão isentos de
certas anomalias inócuas, de pequenas estranhezas e de santas
malícias que tornam a santidade mais humana e mais próxima
de nossa natureza.
São Francisco de Assis, às vezes, se fazia acompanhar no
canto por um pedaço de madeira, como o fazem as crianças.
Santa Catarina de Sena, doce a austera, beijava as crianças pelos
caminhos e mandava aos amigos maços de flores feitos por ela.
São Filipe Néri adorava uma velha gata de pelo vermelho e um
cão chamado Capricho, que dava saltos no ar para exprimir
contentamento. E a vida de Dom Bosco oferece aspectos difi-
cilmente redutíveis aos esquemas comuns.
O santo, tão concreto e engajado no real, falando dos seus
projetos e das suas obras, cedia ao exagero para despertar o
ânimo e a imaginação dos seus ouvintes, para ganhá-los mais
facilmente para a sua causa: “Toda a Itália e a Europa política

12.5 Page 115

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Pietro Brocardo 113
e religiosa falam do nosso projeto para a Patagônia”.
Ao descrever nas Memórias do Oratório a sua habilidade de
prestidigitador, devia sorrir disfarçadamente quando afirmava,
por exemplo, “ver sair de um pequeno copo mil bolas maiores
que ele”, ou “tirar de um saquinho mil ovos eram coisas que
causavam alvoroço”.
Santo moderno, compreendeu instintivamente a importân-
cia que a publicidade assumiria na nova sociedade e se utilizou
generosamente dela por meio de jornais, livros, opúsculos,
conferências: “Esse é o único meio de fazer conhecer as boas
obras e de mantê-las. O mundo atual se tornou material. Por
isso é preciso trabalhar e fazer conhecer o bem que se faz”. Ele
adotou até a linguagem e o método da publicidade, sem porém
comprometer a sua consciência.
Por estar sempre metido em dívidas e à beira da falência,
quando se dirigia aos benfeitores, à opinião pública, considerava
não só lícito, mas até obrigatório o uso da linguagem hiper-
bólica. Dizia: “A hipérbole é uma figura de retórica. Isso quer
dizer que não é condenável fazer uso dela”.
Os seus sonhos proféticos devem tê-lo estimulado aos exa-
geros, assim como “essa sua grandiosidade, que o levava sempre
de imprevisto aos maiores projetos e à concepção de planos
mundiais, que eram postos em ação, sem muito estudo e sem
demora”, como afirma F. Orestano.
Temos ainda em Dom Bosco a forte tendência a inflar os
números das suas obras e dos seus jovens. “É coisa estrepitosa”,
dizia a padre Barberis, aludindo às “vinte” fundações de um
único ano, 1878. Na realidade, as vinte fundações são as casas
que o catálogo oficial elenca para o ano de 1878, três a mais que
as já relacionadas no ano anterior. No relatório de 1880 à Santa
Sé, o santo quer assegurar a Leão XIII que os seus cinqüenta
mil jovens rezam por ele. Poucos anos depois, a cifra sobe a
duzentos e cinqüenta mil, a trezentos mil... O que se pode dizer?

12.6 Page 116

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114 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
O padre Ceria comenta: “Dom Bosco não se apegava à
exatidão dos números, cedendo às formas modernas de publi-
cidade, então em voga, que divulgam até três vezes mais, para
que se entenda ao menos metade da metade”. O padre Stella é
mais sutil: “A hipérbole publicitária se explica pela atmosfera de
entusiasmo, de astúcia, de esperteza e de malícia, muito familiar
e popular que reinava em Valdocco e em vários ambientes nos
quais Dom Bosco se movia”.
E ainda é Dom Bosco.
Mas jamais poderemos esquecer que ele permanece sempre
como um homem imensamente maior que nós, uma obra-
-prima do Espírito Santo, que traduziu o Evangelho em ação.
Uma existência regulada por leis superiores à nossa experiência
comum. Um santo que, em tudo o que diz ou faz, tem em vista
unicamente a glória de Deus e a salvação das almas.
Capítulo X
Lágrimas de um santo
A teologia espiritual dedicou muitas páginas à análise e
à reflexão do fenômeno das lágrimas na vida dos santos. O
pranto, o riso e tantas outras manifestações da natureza huma-
na são uma verdadeira linguagem e exprimem a sua verdade.
Indicam o envolvimento da pessoa inteira em uma realidade
forte, dentro de experiências particularmente significativas. Na
vida das pessoas santas, as lágrimas são geralmente expressão de
compunção pelos próprios pecados e pelos pecados dos outros,
e muitas vezes evidenciam “o divino alívio do Espírito” – para
falar com a espiritualidade do Oriente cristão –, isto é, são lá-
grimas místicas, doadas a quem recebeu algo da contemplação
das luzes inacessíveis de Deus, uma espécie de compreensão
particular e profunda do amor de Deus, expressão de um co-

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Pietro Brocardo 115
ração que arde totalmente por Ele. São o sinal de um caminho
místico para a santidade.
Também para Dom Bosco o testemunho das lágrimas é
freqüente e tocante. Perguntamo-nos se podemos falar, e até
que ponto, de uma simples característica da sua personali-
dade muito sensível, ou se se trata de verdadeiras e próprias
experiências místicas.
Alma sensível
Duas circunstâncias, entre tantas, nos impressionam no ado-
lescente João Bosco e nos revelam um ânimo particularmente
sensível. São a comoção e a tristeza prolongada, por volta dos
12 anos, pela morte de um melro criado com muito cuidado
e repentinamente estraçalhado e devorado pelo gato. Além
disso, quando tinha 15 anos, ali pelo final de 1830, o pranto
inconsolável, “o coração em pedaços”, que durou muitos dias,
pela morte do padre Calosso, tanto que a sua mãe, seriamente
preocupada, o manda ficar alguns dias no ambiente sereno da
casa dos seus avós, em Capriglio.
Depois de adulto, já ordenado padre, permanece presa
fácil da comoção. Nos conflitos e nos grandes desprazeres, a

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reação de Dom Bosco é a de se fechar no sofrimento e dar vazão
às lágrimas: quando, no prado Filippi,27 chora diante da incer-
teza e do abandono em que se encontra acerca do seu futuro;
quando é tratado de modo vil por um jovem que tinha sido
censurado por sua conduta, como testemunha o jovem Brovio,
que, surpreendido pelo pranto de Dom Bosco, sente forte desejo
de vingá-lo; quando, em 1882, diante da enésima tentativa
de engano, que se está tramando contra ele e contra os seus
primeiros salesianos, durante as incompreensões e os conflitos
com o arcebispo Gastaldi, como a descrevem as Memórias bio-
gráficas; quando, para obter a aprovação e os reconhecimentos
necessários da parte da Santa Sé para a Congregação Salesiana
nascente, se misturam conflituosamente fadigas, oposições,
contradições, humilhações, demoras e desilusões.
Enquanto avança em idade e pouco a pouco se aproxima a
partida para o céu, Dom Bosco se torna mais propenso à como-
ção e ao pranto. Um temperamento muito sensível, plasmado
gradualmente pelo sofrimento e pelas duras fadigas da vida.
Certamente a presença quase contínua de Mamãe Margarida
durante o crescimento e o amadurecimento do filho, com o seu
caráter forte e ao mesmo tempo terno, dá uma contribuição
notável na conformação da natureza e do coração particular-
mente sensível de Dom Bosco.
Contudo, é preciso constatar que a facilidade de se comover
não é ditada por um temperamento romântico, quase lânguido,
de quem tem medo ou se sente um fraco, e por isso sem outra
saída senão se desafogar freqüentemente no choro. Ao contrá-
rio, João – é o que dizem de modo concorde as biografias – era
facilmente inflamável e, ao mesmo tempo, pouco flexível, quase

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Pietro Brocardo 117
duro. Tinha um caráter sério, de bom observador, não muito
pródigo em palavras, e, ao mesmo tempo, com manifestações
impressionantes de coragem no enfrentamento de situações
complexas e de dificuldades, e isso desde pequeno.
Um grande dom de Deus
Mas em nosso santo há algo mais. Até agora destacamos a
personalidade rica, com uma forte carga de humanidade e, ao
mesmo tempo, muito sensível. Mas não é raro encontrar pessoas
assim. Dom Bosco não é um frio especulador, muito menos um
derrama-lágrimas sentimentalóide. É muito inteligente, passio-
nal, voluntarioso e, sobretudo, um santo. O que impressiona
e nos leva a nos identificar muito com o misterioso fascínio da
sua pessoa é o verdadeiro dom das lágrimas.
Quando a Providência vem ao seu encontro, às vezes de
modo extraordinário e imprevisto, ele se recolhe em oração,
pensativo, e as lágrimas jorram dos olhos. Às vezes chora cele-
brando a santa missa, às vezes distribuindo a comunhão, outras
vezes simplesmente abençoando o povo ao fim da Eucaristia.
Chora ao falar aos jovens depois das orações da noite, durante
as famosas boas-noites, ao conferenciar com os seus colabora-
dores diretos, durante os sermões que encerravam os exercícios
espirituais. O pensamento do amor de Deus às vezes o comove
até o pranto. Chora ao verberar o pecado, o escândalo, a des-
graça que é perder a inocência. Chora ao pensar na ingratidão
humana para com o amor do Senhor Jesus, movido pelo temor
acerca da salvação eterna de alguém.
Uma testemunha afirma que durante os folguedos carna-
valescos exortava a fazer fervorosas comunhões e a ficar em
27 Em março de 1846, depois de ser despejado dos três cômodos que havia alugado do padre
Moretta, Dom Bosco consegue um campo nos arredores de Turim, onde pode reunir seus
meninos. Não dura muito, no entanto. Dia 5 de abril é o último domingo e Dom Bosco não
sabe mais o que fazer. Nesse mesmo dia, Pancrácio Soave oferece-lhe a propriedade de Francisco
Pinardi. Ali, finalmente, o oratório encontra um lugar definitivo. [n.e.]

12.10 Page 120

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118 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
adoração diante do tabernáculo, para reparar tanto mal que
se cometia. Enquanto falava, pensando nos insultos que Jesus
recebia, chorava e emocionava os presentes. O cardeal Cagliero
nos assegura que, enquanto Dom Bosco pregava sobre o amor
de Deus, a condenação das almas, o sofrimento de Jesus Cristo
na Sexta-feira da Paixão, a santíssima Eucaristia, a boa morte e a
esperança do paraíso, ele o via muitas vezes derramar lágrimas de
amor, de dor, de júbilo. O mesmo acontecia ao falar da Virgem
Maria e da sua imaculada conceição. Outra testemunha o viu
prorromper em pranto no Santuário da Consolata, enquanto
pregava sobre o Juízo Universal, descrevendo a separação dos
réprobos dos eleitos. Comovido até às lágrimas, ao falar da
vida eterna, sabia levar à conversão pecadores obstinados que
o procuravam depois do sermão para se confessar. É tocante o
testemunho inédito do padre Piccollo: “Quando, na noite de
Natal, cantava a missa, era totalmente raptado por Deus. Seu
único sinal de humanidade era o eflúvio de lágrimas que lhe
vinha da ternura pelo Menino Jesus”. E isso aconteceu desde
os inícios do Oratório até ao grande pranto, prolongado e
irrefreável, enquanto celebrava na Basílica do Sagrado Cora-
ção, em Roma, poucos meses antes da morte. Nessa ocasião,
se desfez em lágrimas mais de quinze vezes, enquanto o padre
que o acolitava se esforçava em vão para reanimá-lo. Ele revia
e compreendia o desenrolar-se do projeto de Deus para a sua
vida e a dos seus meninos.
Tão grande necessidade de pranto, que contradistingue e
retorna freqüentemente na oração e no ministério sacerdotal
de Dom Bosco, nos leva a crer que realmente nos encontramos
em face de um grande dom de Deus, de uma espécie de fenô-
meno místico, com riqueza de detalhes, documentado tanto na
história da espiritualidade ocidental como na oriental.
Gementes et flentes in hac lacrimarum valle:28 assim os me-
dievais resumiram de modo bem feliz toda a existência cristã.

13 Pages 121-130

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13.1 Page 121

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Pietro Brocardo 119
Arrependimento sincero pelos pecados, necessidade de conver-
são, fadiga de viver no exílio terreno, saudade da eternidade,
desejo de amar a Deus, reconhecimento e aceitação dos seus
dons, júbilo pela vida de graça na qual se vive imerso, tudo é
motivo e fonte de lágrimas e expressão de ternura de um coração
em contato contínuo com a presença de Deus.
Em Dom Bosco, tudo isso é ulteriormente ampliado pela
paixão e pela profunda necessidade de salvação dos jovens. Ele
chora também em nome dos jovens, ao se deter sobre a con-
dição deles: a responsabilidade ainda não-amadurecida acerca
da importância da salvação da alma; a dificuldade em aceitar
a luta sem quartel contra os males e a separação do pecado; a
alegria e reconhecimento ainda pouco desenvolvido pelos dons
de Deus, em particular por seu amor que precede, acompanha
e salva; a ainda frágil determinação de orientar bem a vida,
segundo o projeto de Deus, para “aquele pedaço de paraíso
que ajusta tudo”.
Lágrimas de um pai
Nós, pós-modernos, muito afeitos à crítica sofisticada e
vinculados ao princípio basilar da suspeita diante de tudo o
que não seja detectável pela ciência e pela técnica, sabemos e
sustentamos que o dom das lágrimas não é fundamental para
viver a fé cristã. É certo, o valor único e primordial continua
sendo o mandamento do amor. No fim, o que conta é a fé que
atua por meio da caridade. Não obstante, na vida de todos os
santos, na de Dom Bosco em particular e no que nos diz res-
peito, devemos admitir que as lágrimas manifestam um grande
dom de Deus e exprimem de forma extraordinária a sinceridade
e a intensidade da fonte da qual essas lágrimas jorram. São o
sinal da presença e proximidade de Deus e do esforço em em-
pregar toda a existência por sua causa, ou seja, pela construção

13.2 Page 122

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120 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
do Reino, sobretudo no coração dos jovens.
A educação e o modo de vida social da nossa cultura ativa-
ram mecanismos psicológicos e de comportamento que freiam
a intensidade do envolvimento emotivo, em nome da própria
imagem e dignidade.
Por outro lado, existe uma corrente cada vez mais forte,
devida sobretudo à mídia, que insiste na necessidade de liberar
as energias e de envolver o corpo em todas as suas expressões,
as lágrimas incluídas, também na oração e na relação religiosa.
As lágrimas de Dom Bosco, além do maravilhamento que
nos causam pela grande carga emotiva do seu coração e pelo
extraordinário dom místico que o impregna, querem provocar
um sério envolvimento de nossa vida. Os falsos pudores infantis
freqüentemente transformam em estereótipos até as vocações
e os maiores ideais.
Há nessas lágrimas o apelo a uma relação com Deus menos
burocrática e empregatícia, vivida mais com a paixão do filho
do que com o imperativo categórico dos deveres do servo. E
há, além disso, um ardor pela salvação dos jovens, mais forte
do que qualquer estratégia ou técnica pastoral.
Talvez assim se venha a dar nova credibilidade ao Evangelho,
para que voltemos a crer na santidade e sejamos capazes de
reacender a fé onde, pela frieza de um sistema, ela se reduziu
a uma pálida chama.
Capítulo XI
Como Dom Bosco morre
A era científica e tecnológica na qual vivemos busca de toda
maneira exorcizar a realidade da morte, na vã tentativa de isolá-
-la. W. Nigg, em La morte dei giusti: dalla paura alla speranza
28 “Gemendo e chorando neste vale de lágrimas”, parte da Salve-Rainha. [n.e.]

13.3 Page 123

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Pietro Brocardo 121
[A morte dos justos: do medo à esperança], analisa em profundida-
de a morte de alguns santos. Na segunda parte do livro aborda
o momento culminante dessas mortes tão dessemelhantes e
variadas: a morte “comum” de Bento Labre, a morte consumada
na solidão de Agostinho, a morte cruenta de Joana d’Arc e de
Tomás Morus, a morte dura e tormentosa – parece difícil acre-
ditar – de Catarina de Sena e de Bernadete Soubirous, a morte
tranqüila de Bento de Núrsia e, por fim, a morte na alegria de
Francisco de Assis. A essa altura, nos vem espontaneamente a
pergunta: como morreu Dom Bosco?
Sabe-se que, a partir de fevereiro de 1884, Dom Bosco pas-
sa de uma doença a outra. A sua fibra robustíssima se extingue
golpe após golpe e as dores físicas atormentam cada vez mais
o seu corpo. O calvário se torna cada vez mais doloroso, mas
os jovens nada percebem e olham para ele com admiração
crescente toda vez que, ao menos rapidamente, conseguem se
aproximar dele, ouvi-lo, ser atendido por ele no sacramento
da reconciliação.
Com o passar dos dias, ele – como também os seus filhos
–percebe sempre mais, como São Paulo, que a sua corrida está
terminando, e se prepara para morrer. Entre o fim de 1887
e janeiro de 1888, esse sol de santidade faz a sua preparação
mais intensa para o encontro com o Deus sumamente amado.
Anotaremos apenas três pontos desse último segmento da vida
do santo dos jovens: os novissima verba [últimas palavras], o
momento da morte e a sua segunda vida.
Nos últimos dias de Dom Bosco, os salesianos da primeira
geração o assistiram em turno contínuo, e o mesmo fizeram
muitos da segunda geração. Para conservar as palavras do
seu amado pai, tiveram o cuidado de recolher dos seus lábios
cansados as palavras que dizia de vez em quando. As palavras

13.4 Page 124

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dos moribundos estão carregadas do sentido do divino e têm
um valor absolutamente único. O Arquivo Salesiano Central
conserva esses pensamentos em diversas versões, pois os que os
coletaram tinham consciência de estar legando aos pósteros a
mais preciosa das heranças.
Novissima verba
As suas últimas palavras revelam sobretudo os aspectos fun-
damentais da sua personalidade de padre educador, de pastor
e de fundador. O pensamento dominante que emerge, tanto
nos momentos de lucidez como nos traços do inconsciente,
exprime a sua grande preocupação pela salvação das almas
juvenis. Em certo momento, batendo as mãos, grita: “Correi,
correi rápido para salvar aqueles jovens!... Maria Santíssima,
ajudai-os... Mãe, Mãe!”.
Dom Bosco, como sabemos, à diferença de outros funda-
dores, começou a sua instituição com religiosos muito jovens.
Por isso, ele mostra um certo temor de que não estivessem à
altura de continuar a sua obra: “São enrolados!...”, diz. Mas
logo prevalecem o otimismo e a confiança em Deus: “Coragem!
Avante!... Sempre avante!”.
Ele repete as mesmas palavras, mas o padre Cagliero o tran-
qüiliza: “Fique tranqüilo, Dom Bosco, faremos tudo, tudo o
que deseja”.
Todos sabem que o santo tinha os pés bem plantados na
terra, mas o seu ímpeto de apóstolo estava sempre fixo em
Deus: o pensamento do paraíso foi dominante na sua vida.
Voltando-se a quem estivesse perto, repetia sempre: “Vamos
nos ver no paraíso!... Mandem rezar por mim...”. E ao padre

13.5 Page 125

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Pietro Brocardo 123
Bonetti: “Diga aos jovens que os espero a todos no paraíso”.
O mesmo pensamento, com mais ênfase ainda, o reserva
às amadas irmãs: “Escute! Diga às irmãs que, se observarem as
Regras, a salvação delas está assegurada”.
As últimas palavras colhidas dos seus lábios são de abandono
em Deus e de confiança na Bem-aventurada Virgem: “Jesus
e Maria, vos dou o coração e a minha alma... In manus tuas,
Domine, commendo spiritum meum...29 Ó, Mãe, Mãe... abri-me
as portas do paraíso”.
Diferentemente da sua vida, constelada de acontecimentos
extraordinários, a sua morte não apresenta características ex-
cepcionais. Mas, como se depreende dos novissima verba, sua
morte é o extingüir-se sereno de uma vida inteiramente doada a
Deus e ao próximo na perspectiva da eterna bem-aventurança.
A morte
A morte de Dom Bosco não foi repentina. Preparada
durante longos meses de graves sofrimentos e doenças, foi o
apagar-se de uma chama que havia esgotado o seu combus-
tível. Nos últimos dias da doença, quando os médicos não
davam mais nenhuma esperança de melhora, se elevava em
Valdocco, da parte dos superiores e dos jovens, uma oração
incessante a Maria Auxiliadora, pedindo o milagre da cura.
Na psicologia coletiva, havia a convicção de que Dom Bosco
jamais devesse morrer. Alguns jovens chegaram a oferecer a
Deus a própria vida.
Entre as experiências mais tocantes referentes à morte do
santo, queremos recordar a do padre Orione, que alimentava – e
alimentará por toda a vida – pelo santo dos jovens um afeto e
estima ilimitados. Já avançado em anos, há quem o tenha ouvido
repetir: “Caminharia sobre brasas para ver Dom Bosco mais
uma vez e poder lhe dizer obrigado”. É oportuno lembrar que

13.6 Page 126

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124 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
o padre Orione foi estudante em Valdocco de outubro de 1886
a 1889.30 Como e por que, depois de ser dirigido por padre
Rua, conseguiu passar a se confessar com Dom Bosco, privilégio
reservado a pouquíssimos, visto que o santo estava bem fraco, é
um mistério. Talvez Dom Bosco visse nesse adolescente predes-
tinado a imagem de Domingos Sávio, e já previsse o seu futuro.
Por outro lado, toda vez que o jovem podia se aproximar do pai
da sua alma, se sentia transportado para uma região superior,
para a órbita do fogo divino daquela grande alma que, no ocaso
da vida, brilhava com a sua luz mais intensa. O querido jovem,
já plenificado de graça, gravava dentro de si as orientações do
santo e as guardava como um tesouro precioso.
No decorrer da sua vida extraordinária, mesmo em face
de outras figuras esplêndidas que dele se aproximaram, padre
Orione recorreu em pensamento ao “seu” santo, Dom Bosco, e
aos seus colaboradores diretos: Rua, Berto, Francesia, Trione e
outros, também eles grandes e santos aos seus olhos inocentes.
Permanecerão para sempre no seu coração a saudade dorida e a
recordação inapagável de Dom Bosco, dos seus colaboradores e
do clima de Valdocco, onde se respirava “o ar de Deus”.
Na iminência da morte de Dom Bosco – nota o padre
Orione –, a notícia atraía a Valdocco, mesmo das regiões mais
longínquas, venerandos salesianos.
Vieram então naqueles dias muitos salesianos da Inglaterra, da
Espanha, de lugares remotos. Como poderiam os primeiros filhos,
os mais idosos, ficar sem ver Dom Bosco ainda uma vez? Nós que
estávamos lá víamos salesianos nunca vistos, muitos salesianos que
já tinham cabelos brancos (...). Os nossos superiores mais velhos,
padre Rua, padre Cerruti, padre Belmonte, diretor da casa, estavam
tomados de profunda dor!... Resignados, sim, mas se via a dor no
rosto de todos... Todos rezavam sem parar. O papa enviara a sua
bênção; chegavam cartas e telegramas de todas as partes. Muitos,
29 “Em tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito” (Lc 23,46). [n.e.]

13.7 Page 127

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Pietro Brocardo 125
não podendo ser recebidos, andavam ao redor e olhavam pelas
janelas. Rezava-se continuamente e se acendiam velas e lamparinas
no Santuário de Maria Auxiliadora.
Mas Dom Bosco não recuperou a saúde. Eram-lhe sugeridas
jaculatórias e lhe diziam: “Dom Bosco, diga: ‘Maria Auxiliadora,
obtende-me a graça de retomar as forças, de ser curado!’”. Mas
ele não quis repetir essa oração, para se mostrar completamente
entregue à vontade de Deus. Dizia, porém: “Senhor, seja feita a
vossa vontade”. Os médicos declararam impossível a cura de Dom
Bosco. Não obstante, todos a esperavam. Quem ama espera, sempre!
No dia 30 de janeiro, deixou de falar. Fizeram todos nós, os
rapazes, passarmos diante dele. Estendido no leito, com as mãos
para fora, parecia não entender mais nada. Tinha uma estola roxa
nos pés. E alguns lhe beijavam as mãos, outros, os pés, outros
choravam, outros lhe beijavam as cobertas. A sua cabeça estava
virada para a direita; os cabelos um pouco enrolados... Naquela
noite ninguém dormiu. Salesianos de todas as partes estavam lá.
Parecia que Dom Bosco tinha chamado a todos. Alguns estavam
cansados, cansadíssimos da noite anterior, e alguns se deitavam
sobre as mesas, não se dominavam mais, velavam, como filhos
amados, ao redor do pai. Estavam cansados porque tinham vindo
de longe. Nós também não dormimos na véspera da sua morte.
Havia silêncio e paz, e uma só oração... Todos suplicavam...
Sentia-se algo de extraordinário. Se eu tivesse a língua de um san-
to, não poderia exprimir o que sentimos naquela noite. Vejam,
queridos clérigos, que já se passaram cinqüenta anos e que essa
mesma voz, plena de comoção, que lhes fala, lhes diz o que deve
ter ocorrido à época, naqueles momentos!... Tínhamos recebido
ordem de não nos mover. Todos estavam com o ânimo suspenso:
alguns cochilavam, mas todos viviam uma grande expectativa.
Eis que, enquanto soava a ave-maria de 31 de janeiro, Dom Bosco
morria. Pela manhã, era costume soar a ave-maria às 5 horas no
campanário de Maria Auxiliadora. Naquela manhã, não sei por
30 Cf. nota 20.

13.8 Page 128

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126 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
que a ave-maria soou às 4 e meia, e às 4 e 45 Dom Bosco morria.
Onde eu estava? O quarto em que eu dormia era contíguo ao
quarto de Dom Bosco. Na hora em que o querido Dom Bosco
morria, se ouviu um tombo: era um dos salesianos missionários
mais velhos que tinha velado toda a noite. Quando foi chamado
– repousava sobre uma mesinha –, foi tomado por tal aturdi-
mento, que caiu. Era aquele missionário que caía; era a vida de
Dom Bosco que caía! O salesiano tinha se acomodado sobre uma
mesa e, ao ouvir que Dom Bosco estava morto, foi tomado por
tal sentimento de comoção que caiu da mesa. Aquele barulho foi
como um sinal de que Dom Bosco morrera... Dom Bosco morria
como morrem os santos, todos os santos...
Quando amanheceu, a notícia se espalhou pelo Oratório e todos
perceberam que algo de grande tinha acontecido... Naquele dia,
não havia mais pão. Dom Bosco prometera que a Providência
não havia de faltar. Os salesianos tinham um senso de resignação
muito vivo. Eles vinham até nós, mesmo os mais velhos, que nunca
tinham vindo. Já lhes disse outras vezes que depois da morte de
Dom Bosco se difundiu por todo o Oratório uma espécie de suave
aura de paz, de tranqüilidade. Por todo o Oratório, havia uma
suavidade, um sentimento de paz, uma coisa... uma coisa... que
sinto até hoje, depois de cinqüenta anos. Um sentimento de paz,
uma brisa suave que penetrava todos os corações, todas as pessoas;
até mesmo as paredes da casa pareciam ter sido penetradas de paz.
Era uma grande coisa, uma coisa extraordinária que nunca mais
experimentei... Dom Bosco estava lá: com o seu espírito de pai,
de santidade, de mansidão, de paz, tinha penetrado o coração e
a atividade de todos e, repito, parecia penetrar as paredes da casa.
E o que eu senti todos sentiram. Dom Bosco, com o seu espírito
de paz, entrou nas entranhas de todos.
Nas entranhas do padre Orione, sem dúvida, tinha penetrado
em medida transbordante. A quem o fazia notar que falava “sem-
pre” de Dom Bosco, respondia com uma imagem forte, mas de
reminiscência bíblica: “Que Deus resseque a minha língua, se eu

13.9 Page 129

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Pietro Brocardo 127
deixar de bendizer aquele santo homem!” (cf. Sl 137,5-6).
Recordação indelével
A imprensa, mesmo leiga, geralmente usou palavras de elogio
sobre a morte de Dom Bosco, mas não faltaram grandes come-
morações, que passaram para a história. Aqui recordamos o tes-
temunho do padre Orione, dado aos seus religiosos ao longo da
sua vida e mesmo na sua idade tardia. Há nas suas palavras algo
de idealização, há a ênfase e o lirismo do seu grande coração.
Mas, além de tudo, vive a objetividade de um fato inegável.
Oh! Dom Bosco, como te ouço ainda!... Ouço a tua voz amo-
rosa, terna; vejo a tua figura veneranda, a tua santidade afável,
atraente, toda ternura, toda ardente de caridade divina! Dom
Bosco!... Oh! Aquelas noites em que falavas! E a serenidade do teu
espírito iluminava a minha alma... Quando confortavas os teus
pobres filhos, lá nos pés do altar, onde estava Jesus, que abraçava
todos no seio da sua caridade divina, imensa!...
Dom Bosco foi um dos modelos da sua vida:
Dom Bosco! Homem de grandes idéias – como grande era a cari-
dade de Cristo que inflamava a sua alma de educador e de apóstolo
–, da comunhão freqüente, da terna devoção à Nossa Senhora e do
afeto à Igreja, trouxe a vida e a força para si e para os seus.
Dom Bosco! O mais humilde e o mais ativo dos homens que
conheci: simples e afetuoso, altivo no querer, ardente de piedade,
esperto no saber se valer de tudo, para fazer o bem, e de todos
os ramos do conhecimento, para educar. Dom Bosco foi verda-
deiramente o sacerdote de Deus, o sacerdote de coração grande,
sem limites! Nele, a caridade que animava e acendia a alma de
Paulo: Charitas Christi! Nele, o espírito de Vicente de Paulo e
a doçura de Francisco de Sales. De fé inquebrantável na divina
Providência, que veste de plumas os pássaros do céu, foi saudado
como apóstolo da juventude.

13.10 Page 130

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128 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
O padre Orione propunha Dom Bosco aos seus filhos como
modelo de vida, citando até mesmo fatos que, aparentemente,
não tinham densidade espiritual.
Quando, por exemplo, Dom Bosco, estudante em Chieri,
viu que o acrobata afastava as pessoas da igreja, “não foi rezar
dentro da igreja para que o acrobata acabasse. É claro que rezou
também, mas o enfrentou com desenvoltura”, comentava o
padre Orione. E acrescentava:
Assim como Dom Bosco, em todas as coisas, até mesmo nos pés,
até mesmo nos sapatos, caminhava para o céu – porque o bem
tem a sua bravura, porque o bem é humilde, mas se é preciso se
torna um leão –, Dom Bosco subiu até onde estava o acrobata e
virou de ponta-cabeça, lançando as pernas e os pés para o alto,
de modo a superar a copa da própria árvore. Sempre para o alto,
sempre para Deus, até mesmo com os pés, sempre. Até mesmo
com os sapatos, sempre para o alto, até mesmo nas coisas que
parecem mais comuns e banais!... Esse é Dom Bosco!!!... E quando
vinha até aqui, leram esse episódio, e então pensei comigo mesmo:
esse é realmente Dom Bosco! Dom Bosco piedoso, Dom Bosco
que se alimenta de Deus. Dom Bosco que compreendeu que a
sua missão é não se fechar, não se encerrar, não se dobrar sobre si
mesmo, mas combater o mundo com as próprias armas modernas,
as armas deste tempo: imprensa com imprensa, escola com escola,
propaganda do bem contra propaganda do mal.
A segunda vida de Dom Bosco
A canonização não é apenas a suprema glorificação de um
fiel, é também o início da sua segunda vida na história da Igreja
e do mundo. De fato, afirma o Vaticano II: “Por essa santidade
se promove também na sociedade terrestre um modo mais
humano de viver” (LG n. 40).
Na realidade, a segunda vida de Dom Bosco começou logo

14 Pages 131-140

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14.1 Page 131

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Pietro Brocardo 129
depois da sua morte, não porém com a plenitude e a universa-
lidade conferidas pela canonização.
Desde então Dom Bosco vive no culto. A canonização, de
fato, desemboca imediatamente no culto. A fórmula da cano-
nização recita:
Em honra da santa e indivisível Trindade (...), decretamos e de-
finimos que o Bem-aventurado João Bosco é santo e no número
dos santos o incluímos, estabelecendo que na Igreja universal se
honre devotamente a sua memória.
É verdade que não se festejam todos os santos, porque só
são festejados os santos canonizados. A veneração dos santos
– e portanto a de Dom Bosco – no pensamento da Igreja tem
mais importância que o seu exemplo, que nos ajuda a viver em
mística comunhão com eles.
Todavia não somente a título de exemplo veneramos a memória
dos habitantes do céu, mas mais ainda para corroborar a união
de toda a Igreja no Espírito, pelo exercício da caridade fraterna.
Porque assim como a comunhão cristã entre os viajores mais nos
aproxima de Cristo, assim o consórcio com os santos nos une
também a Cristo, do qual (...) promana toda graça e a vida do
próprio Povo de Deus” (LG n. 50).
Desde a Páscoa de 1934, Dom Bosco vive na liturgia da
Igreja, que celebra a sua memória universal: vive na consciência
de todos os que, atraídos pelo seu fascínio e pelo seu carisma,
rezam, veneram e o invocam como poderoso intercessor junto a
Deus. As festas em sua honra têm ampla ressonância em muitas
Igrejas locais. Distinguem-se pela grande procura dos sacramentos
da Reconciliação e da Eucaristia, nos quais Dom Bosco tanto
insistiu. São uma autêntica passagem do Senhor pelos corações.
Caracterizam-se sobretudo como “encontros festivos da
juventude”, que, hoje como ontem, o aclama e invoca como

14.2 Page 132

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130 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
mestre, guia, amigo e pai. O tributo de amor prestado a Dom
Bosco é definitivamente um tributo de amor prestado a Deus.
No culto dos santos, toda prova de amor tem como fim Cristo,
“coroa de todos os santos”, e, por Ele, Deus (LG 50).
Dom Bosco vive como modelo de vida cristã. Ao canonizá-
-lo, a Igreja reconheceu oficialmente a exemplaridade da sua
existência terrena e o propôs como arquétipo e modelo à imi-
tação dos fiéis.
A imitação dos santos tem grande importância para a
Igreja, porque os santos personificam um ideal de vida cristã
e indicam às pessoas com que instrumentos esse ideal pode
ser atingido. Até mesmo a vida de Dom Bosco é, a seu modo,
um quinto evangelho, que estimula o desejo de se aproximar
de Deus tanto quanto possível. Foi dito de muitos padres do
deserto que a sua vida era “Palavra”. O mesmo se deve dizer
de Dom Bosco, cuja existência foi verdadeiramente um sinal
tangível das admiráveis transformações que o Espírito Santo
opera no coração das pessoas. Uma vida na qual as pessoas de
hoje se podem reconhecer, pessoas para as quais não contam
as palavras, mas os fatos, o testemunho. Essas pessoas, de fato,
como já destacava o filósofo francês J. Maritain, “pedem sinais:
têm necessidade de fatos, especialmente de sinais sensíveis
da realidade das coisas divinas. Crer em Deus deve significar
viver de tal maneira, que a vida não poderia ser vivida se Deus
não existisse”.
A santidade de Dom Bosco e a sua fé intacta, que parecia
criar as coisas do nada, são uma resposta a esse apelo.
Dom Bosco vive, enfim, mais que nunca na sua missão e nas
instituições nas quais se encarna. A morte não deteve a maravi-
lhosa expansão das obras de Dom Bosco, mas, de algum modo,
faltava para elas o selo de santidade. Na vida de uma família
religiosa, a canonização do fundador tem mais importância
eclesial que a aprovação das Regras, porque, pela canonização,

14.3 Page 133

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Pietro Brocardo 131
o fundador adquire uma autoridade incontestável.
A proclamação da santidade de Dom Bosco representa um
acontecimento de extraordinário alcance. Ao reconhecer a
iniciativa do Espírito do Senhor na sua missão de fundador,
a Igreja a inseriu oficialmente como porção eleita no patri-
mônio universal do povo de Deus, autenticou a sua validade
e implorou e implora a Deus que essa missão, para além das
coordenadas de espaço e tempo, prossiga o seu benfazejo
caminho na história.
Isso significa, como disse Pio XI, “milhares e milhares de
igrejas, capelas, hospitais, escolas, colégios, com milhares,
centenas de milhares de almas levadas a Deus, de juventude
recolhida em abrigos de segurança e chamada ao banquete da
ciência e da primeira educação cristã”. Há certa ênfase nessas
palavras, mas hoje elas são realmente verdadeiras.
Segunda parte
Nos caminhos de Deus
Como todos os santos, Dom Bosco é dominado
pelo anseio de tender incessantemente aos cumes da
santidade, não alcançados por completo neste mundo,
em tempo algum.
Todavia, como vimos, ele se situa na constelação
dos grandes santos fundadores, ou seja, daqueles
em cuja alma irrompe o Espírito do Pai e do Ressus-
citado, em vista de uma missão especíca na Igreja
e no mundo.
Como também já recordamos, o santo dos jovens
não poderá nunca se santicar, a não ser cumprindo
heroicamente a sua missão de fundador, de conformi-

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132 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
dade com alguns traços característicos e inconfundí-
veis: ser sinal e portador do amor de Cristo para com
os jovens, especialmente os pobres; ser princípio e
fonte de uma fecunda posteridade espiritual (a Família
Salesiana); ser iniciador de uma corrente de espiritua-
lidade entre as mais ricas e atuais na Igreja.31
Veremos, além disso, e nos limites do possível,
alguns traços essenciais e as feições da vivência
espiritual salesiana, deixando de lado, obviamente,
outros não menos importantes. Daí o esforço para
fazer emergir a modalidade, o matiz e aqueles realces
da vida evangélica tão próprios e peculiares de Dom
Bosco. Em uma palavra, aqueles lampejos da santidade
de Deus, que pouco ou muito percebiam os que dele
se aproximavam.
Capítulo I
A mística do Da mihi animas
As palavras que o rei de Sodoma dirige a Abraão – Da mihi
animas, caetera tolle [“Entrega-me as pessoas e fica com os bens”,
Gn 14,21] –, na interpretação acomodatícia que Dom Bosco
assume da tradição, soam assim: “Ó Senhor, dá-me almas e
toma para ti todas as outras coisas”.
Segundo P. Stella, o termo-chave, nessa versão, “é o vocábulo
animas, isso é, aquele termo que há séculos, na linguagem cristã,

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designava o elemento espiritual do homem, posto no tempo, porém imortal,
entre salvação e ruína eterna, entre pecado e graça, entre Jerusalém e Babilônia,
entre Deus e Satanás”.
“Se salvares a alma tudo irá bem e gozarás para sempre; mas se errares,

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perderás alma e corpo, Deus e o paraíso, serás condenado para
sempre”, escreve Dom Bosco.
Temos hoje uma visão mais abrangente do destino do ho-
mem e das realidades últimas. Todavia, usando a linguagem do
seu tempo, Dom Bosco indica a direção justa, que considera
o homem por inteiro. Ele repete a todos que o homem não é
feito para a terra, mas é testemunha das tensões e da esperança
do futuro que nos espera: podemos escutá-lo com confiança.
Procede-se segundo a verdade quando se afirma que as suas
mais profundas aspirações, a sua oração mais ardente, é pelas
“almas a serem salvas” e asseguradas para o Reino.
Identidade sacerdotal
A expressão Da mihi animas constitui seu lema de vida, sua
obsessão, sua mística. Em Dom Bosco, a mística é a concen-
tração em Deus Pai, em Cristo e seu Espírito, mas também é
conseqüência direta do seu ser sacerdote, chamado, por desti-
nação essencial, a colaborar com Cristo no mistério da Redenção.
Não é possível pensar em Dom Bosco a não ser como sacerdote.
Com efeito, o que vem a ser a sua juventude senão a cons-
ciente, desejada e assídua preparação para o sacerdócio? Dizia
a si mesmo: “Quero me tornar padre logo para me entreter
com os jovens, a fim de ajudá-los”. E o que vem a ser a sua vida
senão o remate desse voto feito na juventude?
De Cristo sacerdote, único e atual Mediador entre Deus e os
homens, quis ser a imagem mais perfeita possível, a mediação
sacramental mais transparente. Jamais arrefeceu nele a consci-
ência da indefectível responsabilidade sacerdotal: sempre padre,
31 Cf. Carta Iuvenum Patris, de João Paulo II.

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inteiramente padre e nada mais. Confirma-o João Paulo II:
Dom Bosco foi, antes e acima de tudo, um verdadeiro padre.
A nota dominante da sua vida e da sua missão foi o fortíssimo
senso da própria identidade de sacerdote, padre católico, segundo
o coração de Deus.
Um padre – repetia o santo – “é sempre padre e tal deve se
manifestar em todas as suas palavras”.
O vocábulo “padre” – termo então incômodo, já que as boas
mães de Turim ensinavam os seus filhos a não dizer “padre”,
palavra demasiado enlameada, mas sim “sacerdote” – é repetido
sete vezes no breve período de abertura da audiência, como
tradicionalmente se conta, com o ministro Bettino Ricasoli,
ocorrida em Florença em dezembro de 1866:
Excelência, saiba que Dom Bosco é padre no altar, padre no con-
fessionário, padre no meio dos seus jovens. E tal como é padre
em Turim, assim é padre em Florença, padre na casa do pobre,
padre no palácio do rei e dos ministros.
Com razão, escreve o padre Ceria:
O ser sacerdote constituiu em todos os tempos a sua mais íntima
satisfação, como também o seu maior título honorífico, que não
deixou nunca de antepor ao próprio nome nos livros e nas cartas,
coisa então completamente fora de uso.
A altíssima consideração do sacerdócio ministerial o levou a
honrar nos outros padres o caráter sacerdotal, qualquer que fosse
o seu estado e conduta. Com todos os padres, “dava mostras
abundantes de estima e de respeito, e, vindo a saber de algum
que não respeitava o seu caráter, se afligia até às lágrimas, e o

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138 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
seu desejo era o de escondê-lo dos olhos de todos”. Fez isso mais
de uma vez, com gestos tão delicados, que iam até ao coração
e o transformavam.
Entretanto, a sua obsessão cotidiana, podemos dizer, foram
as vocações destinadas à Igreja e à vida religiosa. Em uma carta
encontrada recentemente, dirigida ao marquês Michele Benso
de Cavour, vigário da cidade de Turim, em 13 de março de
1846, Dom Bosco pede autorização do município para adquirir
a casa Pinardi – “uma quantia de 200 francos” – para nela esta-
belecer o seu Oratório. Define os seus objetivos nestes termos:
“1) amor ao trabalho, 2) freqüência aos santos sacramentos,
3) respeito a toda autoridade, 4) fuga das más companhias”. A
seguir, acrescenta:
Esses princípios, que nos empenhamos em instilar habilmente no
coração dos jovens, produziram efeitos maravilhosos. No espaço de
três anos, mais de vinte abraçaram o estado religioso e seis estudam
latim para empreender a carreira eclesiástica.
Como se vê, é um número significativo, se pensarmos nos
dias arriscados e difíceis do Oratório ambulante e se conside-
rarmos que Dom Bosco se encontra, se pode dizer, no começo
do seu ministério.
Padre “substanciado de Cristo e da Igreja”, num tempo em
que ainda predominava a idéia de que o padre devia ser um
homem isolado – uma espécie de supercristão – fechado no
mundo sacral, vivendo só para a igreja e a oração, embora dedi-
cado às obras de caridade e misericórdia, Dom Bosco se revela
um precursor, aberto ao sopro histórico do Espírito e às novas
realidades emergentes, envolvido na missão que Deus lhe confia
entre os jovens pobres e participante e solidário do destino deles.
A convicção profunda de que o padre não se santifica, e não
se salva, senão no exercício do seu ministério e da sua missão
específica ressuma em determinados enunciados seus, peremp-

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Pietro Brocardo 139
tórios e pregnantes: “O lucro do padre são as almas, e nada
mais”; “O sacerdote não vai para o inferno ou para o paraíso
sozinho, mas acompanhado sempre por almas perdidas ou salvas
por ele”; “Quem se torna padre, seja um santo padre!”; “Toda
palavra do padre deve ser sal de vida eterna, e isso em todo lugar
e com qualquer pessoa”; “Quem quer que se aproxime de um
sacerdote deve levar sempre em resposta alguma verdade que
lhe traga proveito para a alma”; “O padre não deve ter outros
interesses além dos de Jesus Cristo”.
Os “interesses de Jesus Cristo”, Revelador e Adorador do Pai,
Redentor da humanidade, são, em síntese, a “glória de Deus”
e “a salvação dos homens”. E esses são exatamente os interesses
supremos que Dom Bosco perseguiu ao longo de toda a vida.
Salvar e santificar as almas é o anseio do seu coração.
O papa João Paulo II o recordou aos membros do Capítulo
Geral XXII, em 4 de abril de 1984:
É importante salientar e ter sempre presente que a pedagogia de
Dom Bosco teve uma valência, como também uma perspectiva,
extremamente “escatológica”: o essencial – como diz repetidamen-
te Jesus no Evangelho – é entrar no Reino dos Céus.
Entrar no Reino é entrar na salvação definitiva. “Salvar
a alma” e cooperar na “salvação das almas” são afirmações
repetidas muitas vezes por Dom Bosco aos jovens e aos salesia-
nos, às pessoas das classes mais humildes e das mais elevadas:
“Recomendo-te a salvação da alma”.
Em um “Projeto de Regulamento”, de 1854, cita a conhe-
cida frase do evangelho de João: Ut filios Dei qui erant dispersi
congregaret in unum,32 e comenta:
As palavras do santo Evangelho nos dão a conhecer que o Divino
Salvador veio do céu à terra para reunir todos os filhos de Deus
dispersos pelas várias partes da terra. Parece-me que essas palavras

15.2 Page 142

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140 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
podem se aplicar literalmente à juventude dos nossos dias.
A imagem do Bom Pastor, que vem para congregar e salvar
os filhos de Deus dispersos, estimula Dom Bosco a se entregar
pela juventude, especialmente a mais pobre.
O pensamento da salvação das almas – de todas, mas espe-
cialmente daquelas que Deus lhe confia – preme o coração de
Dom Bosco. De acordo com o padre Stella, essa idéia constitui
“o núcleo essencial e irrenunciável, a raiz mais profunda da sua
atividade interior, do seu diálogo com Deus, do trabalho sobre
si mesmo e da sua operosidade de apóstolo, que sabe ter sido
chamado e ter nascido para a salvação da juventude pobre e
abandonada”. A frase que Domingos Sávio leu em uma placa
no quarto de Dom Bosco, Da mihi animas, caetera tolle, é o
forte destaque dado a um dos propósitos formulados durante a
preparação para a ordenação sacerdotal: “Padecer, trabalhar, se
humilhar em tudo e sempre, quando se trata de salvar almas”.
Seu coração, verdadeiramente, como disse o padre Viganò,
“palpitou sempre ao impulso do Da mihi animas”.
Idéia unicadora
Essa era a idéia unificadora de toda a sua vida. Não vivia
senão dela e por ela, como prova a sua faina de pedagogo, pas-
tor, catequista, escritor, fundador, e como atestam as suas mais
convictas e recorrentes afirmações. Costumava dizer:
Os nossos jovens vêm para o Oratório e os seus pais e benfeitores
os confiam a nós com a intenção de que sejam instruídos... Mas
o Senhor no-los envia para que nos interessemos pelas suas almas
e para que eles encontrem aqui o caminho da eterna salvação.
Por isso, todo o restante deve ser considerado por nós como meio,
sendo o nosso fim supremo torná-los bons, salvá-los eternamente.
E aos professores não se cansava de repetir: “Lembrem-se

15.3 Page 143

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Pietro Brocardo 141
que a escola não é senão um meio para praticar o bem. Eles
são como párocos na sua paróquia, missionários no campo do
seu apostolado”.
Dizia ainda: “Todas as artes são importantes, mas a arte das
artes, o único trabalho que conta, é a salvação da alma”; “Todo
gasto, todo cansaço, toda dificuldade, todo sacrifício é pouco,
quando contribui para ganhar almas para Deus”. E rezava: “Ó
Senhor, podeis nos dar cruzes, espinhos, perseguições de todo
gênero, contanto que possamos salvar almas, e entre as outras,
também a nossa”.
Aos aprendizes de Valdocco, explicava:
A minha afeição [por vós] está fundada no desejo de salvar as
vossas almas, que foram todas redimidas pelo sangue precioso de
Jesus Cristo. E vós me amais porque procuro vos conduzir pelo
caminho da salvação eterna.
Até mesmo no leito de morte, assaltado por pesadelos, foi
visto se agitar, bater as mãos e gritar: “Acudi, acudi depressa para
salvar estes jovens... Maria Santíssima, ajudai-os!”. Chegou a
afirmar: “Se eu me empenhasse com tanta solicitude pelo bem
da minha alma, como o faço pelo bem da alma dos outros,
estaria certo da sua salvação”.
Como o artista experimenta a tortura de não poder exprimir
em termos humanos a intuição fulgurante que carrega dentro
de si, do mesmo modo Dom Bosco se lamenta por não poder
inculcar o pensamento da salvação da alma tal como o vive
e o sente: “Oh, se vo-lo pudesse dizer como o sinto! Mas o
argumento é tão importante e sublime que faltam as palavras”.
O seu trabalho, as suas instituições, a fundação da Congrega-
ção Salesiana, do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, da
Associação dos Cooperadores Salesianos, tudo está voltado para
32 “Para reunir os filhos de Deus dispersos” (Jo 11,52). [n.e.]

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142 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
esta meta suprema: “O único escopo do Oratório é salvar almas”.
O escopo desta Sociedade, se considerado em relação aos seus
membros, não é outro senão um convite a querer se unir em
espírito entre si, com o fim de trabalhar para a maior glória de
Deus e pela salvação das almas, a isso impelidos pelo dito de Santo
Agostinho: “Divinorum divinissimum est in lucrum animarum
operari”.33
E acrescentava: “Esse é o escopo mais nobre que se possa
imaginar”, esse deve ser “o respiro contínuo de cada salesiano”.
Com absoluta verdade, padre Rua pôde afirmar nos processos
de canonização:
Não deu qualquer passo, não pronunciou palavra, não pôs a
mão em empreendimento que não tivesse em vista a salvação
da juventude. Deixou que outros acumulassem tesouros, que
outros buscassem prazeres e corressem atrás das honras. Dom
Bosco realmente não teve vivo interesse por outra coisa senão
pelas almas. Afirmou-o com fatos, não só com a palavra: Da mihi
animas, caetera tolle.
O padre Albera, que conviveu longamente com Dom Bosco,
também atesta: “O conceito animador de toda a sua vida era
trabalhar pelas almas até à total imolação de si mesmo... Salvar
as almas... pode-se dizer que foi a única razão do seu existir”.
Mais incisivamente, porque põe à prova as motivações profun-
das do agir de Dom Bosco, o padre Rinaldi vê no lema Da mihi
animas “o segredo do seu amor, a força, o ardor da sua caridade,
o amor pelas almas, o amor verdadeiro, porque era o reflexo do
amor para com Nosso Senhor Jesus Cristo e porque as próprias
almas eram vistas por ele no pensamento, no coração, no sangue
precioso de Nosso Senhor”. O padre Rinaldi continua:
(...) O nosso bem-aventurado pai havia conseguido se perder todo
em Deus, em Nosso Senhor Jesus Cristo e de lá, daquela admirável

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Pietro Brocardo 143
união, se lançou em busca das almas com os mesmos ardores da
caridade do Redentor divino, de tal maneira a não mais viver nem
mais respirar senão pelas almas.
Expressões sumamente verdadeiras saíram dos lábios do
papa Pio XI, com a profundidade grave e solene que lhe era
habitual, na audiência concedida a toda a Família Salesiana, em
3 de abril de 1934, na Basílica de São Pedro. Nessa audiência,
ele quis salientar a conexão existente entre o fausto evento da
canonização e os valores do Ano Santo da Redenção:
Hoje, Dom Bosco nos diz: “Vivei a vida cristã tal como eu a
pratiquei e vos ensinei”. Parece-nos, no entanto, que Dom Bosco
acrescente para vós, seus filhos, e tão particularmente seus, alguma
palavra também mais especificamente diretiva (...). Ensina-vos um
primeiro segredo, [que é] o amor a Jesus Cristo, a Jesus Cristo
Redentor! Dir-se-ia até mesmo que esse foi um dos pensamentos,
um dos sentimentos dominantes de toda a sua vida. Revelou-o
com aquela palavra de ordem: Da mihi animas. Eis um amor que
está presente na meditação contínua e ininterrupta do que são
as almas, consideradas não em si mesmas, mas no que significam
no pensamento, na obra, no sangue, na morte do divino Redentor.
Dom Bosco percebeu o inestimável e inatingível tesouro que são as
almas. Donde a sua aspiração, a sua oração: Da mihi animas! Ela
é uma expressão do amor por seu Redentor, expressão na qual,
por felicíssima necessidade de coisas, o amor ao próximo se torna
amor pelo divino Redentor, e o amor ao Redentor se torna amor
pelas almas redimidas, aquelas almas que, no pensamento e na
apreciação de Jesus, se revelam como pagas a preço não excessi-
vamente alto, mesmo se pagas com o seu sangue.
As grandes ordens e institutos religiosos condensaram em
frases, que são verdadeiras sínteses, aspectos da vida espiritual
paradigmáticos para o seu carisma. Recordemos, por exemplo,
33 “Das coisas divinas, a mais divina é trabalhar pela salvação das almas.” [n.e.]

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144 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Ora et labora (“Reza e trabalha”), dos beneditinos; Contemplari
et contemplata aliis tradere (“Contemplar e transmitir aos outros
as coisas contempladas”), dos dominicanos; Ad majorem Dei
gloriam et ad salutem animarum (“Para a maior glória de Deus
e para a salvação das almas”), da Companhia de Jesus, e outras.
Escreveu o padre Viganò:
A minha convicção é de que não existe nenhuma expressão
sintética que qualifique melhor o espírito salesiano do que esta,
escolhida pelo próprio Dom Bosco: Da mihi animas, caetera tolle.
Essa expressão nos indica uma ardente união com Deus,
que nos faz penetrar o mistério da vida trinitária, manifestada
historicamente nas missões do Filho e do Espírito, qual Amor
infinito ad hominem salutem intentus.34
Salvação integral
Tamanho cuidado e predileção pelas almas não deve fazer
pensar que, para Dom Bosco, o homem se reduzisse à própria
alma, e que esta fosse considerada quase como desvinculada do
corpo. Não! Seu conceito do homem é muito elevado, inspirado
nas páginas bíblicas que falam da Criação. Lê-se em O jovem
instruído que o homem, “de todas as criaturas visíveis, é a mais
perfeita”. Ao criá-lo, Deus o “dotou de alma e de corpo”: de
alma, que é “sopro divino”, “espírito da vida”, livre e imortal,
na qual se reflete “a imagem e a semelhança” com Deus; e de
corpo, que, assim como a alma, é “dom” incomparável de Deus.
“Os nossos olhos, os pés, a boca, a língua, as orelhas, as mãos
são todos dons do Senhor.” A seu modo, o corpo também re-
flete o semblante de Deus. Em outro livreto, Mese di maggio,35
escreve: “Deus criou o corpo com aquelas lindas qualidades que
admiramos nele”.
Dom Bosco exaltou os valores do corpo e os que envolvem
o seu caráter de criatura, embora tenha sempre alertado contra

15.7 Page 147

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Pietro Brocardo 145
o perigo que o corpo, devido aos estragos do pecado, pode re-
presentar para a alma. Em O jovem instruído adverte: “A quem
vos disser que não convém usar tanto rigor com o nosso corpo,
respondei: ‘Quem não quiser sofrer com Jesus Cristo, não po-
derá gozar com Jesus Cristo’”. Mas quando ele fala da salvação
das almas, tem infalivelmente em mira, além da concepção du-
alista própria da espiritualidade daquele tempo, o jovem todo,
que – para provocar Dante Alighieri (1265-1321) – “come e
bebe e dorme e veste panos”. Precisamente porque é concreto e
histórico, o jovem é e será sempre, à luz da fé, o homem criado
por Deus na ordem sobrenatural, caído em Adão, redimido por
Cristo, destinado ao céu.
O trabalho de Dom Bosco padre-educador-pastor, voltado
para a salvação dos jovens, tem sempre como metas concretas
três objetivos práticos, mesclados e indivisíveis.
Primeiro: satisfazer as necessidades materiais e primordiais
dos jovens pobres e abandonados a si mesmos, oferecendo-lhes
“abrigo, alimento e vestuário”, tornando-os “aptos a ganhar
para si honestamente o pão da vida” com um trabalho. Dom
Bosco escreve ao conde Solaro della Margherita: “Se eu negar
um pedaço de pão a esses jovens periclitantes e perigosos, os
exponho a grave risco da alma e do corpo”. Portanto: pão,
trabalho, defesa da vida, dignidade humana.
Segundo: acompanhá-los, com uma pedagogia que tem
como centro e síntese a caridade pastoral de Cristo, no delicado
processo de crescimento e de maturidade humana, cultural e
moral; habilitá-los ao exercício da liberdade responsável e ao
dom de si; e ajudá-los a tomar consciência do seu papel na vida.
Dom Bosco assegurava que todo educador que se respeita e
que respeita a sua causa “deve estar disposto a enfrentar todo
incômodo e fadiga para conseguir o seu fim, que é a educação
civil, moral, científica dos seus jovens”.
34 “Voltado para a salvação do ser humano.” [n.e.]

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146 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Terceiro: educá-los cristãmente, isto é, levar os jovens a
viverem com intensidade sempre crescente a fé e a fazerem
experiência do encontro pessoal com Cristo, Homem perfeito,
na escuta da Palavra, na oração, nos sacramentos e na dedica-
ção ao próximo. Dom Bosco está convencido de que o jovem
carrega sobre os ombros o adulto de amanhã. Uma juventude
vivida cristãmente preanuncia o “bom cristão” do futuro. Ele
não acredita em uma educação puramente humana: a julga
inadequada, insuficiente. “Sem religião é impossível educar a
juventude”, esta era a sua máxima. Acreditava que a religião é
fator fundamental de progresso e de regeneração social: “Quem
quiser regenerar uma cidade ou uma nação não possui outro
meio mais poderoso: é preciso que comece por abrir um bom
oratório festivo”. Educando para a vida de graça e para a amizade
com Cristo, e sem perder de vista as exigências da cidade terrena,
Dom Bosco visa à cidade futura e eterna e, para os melhores
jovens, aponta as metas altíssimas, a santidade consumada.
Se não foi o primeiro a fazer da educação cristã uma fonte de
santidade juvenil, é difícil lhe contestar o mérito de haver dado
à Igreja modelos de santidade heróica. Pela primeira vez na
história da Igreja, como fruto de um método pedagógico, um
jovem, Domingos Sávio, foi canonizado como confessor da fé.36
Acrescentemos, como salienta oportunamente P. Braido,
que esses três fins, presentes na ação educativa de Dom Bosco,
são, na realidade, “um único fim supremo, religioso-moral,
sobrenatural, que inclui em si os condicionamentos terrenos
individuais e sociais”, e não outra coisa. A mística do Da mihi
animas une indissoluvelmente promoção humana e promoção
sobrenatural, com uma insistência toda particular no aspecto
religioso. Esse vínculo intrínseco é reforçado pelo Concílio Va-
ticano II: “A Igreja (...) deve cuidar de toda a vida do homem,
35 “O mês de maio”, livrinho devocional, publicado em 1858. [n.e.]

15.9 Page 149

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Pietro Brocardo 147
também da terrena enquanto conexa com a vocação celeste”
(Gravissimum Educationis, Proêmio).
Capítulo II
Trabalho colossal
A importância que o nosso tempo dá ao tema do trabalho é
demonstrada pela abundande literatura, que procura estudar em
profundidade seus aspectos e seus valores em contínuo desenvol-
vimento. Ainda que desfigurado por certas ideologias, o trabalho
constitui um valor central na sociedade e na cultura de hoje. Faz
emergir um aspecto da missão do homem no mundo: dominar a
natureza, para humanizá-la e colocá-la a serviço da pessoa.
O papa João Paulo II, na Encíclica Laborem Exercens e em
outras numerosas intervenções, traça as linhas de uma espiri-
tualidade do trabalho, que exalta o seu valor, mas desmistifica
qualquer idolatria a respeito. Com efeito, o trabalho não é um
fim em si mesmo, não é um absoluto. Ao contrário, como afirma
o padre Viganò, é “um modo importante de exprimir a pessoa
como co-criadora ou co-redentora sobre a terra e no tempo”:
Para nós, se torna testemunho da tríade espiritual: fé, esperança,
caridade. Neste sentido, não é tanto a qualidade do trabalho que
engrandece a pessoa, mas as motivações e o coração com que é
realizado, ou seja, a medida do amor de caridade que o permeia.
Dom Bosco fez do trabalho a sua bandeira e se santificou
trabalhando, e trabalhando muito. Vejamo-lo.
Atividade incessante
Francesco Orestano, filósofo e membro da Academia da
Itália, escrevendo sobre Dom Bosco, enfatiza a sua grandeza
moral e a sua força de vontade. Depois prossegue nestes termos:

15.10 Page 150

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148 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Por mais importantes que sejam as características do homem e da
sua obra, não é ainda nisso que reside a originalidade de Dom
Bosco. Mas aqui. Necessidades educativas e sociais, profunda-
mente intuídas em perfeita correlação com os novos tempos,
fizeram-no descobrir a grande lei de educar com o trabalho e para o
trabalho. Do trabalho como instrumento educativo, Dom Bosco
depreendeu o extraordinário poder de edificação da personalidade
humana em todos os sentidos e momentos. Trabalho, via eminente
de enobrecimento do espírito: “Não vos recomendo penitências
e disciplinas, mas trabalho, trabalho, trabalho”. E até mesmo
no leito de morte o recomendava a todos os salesianos, que ele
quis ordenados como uma milícia social, não empenhada em
práticas ascéticas, mas totalmente penetrada pelas necessidades
da vida moderna. Nem ele próprio apreciou o trabalho só como
instrumento educativo, mas como conteúdo de vida. Sentiu toda
a dignidade do trabalho também nas aplicações manuais mais
modestas. Procurou aprender e praticar todas de modo exemplar,
e por isso mesmo enobrecê-las. E jamais considerou o trabalho um
meio de enriquecimento – pois, como a sua mãe havia retamente
36 Domingos Sávio foi canonizado em 12 de junho de 1954. Antes dele, outros adolescentes
e jovens tinham sido canonizados, mas na condição de mártires. [n.e.]

16 Pages 151-160

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16.1 Page 151

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sentenciado, julgava o enriquecer-se uma desdita –, mas somente
como plenitude, saúde e santidade de vida.
A citação é pertinente porque dela se infere, com grande clare-
za, o aspecto talvez mais original da pedagogia e da santidade do
santo, o da elevação do homem e do cristão por meio do trabalho
e com o trabalho. Com uma condição, porém: de que o vocábulo
“trabalho” seja tomado na gama de significados que tinha para
Dom Bosco, para o qual era, segundo as circunstâncias, sinônimo
de atividade manual (artesanal, técnica, profissional), intelectual
(escola, estudo, cultura), apostólica (catequese, evangelização, zelo
pastoral), sacerdotal (ação litúrgica, sacramentos) e caritativa (nas
suas diversas formas). Era também um dever de estado: “Entende-
-se por trabalho o cumprimento dos deveres do próprio estado”.
Por essa razão, será o contexto a indicar, segundo as circuns-
tâncias, o significado entendido por Dom Bosco quando fala
de trabalho.
Escada mística
Dom Bosco intuiu a suprema grandeza, a divina virtude
santificadora do trabalho, entendido como atividade apostólica,
caritativa e humanizante, e não hesitou em fazer dessa atividade
a sua escada mística para se dirigir a Deus.
Não separou o trabalho da oração, conforme observou o
cardeal C. Salotti: “Se houve um santo que nos tempos mo-
dernos conseguiu unir e personificar tão maravilhosamente em
si os dois elementos da tradição beneditina ‘rezar e trabalhar’
foi precisamente Dom Bosco”. A oração, porém, não é o que
sobressai nele, não é o seu lema. Afirma C. Colli:
O que aparece para o mundo é o trabalho intenso, desinteressa-

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150 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
do. Dom Bosco é um santo extremamente concreto. Para dizê-lo
com uma expressão um tanto crua, porém verdadeira, não crê em
uma piedade que não se exprima na vida, que não se torne ação,
caridade factível, que não se traduza em um trabalho incessante
por amor a Deus e aos irmãos.
Acrescentemos que no século XIX a oração era ainda uma
realidade tão fortemente inserida no costume cristão, que Dom
Bosco não achou necessário insistir nela, como provavelmente
teria feito em uma situação diversa. Urgia, ao invés, santificar
o trabalho e divinizar a ação. Esse foi o seu carisma. A isso se
sentia inspirado e induzido. Sabia que a palavra não é persuasiva
senão no momento em que se torna ação, e quis que a ação se
tornasse palavra e que as suas idéias tivessem mãos.
Era por temperamento o que chamamos “homem de ação”,
“o empreendor de sucesso”, o “gênio da organização”. O tra-
balho era a sua segunda natureza: “Deus me concedeu a graça
que o trabalho e a fadiga, em vez de serem de peso para mim,
redundassem sempre em alívio”.
O impulso para agir era poderosamente estimulado pelas
novas e imensas necessidades do seu tempo: da condição mi-
serável, de negligência e marginalização, em que era deixada a
juventude. Mas o atraía sobretudo o exemplo de Jesus, o divino
trabalhador de Nazaré, o amigo das crianças e dos humildes,
o apóstolo do Pai continuamente à obra pela nossa salvação:
“Meu Pai trabalha sempre, e eu também trabalho” (Jo 5,17);
“...tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo” (At 1,1).
É esse o modelo que propõe aos seus filhos quando escreve as
Constituições. No segundo artigo lemos: “Jesus Cristo começou
a fazer e ensinar; assim os sócios começarão a aperfeiçoar a si
mesmos com a prática das virtudes internas e externas”.
Quando Dom Bosco cita a Palavra de Deus, demonstra
uma indisfarçável preferência pelos textos que põem em evi-
dência a categoria do fazer, do anúncio, da evangelização. No
volumoso epistolário, a alusão às realidades divinas e à oração

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Pietro Brocardo 151
é quase contínua, muito embora quase nunca na categoria de
tema. São, ao invés, salientadas com cuidado frases deste teor:
Opus fac evangelistae” [“Tu, porém, (...) faze o trabalho de um
evangelista”, 2Tm 4,5]; “Tu vero praedica Verbum opportune et
importune” [“Proclama a Palavra, insiste oportuna e inoportu-
namente”, 2Tm 4,2]; “Opera Dei revelare et confiteri honorificum
est” [“É honroso revelar e celebrar as obras de Deus”, Tb 12,7].
Não foi, no entanto, um pragmatista, nem elevou a práxis a
critério de verdade. Colocou sempre acima de tudo seja a doutrina
da fé, seja o magistério, princípios e valores solidamente adquiri-
dos. Dom Bosco foi “o empreendedor de Deus”, o realista que
antepõe, por instinto, o prático ao teórico, o vivido ao abstrato,
os fatos às palavras, e que não crê na fé sem as obras, nem em
um evangelho que não seja incorporado à vida. Só “aquele que
age segundo a verdade vem à luz” (Jo 3,21). Só a linguagem dos
fatos e das obras lhe parece suficientemente crível. Dizia:
O mundo se tornou material e por isso é preciso trabalhar e tor-
nar conhecido o bem que se faz. Mesmo que alguém realize até
milagres rezando dia e noite na sua cela, o mundo não o considera
e não acredita mais. O mundo tem necessidade de ver e tocar. O
mundo atual quer ver as obras, quer ver o clero trabalhar.
Em uma época na qual se olhava para os religiosos como
pessoas ociosas, inúteis para o progresso da sociedade, Dom
Bosco fundamentou a sua instituição sobre a grande lei do
trabalho, e dizia, não sem humorismo, que a divisa dos seus
religiosos seria “mangas arregaçadas”.
Com a coragem e o ardor dos empreendedores que tornaram
célebre a cidade de Turim – principalmente no último quarto
do século XIX – e sustentado por uma fé inabalável, envia os
seus jovens salesianos, formados “no campo” e pouco em teoria,
para fundar as obras de caridade: oratórios, abrigos, escolas,
colégios, missões.

16.4 Page 154

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152 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Em 1878, tem a audácia de escrever a Leão XIII, recém-
-eleito, para que dirija especial atenção às novas instituições
que o Espírito Santo faz surgir na Igreja:
As famílias religiosas recentes são chamadas pela necessidade dos
tempos. Com a firmeza na fé e com as suas obras materiais devem
combater as idéias de quem vê no homem somente matéria. Tais
pessoas geralmente desprezam quem reza e medita, mas serão
constrangidas a crer nas obras das quais são testemunhas oculares.
Palavras antigas! Mas, se pode dizer, atuais e válidas em escala
planetária, tanto é invocada e exigida por toda a parte a apologia
vitae dos que crêem, o testemunho autenticamente cristão.
As armações
As afirmações ousadas que outros santos emitiram em louvor
à oração, Dom Bosco as fez em louvor ao trabalho. Escreve o
padre Caviglia:
Noventa por cento das palestras feitas aos salesianos são em defesa
do trabalho, da temperança, da pobreza. (...) Eis o escândalo de
um santo, de um santo, podemos dizer, “americano”; exorta muito
mais vezes ao “trabalhemos”, do que ao “rezemos”.
O padre Ceria, por sua vez, observa: “Seria difícil encontrar
outro santo que, na medida de Dom Bosco, tenha conjugado e
feito conjugar o verbo trabalhar”. O santo quis os seus salesianos
alegres, pobres, sóbrios, principalmente muito trabalhadores:
“Trabalho, trabalho, trabalho!”; “Este deveria ser o objetivo e a
glória dos padres: não se cansar nunca de trabalhar. Quantas al-
mas seriam salvas!”; “Quem não sabe trabalhar não é salesiano”.
Queria que o trabalho tivesse a continuidade da respiração:
“Trabalhar sempre (...). Essa deve ser a meta de todo salesiano e
o seu suspiro contínuo”. A idéia da fadiga não devia funcionar

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Pietro Brocardo 153
como pensamento refreador, mas servir de estímulo para mais
realizações: “De nós não se exige dinheiro, mas fadigas”; “É
preciso que busquemos trabalhos superiores às nossas forças, e
assim, quem sabe?, não se consiga chegar a fazer tudo quanto
se pode”.
Causavam-lhe horror a preguiça e o ócio. Chegou a pronun-
ciar esta frase de extremo rigor: “O padre, ou morre de trabalho
ou morre pelo vício”.
O que para outros institutos religiosos eram as penitências
aflitivas, os longos jejuns, para Dom Bosco era o trabalho:
“Meus caros, não vos recomendo penitências e disciplinas, mas
trabalho, trabalho, trabalho”.
Quando considerava o grande trabalho realizado pelos
seus filhos, se comprazia intimamente: “Quando visito as
casas e percebo que há muito o que fazer, fico tranqüilo.
Onde há trabalho, o demônio não está presente”; “É verdade,
o trabalho vai além das forças, mas ninguém se assusta, e
parece que a fadiga é como um segundo nutrimento, depois
do alimento material”.
Estava convencido de que “desde São Pedro até nós, os
tempos nunca foram tão difíceis”, mas queria que, “em lugar de
encher o ar com queixas lamurientas”, se reagisse intensificando
o trabalho: “Trabalhar até não poder mais”.
O papa Pio IX lhe havia dito: “Eu avalio que esteja em me-
lhores condições uma casa religiosa onde se reza pouco, mas
se trabalha muito, do que uma outra na qual se façam muitas
orações e se trabalhe nada ou pouco”. E ainda: “Os noviços,
não os ponha na sacristia, para se tornarem ociosos; ponha-os
a trabalhar, a trabalhar!”.
É o que Dom Bosco vinha fazendo sempre, suscitando
perplexidades e desconfianças em outros religiosos e na própria
autoridade eclesiástica.
Era censurado, por exemplo, por sacrificar o “noviciado as-
cético” e os métodos “tradicionais” da formação, empenhando

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154 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
incautamente os jovens salesianos em atividades apostólicas
dissipadoras e precoces. Mas Dom Bosco se justificava:
A experiência de trinta e três anos nos ensina que essas ocupações
assíduas são um baluarte inexpugnável da moralidade. E tenho
observado que os mais ocupados e os mais trabalhadores se lem-
bram melhor da sua antiga condição, gozam de muita saúde, se
conservam mais virtuosos, e, uma vez sacerdotes, conseguem fruto
abundante do sagrado ministério.
A confirmação do valor do seu método lhe vinha também
dos misteriosos sonhos que, como cartas vindas do céu, marcam
as curvas decisivas da sua existência.
No sonho que teve durante sua visita a Lanzo, em 1876, por
exemplo, o guia que o acompanha faz ver o campo interminável
da ação salesiana e lhe diz em tom peremptório:
Olha, é preciso que tu faças imprimir estas palavras que serão
como o vosso brasão, a vossa palavra de ordem, o vosso distin-
tivo. Anota-o bem: O trabalho e a temperança farão florescer a
Congregação Salesiana. Essas palavras, tu as farás explicar; haverá
de repeti-las e nela insistirás.
Na tradição salesiana, sempre teve extraordinária importân-
cia o sonho dos dez diamantes, ou das dez virtudes, que brilham
com luz fulgurante no manto do personagem que representa
o “modelo do verdadeiro salesiano”. Dois desses diamantes
traziam escrito “trabalho” e “temperança”. Estavam colocados
respectivamente sobre o ombro direito e esquerdo, como se
definissem a figura do salesiano.
Recordemos, por fim, as palavras, talvez as mais importantes
da sua vida, que concluem o seu testamento espiritual:
Quando suceder que um salesiano sucumba ou cesse de viver tra-
balhando pelas almas, então direis que a nossa Congregação obteve
um grande triunfo e sobre ela descerão copiosas as bênçãos do céu.

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Pietro Brocardo 155
No leito de morte, recomendou pelo menos duas vezes a
dom Cagliero: “Diga a todos os salesianos que trabalhem com
zelo e ardor: trabalho, trabalho”.
O testemunho
Mais alto que as palavras, porém, é o testemunho da sua
vida. Uma vida, como a definiu Pio XI, “que foi um verdadeiro,
próprio e grande martírio: uma vida de trabalho colossal que,
só de observá-la, dava a impressão de sufoco”.
Custa a acreditar que um único homem tenha podido traba-
lhar tanto e atender a tantas coisas a um só tempo. A. Cavaglia
escreve que em Dom Bosco parecem atuar, em simultaneidade,
várias pessoas:
O educador e o pedagogo, o pai dos órfãos e o que reúne
crianças abandonadas, o fundador de congregações religiosas,
o propagador do culto a Maria Auxiliadora, o instituidor de
uniões leigas espalhadas pelo mundo inteiro, o suscitador da
caridade operante, o pregoeiro de missões longínquas, o escritor
popular de livros morais e apologias religiosas, o propugnador
da imprensa honesta e católica, o criador de oficinas cristãs e de
coleções de livros, o homem da piedade religiosa e da caridade
e o homem dos negócios humanos e de interesse público: todos
juntos, a um só tempo, agem e avançam como se fossem outras
tantas pessoas nascidas ou destinadas somente àquilo, e se fun-
dam na única pessoa de um padre sem aparências, que não altera
nunca a serenidade do seu aspecto nem a modéstia composta do
seu porte com grandes gestos decorativos, nem enriquece o seu
vocabulário com a retórica das grandes frases.
Tamanha multiplicidade de aspectos era, porém, unificada,
ao nível de profundidade, pela idéia que domina a sua vida: a
salvação das almas e a glória de Deus.
A Providência havia dotado Dom Bosco de têmpera para o

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156 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
trabalho desde os anos difíceis da infância pobre. Sabemos que
fez de tudo: foi pastor de rebanhos, trabalhador do campo, cria-
do, alfaiate, ferreiro, garçom de café, confeiteiro, saltimbanco,
repetidor, estudante, sacristão, barbeiro. Passou de um patrão
a outro, experimentando como “é salgado” o pão dos outros.
Essa experiência deixará nele marca indelével: será sempre
sensível aos problemas da juventude pobre e marginalizada e
aos das classes trabalhadoras, além de formidável trabalhador
e realizador. Em 1878 escrevia à condessa Ugoccioni:
As coisas não andam só a vapor, mas como o telégrafo. Em um
ano, com a ajuda de Deus e com a caridade dos nossos benfeito-
res, pudemos abrir vinte casas. Vede como cresceu a sua família.
Fiel a um antigo propósito seu, na maturidade não concedia
ao sono mais que cinco horas por noite. Dom Bertagna depôs
nos processos:
Pode-se dizer que Dom Bosco passou metade das noites traba-
lhando, e por mais de uma vez o ouvi dizer que, quando gozava
de mais saúde, diversas vezes passava até duas noites à mesinha,
escrevendo. Não obstante isso, de manhã se encontrava na sacristia
para rezar a missa e ouvir as confissões por diversas horas.
Nos primeiros tempos do Oratório, em certas ocasiões,
confessava também durante muitas horas ao dia.
No auge da sua capacidade de trabalho, escrevia com veloci-
dade surpreendente e de próprio punho até 250 cartas em um
dia. Ele costumava dizer: “Faço o trabalho passar sob os meus
dedos (...); adquiri uma rapidez que não sei se é possível dizer
que seja maior”. Muitas vezes se punha à escrivaninha às 2 da
tarde e permanecia até às 8, para depois ainda retomar. “Faz
vários meses que me ponho à mesinha às 2 horas da tarde e me
levanto às 8 para ir jantar.”
A “fadiga mortal” a que o forçavam as preocupações cotidianas

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Pietro Brocardo 157
transpira das cartas em desabafos repentinos que não deixam de
comover: “O trabalho me faz ficar doido”; “Estou tão cansado
que não agüento mais fazê-lo”; “Estou muito cansado”.
E era verdade. Pode-se dizer que não conheceu outro repouso
que o do túmulo. Depôs o cardeal Cagliero:
Não me recordo que em toda a sua vida tenha tirado um dia de
folga para desporto ou para repousar, e freqüentemente estando
nós cansados e alquebrados pelo trabalho, nos dizia: “Coragem,
coragem, trabalhemos, trabalhemos sempre, porque lá em cima
teremos um repouso eterno”.
Morreu quebrantado pelo excesso de trabalho, mártir – não
em sentido metafórico – de uma fadiga que não conheceu pausa.
Suas “vigílias e fadigas materiais exageradas e lhe consumiram
a vida”, lemos na rápida e curiosa biografia do seu médico
assistente. Ele prossegue:
De início inadvertidamente, e depois, por volta de 1880 [oito
anos antes da morte], se pode dizer que o seu organismo estava
quase reduzido a um laboratório ambulante de patologia, no
meio do qual, todavia, brilhava ainda uma mente sempre ativa e
sempre ansiosa por alcançar a sua gloriosa meta.
A laboriosidade do “velho padre”, do “filantropo do século
XIX”, do “católico intransigentíssimo” pareceu, às pessoas
daquele tempo, inacreditável e lendária. Na morte de Dom
Bosco, os jornais definiram a sua fadiga e operosidade como
“prodigiosa” (L’Illustrazione popolare), “gigantesca” (La patrie),
“enorme e no grau máximo” (La perseveranza), “fenomenal” (Il
fanfulla). Neste mesmo jornal se lê: “Se Dom Bosco tivesse sido
ministro das finanças, a Itália seria economicamente a primeira
nação do mundo”. Nos Processos Apostólicos, o promotor da fé
não hesitou em declará-lo um dos maiores apóstolos da Igreja
do século XIX:

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158 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
A multiplicidade e fecundidade das suas obras tem algo prodigio-
so: o seu zelo pela salvação das almas e pela difusão do Reino de
Cristo sobre a terra foi tão intenso e contínuo, que a história, com
legítima razão, o proclama apóstolo grandíssimo – maximum – do
século XIX.
Capítulo III
Trabalho a dois
Santo repleto de Deus, Dom Bosco é contemporaneamente
santo pleno de Maria. Com efeito, toda a sua vida, depois de
Deus e na dependência de Deus, gira em torno da Virgem.
Antes do sonho dos 9 anos, Maria constitui já uma presença
viva na sua existência, por mérito da santa mãe terrena: “Meu
filho João, quando vieste ao mundo, eu te consagrei à Bem-
-aventurada Virgem”. No sonho, lhe dirá Jesus: “Eu sou o Filho
daquela que a tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia”.
Mas a Virgem não se limita a passar pela mediação de Mamãe
Margarida. Ela irrompe diretamente na vida do pastorzinho
dos Becchi como luz do alto, primeiro no sonho dos 9 anos e
depois nos outros sonhos marianos.
Os olhos de Dom Bosco viram a face de Maria. Ele dirá
aos seus jovens no famoso sonho do caramanchão de rosas,
acontecido em 1847, mas só contado em 1864:
Para que cada um de vós tenha a garantia de que é a Bem-
-aventurada Virgem que quer a nossa Congregação, vos contarei
não já a descrição de um sonho, mas também o que a própria
Bem-aventurada Mãe se dignou de me fazer ver. Ela quer que
depositemos nela toda a confiança.
Lêem-se, no sonho, frases como: “A Bem-aventurada Virgem
me disse”; “Ela então me disse”; “Logo que a Mãe de Deus
acabou de falar”.

17 Pages 161-170

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17.1 Page 161

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Pietro Brocardo 159
A devoção a Maria – afirmam testemunhas autorizadas –
estava no vértice dos seus pensamentos. Parecia não viver senão
para ela: “Como é realmente boa Nossa Senhora! Quanto nos
quer bem!”
Dom Bosco foi percebendo com lucidez sempre maior a
iniciativa de Deus na sua vida de fundador, mas teve também a
certeza de ser em tudo conduzido e guiado pela mão de Maria:
“Maria Santíssima é a fundadora e será a sustentação da nossa
obra”; “Maria é a mãe e o sustentáculo da Congregação”.
Comenta a respeito o padre Viganò: “A Congregação nasceu
e cresceu por intervenção de Maria e será renovada à medida
que a Mãe de Deus ocupar novamente o lugar que lhe compete
em nosso carisma”.
No Oratório, nada devia ser feito senão em nome de Maria,
“a mais santa, a mais amável das criaturas, a grande Mãe de
Deus, sempre pura e imaculada”.
Maria é “a onipotência supplex” onipresente na sua vida; é
a Mestra, a Guia, a Pastora, a Senhora, a Rainha dos seus so-
nhos; é a sua Pedinte, a sua Taumaturga e muitas outras coisas.
Mas será sempre para ele, em tudo e acima de tudo, a Mãe do
Salvador e da Igreja, a Imaculada, toda pura e cheia de graça,
a Auxiliadora poderosa dos cristãos.
Mãe, Imaculada, Auxiliadora: é essa a Nossa Senhora que

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Dom Bosco coloca no vértice da sua pedagogia e da sua ação
sacerdotal, apostólica e missionária. É ela quem sustenta o cli-
ma espiritual mariano que se vive no Oratório – e também nas
outras obras – e se exprime nas formas mais variadas e sinceras
de uma genuína piedade popular. O exemplo partia do santo,
que sempre, especialmente nas encruzilhadas mais decisivas da
sua vida, se voltava para ela com a familiaridade e a confiança
próprias de um filho para com a mãe. Quando beijava a meda-
lha ou uma imagem da Virgem, quem o observasse podia ter a
impressão de que beijasse uma pessoa viva.
A devoção de Dom Bosco à Mãe de Deus pode ser vista
de diferentes ângulos. Queremos salientar aqui o destaque
que a presença de Maria Auxiliadora teve na sua vida. Ele foi,
incontestavelmente, o maior apóstolo dessa devoção. Sabemos
que Dom Bosco passou por diversas experiências marianas: foi
devoto de Nossa Senhora do Castelo (Castelnuovo), de Nossa
Senhora das Dores (casa da família Moglia), de Nossa Senhora
da Escada, do Santíssimo Rosário, da Imaculada (Chieri), da
Consolação (Turim), de Nossa Senhora de Oropa (Biella).
Por razões que, por um lado, se ligam ao início do Oratório,
em 8 de dezembro de 1841, e, por outro, ao movimento ma-
riano em honra da Imaculada Conceição, que culminará com a
definição dogmática de 1854, as suas preferências apontam logo
para o culto da Imaculada. A festa de 8 de dezembro permanece
no centro da sua metodologia pastoral e pedagógica. Costu-
mava lembrar aos seus discípulos: “De tudo somos devedores
a Maria: todas as nossas maiores obras tiveram o seu princípio
no dia da Imaculada”.
Só por volta de 1862, quando já está próximo dos 50 anos,
Dom Bosco assume, no culto e na preferência, a devoção a

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Pietro Brocardo 161
Maria Auxiliadora, por uma série de razões que não é o caso
de considerar aqui. Lembremos apenas as de ordem prática,
como se pode perceber na seguinte confidência feita ao então
seminarista Albera:
Confessei muito e, a bem da verdade, quase não sei o que disse
ou fiz, por causa de uma idéia que me preocupava e que, ao me
distrair, me tirava insensivelmente para fora de mim. Eu pensava:
a nossa igreja é demasiado pequena, não pode conter todos os
jovens (...). Faremos para eles uma outra, mais bela, maior, que
seja magnífica. Dar-lhe-emos o título de Maria Auxiliadora.
E as razões de ordem pastoral ou apologética, como as deste
testemunho do cardeal Cagliero:
Nossa Senhora quer que a honremos sob o título de Maria
Auxiliadora: os tempos correm tão tristes que, de fato, temos
necessidade de que a Virgem Santíssima nos ajude a conservar e
defender a fé cristã.
Não lhe foram estranhas as aparições da Auxiliadora ocorri-
das nas proximidades de Spoleto, em março 1862, nem outras
contingências históricas e ilustrações celestes.
Auxiliadora, presença viva
Por certo não faltam elementos que mostram a presença de
Maria Auxiliadora na vida de Dom Bosco já antes dessa data,
mas a preferência determinante pelo seu culto tem um ponto
de referência preciso: 1861-1863. Escreve o padre Viganò:
Essa permanecerá a escolha mariana definitiva: o ponto de chegada
de um incessante crescimento vocacional e o centro de expansão
do seu carisma de fundador. Na Auxiliadora, Dom Bosco reco-
nhece finalmente delineado o semblante da Senhora que deu início
à sua vocação e foi e será sempre a sua Inspiradora e Mestra.

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162 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Todavia, esse ponto de chegada é ainda um ponto de par-
tida. Estamos nos últimos vinte e cinco anos de vida de Dom
Bosco. São os anos da plena maturidade humana e espiritual,
que coincidem com a afirmação e a sistematização definitiva
da Congregação e com a sua expansão mundial e missionária.
São sobretudo os anos nos quais o santo se sente sempre mais
implicado e inserido na realidade, freqüentemente dramática,
da Igreja e da nova realidade italiana, como sacerdote educador
e como apóstolo.
Pois bem, esse grande período da história de Dom Bosco é
assinalado por uma presença mais viva, mais comprometida de
Maria, a “Mãe amorosíssima” e “a poderosa Imaculada”, como
ele não se cansará de dizer, mas agora venerada e sentida, de
maneira quase totalizante, na sua função de Auxiliadora, quer
dos indivíduos, quer da comunidade cristã: Maria Auxilium
Christianorum.
Há duas razões fundamentais para a escolha desse título, para
além de outros motivos, implícitos e explícitos: a primeira, pela
lúcida intuição da atualidade do culto de Maria Auxiliadora
na Igreja do seu tempo; a segunda, pelo alcance, dificilmente
calculável, que virá a ter na história salesiana a construção e a
existência da Basílica de Maria Auxiliadora em Valdocco.
Atualidade do culto de Maria Auxiliadora
Com referência ao primeiro ponto, o próprio Dom Bosco
nos informa no texto da introdução – que tirou de A. Nicolas
– ao opúsculo Meraviglie della Madre di Dio invocata sotto il
titolo di Maria Ausiliatrice.37 Assim lemos:
O título de Auxilium Christianorum atribuído à augusta Mãe do
Salvador não é coisa nova na Igreja de Jesus Cristo. Nos próprios
livros santos do Antigo Testamento, Maria é chamada Rainha que

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Pietro Brocardo 163
está à direita do seu divino Filho, vestida de ouro e circundada
de variedades (...). Nesse sentido Maria foi saudada auxílio dos
cristãos desde os primeiros tempos do cristianismo.
O recurso a Maria Auxiliadora se impôs em virtude das
extraordinárias dificuldades em que a Igreja se debatia então:
Uma razão toda particular pela qual, nestes últimos tempos,
a Igreja quer assinalar o título de Auxilium Christianorum é a
aduzida pelo padre Parisis com as seguintes palavras: “Quase
sempre, nas vezes em que o gênero humano se encontrou em crises
extraordinárias, se dignou, para delas sair, reconhecer e bendizer
uma nova perfeição nesta admirável criatura, Maria Santíssima,
que cá embaixo é o mais magnífico reflexo das perfeições do
Criador”. A necessidade sentida hoje universalmente de invocar
Maria não é particular, mas geral. Já não se trata de tíbios a serem
afervorados, de pecadores a serem convertidos, de inocentes a
serem preservados. Essas coisas são sempre úteis em todo lugar
e a qualquer pessoa. Mas se trata da própria Igreja Católica que
é atacada. É atacada nas suas funções, nas suas sagradas institui-
ções, no seu Chefe, na sua doutrina, na sua disciplina; é atacada
como Igreja Católica, como centro da verdade, como mestra de
todos os fiéis. E é precisamente para ser dignos de uma especial
proteção do céu que se recorre a Maria como Mãe comum, como
especial Auxiliadora.
Pouco mais adiante, no mesmo opúsculo, Dom Bosco não
hesitará em fazer sua esta afirmação:
Uma experiência de dezoito séculos nos faz ver de modo muito claro
que Maria continuou do céu, e com o maior sucesso, a sua missão de
Mãe da Igreja e Auxiliadora dos cristãos que havia começado na terra.
Sobre esse texto, comenta o padre Viganò:
O título de Mãe da Igreja está evidentemente como fundamen-
to do de Auxiliadora. Título de valor excelentemente eclesial e

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164 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
da mais viva atualidade na época de Dom Bosco, que via com
preocupação as especiais e crescentes dificuldades surgidas para a
Igreja: os graves problemas das relações entre fé e política, a queda
(depois de mais de um milênio) dos Estados Pontifícios, a situação
delicada do papa e das sedes episcopais, a necessidade urgente de
um novo tipo de pastoral e de novas relações entre hierarquia e
laicato, as incipientes ideologias de massa etc.
Essa dura realidade empenhava o zelo de Dom Bosco pela
causa da fé e da Igreja, e reavivava o seu recurso a Maria Auxi-
liadora. Lemos nas Memórias biográficas:
Ao recordar as maravilhas operadas por Nossa Senhora, além da
necessidade de um desafogo ao seu imenso afeto pela Mãe de
Deus, ele tinha por escopo beneficiar o próximo. Queria reavivar
em todo o mundo uma confiança ilimitada naquela que, em meio
às angústias, tribulações, erros e perigos, era e sempre teria sido
a amorosa, a pronta, a sua poderosa Auxiliadora.
Fortalecido pela confiança em Maria Auxiliadora, depois do
famoso sonho sobre o futuro da Igreja e da Europa, em 2 de
fevereiro de 1872, Dom Bosco não hesitará em escrever ao papa
Pio IX, em nome do céu: “A grande Rainha será o teu auxílio
e, como nos tempos passados, assim para o futuro, será sempre
magnum et singulare in Ecclesia praesidium”.38
Na sua consciência de crente, ele não duvidava absoluta-
mente que a Bem-aventurada Virgem, Mãe espiritual da Igreja,
“invocada sob os títulos de Advogada, Auxiliadora, Adjutriz,
Medianeira” (LG 62) – expressões caras a ele –, o teria assistido
e socorrido com o seu materno auxílio.
Maria edicou a própria casa
Tudo isso, no entanto, não teria feito dele o grande apóstolo
37 Maravilhas da Mãe de Deus invocada sob o título de Maria Auxiliadora. [n.e.]

17.7 Page 167

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Pietro Brocardo 165
de Maria Auxiliadora, se não houvesse passado pela experiência,
transbordante de sobrenatural, da construção da Basílica de
Maria Auxiliadora, em Turim, e se essa igreja não se houvesse
tornado o coração e o “centro da Congregação”, a “igreja-mãe”
da Família Salesiana.
É quase impossível dizer o que o templo de Valdocco signi-
ficou na vida íntima de Dom Bosco e o que representou e re-
presenta na história da Congregação e – por meio dos membros
da Família Salesiana – na piedade mariana da Igreja universal.
Diferentemente do que lemos na história de outros san-
tuários célebres, que tiveram a sua origem, o mais das vezes,
em estrepitosas aparições de Maria Santíssima – pensemos em
Lourdes, em Fátima, em La Salette –, o de Valdocco surge por
cálculo de uma pedagogia pastoral sábia e por exigências con-
cretas, embora não faltem intervenções sobrenaturais.
Ao contrário, o que surpreendeu primeiro Dom Bosco, e
depois o mundo, é o fato que Maria tenha praticamente cons-
truído a sua “casa” contra toda previsão humana: “Aedificavit
sibi domum Maria”.39
É esse o milagre que o teólogo Margotti não estava disposto
a negar:
Dizem que Dom Bosco faz milagres, e eu não creio. Mas aqui há
um que não posso negar, e é este suntuoso templo, que custa cerca
de 1 milhão – hoje estaremos na ordem dos bilhões – e foi levantado
em três anos, apenas com as ofertas espontâneas dos fiéis.
Dom Bosco era guiado pelo alto, mas caminhava com os pés
na terra, e, como homem prático que era, havia calculado bem
os gastos antes de dar início aos trabalhos. Certificou-se de que
teria apoio financeiro de pessoas influentes e abastadas, mas,
na hora do acerto de contas, foi deixado sozinho. A verdade é
esta: “Quando se tratou de começar os trabalhos, eu não tinha
dinheiro algum a ser gasto com esse objetivo”. E aqui segue

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166 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
um daqueles raciocínios que só os santos sabem fazer: “De um
lado, tinha certeza de que aquele edifício era para maior glória
de Deus e, de outro, havia falta absoluta dos meios”.
Seria esse um dilema sem saída, porém Dom Bosco media as
coisas com parâmetros superiores. Qual foi a sua conclusão? Ei-la:
Percebeu-se então claramente que a Rainha do céu queria, não os
corpos morais (os apoios das autoridades etc.), mas sim os corpos
reais, isto é, os verdadeiros devotos de Maria. (...) E ela mesma quis
tomar a iniciativa e dar a conhecer que, sendo obra sua, ela própria
queria edificá-la: “Aedificavit sibi domum Maria”.
Os trabalhos começaram do nada. Dom Bosco não se pou-
pava, mas alguém, na sombra, trabalhava com ele e por ele.
Esse alguém era Maria Auxiliadora. Com isso, se intensificou
esse “trabalho a dois”, entre Dom Bosco e Maria Auxiliadora,
esse “fazer as coisas juntos”, essa “misteriosa cooperação” que,
se possuía origens que remontam ao primeiro sonho, agora
havia se tornado mais forte, mais contínua, e quase irresistível.
A construção material do templo se enriquecia a cada dia com
fatos extraordinários, que deixavam o próprio Dom Bosco sur-
preso e quase amedrontado, tanto que sentiu a necessidade de
consultar dom Bertagna, o qual, em um precioso testemunho
do Processo Ordinário, faz esta afirmação:
Creio ser verdadeiro o fato que Dom Bosco tivesse o dom sobre-
natural de curar enfermos. Isso ouvi dele próprio, por ocasião dos
exercícios espirituais que fizemos no santuário de Santo Inácio,
em Lanzo. Ele contava isso, a fim de receber conselho no sentido
de saber se continuava a abençoar os enfermos com as imagens
de Maria Auxiliadora e do Salvador. Pois, dizia, surgia um rumor
a respeito das muitas curas que aconteciam, e que tinham um ar
de prodigiosas, depois das bênçãos distribuídas por ele. E tenho
38 “Grande e especial protetora da Igreja.” [n.e.]

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Pietro Brocardo 167
para mim que Dom Bosco dissesse a verdade. Bem ou mal, achei
melhor aconselhar Dom Bosco a prosseguir com as bênçãos.
Dom Bosco retomou o seu caminho, mais tranqüilo. Dis-
tribuía a bênção de Maria Auxiliadora e exortava os devotos a
honrá-la com a santidade da vida e com alguma dádiva para o seu
templo. E Maria o escutava: os enfermos saravam, os problemas
insolúveis se resolviam, as curas espirituais se multiplicavam. Era
evidente que a Auxiliadora concedia crédito ao seu servo fiel.
Sobre esse fenômeno, escreve o santo: “Se eu quisesse expor
a multidão dos fatos [extraordinários e milagrosos], deveria fazer
com eles não um opúsculo, mas grandes volumes”. Trata-se,
obviamente, de um modo hiperbólico de se expressar, mas que
se apóia sobre um sólido fundamento. Tem razão o padre Ceria:
Igreja verdadeiramente milagrosa esta de Maria Auxiliadora:
milagrosa por ter sido mostrada muito tempo antes ao santo no
seu lugar e na sua forma; milagrosa na ereção, porque só meios
providenciais permitiram a Dom Bosco, pobre e pai dos pobres,
erguê-la; milagrosa pelo rio de graças que não cessou nunca de
jorrar, como de uma fonte inexaurível.
Dom Bosco é sincero nestas palavras:
Conduzimos este edifício majestoso, com um gasto surpreendente,
sem que alguém tenha feito nunca uma coleta especial. Quem
acreditaria nisso? A sexta parte da despesa foi coberta com ofertas
de pessoas devotas. O restante, com donativos feitos por graças
recebidas.
A consciência popular não tardou em descobrir a maravilho-
sa aliança entre Maria Auxiliadora e Dom Bosco, a incindível
ligação que os unia: Dom Bosco era verdadeiramente o “santo
de Maria Auxiliadora” e Maria Auxiliadora era realmente a
39 “Maria edificou para si uma casa.” [n.e.]

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168 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
“Nossa Senhora de Dom Bosco”. Essa denominação, nascida
da intuição de fé dos crentes, passou para a história.
Dom Bosco, na sua humildade, nunca parou de dizer que
aquilo não era obra dele e que quem tudo fazia era a Auxiliadora:
Eu não sou o autor das grandes coisas que vedes. É o Senhor, é
Maria Santíssima que se dignaram se servir de um pobre padre
para realizar tais obras. Não coloquei nada de meu. Aedificavit sibi
domum Maria. Cada pedra, cada ornamento assinala uma graça.
Maria fez com que [a igreja] fosse erguida à força de milagres.
A partir da existência desse santuário, a Auxiliadora se torna
a expressão mariana característica do espírito e do apostolado
de Dom Bosco: a sua vocação apostólica lhe aparecerá toda
como obra de Maria Auxiliadora e as suas múltiplas e grandes
iniciativas, particularmente a Sociedade de São Francisco de
Sales, o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora e a grande
Família Salesiana, serão vistas por ele como fundações desejadas
e cuidadas pela Auxiliadora.
Afirma o padre Viganò:
Acredito poder afirmar que a existência do santuário se tor-
nou, pela experiência viva de tantas graças concretas, mais
significativa de quanto talvez houvesse pensado inicialmente
o próprio Dom Bosco. A luz que se irradia do templo de Val-
docco transcende as preocupações pastorais locais e a própria
história do título, para fazer dele uma realidade, em parte,
nova e maior: um lugar privilegiado da presença materna e
do socorro de Maria.
A Basílica de Valdocco, portanto, é um santuário – entendido
como lugar que oferece, por sua natureza, uma presença incisiva
de Deus, de Cristo, como também de Maria – de repercussão
não só para a cidade de Turim, mas nacional e mundial, aberto
às exigências espirituais e apostólicas da Igreja universal. Ra-
ras vezes aconteceu que um título mariano se difundisse com
tanta rapidez, entre os católicos, como o de Maria Auxiliadora.

18 Pages 171-180

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Pietro Brocardo 169
Provam-no os inumeráveis quadros, altares e igrejas dedicados
ao seu culto em todo o mundo.
O quadro idealizado por Dom Bosco
A “Nossa Senhora de Dom Bosco” tem a sua expressão
clássica no quadro de T. Lorenzone que se encontra no altar
maior da basílica. Essa pintura exprime bem o sentimento
íntimo do santo e o estado de espírito dos católicos, em luta
e necessitados de segurança, de proteção da parte de “Maria,
Rainha e Mãe da Igreja”.
Na sua mente, o santo almejava algo ainda mais esplêndido
e grandioso. O pintor, quando o ouviu falar do quadro como
de algo já contemplado há longo tempo, se espantou com a
ousadia do projeto:
No alto, Maria Santíssima entre os coros dos anjos; ao redor
dela, mais próximos, os apóstolos; a seguir os coros dos profetas,
das virgens e dos confessores. Na terra, os emblemas das grandes
vitórias de Maria e os povos das diversas partes do mundo com
as mãos elevadas, pedindo a ela ajuda.
A sua concepção da história da salvação o levou a situar a
Igreja no coração do mundo. E no coração da Igreja ele contem-
plava Maria Auxiliadora, o desabrochar da Igreja antes da Igreja,
a Mãe onipotente, a vencedora do mal, sempre em dependência
de Cristo, seu Filho. O quadro foi reduzido a proporções viáveis,
mas a idéia inspiradora permaneceu.
Essa idéia é prenhe de significado eclesial: exprime, por meio
da imagem, o modo peculiar de Dom Bosco sentir e viver a sua
pertença à Igreja de Cristo. A sua eclesiologia, própria do tempo
em que viveu, salienta demasiado unilateralmente, é verdade, o
aspecto jurídico-institucional em detrimento da visão que privilegia
o mistério de comunhão. Mas a vocação de padre consagrado à
salvação das almas e o carisma de fundador, dom de Deus a toda

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170 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
a Igreja, dão destaque ao seu viver “cum ecclesia et pro ecclesia”,40
numa perspectiva universal. Nessa ótica, afirma C. Colli, “o
anseio plenamente sacerdotal de Dom Bosco pela salvação das
almas se liga intimamente e se prolonga em um amor ardente
pela Igreja, que é instrumento dessa salvação”. E acrescenta:
Esse amor é solidariedade íntima com a sua vida (com seus anseios
e suas alegrias, com suas lutas e seus triunfos), mas que em Dom
Bosco é, sobretudo, colaboração factível e criativa com a sua ação:
nada de mais congenial a Dom Bosco, homem do concreto e da
ação, que traduzir o amor pela Igreja em ações e em obras que
respondam às necessidades e exigências dela.
A prova “são as obras acontecidas”.
Capítulo IV
Forte mensagem de castidade
Desde os primeiros anos de sacerdócio, pregando e confes-
sando os fiéis, Dom Bosco não ignorou os diversos aspectos da
castidade, virtude satélite da temperança, proposta por Jesus
como ideal de vida. Não se pode absolutamente pensar que es-
tivesse despreparado em um campo tão essencial para um padre
educador e confessor. Mas o seu interesse foi aos poucos se con-
centrando, em termos quase exclusivos, sobre a castidade juvenil e
sobre a castidade consagrada em vista do Reino, professada pelos
salesianos e pelas salesianas. É o que se deduz das palestras aos
jovens, das boas-noites, das conferências, das máximas, de certos
sonhos cujo simbolismo transparece claramente.
Mas junto com o vocábulo “castidade” ele usa também, com
bastante freqüência, o termo “pureza”, que já é, em si, uma pa-
lavra polivalente, como precisa o Grande dizionario della lingua
italiana, de Salvatore Battaglia (vol. XIV, p. 1018):
Pureza, sf. Honestidade, integridade moral; ausência de malícia,
genuinidade de sentimentos; retidão. Em especial: castidade, seja

18.3 Page 173

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Pietro Brocardo 171
como rejeição ou desapego dos desejos sensuais, seja como abs-
tenção dos prazeres do sexo (que comporta a zelosa conservação
da virgindade).41
A tradição salesiana, sem esquecer a palavra “castidade”, acaba
por preferir, com o passar do tempo, o termo “pureza”. O quarto
sucessor de Dom Bosco, o padre Pietro Ricaldone, por exem-
plo, escreveu uma circular intitulada “Santidade é pureza”, em
memória da canonização de São João Bosco, em 31 de janeiro
de 1935. Também o padre Viganò se exprime nestes termos:
No espírito de Dom Bosco há uma forte mensagem de pureza.
A tradição salesiana e o testemunho das origens confirmam-no
abundantemente. Trata-se de uma mensagem especial que po-
demos chamar de “simpatia pela pureza”. Essa simpatia é uma
constante da sua vida, um traço característico do seu espírito.
“O que nos deve distinguir – são as palavras do santo – entre os
outros, o que deve constituir o caráter de nossa Congregação é a
virtude da castidade”. Dizia ainda: “O que deve distinguir a nossa
Congregação é a castidade, como a pobreza distingue os filhos de
São Francisco de Assis, e a obediência, os filhos de Santo Inácio”;
“A castidade deve ser o eixo de todas as nossas ações”.
Essas afirmações categóricas de Dom Bosco e do seu sétimo
sucessor fazem da castidade um dos pólos luminosos da iden-
tidade salesiana.
Mesmo tão circunscrito, o tema oferece muitos pontos
para reflexão. Limitamo-nos a destacar apenas três aspectos,
típicos de Dom Bosco: a predileção pessoal pela pureza, a
força do seu exemplo e da sua mensagem e a relação dialética
entre pureza e amorevolezza.
Predileção pela pureza
40 “Com a Igreja e pela Igreja.” [n.e.]

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Antes de avançar nesse assunto, se faz necessário, obviamen-
te, ter consciência da grande diversidade de cultura, de mentali-
dade e de expressões com que eram consideradas a sensualidade
e a sexualidade na época de Dom Bosco e como são consideradas
hoje. Passou-se de uma linguagem velada, reticente e de uma
apreciação quase negativa a uma consideração mais positiva,
cuidadosa e empenhada – também nos documentos da Igreja
– e, além de tudo, mais conforme à mensagem da Revelação.
Somente quem esquece que em nenhum outro âmbito do
viver humano tenham, talvez, ocorrido tantas mudanças de
costume como na esfera da sexualidade, pode se maravilhar
dessa evolução. Os raciocínios de São Bernardino de Sena, por
exemplo, em matéria de castidade, seriam inconcebíveis hoje.
Na cultura pós-moderna, estofada de sexo, há quem seja de
opinião que não tem mais sentido falar de pureza. Mas a perda da
relação harmoniosa entre o corpo e as insuprimíveis aspirações do
espírito é uma das causas, não última, da angústia que caracteriza
o ser humano de hoje. A verdade é que hoje, mais do que ontem,
a castidade não perdeu nada do seu fascínio e do seu brilho.
Em uma das cartas que Giorgio La Pira, docente universitá-
rio e homem político, escreve ao amigo Salvatore Quasimodo,
Prêmio Nobel de literatura, mas que percorria caminhos bem
diferentes, se lê:
Uma coisa eu te recomendo, a mais bela entre as próprias gemas
do paraíso: a pureza. É ela a marca das almas cristãs: é o sinal
41 Dentre os sentidos apontados pelo Dicionário Houaiss, estão: “2 p.metf. virtude do que não
tem maldade nem malícia; candura, sinceridade <ele não faria tal maldade porque é de uma
p. a toda prova> 3 p.metf. estado ou qualidade de quem, esp. no comportamento sexual, tem
conduta imaculada, não conhece ou não é dado a libertinagens, perversões, pornografias etc.;
virgindade, castidade, inocência”. [n.e.]

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Pietro Brocardo 173
palpável da presença de Cristo em nós. É preciso ser puros
como a Virgem; o nosso corpo é destinado a ser tabernáculo
do Altíssimo.
A Madre Teresa de Calcutá assim reza:
Ó Maria, Mãe de Jesus, dá-me o teu coração, tão belo, tão puro
e imaculado, o teu coração tão cheio de amor, a fim de que
possamos receber Jesus no Pão de vida, servi-lo como tu o serves
escondido nos pobres.
E recomenda Dom Bosco aos seus salesianos: “A virtude
que se deve cultivar sumamente e ter sempre diante dos olhos,
virtude angélica, virtude mais que todas cara ao Filho de Deus,
é a virtude da castidade”.
Percorrendo a vida do santo, não é difícil constatar que,
em vista da futura missão juvenil, o Espírito Santo infundiu
nele, desde a primeira infância, uma extraordinária atração e
uma verdadeira predileção pela castidade e as suas virtudes
complementares, como a modéstia, o pudor, a reserva etc.
Essa predileção foi crescendo com o tempo, até alcançar uma
plenitude resplandecente.
A pureza da primeira idade ele deve certamente muito à
educação e à vigilância materna, ao ambiente camponês, de
costumes simples e austeros, e ao clima das escolas públicas e,
depois, do seminário, nos anos transcorridos na cidadezinha de
Chieri, onde os estudantes, em virtude do regulamento escolar
de Carlo Felice, eram obrigados a uma prática religiosa quase
monástica. Sobre essa experiência, escreve Dom Bosco: “No
espaço de quatro anos, em que freqüentei aquelas escolas, não
me lembro de ter ouvido uma frase ou uma palavra que fosse
contrária aos bons costumes ou à religião”.
Como padre em Turim, a partir de 1841, a castidade se
torna mais que nunca um ponto focal da sua vida. A sua rica

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174 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
personalidade de sacerdote enviado aos jovens pobres e aban-
donados, expostos a todos os perigos e famintos de afeto como
de pão, explode na riqueza dos dotes humanos, das capacidades
intuitivas e pastorais, da grandeza da sua vida interior, consa-
grada inteiramente à “glória de Deus e à salvação das almas”.
A preocupação com a educação equilibrada dos jovens à
castidade se torna rapidamente um elemento fundamental
das suas lides.
Muito embora se mova, como outros educadores, por entre
todos os aspectos concernentes à formação à pureza – preser-
vação, prevenção positiva e negativa, recuperação, preparação,
recurso às energias da vida de graça –, o que caracteriza o
agir de Dom Bosco é a extrema delicadeza com que ele, nas
palavras e nos escritos, encara essa matéria. Em um precioso
depoimento do cardeal Cagliero, que nos reporta aos inícios
do Oratório, lemos:
Nos santos exercícios espirituais que Dom Bosco pregou no
Seminário de Giaveno, durante as férias do outono de 1852, ele
nos falou da castidade com tanto entusiasmo e santo transporte,
que nos arrastou a todos até às lágrimas, e propusemos querer
guardar tão bela virtude até à morte.
Naqueles afortunados exercícios – mas, a partir de então, sem-
pre – Dom Bosco descreveu a castidade como “a flor mais bela
do paraíso, e digna de ser cultivada nos nossos tenros corações,
e lírio puríssimo que com o seu candor imaculado nos teria feito
semelhantes aos anjos do céu”. Continua dom Cagliero:
Com essas e outras belas imagens, Dom Bosco nos deixava ena-
morados por essa bela virtude, enquanto a sua face brilhava de
santa alegria. A sua voz argêntea brotava calorosa e persuasiva, e
os seus olhos ficaram umedecidos de lágrimas pelo temor de que
empanássemos a sua beleza e preciosidade, ainda que fosse apenas
com maus pensamentos ou expressões indecorosas.

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Pietro Brocardo 175
Dom Bosco não criava do nada. As imagens que lhe são
familiares, ele retira da literatura ascética religiosa da época,
colorida daquele tanto de romantismo que se respirava no ar,
e que as famosas “romanças” de Cagliero evocavam com certo
lirismo. Retira dos escritos que idealizam de tal modo a figura
de São Luís, a ponto de fazer dele um desencarnado, só com-
parável aos anjos. No hino em sua honra – que o santo dos
jovens insere já na primeira edição de O jovem instruído – se
podia, de fato, ler que Luís havia sido “carnis expers spiritus vel
angelus cum corpore” [“um espírito sem corpo, ou também, um
anjo com o corpo”].
No Oratório, a festa do santo jovem, patrono da Companhia
de São Luís, foi por muito tempo a festa mais solene do ano.
Para Dom Bosco, era a festa da castidade, da pureza encarnada
em uma esplêndida existência terrena.
Também são importantes na tradição e na consciência sale-
siana as máximas e pequenos ditos de Dom Bosco. São o fruto
de uma experiência que evoluiu e se enriqueceu ao longo dos
anos. São também, evidentemente, a expressão de uma grande
atração e paixão para com uma virtude que lhe era sumamente
cara.
Amai esta virtude, amai-a muito.
É esta a virtude mais fugidia, mais esplêndida e, juntamente, a
mais delicada de todas.
É um bálsamo a ser espargido entre todos os povos, a ser promo-
vido em todos os indivíduos; ela é o centro de qualquer virtude.
A virtude da castidade [é] a mãe de todas as virtudes, a virtude
angélica; (...) deve ser o eixo de todas as nossas ações.
É a virtude-rainha, que custodia todas as outras.
É a virtude mais agradável ao coração de Maria Virgem. Se houver
essa virtude, há tudo; se ela faltar, não existe nada.

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176 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
É o centro sobre o qual se fundam, se baseiam e se reatam todas
as virtudes.
A castidade é a virtude, a meu ver, base de todas que devem servir
como fundamento prático de todo o edifício religioso.
Esse elogio da castidade não se contrapõe a afirmações igual-
mente categóricas acerca de outras virtudes como, por exemplo,
a caridade, a obediência e assim por diante. É inegável, porém,
como testemunhavam antigos salesianos, que em matéria de
castidade, mais que as vias da razão, ele seguia as do sentimento
sobrenatural, coisa bem diversa dos sentimentalismos român-
ticos, ou de mau gosto.
A palavra “castidade” aparece freqüentemente nos lábios e
sob a pena de Dom Bosco, ao lado de outras, como “modéstia”,
“puridade”, “bela virtude”, “virtude angélica”, “pureza” e ima-
gens afins, próprias da literatura religiosa do tempo. Mais tarde,
para não chocar a sensibilidade do laicismo liberal-maçônico, faz
uso, de boa vontade, dos termos “moralidade” e “bom costume”.
Sabemos que o Oratório de Valdocco nunca foi um paraíso
terrestre. Juntamente com jovens ótimos e bons, conviviam com
freqüência também caracteres difíceis, rebeldes, enviados pelas
autoridades civis ou por benfeitores, “já vítimas das paixões
humanas” ou “de hábitos lastimáveis”, como se exprime Dom
Bosco.
A crônica do padre Bonetti – estamos em 1862 – refere que
o santo, “vendo crescer continuamente a malícia nos jovens”, se
persuadiu, alguma vez, “a revelar as pavorosas conseqüências”
de semelhantes comportamentos, que pedagogos e médicos da
época descreviam de maneira pessimista, como caminho que
levava diretamente à tuberculose, doença então mortal.
Evidentemente, embora profundo conhecedor em relação ao
que fermenta no espírito e no corpo do jovem em crescimento,
Dom Bosco não falava de “crises da adolescência”, de “idade

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Pietro Brocardo 177
evolutiva” ou de “puberdade” e, menos ainda, de “sexualidade”,
mas delas possuía uma clareza penetrante.
O padre Caviglia, penitente do santo e intérprete agudo do
seu espírito, aludindo a si mesmo escreve: “Quem entre os 13
e os 17 anos teve a fortuna (fora, digamos, a graça de Deus)
de ser dirigido por ele na consciência, sabe muito bem como
entendia e explicava as coisas”. Dom Bosco teria dado a vida
para conservar a inocência de um jovem, tanto desejava que
ele pudesse percorrer o caminho da virtude sem passar por
experiências negativas. Arrebatava-o a inocência conservada
por um Domingos Sávio e por tantos outros. Mas era mestre
em ajudar os jovens a vencer as sugestões do mal, a se manter
puros, a se resgatar com coragem.
Dizem que o pintor flamengo Rubens (1577-1640), quando
necessário, pegava o pincel da mão incerta do discípulo e, sobre
as linhas hesitantes, fazia passar o sopro da vida. Quantas vezes,
no segredo da confissão, sobre as linhas tortas de um jovem,
com a sua santidade Dom Bosco fazia perpassar o sopro da
vida divina.
O exemplo
Na cultura contemporânea, se dá grande atenção aos mode-
los de comportamento e às condutas apropriadas, portadoras
de valores. Modelo e exemplo são aqui equivalentes. Seguir o
exemplo de uma pessoa significativa não quer dizer “se colocar”
em uma forma, “copiar” ou, pior, “se sugestionar”. Ao contrário,
é ser atraído por quem é portador de valores propositivos e, na
medida do possível, tornar esses valores livremente próprios, a
partir de um processo de crescimento interno.
Dom Bosco acreditava na eficácia do exemplo e se propunha
a dá-lo. Costumava dizer: “Procura sempre praticar com os
fatos o que a outros propões com palavras”; “Uma coisa que se

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178 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
pode fazer por todos, e é de máxima utilidade e um verdadeiro
trabalho na vinha do Senhor, é o dar bom exemplo”; “As belas
palavras sem exemplo de nada valem”.
O exemplo da sua vida casta, límpida como um dia de prima-
vera, exercia no ambiente do Oratório uma influência notável
sobre os jovens e sobre os salesianos. Podia-se verdadeiramente
aplicar a ele o que o fisósofo francês H. Bergson afirmou dos
santos em geral: “Por que os santos têm imitadores? (...) Não
têm necessidade de exortar; não têm senão de existir: a sua
existência é um apelo”.
Por certo Dom Bosco falou e exortou insistentemente.
Porém, mais que as palavras, o seu exemplo foi decisivo. A
virtude da castidade não foi, para o santo dos jovens, apenas
um privilégio que caiu do céu. Como todos os temperamentos
dotados de intensa sensibilidade e, ao mesmo tempo, de forte
virilidade, precisou vigiar e controlar a si mesmo, e em certas
ocasiões, se empenhar em uma dura luta contra as inclinações
perversas da carnalidade.
É o que atesta o padre Rua: “Quanto às tentações contrárias
a essa virtude [da castidade], penso que as tenha sofrido, pelo
que observei em alguma palavra ouvida dele, no momento em
que nos recomendava a temperança no beber”. Esse testemunho
é concorde com o do padre Lemoyne: “Que tenha tido tenta-
ções contra a pureza, o confidenciou certa vez aos membros do
capítulo, entre os quais eu mesmo estava presente, explicando
o motivo pelo qual preferia os legumes à carne.
O padre Ubaldi, que se tornará um dia professor de literatura
grega na Università di Catania e, depois, na do Sacro Cuore,
de Milão, quando jovem era muito vivaz e muito afeiçoado a
Dom Bosco. Um dia, na hora da recreação, enquanto o rodeava
com outros companheiros, lhe saltou ao pescoço. O santo o
afastou, lhe dizendo em tom grave: “E quem pensa que é?”. O
jovem ficou desorientado. O padre Ceria, que narra esse fato,

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19.1 Page 181

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Pietro Brocardo 179
acrescenta: “Encontrei um bilhete em que está escrito: ‘Também
Dom Bosco deve se defender dos jovens graciosos’”.
Sendo homem, e por isso exposto ao vento da tentação, Dom
Bosco não é diferente de nós. O que, ao invés, foge da norma é
a luta vitoriosa que sustenta também nesse fronte, a plena doci-
lidade às sugestões do Espírito e a prática heróica da castidade.
À primeira vista, esse heroísmo poderia parecer mais suposto do
que demonstrado, tão secreta e pessoal é a virtude da castidade.
Quando, todavia, é praticada e vivida de maneira extraordinária,
acaba por se impor mesmo externamente, mediante o conjunto
de sinais e mensagens que o senso cristão reconhece. Ora, que
Dom Bosco tenha conduzido desde a infância, e depois durante
toda a existência, uma vida ilibada, é o que afirmam em coro
os textos examinados nos processos canônicos.
O santo – assim rezam os textos – havia erigido, em defesa
da sua arguta sensibilidade e da sua capacidade emocional de “se
fazer amar”, o edifício de uma castidade a toda prova. Atribui-se
ao esplendor dessa virtude grande parte do fascínio irresistível
que ele exercia entre os jovens. À sua presença, pensamentos
e fantasias molestas se dissipavam como a névoa ao sol. Certo
dia, tendo percebido que um jovem estava dominado por per-
turbações incômodas, o tomou, o estreitou fortemente contra si
e depois o deixou que se fosse, enquanto no seu rosto brilhava
a paz e a alegria. Atesta o padre Cerruti:
A mim me parece poder afirmar que na grande pureza de mente,
de coração e de corpo, que ele observou com uma delicadeza
mais única do que rara, esteja o segredo da sua grandeza cristã.
A sua compostura, o seu olhar, o seu próprio caminhar, as suas
palavras, os seus gestos não teriam nunca nem mesmo sombra
de qualquer coisa que se pudesse dizer contrária à bela virtude,
como ele a chamava.
Seu trato com os jovens era muito delicado, respeitando

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180 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
sempre a personalidade de cada um. De boa vontade deixava
que lhe beijassem a mão, colocando-a às vezes de modo fugidio
sobre a cabeça deles. E aproveitava essas ocasiões para lhes sus-
surrar uma daquelas suas palavras mágicas, que iam diretamente
ao coração. Acontecia até mesmo que, com dois dedos da mão,
desse um tapinha, ou também fizesse uma leve carícia. Mas
quanta sobrenaturalidade nesse gesto paterno! “Nessas carícias
havia um não sei quê de puro, de complacente e paterno, que
infundia neles o espírito da sua castidade”, relata o padre Reviglio.
Nunca se observaram nele atitudes sensíveis de antipatia ou de
preferências. As insinuações malévolas da imprensa adversária
não ousaram nunca atacá-lo neste ponto.
Era demasiado evidente que Dom Bosco vivia em uma
região superior e que a confiança que concedia aos seus jovens
tinha exclusivamente o escopo de fazer o bem. Confirma-o o
padre Berto:
Eu tenho vivido ao lado dele e o servi por mais de vinte anos,
podendo afirmar que a virtude da modéstia nos olhares, nas
palavras e nos gestos foi por ele elevada ao grau mais sublime de
perfeição. O segredo adotado por ele para chegar a essa perfeição
foi a contínua ocupação de mente, a excessiva fadiga de dia e de
noite e uma calma imperturbável. Dele se propagava uma influên-
cia vivificante. Eu mesmo posso dizer que, estando próximo a
ele, a sua presença afastava de mim todo pensamento impróprio.
A pessoa de Dom Bosco, vivificada pelo Espírito Santo e
nutrida com Cristo, “pão que gera os virgens”, emitia luz e
energia divinas: quem vivia ao seu lado em íntima familiaridade
ficava envolvido.
Castidade – amorevolezza
O trinômio razão-religião-amorevolezza, sobre o qual Dom

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Pietro Brocardo 181
Bosco apóia o Sistema Preventivo, indica cada vez mais na
consciência salesiana e na sua tradição viva o espírito salesiano
em geral, ou seja, a pastoral, a espiritualidade e a pedagogia,
associadas em uma única experiência dinâmica. Observa, a
respeito, o padre Braido:
No entanto, é relevante e, em certo sentido, mais característico o
significado propriamente pedagógico-metodológico do trinômio.
Os três componentes estão constantemente presentes de forma
interativa, tanto ao nível de objetivos educacionais, como de pro-
cessos de formação, conferindo ao Sistema uma sólida unidade
metodológica. Se, além disso, se quisesse determinar o elemento
unificador nessa perspectiva, seria difícil se subtrair à impressão de
que a amorevolezza constitua o princípio supremo (como a religião
é indubitavelmente o primum, do ponto de vista dos conteúdos).
Na cultura italiana, a amorevolezza é vocábulo quase insólito.
Os dicionários do século XIX o definem, essencialmente, como
sendo “o complexo dos atos externos com os quais se demonstra
amor”.42 O pensamento vai imediatamente ao conjunto de atos
sensíveis e também corporais, como o beijo, a carícia, o abraço,
os gestos afetuosos, com que os pais manifestam externamente
o seu amor para com os próprios filhos. Também para Dom
Bosco a amorevolezza é um amor manifestado por meio de si-
nais cheios de bondade, mas de uma bondade que é assumida e
transfigurada pelo amor infinito que brota do coração do Pai e
do Cristo, Bom Pastor, que doa seu Espírito de amor. Todavia,
essa caridade se exprime segundo todos os recursos humanos,
controlados pela razão e pela vida de graça, que passam, se não
unicamente, ao menos principalmente, pelas vias do coração: “A
educação é coisa de coração”. No sentido bíblico, coração não
é apenas “o centro radical da pessoa”, mas também “centro de
distribuição da vida íntima”, segundo F. Hauss.
Um dos maiores segredos do sucesso de Dom Bosco padre-

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182 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
-educador-pastor-fundador talvez deva ser buscado precisa-
mente nessa distribuição da sua interioridade. Esta, por outro
lado, se manifesta por intermédio da extraordinária variedade
de gestos personalizados, visíveis, afetuosos, paternos, e que são
percebidos assim pelos interessados.
Ele escreve na Carta de Roma:43
É preciso que os jovens não só sejam amados, mas que eles pró-
prios percebam que são amados (...). Quem quer ser amado é
preciso que faça ver que ama (...), e quem é amado obtém tudo,
especialmente dos jovens.
A amorevolezza cobre a vida de Dom Bosco como as águas
dos lagos alpinos cobrem o seu fundo.
Para Dom Bosco, amorevolezza se traduz nestas expressões e
em muitas outras: familiaridade; confiança que atrai confiança;
amizade; aceitação sincera e incondicionada; compreensão;
interesse por aquilo que agrada aos jovens, a fim de que eles se
interessem pelo que agrada aos educadores; atenção dedicada às
suas aspirações e necessidades fundamentais; presença assídua,
promotora de crescimento humano e espiritual; longanimidade;
paciência sem limites; paternidade amável e sacrificada; espírito
de “casa”.
Só nesse contexto é que se pode compreender a importância
que a castidade assume no espírito de Dom Bosco. Como, sem
a presença de uma castidade desejada, aprovada e desfrutada,
se poderia exercitar corretamente e sem perigosos desvios uma
amorevolezza que tem quase a mesma densidade da existente na
família natural, mas que não possui, para a própria defesa, os
vínculos derivados da comunhão da carne e do sangue? Quanto
mais o salesiano tem de castidade, tanto mais possibilidades terá
de abundar em amorevolezza. A relação dialética entre uma e
outra é constante.
Dom Bosco quer os seus filhos castos de ânimo e de espírito,

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Pietro Brocardo 183
nos pensamentos e nas obras. Já na primeira forma das Cons-
tituições Salesianas, de 1858, encontramos estas afirmações,
depois ligeiramente aperfeiçoadas:
Quem não tem fundada esperança de poder conservar, com o
auxílio divino, a virtude da castidade nas palavras nas obras e
nos pensamentos, não professe nesta Sociedade, porque muitas
vezes se encontraria em perigo. As palavras e os olhares, mesmo
indiferentes, são mal acolhidos pelos jovens que já foram vítimas
das paixões humanas.
Quando o arcebispo de Turim, dom Luigi Fransoni, que
estava exilado em Lião, leu esse artigo, o julgou excessivamente
rigoroso. Teria desejado uma formulação mais suavizada. Dom
Bosco não afrouxou: o artigo se encontra ainda presente nas
Constituições renovadas.44
Capítulo V
Ascese da temperança e da mortica-
ção
A rejeição da ascese cristã na atual sociedade hedonista e
permissiva, em nome da liberdade absoluta que rejeita qualquer
obrigação, da espontaneidade da natureza e de ideologias que a
consideram uma neurose alienante, é conseqüência da rejeição
de Deus. Se, com efeito, a ascese cristã tem um sentido, uma
justificação, uma fecundidade, não pode encontrá-los senão na
fidelidade ao mistério da morte e ressurreição de Cristo, dentro
do horizonte do pecado e do juízo divino sobre ele. A ascese
entra como elemento ineludível no plano da salvação e segue
o cristão como a sombra segue o homem.
42 Não há um termo em português que traduza literalmente amorevolezza. Os dicionários
acusam o vocábulo “amorosidade”, que é a qualidade do que é amoroso, terno. Em alguns
casos, o termo é traduzido por “carinho”, “afeto”, “amor”. [n.e.]
43 Cf. nota 19.

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184 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
As suas manifestações exteriores, inseridas nos diversos
contextos socioculturais, não são porém unívocas: variam de
uma época para outra, como ensina a história. Por essa razão,
não é lícito lançar o descrédito sobre as formas de penitência
praticadas nos séculos passados ou no estilo rude e espartano
de vida vivido por Dom Bosco em pleno século XIX.
Escreve R. Guardini: “O que justifica uma época da história
em face de outra não está no fato que esta seja melhor, mas que
esta vem ao seu tempo”.
Imutável na sua substância, a ascese deve hoje se adequar,
como no passado, ao novo contexto cultural. Isso significa,
como explicita o padre Viganò, que deve “tomar em conside-
ração o conceito mais aprofundado do homem, das descober-
tas adquiridas das ciências antropológicas – especialmente da
psicologia –, das características de nossa realidade somática, do
valor profundo da sexualidade, do processo de personalização,
da situação de pluralismo, da importância da dimensão comu-
nitária, das exigências da socialização”.
Portanto, precisa ser uma ascese que leve em conta a inte-
gração harmônica entre alma e corpo, que não é dom de na-
tureza; que abra a pessoa ao amor oblativo e à disponibilidade
para com os outros; que seja capaz de enfrentar cristãmente as
alienações a que a vida moderna obriga, como o nervosismo, a
monotonia do trabalho repetitivo, o estresse da vida moderna,
a superficialidade das relações e da convivência; que seja uma
ascese do silêncio na “civilização do rumor”, para não perder
a si mesmo, para compreender melhor, para não dizer senão o
que significa alguma coisa; que saiba disciplinar o uso dos meios
de informação, hoje infinitamente desenvolvidos pela internet,
comunicação virtual etc.
A Igreja, levando em conta as mudanças culturais em curso,
amenizou certas penitências do passado, como o jejum, mas não
colocou silenciador sobre o rigor da ascese tradicional, que se

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Pietro Brocardo 185
tornou mais urgente em razão das exigências cada vez maiores da
caridade. Porque, como bem se exprime P. Plé, “a fecundidade
das mortificações não se mede pelo sofrimento das renúncias
ou pela intensidade do esforço, mas pela sua eficácia, ou seja,
na perspectiva evangélica, pelo progresso na caridade por ela
favorecido, tanto por meio da ‘imitação de Cristo’, quanto pelo
afastamento daquilo que impede o crescimento na caridade”.
Retomar a experiência ascética de Dom Bosco faz perceber
indubitavelmente aspectos já superados pelo tempo e formas de
44 Cf. Constituições e regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales, n. 82. [n.e.]

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expressão que não são mais atuais. Quando, todavia, além das
contingências da história, se vai às raízes das coisas, ao espírito
evangélico que o anima, a certas intuições precursoras lúcidas,
que fazem dele um contemporâneo nosso, se deve convir que
também hoje a ascese ensinada e vivida pelo santo tem sempre
muito a dizer ao nosso senso cristão. É o que, resumidamente,
vamos ver agora.
Temperança
A ascese de Dom Bosco sempre se expressou no binômio
indivisível: trabalho e temperança. Esta é a herança deixada
aos seus filhos: “Trabalho e temperança farão florescer a Con-
gregação Salesiana”; “São duas armas com que conseguiremos
vencer tudo e todos”. São os dois diamantes que dão brilho ao
seu semblante simpático e sorridente.
O trabalho, como vimos, constitui já em si mesmo a ascese
contínua de Dom Bosco. Mas ele associou sempre, delibe-
radamente, a ascese do trabalho à ascese ampla e específica da
temperança, da mortificação, do sentido austero da vida.
Na vida do cristão, a temperança é, por certo, guarda de
si, moderação das inclinações e das paixões, desvelo pelo que
é conforme a razão, certa fuga do mundo, porém, mais pro-
fundamente, ela vem a ser uma “atitude de fundo”, um “eixo
existencial” que comporta a presença de diversas outras virtudes
satélites. Diz E. Viganò:
A temperança é a primeira e a principal entre as virtudes mode-
radoras, que giram como satélites em torno dela: a continência,
contra as tendências da luxúria; a humildade, contra as tendências
da soberba; a mansidão, contra os ímpetos da ira; a clemência,

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Pietro Brocardo 187
contra as inclinações à vingança; a modéstia, contra a vaidade da
exibição do corpo; a sobriedade e a abstinência, contra os excessos
da bebida e do alimento; a economia e a simplicidade, contra a
liberdade do esbanjamento e do luxo; a austeridade no teor de
vida, contra as tentações de comodismo.
Essa temperança, ou seja, esse conjunto de virtudes, é vista e
vivida por Dom Bosco sobretudo em função da caridade pasto-
ral e pedagógica e do crescimento no amor, que não se limita a
amar, mas, coisa bem mais difícil, “saber se fazer amar”. Quem
tem prática em educação de jovens sabe por experiência que tipo
e quanto de domínio de si é preciso, em todas as dimensões da
pessoa, para que triunfem atitudes e comportamentos marcados
por bondade, justiça e retidão.
O exemplo de Dom Bosco é paradigmático. É um educador
que ama com profundidade e sabe “se fazer amar” praticando,
em grau heróico, a temperança: firme nos princípios, os aplica,
porém, com moderação e bom senso; harmoniza as exigências
da autoridade com as da liberdade e espontaneidade dos jo-
vens, num perfeito equilíbrio; sabe se adaptar às exigências da
“mobilidade juvenil”, sem incorrer na permissividade; percebe
tudo, mas sabe também dissimular prudentemente e com santa
malícia; freia o ímpeto das paixões para guardar intacto o seu
coração, que modela e remodela a sua caridade pastoral de Cris-
to. Fruto de temperança interior são ainda a constante atitude
de conversão, o domínio de si, a mansidão e a amabilidade, que
conquistam os corações para si.
A temperança cristã é, além disso, a defesa dos grandes valo-
res teologais da fé, da esperança, da caridade, sobre os quais está
fundada. E Dom Bosco lembra isso aos seus filhos: “O demônio
tenta, de preferência, os intemperantes”. Queria temperança e
moderação em tudo, também no trabalho apostólico, que ele
também considerava muito importante: “Trabalhai, trabalhai
muito! Mas fazei-o também de maneira que possais trabalhar

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188 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
por muito tempo”.
Aos missionários, recomendava: “Tende cuidado com a saú-
de. Trabalhai, mas só o quanto permitirem as próprias forças”.
No pensamento de Dom Bosco e da tradição salesiana, a
temperança não é, primariamente, a soma das renúncias (mor-
tificação), mas o “crescimento na práxis da caridade pastoral e
pedagógica”. O padre Viganò o afirma com autoridade:
Primeiro, e mais que a mortificação, a temperança é uma disciplina
metodológica de educação ao dom de si no amor. Ensina-nos a
nos treinar no amar e no se fazer amar, e não primariamente a
nos castigar. Não é o momento da poda, mesmo se vai chegar o
tempo para fazê-la. É o momento do desenvolvimento do amor:
se eu me doar a Deus, devo procurar fazer crescer em mim a ca-
pacidade de doação, sabendo frear tudo quanto pode constituir
retomada oculta do dom.
Em outras palavras, a temperança está, para Dom Bosco, an-
tes de tudo e sempre, em função da mística do Da mihi animas:
“Senhor, me faz salvar a juventude com o dom da temperança”.
Por isso, não se cansou de repetir: “A Congregação vai durar
enquanto os sócios amarem o trabalho e a temperança”.
Sobriedade e abstinência
Essas duas virtudes satélites da temperança – contra os ex-
cessos da bebida, do alimento e dos impulsos desordenados –,
brilham em Dom Bosco com uma luz particular. A sua sobrie-
dade no uso dos alimentos e das iguarias era proverbial. Como
todos os sacerdotes saídos do Colégio Eclesiástico, observava
com rigor as abstinências prescritas pela Igreja e jejuava um dia
na semana, primeiro aos sábados, depois às sextas-feiras, mas
nada se notava nele de excepcional.
Todas as testemunhas concordam em afirmar que não
percebiam nele jejuns ou penitências extraordinárias; destaca-

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Pietro Brocardo 189
vam, porém, a sobriedade fora do comum e uma temperança
habitual. Nos primeiros tempos do Oratório, a mesa era muito
frugal, semelhante à dos camponeses e operários. Pão e sopa,
um prato de legumes, mas não sempre, um pouco de vinho
aguado: era tudo. Atesta dom Bertagna:
Na temperança, o seu procedimento serviu de raro exemplo. Na
sua casa, não buscava nunca abundância. Ao contrário, parece
que se teria podido permitir para si e para os outros alguma
melhoria a mais.
Mais tarde, a comida melhorou, porque nem todos os
que se decidiam a “ficar” com ele teriam podido se adaptar
à sua mesa. Seu natural bom senso lhe sugeria que o antigo
rigor tinha de ser moderado, mas no coração permaneceu
sempre uma secreta saudade da antiga práxis. Declarou
repetidas vezes:
Pensava que em minha casa todos teriam se contentado com
apenas sopa e pão e, quando muito, um prato de legumes. Vejo,
porém, que me enganei (...). Mil razões me impeliram pouco a
pouco a seguir o exemplo de todas as outras ordens religiosas.
Não obstante, ainda agora me parece que se poderia viver como
eu vivia nos primeiros tempos do Oratório.
Mesmo se adaptando aos melhoramentos necessários, ele
permaneceu fiel ao seu antigo ideal. Até quando a saúde permi-
tiu, sempre se ateve ao alimento comum. Não comia fora das
refeições e se mostrava indiferente a tudo, a ponto de ninguém
saber quais eram as suas preferências.
Para obter ajuda, tinha de aceitar jantares em sua honra,
oferecidos pelos benfeitores. Participava deles com simplicidade,
mas, se pode dizer, quase não se dava conta de comer o que
lhe era oferecido, atento como estava em manter a atenção dos
comensais com respostas ágeis e palavras edificantes.

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190 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Depois da doença de Varazze (1871-1872),45 que o reduziu
a fim de vida, por ordem dos médicos teve de fazer uso diário
de um pouco de vinho puro, que a duquesa de Montmorency
lhe enviava todos os meses. Bebia-o com tal parcimônia, que
uma garrafa lhe servia para toda a semana, enquanto que as
remanescentes se acumulavam na cantina e duraram por longo
tempo após a sua morte. Oferecia-o com prazer aos amigos e
aos benfeitores quando os convidava à sua mesa: “Estejamos
alegres: bebamos o vinho ducal!”.
Queria que os seus filhos fossem, como ele, modelos de so-
briedade e temperança: “Fugi do ócio e das contendas; grande
sobriedade nos alimentos, nas bebidas e no repouso”; “Não vos
digo que jejueis; porém, uma coisa vos recomendo: a tempe-
rança”. Admoestava ainda: “Quando começarem entre nós as
comodidades e a fartura, a nossa Sociedade terá acabado o seu
curso”; “No alimento, sobriedade; nunca mais que o necessá-
rio, a fim de que, além da saúde do corpo, se possa conservar
também a da alma”.
Juntamente com os ascetas de todos os tempos, também ele
salientou o nexo indissolúvel existente entre mortificação cor-
poral e oração: “Quem não mortifica o corpo não é tampouco
capaz de fazer boas orações”.
A sobriedade e a temperança têm um vasto espaço na sua
pedagogia. Dizia com freqüência:
Dai-me um jovem que seja temperante no comer, no beber e no
dormir, e vós o vereis virtuoso, assíduo nos seus deveres, sempre
pronto quando se trata de fazer o bem e amante de todas as vir-
tudes. Ao contrário, se um jovem for guloso, amante do vinho e
dorminhoco, pouco a pouco terá todos os vícios.
Morticação
Na literatura espiritual contemporânea, a mortificação é um
vocábulo que tende a ser absorvido pelo capítulo dedicado à

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Pietro Brocardo 191
ascética, considerada quer como esforço metódico voltado para
a perfeição, quer como a série dos processos que têm por fim
dominar, orientar e corrigir as tendências naturais, por si boas,
mas que, abandonadas a si mesmas, impelem o batizado para o
mal e para comportamentos desviadores. A ascese, por sua vez,
está sempre mais englobada na dialética morte-ressurreição do
Mistério Pascal, centro e síntese da existência cristã, no qual o
sofrimento supremo da cruz está inextirpavelmente ligado
ao supremo gesto de amor: “Ninguém tem maior amor do
que aquele que se despoja da vida por aqueles a quem ama”
(Jo 15,13).
Lembra F. Ruiz que “a cruz e a ressurreição representam os
dois pólos, negativo e positivo, da morte e vida da existência
cristã. A exigência evangélica da ‘renúncia total’ (cf. Lc 14,26)
é a réplica direta e imediata do amor total”. A morte batismal
e a ressurreição são reais. Todavia, como recorda o teólogo F. X.
Durrwell, “um resíduo considerável de vetustez, um ‘homem
velho’, recobre ainda o ‘homem interior’”.
Daí a necessidade do esforço, da mortificação: “Sempre le-
vamos em nosso corpo o morrer de Jesus” (2Cor 4,10). Outras
passagens da Sagrada Escritura falam de abnegação (Lc 9,23),
despojamento (Cl 3,9), crucifixão (Gl 5,24), morte (Cl 3,3)
etc. Palavras profundas e severas, que no seu contexto preciso
significam que a totalidade da existência cristã está assinalada
pelo mistério da cruz e pela mortificação necessária, seja ela
preventiva, reparadora (mesmo que voluntária) etc.
Contudo, a vida do cristão não se resolve na mortificação.
As ciências humanas insistem justamente na promoção das
qualidades humanas e das tendências positivas, mais do que na
repressão. O Evangelho é uma “alegre mensagem” de salvação.
45 Em 6 de dezembro de 1871, enquanto esperava o trem na estação de Varazze, Itália, Dom
Bosco cai desmaiado. A doença se agrava, a ponto de pensarem que está no fim. A doença
dura dois meses e afeta suas forças definitivamente. [n.e.]

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192 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Todavia, a mortificação não é só morte ao pecado e a todas as
suas conseqüências, mas também, como demonstra o exemplo
dos santos, “renúncia das coisas lícitas, mas inúteis para nós, e
cuja preocupação nos absorveria de nossa união com o Senhor”,
na expressão do teólogo R. Garrigou-Lagrange. Realidade que
a natureza custa a compreender. A mortificação, que não é
nunca vontade de sofrer nem fim em si mesma, mas apurada
expressão do amor infuso, constitui, na incrível variedade das
formas assumidas ao longo das épocas – para além dos desvios
patológicos –, um patrimônio imenso da espiritualidade cristã,
do corpo místico de Cristo, que é a Igreja, sempre associada ao
mistério da morte e ressurreição.
Seria injusto e acrítico julgar certas formas de mortificação
absolutamente válidas no passado – suponhamos a forma de
vida rude e espartana dos primeiros anos do Oratório – com
a mentalidade de hoje. A verdadeira dificuldade consiste em
integrar e harmonizar na devida forma morte e ressurreição,
sofrimento e amor, natureza e graça. Também nisso Dom Bosco
se revela modelo e guia.
Dissemos que ele é um santo alegre e simpático, capaz de
amar e de se fazer amar, sempre ativo, sempre no meio da
juventude. Mas não podemos esquecer que, assim como a
temperança, também a mortificação, que Dom Bosco define
“o ABC da perfeição”, ocupa um lugar privilegiado na sua
visão pedagógica e pastoral. Quem olhasse Dom Bosco de
longe podia até crer que o caminho por ele percorrido fosse
um caminho fácil. Não obstante, como escreveu o padre Ceria
nas belas páginas de Don Bosco con Dio,46 a sua estrada foi toda
semeada com os espinhos da mortificação. Espinhos na família:
a pobreza e a oposição, que primeiro o detiveram, depois lhe
tornaram áspero o caminho do sacerdócio, obrigando-o a duras
e humilhantes fadigas. Espinhos no momento de fundar o Ora-
tório: era criticado por todos, pelas pessoas, pelos padres, pelas

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Pietro Brocardo 193
autoridades municipais, religiosas e políticas. Espinhos, e coisas
piores, por causa das Leituras católicas. Espinhos por falta de
meios: ter sob sua responsabilidade tantos jovens e tantas obras
e não possuir meios de subsistência necessários. Espinhos dos
seus colaboradores: tantos sacrifícios para formá-los e algumas
deserções dolorosas. Adversidades e espinhos vindos da autori-
dade diocesana: mal-entendidos, oposições, contrariedades. A
fundação da Sociedade Salesiana, se pode dizer, foi um calvário.
Há também espinhos de outra natureza, não menos pun-
gentes, devidos a doenças e distúrbios de saúde. Dom Bosco era
de constituição saudável e de um vigor físico impressionante.
Descendia de camponeses robustos e de antepassados longevos.
De outro modo, não é possível explicar a sua resistência ao
trabalho e como foi capaz de sobreviver a três doenças mortais.
Não obstante, o elenco das enfermidades que o atormentaram
ao longo de toda a sua vida é incrivelmente longo: escarros de
sangue; mal de olhos persistente, e no fim, perda da visão no
olho direito; inchaço das pernas e dos pés – a sua “cruz coti-
diana”, como ele a chamava –; cefaléias persistentes; digestões
difíceis; febres intermitentes, com erupções cutâneas; por volta
do fim da vida, enfraquecimento da espinha, que o levou a ter
dificuldades de respiração; e outras ainda. Pio XI definiu a sua
existência “um verdadeiro, próprio e grande martírio (...). Um
verdadeiro e contínuo martírio nas durezas da vida mortificada,
frágil, que parecia fruto de um contínuo jejuar”.
Esse martírio foi aceito por amor de Cristo crucificado e
das almas. Ouviram-no dizer: “Se soubesse que uma única
jaculatória bastaria para me fazer sarar, não a diria”. Era um
martírio dissimulado pela paz imperturbável e pela alegria,
que parecia se tornar mais vibrante – segundo depoimentos
merecedores de atenção – quanto mais pesadas eram as cruzes
que o afligiam. Só uma alma profundamente radicada em Deus
podia chegar a tanto.

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194 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
A vida de Dom Bosco é realmente caracterizada por enormes
e ininterruptos esforços ascéticos. Mas o seu ascetismo não é
do tipo espetacular, clássico de outros santos. É, ao invés, o
do cotidiano, das pequenas coisas; é o das mortificações não
menos duras e contínuas, impostas pelo cumprimento do pró-
prio dever, do próprio trabalho; é o das situações concretas, da
convivência humana. Para “reproduzir” em si os sofrimentos de
Nosso Senhor, costumava dizer, “os meios não faltam: o calor,
o frio, as doenças, as coisas, as pessoas, os acontecimentos...
Sempre há meios para se viver mortificado!”.
Lemos no seu testamento: “Não vos recomendo penitên-
cias ou mortificações particulares. Tereis grande mérito (...) se
souberdes suportar reciprocamente as penas e os desprazeres da
vida com resignação cristã”.
Aos diretores, dá este conselho: “As tuas mortificações es-
tejam na diligência dos teus deveres e no suportar as moléstias
dos outros”.
Não subestimava a importância das mortificações voluntá-
rias, mas preferia as impostas pela obediência: “Em vez de fazer
obras de penitência, fazei as de obediência”; “Vede, vale mais
um desjejum feito por obediência do que qualquer mortificação
feita por um capricho pessoal”.
Também para Dom Bosco a motivação fundamental da
mortificação é, obviamente, a exigência da sequela Christi [se-
guimento de Cristo] e a participação, com consciência de fé,
no mistério da sua morte e da sua cruz: “O Senhor nos convi-
da a renegar a nós mesmos e a colocar a cruz sobre as costas”;
“Quem não quer sofrer com Jesus Cristo na terra, não poderá
gozar com Jesus Cristo no céu”.
Repetia muitas vezes: “Por toda a parte sofremos com amar-
guras, que são as mortificações dos sentidos. Mas delas sairemos
46 Dom Bosco com Deus, publicado em 1929, foi por décadas um dos textos fundamentais da
espiritualidade salesiana. [n.e.]

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Pietro Brocardo 195
vitoriosos lançando um olhar a Jesus Crucificado”.
Era-lhe cara a devoção a Jesus Crucificado. Quando Ma-
mãe Margarida, cansada e contrariada, havia decidido voltar
para Becchi, Dom Bosco nada disse, mas indicou o crucifixo
pendurado na parede. Quando quiseram colocar no índex um
dos opúsculos das Leituras católicas, sofreu a ponto de morrer.
Contemplando o crucifixo, foi ouvido exclamar: “Ó meu Jesus!
Tu sabes que escrevi este livro com bons propósitos... Seja feita
a tua vontade!”.
Sabia muito bem que a caridade que salva as almas é a ca-
ridade que parte da cruz: “Ó Senhor, podeis nos dar também
cruzes, espinhos e perseguições de todo gênero, contanto que
possamos salvar almas e, entre elas, salvar também a nossa”.
Capítulo VI
Vida intensa de fé, esperança e carida-
de
Somos cristãos por um dom absolutamente livre e gratuito,
que o Pai, mediante o Filho, no Espírito Santo, comunica aos
homens. O Batismo muda radicalmente o nosso modo de
ser e de viver: nos torna participantes da natureza divina, nos
incorpora ao mistério de Cristo, dador do seu Espírito, faz de
nós filhos e “criaturas novas” (Jo 3,5) e nos dá a capacidade
de entrar em relação dialogal com as Pessoas divinas. E para
que se torne possível essa “novidade de vida”, o Espírito Santo
infunde em nós, juntamente com os outros dons, os dinamismos
poderosos da fé, da esperança, da caridade, que pressupõem uma
reviravolta de toda a realidade na esfera de Deus.
As virtudes teologais, mais que meios de união, são con-
sideradas como a própria união com Deus; são graça criada
e graça incriada, ação divina e colaboração humana. São, em

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196 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
termos reais e dinâmicos, a própria santidade. Todo cristão
“deve avançar sem hesitação segundo os próprios dons e cargos
pelo caminho da fé viva, que excita a esperança e opera pela
caridade” (LG n. 41).
Falar da fé, esperança e caridade como de “virtudes” ou
“hábitos” com um poder especial é muito limitante, porque
estas são, antes, dimensões totalizantes da existência cristã que
caminha para Deus, são atitudes fundamentais que não podem
ser reduzidas a dimensões parciais. Com efeito, elas envolvem
o ser humano todo, envolvem a globalidade da sua orientação
fundamental e da sua comunhão com Deus. Crer, para Abraão
assim como para Maria, queria dizer se entregar, cheios de fé
e de esperança, com todo o ser e com toda a existência, a uma
Pessoa sumamente amada e colaborar com o seu amor previdente.
Acrescentemos que, na Bíblia, fé, esperança e caridade são
sempre apresentadas em “unidade vital”, como “aspectos diver-
sos de uma atitude espiritual complexa, porém única”, como
sublinha o biblista J. Duplacy. A caridade não existe sem a fé
e a esperança; por sua vez, a fé e a esperança só permanecerão
vivas, se forem informadas pela caridade.
É importante praticar atos separados de cada uma das virtudes
teologais. Mais importante, no entanto, é vivê-los “juntos”, sinte-
tizados na caridade. Também nisto, como em outros campos, não
esperaremos de Dom Bosco referências explícitas à vida teologal.
A própria terminologia lhe é estranha. No entanto, a sua vida de
fé, esperança e caridade, a experiência concreta e dinâmica que
ele demonstra possuir, atinge níveis muito altos.
Podem ser indicativos a esse respeito o sermão que fez em
Trofarello, em 18 de setembro de 1869, e a primeira parte do
sonho dos diamantes. No sermão, Dom Bosco desenvolve o
tema “Trabalhar com fé, esperança e caridade”, sem imaginar,
obviamente, que o Concílio Vaticano II teria feito idêntica
recomendação às pessoas dedicadas ao apostolado: “Exercem o

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Pietro Brocardo 197
apostolado na fé, esperança e caridade, virtudes que o Espírito
Santo derrama nos corações de todos os membros da Igreja”
(Apostolicam Actuositatem, n. 3).
A esse tema se junta em especial o sonho dos diamantes, do
qual, à diferença de outros, possuímos o texto autógrafo. Os
diamantes representam as virtudes mais próprias, ainda que nem
todas, que brilham no manto do personagem no qual podemos

20.10 Page 200

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ver a personificação de Dom Bosco. Cinco estão colocados na
parte da frente e delineiam o semblante do salesiano tal como
deve aparecer diante do mundo; os outros cinco estão coloca-
dos na parte posterior e são destinados a permanecer um tanto
escondidos. Os diamantes que fulguram sobre o peito são os da
fé, da esperança e da caridade. Este último está colocado sobre
o coração. Sobre os ombros direito e esquerdo sobressaem os
diamantes do trabalho e da temperança, e estão articulados
com os precedentes. Nesse sonho, que é muito elaborado, Dom
Bosco não encontra nada melhor para definir o semblante
do salesiano, do que recomeçar pela tríade teologal, síntese e
substância da vida cristã.
Que ele, como todo santo, tenha preferido e praticado em
grau eminente as virtudes teologais, demonstram-no, por exem-
plo, as biografias dos seus pequenos heróis. De Domingos Sávio,
louva “a viveza da fé, a firme esperança, a inflamada caridade”.
Precisemos melhor o seu pensamento.
A fé, dom absolutamente gratuito, é fundamento e raiz da
vida e da espiritualidade cristã. Sem a fé, ninguém é agradável a
Deus (cf. Hb 3,6). Hoje, se é muito sensível ao conteúdo da fé,
expresso no binômio “palavras e obras”, e também ao mistério
de salvação, que Deus levou definitivamente a termo na paixão,
morte e ressurreição de Cristo. Mas o conteúdo não será nunca
separado do ato de fé, que envolve a pessoa inteira e no qual
“confluem todas as nossas energias espirituais: intelecto, vontade,
sentimento”, como bem expressa o teólogo e bispo W. Kasper. A
esse ato de fé sucedem as atitudes fundamentais: o acolhimento

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Pietro Brocardo 199
convicto da palavra e do amor de Deus, que impele à ação (Tg
2,17); a confiança certa, carregada da esperança de possuir as
coisas que ainda não se vêem (Hb 11,1); a obediência à vontade
de Deus (Rm 1,5); o serviço ao homem (Jo 3,16); e o crer na
Igreja e com a Igreja, comunidade de crentes.
Mesmo quem tiver apenas um conhecimento sumário
de Dom Bosco não tardará a tomar na devida conta a sua fé
profunda e sem fendas, ativa e empenhada. A fé, para ele, é
realmente o mapa do céu no qual está traçado o desígnio de
Deus sobre a sua existência, a visão global do alto sobre a sua
missão, os seus projetos, as suas obras, as suas iniciativas ousadas.
A fé lhe infunde a consciência íntima da sua identidade cristã
e sacerdotal, e o leva a ver, julgar e agir segundo a óptica de
Deus Pai, de Cristo e do seu Espírito. A fé é verdadeiramente
a razão de toda a sua ação: “A fé é aquela que tudo faz”; sem “o
fogo da fé, a obra do homem é nada”.
A fé o levava a avaliar com olhar crítico e discernimento sobre-
natural as realidades de cada dia e a enfrentá-las com “vivacidade”
e “grandeza de fé”. Assegurava: “Em meio às provas mais duras, se
requer uma grande fé em Deus”. Exortava, com São Paulo, a empu-
nhar com coragem, na hora da prova, “o escudo da fé” (cf. Ef 6,16).
Muito embora houvesse mais de um motivo para se conso-
lar com o bem realizado, olhava para o que restava fazer e se
lamentava por não ter tido fé suficiente e por não haver feito
mais: “Se tivesse tido cem vezes mais fé, teria feito cem vezes
mais do que fiz”. Recomendava aos seus jovens que obtivessem
para si uma fé maior. Também para os santos, a fé é um caminho
nunca percorrido inteiramente.
Não obstante, foi um fiel extraordinário: vivia, agia e reza-
va “como se visse o invisível” (cf. Hb 11,27). Nas audiências,
quando pediam algum conselho, não respondia imediatamente:
elevava os olhos ao céu, como quem vai buscando em Deus a
luz necessária, e depois dava respostas cheias de fé.

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200 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Toda a sua vida – dele se escreveu – foi um exercício de fé
vivida: “Pensamentos, afetos, empreendimentos, ousadias, do-
res, sacrifícios, práticas piedosas, espírito de oração foram todas
chamas se desprendendo da fé”. Embora a sua confiança em
Deus fosse sem limites, repetia muitas vezes: “Se a obra é vossa,
Senhor, vós a sustentareis; se a obra é minha, fico satisfeito se
cair”. Afirmava ainda: “Sigo adiante como a máquina a vapor, à
base de puf, puf (isto é, dívidas)”. Mas acrescentava que o fogo
da sua locomotiva era “o fogo da fé em Deus”.
O Concílio Vaticano II fez esta afirmação importante:
Só pela luz da fé e meditação da palavra de Deus pode alguém,
sempre e por toda a parte, divisar Deus em quem “vivemos e nos
movemos e somos” (At 17,28), procurar em todo acontecimento
sua vontade, ver Cristo em todos os homens, sejam parentes se-
jam estranhos, proferir julgamentos corretos sobre o verdadeiro
significado e valor das coisas temporais em si mesmas e em relação
ao fim do homem” (AA n. 4).
Dom Bosco não podia conhecer essas palavras, porém o
senso cristão o guiou a praticá-las de maneira perfeita, sob o
influxo do Espírito Santo. Vivia a sua fé na Igreja e com a Igreja:
“Tornados membros do sacratíssimo Corpo de Jesus, devemos
nos manter estreitamente unidos a ele, mas, concretamente,
no crer e no fazer”.
Educava os jovens a lutar contra o inimigo com as armas
“invencíveis” da fé. Lemos no movimentado sonho sobre a
fé vitoriosa: “Levantai-vos, levantai-vos, filhos! Reavivemos,
fortifiquemos nossa fé, elevemos os nossos corações a Deus!”.
Implorava na oração “aquela fé que transporta as montanhas
para o lugar dos vales e os vales para o lugar das montanhas”.
Obviamente, ele não transportou as montanhas para os vales,
mas se deve à sua fé inabalável se, do nada, elevou verdadeiras
montanhas para o céu, no sentido mais que metafórico. Re-
cordemos as três grandes igrejas que ele construiu: de Nossa

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Pietro Brocardo 201
Senhora Auxiliadora e de São João Evangelista, em Turim, e
do Sagrado Coração, em Roma. Pensemos na expansão da sua
obra com meios humanamente inadequados. Para defesa da
fé, diversas vezes pôs em risco a própria vida e foi somente a
vontade decidida de levar a fé entre os mais distantes que o fez
enfrentar a desmedida faina das expedições missionárias.
O santo parecia submerso em um acúmulo de afazeres e de
atividades, mas a sua fé era a alma de tudo: sabia apreender o
invisível no visível; sabia colaborar, como poucos, com o divino
Ressuscitado para a difusão do Reino e a salvação das almas. O
padre Viganò escreveu:
Dom Bosco percebia quase espontaneamente a espessura histórica
da fé cristã. Também como estudioso e como escritor, é um entu-
siasta dos aspectos concretos da história da salvação. De fato, mais
que um pensador, é um narrador de Deus, um narrador da história
sagrada, um narrador da vida dos santos e da história da Igreja.
Sempre lutou para que os seus filhos tivessem uma fé “ope-
rante” e “dinâmica” como quer São Tiago (cf. Tg 2,17). Foi
um incomparável “educador da fé” de gerações de jovens. Sua
exortação a “trabalhar com fé” não era apenas uma convicção
arraigada na sua alma: era a expressão do seu viver, uma síntese
da sua existência e da sua orientação global em Deus.
Esperança
A esperança está intimamente ligada à fé (cf. Hb 11,1).
Afirma F.-X. Durrwell:
Com efeito, o que constitui o objeto da fé, o poder de Deus que
em Cristo opera a salvação do mundo, é ao mesmo tempo o
motivo de nossa esperança; quem se encaminha na fé não pode
deixar de lado a esperança (Tt 1,1).
Os batizados são crentes e são homens que esperam em

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202 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Cristo (cf. 1Cor 15,18).
Para Dom Bosco, como para todos os cristãos, porém em
grau superior ao agir comum, a esperança brota da sua fé intensa
e lhe dá coragem em suas ousadias, em seus empreendimentos
e em suas provas. Aos seus filhos, oprimidos pelas fadigas, reco-
menda: “Quando estamos cansados, quando temos tribulações,
elevemos os olhos ao céu; uma grande recompensa nos espera
em vida, na morte e na eternidade”. Eis um modo tipicamente
seu de pensar e argumentar. A sua mente não se fixa no passa-
do, nem se fecha no átimo presente, mas se alonga, como por
instinto, para as realidades últimas.
Sem anseio pelo eterno, não há esperança. O pensamento do
paraíso, motivo de esperança, é, como no padre Cafasso, “uma
das idéias soberanas” – expressão de P. Stella – de Dom Bosco,
uma dominante da sua vida e dos seus escritos biográficos. A
expressão muitas vezes repetida “Um pedaço de paraíso ajusta
tudo”, do seu mestre de espírito, se tornou também sua.
O homem que parecia inteiramente absorvido pelas atividades
terrenas, na realidade gravitava em volta do eterno. Costumava
dizer: “Caminhai com os pés sobre a terra” – eis seu realismo –
“mas, com o coração, habitai no céu” – eis a sua esperança.
A esperança, mesmo reconhecendo o “já” da salvação, não se
descuida do “não ainda”. Não ignora os riscos e as dificuldades
encontradas pelo homem decaído e inclinado ao mal, que vive
e faz a história. Por isso, lhe infunde a certeza sobrenatural
da presença e da ajuda onipotente do Ressuscitado e do seu
Espírito. A inteligência da fé, que leva Dom Bosco a perceber
com lucidez o mal do mundo, que precisa ser tratado e pre-
venido, e as imensas possibilidades de bem, que precisam ser
desenvolvidas, também estimula vigorosamente o dinamismo
da sua esperança, lançando-o à ação. Repetia com freqüência:
“Coragem, trabalhemos, trabalhemos sempre, porque lá em
cima teremos um repouso eterno!”.

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Pietro Brocardo 203
Dizia ainda: “Toda a nossa confiança seja posta em Deus, e
esperemos tudo dele”. Tudo de Deus e de Cristo, “nossa espe-
rança” (cf. 1Tm 1,1), nosso Salvador. A esperança aguarda por
“ele em pessoa, mas com toda a sua obra, a história da salvação,
a ordem cristã”, como afirma o teólogo G. Thils. Dom Bosco
exortava: “Devemos todos pôr em Cristo nossa confiança, crer
nele, esperar nele, porque só Ele, com a sua paixão e morte, nos
fez filhos de Deus, seus irmãos, herdeiros dos mesmos tesou-
ros do céu”. E quanto o santo não fez pelo advento do Reino!
Quanto não fez para elevar, transfigurar, humanizar a ordem
do mundo, das pessoas e das coisas!
A esperança é uma atitude onipresente na vida de Dom
Bosco, tanto quanto a fé e a caridade. A esperança é a expec-
tativa dos bens futuros, o arremesso para a posse de Deus, a
certeza do Deus “diante de si” e, inseparavelmente, a confiança
ilimitada no auxílio do Pai e de Jesus. É a voz de encorajamento
do Espírito Santo, que o impulsiona a empreendimentos auda-
ciosos, inéditos, não isentos de riscos. A Escritura ensina que a
esperança, mesmo que tenha asas, não está livre da escuridão e
das tentações, e nem sempre triunfa. A fé implica luta, combate,
prova. À marquesa M. Frassati escreve: “Faz algumas semanas
que eu vivo de esperança e de aflições”. Também desse ponto de
vista, Dom Bosco se revela grande na esperança, porque capaz
de “esperar contra toda esperança” e de tentar o humanamente
impossível, confiando apenas na força de Deus.
Repetia muitas vezes a frase de São Paulo: “Tudo posso na-
quele que me dá força” (Fl 4,13). E ainda: “Nada disso existe
no paraíso”; “Coragem! A esperança vos sustente quando a pa-
ciência pretenderia faltar”; “A paciência deve ser sustentada pela
esperança do prêmio”. E, como costumava fazer, levantava a mão
direita para o céu, indicando a sua plena confiança no Senhor.
Outra frase de São Paulo é um motivo recorrente para ele: “Os
sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória

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204 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
que há de ser revelada em nós” (Rm 8,18). Repetimos ainda que
a sua esperança era firme e inabalável, porque ancorada ao “já”
da Páscoa do Senhor, do Pentecostes, da realidade da Igreja, dos
sacramentos, das primícias do Espírito Santo, que nos são dadas
em germe, razão não-última da sua incansável atividade.
Entre os frutos mais belos da esperança na vida de Dom
Bosco, lembramos alguns: o júbilo que prorrompe, inerente à
certeza do “já” da fé; a paciência inalterável nas provas, aliada
às exigências do “não ainda”; a sua sensibilidade pedagógica, na
qual têm grande importância a confiança nos recursos positivos
da personalidade juvenil; a magnanimidade; a sagacidade; a
santa malícia. São virtudes típicas de quem crê e espera firme-
mente que o seu futuro “não engana”.
Em uma palavra como em cem, quando exortava os seus
discípulos a “trabalhar com esperança”, Dom Bosco os con-
vidava a contemplar o paraíso, para o qual somos feitos, e a
confiar no auxílio onipotente do Pai celeste e de Maria. Mas, ao
mesmo tempo, os levava a se empenhar a fundo para combater
os germes do mal que infestam o mundo, e a desenvolver, de
maneira otimista, os germes do bem, a fim de construir um
futuro melhor para a Igreja e para o mundo. Para ele, isso sig-
nificava “trabalhar com esperança”.
Caridade
A caridade teologal abrange todas as atitudes da existência
cristã, tanto no âmbito da pessoa, como da Igreja e do mundo.
Antes mesmo de ser norma ética e mandamento do Senhor, a
caridade constitui o “dom primeiro e mais necessário” do Pai
(LG n. 42), por meio do Filho e do Espírito Santo, derramado
generosamente nos nossos corações (cf. Rm 5,5). É uma atitude
de amor radical para com Deus, amado sobre todas as coisas, e
para com o próximo, amado por amor a Ele. Deus está sempre

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Pietro Brocardo 205
em primeiro lugar: “Deus é amor: quem permanece no amor
permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). Só o
seu amor é causa e fonte do nosso amor pelo próximo. O amor
de Deus e do Salvador, uma vez experimentado, nos “cons-
trange” (cf. 2Cor 5,14) a amar a todos, bons e maus, amigos e
inimigos, e a amá-los “no espaço da pessoa divina (...) na mesma
linha do amor de Deus” – segundo o teólogo S. Dianich –, que
manda o seu sol sobre os justos e sobre os injustos.
A caridade amável é o traço mais característico de Dom
Bosco, a sua recomendação mais insistente. Não podemos nos
repetir: as referências sobre a caridade do santo dos Becchi corre
em filigrana, se pode dizer, em todas as páginas do quanto temos
dito. Também o aspecto da caridade como morte a si mesmo,
como dedicação aos outros, sem restrições e antipatias, em união
vital com o Cristo crucificado, está sempre subentendido. Aqui
lembramos apenas que, se ele se detém de preferência no exer-
cício da caridade para com o próximo, dá sempre a precedência
absoluta ao amor de Deus. Afirmava:
Trabalhar com caridade para com Deus. Só Ele é digno de ser
amado e servido, remunerador verdadeiro de todas as mínimas
coisas que fazemos por ele. Ele nos retribui como um Pai cheio
de afeto. Charitate perpetua dilexi te... (Jr 31,3).47
O olhar de Dom Bosco sobre Deus não está nunca separado
da certeza de que Deus nos ama com ternura infinita, como
Pai, e da idéia da recompensa que reserva para os seus eleitos.
Deus, dizia, é “infinitamente rico e de generosidade infinita”:
Como rico, pode nos dar copiosa recompensa por todas as coisas
feitas pelo seu amor; como Pai de generosidade infinita, paga em
medida abundante todas as mínimas coisas que façamos por amor.
“Fazer por amor”, “trabalhar por amor” é toda a sua vida, a
sua grande recomendação. Prova-o este testemunho autorizado

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206 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
do cardeal Cagliero, escolhido entre muitos:
O amor divino transparecia da sua face, de toda a pessoa, de todas
as palavras que lhe brotavam do coração, quando falava de Deus
no púlpito, no confessionário, nas conferências privadas e públicas
e nas próprias conversas familiares. Esse amor foi o único anseio, o
único suspiro, o mais ardente desejo de toda a sua vida.
Dom Bosco é certamente um grande apaixonado por Deus,
mesmo que saiba se ocultar habilmente.
Como modelo prático de vida a ser proposta aos seus filhos,
não encontrou nada melhor que a doce bondade de São Francis-
co de Sales, a delicadeza da sua caridade mansa e paciente. Não
importava a ele, filho de humildes camponeses, que Francisco
de Sales fosse um santo aristocrático, filho de príncipes. O que
mais admirava nele, “doutor da caridade”, era a coragem de-
monstrada na defesa e promoção da fé, a constante mansidão
e doçura. Entre os propósitos da primeira missa, não foi por
acaso que escreveu: “A caridade e a doçura de São Francisco
de Sales me guiem em todas as coisas”. E quis que dele – ima-
gem viva do Salvador, como foi definido – a sua Congregação
recebesse o nome.
Esses são indícios muito fugazes que deixam entrever a que
níveis de profundidade Dom Bosco tenha vivido e inculcado
nos outros, com o exemplo e com a palavra, as virtudes teo-
logais da fé, esperança e caridade, elementos constitutivos de
toda santidade. Uma fé, a sua, fundamento e base de tudo;
uma esperança radicada no triunfo do Senhor; e uma caridade
que é amor que se dá e se doa até ao sacrifício, pois participa
do amor infinito de Deus.
Capítulo VII
Com Deus na oração

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Pietro Brocardo 207
A intensidade da vida teologal dá a medida da intensidade
da vida espiritual. Se esta se tornasse debilitada nos discípulos
de Cristo, a Igreja, segundo Santa Catarina de Sena, conseqüen-
temente se tornaria “inteiramente pálida”. A caridade, por sua
vez, que une ao Deus vivo em Cristo e no Espírito Santo, como
a fé e a esperança, para crescer e frutificar tem necessidade de
se nutrir dos elementos e das energias essenciais próprias da
vida cristã. Entre tais elementos, o Concílio Vaticano II insiste
na “aplicação constante à oração” (LG n. 42). Uma vez que,
como escreve a Congregação para os Religiosos e os Institutos
Seculares no documento A dimensão contemplativa da vida re-
ligiosa, “a oração é a respiração indispensável de toda dimensão
contemplativa” (n. 5), que o Concílio Vaticano II define como
o esforço para “aderir a Deus com a mente e com o coração”
(Perfectae Caritatis, n. 5).
A dimensão contemplativa se exprime no universo da litur-
gia, da escuta da Palavra, da oração, e ainda mais.
Consideremos agora a contemplação orante de Dom Bosco:
vamos falar sobre a sua oração “formal”, ou “oração-exercício”,
que implica a ruptura com toda forma de atividade – rezar assim
é não fazer outra coisa –, e a sua oração “difusa”, ou de “atitude”.
Sobre a oração, nestes últimos anos foram escritos um sem-
número de livros, que ocupam estantes inteiras das bibliotecas
eclesiásticas. Nem todos igualmente transparentes, nem todos
pertinentes. Sobre a essência da oração do cristão, apraz fazer
própria a densa formulação de G. Gozzelino:
O específico da oração cristã se resume no fato de ser inteiramen-
te trinitária e eclesial, porque cristológica: responder ao Pai, no
Espírito e com a Igreja, como filhos no Filho encarnado. Cânon
supremo da oração crente é a doxologia conclusiva das orações
eucarísticas, proclamada pelo celebrante em nome de toda a as-
47 “Esuetme abmloéicaome pamoorredleaerteartniidacdaed.”a[:n.eP.]or Cristo, com Cristo e em Cristo,

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208 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
a vós, Deus Pai onipotente, na unidade do Espírito Santo, toda
honra e toda glória, agora e sempre. Amém”.
Consciente ou não, o cristão que reza não reza senão assim.
E dessa forma rezava Dom Bosco. Há, porém, uma pergunta
que precede tudo isso.
Dom Bosco podia rezar?
A pergunta não é retórica: provém diretamente do que aca-
bamos de dizer a respeito da sua atividade multiforme e quase
contínua, que parecia seqüestrá-lo da oração explícita, que se
verifica tão amplamente na vida de todos os santos. Isso provo-
cou escândalo em um tempo em que não eram poucos os que
consideravam o trabalho como um tempo roubado da oração.
Efetivamente, a sua causa de beatificação se chocou contra
a dificuldade da presença demasiado exígua da oração na sua
vida. De fato, a oração explícita é uma modalidade essencial
da vida cristã, e uma modalidade exigente. Quer no plano sub-
jetivo e psicológico, como “elevação a Deus” e como “escuta”,
“diálogo” ou “conversação” com Ele, quer no plano objetivo,
como “adesão” espiritual ao plano salvífico e ao Reino de Deus
já presente sobre a terra, a “oração-rezada” exige a suspensão
de toda atividade externa, concentração, recolhimento, lugar e
tempo adequados. Todas essas coisas, em uma vida dominada

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22.1 Page 211

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e como que devorada pela ação, como era a de Dom Bosco,
pareciam impossíveis.
O santo havia rezado, sem dúvida, mas, se objetava, não o
suficiente. Há de se reconhecer que não era fácil julgar Dom
Bosco com o parâmetro tradicional. No seu modo de agir, ele
se demonstrava realmente muito diferente dos outros santos.
Num dos depoimentos dos Processos lemos:
É notório que o servo de Deus pedia continuamente e por todas as
partes para obter os meios com os quais desenvolver as suas obras.
Nisso reconheço que o servo de Deus se mostrou bem diverso do
agir dos outros santos, pois os outros teriam feito milagres para
não receber herança. Assim foi com São Filipe Néri. Dom Bosco
teria feito por havê-la, e a teve, para fazer frente às necessidades
do Oratório.
A Censura imputou a Dom Bosco as seguintes atitudes:
Para alcançar os seus objetivos, Dom Bosco contava muito com
a sua própria sagacidade, iniciativa e atividade, e se utilizava,
nas várias direções, de todos os meios humanos. Mais do que a
ajuda divina, buscava os apoios humanos com inexplicável soli-
citude dia e noite, até o extremo das forças (usque ad extremam
fatigationem), até ao ponto de não ser mais capaz de atender às
obrigações da piedade.
Segundo outro censor, a oração não teria tido quase nenhu-
ma relevância na vida de Dom Bosco: “Em tema de oração
propriamente dita, à qual todos os fundadores das novas con-
gregações têm atribuído a máxima importância, se pode dizer
que nada encontro (nihil vel fere nihil reperio)”. E concluía:
“Como se pode declarar heróico alguém que foi tão carente na

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210 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
prática da oração vocal? (Poteritne heroicus in pietate dici qui
adeo deficiens in oratione vocali apparet?)”.
A situação se agravava pelo fato que Dom Bosco, fosse
também por causa de uma persistente enfermidade nos olhos,
da qual sofria desde 1843, mas também em vista das excessivas
ocupações, havia obtido de Pio IX a dispensa da recitação do
breviário: primeiro de viva voz, depois com rescrito regular da
Sagrada Penitenciaria, datado de 19 de novembro de 1864.
Nunca, na história dos processos apostólicos, havia acontecido
fato semelhante: “Nunquam de aliis sanctis viris auditum est! ”.
Devemos convir que o ideal de santidade que se impôs à
consciência cristã, como se viu, é algo tão puro e elevado que
basta uma leve acusação para lhe baixar a auréola. A idéia que
se tinha do sacerdote, depois do Concílio de Trento e sob a
influência da escola francesa, era preponderantemente, como
lembramos, a de homem de culto e de oração. Dom Bosco se
afastava, incautamente, do modelo tradicional dos outros san-
tos, mesmo que só dos de Turim, como, por exemplo, Cafasso,
seu mestre, e do próprio Murialdo, o qual empregava também
quatro horas na preparação, na celebração e na ação de graças
da santa Missa.
Em vão se haveriam de buscar em Dom Bosco aquelas ma-
nifestações exteriores de oração que se encontram nos santos
contemporâneos, como no Cura d’Ars, em Santo Antônio
Maria Claret, ambos grandíssimos apóstolos. Dom Bosco, es-
creve E. Ceria, “não dedicava longo tempo à meditação, como
fizeram outros santos”.
Todavia, possuir um modo próprio de oração não é o
mesmo que não rezar ou rezar muito pouco. De fato, não foi
difícil superar essa dificuldade, depois de se verificar melhor os
depoimentos dos textos citados e de considerar a sua oração na
globalidade da sua vida. Uma contribuição decisiva para a causa

22.3 Page 213

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Pietro Brocardo 211
de Dom Bosco foi a do padre Rinaldi, que, em 29 de setembro
de 1926, escrevendo ao cardeal prefeito da Congregação dos
Ritos, atestava, entre outras coisas:
E aqui, Eminência, permita-me acrescentar a minha íntima
convicção de que o venerável foi realmente um homem de Deus,
continuamente unido a Deus na oração. Nos últimos anos, depois
das manhãs dedicadas a receber pessoas de toda classe e condição
social que de todas as partes acorriam a ele para pedir conselho
ou para receber a sua bênção, costumava permanecer todos os
dias retirado no quarto das 2 às 3 horas, e os superiores não
permitiam que fosse incomodado naquela hora. Mas sendo eu,
de 1883 até à morte do servo de Deus, encarregado de uma casa
de formação de aspirantes ao sacerdócio, e tendo ele me falado
que fosse procurá-lo toda vez que tivesse necessidade, talvez com
indiscrição, mas certamente para poder me aproximar com maior
comodidade, rompi várias vezes a prescrição e, não só no Oratório,
mas em Lanzo, em São Benigno, onde ficava repetidas vezes, em
Mathi e na casa de São João Evangelista em Turim, fui mais de
uma vez ter com ele precisamente naquela hora para conversar. E
àquela hora, em toda a parte e sempre, todas as vezes o surpreendi,
recolhido, com as mãos juntas, em meditação.
Dom Bosco, homem de oração
Diferente, quantitativa e qualitativamente, da de outros
santos, a oração de Dom Bosco não era, porém, menos ver-
dadeira e profunda, como provam os fatos. Os depoimentos
revelaram pouco a pouco em Dom Bosco uma inopinada e
engrandecedora atividade de oração. Faltavam as exterioridades,
os grandes gestos, mas a oração irrompia por toda a parte.
Segundo o padre Ceria, de Dom Bosco se podia afirmar o
que foi destacado na vida de São Bernardo:
Estava sempre ocupado em muitos afazeres. A periferia, naquela

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212 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
sua vida, não causava aborrecimento ao centro e o centro não
causava aborrecimento à periferia. Periferia era a atividade exterior,
centro o recolhimento místico interior.
Pode-se dizer, conforme o padre Barberis, “que rezava sem-
pre. Eu o vi centenas de vezes subindo e descendo as escadas
sempre em oração. Pelos caminhos também rezava. Nas viagens,
quando não corrigia provas, o via sempre em oração”. Aos seus
salesianos, Dom Bosco costumava orientar: “No trem não se
fique nunca ocioso, mas reze o breviário, recite o terço de Nossa
Senhora, ou leia algum bom livro”.
Em qualquer momento que lhe pedissem conselhos espiritu-
ais, os tinha sempre prontos, “como naquele momento estivesse
saindo da conversa com Deus”.
Embora dispensado da recitação do breviário, na realidade
o rezava quase sempre e com grande devoção. Impedido por
força maior, o supria, como se deduz desta promessa formal e
heróica, “com não praticar ato ou pronunciar palavra que não
tivesse em vista a glória de Deus”.
Testemunhas irrepreensíveis dizem que, quando rezava,
“tinha algo de anjo”. Depôs o coadjutor Pedro Enria:
Rezava de joelhos, com a cabeça levemente inclinada, e mantinha
um ar sorridente. Quem estivesse perto dele também era levado
a rezar bem. Vivi com ele durante trinta e cinco anos e sempre
o vi rezar assim.
Considerava a oração como a partilha voluntária, da parte
de Deus, da sua onipotência com a fraqueza humana e lhe dava
uma precedência absoluta: “A oração, eis a primeira coisa”; “Não
se começa bem senão do céu”.
A oração era para ele um “primum” absolutamente indispen-
sável, porque a oração “obtém tudo e triunfa de tudo”. Ela vem
a ser o mesmo que é “a água para o peixe, o ar para o pássaro,

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Pietro Brocardo 213
a fonte para o cervo, o calor para o corpo”, “para o soldado, a
espada”. “A oração faz violência ao coração de Deus.”
Pregando os exercícios aos seus jovens salesianos, recomen-
dava o dito do Apóstolo: “Sine intermissione orate” (1Ts 5,17).48
Com prazer fazia próprios os altos elogios que a tradição cristã
sempre fez da oração; “Os Padres a chamam a corrente de
ouro com que nos ligamos ao céu, o pão da alma, a chave do
paraíso”. Não é possível empenho cristão sem oração: “Todos
aqueles que se entregaram ao serviço do Senhor fizeram cons-
tantemente uso da oração”. Também a vigília noturna devia
ser ocasião de oração:
Chegada a hora do repouso, se deitar com as mãos juntas sobre
o peito. Rezar até que estejamos adormecidos e, toda vez que
acordarmos durante a noite, retomar a oração. Recitar jaculatórias,
beijar o escapulário, ou o crucifixo, ou a medalha que se carrega
na veste. Ter na cela um pouco de água benta: fazer o sinal da
santa cruz com fé.
Dir-se-á que se trata de gestos devotos superados pelo tem-
po. Não obstante, são simplesmente atos radicados na piedade
cristã, vivos na vida e na práxis de almas simples até hoje. Por
que não deixar ao Espírito a liberdade de inspirar como quer
e onde quer?
A sua instituição está fundada sobre a oração: “Dei o nome
Oratório a esta casa para indicar bem claramente como a oração
é a única potência na qual podemos depositar confiança”.
Em Valdocco se respirava no ar a oração e o espírito de oração.
Podia ser lido no semblante dos seus moradores, muitos dos quais
formariam a primeira geração salesiana. Escreve o padre Ceria:
Nós chegamos a conhecê-los: homens tão diferentes em talento
e cultura, tão desiguais em seus hábitos. Em todos, porém, se
destacavam certos traços comuns característicos, que constituíam
quase os seus contornos de origem: calma serena no dizer e no

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214 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
fazer; paternidade bondosa nos modos e expressões; mas parti-
cularmente uma piedade, que se percebia ser, no conceito deles,
o ubi consistam, o fulcro da vida salesiana. Rezavam muito, com
grande devoção: dava-se muita importância a que se rezasse e se
rezasse bem; parecia que não soubessem dizer quatro palavras em
público ou em particular sem que nelas se introduzisse, de algum
modo, a oração. Não obstante, (...) esses homens não demonstravam
possuir graças extraordinárias de oração. De fato, nós os víamos
cumprir, com ingênua simplicidade, apenas as práticas exigidas
pelas Regras ou transmitidas pelos nossos costumes.
A oração de Dom Bosco, que é oração de apóstolo e educa-
dor, tem, de qualquer maneira, características e originalidades
próprias: autêntica e completa na substância, linear e simples
nas suas formas, popular nos seus conteúdos, alegre e festiva
nas suas expressões, é verdadeiramente uma oração ao alcance
de todos e, em especial, das crianças e dos humildes.
É sobretudo a oração dos fiéis de vida ativa e dos apóstolos,
sendo intrinsecamente ordenada à ação e vinculada a ela. Sua
oração, portanto, não é nunca desinteresse e fuga do mundo e
da tarefa de transformá-lo segundo o projeto de Deus, ou dos
homens que precisam ser conquistados para Cristo. A expressão
de Dom Bosco Da mihi animas, caetera tolle, mais do que o
seu lema, é sempre a sua mais ardente oração. Uma oração de
natureza apostólica, porque toda forma de oração é marcada
pela vocação e missão específica.
Como na vida de todo apóstolo autêntico, na de Dom Bosco
a oração explícita precede, acompanha – nas formas idôneas – e
segue a ação como um fator irrenunciável e necessário.
Precede-o, porque é na oração que Dom Bosco pensa a ação,
em Deus e segundo Deus, e a endereça segundo o seu querer e
a sua glória: “Nós começamos as nossas obras com a certeza de
48 “Orai continuamente!” [n.e.]

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Pietro Brocardo 215
que Deus as quer”. Essa certeza era fundada na oração. Antes de
assumir a responsabilidade de fundar o Instituto das Filhas de
Maria Auxiliadora, “as orações comuns e individuais” de todo
o mês de maio, feitas por ele e pelos seus colaboradores mais
diretos, foram orientadas para esse fim. Pio XI interpretou bem
o agir de Dom Bosco quando disse: “É com a oração e com o
sacrifício que se prepara a ação”.
Acompanha-o, nas breves pausas de meditação, como pe-
dido de graça e como súplica de auxílio na hora do cansaço
e da prova: “Não deixemos o ânimo se abater nos perigos e
nas dificuldades; rezemos com confiança e Deus nos dará sua
ajuda”. A oração, assegurava, “é uma poderosa colaboração”,
e acrescentava: “Se não possuirmos absolutamente nada [para
fazer esmola], existe a obra das obras: a oração”. São expressões
sobre as quais não se pode passar por cima com leviandade: só
podem vir de quem vive em união incessante com Deus e que
fez da oração o respiro da própria vida.
Segue-o como ação de graças: “Como o Senhor é bom!”;
“Deus faz as suas obras com magnificência!”.
A oração de Dom Bosco não vive no limbo das boas inten-
ções: toma corpo no que ele chama “práticas de piedade”. O
padre Caviglia escreve:
Dom Bosco não criou nenhuma forma especial de prática ou de
oração ou devoção, como a salve-rainha, o rosário, os exercícios,
a via-sacra e assim por diante. Ele é indiferente às fórmulas e,
em certo sentido, também às formas. É realista e simplificador, e
considera a substância.
Mesmo como fundador, não sente a necessidade de impor
aos seus discípulos outras práticas comunitárias que não sejam
as do “bom cristão” e do “bom padre”, tratando-se de padres.
Do padre exigia, essencialmente, o que se praticava no Co-
légio Eclesiástico: celebração devota da santa missa, ofício das

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216 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
horas, meditação, leitura espiritual, além das práticas e devoções
do bom cristão. Quais fossem as “práticas do bom cristão” não
é difícil dizer. São as orações e os atos de piedade – incluindo
também a recitação de fórmulas que não são propriamente
oração, como por exemplo, as sete obras de misericórdia cor-
porais e espirituais, os dez mandamentos etc. – apresentados no
catecismo da diocese de Turim, que permanece inalterado no
tempo de Dom Bosco, ou contidos nos regulamentos de vida
propostos por autores espirituais. A isso se juntavam as outras
práticas cotidianas, semanais, mensais, anuais, que estavam vivas
no tecido cristão, como: a confissão e comunhão freqüentes,
as visitas ao santíssimo Sacramento, o retiro mensal da boa
morte, os exercícios espirituais anuais, reflorescidos em Turim
no início do século XIX.
Nessas práticas devocionais que vicejavam ao lado da ação
litúrgica e, freqüentemente dentro da própria liturgia – haja
vista a maneira com que se participava da santa missa –, Dom
Bosco via o traçado concreto, e podemos dizer também ideal,
da vida de oração dos pobres. Era, com efeito, o itinerário de
oração proposto pela Igreja, e a Igreja jamais propõe meios
inadequados de santidade.
Apontando para os “deveres gerais do bom cristão”, Dom Bos-
co apontava, portanto, para o alto. Quantitativamente, porque
oferecia à iniciativa pessoal a possibilidade de um grande número
de “práticas” ou de “exercícios”: basta percorrer O jovem instru-
ído, que é o manual de oração proposto pelo santo aos jovens,
para se tomar consciência dela. Qualitativamente, porque Dom
Bosco sabia inocular nos seus jovens o “gosto” pela oração e o
“espírito de nobre precisão” de que falava o papa Pio XI.
Insistia: “As genuflexões e os sinais-da-cruz sejam bem-feitos,
para induzir à oração”. Se, em sintonia com o espírito do seu
tempo, Dom Bosco enfatiza as práticas devocionais, é também
fato que ele não tolera exageros ou intimismos perigosos. O
critério que o guia é prático e autenticamente sobrenatural.

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Pietro Brocardo 217
Não podemos esquecer que a sua escola de oração produziu
jovens santos e heróicos. Não consideramos tampouco um erro
o de haver formulado a vida de oração numa visão prepon-
derantemente ascética, como se usava então. Todavia, a Laus
Deo,49 a “dimensão mistagógica da liturgia”, eram sempre as
pilastras da vida cristã. O cristão se encontra imerso na oração
e na ação litúrgica da Igreja, que ritualiza ao longo do ano os
mistérios da vida de Cristo, mistérios-para-nós. É impensável
que Dom Bosco não vibrasse com a oração litúrgica, por pobre
que fosse, porque imperava o devocionismo. Mas também não
é verdade que o devocionismo não produzisse bons frutos. As
práticas devotas, dizia Dom Bosco, “são o alimento, o apoio e
o bálsamo da virtude”.
Podemos dizer, com absoluta certeza, que ele, tão fiel às
disposições da Igreja e do papa, acolheria hoje com entusiasmo
as orientações e as linhas de renovação litúrgica propostas pelo
Concílio Vaticano II. Não esqueçamos que, a seu modo e no seu
tempo, ele apareceu como inovador da liturgia juvenil. Queria-
-a, de fato, rica em participação e em envolvimento, cheia de
espontaneidade e de iniciativa, variada e festiva, aderente à vida
e voltada para a eternidade.
As orações breves
Na redação primitiva das Constituições, escritas entre 1858-
1859, lemos: “A vida ativa a que tende a nossa Congregação faz
com que os seus membros não possam ter comodidade para
realizar muitas práticas em comum”. Essa expressão insinua,
implicitamente, que são possíveis e recomendáveis muitas outras
formas de oração pessoal. Entre elas, Dom Bosco, seguindo
o ensinamento do Colégio Eclesiástico, deu sempre grande
importância às jaculatórias.
A oratio iaculatoria, “furtiva”, é a oração “pura” e “breve” da
tradição monástica, que prolonga na jornada a oração do coro.

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218 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Os antigos a consideravam o fruto mais belo da lectio divina
e da meditatio. Santo Agostinho fala dela como de “rápidas
mensagens que partem para o endereço de Deus”. São Francisco
de Sales as define como “breves, porém ardentes impulsos do
coração” para Deus, e acrescenta: nelas “consiste a grande obra
da devoção”. Na opinião de G. Gozzelino, “é o fato mais realista
da oração que se torna verdade no respiro da alma”. Alterna
momentos de maior proximidade e mais intensos com outros
mais virtuais e implícitos.
Não era outro o modo de pensar de Dom Bosco, o qual via
nas jaculatórias como que um concentrado da oração vocal e
mental da manhã:
As jaculatórias juntam brevemente a oração vocal e mental (...),
partem do coração e vão a Deus. São dardos incendiados que
enviam a Deus os afetos do coração e ferem os inimigos da alma:
as tentações e os vícios.
Para o santo, em caso de necessidade, elas podiam substituir
a meditação que fosse impedida:
Todos os dias cada um, além das orações vocais, fará ao menos
meia hora de oração mental, a não ser que seja impedido pelo
exercício do sagrado ministério. Nesse caso supri-la-á com a maior
freqüência possível de jaculatórias e oferecerá a Deus, com maior
fervor e afeto, os trabalhos que o impedem de cumprir os exercícios
de piedade estabelecidos.
Chamava a essa suplência “meditação dos mercadores”:
Recomendo a oração mental. Quem não puder fazer a meditação
metódica por ocasião de viagens ou de algum compromisso ou
tarefa que não possa esperar, faça ao menos a meditação que eu
digo dos mercadores. Estes pensam na compra das mercadoria,
49 “A Deus o louvor.” [n.e.]

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Pietro Brocardo 219
na sua venda com lucro, nas eventuais perdas, nas que já teve e
em como repará-las, nos lucros obtidos e nos que pode conseguir
a mais, e assim por diante.
É o que São Francisco de Sales – com uma imagem mais
familiar aos seus destinatários – afirma na Filotéia, livro que
Dom Bosco não conheceu:
Assim como os que estão presos por um amor humano e natural
têm quase continuamente o pensamento voltado para o ser amado,
o coração cheio de afeto para com ele, a boca repleta dos seus
louvores (...), do mesmo modo os que amam a Deus não podem
deixar de pensar nele.
As aspirações, as jaculatórias – oração fácil, essencial, secreta,
sempre ao alcance da mão – serviam maravilhosamente, sem
dúvida, ao santo dos jovens para manter alerta o pensamento
em Deus. O fervor com que prorrompiam do seu coração na
idade avançada demonstram o quanto essa forma de oração
estava arraigada na sua vida.
Oração-atitude
Os exercícios de piedade e as orações breves (oração-exer-
cício) não representam toda a oração de Dom Bosco. Uma
outra forma, predominante ou quase contínua, é a que, sob
diversas conotações, apresenta significados afins: oração “geral”,
“implícita”, “virtual”, “difusa”. Atualmente se prefere chamá-
-la “oração de vida”, “oração na situação”, “oração-atitude”.
É consciência da presença diante de Deus e atenção a ele nas
atividades do dia-a-dia.
É oração verdadeira – louvor, adoração, oferenda etc. – por-
que é um caminhar com Cristo dentro das realidades humanas
e um viver nele, com Ele e por Ele. Verdadeira, diria Leonzio
di Grandmaison, em sentido geral, porque “nos une a Deus,

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220 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
nos torna flexíveis e dóceis às suas inspirações, nos harmoniza
com a sua vontade de preferência e de beneplácito, e porque,
mesmo supondo certo número de atos positivos, persevera ainda
depois, por muito tempo, e informa nossa vida bem além dos
poucos momentos consagrados a tais atos”. É o estilo cristão da
existência, a liturgia da vida, com a qual os fiéis “se oferecem
em serviço de amor a Deus e aos homens, aderindo à ação
de Cristo” (Constituição apostólica Laudis Canticum, sobre
a Liturgia das Horas, n. 8). É a maneira prática de cumprir a
palavra do Evangelho: “Orai sempre”.
Desde Orígenes, a tradição cristã aplica essas palavras tam-
bém à oração explícita, ou das “boas obras”, da “vida digna”.
Reza sempre quem reza todos os dias e no tempo de agir só
pratica obras boas, conformes à vontade de Deus.
Santo Agostinho afirma: “Non tantum lingua canta sed etiam
assumpto bonorum operum psalterio” [“Canta a Deus não só
com a língua, mas também tomando nas mãos o saltério das
boas obras”]. Guiado pelo Espírito, Dom Bosco se movimenta
perfeitamente nesse horizonte.
É muito significativo o fato que ele, redigindo as Constitui-
ções para os seus salesianos, coloque no capítulo das práticas de
piedade dois artigos que se referem mais às boas obras do que
à oração propriamente dita:
A vida ativa à qual tende a nossa Congregação faz com que os seus
membros não possam ter comodidade para realizar muitas práticas
em comum. Procurarão suprir com o bom exemplo recíproco e com
o cumprimento perfeito dos deveres gerais dos cristãos.
A compostura da pessoa, a pronúncia clara, devota, distinta
das palavras dos ofícios divinos, e a modéstia no falar, ver, ca-
minhar em casa e fora de casa devem ser coisas características
dos nossos sócios.
Estamos na linha de pensamento de São Paulo: “Tudo o

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Pietro Brocardo 221
que disserdes ou fizerdes, que seja sempre em nome do Senhor
Jesus, por ele dando graças a Deus Pai” (Cl 3,17). O Apóstolo
é ainda mais claro: “Quer comais, quer bebais, quer façais outra
coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10,31).
A linguagem da oração é usada a propósito do modo cristão
de viver. Rezando ou trabalhando, é possível o contato real e
a união indestrutível com Deus. Assim pensava Dom Bosco
quando exortava – “e o fazia milhares e milhares de vezes”, se-
gundo o cardeal Cagliero – a trabalhar para a “glória de Deus”,
aderindo profundamente à vontade dele.
O amor de caridade, vértice da vida teologal, dá consistência
e unidade à vida. Trabalho e oração não são senão dois momen-
tos do mesmo amor.
Nesse sentido, mas só nesse sentido, se pode dizer que traba-
lho é oração. E esse, segundo o padre Ceria, foi o grande segredo
de Dom Bosco, o seu traço mais característico: “A diferença
específica da piedade salesiana está no saber fazer do trabalho
oração”. Pio XI lhe deu solene confirmação:
Esta era, com efeito, uma das suas mais belas características,
isto é, a de estar presente a tudo, atarefado em uma confusão
contínua, aflito de trabalhos, entre uma multidão de pedidos e
consultas, e ter o espírito sempre em outra parte, sempre no alto,
onde o sereno estava sempre imperturbado, onde a calma sempre
dominava soberana, e de tal modo que nele o trabalho era mesmo
oração efetiva, se verificando o grande princípio da vida cristã:
qui laborat orat.
Não existem santos sem oração extraordinária e tal foi a de
Dom Bosco. Uma oração íntima, sentida, sem fendas, escondida
sob um semblante sereno e um agir espontâneo que, porém,
era preciso saber descobrir.
Foi um trabalhador extraordinário, mas também um grande
homem de oração. Rezava muito a sós, silenciosamente, e quase

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222 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
furtivamente, pois lhe causava repulsa se fazer notar; rezava com os
seus jovens “sempre”, até ao ponto em que as suas ocupações lho
permitiram; rezava antes de fazer as pregações, antes de exercer
o ministério, antes de se aproximar de personagens importantes,
antes de enfrentar situações delicadas e difíceis. Rezava mais
intensamente na hora das provas duríssimas que atravessaram a
sua vida. Como educador, não se cansou de insuflar no ânimo
dos jovens o amor pela oração, de uma forma que se tornava
agradável, na medida do jovem. Queria-a, porém, sincera,
fervorosa, cheia de fé: “As orações devem ser manifestações de
fé que convidem os assistentes a louvar a Deus”.
O padre Albera, profundo conhecedor do seu espírito, afir-
ma: “Ele queria que as próprias obras de piedade fossem mais
espontâneas do que prescritas”. Quando avistava, ao longo do
dia, um bom número de jovens ir à igreja espontaneamente
para rezar, exultava: “Esta é para mim a consolação máxima”.
De consciência delicada, sentiu a necessidade de deixar estas
linhas no seu testamento espiritual – que não tem nenhum
parentesco, por exemplo, com o de São Leonardo Murialdo,
muito mais rico, pois o de Dom Bosco é mais simples, familiar,
prático e, ao mesmo tempo, afetuoso:
Devo mesmo apresentar as minhas escusas se alguém observou
que várias vezes fiz uma preparação ou uma ação de graças à santa
missa excessivamente breve. Eu era de certo modo constrangido
a isso pela multidão de pessoas que me cercavam na sacristia,
tolhendo-me a possibilidade de rezar seja antes, seja depois da
santa missa.
Essa humilde confissão fala por si mesma da importância
que ele atribuía à oração. Não sem razão a Igreja o propõe, hoje
como ontem, como modelo de oração a todos os fiéis que são
continuamente tentados, na sua vida de oração, pelo materia-
lismo secular, pelo aparente silêncio de Deus na história, pela

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Pietro Brocardo 223
febre da ação pela ação, e pelo sucesso sem alma, sem ideais
para propor.
Capítulo VIII
Com Deus na ação
A vida de Dom Bosco é verdadeiramente perpassada pela
oração – nas suas diversas expressões – como o leito do rio por
suas águas. A sua intensa união com Deus sorve perenemente
dessa fonte inexaurível. A mesma afirmação pode ser feita a
respeito da sua multiforme atividade: da mais sagrada à mais
cotidiana e rotineira, ele soube vivê-la como lugar do seu encon-
tro habitual com Deus, como o leitor pôde constatar até aqui.
Parece, no entanto, legítimo, e um dever, mesmo que seja apenas
a título de corolário, precisar melhor como é possível imprimir
interioridade e significado sobrenatural à ação enquanto tal e
averiguar como Dom Bosco o fez.
Partindo do pressuposto que a união com Deus na ação,
é, essencialmente, participação, em graus diversos, no próprio
agir de Deus Criador e Salvador, podemos distinguir, simpli-
ficando, três campos de ação ou três tipos de mediação, dos
quais o santo se serviu para entrar e permanecer em comunhão
com Deus: a especificamente sacerdotal, a caridade pastoral e
as atividades profanas.
Com Deus no ministério
As atividades ministeriais, que Dom Bosco desenvolveu em
virtude do caráter sacerdotal e que o configura a Cristo Cabeça
e faz dele um colaborador essencial do bispo, para a edificação
da Igreja, se distinguem, como salientam os autores, de qual-
quer outra forma de atividade beneficente. Elas são a continua-
ção e o prolongamento da própria atividade redentora de
Cristo, que difunde a sua mensagem de salvação e comunica a

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224 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
vida divina. Nesse tipo de ação, Dom Bosco opera in persona
Christi [na pessoa de Cristo], é o seu “instrumento vivo”. Por
isso, não só as suas intenções são espirituais, mas é espiritual
também a própria estrutura da ação que realiza, no sentido
em que prolonga diretamente o agir salvífico e atual de Cristo.
Dessa forma, o agir apostólico facilita em muito a união com
Deus. “Basta que o apóstolo, por assim dizer, adira seriamente à
sua atividade apostólica, para que penetre na ordem sobrenatu-
ral e participe na efusão da graça”, afirma Ch. Bernard. Ou seja,
basta que corresponda à “graça especial” do seu sacerdócio para
que lhe seja permitido “tender mais adequadamente à perfeição
daquele a quem representa, e para que a santidade daquele que
se fez por nós Pontífice (...) possa remediar à fraqueza do homem
carnal” (Presbyterorum Ordinis, n. 12).
Em uma palavra, basta que saia, digamos assim, fora de si
(êxtase) e se una intensamente à ação com a qual Cristo ressus-
citado continua a realizar a salvação do mundo, para entrar em
sintonia com Ele e se tornar progressivamente conforme a Ele.
É o que fazia Dom Bosco, movido pelo seu instinto espiri-
tual. Mesmo com uma visão teológica sobre o sacerdócio muito
pobre, sob o impulso do Espírito e com a guia do excepcional
formador de sacerdotes que foi padre Cafasso, ele fez da sua
identificação mística com Cristo sacerdote a alma da sua alma.
Nesse sentido as graves admoestações que os bispos celebrantes
lhe dirigiam, à medida que se aproximava das ordens sacras, o
ajudaram a se orientar: “Imitamini quod tractatis” [“Vivei o que
fazeis”]. Estimulava-o o catecismo da diocese, que sugeria, entre
os modos de como assistir ao divino sacrifício, o de “se unir aos
fins” pelos quais se celebra, de “contemplar a paixão e morte de

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Jesus Cristo”, de “se unir a ele espiritualmente”. Ele próprio,
desde a primeira edição de O jovem instruído, havia indicado
um “Modo de assistir com fruto à santa missa”, inspirado em
textos antigos e rico em pensamentos simples e tocantes. No
ponto sobre “Advertência inicial”, se lia: “Compreendei bem,
ó filhos, que no assistir à santa missa fazeis o mesmo como se
vísseis o Divino Salvador sair de Jerusalém e carregar a cruz sobre
o Monte Calvário (...), e lá derramar o seu sangue até a última
gota” pela nossa salvação. Mas o catecismo sugeria também que
durante a missa podiam ser recitadas outras orações. A prática do
rosário, já difundida e que a certo ponto Dom Bosco considerou
a mais adequada para os seus jovens, se tornou uma constante.
Humilde, nunca rejeitou demostrações de respeito todas as
vezes que eram voltadas a honrar nele a dignidade do sacerdote,
imagem viva de Cristo. Um dia, disse a algumas pessoas que o
elogiavam: “Estou muito contente que se tenha tanta estima
pelo caráter sacerdotal; por mais que se fale bem do sacerdote,
nunca se dirá o suficiente”.
Considerou-se sempre e apenas, como teve oportunidade
de repetir em diversas circunstâncias, um humilde instrumento
nas mãos “sapientíssimas e onipotentes” de Deus. Chegou a
dizer um dia, como já lembramos: “Eu creio que, se o Senhor
houvesse encontrado um instrumento mais vil, mais fraco que
eu, teria feito cem vezes mais do que eu fiz”. Como acontece
com os santos, quanto mais próximos e unidos a Deus, tanto
mais se abismam na humildade.
No exercício das suas funções sacerdotais, Dom Bosco se
mostrava um homem completamente abstraído das coisas
deste mundo, tanto estava recolhido em Deus. Todos podiam

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226 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
constatá-lo quando celebrava a santa missa, quando falava de
Deus com uma unção que lhe vinha de regiões superiores.
Como observa o padre Ceria, permanecia, por exemplo, no
confessionário “muitas horas seguidas, inteiramente compe-
netrado no seu ministério, sem mostras de tédio, sem nunca
interromper por razões humanas”. E continua:
Não suspendia sequer quando interesses excepcionais pareciam
aconselhar fazê-lo. É inútil discutir: para os santos, não existem
negócios terrenos que prevaleçam em confronto com os interesses
celestes.
Assim era Dom Bosco. Nele, o exercício do sagrado minis-
tério era realmente ocasião cotidiana para crescer “no amor de
Deus e do próximo” (LG n. 41).
Com Deus nas atividades caritativas
Dizer Dom Bosco é dizer caridade: caridade inexaurível no trato
com o próximo, caridade inefável ao consolar aflitos e confortar
moribundos, caridade heróica na busca dos meios para praticar
a caridade.
Prova-o sua vida inteira. Ora, o fato de que ele, nas suas
relações de caridade para com todos – tão envolventes e ricas
de calor humano – não operasse mais in persona Christi e, por
isso, não fosse mais o seu prolongamento direto na atividade
salvífica e santificadora, não impedia que fizesse da sua caridade
uma mediação privilegiada da sua habitual união com Deus. E
isso sobretudo por três razões bem conhecidas.
A primeira, porque a caridade é dom do amor infinito de
Deus que apela à liberdade de escolha do amor correspondido:
“Procurai o amor” (1Cor 14,1); “Vivei no amor” (Ef 5,2).
A segunda advém do fato que toda ação positiva em favor do
próximo, toda relação de verdadeiro amor e de troca recíproca

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Pietro Brocardo 227
é sempre participação em Cristo na ação mesma de Deus-
-Trindade, na qual cada Pessoa existe só para se dar e se doando.
A terceira, porque todo exercício de caridade para com o
próximo é o cumprimento do grande mandamento de Jesus:
“Amai-vos uns aos outros” (Jo 13,34). As boas obras feitas pelos
justos são feitas a Jesus: “Foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40).
O serviço ao próximo que prescindisse de Deus e do seu
amor não seria caridade, assim como não o seria um amor de
Deus que prescindisse da caridade. É o que afirma o padre
Viganò: “O verdadeiro Deus é inconcebível sem o seu inefável
amor ao homem; e o verdadeiro próximo é impensável, a não ser
como imagem de Deus”. A tradição cristã, de Santo Agostinho
a São Gregório, a São Bernardo e aos santos modernos, nunca
separou a vida cristã do empenho da caridade. Quando se impõe
a escolha entre a oração e um dever certo de caridade, todos afir-
mam que o dever de caridade é mais urgente, porque é a resposta
a uma vontade de Deus mais evidente (cf. Mt 25,31-46). Dom
Bosco se movimentou sempre nessa perspectiva. Amava a Deus
no próximo e o próximo em Deus. Escreve o padre Rua:
Ele via no seu próximo a obra de Deus, e Deus mesmo no pró-
ximo. Via em cada um dos homens um irmão em Jesus Cristo e
por isso os amava por amor de Deus. (...) Não era simplesmente
simpatia natural. Era o amor de Deus, a caridade de Jesus Cristo
que o estimulava a se gastar todo pelo seu próximo.
Estava convencido de que os jovens são a “delícia e a
pupila dos olhos de Deus”, e os amava com uma predileção
sem limites. E quanto mais estavam próximos ao Salvador por
causa da pobreza e do abandono deles, mais estimulavam a
sua caridade industriosa.
Mas é preciso dizer também que o próximo – especialmente
os jovens – constituiu o sacramento no qual ele se encontrava
cotidianamente com o Senhor. Os jovens são a “respiração” do
mundo. Dom Bosco respirou a plenos pulmões o “sopro vital”

23.10 Page 230

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228 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
deles, que lhe dava juventude, audácia, alimento espiritual,
alegria, cada vez novos. Entre ele e os seus alunos, houve sem-
pre, de fato, um mútuo dar-se e receber que o deixava repleto
de satisfações profundas: “Oh! qual não é a satisfação que se
experimenta quando se chega à noite cansado e desprovido de
forças, tendo empregado todo o dia para a glória de Deus e a
salvação das almas!”.
Com Deus nas atividades profanas
Até mesmo das atividades de caráter predominantemente
profano, que abundaram na sua vida – trabalhos manuais,
atividades profissionais, escola, imprensa, cultura etc. – Dom
Bosco fez lugar do seu encontro com Deus, caminho para se
elevar a Ele.
Primeiramente, porque toda atividade que tenha por ob-
jeto exclusivo a criatura, contanto que seja honesta, é sempre
participação no agir de Deus, na sua benévola vontade escrita
nas coisas e reguladora dos eventos. A tradição cristã, desde
sempre, vê Deus presente no universo mediante a primeira
revelação. Também o empenho profissional, social, técnico,
sendo cooperação com a intenção criadora de Deus, em si é
bom e pode ser transfigurado e recapitulado no mistério da
encarnação e da redenção.
Sabemos que Dom Bosco santificava as atividades profanas
orientando-as intencionalmente para Deus. A reta intenção tem
uma grande importância na sua espiritualidade, no trabalho
santificado. Dizia: “Para santificar o trabalho, basta fazê-lo com
reta intenção, com atos de união ao Senhor e a Nossa Senhora,
realizando-o da melhor forma que puderes”.
Às Filhas de Maria Auxiliadora, que lhe pediam: “Fala-nos
como é estar sempre na presença de Deus”, ele respondia:
Seria verdadeiramente sublime!... Mas podemos proceder assim:
renovar a intenção de fazer tudo para a maior glória de Deus

24 Pages 231-240

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24.1 Page 231

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Pietro Brocardo 229
toda vez que se muda de ocupação. Não é, pois, tão difícil criar
o hábito da contínua união com Deus.
Dom Bosco não se contradiz: mesmo onde o seu trabalho
parece marcado pelo profano, as suas motivações são elevadas.
Os interesses do Reino e das almas dominam tudo. Aos seus
salesianos confidenciava:
Os homens do mundo podem dizer que o tempo dos religiosos
passou e que os conventos se desmoronam em toda a parte. Nós
queremos, a qualquer custo, cooperar com o Senhor na saúde
das almas.
E se lamentava porque, em Paris como em Washington, em
Londres como em Florença, não se tratasse e discutisse senão a
propósito “de exércitos, de guerras, de conquistas, de finanças”.
A grandeza das suas intenções dava às coisas um conteúdo novo.
O valor da intenção, diz o teólogo Teilhard de Chardin,
“infunde uma alma preciosa em todas as nossas ações”. A reta
intenção, isto é, a vontade de servir unicamente a Deus, é “ver-
dadeiramente a chave de ouro que abre o nosso mundo interior
à presença de Deus. Exprime com energia o valor substancial
da vontade divina”.
A intenção é um elemento muito positivo da vida no Espí-
rito: seremos julgados com base nas intenções do nosso agir.
Verdade é que “a oração e a reta intenção não bastam para mudar
a qualidade intrínseca de uma ação, de um trabalho ou de um
produto, e podem até degenerar em evasão do empenho na
práxis”. Mas no seu santo realismo, Dom Bosco não dissociava
a boa intenção das boas obras. Às boas intenções, das quais o
inferno está calcetado, preferia a obra, mesmo que não fosse
demasiado perfeita. Só a boa obra é a demonstração prática e
a régua segura para medir o verdadeiro amor de Deus.
A reta intenção não era, porém, o único meio pelo qual Dom

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230 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Bosco santificava as atividades profanas. Ele as assumia e vivia
sistematicamente como “deveres de estado”, como exigência
de uma clara disposição divina da qual não se pode esquivar.
Tende-se hoje a colocar o silenciador sobre tudo quanto soa
como imposição ou dever. Na época de Dom Bosco, a “espiri-
tualidade do dever” estava no auge. Também no campo profano,
a ética kantiana tinha o seu séqüito. Para além de possíveis falsas
interpretações, lembramos que se trata de um valor que não
perdeu nem a sua importância nem a sua atualidade.
De fato, se considera como certo que a realidade presente,
mesmo profana, contém a vontade de Deus. D. Caussade escreve:
A ordem de Deus é a plenitude de todos os nossos momentos. Expri-
me-se sob mil aparências diversas, que se tornam necessariamente o
nosso dever presente, formam, fazem crescer em nós o homem novo
até a plenitude que a Sabedoria divina estabeleceu para nós.
Quanto mais o olhar de fé, de esperança e de amor discer-
nir a presença de Deus nas coisas, tanto mais será facilitado o
abandono à sua vontade no momento presente, e é isso o que
verdadeiramente conta. O pleno abandono à vontade de Deus
é a expressão mais alta do seu amor, como afirma G. Gozzelino:
Ama quem faz tudo o que Deus quer, em adesão radical ao querer
de Deus. Ama quem o faz porque Deus o quer, sem outra razão
como fundamento que esse querer de Deus. Ama quem o faz do
melhor modo possível, como exige a excelência de Deus.
Dom Bosco vive nessa óptica e dessa óptica. Com efeito, ele
considera o dever cumprido exatamente como mediação segura
e fácil para realizar a união prática com Deus.
Daí a sua proverbial e quase contínua insistência junto dos
discípulos e jovens sobre o “Deus te vê”, sobre a necessidade
de viver e trabalhar à presença e na presença de Deus: “Esse
pensamento da presença de Deus [aqui e agora] deve nos acom-

24.3 Page 233

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Pietro Brocardo 231
panhar em todo tempo, em todo lugar, em toda ação”. “Cada
um execute os deveres do seu ofício na presença de Deus.”
A espiritualidade de Dom Bosco é decididamente, não ex-
clusivamente, uma espiritualidade do dever. O padre Caviglia
o afirma com autoridade:
A precisão no dever é, para Dom Bosco, o primeiro artigo de toda
santidade, o primeiro postulado da espiritualidade (...). Quem
conhece de perto o santo educador sabe que essa concepção estava
na base de todo o seu trabalho educativo, tanto no ambiente da
vida comum quanto no espiritual.
Teria o santo, que deu tanta importância ao trabalho e à
atividade em geral, intuído que também as atividades profa-
nas podem se orientar para Deus a partir de dentro – desde
que sejam honestas – em razão da sua consistência e relativa
autonomia? São perspectivas modernas que a espiritualidade
tradicional não questionava.
Graça de unidade
Se é verdade que quem é guiado só pela “boa intenção”
dificilmente consegue evitar uma certa dicotomia ou se-
paração entre vida espiritual de um lado, e vida ativa de
outro, precisaremos encontrar algum traço dessa divisão
em Dom Bosco.
Santos como Agostinho, Gregório Magno e muitos outros,
inclusive o próprio Cafasso, sempre sentiram, na plenitude
da sua atividade, uma forte nostalgia dos tempos destinados à
oração. Nada semelhante se encontra na vida de Dom Bosco.
Quando à noite, com Mamãe Margarida, conserta os rasgões
das roupas que os jovens fizeram durante o dia, não lamenta
outros trabalhos mais sacerdotais, não se mostra dividido entre
oração e ação, não sente a nostalgia de outro lugar. Ao contrário,

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232 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
aceita o profano e o transforma, unificando-o com a “graça da
unidade entre interioridade e operosidade”, que é um único
movimento de caridade para com Deus e para com o próximo.
Nessa graça de unidade da vida interior de Dom Bosco,
explica o padre Viganò, encontramos o elemento estratégico
da interioridade salesiana. Unidade entre o quê? Entre o olhar
lançado para Deus – adoração, escuta, oração – e “o empenho
de salvação que lança entre os jovens”. O padre Viganò explica:
De modo, porém, que esse empenho não seja uma distração da-
quele olhar, e que o olhar não seja uma evasão do empenho, de
modo que um alimente o outro, que um seja o apoio, o momento
de busca e ponto de referência para o outro. É mais fácil dizê-lo
que praticá-lo, disso estamos todos convictos. Mas Dom Bosco
o viveu assim.
A graça da unidade pode ser considerada o eixo da sua es-
piritualidade. Uma espiritualidade que não sacrifica a oração à
ação e a ação à oração. Todavia, entre uma urgência apostólica,
caritativa e humanizante, e uma prolongada oração, o carisma
de Dom Bosco o leva a escolher a ação, na qual discerne uma
vontade divina precisa. Mas é preciso também dizer que ele
está de tal modo unido a Deus no momento da ação, que não
lamenta a oração; e está unido a Deus de tal forma na oração,
que não lamenta a ação.
Ação e oração são realmente vividos como momentos con-
vergentes de uma intensa vida teologal, cuja expressão suprema
é a caridade pastoral. Dom Bosco se mostra à vontade tanto na
cidade de Deus como na dos homens, uma vez que, num caso
como no outro, vive imerso em Deus.
Como ele agiam outros apóstolos e missionários insignes.
Lollemann, por exemplo, contemporâneo do santo dos Bec-
chi, procurava justificar o valor santificante da ação apostólica
falando de “união com Deus prática, ativa”. A seu modo, Dom

24.5 Page 235

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Pietro Brocardo 233
Bosco achava prático e lógico não dissociar, mas unir a clássica
tipologia de Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42).
Quando, nas primeiras Constituições das Filhas de Maria
Auxiliadora, quer delinear as características que as devem dis-
tinguir, escreve: “Nelas devem andar lado a lado a vida ativa
e a contemplativa, reproduzindo Marta e Maria, a vida dos
apóstolos e a dos anjos”. Nessas palavras está Dom Bosco por
inteiro, a sua experiência, o segredo da interioridade apostólica.
Nunca Marta sem Maria, nunca Maria sem Marta. Ele jamais
confundiu uma com a outra, colocando-as em relação antitéti-
ca, mas as via compenetradas e entrelaçadas uma na outra, no
impulso unificador da caridade apostólica.
Essa graça se revela no santo, em diversos níveis, sem incerte-
zas e perplexidades, sobretudo nos últimos qüinqüênios da sua
vida. É claro que nele também houve progressos, crescimentos,
conquistas interiores nem sempre fáceis. Mas são caracterizadas
pela síntese vital entre fé e vida, entre ação e contemplação.
Reze ou trabalhe, o seu coração vive no fogo da caridade divina,
“alma do apostolado” (LG n. 33).
Mostra-o, por exemplo, o fato que, quando terminou os cursos
no Colégio Eclesiástico de Turim, aos 29 anos, não é possível
descobrir períodos de certa consistência que ele tenha dedicado à
retomada espiritual, à recarga, ao requiescite pusillum [descansai
um pouco] do Evangelho (cf. Mc 6,31). Os próprios exercícios
espirituais, que fazia todos os anos, eram para ele quase só uma
nova ocasião de distribuir, antes que acumular, porque os pas-
sava, na sua maior parte, atendendo a confissões.
Parece, portanto, que o modo de agir de Dom Bosco jus-
tifique a legitimidade desta conclusão: por si e nas condições
devidas, não é a quantidade de oração que decide a santidade,
como não é também a quantidade da ação, mas sim o grau de
intensidade da vida teologal da fé, esperança e caridade, deter-
minado pela maior ou menor conformidade com a vontade de

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234 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Deus, regra suprema do rezar e do agir. Quando a vontade de
Deus chama para rezar, é preciso rezar; quando chama à ação,
é preciso agir.
Capítulo IX
Dons superiores
À diferença de santos como Teresa de Ávila e João da Cruz,
que descreveram a sua experiência de Deus em páginas entre as
mais elevadas da mística cristã, Dom Bosco, por temperamento
e por razões absolutamente suas, manteve sobre esse ponto uma
reserva total. As suas notas autobiográficas são, segundo o padre
Stella, “em grande parte tardias, e rarissimamente – de maneira
fugaz – é que se consegue surpreender Dom Bosco a exprimir
os próprios sentimentos religiosos íntimos, as motivações do
seu agir”. Todavia, será importante apresentar um esboço dos
graus e estados mais elevados da sua vida – vida realizada no
Espírito –, ainda que venha a ser apenas tocada a superfície de
um mistério bem diversamente profundo.
Êxtase da ação
No Tratado do amor de Deus, São Francisco de Sales retoma
a distinção clássica entre os três tipos de êxtase:
Os êxtases sagrados são de três espécies: um intelectivo, outro
afetivo e o terceiro operativo. O primeiro é luz, o segundo, fervor,
e o terceiro, ação; o primeiro se compõe de admiração, o segundo,
de devoção, e o terceiro, de obras.
Os dois primeiros não têm a solidez do terceiro, porque
podem ser falsificados e se tornar desviadores.
Quando se vê uma pessoa que na oração tem arroubos pelos quais
ela sai e sobe acima de si mesma em Deus e, todavia, não tem ab-

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Pietro Brocardo 235
solutamente o êxtase da vida, isto é, não conduz uma vida elevada
e apegada a Deus (...), é um verdadeiro sinal de que tais arroubos
e tais êxtases não são senão ironias e enganos do espírito maligno.
Infelizmente o santo não se estende na explicação do êxtase
da ação, mas exprime claramente o seu pensamento na descri-
ção a seguir, que é considerada clássica. Leiamo-la mantendo
o olhar fixo em Dom Bosco.
Não furtar, não mentir, não cometer luxúria, rezar a Deus, não
jurar em vão, amar e honrar o pai e a mãe, não matar: isso é viver
segundo a razão natural do homem. Mas deixar todos os pró-
prios bens; amar a pobreza, buscá-la, estimá-la como a amiga do
coração; considerar os insultos, os desprezos, as humilhações, as
perseguições e o martírio como felicidade e bem-aventurança; se
conter dentro dos limites da mais absoluta castidade; e, finalmente,
viver no mundo nesta existência mortal contra todas as opiniões e
máximas do mundo e contra a corrente desta vida, com incessante
resignação, renúncia e abnegação de nós mesmos: isso não é viver
humanamente, mas sobrenaturalmente, não é viver em nós, mas
fora de nós e acima de nós. E visto que ninguém pode sair de tal
modo acima de si mesmo sem que o Eterno Pai não o eleve, em
conseqüência, essa espécie de vida deve ser um enlevo contínuo e
um perpétuo êxtase de ação e de operação. “Vós estais mortos –
dizia o grande Apóstolo aos colossenses (Cl 3,3) – e a vossa vida
está escondida com Cristo em Deus”.
Como se vê, o êxtase da ação ou da vida não é senão a exis-
tência cristã perfeitamente conforme à lei evangélica, a caridade
vivida na sua plenitude, o supremo desapego de si mesmo e
a plena absorção em Deus. Por virtude divina, a existência se
eleva acima de si mesma e vive na máxima perfeição possível,
muito mais além do que possa fazer o cristão comum.

24.8 Page 238

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A expressão “êxtase da ação” não se encontra no vocabu-
lário de Dom Bosco. É duvidoso que a tenha encontrado, e
se a encontrou, não deixou traços evidentes na sua mente.
Não encontramos a palavra, porém, encontramos a coisa. A
descrição do bispo de Genebra do êxtase da ação encontra, de
fato, plena aderência na sua vida. É extraordinário que dois
dos seus sucessores, o padre Rinaldi e o padre Viganò, tenham
visto nessa doutrina de São Francisco de Sales uma expressão
típica da espiritualidade de Dom Bosco: seja porque a caridade
pastoral, que o anima, o leva continuamente a sair de si e a se
identificar com o amor salvífico do Redentor, seja porque a
sua vida terrena é realmente a expressão fiel do que afirma São
Francisco de Sales sobre o êxtase da ação.
A heróica abnegação de Dom Bosco, o contínuo domínio
das paixões, a adesão radical e seguimento de Cristo casto, hu-
milde, pobre; o lento se consumar no trabalho para salvar almas;
a constante busca da vontade e da glória de Deus: tudo isso
não é senão a vida sobre-humana e estática, à qual o Pai eleva
as almas que ama com predileção, porque vivem “totalmente
absortas e como que absorvidas em Deus”. Esse êxtase da vida,
por si, não comporta manifestações estáticas, das quais a vida de
Dom Bosco não está, todavia, de todo isenta. São reveladoras
desse estado de vida: a conduta mais sensível à graça, a atenção
mais habitual às inspirações do Espírito, maior docilidade às
apropriações do mistério cristão.
Fenômenos estáticos
Os fenômenos estáticos se caracterizam pela forte absorção
em Deus e pela suspensão, mais ou menos longa, mais ou me-

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Pietro Brocardo 237
nos intensa, dos sentidos externos, que se tornam como que
impotentes diante da irrupção do divino. A forte fibra de Dom
Bosco o levava a dominar o fogo do amor que lhe ardia dentro
e a não deixar transparecer externamente os seus sentimentos.
Mas nos últimos anos, como resulta de testemunhos fide-
dignos, também ele experimentou os fenômenos estáticos que
usualmente acompanham os graus mais elevados da oração.
Podiam-se entrever em momentos de profundo recolhimento.
Depõe o padre Cerruti no processo informativo:
Quando a dor de cabeça, o peito alquebrado e os olhos semi-
-apagados não lhe permitiam mais trabalhar, era um espetáculo
doloroso e confortante ao mesmo tempo vê-lo passar longas horas
sentado no seu pobre sofá, em lugar às vezes semi-escuro, pois os
seus olhos não toleravam a luz, mas sempre tranqüilo e sorriden-
te, com o terço na mão, os lábios que articulavam jaculatórias e
as mãos que se elevavam de tanto em tanto a manifestar em sua
muda linguagem a união e inteira conformidade com a vontade
de Deus, já que por excessivo cansaço não podia mais exteriorizar
com palavras. Estou intimamente persuadido de que a sua vida,
principalmente nos últimos anos, foi uma oração contínua a Deus.
Momentos de verdadeiro e próprio êxtase arrebatavam
Dom Bosco quando celebrava a santa missa, ou enquanto se
encontrava sozinho na quietude do seu aposento. No inverno
de 1878, os dois jovens que o serviam na santa missa na capela
ao lado do seu quarto, durante a elevação “viram o celebrante
em êxtase e o seu semblante com ar de paraíso: parecia iluminar
toda a capelinha”. A narrativa prossegue:
Então, pouco a pouco, os seus pés foram se desprendendo do chão
e ele permaneceu suspenso no ar por nada menos que dez minutos.
Os dois ajudantes não podiam sequer alcançar a casula. Garrone
[um dos dois], fora de si pelo espanto, correu a chamar o padre
Berto, mas não o encontrou. Ao voltar, chegou no momento em

24.10 Page 240

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238 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
que Dom Bosco descia.
Às vezes o seu corpo se transfigurava e se tornava luminoso,
como se lê a respeito de muitos santos. O padre Lemoyne, por três
noites em horas avançadas, viu a face de Dom Bosco se acender
gradativamente até assumir uma transparência luminosa: todo o
semblante irradiava um esplendor forte e transparente.
Como se dizia, esses fenômenos paramísticos acompanham,
usualmente, o estado místico, a contemplação infusa. Teve Dom
Bosco esse dom, que é, segundo Leonzio de Grandmaison, “a
consciência de entrar, não em virtude de um esforço, mas de
um apelo, em contato imediato, sem imagem, sem palavra, mas
não sem luz, com a Bondade infinita”?
Não é fácil responder com um “sim” ou com um “não”
rápidos, por causa da ausência quase total, da parte de Dom
Bosco, da descrição dos seus estados interiores. O padre
Ceria acredita nisso e procura prová-lo no capítulo “Dom de
oração”, do livro Dom Bosco com Deus. O padre Stella, por sua
vez, embora mais vago e reticente, chega à mesma conclusão
quando escreve:
Se Dom Bosco não nos confia as suas experiências pessoais de
“recolhimento” e de estado unitivo e presencial, se também não
nos dá uma teoria sobre a oração unitiva e sobre a contemplação,
se mostra, contudo, disposto a nos explicar como sendo união e
presença amorosa certos estados de vida espiritual encontrados
em pessoas com as quais conviveu.
Haja vista, por exemplo, São Domingos Sávio, dotado de
“graças”, que Dom Bosco não hesita em definir como especiais,
e de fatos “extraordinários” que têm “plena semelhança com
fatos registrados na Bíblia e na vida dos santos”. Dom Bosco
os associa às graças místicas quando afirma: “A inocência da
vida, o amor para com Deus, o desejo das coisas celestes haviam

25 Pages 241-250

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25.1 Page 241

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Pietro Brocardo 239
levado a mente de Domingos a tal estado que se podia dizer
habitualmente absorto em Deus”. O que se diz do discípulo
vale, com maior razão, para o mestre.
Místico da ação
Na sua atividade multiforme, Dom Bosco foi um místico
no sentido estrito da palavra? A mística assim entendida tem
uma longa história e não encontra definições sempre unívocas.
Simplificando muito, pode-se dizer que objetivamente designa a
realidade oculta do mistério cristão; subjetivamente, a experiên-
cia, totalmente gratuita e infusa, da vida divina que está em nós.
Tradicionalmente, a vida mística culmina na graça da ora-
ção infusa, ou contemplação em sentido estrito. Reconhece-se
todavia que a tipologia da vida mística é mais extensa. Fala-se,
com efeito, também de “mística apostólica”, que é, segundo
Ch. Bernard, “menos conhecida, visto que os místicos ‘apostó-
licos’ não fizeram a teologia da própria vida interior. [A mística
apostólica] tende para a ação e a percepção da presença de Deus
no mundo histórico”. Nesse sentido preciso e formal, dizemos
que Dom Bosco é um místico, porque a sua vida transcorreu
sob um regime habitual dos dons do Espírito Santo, e é um
místico da ação apostólica, porque os dons do Espírito Santo,
que predominam nele, são aqueles ordenados à ação: dom do
conselho, da fortaleza, da piedade e do temor de Deus. A pre-
dominância desses dons sobre os outros, que não são excluídos,
significa apenas que a graça se adapta à natureza e respeita o
seu temperamento e as suas vocações.
À diferença do místico contemplativo, intelectivo ou afeti-
vo, que se perde em Deus, presente no íntimo da sua alma, e
experimenta o agir divino, Dom Bosco, místico ativo, apreende
e experimenta Deus, não só em certos momentos da oração
explícita, mas no exercício mesmo da ação apostólica, caritativa,
humanizante. O santo o toca e o sente enquanto participa e

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240 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
colabora na atuação do seu desígnio salvífico.
Ele sabe que a redenção é um acontecimento em curso.
Deus continua agindo, a cada instante, no coração do homem
e da história: a humanidade vive no hoje de Deus. Dom Bos-
co não só acredita nessa realidade, mas a experimenta e a vive
intensamente. O que os místicos chamam de “toques” divinos,
de “visitas” do Verbo, que vai e volta, são para Dom Bosco as
grandes perspectivas, os clarões repentinos que o iluminam so-
bre a vinda do Reino e que o empenham em empreendimentos
sempre maiores, humanamente impossíveis.
Porque místico – isto é, fruto da predominância da ação divi-
na –, o agir de Dom Bosco transcende as forças e as capacidades
da sua pessoa. As suas obras assombram o mundo e confundem
os sábios, porque não existe relação aparente entre causa e efeito.
Movido e possuído por Deus, ele vai além do humano.
Existe nele a audácia e a ousadia do santo que, forte da força
de Deus, supera a si mesmo. Como Jesus estremece de alegria
na oração do júbilo, assim Dom Bosco vibra de consolação
mística quando contempla Deus agindo no coração dos jovens
e do mundo.
Vimos com quanta humildade ele vive a consciência de
não ser mais que mero instrumento, passivo e ativo ao mesmo
tempo, nas mãos de Deus e da sua Mãe: “Deus faz tudo; Nossa
Senhora faz tudo”. O que “poderia fazer o pobre Dom Bosco
se não viesse do céu, todos os momentos, alguma ajuda espe-
cial”? Essas e semelhantes expressões são como o manifesto da
sua grande alma: dizem muito mais do que pode revelar a sua
complacente simplicidade.
A mística da ação passa, naturalmente, pela via-crúcis: vive
da caridade crucificada e conhece as “noites dos sentidos e do
espírito”. Também vista desse perfil, a vida de Dom Bosco
evoca, sob diversos aspectos, a dos grandes místicos da ha-
giografia cristã.

25.3 Page 243

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Pietro Brocardo 241
Terceira parte
Nossas mãos o tocaram
Da vasta sombra projetada pelo “homem” Dom
Bosco e pelo “santo” João Bosco – que no entanto
constituem uma unidade inseparável – juntamos
aqui alguns testemunhos menores, curiosos e inte-
ressantes, que, por suas repercussões subjacentes,
esclarecem a primeira e a segunda partes deste livro
e de certo modo as conrmam.
Hoje já existe uma biblioteca inteira sobre Dom
Bosco, embora ainda reste muito a ser explorado. Ao
lado da obra dos seus biógrafos – Lemoyne, Amadei,
Ceria –, que reuniram enorme quantidade de dados, e
ao lado dos estudos elaborados com severo rigor cien-
co pelos mais renomados estudiosos de Dom Bosco,
que pesquisam justamente a sua grande história e os
seus sucessivos desdobramentos, houve em torno do
santo uma tradição menor, quase uma mini-história,
conada a recordações remotas, a páginas quase es-
quecidas ou de difícil acesso, que, contudo, não deixa
de ter o seu valor e utilidade.
Trata-se de testemunhos diretos – entre muitos –
que, com todo o respeito pelo livro sagrado, poderiam
dizer: “O que ouvimos, o que vimos com os nossos
olhos, o que contemplamos e o que as nossas mãos
apalparam (...), disso damos testemunho” (1Jo 1,1-2).
Marginais, fragmentários talvez, esses testemunhos
se colocam ao lado da grande história de Dom Bosco
com uma dignidade própria. Possuem o colorido e o

25.4 Page 244

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242 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
magnetismo dos bons tempos antigos, quando podiam
ver de perto o santo. Possuem o mérito especial de
transmitir o clima da santidade, da caridade educativa
e pastoral, na moldura do dia-a-dia quase banal e, por
isso mesmo, muito mais próximo dos pequenos, dos
pobres, do povo.
A suspeita de que os testemunhos, fornecidos tar-
diamente – às vezes muito tardiamente –, não sejam
conáveis é infundada. O cardeal Martini, que na sua
infância assistiu à gloricação de Dom Bosco pelas
ruas de Turim, escreveu:
Nas lembranças das crianças se formam quadros que,
embora não perfeitamente exatos quanto ao rigor histórico,
são a imagem que elas trazem em si de uma vivência épica
que continua a agir nelas como uma misteriosa mensagem.
Foi assim que a gura de Dom Bosco permaneceu em mim.
Limitar a santidade de Dom Bosco ao período nal
da sua vida seria uma falsa cronologia, como se depre-
ende de documentos de indubitável valor histórico e de
testemunhos difusos, quase sempre não registrados,
mas transmitidos de boca em boca, especialmente
entre as pessoas da região do Piemonte, onde o santo
foi mais conhecido.
É curioso, por exemplo, o seguinte testemunho, que
demonstra como a fama de santidade de Dom Bosco,
na sua maturidade, já se difundira pelas cidadezinhas
isoladas da Alta Langa. Este testemunho, reproduzido
por Augusto Pregliasco nas colunas do Unione mon-
regalese, em 11 de fevereiro de 1988, é um pequeno
fragmento da história local vinculado às “missões” que

25.5 Page 245

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Pietro Brocardo 243

25.6 Page 246

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Dom Bosco pregou em novembro de 1857 em Saliceto
Langhe, a convite do pároco, padre Fenoglio.
Há algum tempo lembro de ter falado com amigos da
“preciosidade” (ao menos para mim), que conservo cuida-
dosamente na carteira desde jovem. É um “santinho” em

25.7 Page 247

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que se lê: “Escrito por Dom Bosco. Guardar como preciosa
relíquia”. São poucas palavras, quase indecifráveis, recor-
tadas da carta escrita de Turim ao pai da minha tia, senhor
Martini, secretário da prefeitura de Saliceto, que em 1857
hospedara Dom Bosco por mais de uma semana, durante
a sua permanência em nossa cidade. Diz também que Dom
Bosco viera para adquirir o castelo, contrato que, infeliz-
mente, não foi levado a termo. A minha tia então pensou
em recortar a carta de Dom Bosco e distribuir os “pedaços”
entre todos os parentes (como partilha de uma herança
taumatúrgica). Seria bom reencontrá-los para recompor
o texto, mas os muitos parentes se espalharam até para
outros continentes. Seja como for, esta minha “relíquia”
sempre cou comigo e me protegeu nos anos de escola e
durante os temores da guerra, além de me trazer conforto
nos momentos difíceis.
Precedido pela fama de santidade, o pregador que
vinha de Turim não tinha decepcionado.
Capítulo I
Battistin
O padre Battista Francesia, que nasceu em San Giorgio
Canavese, em 3 de dezembro de 1838, e morreu em Turim,
em 17 de janeiro de 1930, pertence à época dos “Padres da
Congregação”, com o padre Rua, o padre Durando, o cardeal
Cagliero, o padre Albera e outros. Como eles, assistiu ao sur-
gimento e expansão maravilhosa das obras de Dom Bosco,
participou pessoalmente dos eventos heróicos daqueles anos
distantes, compartilhou as alegrias e esperanças do fundador,
assim como as suas lutas e sofrimentos. Em uma carta de Mar-
selha, de 12 de abril de 1885, Dom Bosco o chama de “pupila

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dos meus olhos”. Essa preferência de Dom Bosco remontava à
época em que o conhecera quando jovem – na festa de Todos
os Santos de 1850 – e se justificava pela delicada situação em
que Francesia se encontrava.
Filho de boa família, mas em dificuldades por causa da in-
constância do pai, emigrara da cidade de origem, San Giorgio
Canavese, para se juntar aos seus familiares na cidade de Turim,
em busca de melhores condições de vida. Com 10 anos, o pe-
queno “Battistin” trabalhava como aprendiz em uma fundição
de latão. Turim não era ainda a cidade industrial que se tornaria
em seguida; a urbanização ainda era restrita. O escândalo do
início do século XX, próprio dos países já industrializados,
em que se podiam encontrar crianças, dos 4 aos 7 anos,
obrigadas a trabalhar nas fiações e até nas minas, não existia.
Mas era normal que nas zonas rurais, assim como nas ofici-
nas artesanais, meninos de 10 ou 12 anos, e até menos,
fossem enviados ao campo para realizar trabalhos compatíveis
com a sua idade, ou mesmo a algumas oficinas, como aprendi-
zes, com patrões que podiam ser mais ou menos benevolentes,
mais ou menos compreensivos, e respeitar as exigências da sua
tenra idade.
A Battistin não faltaram maus-tratos, violências físicas e morais:
Por não desejar participar de certos assuntos, fui alvo de gozações
e freqüentemente repreendido e maltratado. O apelido de “jesuíta”
era o menos ofensivo. Mas o pior foi quando passaram às vias de
fato. Com freqüência me davam tapas na nuca, pontapés, e me
beliscavam os braços com tanta força, que eu ficava todo roxo.
Ai de mim se contasse para a minha mãe! Confesso que eu estava
contente e quase virtuosamente feliz com aquelas perseguições e
não ligava para elas.
Dom Bosco, depois de ter examinado o seu bom tempera-
mento, lhe propôs que estudasse e o aceitou definitivamente

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como interno no Oratório, em 22 de junho de 1852. Desde
então, o padre Francesia se dedicou inteiramente ao seu ben-
feitor. Dirá o padre Rinaldi: “O ensinamento mais sugestivo e
mais saudável [do padre Francesia] será o seu grande amor por
Dom Bosco”. E afirma, por sua vez, o padre Francesia:
Dom Bosco era o padre que o Senhor destinara para a minha
salvação. Por isso fiz a seguinte afirmação a seu respeito em outra
época: “Eu o vi, eu o conheci; ele me ama, eu o amo”. Essas pa-
lavras de Silvio Pellico exprimem muito bem a minha condição
com Dom Bosco.
O padre Francesia, homem sensível, delicado, de espírito
quase infantil, bom latinista e poeta talentoso, bastante criativo,
se revela delicadamente nos seus inúmeros escritos sobre Dom
Bosco e os salesianos falecidos. Reproduziremos aqui apenas
alguns trechos extraídos das singelas páginas autobiográficas,
conservadas inéditas no Arquivo Central Salesiano e em três
exemplares datilografados. Essa, por assim dizer, autobiografia

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– muito incompleta, desigual e passível de averiguação – tem
origem curiosa. Escreveu-a para se ver livre da tristeza – ou
melhor, do taedium vitae que se manifesta na velhice – entre
as quatro paredes de um confessionário, entre uma confissão e
outra, quando já tinha mais de 70 anos:
A minha vida agora é monótona. Levanto-me às 4 da manhã, às
vezes antes. Recito o ofício das horas, depois todo o terço antes
da missa. Em seguida vou ao confessionário onde medito, leio, e
consegui escrever todo este caderno sempre fechado aqui dentro,
com a caneta que providencialmente padre Coppo me deu de
presente. Gostaria que tivessem providenciado uma espécie de
estante para mim, mas não me fiz entender bem. A pena de ouro
supre tudo. Seguro o caderno na mão e com uma desenvoltura
admirável escrevo, escrevo, quase melhor do que na escrivaninha.
Quem, ao ler estas páginas, poderia imaginar que foram escritas
com o caderno suspenso?
Olá, Dom Bosco!
Como lembramos, o pequeno Francesia – Battistin – deixou
San Giorgio para se juntar aos pais em Turim; encontrou traba-
lho em uma fundição e toda semana levava para casa duas liras,
“soma que então era espantosa”. O que nos espanta agora é que
meninos tão novos fossem submetidos a trabalhos superiores
às suas forças, para ganhar um pedaço de pão. Neles olhará e
neles pensará Dom Bosco com predileção. Battistin também
teve a sorte de encontrá-lo. Foi assim que aconteceu.
Desde os primeiros dias eu conhecera um vizinho que trabalhava
como marceneiro e que, além de ser da minha cidade, era também
um parente distante. Na festa de Todos os Santos (1850), eu estava
sozinho em casa, a minha mãe fora à sua cidade, e o meu pai saíra,

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250 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
não sei para onde. Esse meu priminho, enquanto jogávamos pião
perto do muro do hospício na Via Giulio, me disse:
– Quer ir até Dom Bosco?
– Pra fazer o quê?
– Hoje estão dando castanhas.
– Mas quem é Dom Bosco?
– É um padre bom que reúne muitos jovens nas festas e ali eles se
divertem. Hoje estão dando castanhas, venha comigo.
Acompanhei-o, e pela primeira vez vi o que era um Oratório em
festa. Aproximei-me, entre aquela confusão de jovens, a passos
largos, como se dizia então, e logo me acostumei, superando os
efeitos da tontura. Como me diverti! Mas, no melhor da festa,
tocou a sineta. Como por encanto, todos os que estavam ao meu
redor se dispersaram. Achei que também tinha de ir embora, então
corri para onde foi possível, e por sorte me choquei com Dom
Bosco, que procurava deter aquela onda de jovens que ameaçava
fugir não sei para onde. Ele logo me disse:
– Veio me dizer duas palavras ao ouvido?
– Sim!
– Mas você sabe o que isso significa?
– É claro, que vou me confessar.
– Muito bem! Você acertou. E como se chama?
– Battistin.
– Agora venha comigo.
Tomou-me pela mão e me levou para a igreja. Coloquei-me sob
a janela – ainda era a antiga capela Pinardi – que ficava perto do
púlpito e ali permaneci durante as duas vésperas, o sermão e a
bênção. Era a primeira vez que assistia tranqüilo e sem medo a
uma função religiosa que durou no mínimo duas horas. Quando
saí da capela já era noite.

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Pietro Brocardo 251
Após a função vi muitos adultos, que depois se tornaram meus
amigos, que rodeavam Dom Bosco. Também fui para lá. Uma
força misteriosa me atraía para ele e, sem saber explicar e com-
preender o que se dizia, eu ficava ali olhando e ouvindo. Um
pouco depois, aquele pequeno grupo se deslocou juntamente com
Dom Bosco e saiu do Oratório rumo à Via Cottolengo daquela
época, depois subiu para a Via Cigna sobre a famosa praça do
Rondó de Valdocco. Cantavam as músicas mais belas que ouvira
na minha cidade e das quais eu gostava muito. A lua estava linda
e já lançava os seus raios pálidos e eu pensava na poesia passada
do Rosário em Família, nas castanhas, na paz com que terminava
aquela tarde e quase para sempre.
Cumprimentei Dom Bosco, dizendo-lhe confusamente: “Olá,
Dom Bosco!”, para espanto dos que estavam perto. “O que está
dizendo? Você deve tratar Dom Bosco por ‘senhor’.” Mas Dom
Bosco não se importou; acariciou o meu rosto, desculpando-me
pela ousadia. Depois desse ato de coragem me afastei pulando
uma vala, que ficou aberta por mais dez ou doze anos e depois
foi coberta como todas as outras.
O pássaro encontrou o seu ninho
A segunda visita de Francesia ao Oratório só ocorre no do-
mingo seguinte à festa da Anunciação.
Depois do almoço, não sei se acompanhado pelo anjo que me
falara do Oratório ou sozinho, desci até Valdocco. Era um dia
bonito, um esplêndido dia de primavera. Ninguém notou a minha
presença. Entrei com certo receio e todo cauteloso, olhando de
um lado para outro para ver se encontrava algum conhecido...
Aquele dia se celebrava a memória fúnebre de Luigi Rua, irmão
de Michele [Miguel Rua].
Essa aventura tão estranha nunca me pareceu fora da ordem da
Providência, observando a amizade que me uniu ao padre Rua,
depois de ter ido duas ou três vezes ao Oratório. Entrei naquela

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252 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
confusão, participei do catecismo, que o clérigo Gastini me mi-
nistrou durante alguns domingos, mas não me lembro em que
consistiu a lembrança fúnebre do piedoso jovem. Voltei para
casa tarde, morto de cansaço, como se costuma dizer, mas com
a alma satisfeita e desejosa de que o outro domingo chegasse
logo. Caminhara tanto com o meu fuzil de madeira e correra
pelos campos de Valdocco, ainda inteiramente descobertos até
a fábrica de armamentos, que ao final de tarde os meus sapatos
estavam furados. Fui para casa cansado como nunca, mas com
uma satisfação imensa.
O pássaro encontrara o seu ninho e havia sido a Providência que
o procurara para mim.
A partir de maio de 1851, a freqüência ao Oratório se torna
regular.
Todos os domingos e festas eu ia ao Oratório. A minha vida ficara
séria, tranqüila e até mesmo devota. Começava a servir na igreja.
Confessava-me todos os domingos e sentia um prazer indescrití-
vel. Agora Dom Bosco também me conhecia e começava aquela
admirável corrente de caridade à qual eu iria permanecer ligado
para sempre. Ao saber que eu já estudara dois anos de latim, me
perguntou: “E não podemos continuar e terminá-los?”.
Muitas vezes, especialmente durante o ano de 1851, ao encon-
trar Dom Bosco pelas vielas de San Maurizio, ele me pedia que
o acompanhasse até a sua casa, onde almoçávamos juntos. Com
quanta caridade me tratou sempre aquele padre amoroso! Dom
Bosco era o padre que o Senhor destinara para a minha salvação.
Em junho de 1852, o santo o aceitou como interno.
Pedia que Nossa Senhora me ajudasse
O futuro latinista, discípulo preferido do grande estudioso
T. Vallauri, no início teve dificuldades no estudo do latim e

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Pietro Brocardo 253
sempre considerou uma graça especial de Nossa Senhora o fato
de ter conseguido superá-las.
As minhas primeiras experiências na escola iam bem mal. O
latim era um mistério para mim e não conseguia desvendar
os seus segredos. Não lembrava os casos, os modos, os tempos
verbais, e então misturava tudo. Chorava e rezava. Mas dizia a
mim mesmo: “Ai de mim se tiver de desistir dos estudos! Se os
outros conseguem, também vou conseguir”. Nas orações, pedia
que Nossa Senhora me ajudasse (...) e tinha a impressão de que
de um momento para outro seria atingido pelo raio da divina
inteligência. Ao me confessar, me acusando de não ter conseguido
satisfazer o professor, dizia a Dom Bosco: “Acho que vou receber
a graça do céu e então poderei entender latim”. Dom Bosco não
me interrompia e depois me consolava falando de outras coisas.
Entre os muitos alunos da Congregação, talvez nenhum teve de
fazer tanto esforço para aprender latim. Tive de conquistar terreno
palmo a palmo e à custa de pesquisas e trabalhos. Mas o estilo,
aquela forma que se podia distinguir quase de imediato, que me
trouxe alegrias e tristezas, devo a Nossa Senhora, a quem rezei
desde os primeiros dias em que comecei a estudar.
Dom Bosco me salvou
Em 4 de outubro de 1852, Francesia recebeu a veste clerical
em Castelnuovo d’Asti do pároco, o padre Cinzano, e foi ad-
mitido ao 3o ano ginasial como aluno do padre Rua. Estava no
início da adolescência, às voltas com os primeiros problemas
internos.
Na festa do Rosário, tomei a veste por determinação de Dom
Bosco. E aqui começa a segunda crise que, com a graça de Deus,
foi superada justamente por essa disposição providencial. Eu me
tornara frívolo, desligado e facilmente indócil às determinações
de Dom Bosco. Vou dizer uma coisa que ninguém nunca soube e
que jamais disse a ninguém. Não tinha mais nenhuma confiança

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254 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
nem aquela afeição filial que sempre fora a tábua de salvação em
todos os momentos mais difíceis. Oh! Se Dom Bosco tivesse falado
comigo naquela época. Eu tinha a pretensão de que ele tomasse
a iniciativa de me procurar. Essa ambição equivocada quase pôs
em risco a minha vocação. Graças a Deus não deixei de ter Dom
Bosco como guia, e ele me salvou.
Na escola de Dom Bosco se rezava, mas também se trabalha-
va duro. E havia muito trabalho para todos! Com o passar dos
anos, Francesia também se viu envolvido em uma infinidade de
tarefas que não davam trégua: assistência, escola regular – entre
os seus alunos estiveram Domingos Sávio, Michele Magone –,
estudo de Filosofia e Teologia e, ao mesmo tempo, juntamente
com Anfossi, Durando, Cerruti, exames de admissão à Régia
Universidade, seguidos pela freqüência irregular e coroados,
enfim, com brilhantismo.
Para o pequeno aprendiz de fundidor, a vida universitária,
levando em conta a ênfase com que faz menção a ela, foi um
acontecimento épico, um dos períodos mais gloriosos da sua
vida: “Não fazíamos nada além de estudar das 2 às 9 da noite,
e depois íamos comer alguma coisa quase às escondidas”. Não
temia os examinadores: “Não sabíamos o que era medo, só
pensávamos em fazer provas, certos de que teríamos sucesso”.
E eles realmente obtinham êxito: recebiam os aplausos dos
jovens do Oratório e eram acolhidos como uma bênção do
Senhor por Dom Bosco, que “podia respirar tranqüilo pelas
suas escolas”.
Caso encerrado
Com a habitual simplicidade, se referindo àqueles anos
felizes, o padre Francesia fala do que define como “grave ten-
tação”, mas que é, antes, um hino à paternidade paciente e
compreensiva de Dom Bosco.

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Pietro Brocardo 255
Parece-me que nesse ano (?), não tenho certeza, sofri grave tentação
e fui motivo de tristeza para Dom Bosco. Era a hora do café e o
padre Rua, percebendo que a xícara era pequena para as nossas
necessidades, voltava a enchê-la de tempos em tempos com mais
leite. Não acho que isso fosse um abuso, mas sem dúvida era
uma irregularidade! Alguém que chefiava a cozinha, em vez de
avisar a nós e ao padre Rua, responsável inocente desse pouco de
desordem, foi falar para Dom Bosco, que ordenou que, depois
de cada um receber a sua xícara de café com leite, o bule fosse
retirado da mesa.
Embora a novidade causasse surpresa, não me importei. Mas,
à noite, Anfossi, Durando e eu fomos estudar juntos no quarto
de Dom Bosco porque fazia frio e não havia outro lugar mais
adequado. Anfossi então começou a narrar longamente o aconte-
cido, colocando a culpa no padre Sávio, que era o ecônomo, pois
não deveria ter agido daquele modo e que, por tantos motivos,
não podia nos negar aquele pouquinho de café. Um professor
substituto, um certo Buratto, que, quando saiu, acabou por se
tornar vigário de Vercelli, dava a impressão de estar doente e que
aquilo parecia ser uma crueldade. Contudo, acho que se escan-
dalizou com nossa leviandade. Depois, a contragosto, em vez de
estudar, nos pusemos a discorrer pensando que Dom Bosco nos
ouviria e nos acalmaria. Imagine! Estávamos um pouco alterados,
lamentando aquele inconveniente descaso para conosco, já que
éramos superiores e merecíamos um mínimo de delicadeza. En-
tão deixei escapar: “Prefiro ir para casa. Ao menos não temos de
agüentar desaforo [sic!]”. Essa palavra ofendeu Dom Bosco, que
me disse: “E você teria coragem de deixar Dom Bosco?”. Logo
lhe pedi desculpas e implorei que tivesse a caridade de esquecer
aquela expressão imprudente! Ele me disse que o faria, e o caso
foi encerrado.
As notas autobiográficas se desenvolvem ainda com um ritmo
agradável, mas apenas por alusões. E nós as encerramos por aqui.
Contudo, não podemos deixar de relatar um episódio tocante.

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256 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Durante muito tempo, o padre Francesia acalentou um
sonho que nunca se realizou: integrar o Conselho Geral da
Congregação Salesiana. Mesmo nas eleições de 1886, que lhe
pareciam as mais propícias, foi o grande excluído. Sofreu muito,
mas teve de se conformar. Nessa ocasião, quem o compreendeu
e o consolou foi Dom Bosco.
Depois de reconquistar a serenidade e disposto a qualquer prova,
resignado fiquei no Oratório. Dom Bosco havia ido a San Be-
nigno em busca de um pouco de saúde e fui para lá um dia para
me reconciliar. Era o famoso ano das eleições (1886). Depois de
me ouvir em confissão, Dom Bosco, percebendo que estávamos
a sós, me disse:
– Pensei que você seria eleito no Capítulo Superior, mas não
foi o que ocorreu...
– O que posso fazer, caro Dom Bosco? O senhor tem uma
opinião excessivamente boa de padre Francesia. Os irmãos não
vão de acordo comigo. Mesmo assim, eu lhe agradeço e não me
queixo da pouca estima. Que remédio! Há quem não goste do
meu modo de agir, dos meus olhos, da minha forma de falar ou
de tudo. Mas não me queixo.
Esse meu desabafo comoveu o bom padre que, com lágrimas nos
olhos, tirou o terço e o dando para mim, disse:
– Fique com ele como lembrança do seu pobre Dom Bosco!
E eu também o beijei com lágrimas nos olhos e a partir daquele
dia passei a levar o terço sempre comigo nas minhas peregrinações
e espero que estará comigo no tribunal de Deus.
O padre Francesia tinha razão ao repetir que Dom Bosco
fora um pai para ele, “sempre pai”.
Capítulo II

26.9 Page 259

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Pietro Brocardo 257
Giovanni Roda
Quando, em uma reunião de ex-alunos da época de Dom
Bosco, Giovanni Roda, que nasceu em Moncalieri, perto de
Turim, em 1842, e faleceu em 1939, contou a sua história, já
tinha mais de 90 anos. Mas ainda caminhava ereto, rápido;
estava lúcido e era muito simpático.
Na sua longa existência serviu a três reis da Itália. Fora
trompetista em Villafranca, além de diretor de banda em um
casamento da casa dos Savóias. Podia, pois, se gabar de nume-
rosas condecorações.
Embora muitas lembranças e pequenas glórias tenham se
perdido na sombra do tempo, Dom Bosco permaneceu como
um ponto luminoso da sua vida. Marco Bongioanni, no seu
brilhante ensaio Don Bosco tra storia ed avventura, se servindo de
um remoto testemunho direto do antigo ex-aluno, confirmado
recentemente pela filha, dá voz poética ao seu encontro com
Dom Bosco e ao tempo que passou com ele.
Ao lado de Domingos Sávio
Ele mesmo narra o fato.
Encontrava-me em uma das ruelas que circundam Porta Palazzo
na região Molassi. Éramos muitos, havia rapazes que trabalhavam
para barbeiros, chapeleiros, coureiros, seleiros, comerciantes,
gente que era preciso chamar de senhor e madame. Estávamos lá
esperando trabalho, porque com 12 ou 13 anos já éramos maiores
e precisávamos ganhar o pão.
Porta Pila era uma região estratégica. Na verdade o nome da pra-
ça era Emanuele Filiberto di Savoia, mas nenhum turinês nem
daquela época nem de hoje jamais a chamou de modo tão solene.
As pessoas sempre disseram Porta Pila ou, quando muito, Porta
Palazzo, porque, para quem vem do norte de Turim, essa era a
entrada para o Palazzo di Città e a Porta Romana.

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258 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Ora, com toda aquela confusão de bancas, ambulantes, saltim-
bancos e jogadores, ali não era o melhor lugar para um padre.
Mas Dom Bosco conhecia quase todo mundo, e se fosse preciso,
não ligava muito para as conveniências. Eu o encontrei lá, e foi
assim que encontrei o meu pai.
Já o vira diversas vezes. Sabia como se chamava, porque já havia
interpelado alguns dos meus camaradas (companheiros). Mas acho
que nunca me tinha visto. Quando me viu veio ao meu encontro
com uma avelã nas mãos e me olhou nos olhos. Tinha aquele
sorriso maroto... e os bolsos sempre cheios de avelãs, amêndoas,
amendoins e outras coisas. Reabastecia-se nos mercados e depois
dava uma volta pelo lugar em busca dos moleques...
Aproximou-se de mim e esmagou a avelã assim, com dois dedos,
colocando depois a semente na minha boca.
– O que você está fazendo aqui?
– Estou esperando algum trabalho.
– O que sabe fazer?
– Um pouco de tudo. Aprendo fácil.
– E os seus pais?
– Morreram há muito tempo.
Haviam morrido de cólera logo após o meu nascimento. Eu
nasci em 1842, no dia 27 de outubro. Naquele ano começou a
epidemia de cólera e fiquei sozinho. Fui criado por uma família
amiga, parentes um pouco distantes... Ao saber da minha situação,
Dom Bosco ficou pensando por alguns instantes, mastigando e
mastigando, depois me segurou pelo braço como eu o vira fazer
com outros.
– Você não gostaria de vir comigo?
– Pra fazer o quê?

27 Pages 261-270

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27.1 Page 261

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– Para ficar. Aprender alguma coisa, uma profissão.
– Quero, sim.
– Então venha, não é longe.
Acompanhei-o como um cãozinho. Lembro que já fazia bastante
frio, estávamos na metade de novembro de 1854. Dom Bosco
morava em um casario, uma espécie de colônia, com uma bonita
igrejinha nova em um canto [a igreja de São Francisco de Sales].
Quando chegamos ao portão, antes de atravessar um pátio, gritou:
– Mãe, venha aqui um pouco. Venha ver quem está comigo.
Falou exatamente desse jeito, fazendo festa como se fosse a che-
gada de um parente ou de um filho. Depois chamou Domingos.
Naquele exato momento conheci Mamãe Margarida e Domingos
Sávio, que tinha a minha idade e chegara três ou quatro semanas
antes de mim.
Desde então, o Oratório se tornou a minha casa e Dom Bosco
passou a ser o meu pai.
Como era boa a vida no Oratório! Quanta felicidade! É impossí-
vel esquecê-la. Eu me dei muito bem ali, melhor do que muitos
outros, e vou dizer por quê.
Dom Bosco costumava designar algum bom rapaz para ser anjo
da guarda de algum outro um pouco levado. E eu devia ser um
dos mais levados, pois tive a sorte de ter Domingos para cuidar
de mim...
Ficamos tão amigos, que eu sempre o procurava. Acompanhava-
-o por todos os lugares, brincava com ele, estudava com ele...
E Domingos Sávio me ajudava, me dava conselhos, com a
condição de que me comportasse direito, que deixasse de fazer

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260 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
travessuras como em Porta Pila. Éramos como dois irmãos.
A vida logo os separou. Domingos Sávio morreu em 9 de
março de 1857, já com fama de santo. Giovanni Roda ingressou
na vida de “cidadão honesto e bom cristão”; mas a imagem do
amigo e de Dom Bosco ficaram com ele para sempre.
Uma conversa com Pio XI
Quando, em 1933, a Igreja proclamou as virtudes heróicas
do seu antigo companheiro, surgiu a idéia de levá-lo a Roma e
apresentá-lo ao papa Pio XI, em uma audiência quase particular.
Foi assim que Giovanni Roda, com os seus 91 anos, se encontrou,
confuso e comovido, de joelhos, aos pés do “papa de Dom Bos-
co”, que pediu que lhe contasse algo sobre o santo companheiro.
E ele o fez com a ternura e a lucidez com que muitas vezes o idoso
gosta de lembrar e reviver a antiga juventude.
Sim, Santo Padre, conheci Domingos Sávio. Era meu grande amigo,
tínhamos a mesma idade. Ele era tão bom e eu... um pobre órfão.
Dom Bosco tinha o costume de designar os melhores para cuidar
dos mais desmiolados, e eu devia ser bem travesso, pois na escola,
na igreja, no refeitório, em todos os lugares, lá estava Domingos,
que me seguia como um anjo da guarda, me ajudava e me corrigia.
Tinha tal ascendência sobre nós, que lhe obedecíamos como se fosse
um superior. Era um verdadeiro apóstolo. Todos gostávamos dele
e lhe devíamos um gesto de bondade.
Um dia durante o recreio – me desculpe, Santo Padre – deixei
escapar um palavrão. Dei um tapa na minha boca, mas já o dis-
sera. Os meus colegas tinham ouvido. Domingos se aproximou
e me disse:
– Você se esqueceu das nossas promessas de não dizer más pala-
vras? Procure Dom Bosco e conte logo para ele a desgraça que
aconteceu com você. Ele é tão bom; você vai ver como vai resolver
tudo. Enquanto isso, vou rezar por você.

27.3 Page 263

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Pietro Brocardo 261
Não hesitei, fui o mais depressa que pude. Mas onde encontrar
Dom Bosco? Estava no parlatório, rodeado de alguns senhores.
Esqueci os bons modos e me intrometi na conversa. Dom Bosco,
surpreso, me disse:
– Olhe, estou muito ocupado, você não poderia esperar um
instante?
Aquelas pessoas pensaram que era algo urgente e se puseram de lado.
Então, me levantei na ponta dos pés e disse ao ouvido do bom padre:
– Sávio me pediu que o procurasse... eu blasfemei.
Tremia como vara verde. Dom Bosco não ficou bravo comigo,
mas vi no seu rosto uma dor tão grande! Compreendi a gravidade
do meu pecado. Aqueles olhos perfuravam o coração.
– Não faça mais isso, meu querido filho, nunca mais faça isso.
É uma ofensa a Deus, sabe? O Senhor deixaria de nos abençoar.
Vá à igreja e recite tantas vezes o pai-nosso.
O Santo Padre, comovido, sorria.
Corri para a frente do altar, recitei os pai-nossos e saí correndo,
leve como se me tivessem tirado um peso das costas. Esqueci o
número de pais-nossos, mas nunca me esqueci do olhar de Dom
Bosco. Posso assegurar ao senhor, Santo Padre, tive doze filhos e
muitos netos, mas em minha casa nunca se blasfemou.
O querido ancião falara tudo de um só fôlego e o papa, que
o ouvira com benévolo interesse, se despediu dele com palavras
afetuosas:
Cada filho foi um ato de confiança em Deus que se transformou
em uma bênção. Que o Senhor o conserve ainda com boa saúde.
Esperamos que, assim como usufruiu na terra a companhia dos
santos, o senhor possa usufruí-la também no paraíso.
A felicidade daquele encontro foi indescritível. “Agora”, dizia

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262 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Roda, “posso morrer em paz”.
Faleceu cinco anos depois, em 1939, quase com 100 anos, na
sua cidade natal, Racconigi. Na câmara-ardente brilhava ainda a
pequena lamparina que, desde tempos imemoriais, ficava acesa
diante do quadro de Dom Bosco, seu “pai e mestre”.
Capítulo III
Doutor Albertotti e o seu lho
O médico pessoal de Dom Bosco – e do Oratório – foi o
doutor Giovanni Albertotti. Psiquiatra, diretor do manicômio
de Turim, foi durante algum tempo assistente na cadeira uni-
versitária de patologia e era quase uma celebridade. Mas, com
a psicologia e a medicina daquela época, nem sempre trazia
grandes benefícios aos seus pacientes. Tinha, no entanto, por
Dom Bosco uma admiração sincera, cultivada durante longa
amizade. Considerava-o um homem extraordinário, a ponto
de, após a sua morte, querer também ele escrever uma breve
biografia – tão original quanto discutível – intitulada Quem
era Dom Bosco: biografia físico-psico-patológica. Não a publicou,
deixando a tarefa ao filho Giuseppe, médico oftalmologista. O
livro, esquecido durante muito tempo no gravador, foi publica-
do em Gênova, em 1934, ano da canonização de Dom Bosco,
para satisfazer a vontade do pai, mas também para demonstrar
a simpatia que o doutor Giuseppe tinha por Dom Bosco, com
o qual tinha se encontrado várias vezes, quando ainda era es-
tudante de medicina e o pai o levava, de tempos em tempos,
para atender na enfermaria de Valdocco e no próprio quarto
do santo. Remontam àquela época as suas lembranças pessoais,
que têm todo o sabor dos velhos tempos.
Retirado de circulação, é hoje quase impossível encontrar o livro.
Da mihi animas

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Pietro Brocardo 263
Lembro que uma das primeiras vezes em que visitei Dom Bosco
ele ainda estava acamado, convalescendo de uma grave doença, e
fiquei impressionado com a simplicidade do seu quarto. Uma vez,
em uma dessas estadas na casa de Dom Bosco, um pouco mais longa
que o habitual, me entediei terrivelmente, porque discorriam [Dom
Bosco e o seu pai] de coisas que não me interessavam.
Sobre a mesa, de madeira rústica, havia um monte de sobras de
papel, como os que sobram da encadernação. Neles Dom Bosco
tinha escrito alguma coisa. Quando lhe perguntei para que ser-
viam aquelas sobras, me respondeu:
– Para que não sejam desperdiçados.
Sobre a cabeceira da cama – uma simples cama de ferro – esta-
va escrito na parede branca em grandes letras maiúsculas: Da
mihi animas, caetera tolle. Quando quis saber o motivo daquela
escrita, disse:
– Dêem-me um menino com menos de 14 anos e eu faço dele
aquilo que quiser.
Uma viagem de trem
Um outono – tenho a impressão de que foi o de 1873 –, Dom
Bosco ouviu o meu pai dizer que eu iria à praia e se ofereceu para
me levar com ele a Alassio e me hospedar no seu colégio. E assim
ficou acertado.
Ambos partimos de Turim em segunda classe – ele recebera um
bilhete de embarque gratuito com a possibilidade de levar consigo
um acompanhante – pela manhã. No caminho, observava que ele
estava sempre trabalhando: ora lia, ora escrevia, como podia, e
sobretudo corrigia provas tipográficas. A certa altura lhe perguntei:
– Dom Bosco, por que o senhor trabalha tanto?
– Doutorzinho, doutorzinho, a mudança de ocupação já é um
descanso.

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264 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Sou de madeira
Uma vez por ano, naquela época, Dom Bosco convidava o meu
pai e a minha mãe para almoçar – acho que no dia de São João,
porque era o onomástico dele e do meu pai. E em 1875, se não
me engano, também fui convidado.
Dom Bosco se sentou entre o meu pai e a minha mãe, e eu fiquei
perto da minha mãe. Na mesma mesa estavam também cerca de

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vinte sacerdotes, entre os quais o então padre Cagliero. Não havia
lugar para mau humor, e naturalmente era Dom Bosco quem
alegrava a conversa.
Ao final da refeição, Dom Bosco quis que experimentássemos
uma boa garrafa de vinho de Monferrato – me lembro que era
vinho tinto – e alguém perto de mim se dispôs a abri-la. Ajustou
o saca-rolha e, depois de se levantar e pôr a garrafa entre os joe-
lhos, a segurou com a mão esquerda e inutilmente tentou tirar a
rolha com a direita.
Ao ver isso, Dom Bosco se voltou para esse padre [não cita o
nome] e lhe disse:
– Deixe-me tentar, pois sou de Bosch – ou seja, de madeira,
fazendo um trocadilho entre bosch, madeira, e o seu sobrenome
Bosco [bosque em italiano].
Pegou a garrafa e, sem se levantar da cadeira, a colocou sobre a
mesa. Com a mão esquerda a agarrou pelo gargalo, deixando um
dedo livre. Com a mão direita, segurou a parte lisa do saca-rolha
que permanecera fora da rolha, de modo que os dois punhos
ficaram embaixo da haste horizontal do saca-rolha, enquanto a
parte superior da mão direita – o polegar e o indicador – ficavam
em contato com a parte de baixo do saca-rolha. De repente, girou
os dois punhos de modo que, à medida que se levantava o punho
debaixo, se levantava, sem perder o contato, o punho direito.
Tudo isso sem se alterar, e a rolha saiu facilmente. Aplaudimos
e bebemos.
Fala muito bem de mim
Quando o jovem médico foi se despedir de Dom Bosco, pois
tinha de deixar a cidade, o santo lhe disse:
– Doutorzinho, sente-se.

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266 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Depois, se dirigindo ao padre Berto, pediu:
– Por favor, Berto, dê ao doutorzinho aquele livro.
Deu-me o livro, perguntando se gostava dele. Dei uma olhada
no frontispício – se tratava do volume recentemente publicado
de Albert du Boys: Don Bosco et la pieuse Société des Salésiens –,
agradeci e acrescentei que ficaria muito feliz se me escrevesse uma
dedicatória, para mostrar que fora um presente dele.
Apanhado de surpresa por esse meu pedido à queima-roupa, Dom
Bosco mudou de cor, gesticulou, se esquivou como pôde, até que
acrescentou confusamente:
– É o primeiro que tenho, é o primeiro que dou.
Então, pensando melhor, encontrou a resposta certa:
– Fala muito bem de mim.
O padre Berto me persuadiu a não insistir – do contrário eu
certamente teria obtido a dedicatória – e, desistindo, agradeci de
novo, acrescentando:
– Dom Bosco, eu só queria aproveitar a oportunidade.
Eu me despedi, pensando que, no fundo, o meu pedido feria
a sua modéstia, uma vez que o livro já fazia uma apologia dele.
Ainda conservo zelosamente o livro comigo e dele retirei os de-
talhes deste relato.
Esse testemunho é precioso. Capta as peculiaridades de Dom
Bosco: o conhecimento excepcional do espírito juvenil, a in-
cansável atividade, o lado alegre da vida e a humildade sincera.
Capítulo IV
O professor Annibale Pastore
O professor Annibale Pastore, que nasceu em Orbassano em
1868 e morreu em Turim em 1956, foi, na sua época, entre

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Pietro Brocardo 267
1921 e 1939, um dos professores mais respeitados e queridos do
Ateneu de Turim. Vamos lembrar dele aqui, não como filósofo,
mas como aluno de Dom Bosco em Valdocco, de 1881 a 1882,
de quem conservou sempre a mais indelével lembrança, a ponto
de o comemorar todos os anos nas suas aulas na universidade e
de falar dele de bom grado no ambiente salesiano.
Os filhos do santo que freqüentaram a universidade de Turim
foram sempre objeto de especial benevolência de sua parte.
Venho da miséria
Perto do fim da vida, lembrava os dias passados com Dom
Bosco “como o seu paraíso na terra”.
Venho da miséria: Pastore de nome e pastor de fato, que não se
cansava de vagar pelas margens do Sangone. A minha mãe não
sabia escrever, mas era muito religiosa. Quando vinha me visitar,
ouvia Dom Bosco a metros de distância! Meu pai, sabendo do
meu amor pelo estudo, queria muito fazer a minha vontade e
me levou ao centro educacional de Dom Bosco em Turim, que
já tinha alcançado fama mundial. A minha primeira impressão
foi a de ser trancafiado em uma prisão. Crescera na liberdade dos
campos, e aquela vida regular não parecia apropriada para mim.
Mas logo fui conquistado por Dom Bosco; compreendi que era
o seu favorito. Quando me via, ele me chamava e me observava
com atenção. Não consigo esquecer aquele olhar.
Quem está chorando?
Será que ele conseguiu prever o meu futuro? A minha mãe,
de tempos em tempos, vinha me visitar. Trazia-me frutas, ou
outras coisas. Um dia, percebi que os meus companheiros me
tinham roubado. Comecei a chorar sem parar. Da sacada, Dom
Bosco me viu e disse:
– Quem é o menino que está chorando?
Chamou-me, me levou para a sua sala, me colocou sobre os seus

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268 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
joelhos e me deu uma bela maçã, para me consolar. E tratava a
todos dessa maneira, sem fazer distinção nenhuma. Quanto menos
alguém merecia, mais era alvo da sua predileção: é inacreditável! Ao
saber da minha paixão pelo estudo, me deu muitos livros, dentre
os quais Storia d´Italia [História da Itália], que ele tinha escrito.
A bandeira da universidade
Dom Bosco se ocupou pessoalmente de mim e me abriu para
a vida espiritual, para o mundo interior: sabia nos transmitir as
suas certezas e a sua alegria. Falava-nos da vida eterna e do paraíso
como se ele tivesse estado lá. Assim, os meus companheiros e eu
tínhamos tanta certeza de que iríamos para lá do mesmo modo
que alguém vai para a América. Um dia fomos passear na Via
Po. Passamos em frente ao prédio da universidade, onde tremu-
lava uma bandeira. Eu fiquei olhando cheio de admiração e de
entusiasmo. Quando chegamos em casa, contei a Dom Bosco e
ele me perguntou:
– Você gostaria de ir lá?
Diante da minha resposta afirmativa, ele disse:
– Pois bem, você irá, você irá.
Encontraram-me no chão
Vocês poderiam perguntar: então por que deixei o Oratório, o
meu paraíso e a minha vida, depois de apenas um ano? Eis o que
aconteceu.
Uma noite, enquanto Dom Bosco falava na boa-noite, tive a idéia
de me esconder em um confessionário da igreja [de São Francisco],
e acabei adormecendo. Acordei mais tarde naquele silêncio, no
meio daquela escuridão, com um frio que me dava a sensação de
estar num túmulo – estávamos em fevereiro – e fui tomado por
um verdadeiro terror. Comecei a gritar desesperadamente, mas
os meus gritos ecoavam penosamente por todos os lados sem que

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ninguém me ouvisse e viesse em meu socorro. Já dominado pelo
terror e pelas convulsões, pulei o balaústre para me agarrar à luz
da lâmpada, mas bati com a cabeça na corrente: a lâmpada se pôs
a oscilar assustadoramente e, aterrorizado, desfaleci. Pela manhã
me encontraram no chão com a boca espumando, a cabeça ferida,
ainda em estado de choque. O meu pai ficou chateado com Dom
Bosco e não quis que eu ficasse mais em Valdocco, embora Dom
Bosco me procurasse e insistisse para que eu voltasse.
Os Registros do Oratório revelam que o jovem Pastore
deixou o Oratório em 24 de fevereiro, para retornar mais
tarde. Voltou em 10 de março para concluir o ano letivo. O
professor Pastore confidenciou aos mais íntimos que depois
disso foi colocado em um instituto, dirigido por uma pessoa de
fama duvidosa, no qual, pouco a pouco, acabou perdendo a fé,
mas com um desgosto de que não conseguiu se livrar. Pastore
tinha o espírito naturalmente religioso: era um leitor assíduo
de Santo Agostinho e dos grandes místicos cristãos, mas ficou
sempre dividido entre a clareza da sua inteligência e a laceração
profunda da alma que não conseguia curar.
Mão no ombro
Dizia e repetia muitas vezes que sentia, de forma quase física,
a mão de Dom Bosco, não mais na cabeça, como quando era
criança e o santo afundava a mão nos seus cabelos crespos, mas
no ombro direito, como a mão de um amigo fiel, cuja presença
invisível percebia todos os dias. E Dom Bosco esteve perto dele
toda a vida, mas sobretudo nas horas extremas, na pessoa de um

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270 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
filho seu, tão culto quanto santo, padre Nazareno Camilleri, o
qual, por meio de sofridas meditações, fez de tudo para elevá-lo
até o sobrenatural.
O tempo passado com o santo lhe deixou duas impressões
mais fortes: a primeira, a de ser o seu preferido, o jovem de
quem Dom Bosco mais gostava. Provavelmente – acrescentava
– essa era a impressão também de todos os outros e cada um
no seu íntimo se considerava o preferido de Dom Bosco, tal o
carinho com que ele tratava a todos. A segunda, a certeza de
que havia outra vida, que está ao nosso alcance e que perdê-la
é uma tolice. Bastava ficar mais próximo e falar um pouco com
ele para perceber esta segunda realidade, cuja certeza irradiava
dele e era transmitida aos outros. “Mesmo depois de todo esse
tempo, esse sentimento nunca esmoreceu em mim.”
Capítulo V
Dom Luigi Cassani
Dom Luigi Cassani nasceu em Gravellona Lomellina, em
8 de julho de 1869, e morreu em Novara, em 30 de novembro
de 1963. Foi um dos padres mais representativos do clero de
Novara, fundador da Sociedade de História de Novara, autor
de renomadas publicações, pastor zeloso, muito amado pela sua
bondade e um autêntico entusiasta de Dom Bosco.
Quando, em 1957, lembrava diante de um numeroso grupo
de ouvintes os quatro anos que tinha passado em Valdocco,
entre 1882 e 1886, tinha quase 90 anos. Mas parecia que o
tempo havia parado e que aqueles dias distantes, gravados na
sua memória, tivessem ocorrido ontem. As lembranças fluíam
sem interrupção, nítidas e precisas, de uma mente ainda lúci-
da: as suas palavras convictas, plenas de afeto, se tornavam, de
repente, envolventes e imobilizavam os ouvintes. A transcrição
não revela toda a sua eficácia, mas é de uma franqueza que não
deixa margem a dúvidas.

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Pietro Brocardo 271
Dom Bosco gosta mais de mim
Entrei no Oratório de Valdocco no final de agosto de 1882. Era
a primeira semana que estava lá, os primeiros dias de setembro, e
ainda estava um pouco triste. Brincava no pátio, justamente onde
agora fica a estátua de Dom Bosco. Jogávamos malha quatro ou
cinco dos novatos, liderados por um certo Enria, que era como
de casa, filho do chefe marceneiro de então. Enria de repente
levantou a cabeça e disse:
– Oh! Dom Bosco!
Largou tudo no chão e se pôs a correr em direção a um sacerdote
que naquele momento descia os degraus da sacristia e se dirigia
para o pátio. Correu para Dom Bosco, os outros também corre-
ram e eu fiz o mesmo. Todos nos agarramos às mãos dele; éramos
uns cinco ou seis. Ele segurava as nossas mãos e perguntava ora
a um ora a outro:
– E você, quando chegou? Como se chama? De que cidade vem?
Você chorou, hein?
Fazia perguntas como essas a todos. Quando chegou a minha vez,
se deteve, e os seus olhos se encheram de bolinhas, de pontinhos
multicores que tremeluziam, uma infinidade de pontos coloridos,
um brilho... depois ficou como que absorto. Disse, por fim:
– Muito bem, vão brincar.
Largou primeiro a minha mão e depois a dos outros.
– Continuem o jogo.
Os outros não perceberam nada, mas eu pensei:
– Ele gosta dos outros, e não de mim! Nem ao menos perguntou
o meu nome!
Na manhã seguinte estávamos na igreja. Um colega me disse:
– Vou me confessar com Dom Bosco.

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272 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
– Onde?
– Na sacristia, a confissão com Dom Bosco é na sacristia.
Eu fui também. E quando chegou a minha vez, me aproximei...
– Venha, venha, venha.
Disse-me três ou quatro palavras. Foram suficientes para que eu
me considerasse o mais querido. Dom Bosco gosta mais de mim
do que dos outros.
As uvas
Cerca de um mês depois, um colega me disse:
– Ontem vi Dom Bosco colhendo as uvas das parreiras das suas
janelas. Ainda ficaram alguns cachos; venha comigo, vamos
apanhá-los.
Fui com ele. Mas quando cheguei à sala onde hoje fica o altar, o
meu companheiro foi logo pegar as uvas; eu não tive coragem. Parei
ali e fiquei olhando de um lado para outro. Havia uma cadeira de
palha – Dom Bosco era pobre, era pobre! – e um cartaz com as
palavras de sempre: Da mihi animas, caetera tolle. Fiquei ali olhan-
do, quando ouvi alguns passos atrás de mim. Era Dom Bosco.
– Você sabe ler?

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– Sim, eu sei ler e li.
– E você sabe o que significa?
– Sim, sei, mas... não sei o que significa caetera.
– Eu vou lhe dizer!
Então me explicou o significado. Enquanto isso, o meu colega
chegou com as uvas na mão.
– Ainda encontrou uvas? Mas só pra você?! Dê um pouco para o
seu amigo, metade para cada um.
Pegou as uvas, dividiu-as, metade para ele, metade para mim.
E acrescentou:
– Muito bem! Comam e depois vão brincar.
Pensei comigo: “Veja só! Em vez de ficar bravo com ele, disse: ‘Muito
bem! Ainda encontrou uvas?’, e depois as deu também para mim!”.
Não era um bom pregador
Alguns meses depois, vi Dom Bosco – era um domingo – subir
ao púlpito. Não era a primeira vez que o ouvia falar: já o ouvira
inúmeras vezes quando vinha nos dar boa-noite. Falava assim..., é
isso, de Dom Bosco! Mas eu me perguntava: “Qual será o sermão
de Dom Bosco?”.
Na minha cidade – uma cidade próxima de Novara – nas festas
solenes convidávamos algum grande orador, e aquele orador levan-
tava a voz, gesticulava amplamente, dava um ou outro murro no
parapeito, se impunha pelo seu prestígio, e eu me dizia: “Como
é bom esse pregador!”.
Pensava que Dom Bosco iria fazer do mesmo jeito, mas não foi
nada disso. Dom Bosco se limitou a dizer: “Pois bem, este ano,

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274 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
com a graça do Senhor, pudemos abrir uma casa em tal lugar,
fizemos isto e aquilo com a bondade dos nossos cooperadores.
Agora temos ainda muitas coisas para fazer, mas a Providência
não faltará...”, e palavras como essas.
Tinha uma voz retumbante, não forte, mas bonita, clara, límpida.
Uma expressão, não sei como dizer, de criança simples. Falou de
projetos, de benfeitores, e eu disse comigo mesmo: “Oh! meu
Deus! Dom Bosco é muito bom, não há dúvida, mas não é pre-
gador. Eu faria muito melhor!”.
Antes do m do mês
Uma noite Dom Bosco subiu à cátedra de madeira em que dava
a boa-noite e disse:
– Amanhã começam os exercícios espirituais. O padre Cagliero
vai fazer a pregação. Vocês vão ver, ele prega muito bem, vai dizer
muitas coisas bonitas, se confessem bem, façam a comunhão.
Era assim que ele falava. Depois continuou:
– Porque, vejam bem, antes do fim do mês algum de nós poderia
morrer. Portanto, vamos ficar preparados.
Mas eu não fiquei impressionado: não é incomum alguém fazer
um alerta para estar preparados. No entanto, ao final dos exercí-
cios espirituais (lembro sempre o sermão do filho pródigo), ou-
vimos os professores dizerem: “Alguém vai morrer antes do fim
do mês”. Nos primeiros dias, essas palavras nos impressionaram
um pouco, mas depois não. Então, no último ou penúltimo dia
um colega meu brincava sob o pórtico onde estava escrito: “Non
tradas bestiis animas confitentes tibi”.50 Ali alguém havia apoiado
duas ou três camas amarradas juntas quase encostadas na parede,
unidas. Esse meu colega, para se exibir, se agarrou nelas e depois
olhou para trás; mas o apoio era insuficiente e elas acabaram
caindo em cima dele. Nós conseguimos escapar, mas ele morreu.
E então nos lembramos. Dom Bosco tinha dito: “Antes do fim do
mês!”. Lembro que aquele fato me impressionou muito.

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Pietro Brocardo 275
Tomates verdes
Por volta do fim do ano – naquela época o ano letivo geralmente
terminava na metade de agosto –, eu estava tão esgotado que não
agüentava mais. Um colega tinha conseguido chegar até a horta que
ficava no lugar do atual pátio de Domingos Sávio e trouxe de lá
tomates frescos. Ele comeu os maduros e deu os outros para mim.
Eu os comi com avidez e depois acho que bebi muita água. Não sei
o que houve, mas à noite não agüentei e tive de ir me deitar.
O assistente e o professor – que era o padre Saluzzo, um verdadeiro
pai, assim como o assistente, o padre Valentini, era uma verdadeira
mãe – logo vieram ver o que estava ocorrendo comigo e fizeram
com que me levassem à enfermaria. Chamaram o médico, o doutor
Albertotti, que sentenciou:
– Está morrendo!
Levaram-me ao quarto dos moribundos e duas pessoas ficaram
cuidando de mim. Logo avisaram os meus pais, e de manhã já
estavam em Valdocco.
O porteiro Rossi, aquele que Dom Bosco chamava de “Conde
Rosso” [“vermelho”, em italiano], foi até o pátio e anunciou a
Dom Bosco:
– São os pais daquele rapaz que está morrendo.
– Mas ele não está morrendo! Está curado. Está muito bem.
Levem-no para casa, e em outubro [no início do ano letivo] o
tragam de volta. Está curado.
E Dom Bosco deu a bênção. Os meus pais fizeram como ele disse.
Foram até a enfermaria e me ouviram discutindo com os meus
dois assistentes:
– Tragam as minhas roupas que eu preciso ir fazer as provas – as escritas
estavam começando naquele dia –. Não quero ser reprovado!
O meu pai e a minha mãe entraram e viram que eu não estava mor-

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276 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
to, que estava muito bem, que estava até brigando. Trouxeram-me
logo as roupas. Eu me vesti e, enquanto fazia isso, outra boa notícia!
Entra o conselheiro escolar, o padre Ferraro, e me diz:
– Por determinação de Dom Bosco, você passou de ano sem
exames.
Fui para casa radiante.
O gorro de dormir
Depois das férias, voltei a Valdocco, ao meu paraíso terrestre: fui
a pessoa mais feliz do mundo naqueles anos. Por volta do Natal,
o nosso professor disse:
– Agora faremos a prova bimestral. Os que se saírem melhor
terão o direito de jantar com Dom Bosco. E depois, se quiserem,
poderão ir até o seu quarto.
Ganhei e fui, com outro colega, jantar com Dom Bosco.
Depois de terminar a sopa, os meus colegas já estavam no pátio
brincando. Dom Bosco compreendeu que eu também queria
estar com eles. Então nos deu duas ou três avelãs e nos mandou
brincar. Fui jantar outras vezes com Dom Bosco, mas aí aproveitei
o direito de ir até o quarto dele.
Foi assim: um dia, juntamente com o meu colega, fomos ao quarto
de Dom Bosco para bisbilhotar; havia um retrato aqui, outra coisa
ali. E, a certa altura, disse ao meu colega:
– Sei imitar Dom Bosco quando vai dormir.
– Prove.
Havia uma escadinha perto da cama, porque Dom Bosco tinha
as pernas muito inchadas. Primeiro fingi fazer as orações. Depois,
com calma – porque Dom Bosco sempre andava devagar –, subi
os três degraus, molhei o dedo na água benta, fiz o sinal-da-cruz
e desci.

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Pietro Brocardo 277
– Eu faço melhor que você.
– Duvido.
O outro subiu, mas imitando a mim, e não a Dom Bosco. Em
vez de molhar os dedos na água benta, pôs a mão embaixo do
travesseiro de Dom Bosco, apanhou o seu gorro de dormir –
branco – e colocou na cabeça. Antes não o tivesse feito! Como
um abutre, pulei em cima dele. Ele era maior que eu! Subi nos
degraus e arranquei o gorro das suas mãos. Mas nos atracamos
e, bum!, nos chocamos contra a portinhola que nos separava da
sala de estudos de Dom Bosco, que estava lá e logo saiu para ver
o que estava acontecendo.
– O que aconteceu?
Eu choraminguei – mas o outro também estava chorando –:
– Foi o Albano que pegou o gorro do senhor e colocou na cabeça
e eu não quero.
– Dê para ele, quero ver como ele faz.
– Não, não.
Eu desobedeci e com devoção recoloquei o gorro no lugar.
Dom Bosco deu um sorriso:
– Está bem, agora vão brincar no pátio.
Diga caramelo
Vou contar o que aconteceu certa vez. Uma manhã, Dom Bosco
me encontrou no pátio com um livro nas mãos e me disse:
– Não se deve estudar no pátio.
E eu lhe respondi:
– Mas esta manhã fui servir a missa – fora a missa do conde Cays,
já idoso, e se estendera por muito tempo – e não pude estudar.
50 “Não abandones às feras a vida de quem te louva” (Sl 74,19). [n.e.]

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278 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
O professor Nassò nos disse que hoje fará chamada oral e eu não
sei nada.
– Em que parte do grego você está?
Estávamos no fim do terceiro ano e começávamos a estudar grego.
Estou nas labiais.
– Nas labiais? Então tente dizer “caramelo”, mas sem encostar
os lábios.
E enquanto isso mexia nos bolsos. Continuou:
– Eu lhe dou um caramelo se você disser “caramelo” sem encostar
os lábios.
– Cara... ah, eu não consigo!
– Então fica sem a bala. Mas preste atenção: as labiais são assim
e assim.
E me explicou tudo em poucas palavras. Os colegas disseram ao
professor:
– Cassani não estudou a lição de hoje, mas Dom Bosco a ensinou
para ele.
– Vamos ouvir o que Dom Bosco lhe ensinou.
Na época eu tinha boa memória e disse tudo o que Dom Bosco
me dissera.
– Muito bem, muito bem! Você merece vinte; ou seja, dez com
louvor para Dom Bosco que lhe ensinou e dez para você que
conseguiu decorar a explicação.
Tem para todo mundo
Em 1886, Dom Bosco deu diversas palestras para jovens de quarto
e quinto ano do ginásio, muito proveitosas, porque quase todos se
tornaram salesianos, menos o padre Lino Cassani e algum outro.
Um dia, após a palestra, Dom Bosco disse:

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29.1 Page 281

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Pietro Brocardo 279
– Esta manhã o padre Berto me deu um saquinho de avelãs [não
as comuns, mas aquelas maiores]. Festa – esse era o nome do
jovem assistente – me traga aqui o saquinho.
Meu colega, acho que Vallino, segurava a sacola e Dom Bosco,
sentado, dava ora a um, ora a outro, dizendo:
– Comam, comam.
E insistia. A certa altura, Festa disse:
– Senhor Dom Bosco, não tem para todo mundo.
Eu estava lá prestando atenção em tudo: “Mas o saquinho de avelãs
não se esvaziou nem um pouco!”. Dom Bosco continuava a dizer:
– Comam, comam!
Mas eu não quis comer as que ainda tinha no bolso. “Vou levá-las
para casa”, dizia comigo mesmo, “vou mostrar para os meus pais
e direi que são avelãs abençoadas por Dom Bosco”, e as deixei
dentro das minhas malas.
Um dia depois, o professor de história natural, que era o conde
Prospero Balbo, filho do célebre Cesare Balbo, ao entrar na classe,
disse:
– Ouvi dizer que ontem Dom Bosco multiplicou as avelãs e que
as deu para vocês.
– É verdade, senhor conde.
– Gostaria de ter uma delas.
– Eu ainda tenho algumas, senhor conde! Vou pegá-las.
Estava saindo, mas ele me deteve:
– Vou pedi-las a Dom Bosco. Agradeço.
Fiquei um pouco chateado, pois pretendia dar a ele algumas
avelãs, não todas, é claro.
Levei para casa as famosas avelãs e as conservei durante mui-
tos anos com certa veneração. Um dia, não mais as encon-
trei. Perguntei se o meu pai as havia visto, se sabia de algo.

29.2 Page 282

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280 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Respondeu-me:
– Um dia estava me sentindo muito mal, comi as castanhas e
fiquei bom.
Disse comigo mesmo: “Mas... podia ter comido só uma ou duas!”.
Tanto o meu pai como a minha mãe estavam convencidos de
que viveriam muito tempo por terem recebido a bênção de Dom
Bosco. A minha mãe viveu 98 anos, o meu pai, apenas 87, porque
tinha comido aquelas avelãs.
Esta música é de Dom Bosco
Outra imagem impressa na minha memória é a do professor Do-
gliani. E Dogliani me faz lembrar de outro episódio. Estávamos
na novena de Natal de 1885 e ele ensaiou conosco para aquela
ocasião uma música italiana que começa assim: “Ah, si canti in suon
di giubilo!” [Ah, se cante em som de júbilo!]. Antes de começar
os ensaios, nos tinha dito:
– Vejam, esta música foi composta por Dom Bosco nos primeiros
anos do Oratório, quando era professor de música. Esta noite ele
vem dar a bênção: aprendam bem, pois vamos cantá-la para ele.
Cantamos a música com entusiasmo, e Dom Bosco ficou contente
e comovido.
Lembro este belo costume de Dogliani: de tempos em tempos,
dava a um de nós a sua batuta, para que marcássemos o tempo e
dirigíssemos o coro. Naquela novena de Natal coube a mim marcar
o tempo durante o canto da bênção. Tudo saiu bem.
Ao final da função, Dogliani me chamou de lado e me disse:
– Agora venha jantar comigo, na mesa dos superiores.
Quando Dom Bosco dispensou a leitura, fui até ele e lhe per-
guntei:
– Senhor Dom Bosco, cantamos bem?

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Pietro Brocardo 281
Dom Bosco tomou a partitura que Dogliani me dera e exclamou
surpreso:
– Ora vejam só!
Os outros que estavam à mesa, o padre Francesia, o padre Duran-
do e outros, também se mostraram admirados. Era uma música
escrita por Dom Bosco, um seu autógrafo que Dogliani encontrara
entre tantas partituras.
Quem tocava o sino?
Um dia, depois de dar uma palestra, Dom Bosco nos disse o
seguinte:
– Há quatro anos tive um sonho que se repetiu várias vezes. Eu
estava descendo os degraus da sacristia para atravessar o pátio,
quando surgiu diante de mim um jovem com um belo maço de
flores acompanhado de outros jovens. Aquele jovem me cum-
primentou, mas depois... me virou as costas. Mesmo de costas,
ele continuou a chamar outros jovens para que viessem a mim.
Deixei que ele continuasse por algum tempo, mas depois o agarrei
pelos ombros e o obriguei a se virar: “Mas por que você me dá
as costas?”. O jovem respondeu: “Eu sou o sino que chama os
outros para a igreja, mas fica do lado de fora”.
Depois Dom Bosco concluiu:
– Aquele jovem está aqui.
Eu era um dos mais curiosos em saber quem era.
– Quem é...?, começa com A, começa com B...?
– Se o jovem me perguntar em segredo, eu lhe digo; do contrário,
não.
Foi isso. Muitos perguntaram, mas nenhum era o jovem visto por
Dom Bosco. Tudo acabou ali.
No final do ano, o padre Trione nos disse:

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282 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
– Avisem os seus pais que, a partir do próximo ano, não teremos
mais o quinto ginasial aqui em Valdocco. Os que quiserem parar
farão o noviciado em San Benigno; os outros deverão tomar
outras providências.
Perguntei aos meus pais como faria, e eles responderam:
– Queremos que você termine o ginásio e o colégio primeiro;
depois veremos.
Então chegou o dia em que eu devia ir embora para casa: já havia
arrumado as malas e estava próximo ao pilar ao lado do qual ficava
a cátedra de onde Dom Bosco nos dava a boa-noite. Estava perto
da torneira, talvez bebendo, quando ouvi alguém me dizer:
– Dom Bosco está chamando você! Dom Bosco está chamando!
Atendi prontamente ao chamado e fui ao quarto do santo:
– Senhor Dom Bosco, vim me despedir do senhor, porque amanhã
vou para casa, os meus pais...
– Está bem, está bem.
– Mas antes, senhor Dom Bosco, quero me confessar – ele havia
sido o meu confessor por quatro anos.
Depois de receber a minha confissão como fizera tantas outras
vezes, ele me disse:
– Escute: você não vai me perguntar quem era aquele jovem que
tocava o sino, mas ficava do lado de fora?
– Será que era eu?
– Sim, era você.
Vocês podem imaginar como fiquei. E ele me explicou:
– Não tenha medo, não tenha medo. Estarei sempre com você,
vou ajudá-lo, vou auxiliá-lo, fique tranqüilo. Não se esqueça de
mim e venha sempre à minha casa, que é também a sua.
Parti comovido. Quando chegou o momento oportuno, entrei

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Pietro Brocardo 283
no seminário.
Este é o seu lugar
O que vou contar agora é o último episódio, depois vou deixá-los,
peço que me perdoem. Uma tarde do mês de maio, após o almoço,
eu estava sentado no meu quarto, cochilando, quando vi Dom Bosco:
– Oh, senhor Dom Bosco!
– Ainda não o nomearam cônego na catedral?
– É claro que não!
– E por que não?
– Não sei.
– Se não o nomearem cônego desta vez, azar deles! Venha comigo.
Eu o segui. Fomos à catedral, onde havia uma bela escada que levava
à sala do capítulo. Dom Bosco ia na frente, e eu o seguia. Ele, que
– me lembro muito bem – andava muito devagar, porque tinha
problemas nas pernas, subiu aquela escada como um jovenzinho
e eu, que na época era mesmo muito jovem – agora as minhas
pernas pesam como chumbo –, mal conseguia acompanhá-lo.
Pensei: “Oh, meu Deus! Se Dom Bosco olhar para trás e me vir
nesse estado, o que vai pensar de mim?”. Mas ele não olhou para
trás. Abriu a porta da sala e, no banco onde se vestem os cônegos,
apanhou um livro, um daqueles enormes breviários que se usavam
naqueles tempos, e me disse:
– Este é o seu lugar.
E desaparece. “Dom Bosco me nomeou cônego! Quem sabe o
que acontecerá? São sonhos, é verdade, mas com Dom Bosco
não se brinca.”
Algumas semanas depois, o bispo me chama:
– Veja só o que escreveram de Roma. Você foi nomeado cônego
da catedral, e justamente no dia de Maria Auxiliadora, a quem

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284 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
você tem tanta devoção. Está contente?
– Muito contente, duplamente contente.
Quando fiz o juramento, estava justamente naquele lugar e o
padre Cavigioli abriu aquele breviário na mesma página em que
Dom Bosco o abrira!
Dom Bosco já sabia
No dia de São João Batista, como vocês sabem, era costume
fazer a festa de Dom Bosco. O padre Francesia tinha feito para
aquela ocasião uma bela poesia em homenagem a ele. Eu estava
no quarto ano do ginásio e fui incumbido de recitá-la. Quando
chegou a minha vez, declamei a poesia, com o papel na mão, mas
toda de cor! E depois, todo orgulhoso, desci os degraus do palco
e me dirigi a Dom Bosco para lhe entregar o escrito, como era
costume. Mas Dom Bosco me disse:
– Não, não, primeiro beije o anel do seu bispo – à direita de Dom
Bosco estava o bispo de Novara.
E o bispo:
– Ah, mas o senhor, padre João, o conservará consigo.
– Não, não, este é para Novara.
Então beijei o anel do bispo e desci. Isso para mostrar que Dom
Bosco nunca disse que eu me tornaria salesiano.
Mas eu sei que quando o Senhor me chamar, com certeza vai me
perguntar também: “Por que não se tornou salesiano?”. E eu po-
derei dizer: “Mas não desobedeci a Dom Bosco ao não me tornar
salesiano, porque ele nunca me pediu que o fizesse”. Mesmo assim,
Dom Bosco me perdoará, porque, naquele dia em que tomou a
minha mão pela primeira vez e depois a largou, deixou em mim
tal impressão que eu o teria acompanhado por toda a vida. Ele
viu todos os meus passos.
Acreditem ou não: Dom Bosco viu até mesmo este momento,

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Pietro Brocardo 285
viu também vocês!
Essa afirmação é surpreendente e cada um poderá interpretá-
-la como achar melhor. Contudo, ela nos obriga a perguntar:
é possível levar uma existência marcada por alguém que não
existe mais? No plano humano, a resposta é um dado freqüente
e experimentada por muitos: pode-se viver com “o amigo que
se foi e com o que se foi em nós”, como dizem os versos do
poeta. No plano da fé, essa realidade é duplamente verdadeira
em virtude do mistério da comunhão dos santos, nos quais está
expressa de forma mais luminosa a face humana e divina de
Cristo e com os quais é sempre possível um encontro de amor
atual, permanente, proporcional ao grau de fé e de conheci-
mento do santo. O padre Cassani não estava errado.
Capítulo VI
Padre Eugenio Ceria
Padre Eugenio Ceria nasceu em Biella, em 4 de dezembro
de 1870, e morreu em Turim, em 21 de janeiro de 1957. Foi
um humanista brilhante, comentador dos clássicos, diretor de
institutos salesianos e, nas últimas décadas da sua vida, teve
o seu nome ligado sobretudo aos últimos nove volumes das
Memórias biográficas (do volume XI ao XIX), aos Annali della
Società Salesiana [Anais da Sociedade Salesiana – quatro volu-
mes], à publicação do Epistolario di Don Bosco [Epistolário de
Dom Bosco – quatro volumes] e a inúmeros outros escritos de
teor salesiano: biografias, monografias, estudos... Uma produção
enorme, como se vê, que só o escrupuloso uso do tempo, a férrea
disciplina e o amor a Dom Bosco podem explicar.
Durante anos, acordava às 3 e meia da manhã; às 4 e quinze
celebrava a missa na basílica, confessava, fazia a meditação;
depois de um frugal desjejum, começava o trabalho, que se

29.8 Page 288

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286 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
estendia por doze ou treze horas. Todos os que o conheceram
se lembram da doce imagem, da atitude contida e reflexiva,
do rosto em que se difundia um leve sorriso e da profunda
humildade.
Não foi aluno do Oratório. Devido às boas referências recebi-
das do seminário de Biella, onde o jovem tinha feito os estudos
ginasiais, Dom Bosco não hesitou em admiti-lo diretamente ao
noviciado de San Benigno, em 1885.
Ali conheceu Dom Bosco e dele se tornou íntimo, como
ele mesmo revelou em uma conversa com um grupo de jovens
salesianos no mês de março de 1954.
É bastante consolador constatar como há algum tempo, entre
confrades jovens e muito jovens, se difunde uma espécie de anseio
de conhecer melhor e mais profundamente Dom Bosco. Isso é
ótimo, sem dúvida. E não é de admirar que os que têm essa meta
se considerem afortunados em poder entrar em contato com os
que tiveram a sorte de ouvir e ver Dom Bosco e de falar com ele.
Sem dúvida, é bom poder dizer: Quod audivimus, quod vidimus
oculis nostris, quod perspeximus... annuntiamus.51 É mesmo muito
bom! Então tentarei dizer algo que possa interessar.
Como cheguei até Dom Bosco
Muitos já mencionaram o poder de atração de Dom Bosco. Esse
seu poder não se limitava aos mais próximos, mas também aos
que estavam distantes, e de várias formas. Pude experimentá-lo.
Um dia – estava no quarto ano do ginásio e conhecia Dom Bosco
e os salesianos apenas de ouvir falar –, eu e alguns dos meus cole-
gas procuramos dois sacerdotes: um do lugar e outro de fora, que
viera pregar o mês de maio na catedral. Conversavam entre si e
gostavam que escutássemos o que diziam. A certa altura o padre
da cidade perguntou ao forasteiro:
– Conte-me algo sobre Dom Bosco, sei que o senhor esteve em

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Pietro Brocardo 287
Turim – creio que pregara também na igreja de Maria Auxiliadora
–. Conte-nos alguma novidade.
O sacerdote forasteiro se pôs a falar de Dom Bosco com admiração
e afeto, depois exclamou:
– Oh! Dom Bosco é tão carinhoso com os seus meninos. Imagine...
responde pessoalmente às cartas deles.
Pois bem, eu que só conhecia Dom Bosco de nome, naquele
momento fiquei muito impressionado. Aquelas palavras, que pa-
recem até insignificantes, ditas daquele modo, tomaram conta do
meu espírito, a ponto de o orientarem inteiramente para o nome
de Dom Bosco. A partir daquele momento, descobri em mim o
desejo de me libertar de tudo para “ir até Dom Bosco”, como se
dizia então. E vejam que eu nunca tinha saído da minha cidade,
nunca tinha tido a menor idéia do que significava ficar longe da
família. Mas a partir daquele momento passei a ser outra pessoa.
Todos os dias recitava a oração a Nossa Senhora para a vocação,
que tinha no O jovem instruído, e não sosseguei enquanto não
encontrei um jeito de iniciar alguma prática que me levasse a
seguir o meu ideal.
Os nossos psicólogos podem dizer o que quiserem sobre o efeito
que aquelas palavras insignificantes produziram em mim. Eu contei
apenas o que aconteceu comigo. Foi o nome de Dom Bosco que
me conquistou por inteiro, justamente naquele momento.
Cuidado com a bela virtude
No ano seguinte, em 1885, depois de concluir o ginásio,
Ceria recebeu uma carta do padre Barberis, em nome de Dom
Bosco, chamando-o a Turim para fazer os exercícios espirituais
em San Benigno, após a Anunciação.
Naquele ano, a festa da Anunciação caía num sábado, por isso
era preciso deixar passar o domingo. Na segunda-feira, à hora

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marcada, eu estava no Oratório, acompanhado do meu pai, que
me deixou ali. E fui a San Benigno. Dom Bosco ficou conosco
durante todo o tempo dos exercícios. Ficávamos impressionados
em vê-lo ali à mesa, no nosso grande refeitório, no meio dos
superiores que o circundavam. Mas naqueles dias não falou em
público, em nenhuma circunstância.
Eis uma outra experiência. O padre Barberis, não sei por que
razão, teve a idéia de marcar para mim uma audiência particular
com Dom Bosco. Ora, eu sabia que seria uma honra, mas não
fiquei muito entusiasmado porque não conhecia muito Dom
Bosco. Fiquei contente, sem dúvida, e fui. Dom Bosco fez com
que eu me sentasse em um sofá próximo e se sentou na cadeira da
sua escrivaninha voltado para mim. Fez-me algumas perguntas,
depois – agora vem a melhor parte – fixou em mim os seus olhos
penetrantes, assumiu um tom sério e me disse:
– Cuidado com a bela virtude.
Eu ainda não sabia o que significava “bela virtude”, mas adivinhei
o que ele queria dizer. Nunca ouvira aquela frase antes. Pois bem!
Aquelas palavras ficaram gravadas na minha mente tão profunda-
mente, que posso ouvi-las agora como as ouvi há sessenta e nove
anos. Exatamente iguais. Aliás, me permito acrescentar que em
cinco circunstâncias da minha vida a lembrança daquele olhar,
daquela postura e daquela voz me salvou! Nunca falei dessas coisas
em nenhuma circunstância. Vejam bem, é um caso de eficácia
da palavra de Dom Bosco, um caso verdadeiramente prodigioso,
que ouço ainda hoje – como digo – e, não importa o que ocorra,
basta que aquelas palavras voltem à minha mente e tudo fica bem.
Como um herói

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Pietro Brocardo 289
O padre Barberis teve a gentileza de lhe proporcionar outro
encontro pessoal com Dom Bosco. Faltavam ao padre Ceria
dois meses, devido à sua idade, para fazer a profissão com outros
companheiros diretamente com Dom Bosco. Isso poderia ser
motivo de sofrimento, pensava o professor.
– Vamos tentar falar com Dom Bosco!
E foi o que fez.
Lembro-me sempre que quando estava lá fora, esperando para
entrar, tinha consciência da minha sorte em poder falar com um
grande santo como Dom Bosco! Chegava a sentir isso e tinha a
alma repleta de satisfação. Entrei. Ele me acolheu paternalmente,
me fez algumas sugestões e terminou, dizendo:
– Pois bem! Agora continue sicut gigas ad currendam viam.52
Vejam só que sutileza. Quando estava saindo, ao abrir a porta
ouvi os meus colegas cantarem na igreja (era domingo): Sicut
gigas ad currendam viam.
Estou feliz...
Tive ainda uma lembrança de Dom Bosco, mas essa me deixou
muito desiludido. É provável que vocês já conheçam esse episó-
dio – há alguma alusão a ele em Dom Bosco com Deus. Em 1887,
nós, os seminaristas, deixamos San Benigno para passar as férias
em Lanzo, e naquele ano Dom Bosco também estava presente.
Havia ficado lá um mês, mas quase nunca o víamos. Víamos
apenas quando o levavam na charrete pela estrada que circunda
aquelas colinas. Levavam-no às margens do Stura: ele gostava de
ouvir o rio correndo, o ar fresco das montanhas. O padre Viglietti
e outros lhe faziam companhia.
Assim, numa manhã, não sei o motivo, eu não estava estudando
51 “O que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos (...) isso anun-
ciamos” (1Jo 1,1). [n.e.]

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290 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
com os meus colegas. Subi a escadaria do colégio para ir estudar.
Ao chegar ao primeiro andar, deparei com Dom Bosco em pé,
sozinho, inteiramente absorto. Imaginem! Dei um pulo e corri
para lhe beijar a mão. E Dom Bosco olhou para mim e pergun-
tou o meu nome. Eu disse. Então teve uma atitude que também
poderia ser interpretada como de grata surpresa. Depois me disse,
pausadamente:
– Estou feliz...
Imaginem, eu estava ansioso para saber como terminava a frase,
mas naquele instante chegou padre Viglietti, que lhe ofereceu o
braço, e Dom Bosco, dócil como uma criança, se deixou levar,
não sei para onde. Nunca soube como aquela frase terminaria!...
Dom Bosco tinha o dom de fazer com que todos os que o cerca-
vam se entusiasmassem pela Congregação. Quando veio receber
a profissão, havia mais de uma centena de clérigos ao seu redor.
O santo estava sentado no centro da capela, porque não podia
falar muito alto. E começou assim:
– Vejam: vocês são muitos aqui. Mas se já estivessem em condições
de se tornarem diretores, eu saberia aonde enviar vocês a partir
de amanhã.
Naquela época era surpreendente ouvir algo assim. Imaginem!
Haver lugar para uma centena de diretores?
Ao redor de Dom Bosco
Animava-nos, nos ligava à Congregação, fazia com que gostásse-
mos dele como filhos.
Deixei Lanzo com um companheiro para ir a Valsalice atender
ao serviço da sacristia e Dom Bosco também estava lá. Como
não fazíamos os exercícios, saíamos à noite, durante a meditação.
Dom Bosco costumava ficar sentado no vão de uma janela do
corredor. Ficávamos de joelhos ao seu redor, o meu companhei-
ro e eu: havia também um certo padre Gaveski, polonês muito

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Pietro Brocardo 291
instruído, e algum outro. Ficávamos ali, de joelhos. Dom Bosco
quase nunca dizia algo, porque tinha muita dificuldade em falar.
Estávamos em agosto de 1887. Lembro, entre outras coisas, que
o padre Gaveski mencionou uma biografia de Dom Bosco, que
tinha visto um pouco antes, escrita por um alemão, observando
que o biógrafo dizia que Dom Bosco provinha de uma família
abastada. Assim que ouviu isso, Dom Bosco disse:
– Não! Não! De uma família pobre! Diga ao autor para corrigir!
O padre Ceria continua:
Ao final dos exercícios, após a bênção e o te-déum, todos saíam da
igreja. Eu também estava indo embora, quando se ouviu uma voz:
– Dom Bosco vai falar!
E, de fato, ele estava deixando a sacristia e se encaminhava para a
frente. Chegou ao balcão, apoiou as mãos e disse mais ou menos
o seguinte:
– Meus caros, vocês fizeram os exercícios, mas espero que ninguém
cometa o erro de sair daqui com a consciência confusa.
E depois contou um episódio. Havia um padre em uma cidade
muito distante, gravemente doente, no fim da vida. Ao saber
que chegara à cidade um sacerdote de muito longe, quis vê-lo.
Esse sacerdote atendeu prontamente ao pedido. Assim que pôs
os pés no quarto do doente, este exclamou: “Oh, graças a Deus!
Eu precisava muito me livrar de uma confusão”. E morreu. Foi
o que Dom Bosco contou. O padre Viglietti, não sei com qual
fundamento, dizia que o caso acontecera em 1883, com o próprio
Dom Bosco em Paris. Não sei... Seja como for, diante do modo
como ele falava, dos detalhes que contava, podia muito bem ser
Dom Bosco em Paris.
30 de janeiro de 1888
Não quero deixar de falar da visão que tive de Dom Bosco vivo

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292 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
pela última vez, em 30 de janeiro de 1888. Então, todos estavam
convencidos de que Dom Bosco tinha as horas contadas. O padre
Barberis tinha sido avisado. Havia três meses e meio nós estávamos
em Valsalice, onde tomamos o lugar dos nobres. O padre Barberis,
de repente, ordenou que fôssemos vê-lo mais uma vez. Já estava
anoitecendo. Descemos a Valdocco, mas não nos deixaram chegar
perto da sua cama. Desfilávamos diante da portinhola que ficava
na frente do seu leito. Oh! Se eu pudesse descrever a impressão que
Dom Bosco deixou em mim naquele momento! Não consigo, mas
posso vê-lo, até mesmo ouvi-lo. A cabeça apoiada no travesseiro,
mas sem estar largada, como é natural em casos como esses. De
modo algum! Dom Bosco estava lúcido, calmo, recolhido. Fiquei
muito impressionado. Todos sabem o que aconteceu depois. Só
o revi exposto na igreja de São Francisco de Sales e então tive a
impressão de que dormia tranqüilamente.
Alguém me disse, mais ou menos há três dias: “Encontramos no
Arquivo [Salesiano Central] uma carta que dom Cagliero escre-
veu ao padre Costamagna na Argentina que dizia que o corpo
de Dom Bosco exalava um perfume de rosa”. Quis ver com os
meus próprios olhos aquela letra feia do padre Cagliero. Dizia
exatamente isto: “Inspirava uma fragrância de rosa”. Bem! É um
testemunho que tem o seu valor, vindo de quem vem.
Assim termina o relato direto do padre Ceria, mas podemos
completar com este outro episódio narrado por ele.
Acredita-se que os salesianos sejam por definição barulhentos. É
um exagero. Houve uma época em que se discutiu na Congregação
se o recreio moderado da tarde e da noite dos exercícios espirituais
devia ser abolido, para fazê-los em silêncio absoluto. O Conselho
Superior discutiu o assunto na presença de Dom Bosco. Na hora
de votar, houve seis votos a favor dos dois recreios moderados e um
só em favor do silêncio rigoroso. Pensou-se que o voto favorável ao
silêncio absoluto tivesse sido dado pelo padre Rua. Encontrei no
52 “Como um herói que percorre o caminho” (Sl 19,6). [n.e.]

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Pietro Brocardo 293
Arquivo uma nota do padre Cartier em que se lê: “O padre Rua
me disse que o voto em favor do silêncio completo nos exercícios
tinha sido de Dom Bosco”.
O padre Ceria concluía: “Quanto se fala muito, faltam duas
virtudes: o espírito de recolhimento vai embora e se perde o
espírito de trabalho”.
Capítulo VII
Francesco Piccollo
Francesco Piccollo nasceu em 8 de abril de 1861, em Pecetto
Torinese, agradável cidade sobre as colinas da Maddalena, que
liga Turim às terras do Chierese.
O fato de ser quase conterrâneo de Dom Bosco marcou a relação
que teve depois por toda a vida, não apenas com o ambiente, mas
sobretudo com o coração de Dom Bosco e a sua missão.
Foi em Pecetto que Dom Bosco, ainda diácono, ao substituir
um sacerdote que chegara atrasado, improvisara com sucesso o
sermão sobre Nossa Senhora do Rosário para a festa da padroeira
de 1841. O sacerdote que o ajudara a elaborar esse exórdio de
oratória admirável fora o teólogo Cinzano, ecônomo em Cas-
telnuovo d’Asti até 1840, depois pároco na mesma cidade até à
sua morte, ocorrida em 1870. Foi sempre um grande benfeitor
de Dom Bosco.
Por insistência do cardeal Cagliero, o padre Piccollo escreveu
cerca de sessenta páginas sobre as suas Recordações de Dom Bosco,
conservadas no Arquivo Salesiano Central.
Trata-se de páginas inéditas intensas e profundas relativas
a Dom Bosco, em algumas passagens redundantes e enfáticas,
mas que não incomodam, porque indicam o seu grande amor
pelo santo dos jovens. Vamos reproduzir alguns trechos inte-
gralmente, embora com pequenos retoques.

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294 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Acompanhamento espiritual
O jovem Piccollo, que desejava ardentemente estudar para
se tornar sacerdote, foi enviado a Valdocco pelo seu pároco.
Ali escolheu Dom Bosco como confessor e diretor espiritual.
No rapaz de temperamento amável e jovial, de espírito puro
como um dia de primavera e muito inteligente, o santo viu logo
que Deus lhe confiava outro pequeno Domingos Sávio. Daí
a sua predileção por esse jovem predestinado e o seu cuidado
especial em ajudá-lo a descobrir o projeto de Deus para a sua
vida e amadurecê-lo gradualmente. A expressão “acompanha-
mento espiritual” não é mencionada por Dom Bosco, mas
revela a sua essência, o seu método educativo e a sua atividade
de padre educador e pastor, como sabemos.
O pequeno Francesco, por sua vez, não tardou em desco-
brir nele o modelo de sacerdote e de apóstolo que gostaria de
se tornar e colaborou generosamente com tudo o que lhe era
sugerido e aconselhado.
O padre Piccollo descreve a maneira como o santo dos jovens
dirigia espiritualmente os seus penitentes:
Assim que tive a oportunidade, escolhi Dom Bosco como con-
fessor e me encantei com a sua bondade. Ele era breve, simples,
e aquelas poucas palavras que dizia, embora dessem a impressão
ao penitente de que não tardaria a esquecê-las, atingiam o seu
objetivo e atendiam à necessidade da alma.
Nessas poucas palavras, é possível perceber uma descrição
exata e precisa de como Dom Bosco confessava e da sua capa-
cidade de conquistar a confiança dos jovens.
Não menos intensas, na sua vida oratoriana, eram as palavras
de Dom Bosco nas boas-noites:
O modo paterno e eficaz com que Dom Bosco falava aos jovens

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Pietro Brocardo 295
ao dar a boa-noite, as suas palavras, especialmente na ocasião da
novena da Imaculada, tinham algo de paradisíaco: eram como
um bálsamo para a alma.
O santo o atraía com uma força irresistível e lhe repetia
as afetuosas palavras bem conhecidas: “Devemos ser sempre
amigos”, enchendo-o assim de uma alegria sempre renovada.
Uma tarde, Dom Bosco previu que um dos jovens morreria.
O espírito sensível do jovem ficou muito impressionado. Foi
se confessar com Dom Bosco:
Como estava morto de medo de ser eu o destinado a morrer, não
pude deixar de manifestar o meu estado de angústia a Dom Bosco,
e, soluçando, me atirei nos seus braços, dizendo:
– Dom Bosco, tenho medo de ser eu aquele que deve morrer; me
diga se é verdade.
O santo garantiu que não seria ele; antes, que viveria por
muito tempo.
Em uma boa-noite especial o santo viu a futura vocação dos
seus jovens e permitiu que lhe fizessem perguntas sobre isso.
Como muitos outros, Francesco, após a confissão, também lhe
perguntou qual seria o seu destino, e Dom Bosco lhe respondeu:
Você só tem dois caminhos: o do mundo, amplo e florido. Se escolher
esse, terá muitas honras e riquezas, tudo irá bem diante do mundo,
mas no fim do caminho, vi o precipício no qual você deverá cair. O
outro caminho é empedrado e estreito, cheio de dificuldades, mas
também vi que terminava num jardim maravilhoso: foi o religioso.

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Nele você terá muitos sofrimentos. A escolha é sua.
O jovem Piccollo, sem a menor hesitação, respondeu: “Te-
nho a impressão de que nasci para ser filho de Dom Bosco e
sacerdote”. Em um encontro posterior, Dom Bosco lhe per-
guntou se continuava decidido a se tornar salesiano. A resposta
foi clara. Então, o santo, como se lesse o seu futuro página a
página, lhe disse: “Você vai trabalhar muito (...), mas se lembre
bem do que lhe digo, você vai sofrer muito, muito mesmo,
muito mais do que pode imaginar, mas no fim terá o paraíso”.
Os últimos vinte anos de Piccollo foram realmente um duro
e contínuo calvário.
Depois de completar o período como aspirante e noviço,
Piccollo foi para Lanzo Torinese para fazer os exercícios
espirituais, com vistas à profissão religiosa. Quem os pregou
foi o próprio Dom Bosco, que deixou no espírito sensível do
jovem uma impressão indelével: “Ele era acima de tudo eficaz
e prático e eu tinha imenso prazer em ouvi-lo. (...) Dava a
impressão de querer transfundir o seu coração nos seus filhos”.
Ao final dos exercícios, em 26 de setembro de 1877,
Piccollo emitiu os votos trienais. Dom Bosco ficou contente,
mas não muito. Esperava mais. Dissera aos seus colaboradores
mais próximos: “Os votos trienais trazem mais prejuízos que
benefícios”. De fato, ao final do triênio, não poucos deixavam
a Congregação. O padre Piccollo observa:
Dom Bosco me chamou de lado, no pátio, e me disse:
– Por que você fez apenas os votos trienais e não os perpétuos?
Fiquei confuso com essa pergunta e respondi em dialeto:
– Não tive coragem; tive a impressão de que não estava bastante

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Pietro Brocardo 297
maduro e não tinha virtudes suficientes.
Dom Bosco sorriu para ele, admirando a sua humildade.
Fará os votos perpétuos ao final do triênio em Randazzo,
na Sicília.
Começou o seu primeiro apostolado em Ariccia, perto de
Roma. No ano seguinte, integrou o pequeno grupo de salesianos
enviado a fundar a obra salesiana na Sicília, onde permaneceu
durante quase trinta anos: primeiro como professor, depois
como diretor na Catania, em San Filippo (1891-1892) e em
San Gregorio (1892-1901). Por fim foi inspetor na inspetoria
sícula (1901-1907).
Nos passos de Dom Bosco
A predileção do santo dos jovens, em vida, pelo clérigo e
depois pelo sacerdote Francesco Piccollo não apenas nunca dimi-
nuiu, mas até aumentou, quando a Sicília o mantinha longe dele.
A atividade desenvolvida nos vários ambientes de vida sale-
siana tem algo de extraordinário. Antes de partir para a Sicília,
ao revelar um certo descontentamento a Dom Bosco por lhe
haverem confiado a escola das crianças, o santo lhe disse:
Se os meninos forem pequenos, você estará na companhia dos
anjos. O que lhe recomendo é que procure torná-los bons e todos
os dias conte a eles algum episódio da história sagrada, da vida
dos santos ou de Nossa Senhora. Assim, você obterá primeiro o
prazer de dar aula de bom grado, terá mais facilidade em obter
disciplina e depois o Senhor lhe mostrará o quanto lhe agrada
esse sistema de educação cristã.
Piccollo não esqueceu mais essa recomendação de Dom
Bosco e Nossa Senhora lhe deu um sinal grandioso da sua be-
nevolência. Num dos dias da novena da Imaculada Conceição,
quando dava aula em Randazzo, contou, como sempre fazia
nos últimos quinze minutos de aula, uma intervenção mila-

30.10 Page 300

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298 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
grosa da Virgem Maria, que se pode ler na vida de São Filipe
Néri, e prometeu narrar um episódio ainda mais bonito no dia
seguinte. Depois garantiu aos seus alunos que Nossa Senhora
os protegeria sempre se soubessem pedir a ela.
Após a oração, ordenei que saíssem em fila. Os alunos deviam
sair em fila pelo corredor, esperando que eu os acompanhasse
até a portaria. Quando os alunos das últimas carteiras saíram,
eu também deixei a sala, mas não havia percorrido dois metros
quando tudo sacudiu de repente e se ouviu um tremor terrível
como o de um terremoto. Os jovens, aterrorizados, gritavam, e
eu, me aproximando da porta da minha classe, vi que a escola
não mais existia: o pavimento tinha afundado...
O prodígio nunca foi esquecido.
O oratório de São Filipe Néri deve muito à habilidade e
ao incansável zelo do padre Piccollo. Dom Bosco que, mesmo
distante, acompanhava com vivo interesse as atividades dos
seus filhos na ilha do sol, estava inteirado especialmente da
atividade oratoriana do seu filho predileto. Poder-se-ia dizer
que, por um fenômeno de clarividência, via os jovens orato-
rianos como se os conhecesse diretamente. “Um dia me disse:
conheço os seus jovens. São mais de cem e passam anos e anos
sem cometer pecados graves.” Costumava dizer que o oratório
de São Filipe Néri “era o primeiro da Congregação, depois do
de Turim”. Duas coisas o consolavam: o amor e a devoção a São
Domingos Sávio e o fato de “os jovens serem realmente bons”.
Afirma o padre Piccollo:
Declaro sem sombra de dúvida que a última vez que conversei
com Dom Bosco, para minha admiração, me disse os nomes dos
principais jovens do Oratório e falava deles como se os tivesse
visto sempre.
Nos seus escritos, o padre Piccollo nos deixou um breve

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Pietro Brocardo 299
retrato de Dom Bosco, do qual assinalamos apenas estes três
aspectos. O primeiro, sobre a pureza do santo.
Sua pessoa foi e ainda está presente em minha vida circundada de
uma pureza virginal absoluta: o esplendor dessa virtude transpa-
recia em cada um de seus gestos, em cada uma das suas palavras.
Era um anjo em carne e osso: ao falar, cantava as belezas da pureza
como nenhum outro homem é capaz de fazer; ao olhar, tinha tal
modéstia, que conseguíamos ver com dificuldade aquelas pupilas
maravilhosas cheias de fogo pelo amor de Deus (...). Se, às vezes,
ao falar à noite ou ao pregar fora do comum, ficava animado de
um zelo e uma força capazes de fazer estremecer, isso ocorria muito
raramente quando invectivava contra o mau exemplo.
O segundo, sobre a oração:
A segunda impressão é que ele estava sempre rezando e que a sua
união com Deus era contínua. (...) Esse santo amor estava tão
presente nele, que quem se aproximava sentia logo a presença de
um serafim.
Sabia se elevar a Deus “sem ser cansativo, pesado, mas com
uma naturalidade incrível”.
O terceiro aspecto diz respeito a Dom Bosco como doutor
da pedagogia cristã. Segundo Piccollo, ele “teve uma missão
muito especial na Igreja: a de ser o apóstolo da juventude e
o doutor da pedagogia cristã”. A pedagogia de Dom Bosco
está tão impregnada do divino, que a partir da sua prática “o
Divino Salvador tem certeza de que a pupila dos seus olhos, a
juventude que lhe era tão cara, é tratada com amor e carinho
(...). Como doutor, aplicou o sistema do carinho na educação
e traçou os novos rumos no admirável opúsculo intitulado O
Sistema Preventivo na educação dos jovens”.

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300 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
Sempre uma palavra e um sorriso
Ao final do seu relato, Piccollo ainda faz essa afetuosa reve-
lação sobre a extraordinária paternidade de Dom Bosco:
Ele era substancial e absolutamente pai da juventude (...), um dom
todo especial, porque parece que o Pai celestial quis circundá-lo de
uma aura da sua paternidade divina e dar a ele um coração capaz de
abraçar nos movimentos da sua caridade toda a juventude do mundo.
Assim, ele exorta cada salesiano a não negligenciar três pilares
do seu talento de sacerdote educador e pastor da juventude.
O primeiro:
Dom Bosco nunca ficava indiferente diante de qualquer menino.
Se tivesse à sua espera um rei ou um papa e encontrasse um jovem
no caminho, Dom Bosco nunca privava aquele jovem de uma boa
palavra ou de um sorriso, com a desculpa de que devia encontrar
aquela pessoa importante. (...) O salesiano quando tem oportunidade,
não deve descuidar nada por qualquer menino, buscando o melhor
modo de o ajudar e de o conquistar para Cristo.
O segundo:
No menino que tinha diante de si, Dom Bosco nunca via o me-
nino de hoje, mas o homem de amanhã. Portanto, nele nunca se
observou nada que pudesse deixar uma impressão pouco favorável
em seguida.
No opúsculo sobre o Sistema Preventivo, o santo via longe,
ao escrever “que se observou que os jovens não esquecem os
castigos sofridos, e quase sempre conservam a amargura com
o desejo de se livrar deles ou até de se vingar”.
E o terceiro:
Dom Bosco tinha muita confiança no sucesso de todos. Com
exceção dos que blasfemavam, furtavam ou cometiam atos cen-
suráveis, nunca mandava ninguém embora. Os jovens que hoje

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Pietro Brocardo 301
parecem maus porque estudam pouco, ou que são muito vivazes
e parecem pouco piedosos, serão talvez os melhores...
Nesse resumo das lembranças do padre Piccollo não falamos
das doenças que sofreu nos últimos vinte anos de vida, que
imprimiram nele as marcas da paixão de Cristo, suportada
com fé e amor. Contudo, mesmo prescindindo desse tema
essencial, o perfil do padre Piccollo sobressai como o de um
salesiano muito importante pela riqueza das suas qualidades
humanas, que todos admiravam, pelo amor por Dom Bosco,
pelo zelo apostólico e pelo acurado conhecimento e fidelidade
ao carisma salesiano. Morreu em 8 de dezembro de 1930, no dia
da Imaculada Conceição, como previra. Suas últimas palavras
foram: “Este é o melhor dia da minha vida!”.
Capítulo VIII
Padre Giovanni Vallino
Padre Giovanni Vallino nasceu em Benevagienna, em 7
de outubro de 1871, e morreu em Lanzo Torinese, em 31 de
janeiro de 1949. Foi aluno do Oratório de 1882 a 1887. Seu
espírito foi plasmado no fascínio daqueles anos em que Dom
Bosco comovia o mundo com a sua obra prodigiosa. Foi um
dos alunos que viu o bom padre voltar de Paris com a batina
cortada pelos admiradores, desejosos de possuir alguma relíquia.
Foi o jovem – e essa é uma das suas glórias salesianas – que
segurou com as próprias mãos o saquinho de avelãs multiplica-
das por Dom Bosco em 3 de janeiro de 1886. Aquele milagre,
ocorrido diante dos seus olhos, produziu nele uma impressão
indelével: nunca a santidade de Dom Bosco lhe pareceu tão
grande e próxima. Mas ele também tinha sido protagonista de
um evento, ao mesmo tempo feliz e infeliz, justamente no dia
da sua vestição, que recebeu de Dom Bosco em Foglizzo, no
dia 20 de outubro de 1887.
Dom Bosco estava, então, no limite das suas forças – dentro

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302 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo
de poucos meses seria levado ao paraíso –, mas não quis privar
os seus noviços de Foglizzo da alegria da sua presença. Após a
cerimônia da vestição, quis permanecer com eles e honrá-los na
hora do jantar. O seminarista Vallino teve a grata tarefa de o
servir à mesa. O serviço exigia que os pratos fossem levados do
plano inferior ao superior, por meio de uma escada de dois lances
bastante íngreme. Em tempos normais, não era problema. Mas
naquela noite o jovem vestia, pela primeira vez, uma longa batina
que lhe chegava aos pés e que com certeza não facilitava sua fun-
ção. O servente precisava agir com cautela, porque, com as duas
mãos ocupadas por pratos e travessas, não tinha como levantar a
batina se fosse preciso. As primeiras tentativas não foram ruins,
mas, de repente, o improvisado equilibrista, para não deixar cair
tudo o que tinha nas mãos, pisou forte na sua batina, produzindo
um grande rasgo! Por força teve de comparecer diante de Dom
Bosco naquele estado.
O santo não deixou de notar o embaraço e a humilhação
do querido seminarista, que inaugurara do pior modo a roupa
nova recebida algumas horas antes. Olhou o rasgo e, sorrindo,
pediu-lhe que se aproximasse e o confortou com estas palavras:
“Não fique chateado. A irmã que cuida das roupas logo con-
sertará o estrago: tente apenas não rasgar nunca a obediência”.
Vallino suspirou aliviado, e nunca mais esqueceu as palavras de
Dom Bosco. Como salesiano, se distinguiu, até à morte, pela
inabalável resistência ao trabalho, a paixão pela escola, o talento
pedagógico e a devoção.
A sua jornada começava às 4 e meia da manhã; recitava o
breviário do dia, e depois também o terço; então celebrava a
missa, fazia a meditação e em seguida descia para ficar com os
jovens, e não os deixava mais. Fez isso durante anos e anos.
Esse método talvez seja contrário às idéias modernas, mas
para ele funcionava bem e o mantinha unido a Deus no duro
trabalho cotidiano. O problema, tipicamente atual, de conciliar

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Pietro Brocardo 303
a dimensão contemplativa e a ativa não existiu para os antigos
salesianos. Encontravam a Deus facilmente tanto na oração
quanto no trabalho, como lhes ensinara Dom Bosco.
Capítulo IX
Ludovico Costa
Ludovico Costa nasceu em Alpignano, Turim, em 11 de
maio de 1871, e morreu em Bollengo, também em Turim, em 2
de fevereiro de 1944. Freqüentou o ginásio em Lanzo, de 1884
a 1887, ainda a tempo de ter a sorte de receber diretamente de
Dom Bosco, em repetidos contatos pessoais, o genuíno espírito
do fundador. E era esse o único orgulho que aflorava da sua
profunda humildade.
Estava no último ano, quando os superiores, para premiar as
notas excelentes e o bom comportamento, o escolheram para ir
a Turim jantar com Dom Bosco. Almoçar ou jantar com Dom
Bosco era uma das aspirações mais ambicionadas dos jovens.
Dom Bosco também tinha esse costume, que remontava a tem-
pos distantes, porque lhe permitia conhecer melhor os jovens
e atraí-los para a sua obra.
Tudo correu bem naquela ceia inesquecível, mas no final
aconteceu algo que não parecia se enquadrar com as idéias
habituais do jovem hóspede. Ele viu que os superiores que
rodeavam Dom Bosco, terminada a ceia, um depois do outro,
após um breve cumprimento a Dom Bosco, foram embora,
deixando-o completamente só, na pálida luz da sala.
Quem está acostumado à vida salesiana sabe que, tanto de-
pois do almoço como depois do jantar, os salesianos deixam o
refeitório rapidamente: precisam cuidar dos jovens, têm as suas
próprias atividades e mil outras coisas a fazer. Mas aquela solidão
incomodava Dom Bosco que, se pode dizer, até então estivera
sempre presente pessoalmente em todos os acontecimentos da
casa. Agora se sentia velho e sem forças: restavam-lhe poucos

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meses de vida e ele tinha consciência disso. “Tenho pouco tempo
para viver”, dizia. “Os superiores da Congregação não querem
aceitar esse fato, acreditam que Dom Bosco ainda viverá muito
tempo. Eu não me incomodo de morrer: o que me dá pena são as
dívidas do Sagrado Coração.”53 As verdadeiras preocupações de
Dom Bosco eram sempre os interesses da Congregação. Ficava
angustiado especialmente com as dívidas, que pesavam, afinal,
ainda sobre os seus ombros e que gostaria de ver extintas antes
de morrer. Mas não agüentava mais.
O jovem Costa, sentindo aquela solidão, chegou mais perto de
Dom Bosco. O bom padre o olhou com afeto, depois lhe disse:
Veja, Ludovico, eu já fui tudo: tudo dependia de mim, era
uma atividade incessante. Agora são eles que fazem tudo; às vezes
se enganam e procuro ajudá-los; mas eles sabem o que fazem,
estão maduros.
As palavras do santo acalmaram o jovem.
O fim da vida de Dom Bosco – que muitos demoraram
a perceber, como dizia o padre A. Luchelli, mesmo os mais
íntimos, que o adoravam – tem momentos comoventes. Essa
solidão é uma prova. Contudo, devemos acrescentar que o
catequista dos estudantes, o padre Stefano Trione, espírito deli-
cado e sensível, após percorrer brevemente os quartos, subia ao
refeitório, onde Dom Bosco, na penumbra, ficava aguardando.
Então, o segurava delicadamente pelo antebraço e, servindo de
apoio, o levava para o quarto. Ao se aproximar da porta, Dom
Bosco tentava entrar, mas o padre Trione o convidava a parar
um pouco e respirar o ar fresco da noite. Dom Bosco concor-
dava: apoiava os cotovelos no parapeito, olhava o céu, fixava

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Pietro Brocardo 305
longamente a igreja de Maria Auxiliadora e não podia deixar
de se lembrar de muitas coisas de outra época. O padre Trione
aproveitava o momento para lhe perguntar sobre os primeiros
tempos, sobre a história do Oratório, sobre as suas viagens, e
Dom Bosco contava esses episódios de bom grado.
Esses relatos, reproduzidos fielmente ao padre Lemoyne,
passaram à história, incorporados às Memórias biográficas.
Conclusão
O ensaio que oferecemos é necessariamente incompleto e
seletivo. Na medida que pode ter estimulado um conhecimento
mais meditado e aprofundado da santidade apostólica de Dom
Bosco – de absoluta pureza evangélica – terá, todavia, cumprido
a sua missão. Esperamos que não deixe nenhum equívoco sobre
o modelo de santidade expresso pelo santo. Autêntico e com-
pleto na essência, simples no método e na forma, como todas
as coisas extremamente simples – como o ouro, por exemplo
–, o seu preço é elevado e exigente. É, como o Evangelho, uma
boa notícia, uma mensagem de amor, mas que passa pela via-
-crúcis, pelo martírio da cruz. De outro modo não seria cristão.
O que não deixa de surpreender em Dom Bosco é o fato de
que a sua imersão no divino tenha ocorrido em uma existência
marcada mais pela atividade externa que pela oração explícita.
Aqui, enfatizamos mais uma vez, residem a grandeza e o peri-
go dessa santidade. Grandeza porque nele oração e ação – em
relação dialética regida pela vontade de Deus – eram duas
modalidades da sua imensa união com Deus, tanto nos seus
momentos de oração como nos de trabalho; eram dois modos

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intensos, nunca abandonados, de se referir ao ser e ao agir de
Deus-Trindade. Com razão, essa forma de viver a santidade foi
definida como a “graça de unidade” em Dom Bosco.
Mas, também existe o perigo, sobretudo no apóstolo, de que
a ação se aliene e se banalize na busca da eficácia a qualquer
preço. Desse modo, já não teria mais Deus como princípio,
conteúdo, acompanhamento e fim da ação. Não seria mais –
como foi para Dom Bosco – scala paradisi, “contemplação na
atividade apostólica”. Os céus se fechariam sobre a sua cabeça.
Em Dom Bosco o homem moderno se reconhece de bom
grado, como nos outros gigantes da santidade.
Em tempos difíceis e obscuros, retomando o que já dissemos
no início, “as ações e os sofrimentos dos santos devem criar um
novo alfabeto para desvelar novamente o segredo da verdade”,
como afirma M. Baumgarten.
O alfabeto criado por Dom Bosco é, sem dúvida, sinal e
mensagem válidos para o homem do nosso tempo. Sinal e men-
sagem que, cem anos depois da sua morte, não apenas não se
enfraqueceram, mas aumentaram em importância e significado.
Da cidade de Turim, nos recorda E. Viganò, o santo dos jovens
realmente transmitiu “a todo o mundo uma grande mensagem:
uma palavra para os séculos”.

31.9 Page 309

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Pietro Brocardo 307
53 A igreja do Sagrado Coração, em Roma, teve suas obras interrompidas por falta de dinheiro.
O papa Leão XIII então pediu a Dom Bosco para finalizá-la. Inaugurada em 14 de maio de
1887, o templo foi motivo de grande preocupação para o santo. [n.e.]

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308 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo

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310 Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo

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32.4 Page 314

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Esta obra foi composta pela divisão de
produção da Editora Salesiana e impressa
na gráfica das Escolas Profissionais Salesianas.