CENTRO SALESIANO DE DOCUMENTAÇÃO E PEQUISA


CENTRO SALESIANO DE DOCUMENTAÇÃO E PEQUISA

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MEMÓRIAS DO ORATÓRIO

DE SÃO FRANCISCO DE SALES


1 de 1815 a 1855

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PÁGINA BRANCA


São João Bosco






MEMÓRIAS

DO ORATÓRIO

DE SÃO FRANCISCO

DE SALES


de 1815 a 1855









Tradução: Fausto Santa Catarina


Edição crítica aos cuidados de Antônio da Silva Ferreira









Editora Salesiana






1982 © Editora Salesiana


Título original: Memorie dell’Oratorio di San Francesco di Sales dal 1815 al 1855. Roma, Editrice SDB, 1979.



Direção geral: Ailton A. dos Santos

Direção administrativa: Essetino Andreazza

Coordenação editorial: Dimas A. Künsch

Assistentes: J. Augusto Nascimento

João Luis Fedel Gonçalves

Bianca Fincati

Revisão: Cristina Kapor

Projeto gráfico: Gledson Zifssak

Editoração eletrônica e capa: Luciene Cardoso

Secretaria editorial: Márcia de Moraes


Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas










FICHA CATALOGRÁFICA











1ª Edição: 1982

2ª Edição: 1999

3ª Edição: 2005










Todos os direitos reservados:


EDITORA SALESIANA

Rua Dom Bosco, 441 - Mooca

03105-020 São Paulo - SP

Fone: (11) 3277-3211 - Fax: (11) 3209-4084

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Como se chegou à presente edição




O manuscrito de Dom Bosco sobre as Memórias do Oratório foi publicado pela primeira vez pelo padre Eugenio Ceria. Ele já trabalhara na publicação de vários volumes das Memórias biográficas de Dom Bosco. Professor de literatura, o padre Ceria trouxe à luz um bom texto, embora cá e lá, cremos por razões literárias, se afastasse em alguns detalhes do texto original. Essa publicação foi feita em italiano: San Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Francesco di Sales dal 1815 al 1855 (Turim, Milão, Gênova, Parma, Roma, Catania, SEI [1946]). Foi traduzida para o francês, o espanhol, o português e o inglês. Do texto do padre Ceria se fez depois uma segunda edição em 1986.


Desejando o Instituto Histórico Salesiano de Roma publicar, em edição crítica, os diversos escritos pedagógicos de Dom Bosco, Antônio da Silva Ferreira assumiu o encargo de cuidar da edição crítica do manuscrito de Dom Bosco sobre as Memórias do Oratório. Nessa edição, além do texto cuidadosamente igual ao original, colocaram-se também as notas críticas, isto é, as correções e variações que o mesmo Dom Bosco introduziu no texto. Completaram a edição as notas de rodapé, com tipos diversos de material:


  • indicação de outros textos que ajudam a fazer conhecer melhor o conteúdo do manuscrito de Dom Bosco, o momento histórico em que Dom Bosco redigiu as Memórias do Oratório, ou o seu provável estado de alma no momento em que escrevia. Exemplo são as notas que se referem à polêmica de dom Gastaldi, arcebispo de Turim, contra o Colégio Eclesiástico, onde Dom Bosco estudara;


  • informações sobre lugares geográficos, igrejas, situações sociais do tempo a que se referem as Memórias do Oratório;


  • informações biográficas sobre as pessoas que aparecem nas Memórias do Oratório. No texto, várias vezes Dom Bosco modifica os nomes das pessoas, não sabemos por qual razão. Nas notas, procuramos dar o nome exato, após longas pesquisas de arquivos, bibliotecas e jornais.


Quando os nomes indicados por Dom Bosco não correspondem à realidade das pessoas, com base em fontes seguras indicamos na nota quer a biografia da pessoa indicada por Dom Bosco, quer a daquela pessoa a que se deveria referir o texto. Exemplo disso é a confusão entre Pedro Roppolo del Cappello e o Moncalvo. Quando não se têm fontes seguras, preferimos não intervir em nota, como no caso do padre Bini, da Companhia de Jesus.


Queremos enfim salientar que o trabalho das notas de rodapé foi feito a muitas mãos. Cerca de trinta párocos, muitos arquivistas e pessoas dedicadas ao estudo da história de sua terra natal colaboraram com boa vontade e seriedade na busca de dados. Foram cinco anos de trabalho intenso e minuciosa pesquisa.


Resultado de todo esse levantamento foi o livro Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815 al 1855. Introduzione, note e texto critico a cura di Antonio da Silva Ferreira. Roma, LAS [1991].


Publicada a edição crítica, receberam-se alguns poucos pedidos de retificação de notas e sugestões de novos dados. Das notas críticas, desejava-se conservar apenas as que tinham um especial significado, como aquela de ganhar os jovens, no sonho dos 9 anos. Tudo foi realizado em Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815 al 1855. Introduzione e note di Antonio da Silva Ferreira. Roma, LAS [1992].


No Brasil, tínhamos já uma excelente tradução da edição de Ceria, feita pelo padre Fausto Santa Catarina. A presente edição retoma essa tradução. Faz com que ela reproduza fielmente o texto do manuscrito de Dom Bosco. Aproveita as notas de rodapé da edição italiana de 1992 e uma ou outra nota das anteriores edições brasileiras. As notas no decorrer do texto são do manuscrito de Dom Bosco e conservam a numeração dada pelo Santo. As notas de rodapé têm numeração progressiva.



Nas questões controvertidas e ainda não suficientemente esclarecidas, prefere-se deixar a resposta em suspenso, como no caso da identidade do judeu Jonas. Deseja-se assim oferecer aos leitores não apenas um conhecimento mais aprofundado da vida e da prática pedagógica de Dom Bosco, mas também um instrumento válido para futuros trabalhos científicos sobre o argumento.



O Editor

2 abreviaturas

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AAT


Arquivo Arquiepiscopal de Turim

ASC


Arquivo Salesiano Central

ASCT


Arquivo Histórico da Cidade de Turim

AST


Arquivo de Estado de Turim

BS


Bibliofilo Cattolico ou Bollettino Salesiano mensuale e Bollettino Salesiano


E

Epistolario di San Giovanni Bosco. Turim, SEI, vol. I: 1955; vol. II: 1956; vol. III: 1958; vol. IV: 1959.


FDB

Arquivo Salesiano Central. Fondo Don Bosco, Microschedatura e descrizione. Roma, 1980. Pode ser encontrado no Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena (MG).


F. Giraudi

L´Oratorio di Don Bosco: inizio e progressivo sviluppo edilizio della casa madre dei salesiani a Torino. 2a ed. Turim, SEI, 1935.


G. Barberis, Cronichetta

ASC 0000103. G. Barberis, Cronichetta. Vez por vez se indica o caderno interessado.


G. Bonetti, Annali

ASC 0040602 - ASC A 0040604. G. Bonetti, Annali. São 3 cadernos.


G. Bosco, Cenno storico

G. Bosco. Cenno storico dell´Oratorio di San Francesco di Sales. Edição crítica aos cuidados de Pietro Braido. In: P. BRAIDO (ed.). Don Bosco educatore scritti e testimonianze. 2a ed. Roma, LAS,1992.


G. Bosco, La forza della buona educazione

G. BOSCO. La forza della buona educazione curioso episodio contemporaneo per cura del Sac. Bosco Giovanni. Turim, Tipografia Paravia e comp., 1855. In: OE VI, p. [275] – [386].

LC

Leituras Católicas


MB

Memorie biografiche di Don [del Venerabile - del Beato - di San] Giovanni Bosco. 20 vols. San Benigno Canavese-Turim, 1898-1948, edição extracomercial.


MO

Memorie dell´Oratorio di San Francesco di Sales – dal 1815 al 1855


OE

G. Bosco. Opere edite. Prima serie: Libri e opuscoli [reprodução anastática], 37 vols. Roma, LAS, 1976-1977. Seconda serie: Contributi su giornali e periodici, vol. XXXVIII. Roma, LAS [1987].

.

P. Braido, Don Bosco educatore

P. BRAIDO. Don Bosco educatore scritti e testimonianze. 2a ed. Roma, LAS [1992].


R1 R2 R3 R4 R5

ASCA 0080601 - A 0080605. D. Ruffino, Cronache dell´Oratrorio di San Francesco di Sales [1859-1864]. São 5 cadernos.


Regolamento per le scuole

Regie patenti colle quali Sua Maestà approva l´annesso Regolamento per le scuole tanto comunali che pubbliche, e Regie. In data 23 luglio 1822. Turim, Tipografia Real.


RSS

Ricerche Storiche Salesiane. Rivista semestrale di storia religiosa e civile. Roma, LAS.


S. Caselle, Giovanni Bosco

studente

S. Caselle. Giovanni Bosco studente. Chieri 1831-1841: dieci anni che valgono una vita. [Turim], Edizioni Acclaim [1988].


P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, I-II

P. Stella. Don Bosco nella storia della religiosità cattolica. Vol. I: Vita e opere. 2a ed. Roma, LAS, 1979. Vol. II: Mentalità religiosa e spirituale. 2a ed. Roma, LAS, 1981.


P. Stella, Don Bosco nella storia

economica e sociale

P. Stella. Don Bosco nella storia economica e sociale (1815-1870). Roma, LAS [1980].


Storia ecclesiastica

Storia ecclesiastica ad uso delle scuole utile per ogni ceto di persone. Dedicata all´Onorat.mo Signore F. Ervé de la Croix provinciale dei Fratelli D.I.D.S.C. Compilata dal sacerdote Giovanni Bosco. Turim, Tipografi Editori Speirani e Ferrero, 1845, OE I [160] - [556].


Storia sacra

Storia sacra per uso delle scuole utile ad ogni stato di persone arricchita di analoghe incisioni. Compilata dal sacerdote Giovanni Bosco. Turim, Speirani e Ferrero, 1847, OE III [2-212].



SUMÁRIO












INTRODUÇÃO



POR QUE AS MEMÓRIAS1


Em sua primeira viagem a Roma (1858), Dom Bosco expôs a Pio IX de que modo havia surgido a obra do Oratório festivo. Intuindo nela a presença de elementos sobrenaturais, o pontífice quis inteirar-se de tudo e recomendou ao santo que, voltando para Turim, escrevesse circunstanciadamente os sonhos e tudo o mais. O escrito deveria conservar-se como patrimônio da Congregação, para estímulo e orientação de seus filhos.


Não obstante, Dom Bosco deixou passar nove anos sem executar a recomendação.


Quando, em 1867, voltou a visitar o Papa, este, recordando o que lhe dissera da primeira vez, quis saber se havia sido atendido. Dom Bosco respondeu que as muitas ocupações não lhe haviam permitido fazê-lo. O Papa insistiu.


– Pois bem, se é assim, deixe de lado qualquer ocupação e escreva. Esta vez não é apenas um conselho, mas uma ordem. Não pode compreender por inteiro o bem que disto derivará para seus filhos.


Dom Bosco obedeceu. Não logo, porém. Preocupações de toda espécie, viagens inadiáveis e, por fim, grave e prolongada doença tiraram-lhe a possibilidade de levar a termo a vontade de Pio IX.


Em 1873, tratava-se da aprovação definitiva das Constituições da Sociedade de São Francisco de Sales. Para ajudá-lo no trabalho da redação final do texto que se devia apresentar em Roma, Dom Bosco chamou o padre Júlio Barberis. Tomaram todos os documentos de que tinham necessidade e se retiraram para a vila da benemérita condessa Gabriela Pelletta Corsi, em Nizza Monferrato, onde se puseram a trabalhar. Nessa ocasião, Dom Bosco dedicou-se à redação das Memórias do Oratório de São Francisco de Sales.


O trabalho, qual o temos hoje, compreende três cadernos distintos. Em 1873, Dom Bosco escreveu somente os dois primeiros, encerrando seu trabalho no dia 21 de outubro daquele ano. A narração chegava até 1845, no momento em que o Oratório se instala na obra da marquesa Barolo. E foi esse o texto que levou a Roma para apresentar ao Papa Pio IX.


No texto, Dom Bosco determinava: “Escrevo para os meus caríssimos filhos salesianos, com proibição de dar publicidade a estas coisas, tanto antes como depois da minha morte”. A proibição de Dom Bosco significava que seu escrito não devia sair de dentro de casa. Nas Memórias ele fala de si, de acontecimentos e fatos pessoais cujo conhecimento podia ser muito útil para seus filhos, mas que não se destinavam ao grande público. Dentro das paredes domésticas, um pai pode abrir-se em confidências, que devem naturalmente ficar entre os íntimos.


A evolução da Congregação levou Dom Bosco a tomar uma atitude diferente. Em 2 de fevereiro de 1876, lembrou aos diretores de suas casas as origens remotas da Congregação Salesiana, insistindo na necessidade de coligir os fatos que pudessem servir para escrever-lhe a história completa. E dizia: “Há necessidade, para a maior glória de Deus, para a salvação das almas e para o incremento da Congregação, que muitas coisas se tornem conhecidas”. E, como a prevenir a necessidade inevitável de falar de si e a impressão que isso pudesse causar a pessoas sérias, declarou:



“Neste ponto já não se deve ter consideração com Dom Bosco nem com ninguém. Vejo que a vida de Dom Bosco se confunde inteiramente com a vida da Congregação: então falemos dele. Julgo bem deixar de lado o homem. Que me importa que dele se fale bem ou mal? Digam ou falem o que quiserem, pouco me interessa: não serei nunca nem maior nem menor do que sou perante Deus. Mas é necessário que as obras de Deus se manifestem”.



Passou então a escrever o terceiro caderno de suas Memórias, com o título “3º Memórias do Oratório exclusivamente para os Sócios Salesianos – de 1845 a 1855”. O fato de que o Boletim Salesiano se sirva progressivamente deste caderno nos anos de 1879 a 1882 para a publicação da História do Oratório de São Francisco de Sales nos faz supor que, à medida que se necessitava de material para a publicação, Dom Bosco ia finalizando as partes deste terceiro caderno.


Se tais razões eram válidas a partir de 1876, muito mais o são hoje, quando a obra de Dom Bosco, isto é, de Deus, está espalhada pelo mundo e seu instrumento imediato deixou de ser um simples mortal. Nada, pois, poderia impedir-nos de retirar a luz de sob o leito, expondo aos olhos de todos as páginas serenas e luminosas que Dom Bosco nos legou.

3 O conteúdo

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Nas Memórias Dom Bosco conta as origens distantes e atribuladas do oratório salesiano. A narrativa situa-se entre a autobiografia e a história da Congregação Salesiana.2 Focaliza em primeiro plano o oratório, fruto da caridade pastoral que já se mostrava como em embrião no apostolado do pastorzinho dos Becchi, do estudante de Chieri ou do jovem sacerdote na igreja de São Francisco de Assis, em Turim.


Após penosa peregrinação, encontrou por fim uma sede estável na casa Pinardi. Então Dom Bosco pôs-se logo a construir a igreja de São Francisco de Sales e a casa do oratório, a princípio simples residência e, depois, colégio e escola profissional.


Dificuldades sem conta que, numa visão humana, pareciam insuperáveis, não conseguiram sufocar nem em seu nascedouro nem em seu desenvolvimento uma obra que era, evidentemente, de Deus.


O oratório festivo


Dom Bosco não inventou o oratório.3 Conservando o nome, que lhe era simpático, introduziu nos oratórios de seu tempo duas modificações. Os oratórios costumavam reunir a juventude somente numa determinada hora do domingo, pela manhã ou à tarde; o oratório de Dom Bosco, ao invés, devia ocupar os meninos o dia inteiro nos domingos e festas de guarda, com um inter­valo para o almoço. Foi por isso que acrescentou festivo, para indicar precisamente os domingos e festas de guarda, que os italianos chamam de dias festivos, incluindo neles os feriados nacionais. Além disso, o oratório não seria exclusivamente paroquial, mas devia receber meninos de qualquer paróquia.


Ambas as inovações atendiam à necessidade dos tempos. No seu oratório aberto (os oratórios tradicionais só recebiam meninos de boa conduta), Dom Bosco acolhia três classes de jovens: meninos abandonados, que ficavam a vagar por ruas e praças, desocupados, sem escola, sem vontade de aprender nem de trabalhar; meninos que saíam da cadeia, e haveriam de perverter-se ainda mais caso ninguém se interessasse por eles; rapazes que vinham do interior (explodia a era industrial) pela grande oferta de mão-de-obra. Perdidos na capital, achavam-se expostos a muitos perigos. Para Dom Bosco, o oratório festivo era a “paróquia” dos meninos abandonados.


O santo quis explicitamente que onde houvesse uma obra salesiana houvesse também um oratório festivo. Em 1885 afirmou: “Vejo sempre mais claramente o futuro glorioso preparado para a nossa Congregação. Mas tenha-se como base que o nosso escopo principal são os oratórios festivos”. Ainda hoje os salesianos olham para o oratório como para a “obra primeira e típica” da Congregação. Porque as demais obras salesianas não são mais que desdobramentos dessa grande intuição de Dom Bosco. É com um “coração oratoriano” – expressão do Reitor-Mor dos salesianos no período 1977-1995, padre Egídio Viganó, a indicar precisamente o espírito que animava os primeiros tempos – que os salesianos de Dom Bosco procuram prolongar a presença educativa do santo fundador.



4 O que são as Memórias do Oratório4

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Não se trata de uma biografia histórica de Dom Bosco. A finalidade com que escreveu estas páginas está bem expressa por ele mesmo:



Para que servirá então este trabalho? Servirá de norma para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições do passado; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus conduziu todas as coisas a cada momento; servirá de ameno entretenimento para meus filhos quando lerem as aventuras em que andou metido seu pai; e haverão de lê-las com mais gosto quando, chamado por Deus a prestar conta dos meus atos, já não estiver entre eles. (...) Meus filhos, quando lerdes estas memórias depois de minha morte lembrai-vos que tivestes um pai afeiçoado, que antes de abandonar o mundo deixou estas memórias como penhor de seu carinho paterno”.



Pode-se facilmente pensar que o Fundador tem em vista dar à instituição, juntamente com uma situação estável, segurança, elã e uma orientação ideal mais acentuada. O escopo dominante não é pois a fidelidade à história, mas uma finalidade moral, edificante, programática mesma, caso se levem em conta as orientações espirituais e pedagógicas que o autor difunde intencionalmente.


Se damos em nota os documentos de que Dom Bosco se serviu para compor as Memórias do Oratório, não é com o fim de criticar o texto, mas de levar os leitores a compreenderem melhor como Dom Bosco redigia suas obras.


Radicalmente, as Memórias orientam o futuro. A evocação histórica quer ser apenas um sinal e garantia de que o projeto do oratório – e depois da Sociedade Salesiana – é desejado, incrementado e sustentado por Deus.


Tal assistência de Deus emerge dos fatos, sobretudo, por três aspectos: Dom Bosco é ensinado pelo Alto em seus sonhos, é visivelmente defendido com a punição de seus opositores e, terceiro, mostra-se um “vidente” realista em seu projeto de oratório e de congregação. Dom Bosco procura recrear e alegrar para confortar e confirmar.


São as Memórias do Oratório talvez o livro mais rico de conteúdos e orientações “preventivas” que ele escreveu. Um verdadeiro manual de pedagogia e de espiritualidade, “contada” em clara perspectiva de pedagogia oratoriana. É uma pedagogia cheia de fantasia e vivaz, que se opõe à pedagogia mais “colegial” do opúsculo sobre O Sistema Preventivo na educação da juventude.


Braido resume em alguns pontos as lições das Memórias do Oratório:


  1. A tarefa de educar cristãmente se origina numa vocação divina, que supõe propensão inata e inclinação para dedicar-se aos jovens, sobretudo aos menos assistidos.

  2. O eixo da presença benéfica e educativa entre os jovens é o oratório, instituição juvenil aberta, atraente, onde se mesclam “devoção, brinquedos e passeios”. É mais uma experiência que uma instituição.

  3. Acena-se ao surgir de uma segunda presença educativa, o pensionato, que aos poucos se transforma em internato com oficinas e aulas próprias.

  4. A ação benéfica global se resume na assistência-presença. Como finalidade e conteúdo, a assistência oferece aos jovens tudo o que é necessário para a alma e para o corpo; como método e meio disciplinar, manifesta-se como vigilância e presença (estar com os jovens).

  5. Idealmente, e em certa medida também efetivamente, o cuidado com os jovens abandonados quer ser uma resposta a todas as suas necessidades: alimentação, roupa, alojamento, possibilidade de trabalho, oportunidade de estudo, plena ocupação do tempo livre e, no cume, a conduta moral e a religião. Assim se constrói o “bom cristão e honesto cidadão”.

  6. Na prática, afirma-se com força o papel fundamental da religião. Ocupam um lugar central os sacramentos, especialmente a Confissão e a Comunhão. No horizonte da piedade e da vida, Dom Bosco quer dar um lugar privilegiado a Maria Santíssima, que ele vê presente nas principais etapas de seu oratório.

Reserva ainda um lugar central à catequese, razão primária da criação de suas instituições juvenis. Recorda-se também explicitamente o associacionismo juvenil, manifestado na Companhia de São Luís.

  1. As práticas de piedade e, sobretudo, a freqüência dos sacramentos são estreitamente ligadas à vida cotidiana e à moralidade, entendida não apenas como castidade, mas também como obediência e disciplina.

  2. O método, mais que enunciado em formas, atravessa toda a narração. É todo pleno de caridade e de amor afetivo e efetivo. Não por nada Dom Bosco coloca no início das Memórias o sonho dos 9 anos: “Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude”.

Desde os inícios o desconforto do jovem (a solidão, o fastio) se encontra com a bondade acolhedora e alegre. A experiência se repete depois em Chieri e em Turim. O oratório é identificado com esse tipo de encontro.

  1. Viver para os jovens, segundo Dom Bosco, significa não apenas oferecer coisas sérias para a vida deles, mas empenhar-se por responder à necessidade inata da alegria. Nas diversas fases do oratório sempre a parte religiosa está unida à parte recreativa. Iniciar o oratório quer dizer fazer festa. Isso exige de forma indivisível celebrações religiosas, entretenimento sob diversas formas e – para um público pobre e com grande apetite – mais que desjejum, que nunca pode faltar.

  2. Afetividade e alegria criam o elemento conectivo da relação educativa. É o que se pode constatar nos dois modelos de educador propostos por Dom Bosco: o padre Calosso e o professor Banaudi.


Concluindo


As Memórias do Oratório têm o mérito e a vantagem de oferecer a versão mais imprevisível e simpática do sistema educativo de Dom Bosco. E o faz não em forma acadêmica, mas por meio de situações, de fatos, de pessoas, plenos de intuições e de significados, que tornam tal versão extremamente acessível em meio à contínua variação das condições históricas e às novas exigências da condição juvenil.5


























MEMÓRIAS


PARA O ORATÓRIO E PARA A


CONGREGAÇÃO


SALESIANA




















Mais de uma vez me pediram que pusesse por escrito as memórias do Oratório de São Francisco de Sales.


Conquanto não pudesse desatender à autoridade de quem me aconselhava, relutei em meter mãos à obra, sobretudo porque deveria falar de mim com demasiada freqüência.


Ao conselho juntou agora, a alta autoridade,6 uma ordem que não admite maiores delongas.


Por isso é que aqui estou a relatar detalhadamente confidências de família. Poderão servir de luz e proveito à instituição que à Sociedade de São Francisco de Sales dignou-se confiar a Providência divina.


Escrevo – previno logo de início – para os meus muito amados filhos salesianos, proibindo que, assim antes como depois da minha morte, se dê publicidade aos assuntos aqui apresentados.


Para que servirá então este trabalho? Servirá de norma para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições do passa­do; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus conduziu todas as coisas a cada momento; servirá de ameno entretenimento para meus filhos quando lerem as aventuras em que andou metido seu pai; e haverão de lê-las com mais gosto quando, cha­mado por Deus a prestar conta dos meus atos, já não estiver entre eles. Perdoai-me quando encontrardes fatos expostos talvez com muita complacência e mesmo aparência de vanglória. Trata-se de um pai que tem a satisfação de falar de suas coisas a seus amados filhos, que, por sua vez, ficam satisfeitos de saber as pequenas aventuras de quem tanto os amou, e que, nas coisas pequenas como nas grandes, sempre se empenhou em trabalhar em seu benefício espiritual e temporal.


Apresento estas memórias divididas em décadas, ou períodos de dez anos, porque em cada uma delas se produziu um notável e sensível desenvolvimento de nossa instituição.


Meus filhos, quando lerdes estas memórias depois de minha morte, lembrai-vos que tivestes um pai afeiçoado, que antes de abandonar o mundo deixou estas memórias como penhor de seu carinho paterno; e ao vos recordardes de mim, rezai a Deus pelo repouso eterno da minha alma.






DEZ ANOS DE INFÂNCIA - MORTE DO PAI - PENÚRIAS FAMILIARES - A MÃE VIÚVA


Nasci no dia consagrado à Assunção de Nossa Senhora ao Céu,7 no ano 1815, em Murialdo, distrito de Castelnuovo d’Asti.8 Minha mãe chamava-se Margarida Occhiena de Capriglio,9 e meu pai, Francisco. Eram camponeses que com trabalho e economia ganhavam honestamente o pão de cada dia. Meu bom pai, quase unicamente com seus suores, proporcionava sustento à vovó septuagenária e cheia de achaques; a três meninos, o maior dos quais, Antônio, filho do primeiro matrimônio; o segundo era José; o mais moço, João, que sou eu; havia ainda dois empregados no campo.


Não tinha eu ainda 2 anos quando Deus misericordioso nos atingiu com uma grave desgraça. Um dia, o amado pai, cheio de saúde, na flor da idade, todo preocupado em educar cristãmente os filhos, de volta do trabalho, ensopado de suor, entrou imprudentemente na adega, subterrânea e fria. O resfriado manifestou-se à noitinha com violenta febre, precursora de forte pneumonia. Inúteis todos os cuidados. Em poucos dias encontrou-se às portas da morte. Munido de todos os confortos religiosos, recomendou à minha mãe que tivesse confiança em Deus, e faleceu na bela idade de 34 anos, em 12 de maio de 1817.


Não sei o que aconteceu comigo em tão triste circunstância. Lembro apenas, e é o primeiro fato de minha vida que guardo na memória, que todos saíam do quarto do falecido e eu queria ficar lá a todo o custo.


Vem, João, vem comigo – insistia minha aflita mãe.


Se papai não vem, eu também não vou – retorqui.


Pobre filho – continuou mamãe –, vem comigo, já não tens pai.


Ditas essas palavras, prorrompeu em soluços, tomou-me pela mão e levou-me para fora, ao passo que eu chorava porque a via chorar. Naquela idade não podia evidentemente compreender a grande desgraça que é a perda de um pai.


O acontecimento deixou a família profundamente consternada. Devia-se manter cinco pessoas; as colheitas do ano, nosso único recurso, falharam por causa de terrível seca; os comestíveis chegaram a preços fabulosos. O trigo chegou a custar 25 francos a hemina,10 o milho, 16. Algumas testemunhas contemporâneas me afirmam que os mendigos pediam com sofreguidão um pouco de farelo para completar o cozido de grão-de-bico ou de feijão e se alimentarem. Nos prados foram encontradas pessoas mortas, com a boca cheia de capim, com o qual haviam tentado saciar a fome canina.


Mamãe contou-me várias vezes que alimentou a família enquanto pôde. Depois deu dinheiro a um vizinho chamado Bernardo Cavallo,11 para que fosse à procura de comestíveis. O amigo percorreu diversos mercados e nada encontrou, mesmo a preços exorbitantes. Voltou dois dias depois, pelo anoitecer, ansiosamente aguardado por todos. Quando comunicou que só trazia o dinheiro de volta, o medo se apoderou de todos, porque como se haviam alimentado muito mal nesse dia, eram de temer as funestas conseqüências da fome naquela noite.


Sem perder a coragem, mamãe foi pedir emprestado aos vizinhos algo para comer, e não encontrou quem a pudesse ajudar.


Meu marido – comentou – disse-me ao morrer que tivesse confiança em Deus. Venham aqui, vamo-nos ajoelhar e rezar.


Depois de breve oração levantou-se e disse:


Em casos extremos deve-se empregar meios extremos.


Foi então ao estábulo juntamente com o senhor Cavallo, matou um bezerro e, fazendo cozinhar a toda pressa uma parte, pôde satisfazer a fome da família extenuada. Dias mais tarde foi possível encontrar cereais, a preços muito elevados, trazidos de povoados distantes.12


É fácil imaginar quanto deve ter sofrido e labutado minha mãe naquele ano calamitoso. Entretanto, com um trabalho incansável, persistente economia, especulando sobre as pequeninas coisas, e com alguma ajuda deveras providencial foi possível superar a crise de víveres. Tais fatos contou-nos diversas vezes mamãe e confirmaram-nos parentes e amigos.


Passada a terrível penúria e melhorada a situação econômica, mamãe recebeu vantajosa proposta de casamento. Contudo, respondeu invariavelmente:


Deus me deu um marido e mo tirou; ao morrer, deixou-me três filhos, e eu seria uma mãe cruel se os abandonasse justa­mente quando mais precisam de mim.


Insistiram dizendo que os filhos seriam confiados a um bom tutor, que havia de cuidar muito bem deles.


Um tutor – respondeu a generosa mulher – é um amigo, ao passo que eu sou a mãe dos meus filhos. Não os abandonarei jamais, ainda que me oferecessem todo o ouro do mundo.


Seu maior cuidado foi instruir os filhos na religião, torná-los obedientes e ocupá-los em coisas compatíveis com a idade. Quando eu era pequenino, ela mesma me ensinou as orações; quando pude juntar-me aos meus irmãos, fazia-me ajoelhar com eles de manhã e de noite, e juntos rezávamos as orações e o terço. Lembro-me de que ela mesma me preparou para a primeira confissão: acompanhou-me à igreja, confessou-se antes de mim, recomendou-me ao confessor e depois ajudou-me a fazer a ação de graças. Continuou a ajudar-me até julgar-me capaz de sozinho confessar-me dignamente.


Assim cheguei aos 9 anos de idade. Mamãe queria enviar-me à escola, mas preocupava-se com a distância, já que estávamos a 5 quilômetros do povoado de Castelnuovo. Meu irmão Antônio opunha-se à minha ida ao colégio. Chegou-se então a uma solução. Durante o inverno iria à escola do pequeno povoado de Capriglio, onde pude aprender a ler e a escrever. Meu professor era um sacerdote muito piedoso, chamado José Delacqua.13 Foi muito atencioso para comigo, interessando-se de bom grado pela minha instrução e mais ainda pela minha educação cristã. Durante o verão contentaria meu irmão, trabalhando no campo.



UM SONHO


Nessa idade tive um sonho,14 que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida. Pareceu-me estar perto de casa, numa área bastante espaçosa, onde uma multidão de meninos estava a brincar.15 Alguns riam, outros divertiam-se, não poucos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias, lancei-me de pronto no meio deles, tentando, com socos e palavras, fazê-los calar. Nesse momento apareceu um homem venerando, de aspecto varonil, nobremente vestido. Um manto branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém, era tão luminoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo nome e mandou que me pusesse à frente daqueles meninos, acrescentando estas palavras:


Não é com pancadas mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar16 esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude.


Confuso e assustado repliquei que eu era um menino pobre e ignorante, incapaz de lhes falar de religião. Senão quando aqueles meninos, parando de brigar, de gritar e blasfemar, jun­taram-se ao redor do personagem que estava a falar. Quase sem saber o que dizer, acrescentei:


Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis?


Justamente porque te parecem impossíveis, deves torná-las possíveis com a obediência e a aquisição da ciência.


Onde, com que meios poderei adquirir a ciência?


Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice.


Mas quem sois vós que assim falais?


Sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia.


Minha mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que não conheço; dizei-me, pois, vosso nome.


Pergunta-o a minha mãe.


Nesse momento vi a seu lado uma senhora de aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse fulgidíssima estrela. Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas perguntas e respostas, acenou para que me aproximasse e, tomando-me com bondade pela mão, disse:


Olha.


Vi então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar deles estava uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos e outros animais.


Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto;17 e o que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus filhos.


Tornei então a olhar, e em vez de animais ferozes apareceram mansos cordeirinhos que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele homem e daquela senhora, como a fazer-lhes festa.


Neste ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi que falassem de maneira que pudesse compreender, porque não sabia o que significava tudo aquilo. A senhora descansou a mão em minha cabeça, dizendo:


A seu tempo tudo compreenderás.


Após essas palavras, um ruído qualquer me acordou, e tudo desapareceu.


Fiquei transtornado. Parecia-me ter as mãos doloridas pelos socos que desferira e doer-me o rosto pelos tapas recebidos; além disso, aquele personagem, a senhora, as coisas ditas e ouvidas de tal modo me encheram a cabeça que naquela noite não pude mais conciliar o sono.


De manhãzinha contei logo o sonho, primeiro aos meus irmãos, que se puseram a rir, depois à mamãe e à vovó. Cada um dava o seu palpite. O irmão José dizia: “Vais ser pastor de cabras, de ovelhas e de outros animais”. Mamãe: “Quem sabe se um dia não serás sacerdote”. Antônio, secamente: “Chefe de bandidos, isso sim”. Mas a avó que, de todo analfabeta, entendia muito de teologia, deu a sentença definitiva: “Não se deve fazer caso dos sonhos”.


Eu era do parecer de minha avó,18 todavia não pude nunca tirar aquele sonho da minha cabeça. O que vou doravante expor dará a isso alguma explicação. Mantive-me sempre calado; meus parentes não lhe deram importância. Mas quando, em 1858, fui a Roma para falar com o Papa sobre a Congregação Salesiana, ele me fez contar pormenorizadamente tudo quanto tivesse ainda que só a aparência de sobrenatural. Contei então pela primeira vez o sonho que tive na idade de 9 a 10 anos. O Papa mandou-me escrevê-lo literalmente e com pormenores, e deixá-lo como estímulo aos filhos da Congregação, a qual era precisamente o objetivo de minha viagem a Roma.



PRIMEIRA DÉCADA: 1825-1835




PRIMEIROS BRINQUEDOS COM OS MENINOS - PREGAÇÕES - O SALTIMBANCO - OS NINHOS


Por diversas vezes me perguntastes em que idade comecei a preocupar-me com os meninos. Aos 10 anos fazia o que era compatível com essa idade: uma espécie de Oratório festivo. Ouvi. Eu era ainda muito pequenino, e já estudava o caráter dos meus companheiros. Olhando para o rosto de um deles, quase sempre descobria os propósitos que lhe iam no coração. Era por isso muito querido e respeitado pelos da minha idade. Todos me escolhiam como juiz ou amigo. De minha parte fazia o bem a quem podia, e o mal a ninguém. Os companheiros me queriam com eles, para que os defendesse em caso de briga. Porque, embora pequeno de estatura, possuía força e coragem para incutir medo nos companheiros de idade bem maior. A tal ponto que surgindo brigas, discussões, rixas de qualquer espécie, era eu o árbitro dos contendores, e todos aceitavam de bom grado a sentença que eu ditasse.


Mas o que os reunia ao meu redor e os arrebatava até à loucura, eram as estórias que lhes contava. Os exemplos ouvidos nas pregações ou no catecismo, a leitura de Os pares de França, Guerino Meschino, Bertoldo e Bertoldino19 fornecia-me bastante material. Nem bem me viam, os colegas corriam em tropel para que lhes contasse alguma coisa, eu que mal começava a compreender o que lia. Juntaram-se a eles alguns adultos, e, algumas vezes, indo a Castelnuovo ou de lá voltando, outras, num campo ou num prado, via-me rodeado de centenas de pessoas, que acorriam para escutar um pobre menino que, salvo um pouco de memória, era jejuno na ciência, embora passasse entre eles por um grande doutor. No país dos cegos, quem tem um olho é rei (monoculus rex in regno caecorum).


Durante a estação invernal, queriam-me no estábulo para que lhes contasse algumas historietas. Reunia-se ali gente de toda idade e condição, e todos gostavam de passar a tarde inteira, cinco ou mesmo seis horas, a ouvir imóveis a leitura de Os pares de França, que o pobre orador fazia, de pé sobre um banco, a fim de ser ouvido e visto por todos. Como, porém, diziam que vinham para ouvir a pregação, fazíamos todos o sinal-da-cruz e rezávamos uma Ave-Maria antes e depois das minhas narrativas.



O ANO 1826


Na primavera, especialmente nos domingos e dias santos de guarda, reuniam-se os da vizinhança e muitos outros de fora. Então a coisa assumia um caráter mais sério. Proporcionava a todos um entretenimento com alguns brinquedos que eu havia aprendido de outros. Nos mercados e nas feiras, apresentavam-se freqüentemente charlatões e saltimbancos, que eu ia ver. Observando atentamente as mínimas proezas, voltava para casa e exercitava-me até conseguir reproduzi-las. Imaginai os encontrões, batidas, tombos e trambolhões a que me expunha a cada momento.20 Havíeis de acreditar? Aos 11 anos fazia jogos de prestidigitação, dava saltos mortais, imitava a andorinha,21 andava com as mãos, caminhava, saltava e dançava na corda como um saltimbanco profissional.


Pelo que se fazia nos dias de festa, pode-se compreender o que se fazia nos outros.


Havia nos Becchi um prado, onde cresciam então algumas árvores, das quais resta ainda uma pereira, que naquele tempo muito me ajudou.22 Amarrava a essa árvore uma corda, que depois prendia em outra, a alguma distância. Numa mesinha colocava a bolsa; depois estendia um tapete por terra para os saltos. Quando tudo estava preparado e o público ansioso para ver as novidades, convidava-os todos a rezar o terço, depois do qual se entoava um canto sacro. Subia então a uma cadeira, fazia o sermão, ou melhor, repetia o que lembrava da explicação do Evangelho ouvida pela manhã na igreja, ou contava fatos e exemplos ouvidos ou lidos em algum livro. Terminado o sermão, rezava-se um pouco e passava-se logo ao entretenimento.


Poderíeis agora ver o orador, como disse antes, transformar-se num charlatão de profissão. Imitar a andorinha, dar o salto mortal, caminhar sobre as mãos de pernas para o ar, depois colocar o alforge aos ombros, engolir moedas para em seguida recobrá-las na ponta do nariz deste ou daquele espectador; mais: multiplicar bolinhas, ovos, mudar água em vinho, matar e reduzir a pedaços um frango e depois fazê-lo ressuscitar e cantar melhor do que antes, eram diversões ordinárias. Caminhava sobre a corda como por um caminho; saltava, dançava, pendurava-me ora com um pé ora com dois, com ambas as mãos ou com uma só. Depois de algumas horas de diversão, quando ficava bastante cansado, cessavam os jogos, fazia-se breve oração e cada um voltava aos seus afazeres. Ficavam excluídos dessas reuniões os que houvessem blasfemado, tido más conversas, ou se recusado a tomar parte nas práticas religiosas.


Neste ponto, haveis de perguntar: “Para ir à feira, aos mercados, com o fito de assistir aos charlatões, preparar o necessário para os divertimentos, era preciso dinheiro. De onde saía?”. Podia consegui-lo de diversas maneiras. Todas as moedas que mamãe ou outras pessoas me davam para compras ou gulodices, as pequenas gorjetas, os presentes, tudo eu guardava para essa finalidade. Além do mais, eu tinha grande habilidade em caçar passarinhos com arapuca, alçapão, visgo ou laços; era também muito entendido em ninhos. Juntando uma quantidade suficiente de tais objetos, sabia vendê-los muito bem. Os cogumelos, as ervas colorantes, a torga eram também fonte de renda.


Perguntareis se mamãe gostava que eu levasse uma vida tão folgada e gastasse tempo bancando o charlatão. Deveis saber que ela me queria muito bem. Eu depositava nela ilimitada confiança, e sem seu consentimento não havia de mover um dedo. Ela tudo sabia, tudo observava e me deixava agir. Antes, havendo necessidade de alguma coisa, dava-me com gosto. Os próprios coleguinhas e, em geral, todos os espectadores davam-me com satisfação quando fosse necessário para proporcionar-lhes os ambicionados passatempos.



PRIMEIRA COMUNHÃO - PREGAÇÃO DA MISSÃO - O Padre CALOSSO - ESCOLA DE MURIALDO


Aos 11 anos fui admitido à Primeira Comunhão. Sabia todo o pequeno catecismo, mas na maioria dos casos ninguém era admitido à comunhão antes dos 12 anos.23 Como eu morava longe da igreja, o pároco não me conhecia, e assim devia limitar-me exclusivamente à instrução religiosa de minha boa mãe. Não querendo, porém, que eu crescesse em idade sem praticar esse grande ato da nossa santa religião, empenhou-se ela própria em preparar-me como melhor podia e sabia. Durante a quaresma fez-me ir todos os dias ao catecismo. Fui depois examinado, aprovado, e marcou-se o dia em que todos os meninos deviam fazer a páscoa.


Era impossível evitar a distração no meio de muita gente. Mamãe assistiu-me vários dias, e durante a quaresma levou-me três vezes para confessar-me.


Meu João – disse repetidas vezes –, Deus está preparando um grande presente para ti, mas procura preparar-te bem, confessar, não calar nada na confissão. Confessa tudo, arrepende-te de tudo, e promete a Deus ser melhor para o futuro.


Tudo prometi; se depois fui fiel, Deus é quem sabe.


Em casa fazia-me rezar, ler um bom livro, dando-me os conselhos que uma mãe industriosa julga oportunos para seus filhos.


Naquela manhã não me deixou falar com ninguém, acompanhou-me à sagrada mesa e fez comigo a preparação e a ação de graças, que o vigário forâneo, chamado Sismondi,24 com muito zelo dirigia, alternando com todos em voz alta. Não quis que nesse dia me ocupasse em nenhum trabalho material, mas o passasse a ler e a rezar. Entre muitas outras coisas, mamãe repetiu-me várias vezes estas palavras:


Meu filho, este foi um grande dia para ti. Estou certa de que Deus tomou realmente posse do teu coração. Promete-lhe agora que farás o que puderes para te conservares bom até o fim da vida. Para o futuro, comunga freqüentemente, mas jamais cometas sacrilégio. Diz sempre tudo na confissão. Sê sempre obediente, vai de boa vontade à doutrina e aos sermões, mas, por amor de Deus, foge como da peste dos que têm más conversas.


Guardei as recomendações de minha piedosa mãe e esforcei-me por praticá-las, e parece-me que desde esse dia houve alguma melhora em minha vida, especialmente na obediência e submissão aos outros, o que antes me custava muito, pois queria sempre fazer minhas objeções pueris a quem me dava alguma ordem ou conselho.


Muito me preocupava a falta de uma igreja ou capela aonde ir cantar e rezar com meus colegas. Para ouvir um sermão ou uma aula de catecismo, era preciso andar cerca de 10 quilômetros, entre ida e volta, até Castelnuovo ou o vizinho povoado de Buttigliera.25 Por isso é que vinham com muito gosto ouvir as pregações do saltimbanco.


Houve naquele ano (1826) uma solene missão em Buttigliera,26 proporcionando-me a oportunidade de ouvir diversas práticas. A fama dos pregadores atraía gente de toda a parte. Eu ia também junto com muitos outros. Depois de uma instrução e uma meditação ao cair da tarde, os ouvintes podiam regressar livremente às próprias casas.


Numa dessas tardes de abril, voltava eu para casa misturado à multidão, e junto conosco achava-se certo padre Calosso,27 de Chieri, homem de muita piedade. Apesar de já entrado em anos, per­corria também ele a longa estrada para ouvir os missionários. Era capelão de Murialdo. Chamou-lhe a atenção o menino de pequena estatura, cabeça descoberta, cabelos crespos e encaracolados, a caminhar no meio dos outros. E entrou a falar comigo.


De onde vens, meu filho? Por acaso foste também à missão?


Sim, senhor, fui ouvir a pregação dos missionários.


Será que entendestes alguma coisa? Tua mãe, quem sabe, faria para ti uma prática mais oportuna, não achas?


É verdade, mamãe faz-me muitas vezes bons sermões; mas vou também com gosto ouvir os dos missionários, e parece-me havê-los entendido.


Se fores capaz de repetir quatro frases das práticas de hoje, dou-te 4 soldos.


O senhor quer frases da primeira ou da segunda pregação?


Como quiseres, contanto que me digas quatro frases. És capaz de lembrar de que é que se falou na primeira pregação?


Na primeira pregação falou-se da necessidade de dar-se logo a Deus e não deixar a conversão para mais tarde.28


E que foi que o padre disse no sermão? – acrescentou o venerando ancião um tanto maravilhado.


Lembro-me muito bem, e se quiser recito todo o sermão.


E sem mais delongas comecei a expor o exórdio, depois os três pontos, isto é, que quem adia a conversão corre grande perigo de que lhe falte o tempo, a graça ou a vontade. Ele deixou-me prosseguir por mais de meia hora, no meio da multidão. Em seguida perguntou:


Como te chamas? Quem são teus pais? Estudaste muito?


Chamo-me João Bosco; meu pai morreu quando eu era criança. Minha mãe é viúva e tem cinco bocas para alimentar. Aprendi a ler e também a escrever um pouquinho.


Não estudaste o Donato,29 a gramática?


Nem sei o que é isso.


Gostarias de estudar?


Muito, mesmo.


Que é que te impede?


Meu irmão Antônio.


Por que é que Antônio não te deixa estudar?


Porque como ele não quis ir à escola, diz que não quer que outros percam tempo em estudar como ele perdeu. Mas se eu pudesse ir, bem que estudaria e não havia de perder tempo.


E para que é que gostaria de estudar?


Para abraçar o estado eclesiástico.


E por que motivo quererias abraçar esse estado?


Para atrair a mim os meninos, falar-lhes, ensinar a religião a tantos companheiros meus, que não são maus, mas se tornarão tais porque ninguém cuida deles.


Esse meu modo de falar franco e, diria, atrevido, causou grande impressão naquele santo sacerdote, que enquanto eu falava não despegou os olhos de mim. Quando chegamos à altura do caminho onde era forçoso separar-nos, deixou-me com estas palavras:


Coragem. Vou pensar em ti e em teus estudos. Vem ver-me domingo com tua mãe, e combinaremos tudo.


No domingo seguinte fui, de fato, com mamãe, e ficou combinado que ele próprio me daria diariamente uma aula, e eu empregaria o resto do dia trabalhando no campo, para contentar o irmão Antônio. Antônio mostrou-se satisfeito, porque a coisa devia começar depois do verão, quando já não há muito trabalho no campo.


Coloquei-me logo nas mãos do padre Calosso, que havia poucos meses chegara àquela capelania. Abri-me inteiramente com ele. Manifestava-lhe prontamente qualquer palavra, pensamento e ação. Isso muito lhe agradou, porque dessa maneira podia orientar-me com segurança no espiritual e no temporal.


Fiquei sabendo assim quanto vale um guia estável, um fiel amigo da alma, que até então não tivera. Entre outras coisas, proibiu-me logo uma penitência que eu costumava fazer e que não era apropriada à minha idade e condição. Animou-me a freqüentar a confissão e a comunhão, e ensinou-me a fazer todos os dias uma breve meditação, ou melhor, uma pequena leitura espiritual. Passava com ele todo o tempo que podia nos dias santificados. Nos dias de semana, quando possível, ia ajudar-lhe a santa missa. A partir desse tempo comecei a perceber o que é a vida espiritual, pois antes agia de maneira um tanto material, qual máquina que faz uma coisa sem saber por quê.


Em meados de setembro comecei regularmente o estudo da gramática italiana, que em pouco tempo pude concluir e exercitar com oportunas redações. No Natal comecei o Donato; na Páscoa, traduções do latim para o italiano e vice-versa. Durante todo esse tempo não abandonei nunca os entretenimentos dominicais no prado, ou no estábulo durante o inverno. Qualquer fato, sentença e mesmo qualquer palavra do mestre servia para entreter meus ouvintes.


Reputava-me feliz por haver satisfeito os meus desejos, mas uma nova provação, antes um grave infortúnio deitou por terra minhas esperanças.



OS LIVROS E A ENXADA - UMA NOTÍCIA MÁ E OUTRA BOA - MORTE DO PADRE CALOSSO


Pelo tempo que durou o inverno e os trabalhos do campo não exigiam maiores cuidados, o irmão Antônio deixava-me à vontade para estudar. Quando, porém, chegou a primavera, começou a queixar-se, dizendo que ele devia matar-se em trabalhos pesados, ao passo que eu perdia o tempo bancando o senhorzinho. Depois de vivas discussões comigo e com mamãe, resolveu-se, para conservar a paz em casa, que eu iria de manhã cedinho à escola e o resto do dia atenderia aos trabalhos mate­riais. Mas como estudar as lições? Como fazer as traduções?


Ouvi. A ida e a volta da escola proporcionavam-me algum tempo para estudar. Chegado em casa, segurava a enxada numa das mãos e na outra a gramática. Pelo caminho estudava qui, quae, quod etc.30 até chegar ao lugar do trabalho; aí, lançando um olhar saudoso à gramática, punha-a num canto e começava a capinar, a ancinhar ou a recolher o capim com os outros, conforme a necessidade.


Na hora em que os outros costumavam merendar, punha-me de parte e comia, com o pão em uma das mãos, e estudava, com o livro na outra. De volta para casa repetia a mesma operação. O único tempo de que dispunha era na hora do almoço, da ceia e no que roubava ao repouso.


Não obstante tanto trabalho e boa vontade, o irmão Antônio não estava satisfeito. Disse um dia, em tom imperativo, à mamãe e depois ao meu irmão José:


Já chega. Vou acabar com essa gramática. Fiquei forte e gordo e nunca vi um livro.31


Dominado pela aflição e pela raiva, respondi o que não devia:


Não estás certo. Não sabes que o nosso burro é maior do que tu e nunca foi à escola? Queres parecer-te com ele?


Ao ouvir tais palavras, subiu à serra, e foi graças às minhas boas pernas que pude fugir e subtrair-me a uma chuva de pancadas e pescoções.


Mamãe estava muito aflita. Eu chorava. O capelão sentia pena. Informado das complicações de minha família,32 o digno ministro de Deus chamou-me um dia e disse-me:


Joãozinho, puseste em mim tua confiança, e não quero que isso seja inútil. Deixa, pois, esse irmão malvado, vem comigo e terás um pai amoroso.


Comuniquei imediatamente à mamãe o caridoso convite, e foi uma festa em casa. No mês de abril passei a conviver com o capelão, voltando para casa somente à noitinha para dormir. Ninguém pode imaginar minha grande alegria. O padre Calosso tornou-se um ídolo para mim. Era um prazer imenso trabalhar para ele e até dar a vida por algo que fosse do seu agrado. Fazia mais progresso num dia com o capelão, que numa semana em casa. O homem de Deus afeiçoara-se tanto a mim que chegou a dizer-me por diversas vezes:


Não te preocupes com o teu futuro. Enquanto eu estiver vivo, nada te faltará. Se morrer, haverei de providenciar da mesma forma.


Minha vida andava mesmo de vento em popa. Julgava-me plenamente feliz, nada havia que ainda pudesse desejar, quando um desastre veio truncar todas as minhas esperanças.


Certa manhã de abril de 1828,33 o padre Calosso mandou-me dar um recado a meus parentes. Mal cheguei em casa, uma pessoa, correndo, ofegante, veio avisar-me que corresse imediatamente para junto do padre Calosso, que fora acometido de um grave mal e perguntava por mim. Não corri, voei para junto do meu benfeitor, que lamentavelmente encontrei de cama, sem fala. Sofrera um ataque apoplético. Reconheceu-me, queria falar, mas já não podia articular palavra. Deu-me a chave do dinheiro, fazendo gestos como para indicar que não a entregasse a ninguém. Após dois dias de agonia, o pobre padre Calosso voava ao seio do Criador.34 Com ele morriam minhas esperanças todas.


Rezei sempre e enquanto viver não deixarei de rezar todas as manhãs por este meu insigne benfeitor.


Chegaram os herdeiros do padre Calosso e entreguei-lhes a chave e tudo o mais.35



O PADRE CAFASSO - INCERTEZAS - DIVISÃO FRATERNA - ESCOLA DE CASTELNUOVO D’ASTI - A MÚSICA - O ALFAIATE


Nesse mesmo ano, a divina Providência fez-me encontrar um novo benfeitor, o padre José Cafasso, de Castelnuovo d’Asti.36


Era o segundo domingo de outubro (1827)37 e os habitantes de Murialdo festejavam a Maternidade de Nossa Senhora, para eles a solenidade principal. Muitos andavam atarefados em casa ou na igreja, enquanto outros mantinham-se como espectadores ou tomavam parte em jogos ou brinquedos diversos.


Só vi uma pessoa longe de qualquer espetáculo.38 Era um clérigo de pequena estatura, olhos cintilantes, aparência afável, rosto angélico. Apoiava-se à porta da igreja. Fiquei como fascinado pela sua figura, e apesar de ter apenas 12 anos, movido pelo desejo de falar-lhe, aproximei-me e dirigi-lhe estas palavras:


Senhor cura, quer ver algum espetáculo da nossa festa? Eu o levo com muito gosto aonde desejar.


Ele fez gentilmente um sinal para que me aproximasse e começou a perguntar sobre minha idade, sobre o estudo, se já havia recebido a sagrada Comunhão, com que freqüência me confessava, aonde ia ao catecismo e coisas assim. Fiquei encantado por aquela maneira edificante de falar, respondi com satisfação a todas as perguntas e depois, como para agradecer-lhe a afabilidade, renovei o oferecimento de acompanhá-lo para ver algum espetáculo ou novidade.


Meu caro amigo – replicou –, os espetáculos dos padres são as funções de igreja, quanto mais devotamente se celebrarem, tanto mais agradáveis serão. Nossas novidades são as práticas da religião, que são sempre novas e, por isso, deve-se freqüentá-las com assiduidade. Estou só esperando que se abra a igreja para poder entrar.


Criei coragem para continuar a conversa e acrescentei:


É verdade tudo quanto me diz. Mas há tempo para tudo: tempo para ir à igreja e tempo para divertir-se.


Ele se pôs a rir e concluiu com estas memoráveis palavras, que foram como o programa de toda a sua vida:


Quem abraça o estado eclesiástico entrega-se ao Senhor, e nada do mundo deve interessá-lo, a não ser o que pode redundar em maior glória de Deus e proveito das almas.


Muito impressionado, quis saber o nome do clérigo, cujas palavras e porte manifestavam em elevado grau o espírito do Senhor. Soube que era o clérigo José Cafasso, estudante do 1º ano de teologia, de quem em diversas ocasiões já ouvira falar como de um modelo de virtude.


A morte do padre Calosso foi para mim um desastre irreparável. Eu chorava desconsolado o benfeitor falecido. Acordado, pensava nele, dormindo, com ele sonhava; as coisas chegaram a um tal ponto que mamãe, temendo pela minha saúde, mandou-me passar uma temporada com meu avô em Capriglio.39


Tive nesse tempo outro sonho, no qual fui asperamente repreendido por haver posto minha esperança nos homens e não na bondade do Pai do Céu.


Entretanto acompanhava-me sempre a idéia de progredir nos estudos. Via alguns bons padres trabalhar no sagrado ministério, mas não podia contrair com eles nenhuma familiaridade. Aconteceu encontrar-me muitas vezes pelo caminho com o pároco40 e seu coadjutor. Cumprimentava-os de longe, e quando mais de perto fazia também uma inclinação. Eles, contudo, retribuíam sérios e corteses a saudação e continuavam andando. Repetidas vezes, chorando, disse de mim para mim e também a outros:


Se eu fosse padre, agiria de outro jeito. Gostaria de aproximar-me dos meninos, dizer-lhes uma boa palavra, dar-lhes bons conselhos. Como seria feliz se pudesse falar um pouco com o meu vigário. Com o padre Calosso tinha essa satisfação. Não terei nova oportunidade?


Mamãe, vendo-me sempre aflito pelas dificuldades que se antepunham aos meus estudos e perdendo a esperança de conseguir o consentimento de Antônio, que já passava dos 20 anos, decidiu dividir os bens paternos. Havia uma grande dificuldade, porque sendo eu e José ainda menores, era preciso percorrer muitos trâmites e enfrentar pesadas despesas. Apesar disso, a decisão foi mantida.


Dessa maneira nossa família ficou reduzida a mamãe e a meu irmão José, que quis viver comigo sem dividir as partes. Vovó falecera alguns anos antes.41


É verdade que a partilha tirava-me uma pedra do estômago e proporcionava-me plena liberdade de prosseguir os estudos. Não obstante, para atender às formalidades das leis foram precisos meses, e eu só pude freqüentar as escolas públicas de Castelnuovo por volta do Natal desse ano de 1828, quando eu já vivia meus 13 anos de idade.42


A entrada para uma escola pública, com professor novo, depois dos estudos feitos em particular, foi para mim um transtorno, pois quase tive de começar a gramática italiana para depois passar à latina. Por algum tempo ia todos os dias de casa à escola no povoado, mas no rigor do inverno isso era quase impossível. Entre duas idas e voltas somavam-se 20 quilômetros de caminho por dia. Passei então a ser pensionista de um bom homem chamado Roberto Gioanni, alfaiate e entusiasta do canto gregoriano e da música vocal. Como eu tinha uma voz razoável, dediquei-me com muito entusiasmo à arte musical, e em poucos meses pude fazer parte do coro e cantar solos com êxito. Mais: desejando empregar em alguma outra coisa as horas livres, pus-me a trabalhar como alfaiate. Em muito pouco tempo tornei-me capaz de pregar botões, coser bainhas, fazer costuras simples e duplas. Aprendi também a cortar ceroulas, coletes, calças, paletós. Tinha a impressão de haver-me tornado excelente mestre de alfaiataria.


Vendo-me progredir tanto no ofício, meu patrão fez-me propostas assaz vantajosas para que eu ficasse definitivamente com ele. Meus planos, porém, eram outros: queria progredir nos estudos. Se para evitar a ociosidade me ocupava em muitas coisas, fazia todos os esforços possíveis para atingir o objetivo principal.


Nesse ano corri algum perigo por parte de certos colegas. Queriam induzir-me a jogar durante o tempo das aulas. Como desculpa, disse que não tinha dinheiro, e então sugeriram-me a maneira de arranjá-lo, roubando-o ao meu patrão ou à minha mãe. Para animar-me, dizia um colega:


Meu amigo, já é tempo de acordar, é preciso aprender a viver no mundo. Quem conserva os olhos vendados não vê por onde caminha. Vamos, arranja dinheiro e desfrutarás também tu os prazeres dos teus colegas.


Lembra-me a resposta:


Não chego a compreender o que queres dizer, todavia pelas tuas palavras parece-me que me aconselhas a jogar e a roubar. Não dizes todos os dias nas orações: sétimo, não furtar? Depois, quem rouba é ladrão, e os ladrões acabam mal. Por outro lado, minha mãe me quer muito bem; se lhe pedir dinheiro para coisas lícitas, ela me dá; nunca fiz nada sem sua licença, e não quero começar agora a desobedecer-lhe. Se teus colegas agem assim, não são boa coisa. Se não fazem, mas aconselham a outros, são malandros e malvados.


Estas palavras correram de boca em boca, e ninguém mais se atreveu a fazer-me propostas indignas. A resposta chegou até aos ouvidos do professor, que se tornou ainda mais afeiçoado a mim. Chegou também aos de muitos pais de meninos ricos que por isso exortavam os filhos a estarem comigo. Pude destarte escolher com facilidade um grupo de amigos que me queriam bem e obedeciam como os de Murialdo.


As coisas iam-se encaminhando muito bem, quando novo incidente veio transtorná-las. O padre Virano,43 meu professor, foi nomeado pároco de Mondônio, diocese de Asti. E assim, em abril desse ano de 1830,44 nosso querido professor tomava posse da sua paróquia. Foi substituído por outro45 que, incapaz de manter a disciplina, quase deitou a perder quanto eu havia aprendido nos meses anteriores.



AULAS EM CHIERI - BONDADE DOS PROFESSORES - OS QUATRO PRIMEIROS CURSOS DE GRAMÁTICA


Depois de tanto tempo perdido, ficou resolvido que eu iria para Chieri, a fim de aplicar-me com seriedade ao estudo. Era o ano de 1830.46 Para quem foi criado na roça e só conheceu um ou outro povoado do interior, qualquer novidadezinha causa grande impressão. Hospedei-me na casa de uma conterrânea, Lúcia Matta,47 viúva com um só filho, que se mudara para aquela cidade a fim de o assistir e vigiar.


A primeira pessoa que fiquei conhecendo foi o padre Valimberti,48 de saudosa memória. Deu-me oportunos conselhos para manter-me longe dos perigos; convidava-me a ajudar-lhe a missa, e isso oferecia-lhe o ensejo de dar-me sempre alguma boa sugestão. Levou-me ele próprio ao prefeito das escolas49 e apresentou-me aos demais professores. Como os estudos feitos até então consistiam num pouco de tudo, vindo a dar em nada, aconselharam-me a entrar para a sexta classe que corresponderia hoje ao curso preparatório para o 1º ginasial.50

O professor de então, o teólogo Pugnetti,51 também de grata memória, usou de muita caridade para comigo. Atendia-me na escola, convidava-me para ir à sua casa e, compadecido de minha idade e boa vontade, tudo fazia para ajudar-me.


Minha idade e corpulência faziam-me parecer uma alta coluna no meio dos pequenos colegas. Ansiava por sair dessa situação. Submetido a exame,52 fui promovido à quinta classe, porque, depois de dois meses na sexta, havia tirado o primeiro lugar. Entrei com muita satisfação para a nova classe, porque os condiscípulos eram maiorzinhos e, além disso, tinha como professor a pessoa querida do padre Valimberti. Conquistando várias vezes o primeiro lugar, fui, dois meses depois, admitido por via excepcional a outro exame, passando então para a quarta, que corresponde ao sexto ano.


O professor dessa classe era José Cima.53 Homem exigente na disciplina. Ao ver aparecer em sua aula, na metade do ano, um aluno alto e encorpado como ele, disse brincando em plena aula:


Aí está uma enorme toupeira ou um grande talento. Que acha?


Confuso ante a figura severa do professor, respondi:


Uma coisa média. É um pobre rapaz, que tem boa vontade de cumprir com seu dever e progredir nos estudos.


Agradaram-lhe tais palavras, e com desusada afabilidade acrescentou:


Se tem boa vontade, está em boas mãos; não o deixarei sem trabalho. Coragem, e se encontrar alguma dificuldade, diga-me logo, que eu a resolverei.


Agradeci de coração.


Estava havia dois meses nessa classe quando um pequeno incidente fez falar de mim. O professor estava explicando a vida de Agesilau, escrita por Cornélio Nepos. Naquele dia eu não havia trazido o livro, e para disfarçar o esquecimento conservava aberto à minha frente o Donato. Os companheiros perceberam. Riu o primeiro, continuou o segundo, e a desordem generalizou-se.


Que é que há? – disse o preceptor –. Que é que há?


Como os olhares de todos convergiam para mim, mandou-me fazer a construção e repetir sua explicação. Levantei-me então, e segurando sempre o Donato nas mãos, repeti de cor o texto, a construção e a explicação. Os companheiros instintivamente, entre gritos de admiração, bateram palmas. Nem é preciso dizer a que ponto o professor se enfureceu, porque era a primeira vez que, na sua opinião, não conseguia manter a disciplina. Deu-me um safanão, que evitei baixando a cabeça; depois, pondo a mão sobre o meu Donato, pediu explicações da desordem aos vizinhos. Disseram:


Bosco teve sempre o Donato nas mãos, e leu e explicou como se fosse o livro de Cornélio.


O professor pegou do Donato, fez-me continuar ainda dois períodos e depois acrescentou:


Pela sua feliz memória54 perdôo-lhe o esquecimento. Tem sorte. Procure servir-se bem dela.


Ao final daquele ano escolar (1830-1831)55 passei com boas notas para a terceira de gramática, ou seja o 3º ginasial.



OS COLEGAS - SOCIEDADE DA ALEGRIA - DEVERES CRISTÃOS


Durante as primeiras quatro classes tive de aprender por minha conta como tratar os colegas. Dividira-os em três categorias: bons, indiferentes, maus.56 Estes últimos devia evitá-los absolutamente e sempre, assim que os conhecesse. Com os indiferentes havia de entreter-me por delicadeza e por necessidade. Com os bons podia travar amizade, quando fossem verdadeiramente tais. Como não conhecia ninguém na cidade, resolvi não contrair familiaridade com ninguém. Tive entretanto de lutar e muito com os que não conhecia bem. Alguns queriam levar-me ao teatro, outros a disputar uma partida, outros a nadar.57 Houve até quem quisesse induzir-me a roubar frutas dos pomares e nos campos. Um deles foi tão descarado que me aconselhou a roubar da minha patroa um objeto de valor para comprarmos caramelos. Livrei-me dessa caterva de infelizes fugindo rigorosamente de sua companhia, à medida que os ia descobrindo. De ordinário respondia que minha mãe me havia confiado à dona da casa onde estava hospedado, e que pelo amor que lhe tinha não queria ir a lugar algum nem nada fazer sem o consentimento da boa dona Lúcia.


Minha firme obediência à boa senhora foi-me útil também materialmente, pois com muita satisfação confiou-me seu filho único,(*) de temperamento muito vivo, grande amigo do brinquedo, pouquíssimo do estudo. Encarregou-me de repassar-lhe as lições, embora estivesse numa classe superior à minha. Cuidei dele como de um irmão. Com jeito, pequenos presentes, entretenimentos caseiros, e levando-o às práticas religiosas, tornei-o dócil, obediente e estudioso, a tal ponto que depois de seis meses havia-se tornado bastante bom e aplicado, satisfazendo o professor e conseguindo lugares de honra na sua classe. A mãe ficou muito contente e em retribuição perdoou-me toda a pensão mensal.

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( *) João Batista Matta de Castelnuovo foi por muitos anos prefeito da sua terra, onde agora tem um bazar.

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Como os companheiros que me queriam levar às desordens eram os mais desleixados nos deveres escolares, começaram também a recorrer a mim para que lhes fizesse o favor de lhes emprestar ou ditar o tema da aula. Isso desagradou ao professor, porque minha mal-entendida benevolência favorecia-lhes a preguiça, e me proibiu de ajudá-los. Recorri então a um meio menos prejudicial, isto é, explicar as dificuldades e ajudar os mais atrasados. Dessa maneira agradava a todos e conquistava o afeto e a estima dos colegas. Começaram a vir para brincar, depois para ouvir fatos e fazer a tarefa de aula, e, por fim, sem motivo algum, como os de Murialdo e de Castelnuovo.


Para dar um nome essas reuniões, costumávamos chamar-lhe Sociedade da Alegria.58 O nome vinha a calhar, porque cada sócio tinha a obrigação estrita de arranjar livros e provocar assuntos e brinquedos que pudessem contribuir para estarmos alegres. Tudo o que pudesse ocasionar tristeza, especialmente as coisas contrárias às leis do Senhor, estava proibido. Assim, quem houvesse blasfemado ou tomado o nome do Senhor em vão, ou tido más conversas, era imediatamente expulso da sociedade.


Encontrando-me desse modo à testa de uma multidão de companheiros, assentamos de comum acordo estas bases:59 primeiro, todo membro da Sociedade da Alegria deve evitar qualquer conversa ou ação que desdiga de um bom cristão; segundo, exatidão no cumprimento dos deveres escolares e religiosos.


Isso contribuiu para granjear-me a estima dos colegas, a ponto de, em 1832, ser respeitado por eles como o capitão de um pequeno exército. Por toda a parte era convidado para organizar entretenimentos, assistir alunos em suas próprias casas e também dar aulas de repetição a domicílio. Por meio disso a divina Providência facilitava-me a aquisição de quanto me era necessário, como roupas, objetos escolares e outros, sem causar nenhum incômodo à minha família.



BONS COMPANHEIROS E PRÁTICAS DE PIEDADE


Entre os que compunham a Sociedade da Alegria, pude descobrir alguns elementos verdadeiramente exemplares. Merecem ser nomeados Guilherme Garigliano, de Poirino, e Paulo Braia de Chieri.60 Participavam com gosto da honesta recreação, mas colocavam sempre, em primeiro lugar os deveres escolares. Ambos apreciavam o recolhimento e a piedade, e constantemente me davam bons conselhos. Nos dias santos, após a reunião regulamentar do colégio, íamos à igreja de Santo Antônio,61 onde os jesuítas explicavam estupendamente a doutrina, enriquecida de exemplos que ainda recordo.


Durante a semana a Sociedade da Alegria reunia-se na casa de algum sócio para falar de religião. À reunião ia livremente quem queria. Garigliano e Braia eram dos mais assíduos. Por algum tempo entretínhamo-nos em amena recreação, em piedosas conversas, leituras religiosas, em orações, dando-nos bons conselhos e avisando-nos dos defeitos pessoais que alguém houvesse notado ou ouvido falar por outros. Sem que então o soubesse, estávamos pondo em prática o sublime aviso: “Feliz de quem tem um monitor”. É o que dizia Pitágoras: “Se não tendes um amigo que vos corrija os defeitos, pagai um inimigo para que vos preste esse serviço”. Além dos amistosos entretenimentos, íamos ouvir pregações, confessar-nos e fazer a santa Comunhão.


Neste ponto é bom lembrar que naqueles tempo a religião formava parte fundamental da educação. Um professor,62 que mesmo por brincadeira pronunciasse uma palavra indecorosa ou irreligiosa, era imediatamente destituído do cargo. Se assim acontecia com os professores, imaginar a severidade que se usava com os alunos indisciplinados ou escandalosos!63


Nas manhãs dos dias de semana, ouvíamos a santa missa.64 No começo da aula, recitava-se devotamente o Actiones com a Ave-Maria. Depois, dizia-se o Agimus com a Ave-Maria.65


Nos dias santos, os alunos reuniam-se todos na igreja da congregação.66 Durante a entrada dos jovens fazia-se uma leitura espiritual, à qual se seguia o canto do ofício de Nossa Senhora; em seguida, a missa, e, depois, a explicação do Evangelho. À tarde, catecismo, vésperas, instrução. Todos deviam receber os santos sacramentos e, para impedir o descuido desses importantes deveres, eram obrigados a apresentar uma vez ao mês o bilhete de confissão.67 Quem não houvesse cumprido esse dever não era admitido aos exames do fim do ano, mesmo que fosse dos melhores no estudo. Essa disciplina severa produzia efeitos maravilhosos. Passavam-se anos sem que se ouvisse uma blasfêmia ou má conversa. Os alunos eram dóceis e respeitosos tanto na escola como em casa. E sucedia muitas vezes que em classes numerosíssimas todos eram aprovados no fim do ano para a classe superior. Meus condiscípulos da terceira, humanidades e retórica, foram sempre todos eles aprovados.


Para mim, o acontecimento mais importante foi a escolha de um confessor estável na pessoa do teólogo Malória,68 cônego da colegiada de Chieri. Acolhia-me sempre com grande bondade toda vez que o procurava. Antes, animava-me a confessar e comungar com a maior freqüência. Era muito raro encontrar quem estimulasse à freqüência dos sacramentos. Não me lembra que algum dos meus mestres me tenha aconselhado isso. Quem ia confessar-se e comungar mais de uma vez ao mês era tido como dos mais virtuosos, e muitos confessores não o permitiam. Eu, porém, creio que devo ao meu confessor não ter sido arrastado pelos colegas a certas desordens, que os jovens inexperientes têm infelizmente que lamentar nos grandes colégios.


Nesses dois anos jamais esqueci os meus amigos de Murialdo. Conservei-me sempre em relação com eles e de quando em quando, na quinta-feira, fazia-lhes uma visita. Nas férias de outono, assim que sabiam da minha chegada, corriam de longe a encontrar-me e faziam sempre uma autêntica festa. Formou-se também entre eles a Sociedade da Alegria, à qual eram admitidos os que durante o ano se haviam distinguido pelo bom procedimento, e eliminados os que se haviam portado mal, mormente se houvessem blasfemado ou mantido más conversas.



HUMANIDADES E RETÓRICA - LUÍS COMOLLO69


Terminados os cursos básicos, recebemos a visita do Magis­trado da Reforma,70 na pessoa do advogado professor padre José Gazzani, homem de elevados méritos. Foi muito bondoso para comigo, e eu fiquei-lhe agradecido, conservando dele agradável lembrança, ao ponto de estarmos depois sempre em estreito e amigável relacionamento. Esse honesto sacerdote vive ainda em Moltedo Superiore,71 perto de Oneglia, sua terra natal, e entre suas muitas obras de caridade concedeu uma bolsa de estudo no nosso colégio de Alassio para um menino que desejasse seguir a carreira eclesiástica.


Os exames foram muito rigorosos. Mesmo assim meus colegas, 45, foram todos aprovados para a classe superior, que corresponde ao nosso 4º ginasial. Corri então grande perigo de ser suspenso, por haver deixado copiar o trabalho a um colega. Se fui aprovado, devo-o à proteção do meu venerando professor padre Giusiana,72 dominicano, que conseguiu um novo tema para mim. Saí-me tão bem que fui aprovado com nota máxima.


Havia nesse tempo um louvável costume. Pelo menos um de cada curso era dispensado pela prefeitura da matrícula de 12 francos, a título de prêmio. Para conseguir tal dispensa era preciso tirar nota máxima nos exames e no procedimento. A sorte sempre me favoreceu e fui, em todos os cursos, dispensado do pagamento.


Perdi naquele ano um dos meus mais queridos colegas. O jovem Paulo Braia, querido e íntimo amigo, verdadeiro modelo de piedade, de resignação e viva fé, morria, após longa doença, no dia... ano...,73 indo assim juntar-se a São Luís, do qual se mostrou em toda a sua vida fiel seguidor. Todo o colégio sentiu muito sua morte; os colegas participaram juntos no seu enterro. E por longo tempo, muitos costumavam, em dia de folga, fazer a sagrada Comunhão, rezar o ofício de Nossa Senhora ou o terço pela alma do amigo falecido. Deus, porém, dignou-se compensar essa perda com outro colega igualmente virtuoso, mas ainda mais notável por suas obras. Foi Luís Comollo, do qual daqui a pouco haverei de falar.


Terminei então o ano de humanidades, saindo-me muito bem, por sinal que meus professores, de modo especial o doutor Pedro Banaudi,74 me aconselharam a solicitar o exame para passar à Filosofia; fui, de fato, aprovado. Todavia, como gostava do estudo das letras, pareceu-me bem continuar regularmente as classes e fazer o curso de retórica no ano 1833-1834.75


Foi justamente nesse ano que se iniciou meu relacionamento com Comollo. A vida desse precioso companheiro foi escrita à parte e todos a podem ler quando quiserem.76 Vou assinalar aqui um fato que me proporcionou a oportunidade de conhecê-lo, entre os estudantes de humanidades.


Dizia-se então entre os estudantes de retórica que naquele ano devia vir um aluno santo, que se dizia ser sobrinho do pároco de Cinzano, sacerdote adiantado em anos, mas conhecido por sua santa vida.77 Eu desejava conhecê-lo, mas ignorava-lhe o nome. Um episódio fez com que eu pudesse conhecê-lo. Já naquele tempo costumava-se brincar de carniça78 na hora de entrar para a aula. Os mais relaxados e menos interessados pelo estudo são os que mais gostam do brinquedo e de ordinário os que mais se destacam.


Já havia alguns dias que se observava um modesto jovem de seus 15 anos, o qual, assim que chegava ao colégio, sentava-se no seu lugar e sem se preocupar com a gritaria dos demais punha-se a ler ou estudar. Um colega insolente aproximou-se dele, pegou-o por um braço, a fim de obrigá-lo a tomar parte do brinquedo.


Não sei, respondia o outro, muito humilde e mortificado. Não sei, nunca brinquei assim.


Quero que venhas do mesmo jeito; se não, vou fazer-te vir a poder de pontapés e bofetões.


Podes bater como quiseres, mas eu não sei, não posso, não quero.


O colega ruim e mal-educado, puxou-o por um braço, empurrou-o e deu-lhe duas bofetadas, que ecoaram por toda a sala. Diante disso senti ferver o sangue nas veias e esperava que o ofendido se vingasse à altura; tanto mais que era muito superior ao outro em força e idade. Qual não foi, porém, meu espanto, quando o bom jovem com o rosto vermelho e quase arroxeado, lançando um olhar de compaixão ao mau colega, disse apenas:


Se isto basta para satisfazer-te, vai em paz, eu já te perdoei.


Esse ato heróico despertou em mim o desejo de saber-lhe o nome, que era justamente Luís Comollo, sobrinho do pároco de Cinzano, de quem se faziam tantos elogios. A partir de então tive-o sempre como íntimo amigo, e posso dizer que dele aprendi a viver como cristão. Depositei nele plena confiança, e ele em mim; precisávamos um do outro. Eu de ajuda espiritual, ele de ajuda corporal. Porque, extremamente tímido, não ousava sequer tentar a defesa contra os insultos dos valentões, ao passo que eu, dada a minha coragem e força física, era temido por todos os companheiros, mesmo pelos mais velhos e de maior estatura. Isso tornou-se evidente um dia com alguns que queriam desprezar e bater em Comollo e noutro rapaz chamado Antônio Candelo, modelo de bonomia. Quis intervir em favor deles, mas não me davam atenção. Vendo então aqueles colegas inofensivos serem maltratados, disse em voz alta:


Ai de quem maltratar ainda um deles.


Bom número dos mais altos e desavergonhados puseram-se em atitude de defesa e ameaça contra mim, enquanto duas sonoras bofetadas caíam no rosto de Comollo. Nesse momento perdi as estribeiras e recorrendo não à razão mas à minha força brutal, não tendo à mão nem uma cadeira nem um bastão, segurei com as mãos um colega pelos ombros e servi-me dele como bastão para bater nos adversários. Quatro deles rolaram por terra, os outros fugiram gritando e pedindo piedade. Mas... ai! naquele momento o professor chegou à classe e ao ver braços e pernas pelo ar em meio a uma barulheira do outro mundo, pôs-se a gritar e a distribuir tapas a torto e a direito. A tempestade estava para cair sobre mim. Mas, informado da causa de toda aquela desordem, quis que se repetisse a cena, ou melhor, minha demonstração de força. Todos riram, professor e alunos, e ante a expressão de maravilha de todos, não se pensou mais no castigo que eu havia merecido.


Bem outras lições dava-me Comollo. Disse-me:


Meu amigo, tua força me espanta; lembra-te, porém, que Deus não a deu para massacrar os colegas. Ele quer que nos amemos, que perdoemos, que façamos o bem a quem nos faz o mal.


Admirado da caridade do colega, pus-me inteiramente em suas mãos, deixando-me guiar para onde e como lhe aprouvesse. De acordo com o amigo Garigliano, íamos juntos confessar, comungar, fazer a meditação, a leitura espiritual, a visita ao Santíssimo Sacramento, ajudar à santa missa. Sabia convidar-nos com tamanha bondade, doçura e delicadeza que era impossível escusar-nos.


Lembro-me que um dia, conversando com um colega, passei diante de uma igreja sem descobrir a cabeça. Disse-me logo, com muito bons modos:


João, andas tão entretido em conversar com os homens, que até esqueces a casa do Senhor.



FAZENDO CAFÉ E LICORES - DIA ONOMÁSTICO - UMA DESGRAÇA


Depois desse olhar sobre a vida colegial, vou contar alguns fatos particulares, que podem servir de amena distração.


No ano de humanidades mudei de pensão para estar mais perto do meu professor, padre Banaudi, e também para atender a um amigo de família chamado Gioanni Pianta,79 que naquele ano ia abrir um café na cidade de Chieri. Essa pensão era por certo muito perigosa,80 mas vivendo com bons cristãos e continuando o relacionamento com companheiros exemplares, pude continuar sem prejuízos morais. Como os deveres escolares me deixassem muito tempo livre, costumava empregá-lo parte na leitura dos clássicos italianos ou latinos, parte confeccionando licores e doces. Na metade daquele ano estava habilitado a preparar café, chocolate; dominava segredos e receitas para fazer toda espécie de doces, licores, sorvetes e refrescos. Meu patrão começou dando-me hospedagem grátis, e considerando que eu poderia ser útil ao seu negócio, fez-me vantajosas propostas, contanto que deixasse as outras ocupações para dedicar-me inteiramente ao ofício. Eu, porém, fazia esses trabalhos somente por divertimento e gosto, e minha intenção era continuar os estudos.


O professor Banaudi era um verdadeiro modelo de professor. Sem jamais infligir castigo, fizera-se respeitar e amar por todos os seus alunos. Ele os amava a todos quais filhos, e eles o amavam qual carinhoso pai.


Como demonstração de apreço para com ele, decidimos dar-lhe um presente no seu dia onomástico.81 Para isso combinamos preparar composições em verso e em prosa, e arranjar alguma coisa que julgássemos ser de seu agrado.


A festa saiu esplêndida. O professor ficou contentíssimo, e para mostrar sua satisfação levou-nos a almoçar no campo. O dia foi muito agradável. Entre professor e alunos havia um só coração, e todos procuravam a maneira de exprimir a própria alegria. Na volta, antes de chegar à cidade de Chieri, o professor encontrou um forasteiro, ao qual teve de fazer companhia, deixando-nos sós por breve trecho de estrada. Foi quando chegaram alguns colegas de classes superiores, que nos convidaram a tomar banho num lugar denominado La Fontana Rossa, a cerca de dois quilômetros e meio de Chieri.82 Eu e mais alguns colegas nos opusemos, mas em vão. Alguns vieram comigo para casa, outros foram nadar. Triste decisão. Poucas horas depois de nossa chegada em casa, veio correndo um companheiro, depois outro, assustados e ofegantes, para dizer-nos:


Oh! Se soubésseis, se soubésseis! Filipe N.,83 que tanto insistiu por que fôssemos nadar, afogou-se.


Como? – perguntamos todos – se tinha fama de bom nadador!


Que quereis? – continuou o outro. – Para animar-nos a lançar-nos na água, confiando na própria habilidade e não conhecendo os redemoinhos da perigosa Fontana Rossa, atirou-se por primeiro. Esperávamos que voltasse à tona, mas ficamos desapontados. Pusemo-nos a gritar, veio gente, empregaram-se todos os recursos e foi com risco de outros que, hora e meia depois, foi possível retirar o cadáver.


A desgraça causou em todos profunda tristeza. Nem naquele ano, nem no ano seguinte (1834)84 ouviu-se dizer que alguém tenha sequer manifestado a idéia de ir nadar. Algum tempo faz, encontrei-me com alguns desses antigos amigos e recordamos com verdadeira dor a desgraça que aconteceu com o infortunado colega no redemoinho da Fontana Rossa.



10º

O JUDEU JONAS85


No ano de humanidades, morando ainda no café do amigo Gioanni Pianta, travei amizade com um jovem judeu chamado Jonas. Tinha lá seus 18 anos. De muito bonito aspecto, cantava com voz de rara beleza. Jogava bilhar muito bem, e como nos conhecíamos de encontros na loja do livreiro Elias,86 apenas chegava ao bar perguntava logo por mim. Tinha-lhe grande afeto e ele uma amizade louca por mim. Mal encontrava um momento livre, vinha passá-lo em meu quarto; ficávamos a cantar, a tocar piano, a ler, ouvindo com gosto mil historietas que lhe ia contando. Sucedeu-lhe um dia uma encrenca, seguida de briga, que podia acarretar-lhe tristes conseqüências. Veio aconselhar-se comigo.


Se tu, caro Jonas, fosses cristão – disse-lhe –, levar-te-ia logo a confessar; mas isso não te é possível.


Mas também nós, se quisermos, vamos confessar-nos.


Sim, mas vosso confessor não está obrigado ao segredo, não tem poder de perdoar os pecados nem pode administrar nenhum sacramento.


Se me levas, irei confessar-me com um padre.


Podia levar-te, mas é preciso preparar-se bem.


Como?


Deves saber que a Confissão perdoa os pecados cometidos depois do Batismo; por isso, se quiseres receber algum sacramento, é preciso que antes de qualquer outra coisa recebas o Batismo.


Que devo fazer para receber o Batismo?


Instruir-te na religião cristã, acreditar em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Isto feito, podes receber o Batismo.


Que vantagens me daria o Batismo?


O Batismo cancela o pecado original e também os pecados atuais, abre caminho à recepção de outros sacramentos, faz-te, numa palavra, filho de Deus e herdeiro do céu.


Nós, judeus, não podemos salvar-nos?


Não, meu caro Jonas; depois da vinda de Jesus Cristo, os judeus não se podem salvar sem crer nele.87


Se minha mãe vier a saber que eu quero tornar-me cristão, pobre de mim!


Não tenhas medo; Deus é senhor dos corações, e se ele te chama para seres cristão, fará com que tua mãe se conforme, ou haverá de prover de outra maneira o bem de tua alma.


Mas tu que gostas tanto de mim, que farias se estivesses no meu lugar?


Começaria por instruir-me na religião cristã. Entrementes Deus indicaria o que se deveria fazer no futuro. Para isso toma o pequeno catecismo, e começa a estudá-lo. Reza para que Deus te ilumine e te faça conhecer a verdade.


A partir desse dia começou a afeiçoar-se ao estudo da fé cristã. Vinha ao café e, assim que terminava uma partida de bilhar, procurava logo por mim a fim de conversar sobre religião e catecismo.


No espaço de poucos meses aprendeu a fazer o sinal-da-cruz, o Pai-nosso, Ave-Maria, o Credo, e as verdades principais da fé. Ele estava felicíssimo, e a cada dia melhorava na maneira de proceder e conversar.


Ainda menino perdera o pai.88 A mãe, chamada Raquel, já tinha farejado alguma coisa, mas nada sabia de concreto. A coisa foi descoberta assim. Um dia, ao fazer-lhe a cama, encontrou o catecismo, que o filho inadvertidamente havia esquecido entre os colchões. Pôs-se então a gritar pela casa afora, levou o catecismo ao rabino, e suspeitando do que realmente estava acontecendo, correu desabaladamente ao encontro de Bosco, de quem havia ouvido muitas vezes falar ao próprio filho.


Imaginai o tipo da fealdade e tereis uma idéia da mãe de Jonas. Era cega de um olho, surda de ambos os ouvidos; nariz avantajado; quase sem dentes, lábios exorbitantes, boca torta, queixo longo e agudo, voz semelhante a um grunhido. Os judeus costumavam chamar-lhe Maga Lili, nome com que indicam a coisa mais feia da sua nação. Seu aparecimento me assustou, e, sem dar tempo para que me recompusesse, pôs-se a falar assim:


Saiba o senhor que está completamente errado; o senhor arruinou o meu Jonas; o desonrou diante de todos; eu não sei o que será dele. Receio que acaba fazendo-se cristão; e o senhor será o culpado.


Compreendi então quem era e de que falava. Com toda a calma expliquei que ela devia até mostrar-se contente e agradecer a quem fazia o bem ao seu filho.


Que bem é esse? Será um bem fazer renegar a própria religião?


Acalme-se, boa senhora – disse-lhe –, e ouça. Eu não pro­curei seu filho Jonas; encontramo-nos na loja do livreiro Elias. Tornamo-nos amigos sem saber como. Ele me estima e eu também o estimo muito, e como verdadeiro amigo desejo que salve a própria alma e possa conhecer a religião fora da qual ninguém poderá salvar-se. Note bem que eu dei um livro a seu filho, dizendo-lhe apenas que se instruísse na religião e que caso se fizesse cristão não havia de abandonar a religião hebraica, mas a aperfeiçoaria.


Se por desgraça ele se fizer cristão, deverá abandonar os nossos profetas, porque os cristãos não crêem em Abraão, Isaque e Jacó, nem em Moisés, nem nos profetas.


Ao contrário, nós cremos em todos os santos patriarcas e em todos os profetas da Bíblia. Seus escritos, ditos e profecias formam os fundamentos da fé cristã.


Se por acaso aqui estivesse o nosso rabino, bem saberia como responder. Eu não sei nem o Mishná nem o Gemara (as duas partes do Talmude); mas que será do meu pobre Jonas?


Dito isto, foi-se embora. Seria longo contar aqui as muitas ofensas que me dirigiram a mãe, o rabino, os parentes de Jonas. Não houve ameaça, violência que não se empregasse contra o corajoso jovem. Ele tudo suportou e continuou a instruir-se na fé. Já não se sentindo seguro em família, viu-se obrigado a abandonar sua casa e a viver quase de esmola. Muitos, porém, o ajudaram.89 E para que tudo transcorresse com a devida prudência, recomendei meu amigo a um douto sacerdote, que usou para com ele de atenções paternas. Quando bem instruído na religião e impaciente por fazer-se cristão, celebrou-se uma grande festa, que foi de edificação para toda a cidade e de estímulo para outros judeus, alguns dos quais abraçaram mais tarde o cristianismo.


Foram padrinho e madrinha os cônjuges Carlos e Otávia Bertinetti.90 Providenciaram tudo o que era preciso para o neófito que, tornando-se cristão, pôde ganhar honestamente o pão com seu trabalho. Passou a chamar-se Luís.91



11º

JOGOS - PRESTÍGIOS - MAGIA - DANDO EXPLICAÇÕES


Junto com meus estudos e entretenimentos diversos como canto, piano, declamação, teatro, aos quais me entregava com grande entusiasmo, havia aprendido também diversos outros jogos. Baralho, bolinhas, malhas, perna de pau, saltos e corrida eram divertimentos muito gostosos nos quais, se não era especialista, não era por certo medíocre. Muitos deles aprendera-os em Murialdo, outros em Chieri; e se nos prados de Murialdo era simples aprendiz, naquele ano havia-me tornado razoável mestre. Isso causava muita admiração, porque naquele tempo tais jogos eram pouco conhecidos e pareciam coisas do outro mundo. Que dizer então dos prestígios? Costumava dar muitas vezes espetáculos públicos e privados. Como muito me ajudasse a memória, sabia de cor grande parte dos clássicos, sobretudo poetas. Dante, Petrarca, Tasso, Parini, Monti e outros muitos eram-me tão familiares que deles me podia servir a meu bel-prazer, como coisa minha. Por esse motivo tinha grande facilidade de improvisar sobre qualquer argumento. Nesses entretenimentos, nesses espetáculos, algumas vezes cantava, outras tocava ou compunha versos que eram julgados obras-primas, mas que na realidade não eram senão trechos de autores adaptados ao tema proposto. Por esse motivo nunca dei minhas composições a outros. Alguma que cheguei a escrever, procurei lançá-la ao fogo.92


A maravilha subia de ponto nos jogos de prestidigitação. Ver sair de um pequeno copo bolas e mais bolas, todas elas maiores do que ele, tirar de um pequeno bolso ovos e mais ovos eram coisas de fazer cair das nuvens. Quando então viam-me extrair grandes bolas da ponta do nariz dos presentes, adivinhar o dinheiro dos bolsos alheios; quando com o simples toque dos dedos moedas de qualquer metal eram reduzidas a pó, ou fazia-se todo o auditório aparecer de aspecto horrível e até sem cabeças, então começaram alguns a pensar se eu não seria um bruxo, já que não podia fazer tais coisas sem a intervenção de algum diabo.


Contribuiu para aumentar essa fama o dono de minha casa, Tomás Cumino.93 Era ele um fervoroso cristão, que gostava muito de brincadeiras, e eu sabia aproveitar-me do seu caráter e, diria, ingenuidade, para pregar-lhe toda a espécie de peças. Um dia com grande cuidado havia ele preparado um frango coberto com geléia para presentear alguns pensionistas no dia do onomástico deles. Levou o prato à mesa, mas ao descobri-lo, pulou para fora um galo a esvoaçar e cacarejar em todos os tons. De outra feita preparou uma panela de macarrão e depois de havê-lo feito cozer por muito tempo, ao despejá-lo no prato viu que a massa estava inteiramente crua. Várias vezes enchia a garrafa de vinho e ao deitá-lo no copo encontrava água pura; se depois decidia beber água, via o copo cheio de vinho. Doces mudados em fatias de pão, dinheiro da bolsa transformado em inúteis e enferrujados pedacinhos de lata, o chapéu convertido em gorro, nozes e avelãs mudadas em saquinhos de minúsculos seixos eram coisas assaz freqüentes.


O bom Tomás já não sabia o que dizer: “Os homens – dizia com seus botões – não podem fazer essas coisas. Deus não perde tempo em coisas inúteis; logo é o demônio que faz tudo isso”. Não se atrevendo a falar com os de casa, aconselhou-se com sacerdote vizinho, o padre Bertinetti.94 E como este suspeitasse também de magia branca em tudo aquilo, resolveu levar o caso ao delegado das escolas, que naquele tempo era um respeitável eclesiástico, o cônego Búrzio,95 arcipreste e cura da catedral.


O cônego era uma pessoa muito instruída, piedosa e prudente, e sem falar com ninguém, chamou-me “para as devidas explicações”. Cheguei à sua casa no instante em que rezava o breviário e, olhando-me com um sorriso, fez sinal para que aguardasse um pouco. Por fim disse-me que o seguisse a um escritório, e lá, com palavras corteses mas rosto severo, começou a interrogar-me assim:


– Meu caro, estou muito contente com teus estudos e procedimentos até agora. Mas acontece que andam contando por aí muitas coisas a teu respeito... Dizem que conheces os pensamentos dos outros, advinhas o dinheiro que têm no bolso, fazes ver branco o que é preto, sabes das coisas antes que aconteçam, e por aí afora. Isso dá que falar de ti, e houve quem suspeitasse que te serves da magia, podendo haver nesses fatos uma intervenção do diabo. Dize-me, pois: quem te ensinou esta ciência? Onde a aprendeste? Dize-me tudo de maneira confidencial. Garanto que não me servirei disto senão para fazer-te o bem.


Sem perder a compostura, pedi-lhe 5 minutos de tempo para responder, e convidei-o a dizer-me a hora exata. Pôs a mão no bolso e não encontrou o relógio.


– Se não tem relógio – acrescentei –, dê-me uma moeda de 5 soldos.


Rebuscou os bolsos, mas não encontrou o porta-moedas.


– Malandro – começou, encolerizado –, ou tu serves ao demônio ou o demônio é que te serve a ti. Roubaste-me porta-moedas e relógio. Já não posso calar, sou obrigado a denunciar-te. Não sei como consigo ter-me sem dar-te uma sonora tunda.


Vendo-me, todavia, calmo e sorridente, pareceu acalmar-se um pouco e prosseguiu:


– Vamos levar a coisa com calma: explica-me estes mistérios. Como foi possível que porta-moedas e relógio saíssem dos meus bolsos sem que eu percebesse? Onde diabo foram parar esses objetos?


– Senhor arcipreste – comecei a dizer respeitosamente –, explico tudo em poucas palavras. Trata-se de habilidade manual, intuição, ou coisa preparada.


– Que intuição pode haver no caso do meu relógio e do meu porta-moedas?


– Explico tudo em duas palavras. Quando cheguei à sua casa, o senhor estava dando uma esmola a um pobre, e depois deixou o porta-moedas sobre um genuflexório. Indo depois deste para outro quarto, deixou o relógio sobre esta mesinha. Eu os escondi e o senhor pensava que trazia esses objetos consigo, ao passo que estavam debaixo deste abajur.


Assim dizendo, levantei o abajur, debaixo do qual estavam os objetos que segundo ele o demônio havia levado para outro lugar.


Riu o bom cônego a valer; fez-me dar algumas demonstrações de destreza, e quando viu como fazer aparecer e desaparecer as coisas ficou muito satisfeito, deu-me um pequeno presente e concluiu:


– Vai dizer a todos os teus amigos que ignorantia est magistra admirationis.96



12º

CORRIDA - SALTO - VARINHA MÁGICA - PONTA DA ÁRVORE


Uma vez demonstrado que nos meus divertimentos não havia magia branca, pus-me de novo a reunir os colegas e a entretê-los como antes. Aconteceu nessa ocasião que alguns punham nas nuvens um saltimbanco que havia dado um espetáculo público com uma corrida a pé, atravessando a cidade de Chieri de uma extremidade a outra em dois minutos e meio, quase o tempo empregado por um trem a grande velocidade. Sem medir as conseqüências de minhas palavras, disse que gostaria de competir com o saltimbanco. Um colega imprudente foi logo contar ao saltimbanco, e assim vi-me comprometido num desafio: um estudante desafia um corredor profissional!


O lugar escolhido foi a avenida de Porta Torinese. A aposta era de 20 francos. Como eu não dispusesse desse dinheiro, vários amigos pertencentes à Sociedade da Alegria vieram em minha ajuda. Juntou-se uma multidão de gente para assistir. Começa a corrida e o rival ganhou alguns passos à frente; porém, recuperando o terreno, deixei-o tão atrás de mim que ele, no meio da corrida, parou e deu a competição por perdida.


– Desafio-te a saltar – disse-me, mas quero apostar 40 francos, e até mais, se quiseres.


Aceitamos o desafio, e cabendo a ele a escolha do lugar, determinou que se devia saltar um canal até o parapeito de uma pequena ponte. Ele saltou por primeiro e colocou o pé bem perto do murinho, de maneira que não era possível saltar mais do que isso. Desse jeito eu podia perder, não, porém, ganhar. Tive uma idéia que me ajudou. Dei o mesmo salto, mas apoiei as mãos no parapeito da ponte e fui cair além do murinho e do canal. Aplausos gerais.


– Quero fazer ainda um desafio. Escolhe qualquer jogo de destreza.


Aceitei e escolhi o da varinha mágica,97 com a aposta de 80 francos. Tomei, pois, uma varinha, coloquei um chapéu numa ponta e apoiei a outra na palma de uma das mãos. Depois, sem tocá-la com a outra, fi-la saltar para a ponta do dedo mínimo, do anular, do médio, do indicador, do polegar; depois sobre o pulso, o cotovelo, os ombros, o queixo, os lábios, o nariz, a fronte; em seguida, refazendo o mesmo caminho, ela voltou à palma da mão.


– Não tenho medo de perder – disse o rival –, esse é o meu jogo preferido.


Tomou a mesma varinha e com maravilhosa habilidade fê-la caminhar até os lábios, onde esbarrou no nariz um tanto comprido e perdeu o equilíbrio, sendo então forçado a pegá-la com a mão para não deixá-la cair ao chão.


Vendo arrasado seu pecúlio, o pobre homem exclamou quase furioso:


– Prefiro qualquer outra humilhação à de ter sido derrotado por um estudante. Tenho ainda 100 francos e aposto esse dinheiro, ganha-o quem conseguir colocar os pés mais perto da ponta dessa árvore.


Referia-se a um olmeiro, na avenida. Aceitamos também desta vez: de certo modo até gostaríamos que ele ganhasse, porque tínhamos pena dele e não queríamos arruiná-lo.


Trepou por primeiro no olmo e colocou os pés a tal altura que, por pouco mais que subisse, a árvore teria vergado, derrubando-o por terra. Todos concordavam em que não era possível subir mais alto. Fiz a minha tentativa. Subi até onde era possível, sem curvar a planta; depois, segurando-me à árvore com ambas as mãos, ergui o corpo e coloquei os pés cerca de 1 metro mais alto que o meu contendor.


Quem poderia descrever os aplausos da multidão, a alegria dos colegas, a fúria do saltimbanco, e o meu orgulho por ter saído vencedor não dos meus condiscípulos, mas de um campeão de charlatões? Em meio, porém, à sua grande desolação, quisemos proporcionar-lhe um conforto.Compadecidos da tristeza do pobrezinho, dissemos-lhe que lhe restituíamos o dinheiro caso aceitasse uma condição, isto é, que nos pagasse um almoço no albergue do Muretto.98 Aceitou agradecido. Fomos 22, tantos eram os meus partidários. O almoço custou 25 francos, de modo que pôde recuperar 215 francos.


Foi na verdade uma quinta-feira muito alegre. Eu me cobri de glória por haver superado em habilidade um charlatão. Contentíssimos ficaram os colegas, que se divertiram a mais não poder com risos e um bom almoço. Contente também deve ter ficado o saltimbanco, que conseguiu reaver quase todo o seu dinheiro e saboreou um bom almoço. Ao separar-se agradeceu a todos, dizendo:


– Restituindo-me este dinheiro evitais minha ruína. Agradeço-vos de todo o coração. Conservarei de vós boas recordações, mas não farei mais apostas com estudantes.



13º

ESTUDO DOS CLÁSSICOS


Vendo-me passar assim o tempo em tantas distrações, direis que devia forçosamente descurar os estudos. Não nego que poderia ter estudado mais: deveis, todavia, saber que me bastava prestar atenção na aula para aprender quanto era necessário. Tanto mais que naquele tempo eu não fazia distinção entre ler e estudar, e com facilidade podia repetir a matéria de um livro que eu lesse ou ouvisse ler a outro. Mais, acostumado por minha mãe a dormir muito pouco, podia empregar dois terços da noite em ler à vontade e dedicar quase todo o dia a ocupações de livre escolha, como repasses, aulas particulares. Embora o fizesse por caridade ou amizade, alguns, todavia, me pagavam o trabalho.


Havia então em Chieri um livreiro judeu, chamado Elias, com o qual entrei em contato, associando-me à leitura dos clássicos italianos. Um soldo cada volume, que devolvia após haver lido. Lia cada dia um volume da Biblioteca popular.99 Empreguei o ano do 4º ginasial na leitura dos autores italianos. No ano de retórica pus-me a estudar os clássicos latinos,100 e comecei a ler Cornélio Nepos, Cícero, Salústio, Quinto Cúrcio, Tito Lívio, Cornélio Tácito, Ovídio,Virgílio, Horácio Flacco e outros. Lia esses livros por divertimento e saboreava-os como se os houvesse compreendido inteiramente. Somente mais tarde percebi que não era verdade, porque, ordenado sacerdote, pondo-me a explicar a outros aquelas celebridades clássicas, percebi que só com grande estudo e muita preparação conseguia penetrar-lhes o verdadeiro sentido e beleza.


Mas os deveres escolares, as aulas particulares, muita leitura, ocupavam o dia e parte notável da noite. Várias vezes sucedeu chegar a hora de levantar e eu tinha ainda em mãos as décadas de Tito Lívio, do qual havia iniciado a leitura na noite anterior. Isso arruinou-me de tal modo a saúde, que por vários anos minha vida parecia à beira da tumba. Por isso é que aconselharei sempre a fazer o que se pode e não mais. A noite é feita para descansar e, exceto em caso de necessidade, ninguém após a ceia deve aplicar-se aos estudos. Um homem robusto resistirá até certo ponto, mas acabará por prejudicar em maior ou menor grau sua saúde.101



14º

PREPARAÇÃO À ESCOLHA DO ESTADO


Ia-se aproximando o fim do ano de retórica época na qual os estudantes costumam decidir a própria vocação. O sonho de Murialdo estava gravado em minha memória; havia-se até renovado de maneira muito mais clara, e assim, se lhe quisesse dar fé, devia optar pelo estado eclesiástico, ao qual justamente me sentia inclinado. Porém, a pouca fé nos sonhos, meu estilo de vida, certos hábitos do meu coração e a falta absoluta das virtudes necessárias para esse estado tornavam duvidosa e bastante difícil a decisão nesse sentido.


Oh! Tivesse então um guia que se interessasse pela minha vocação! Seria para mim um grande tesouro; faltava-me, porém, tal tesouro! Tinha um bom confessor, que pensava em fazer de mim um bom cristão mas não quis nunca imiscuir-se na questão da vocação.


Aconselhando-me comigo mesmo, depois de ler algum livro que tratava da escolha do estado, decidi-me a entrar na Ordem Franciscana.102 “Se me faço sacerdote secular – dizia de mim para mim – a minha vocação corre grande perigo de naufrágio. Abraçarei o estado eclesiástico, renunciarei ao mundo, entrarei para o claustro, entregar-me-ei ao estudo, à meditação, e assim na solidão poderei combater as paixões, especialmente a soberba, que deitou profundas raízes no meu coração.” Apresentei o pedido aos conventuais reformados, prestei o exame correspondente, fui aceito, e assim tudo estava preparado para entrar no convento da Paz, em Chieri.


Poucos dias antes do tempo marcado para a entrada, tive um sonho bastante estranho. Pareceu-me ver uma multidão daqueles religiosos com os hábitos rasgados, correndo em sentido contrário uns dos outros. Um deles veio dizer-me: “Procuras a paz, e aqui não haverás de encontrá-la. Observa a atitude dos teus irmãos. Deus te prepara outro lugar, outra messe”.


Queria fazer algumas perguntas àquele religioso, mas um ruído me despertou e não vi mais nada. Expus tudo ao meu confessor, que não quis ouvir falar de sonhos nem de frades. “Neste assunto – respondeu –, é preciso que cada um siga as próprias propensões, e não os conselhos dos outros.”


Sucedeu entretanto um caso, que me pôs na impossibilidade de executar o meu projeto. Como os obstáculos eram muitos e permanentes, resolvi expor tudo ao amigo Comollo. Aconselhou-me a fazer uma novena, durante a qual escreveria ao tio pároco. No último dia da novena, em companhia do inolvidável amigo, fiz a confissão e a comunhão, depois ouvi uma missa e ajudei outra no altar de Nossa Senhora das Graças,103 De volta para casa encontramos uma carta do padre Comollo vazada nestes termos: “Considerando atentamente o exposto, aconselharia teu colega a desistir de entrar num convento. Vista o hábito clerical e enquanto prosseguir nos estudos haverá de conhecer melhor o que Deus dele quer. Não tenha medo de perder a vocação, porque com o recolhimento e as práticas de piedade ele superará todos os obstáculos”.


Segui o sábio conselho e apliquei-me seriamente a quanto pudesse ajudar-me na preparação para a vestidura. Depois do exame de retórica, fiz o da tomada de hábito em Chieri, precisamente nos atuais quartos da casa de Carlos Bertinetti, que ao morrer nos deixou por herança,104 e que haviam sido tomados em aluguel pelo arcipreste cônego Búrzio. Naquele ano o exame não foi em Turim como de costume, por causa do cólera-morbo que ameaçava os nossos povoados.


Quero notar aqui uma coisa que dá a conhecer claramente até que ponto se cultivava o espírito de piedade no colégio de Chieri. Durante os quatro anos em que freqüentei aquelas escolas, não lembro de haver ouvido uma conversa ou uma única palavra contra os bons costumes ou contra a religião. Terminado o curso de retórica, dos 25 alunos que compunham a classe, 21 abraçaram o estado eclesiástico; 3 tornaram-se médicos e 1, comerciante.


Indo a casa para as férias,105 deixei de fazer-me de saltimbanco e dediquei-me às boas leituras que, digo-o para vergonha minha, havia até então descuidado. Continuei, porém, a ocupar-me com os meninos, entretendo-os com contos, agradáveis distrações, cantos sacros; mais, observando que muitos já estavam crescidos, mas continuavam ignorantes nas verdades da fé, apressei-me em ensinar-lhes também as orações cotidianas e outras coisas importantes naquela idade. Era uma espécie de oratório, ao qual acudiam uns 50 meninos que me amavam e obedeciam como se eu lhes fora pai.






SEGUNDA DÉCADA: 1835-1845



VESTIDURA - PLANO DE VIDA


Tomada a decisão de abraçar o estado eclesiástico e prestado o respectivo exame, ia-me preparando para aquele dia tão importante, pois estava persuadido que da escolha do estado depende ordinariamente a salvação eterna ou a eterna perdição.


Pedi a vários amigos que rezassem por mim; fiz uma novena, e no dia de São Miguel (outubro de 1934)106 aproximei-me dos santos sacramentos. O teólogo Cinzano,107 pároco e vigário forâneo da minha terra natal, benzeu a batina e procedeu à vestidura antes da missa solene.


Quando me mandou depor as vestes seculares com as palavras: “Exuat te Dominus veterem hominem cum actibus suis”,108 disse no meu coração: “Oh! quanta coisa velha há que tirar! Meu Deus, destruí em mim todos os maus hábitos”.


Quando, ao entregar-me o colarinho, acrescentou: “Induat te Dominus novum hominem, qui secundum Deum creatus est in iustitia et sanctitate veritatis”,109 senti-me profundamente comovido e acrescentei de mim para mim: “Sim, meu Deus, fazei que neste momento eu me revista de um novo homem, isto é, que a partir de agora eu comece uma vida nova, toda conforme à divina vontade, e que a justiça e a santidade sejam o objeto constante dos meus pensamentos, das minhas palavras e das minhas obras. Assim seja. Ó Maria, sede a minha salvação”.


Terminada a função na igreja, meu pároco quis promover outra inteiramente profana: levar-me à festa de São Miguel que se celebrava em Bardella, povoado de Castelnuovo. Queria assim manifestar-me benevolência, mas não era coisa oportuna para mim. Iria parecer um boneco de roupa nova, que se apresentava ao público para ser visto. Além do mais, depois de várias semanas de preparação para o dia suspirado, como sentir-me à vontade e almoçar no meio de gente de toda condição e sexo, reunida para rir, tagarelar, comer, beber e divertir-se; gente que na maio­ria ia em busca de divertimentos, danças e disputas de todo o gênero? Que companhia poderia fazer essa gente a quem na manhã do mesmo dia havia vestido o santo hábito para entregar-se totalmente ao Senhor?


O pároco tudo observou, e na volta para casa perguntou-me por que num dia de alegria geral me havia mostrado tão retraído e pensativo. Com toda a sinceridade respondi que a função da manhã não concordava nem em gênero, nem em número, nem em caso com a da tarde. “Mais ainda – acrescentei –, ver padres bancarem os palhaços no meio dos convidados, já um tanto altos pelo vinho, quase despertou em mim aversão à minha vocação. Soubesse que havia de ser um desses padres, preferiria deixar este hábito e viver como um pobre leigo, mas bom cristão.”


O mundo é assim – respondeu-me o pároco –, e é preciso tomá-lo como é. É preciso ver o mal para o conhecer e evitar. Ninguém se torna valente guerreiro sem aprender a manejar as armas. Assim devemos fazer nós, empenhados que estamos num contínuo combate contra os inimigos das almas.


Calei então, mas disse no meu coração:


Não mais irei a festejos públicos, a menos que seja obrigado por funções religiosas.


Depois daquele dia devia cuidar de mim mesmo. A vida levada até então devia ser radicalmente reformada. Nos anos passados não havia sido propriamente mau, mas dispersivo, vaidoso, dado a partidas, jogos, saltos, brinquedos e coisas assim, que alegravam no momento mas não satisfaziam o coração.


Para traçar um teor de vida estável e não o esquecer, escrevi os seguintes propósitos:


l° No futuro não participarei de espetáculos públicos em feiras e mercados; nem assistirei a bailes ou teatros; e na medida do possível não participarei dos almoços que se costumam dar em tais ocasiões.


2° Não farei mais exibições de “bussolotti”, de prestidigitador, saltimbanco, malabarismo, corda; não tocarei violino, não irei mais à caça. Essas coisas todas considero-as contrárias à gravidade e ao espírito eclesiástico.


Procurarei amar e praticar o retiro, a temperança no comer e no beber; para repouso tomarei apenas as horas estrita­mente necessárias à saúde.


Como no passado servi o mundo com leituras profanas, assim no futuro procurarei servir a Deus com leituras religiosas.


Combaterei com todas as forças qualquer leitura, pensa­mento, conversa, palavras e obras contrárias à virtude da castidade. Pelo contrário, farei tudo o que contribuir para a conservação dessa virtude, por insignificante que seja.


6° Além das práticas ordinárias de piedade não deixarei de fazer todos os dias um pouco de meditação e de leitura espiritual.


Contarei todos os dias algum exemplo ou máxima que aproveite à alma do próximo, Assim farei com os companheiros, com os amigos com os parentes, e quando não puder fazê-lo com outros, fá-lo-ei com minha mãe.


Estas as resoluções tomadas quando vesti a batina; e para que me ficassem bem impressas, coloquei-me diante de uma imagem de Nossa Senhora, li-as, e, após uma prece, prometi formalmente à celeste Benfeitora observá-las à custa de qualquer sacrifício.



IDA PARA O SEMINÁRIO


A 30 de outubro daquele ano, 1835, devia estar no seminário. O pequeno enxoval estava preparado.110 Todos os parentes estavam contentes, e eu mais do que eles. Somente minha mãe se mostrava preocupada e não desviava os olhos de mim, como se quisesse dizer alguma coisa. Na tarde anterior à partida, chamou-me e disse estas memoráveis palavras:


Meu Joãozinho, acabas de vestir a batina. Sinto toda a consolação que uma mãe pode sentir pela alegria do seu filho. Lembra-te, porém, que não é o hábito que honra o teu estado, mas as virtudes que praticares. Se por desgraça vieres um dia a duvidar de tua vocação, ah! por caridade! não desonres a batina. Larga-a imediatamente. Prefiro ter como filho um pobre camponês, a um padre negligente nos seus deveres. Quando nasceste eu te consagrei a Nossa Senhora; quando começaste os estudos, eu te recomendei a devoção a nossa Mãe. Pois agora também recomendo-te que sejas todo dela. Ama os companheiros devotos de Maria. E se chegares a ser sacerdote, recomenda e propaga sempre a devoção a Nossa Senhora.


Ao terminar essas palavras, mamãe estava comovida. Eu chorava.


Mamãe – respondi –, agradeço-lhe todas as suas palavras e tudo o que fez por mim; seus conselhos não foram dados em vão, serão por toda a vida o meu tesouro.


De manhã cedinho fui a Chieri e na tarde do mesmo dia entrei para o seminário.


Depois de cumprimentar os superiores e de arrumar a cama, pus-me a passear com o amigo Garigliano pelos dormitórios, pelos corredores e depois pelo pátio. Erguendo os olhos para um relógio de sol, li este verso: “Afflictis lentae, celeres gaudentibus horae”.111


Eis – disse ao amigo –, eis aí o nosso programa: vamos estar sempre alegres e o tempo passará depressa.


No dia seguinte começou um retiro de três dias e procurei fazê-lo da melhor maneira possível. Aí pelo fim, fui ter com o professor de filosofia, que era então o teólogo Ternavásio,112 de Bra, e pedi-lhe alguma norma de vida para cumprir com meus deveres e conquistar a benevolência dos meus superiores.


Uma coisa só – respondeu-me o digno sacerdote –, o cumprimento exato do dever.


Tomei como base esse conselho e empenhei-me com toda a alma na observância das regras do seminário. Não fazia distinção se a sineta chamasse para o estudo, para a igreja, ou então para o refeitório, o recreio, o repouso. Essa exatidão ganhou-me o afeto dos colegas e a estima dos superiores, a ponto que os seis anos de seminário foram para mim uma etapa muito agradável.



A VIDA DO SEMINÁRIO


Os dias do seminário são mais ou menos sempre os mesmos, por isso relatarei os fatos de maneira genérica, descrevendo de maneira especial os de maior relevo. Começarei pelos superiores.


Eu queria muito bem aos meus superiores, e eles foram sempre muito bons para comigo; mas meu coração não estava satisfeito. Era costume visitar o reitor113 e os demais superiores à chegada das férias e quando se partia para elas. Ninguém ia falar com eles, a não ser quando chamado para receber alguma reprimenda. Um dos superiores, por turno, vinha assistir cada semana o refeitório e os passeios; só isso. Quantas vezes queria falar, pedir-lhes conselho ou solução de dúvidas, e não podia fazê-lo. Mais: se algum superior por acaso passasse no meio dos seminaristas, todos, sem saber por que, fugiam precipitadamente para um lado ou para outro como de um cão sarnento. Isso avivava em meu coração o desejo de ser quanto antes padre, para ficar no meio dos jovens, assisti-los e ajudá-los no que fosse preciso.


Quanto aos colegas, ative-me ao conselho de minha querida mãe, isto é, juntei-me a companheiros devotos de Maria, amigos do estudo e da piedade. Devo dizer, para norma de quem freqüenta o seminário, que há nele muitos clérigos de grande virtude, mas há também elementos perigosos. Não poucos jovens, sem preocupar-se com a própria vocação, vão para o seminário sem possuir nem espírito nem vontade de um bom seminarista. Lembro-me até de ter ouvido a alguns colegas conversas realmente más. E quando, uma vez, foi feita uma revista nos pertences de alguns alunos, encontraram-se livros ímpios e obscenos de toda espécie. É bem verdade que tais companheiros abandonavam voluntariamente o hábito clerical ou eram expulsos do seminário, assim que descobertos.114 Entretanto, durante a permanência no seminário, eram como uma peste para os bons e para os maus.


Para evitar o perigo de tais colegas, escolhi alguns, notoriamente tidos como modelos de virtude. Eram Guilherme Garigliano, João Giacomelli,115 de Avigliana, e, mais tarde, Luís Comollo. Esses três colegas foram para mim um verdadeiro tesouro.


As práticas de piedade eram muito bem-feitas. Todas as manhãs, missa, meditação, terço; à mesa, leitura edificante. Naquele tempo lia-se a História eclesiástica, de Bercastel. A confissão era obrigatória cada quinze dias; mas quem quisesse podia confessar-se todos os sábados. Mas só se podia comungar aos domingos ou em solenidades especiais. Algumas vezes fazia-se durante a semana, mas para isso era necessário procurar um subterfúgio. Devia-se escolher a hora do café, ir meio às escondidas à vizinha igreja de São Filipe,116 fazer a Comunhão, e depois voltar para juntar-se aos colegas na hora em que iam para o estudo ou para a aula. Essa infração do horário era proibida; mas os superiores davam um consentimento tácito, porque sabiam e, às vezes, viam e não diziam nada em contrário. Pude dessa maneira receber freqüentemente a santa Comunhão, que posso chamar com razão o alimento mais eficaz da minha vocação. Já foi remediada essa falha na vida de piedade, uma vez que, por disposição do arcebispo Gastaldi, dispuseram-se as coisas de maneira a poder aproximar-se todas as manhãs da Comunhão quantos quisessem fazê-lo.117



DIVERTIMENTOS E RECREIOS


O brinquedo mais comum durante o tempo livre era a conhecida barra comprida. No princípio tomei parte nele com muito gosto; mas como o brinquedo se assemelhava muito ao dos saltimbancos, aos quais havia definitivamente renunciado, quis renunciar também a este. Em determinados dias permitia-se o jogo de baralho, e nele participei durante algum tempo. Mas também aqui o doce misturava se ao amargo. Conquanto não fosse um grande jogador, tinha, não obstante, tamanha sorte, que quase sempre ganhava. No fim das partidas estava com as mãos cheias de dinheiro; mas ao ver meus colegas aflitos por haverem-no perdido, ficava mais aflito do que eles. Acresce que eu prestava tanta atenção ao jogo, que depois já não podia rezar nem estudar, pois tinha a imaginação ocupada pelo rei de copas e pelo valete de espadas. Pelo ás de paus ou de ouro. Tomei então a propósito de não mais participar desse jogo, da mesma maneira como havia renunciado a outros. Fiz isso na metade do segundo ano de filosofia, em 1836.


Quando mais longa que de costume, a recreação era alegrada por algum passeio, que os seminaristas davam freqüentemente pelos lugares mui pitorescos dos arredores de Chieri. Tais passeios eram úteis também para o estudo, pois cada um procurava exercitar-se nos temas escolares, perguntando ao colega ou respondendo a perguntas. Fora do tempo do passeio propriamente dito, podia cada um distrair-se andando com os amigos pelo seminário, conversando assuntos interessantes ou questões de estudo e piedade.


Nos recreios compridos, muitas vezes nos reuníamos no refeitório para fazer o chamado círculo de estudos. Ali cada um indagava sobre o que não sabia ou não havia entendido bem no livro ou na escola. Eu gostava muito e me era muito útil para o estudo, para a piedade e para a saúde. Comollo, que chegara ao seminário um ano depois de mim, destacava-se em fazer perguntas. Certo Domingos Peretti,118 atualmente pároco de Buttigliera, era muito loquaz e respondia sempre. Garigliano era excelente ouvinte; fazia apenas algumas reflexões.119 Eu era presidente e juiz inapelável. Como se apresentassem em nossas conversações familiares questões e temas científicos, aos quais ninguém sabia dar resposta exata, dividíamos as dificuldades entre nós. Dentro de determinado prazo cada qual tinha de preparar a solução da dificuldade que lhe incumbia.


Meu recreio era freqüentemente interrompido por Comollo. Pegava-me pela batina, pedia-me que o acompanhasse e levava-me à capela para uma visita ao Santíssimo Sacramento pelos agonizantes, o terço ou o ofício de Nossa Senhora em sufrágio das almas do purgatório.


O maravilhoso colega foi para mim uma bênção. Sabia oportunamente avisar-me, corrigir-me, consolar-me, mas fazia-o com tal garbo e tamanha caridade, que de certo modo gostava de dar-lhe motivo a fim de desfrutar o prazer da correção.120 Tratava-o com familiaridade, sentia-me naturalmente levado a imitá-lo, e embora me encontrasse a incontáveis léguas de sua virtude, devo a ele se não me deixei arruinar pelos relaxados e, ao contrário, progredi na minha vocação.


Só numa coisa nem sequer tentei imitá-lo: na mortificação. Ver um moço de 19 anos jejuar rigorosamente toda a quaresma e no tempo determinado pela Igreja; jejuar todos os sábados em honra de Nossa Senhora, renunciar muitas vezes ao café da manhã, almoçar por vezes apenas pão e água; suportar o desprezo, a injúria, sem dar jamais um sinal de ressentimento; vê-lo exatíssimo nos mínimos deveres de estudo e piedade, tudo isso me confundia e fazia-me ver no colega um amigo ideal, um estímulo ao bem, um modelo de virtude para quem vive no seminário.



AS FÉRIAS


As férias costumam ser um grande perigo para os clérigos, tanto mais que naquele tempo duravam quatro meses e meio. Empregava o tempo lendo, escrevendo; mas como ainda não sabia aproveitar os dias livres, perdia-os sem muito fruto. Procurava entreter-me com algum trabalho manual. Fazia fusos, cavilhas, piões, bochas ou bolas no torno; fazia batinas; cortava, costurava sapatos; trabalhava o ferro, a madeira. Ainda agora há na minha casa de Murialdo uma escrivaninha, uma mesa com algumas cadeiras que lembram as obras-primas das minhas férias. Ocupava-me também em cortar capim no prado, ceifar o trigo no campo; em despampanar, des­filhar, vindimar, fazer vinho, espichar e coisas semelhantes. Ocupava-me com os meninos de sempre, mas só podia fazê-lo aos domingos. Experimentei grande satisfação em dar catecismo a muitos companheiros meus, que aos 16 e também aos 17 anos ignoravam de todo as verdades da fé. Ensinava alguns a ler e a escrever, com muito bom resultado; porque o desejo, diria até a febre de aprender trazia-me meninos de todas as idades. A aula era gratuita, mas eu exigia assiduidade, atenção e a confissão mensal. No princípio houve alguns que para não se submeterem a essas condições deixaram de freqüentá-la. Isso serviu de lição e encorajamento para os outros.


Comecei também a pregar e dar palestras com licença e supervisão do meu pároco. Preguei sobre o Santíssimo Rosário no povoado de Alfiano,121 nas férias que se seguiram ao segundo ano de filosofia; sobre São Bartolomeu Apóstolo, depois do primeiro ano de teologia, em Castelnuovo d’Asti; sobre a Natividade de Maria, em Capriglio. Não sei com que fruto. Mas em todos os lugares era aplaudido, e assim a vanglória foi tomando conta de mim, até sofrer um desengano. Certa vez, depois da citada pregação sobre a Natividade de Maria, perguntei a um, que parecia dos mais inteligentes, a respeito da pregação que ele elogiava exageradamente, e me respondeu:


Sua pregação foi sobre as pobres almas do Purgatório.


E eu havia pregado sobre as glórias de Maria.


Em Alfiano quis saber também o parecer do pároco, padre José Pellato,122 homem de muita piedade e doutrina, e pedi-lhe a opinião sobre a minha pregação.


Seu sermão – respondeu – foi muito bonito, ordenado, exposto em boa linguagem, com pensamentos da Escritura; se continuar assim poderá ter êxito na pregação.


Será que o povo compreendeu?


Pouco. Meu irmão padre, eu e pouquíssimos outros.


Mas como é que coisas tão simples não são entendidas?


Ao senhor parecerão fáceis, mas para o povo são muito elevadas. Passar por alto a história sagrada, raciocinar rapidamente sobre uma série de fatos da história eclesiástica, tudo isso é coisa que o povo não entende.


Então, que me aconselha a fazer?


Abandonar a linguagem e a maneira dos clássicos de desenvolver o tema, falar em dialeto onde for possível, ou também em língua italiana, mas popularmente, popularmente, popularmente. Em vez de raciocínios, sirva-se de exemplos, comparações, apólogos simples e práticos. Lembre sempre que o povo compreende pouco, e que as verdades da fé nunca lhe são suficientemente explicadas.


O paternal conselho serviu-me de norma em toda a vida. Conservo ainda, para vergonha minha, aqueles discursos,123 nos quais não descubro hoje senão vanglória e afetação. Deus misericordioso dispôs que recebesse essa lição: lição proveitosa para as pregações, catecismo, instruções e escritos,124 aos quais já naqueles tempos me dedicava.



BANQUETE NO CAMPO - O VIOLINO - A CAÇA


Quando, há pouco, dizia que as férias são perigosas, referia-me exatamente a mim mesmo. Um pobre clérigo, sem que se dê conta, pode muitas vezes encontrar-se em graves perigos. Tive experiência disso.


Um ano fui convidado para um almoço festivo em casa de alguns parentes. Não queria ir, mas como insistiam que não havia nenhum clérigo para ajudar na igreja, pareceu-me bem ceder aos repetidos convites de um tio e fui. Terminadas as funções sagradas, nas quais participei ajudando e cantando, fomos para o almoço. Até dado momento tudo correu bem; mas quando o vinho começou a fazer seus efeitos, a linguagem baixou a um nível que um clérigo não podia tolerar. Tentei fazer algumas observações, mas minha voz não foi ouvida. Não sabendo então que partido tomar, resolvi ir embora; levantei-me da mesa e apanhei o chapéu para sair, mas o tio se opôs. Outro começou a falar pior ainda e a insultar a todos os comensais. Das palavras passou-se aos fatos: gritaria, ameaças, copos, garrafas, pratos, colheres, garfos e facas, tudo juntava-se numa balbúrdia tremenda. Não tive, então, outra saída senão dar às pernas. Assim que cheguei em casa, renovei de todo o coração o propósito, já várias vezes tomado, de viver retirado se é que não queria cair.


Fato de outro gênero, mas igualmente desagradável, sucedeu-me em Croveglia,125 distrito de Buttigliera.


Celebrando-se aí a festa de São Bartolomeu, fui convidado por outro tio a comparecer, a fim de ajudar nas sagradas funções, cantar e também tocar o violino, que tinha sido para mim um instrumento predileto, e que já havia abandonado. Tudo correu muito bem na igreja. O almoço era na casa do tio, que era o patrocinador da festa, e até aí nada que lamentar. Terminada a refeição, os comensais convidaram-me a tocar alguma coisa a título de passatempo. Neguei-me.


Pelo menos – disse um músico – acompanhe-me. Eu farei a primeira voz e o senhor a segunda.


Pobre de mim! Não soube dizer não e pus-me a tocar e toquei por algum tempo, até ouvir um burburinho e movimento de pés, que denotava a presença de grande número de pessoas. Cheguei, então, à janela e vi um bom grupo de pessoas no pátio contíguo a dançar alegremente ao som do meu violino. Impossível exprimir com palavras a raiva que de mim se apoderou.


Como? – disse aos comensais –; eu que grito sempre contra esses espetáculos tenho que converter-me em promotor deles? Isso não mais acontecerá.


Entreguei o violino. Em casa fiz em mil pedaços o meu, e não me servi mais desse instrumento, muito embora se houvessem apresentado ocasiões e conveniências nas funções sagradas.


Mais um episódio, que me aconteceu na caça.


Durante o verão pegava ninhos, no outono caçava com visgo, arapuca, laço e alguma vez também com espingarda. Certa manhã pus-me a perseguir uma lebre, e correndo de campo em campo, de vinha em vinha, atravessei vales e colinas durante várias horas. Cheguei por fim à distância de tiro do animal; com um disparo rompi-lhe as costelas, de modo que o pobre animalzinho tombou, deixando-me muito abatido por vê-lo morto. Quando ouviram o tiro meus colegas acudiram, e enquanto eles se alegravam pela presa, dei um olhar sobre mim mesmo e percebi que estava em mangas de camisa, sem batina, com um chapéu de palha, parecido a um contrabandista, e isso num lugar mais de 5 quilômetros longe de minha casa. Fiquei muito mortificado, pedi desculpas aos companheiros pelo escândalo dado por aquela maneira de vestir, voltei logo para casa, e renunciei mais uma vez e de maneira definitiva a toda sorte de caça. Desta vez, com a ajuda do Senhor, mantive a promessa. Perdoe-me Deus o escândalo.


Esses três fatos deram-me uma terrível lição, e a partir de então entreguei-me com melhores propósitos à vida recolhida, e fiquei mesmo persuadido de que quem quer dar-se totalmente ao serviço do Senhor deve deixar inteiramente os divertimentos mundanos. É bem verdade que muitas vezes não são pecaminosos; mas é certo que pelas conversas que se travam, pela maneira de vestir, de falar e proceder, contêm sempre algum risco de ruína para a virtude, especialmente para a delicadíssima virtude da castidade.



AMIZADE COM LUÍS COMOLLO


Enquanto Deus conservou em vida o incomparável companheiro, estive sempre intimamente relacionado com ele. Durante as férias ia vê-lo muitas vezes, e muitas outras ele me procurava. Escrevíamo-nos com freqüência. Via nele um moço santo. Amava-o pelas suas raras virtudes; ele me amava porque o ajudava nos estudos, e quando eu estava com ele esforçava-me por imitá-lo em alguma coisa.


Numas férias veio passar um dia comigo, quando meus parentes se encontravam no campo para a ceifa. Deu-me a ler um sermão que devia pronunciar na próxima festa da Assunção de Maria; depois recitou-o acompanhando as palavras com gestos. Após algumas horas de agradável entretenimento, percebemos que era hora do almoço. Estávamos sós em casa. Que fazer?


É fácil – disse Comollo –, eu acendo o fogo, tu preparas a panela, e cozinharemos alguma coisa.


Muito bem – respondi –, mas vamos antes pegar um frango no quintal. Servirá de carne e de caldo; mamãe faz assim.


Conseguimos logo pegar um frango. Mas, quem tinha coragem de matá-lo? Nenhum dos dois. Para chegar a uma solução satisfatória, decidimos que Comollo seguraria o animal pelo pescoço sobre um tronco de madeira e eu o cortaria com uma foice despontada. Desferi o golpe e a cabeça caiu ao chão. Espantados, recuamos instintivamente, a chorar.


Tolos que somos – falou daí a pouco Comollo –; disse o Senhor que nos servíssemos dos animais da terra para nosso bem; por que, pois, tanta relutância?


Sem mais problemas recolhemos o animal, que, depenado e cozido, serviu-nos de almoço.


Eu devia ir a Cinzano para ouvir o sermão de Comollo sobre a Assunção, mas como estava incumbido de fazer o mesmo em outro lugar, só fui no dia seguinte. Dava gosto ouvir os elogios que de todas as partes se faziam à pregação de Comollo. Aquele dia (16 de agosto) era a festa de São Roque, que se costuma chamar dia da panela ou da cozinha, porque os parentes e os amigos costumam aproveitar para convidarem-se reciprocamente a almoçar e distrair-se com algum entretenimento público. Nessa ocasião aconteceu um episódio que mostrou até onde chegava meu atrevimento.


Estava-se à espera do pregador da solenidade. Já era hora de subir ao púlpito e ele não aparecia. Para tirar o pároco de Cinzano do apuro, dirigi-me a cada um dos muitos párocos presentes, pedindo e insistindo que algum deles fizesse um pequeno sermão ao numeroso povo reunido na igreja. Ninguém quis aceitar. Aborrecidos com meus repetidos convites, responderam-me asperamente:


Seu tonto! Fazer de improviso um sermão sobre São Roque não é como beber um copo de vinho; e em vez de amolar os outros, faça-o o senhor.


Todos aplaudiram essas palavras. Mortificado e ferido no meu amor-próprio, respondi:


Não ousaria decerto oferecer-me, mas, uma vez que todos se recusam, aceito.


Entoou-se na igreja um canto sacro para dar-me alguns instantes de concentração; depois de recordar a vida do santo que já havia lido, subi ao púlpito, fiz um sermão que sempre me disseram ter sido o melhor de quantos houvesse feito antes e depois.


Nessas férias e nessa mesma ocasião (1838) saí um dia a passeio com meu amigo até uma colina, donde se descortinava vasta extensão de prados, campos e vinhas.126


Olha, Luís – comecei a dizer –, que má colheita teremos este ano! Pobres camponeses! Tanto trabalho, e quase tudo em vão!


É a mão do Senhor – respondeu – que pesa sobre nós. Acredita; nossos pecados são disto a causa.


No ano que vem espero que o Senhor nos dará frutos mais abundantes.


Também espero. E será bom para os que puderem aproveitá-los.


Vamos lá, deixemos de lado idéias tristes; por este ano, paciência, mas no próximo teremos colheita mais abundante e faremos melhor vinho.


Tu beberás dele.


E tu pensas em continuar a beber a água de sempre?


Espero beber um vinho muito melhor.


Que queres dizer com isso?


Deixa pra lá, deixa... O Senhor sabe o que faz.


Não pergunto isso, pergunto que queres dizer com as palavras “espero beber um vinho melhor”. Queres acaso ir para o céu?


Embora não esteja inteiramente certo de ir para o céu depois de minha morte, tenho, todavia, fundada esperança, e de uns tempos para cá sinto tão vivo desejo de ir gozar a felicidade dos bem-aventurados, que me parece impossível possam ser muitos os dias de minha vida.


Comollo dizia isso com o rosto iluminado, gozando ainda de ótima saúde e preparando-se para retornar ao seminário.



UM TRATO POUCO PRUDENTE


O mais memorável de quanto precedeu e acompanhou a preciosa morte do querido amigo foi descrito à parte, e quem quiser poderá ler à vontade. Não quero omitir aqui um fato que deu muito que falar e é apenas mencionado nas memórias já publicadas. É o seguinte:


Dada a amizade e ilimitada confiança que havia entre mim e Comollo, costumávamos falar do que podia acontecer de um momento para outro, da nossa separação em caso de morte. Um dia, após haver lido longo trecho da vida dos santos, meio brincando e meio a sério dissemos que seria uma grande consolação se o que de nós dois morresse por primeiro trouxesse ao outro notícias do seu estado. Tendo voltado por diversas vezes ao assunto, fizemos um trato: o que de nós morresse primeiro, traria, se Deus o permitisse, notícia de sua salvação ao colega sobrevivente.


Eu não aquilatava a importância de tal promessa; confesso que houve muita leviandade nisso e jamais aconselharia alguém a fazê-la. Nós, entretanto, a fizemos e repetimos diversas vezes, especialmente na última doença de Comollo. Mais, suas últimas palavras e o último olhar confirmavam que o compromisso continuava de pé. Muitos companheiros estavam a par disso.


Comollo morria a 2 de abril de 1839,127 e na tarde do dia seguinte era com grande acompanhamento sepultado na igreja de São Filipe. Os que estavam a par da promessa mostravam-se ansiosos por vê-la cumprida. Eu, muito mais do que eles, porque seria um grande conforto em minha desolação.


Naquela noite, já deitado, num dormitório de cerca de 20 seminaristas, estava eu muito agitado, convencido de que naquela noite haveria de cumprir-se a promessa. Aí pelas 11 e meia, um rumor fez-se ouvir pelos corredores. Parecia que enorme carroça tirada por muitos cavalos se estivesse aproximando da pequena porta do dormitório. Espantados, os clérigos saltaram da cama para se juntarem num bloco e encorajarem-se mutuamente. Foi então que no meio daquela espécie de violento e surdo trovão ouviu-se claramente a voz de Comollo, dizendo três vezes:


Bosco, estou salvo!


Todos ouviram o ruído, e alguns ouviram as palavras, sem captar o sentido. Houve, porém, quem as entendesse como eu, tanto assim que por muito tempo se andaram repetindo pelo seminário. Foi a primeira vez que me lembro de ter tido medo; medo e tão grande assombro que caí gravemente doente e estive à beira do túmulo.


Não daria nunca a outrem conselhos desse gênero. Deus é onipotente, Deus é misericordioso. Na maioria das vezes não dá ouvidos a tratos assim; algumas vezes, porém, na sua infinita misericórdia permite que se cumpram, como no caso presente.



PRÊMIO - ENCARREGADO DA SACRISTIA - O TEÓLOGO JOÃO BOREL


Fui muito feliz no seminário e sempre gozei da estima dos meus colegas e de todos os meus superiores. No exame semestral costuma-se dar um prêmio de 60 francos em cada curso a quem obtiver as melhores notas no estudo e no procedimento.128 Deus me abençoou muito, pois nos seis anos que passei no seminário fui sempre distinguido com esse prêmio. No segundo ano de teologia fui nomeado sacristão, cargo de pequena importância, mas sinal precioso de benevolência por parte dos superiores, já que a ele se juntavam outros 60 francos. Tinha assim metade da pensão, enquanto o caridoso padre Cafasso providenciava o resto. O sacristão devia cuidar da limpeza da igreja, sacristia, altar, lâmpadas, velas e dos demais ornamentos e objetos necessários ao culto divino.


Tive nesse ano a ventura de conhecer um dos mais zelosos ministros do santuário, quando veio ao seminário para pregar os exercícios espirituais. Entrou na sacristia com ar alegre, com gracejos temperados sempre de pensamentos morais. Quando lhe observei a preparação e a ação de graças da missa, a atitude, o fervor na celebração, percebi de golpe que era um digno sacerdote, como era de fato o teólogo João Borel129 de Turim. Quando então começou as pregações, impressionando pela simplicidade, vivacidade, clareza e inflamada caridade que transparecia de todas as suas palavras, todos repetiam que era um santo.


De fato todos porfiavam em confessar-se com ele, em conversar com ele sobre a vocação e receber alguma lembrança especial.


Eu também quis tratar com ele das coisas da alma.


Tendo, no fim, pedido um meio certo para conservar o espírito da vocação no decorrer do ano e especialmente nas férias, disse-me estas memoráveis palavras:


Com o recolhimento e a comunhão freqüente se aperfeiçoa e conserva a vocação e se forma um verdadeiro eclesiástico.


Os exercícios espirituais do teólogo Borel marcaram época no seminário, e vários anos depois repetiam-se ainda as santas máximas que pregara em público ou aconselhara em particular.



ESTUDOS


Quanto aos estudos, deixei-me levar por um erro que haveria de acarretar conseqüências graves, não fosse um fato providencial a abrir-me os olhos. Habituado à leitura dos clássicos em todo o curso secundário, acostumado às figuras enfáticas da mitologia e das fábulas dos pagãos, não sentia gosto nas leituras ascéticas. Cheguei a convencer-me de que a boa linguagem e a eloqüência não se conciliam com a religião. As próprias obras dos Santos Padres pareciam-me fruto de engenhos muito acanhados, com exceção dos princípios religiosos, que expunham com vigor e clareza.


No princípio do segundo ano de filosofia, fui um dia fazer a visita ao Santíssimo Sacramento, e não tendo comigo o livro de orações, pus-me a ler De Imitatione Christi, alguns capítulos sobre o Santíssimo Sacramento. Considerando atentamente a sublimidade dos pensamentos e a maneira clara e ao mesmo tempo ordenada e eloqüente com que se expunham as grandes verdades, comecei a dizer de mim para mim: “o autor deste livro era um homem douto”.


Continuando por diversas outras vezes a ler o áureo opúsculo, não demorei em perceber que um só versículo continha mais doutrina e moral do que todos os grossos volumes dos clássicos antigos. Devo a esse livro o haver abandonado a leitura profana.


Dediquei-me depois à leitura de Calmet, História do Antigo e Novo Testamento; de Josefo Flávio, Antigüidades judaicas e A guerra judaica; depois monsenhor Marchetti, Reflexões sobre a religião; e posteriormente de Frayssinous, Balmes, Zucconi e muitos outros autores religiosos; gostei também de ler a História eclesiástica, de Fleury, ignorando então que não convinha lê-la. Com maior fruto ainda li as obras de Cavalca, de Passavanti, de Segneri e toda a História da Igreja, de Henrion.


Direis talvez que, dando-me a tantas leituras, não podia dedicar-me muito aos estudos. Não foi assim. Minha memória continuava a favorecer-me, bastando apenas a leitura e explicação do texto em aula para cumprir meu dever. Portanto, todas as horas marcadas para o estudo podia empregá-las em leituras diversas. Os superiores sabiam de tudo e me deixavam fazer assim.


Um estudo ao qual muito me aplicava era o grego. No curso clássico já havia aprendido os primeiros elementos, estudado a gramática e feito as primeiras versões com a ajuda do dicionário. Apresentou-se uma boa ocasião que foi para mim muito proveitosa no caso. Pela ameaça do cólera do ano de 1836 em Turim, os jesuítas anteciparam a transferência dos alunos do colégio do Carmo para Montaldo.130 A antecipação exigia o dobro do pessoal docente, porque continuavam as aulas para os externos que freqüentavam o colégio. O padre Cafasso, consultado, apresentou-me para uma aula de grego.131 Isso fez com que me dedicasse seriamente a essa língua para poder ensiná-la. Mais: foi de grande proveito para mim o contato com um grande conhecedor do grego, um sacerdote da Companhia chamado Bini. Em apenas quatro meses, fez-me traduzir quase todo o Novo Testamento, os dois primeiros livros de Homero, com algumas odes de Píndaro e de Anacreonte. Admirando minha boa vontade, o digno sacerdote continuou a ajudar-me e por quatro anos lia todas as semanas uma composição grega ou alguma versão que lhe enviava, e que ele pontualmente corrigia e devolvia com oportunas observações. Dessa maneira pude chegar a traduzir grego como se traduzisse latim.


Foi também nesse tempo que estudei francês e elementos de hebraico. Essas três línguas, hebraico, grego e francês, foram as minhas línguas preferidas depois do latim e do italiano.



ORDENAÇÕES SAGRADAS - SACERDÓCIO


No ano da morte de Comollo (1839), recebi a tonsura e as quatro ordens menores, no 3º ano de teologia.132 Depois desse curso, veio-me a idéia de tentar o que naquele tempo mui raramente se permitia: adiantar um curso nas férias. Para tanto, sem dizer nada a ninguém, apresentei-me sozinho ao arcebispo Fransoni,133 pedindo-lhe autorização para estudar os tratados do 4º ano naquelas férias e assim concluir o quinqüênio no ano escolar seguinte, 1840-1841. Aduzia minha avançada idade de 24 anos completos.


O santo prelado recebeu-me com muita bondade, e verificando o bom resultado dos exames prestados até então no seminário, concedeu-me o favor que pedia, com a condição de que desse exame de todos os tratados correspondentes ao curso que eu desejava ganhar. O teólogo Cinzano, meu vigário forâneo, ficou incumbido de executar a vontade do superior. Estudando, pude em dois meses terminar os tratados prescritos, e fui admitido ao subdiaconato nas ordenações das quatro têmporas de outono.


Agora que conheço as virtudes que se exigem para um passo tão importante, convenço-me de que não me achava bastante preparado; não havendo, porém, quem cuidasse diretamente da minha vocação, aconselhei-me com o padre Cafasso; disse-me ele que fosse para a frente, confiando na sua palavra. Nos dez dias de exercícios espirituais realizados na casa da Missão,134 de Turim, fiz a confissão geral, para que o confessor pudesse ter uma idéia clara da minha consciência e dar-me oportunos conselhos. Desejava completar os estudos, mas tremia ao pensamento de com­prometer-me por toda a vida; por isso não quis tomar uma resolução definitiva sem antes obter o pleno consentimento do confessor.


A partir de então esmerei-me quanto pude em pôr em prática o conselho do teólogo Borel: “com o recolhimento e a Comunhão freqüente se conserva e aperfeiçoa a vocação”. Voltando ao seminário, passei para o quinto ano, e fui nomeado prefeito,135 o mais alto cargo a que possa chegar um seminarista.


No sábado Sitientes de 1841 recebi o diaconato e nas têmporas de verão fui ordenado sacerdote.


De verdadeira consternação para mim foi o dia em que tive de deixar definitivamente o seminário. Os superiores me amavam, e me haviam dado contínuos sinais de benevolência. Estava muito afeiçoado aos meus companheiros. Pode-se dizer que eu vivia para eles, e eles viviam para mim. Quem precisava fazer a barba ou a coroa, recorria a Bosco. Quem tinha necessidade de um barre­te, de uma costura, remendar a roupa, procurava Bosco. Por isso tornou-se muito dolorosa para mim a separação de um lugar onde vivi seis anos, onde recebi educação, ciência, espírito eclesiástico e todos os sinais de bondade e afeto que se possam desejar.


O dia da minha ordenação era vigília da Santíssima Trindade;136 celebrei minha primeira missa na igreja de São Francisco de Assis,137 onde o padre Cafasso era diretor de estudos.


Esperavam-me ansiosamente em minha terra natal: havia anos não se celebrava aí uma missa nova. Preferi, todavia, celebrá-la em Turim, sem alarde, e posso dizer que foi esse o dia mais belo da minha vida. No memento daquela missa inolvidável procurei recordar devotamente todos os meus professores, benfeitores espirituais e temporais, e de modo especial o pranteado padre Calosso, que lembrei sempre como grande e insigne benfeitor.


Segunda-feira fui celebrar na igreja da Consolata,138 para agradecer à excelsa Virgem Maria os incontáveis favores que me havia alcançado de seu divino Filho Jesus.


Terça-feira fui a Chieri e celebrei a missa na igreja de São Domingos,139 onde vivia ainda meu antigo professor, o padre Giusiana, que me aguardava com paterno afeto. Durante a missa esteve sempre a chorar de comoção. Passei com ele todo aquele dia, que posso chamar dia de paraíso.


Quinta-feira, solenidade de Corpus Domini, satisfiz aos meus conterrâneos, cantei missa e presidi a procissão. O pároco convidou meus parentes para o almoço, bem como o clero e as autoridades do povoado. Todos tomaram parte na alegria, pois eu era muito querido de meus concidadãos e todos ficavam satisfeitos com tudo o que pudesse ser bom para mim. À noitinha voltei para minha família.


Quando, porém, cheguei perto de casa e vi o lugar do sonho dos 9 anos, não pude conter as lágrimas e disse: “Quão maravilhosos os desígnios da divina Providência! Realmente Deus tirou da terra um pobre menino para colocá-lo entre os príncipes do seu povo”.



10º

PRIMÍCIAS DO SAGRADO MINISTÉRIO - SERMÃO EM LAVRIANO E JOÃO BRINA


Naquele ano (1841), como meu pároco não tinha coadjutor, desempenhei esse cargo por cinco meses. Experimentava o maior prazer do mundo no trabalho. Pregava todos os domingos, visitava os doentes, administrava-lhes os santos sacramentos, com exceção da Penitência, porque não havia ainda prestado o exame de confissão. Acompanhava os enterros, mantinha em dia os livros paroquiais, dava atestados de pobreza ou de outro gênero.


Minha delícia, contudo, era ensinar catecismo aos meninos, entreter-me com eles, falar com eles. Vinham muitas vezes de Murialdo para visitar-me; quando ia em casa, estava sempre rodeado deles. Eles também começavam a fazer novos companheiros e amigos nos seus povoados. Saindo da casa paroquial estava sempre acompanhado de um bando de meninos e aonde quer que fosse rodeavam-me os meus amiguinhos, contentes como quê.


Tinha muita facilidade em expor a palavra de Deus, e por isso era amiudadas vezes procurado para pregar, fazer panegíricos nos povoados vizinhos. Convidaram-me a fazer o de São Benigno, em Lavriano,140 em fins de outubro daquele ano. Aceitei de bom grado, porque se tratava do povoado do meu amigo e colega padre João Grassino,141 atualmente pároco de Scalenghe.142 Desejava abrilhantar a solenidade e por isso preparei e escrevi meu sermão em dialeto, bem esmerado, porém; estudei-o bem, certo de ganhar elogios. Deus, entretanto, queria dar uma terrível lição à minha vanglória. Era dia santo e por isso, antes de partir, tive de celebrar a missa em hora cômoda para o povo; foi então preciso servir-me de um cavalo para chegar a tempo de pregar. Percorri­da metade do caminho a trote e galope, cheguei ao vale de Casalborgone, entre Cinzano e Bersano,143 quando improvisamente um bando de pardais levantou-se de um milharal e o ruído das asas espantou o cavalo que pegou a correr desabaladamente estrada afora, por campos e prados. Mantive-me um pouco na sela, mas sentindo-a deslizar sob o ventre do animal tentei uma manobra de equitação. Todavia a sela, fora do lugar, lançou-me ao ar e caí de ponta-cabeça sobre um monte de pedras britadas.


Um homem, que da colina próxima assistiu ao lamentável acidente, correu com um empregado em minha ajuda. Encontrando-me sem sentidos, levou-me para sua casa e deitou-me na melhor cama que tinha. Dispensaram-me os mais caridosos cuidados e assim, depois de uma hora, voltei a mim e percebi que estava em casa alheia.


Não se preocupe – disse meu hóspede –, não se inquiete por estar em casa alheia. Aqui nada lhe faltará. Já mandei chamar o médico; outro homem foi procurar o cavalo. Sou um camponês, mas provido de todo o necessário. Sente-se muito mal?


Deus lhe recompense tanta caridade, meu bom amigo. Não acredito que o caso seja grave; talvez uma fratura na espádua que não posso mais mover. Onde estou?


Na colina de Bersano, na casa de João Calosso,144 apelidado Brina, seu humilde servo. Também eu girei pelo mundo e tive necessidade dos outros. Oh! quantas aventuras quando ia a feiras e mercados!


Enquanto aguardamos o médico, conte-me alguma coisa.


Oh! quanta coisa teria para contar. Ouça uma. Anos atrás, no outono, havia ido a Asti145 com minha burrinha a fim de comprar provisões para o inverno. Na volta, assim que cheguei aos vales de Murialdo, o pobre animal, sobrecarregado, caiu num lamaçal e ficou imóvel no meio da estrada. Inútil todo esforço para levantá-lo. Era meia-noite, tempo escuro e chuvoso. Já não sabendo o que fazer, pus-me a gritar por socorro. Minutos depois, alguém de uma casa vizinha me ouviu. Veio um clérigo, um seu irmão, mais dois outros homens, portando tochas acesas. Ajudaram-me a descarregar a jumenta, tiraram-na da lama, e levaram-me a mim e todas as minhas coisas para a casa deles. Eu estava meio morto; tudo estava encharcado de lama. Limparam-me, recuperaram-me as forças com estupenda ceia, e depois me deram uma cama bem macia. Pela manhã antes de partir quis recompensá-los como cumpria. O clérigo recusou tudo, dizendo:


E não pode acontecer que amanhã tenhamos necessidade do senhor?


Ao ouvir essas palavras, senti-me comovido e o outro percebeu minhas lágrimas.


Sente-se mal? disse-me.


Não respondi –, gostei tanto do que o senhor contou que fiquei comovido.


Se soubesse o que fazer por aquela boa família! Que gente boa!


Como se chamava?


Família Bosco, apelidada de Boschetti. Mas por que é que está tão comovido? Acaso a conhece? Vive ainda e está bem aquele clérigo?


Aquele clérigo, meu bom amigo, é o padre ao qual está a recompensar com juros o que fez pelo senhor. É o mesmo que o senhor trouxe para sua casa, colocou nesta cama. A divina Providência quis mostrar-nos com este fato que quem dá, recebe.


É fácil imaginar a maravilha, a alegria daquele bom cristão e minha, ao ver que na desgraça Deus me havia feito cair nas mãos de um amigo. A mulher, uma irmã, outros parentes e amigos fizeram grande festa ao saber que estava em casa a pessoa da qual tantas vezes haviam ouvido falar. Não houve atenção que não me prodigalizassem. O médico, ao chegar, constatou que não havia fraturas, e assim em poucos dias pude retomar o caminho de volta à minha terra no mesmo cavalo, que havia sido encontrado. João Brina acompanhou-me até minha casa, e enquanto viveu conservamos estreita amizade.


Depois desse aviso tomei a firme resolução de para o futuro preparar os sermões para a maior glória de Deus e não para parecer douto e letrado.



11º

COLÉGIO ECLESIÁSTICO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS


Acabadas as férias, ofereciam-me três empregos: professor em casa de um senhor genovês, com o salário de 1 mil francos anuais; capelão de Murialdo, onde, pelo grande desejo de me verem com eles, os bons camponeses dobravam o estipêndio dos capelães anteriores;146 vice-pároco na minha terra. Antes de tomar uma resolução definitiva fui a Turim para aconselhar-me com o padre Cafasso, que se tornara desde alguns anos meu guia nas coisas espirituais e temporais. O santo sacerdote ouviu tudo, as ofertas de remuneração, a insistência de parentes e amigos, meu grande desejo de trabalhar. Sem hesitar um instante dirigiu-me estas palavras:


O senhor tem necessidade de estudar moral e pregação.147 Recuse por ora qualquer proposta e venha ao Colégio Eclesiástico.148


Segui prazerosamente o sábio conselho, e a 3 de novembro de 1841 entrei para o referido Colégio.


O Colégio Eclesiástico vem a ser um complemento dos estudos teológicos, porquanto nos nossos seminários estuda-se somente a dogmática especulativa; na moral estudam-se apenas as questões disputadas. Nele aprende-se a ser padre. Meditação, leitura, duas conferências por dia, aulas de pregação, vida recolhida, toda comodidade para estudar, leitura de bons autores, eram as ocupações às quais qualquer um devia aplicar-se a fundo.149


Duas celebridades estavam naquele tempo à frente de tão útil instituto: o teólogo Luís Guala150 e o padre José Cafasso. O teólogo Guala era o fundador da obra. Homem desinteressado, rico de ciência, prudência e coragem, fizera-se tudo para todos no tempo do governo de Napoleão I. Para que os jovens levitas pudessem, ao terminar os estudos, aprender a vida prática do sagrado ministério, fundou aquele maravilhoso viveiro, que tanto bem fez à Igreja, sobretudo extirpando algumas raízes de jansenismo que ainda persistiam entre nós.151


Entre outras questões agitava-se muito a do probabilismo e do probabiliorismo.152 À frente dos primeiros achavam-se Alasia, Antoine153 e outros rigorosos autores, cuja doutrina, a do probabiliorismo, podia levar ao jansenismo.


Os probabilistas seguiam a doutrina de Santo Afonso, que agora foi proclamado doutor da Santa Igreja.154 Sua autoridade foi por assim dizer referendada pelo Papa, uma vez que a Igreja afirmou que se podem ensinar, pregar e praticar suas doutrinas, nada havendo nelas que mereça censura.


O teólogo Guala situou-se com firmeza entre os dois partidos, e, pondo como centro de qualquer opinião a caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, conseguiu aproximar os extremos. As coisas chegaram a tal ponto que, graças ao teólogo Guala, Santo Afonso tornou-se o mestre das nossas escolas com as vantagens por tanto tempo desejadas, cujos salutares efeitos hoje experimentamos.155


Braço direito de Guala era o padre Cafasso. Com sua virtude a toda a prova, com sua calma prodigiosa, sua perspicácia e prudência pôde suavizar as asperezas que ainda permaneciam em alguns probabilioristas com relação aos seguidores de Santo Afonso.


No padre turinense teólogo Félix Golzio,156 também do Colégio, escondia-se verdadeira mina de ouro. Na sua vida modesta pouco barulho fez; mas com seu trabalho indefesso, com sua humildade e ciência era um verdadeiro apoio, ou melhor, o braço direito de Guala e Cafasso.


Prisões, hospitais, púlpitos, institutos de beneficência, doen­tes em suas próprias casas, cidades, povoados e, podemos dizer, os palácios dos grandes e os tugúrios dos pobres experimentaram os salutares efeitos do zelo desses três luminares do clero de Turim.


Eram eles os três modelos que a divina Providência me oferecia, e dependia só de mim seguir suas pegadas, doutrina e virtudes.


O padre Cafasso, meu guia havia seis anos, foi também meu diretor espiritual, e se fiz algum bem, devo-o a este digno eclesiástico, em cujas mãos coloquei minhas decisões, estudos e atividades.


Começou primeiro por levar-me às prisões,157 onde pude logo verificar como é grande a malícia e a miséria dos homens. Ver turmas de jovens, de 12 a 18 anos,158 todos eles sãos, robustos, e de vivo engenho, mas sem nada fazer, picados pelos insetos, à míngua de pão espiritual e temporal, foi algo que me horrorizou. O opróbrio da pátria, a desonra das famílias, a infâmia aos próprios olhos personificavam-se naqueles infelizes.159 Qual não foi, porém, minha admiração e surpresa quando percebi que muitos deles saíam com firme propósito de vida melhor e, não obstante, voltavam logo à prisão, da qual haviam saído poucos dias antes.


Nessas ocasiões descobri que muitos voltavam àquele lugar porque abandonados a si próprios. “Quem sabe – dizia de mim para mim –, se tivessem lá fora um amigo que tomasse conta deles, os assistisse e instruísse na religião nos dias festivos, quem sabe não se poderiam manter afastados da ruína ou pelo menos não diminuiria o número dos que retornam ao cárcere?”160


Comuniquei esse pensamento ao padre Cafasso, e com o seu conselho e com suas luzes pus-me a estudar a maneira de levá-lo a efeito, deixando o êxito nas mãos do Senhor, pois sem ele são inúteis todos os esforços dos homens.


l2°

FESTA DA IMACULADA CONCEIÇÃO E INÍCIO DO ORATÓRIO FESTIVO161


Mal entrei no Colégio de São Francisco, vi-me logo cercado por um bando de meninos que me acompanhavam em ruas e praças, até mesmo na sacristia da igreja do instituto. Não podia, entretanto, cuidar deles diretamente por falta de local. Um feliz encontro proporcionou-me a oportunidade de tentar a concretização do projeto em favor dos meninos que erravam pelas ruas da cidade, sobretudo dos que deixavam as prisões.


No dia solene da Imaculada Conceição de Maria, 8 de dezembro de 1841, estava, à hora marcada, vestindo-me com os sagra­dos paramentos para celebrar a santa missa. O sacristão José Comotti, vendo um rapazinho a um canto, convidou-o a ajudar-me a missa.


Não sei – respondeu ele, todo mortificado.


Vem – replicou o outro –, tens de ajudar.


Não sei – retorquiu o rapaz – nunca ajudei.


És um animal – disse o sacristão enfurecido. – Se não sabes ajudar a missa, que vens fazer na sacristia?


E, assim dizendo, tomou do espanador e começou a desferir golpes nas costas e na cabeça do pobrezinho.


Enquanto este fugia, gritei em voz alta:


Que está fazendo? Por que bater nele desse jeito? Que é que ele fez?


Se não sabe ajudar a missa, por que vem à sacristia?


Mas você agiu mal.


E que lhe importa?


Importa muito, é um meu amigo; chame-o imediatamente, preciso falar com ele.


Oi, rapaz! – pôs-se a chamar; e correndo atrás dele e garantindo-lhe melhor tratamento trouxe-o para junto de mim,


O rapaz aproximou-se a tremer e a chorar pelas pancadas recebidas.


Já ouviste missa? – disse-lhe com a maior amabilidade que pude.


Não – respondeu.


Vem então ouvi-la. Depois gostaria de falar de um negócio que vai-te agradar.


Prometeu. Era meu desejo aliviar o sofrimento do pobrezinho e não deixá-lo com a má impressão que lhe causara o sacristão.


Celebrada a santa missa e terminada a ação de graças, levei o rapaz ao coro. Com um sorriso no rosto e garantindo-lhe que já não devia recear novas pancadas, comecei a interrogá-lo assim:


Meu bom amigo, como te chamas?162


Bartolomeu Garelli.163


De onde és?


De Asti.


Tens pai?


Não, meu pai morreu.


E tua mãe?


Morreu também.


Quantos anos tens?


Dezesseis.


Sabes ler e escrever?


Não sei nada.164


Já fizeste a Primeira Comunhão?


Ainda não.


Já te confessaste?


Sim, quando era pequeno.


E agora, vais ao catecismo?


Não tenho coragem.


Por quê?


Porque meus companheiros mais pequenos sabem o catecismo, e eu, tão grande, não sei nada. Por isso fico com vergonha de ir a essas aulas.


Se te desse catecismo à parte, virias?


Então sim.


Gostarias que fosse aqui mesmo?


Com muito gosto, contanto que não me batam.


Fica sossegado, que ninguém te maltratará. Pelo contrário, serás meu amigo. Terás de haver-te só comigo e mais ninguém. Quando queres começar?


Quando o senhor quiser.


Esta tarde serve?


Sim.


E se fosse agora mesmo?


Sim, agora mesmo. Que bom!


Levantei-me e fiz o sinal-da-cruz para começar; meu aluno não o fez porque não sabia. Naquela primeira aula procurei ensinar-lhe a fazer o sinal-da-cruz e a conhecer Deus Criador e o fim por que nos criou. Embora tivesse pouca memória, conseguiu, com assiduidade e atenção, aprender em poucos domingos as coisas necessárias para fazer uma boa Confissão e, pouco depois, a sagrada Comunhão.


A esse primeiro aluno165 juntaram-se outros mais. Durante aquele inverno limitei-me a alguns adultos que tinham necessidade de catequese especial, sobretudo aos que saíam da cadeia. Pude então constatar que os rapazes que saem de lugares de castigo, caso encontrem mão bondosa que deles cuide, os assista nos domingos, procure arranjar-lhes emprego com bons patrões e visitá-los de quando em quando ao longo da semana, tais rapa­zes dão-se a uma vida honrada, esquecem o passado, tornam-se bons cristãos e honestos cidadãos. Essa é a origem do nosso Oratório,166 que, abençoado por Deus, teve um desenvolvimento que então eu não podia imaginar.



13°

O ORATÓRIO EM 1842


Durante o inverno preocupei-me em consolidar o pequeno Oratório. Embora minha finalidade fosse recolher somente os meninos em maior perigo, de preferência os que deixavam a cadeia, todavia para ter uma base sobre a qual fundar a disciplina e a moralidade convidei alguns outros de boa conduta e já instruídos. Eles me ajudavam a manter a ordem e também a entoar cantos sacros; percebi assim desde o princípio, que sem a distribuição de livros de canto e de leitura amena, as reuniões nos dias de guarda seriam como um corpo sem alma.


Na festa da Purificação (2 de fevereiro de 1842), que então era festa de preceito,167 já tinha uns 20 meninos, com os quais pudemos pela primeira vez cantar “Louvemos Maria”.


Na Festa da Anunciação já éramos 30. Nesse dia fez-se uma festinha. Pela manhã os alunos aproximaram-se dos santos sacra­mentos; à tarde entoou-se um canto e depois do catecismo narrou-se um exemplo à guisa de sermão. Como o pequeno coro em que até então nos reuníamos se havia tornado muito acanhado, mudamo-nos para a capela, perto da sacristia.


O Oratório funcionava assim: em todos os domingos e dias santos dava-se comodidade para se aproximarem dos santos sacramentos da Confissão e da Comunhão; marcava-se ainda um sábado e um domingo por mês para cumprir esse dever religioso. À tarde, em hora determinada, entoava-se um cântico, dava-se catecismo, em seguida explicava-se um exemplo e por vezes distribuía-se alguma coisa a todos, outras por sorteio.


Entre os jovens que freqüentaram o Oratório nos seus inícios, há que assinalar José Buzzetti,168 que foi de assiduidade exemplar. Afeiçoou-se tanto a Dom Bosco e às reuniões dominicais, que renunciou à ida para casa com a família (em Caronno Ghiringuello), como costumavam fazer os demais irmãos e amigos. Distinguiam-se ainda seus irmãos Carlos,169 Ângelo, Josué; João Gariboldi e seu irmão, então simples ajudantes de pedreiro e agora mestres-de-obras.


De modo geral o Oratório compunha-se de canteiros, pedreiros, estucadores, calceteiros, rebocadores e de outros que vinham de povoados distantes. Como não conheciam as igrejas nem ninguém, expunham-se ao perigo de perverter-se, especialmente nos domingos.


O bom teólogo Guala e o padre Cafasso mostravam-se contentes com essas reuniões de meninos e forneciam-me de bom grado santinhos, folhetos, opúsculos, medalhas e crucifixos para presente. Por vezes proporcionaram-me recursos para vestir alguns dos mais necessitados e dar pão a outros por várias semanas, até que pudessem com o trabalho ganhar o próprio sustento. Mais ainda, como o número de meninos tivesse crescido muito, permitiram que reunisse algumas vezes o meu pequeno exército para brincar no pátio contíguo. Houvesse mais espaço, teríamos chegado bem depressa a várias centenas; mas tivemos de nos contentar com uns 80.


Quando os meninos se aproximavam dos santos sacramentos, o próprio teólogo Guala ou o padre Cafasso costumavam vir visitar-nos e narrar algum episódio edificante.


Desejando que se fizesse uma bela festa em honra de Sant’Ana, padroeira dos pedreiros, o teólogo convidou-os todos após as funções da manhã a tomar café com ele. Reuniram-se quase uns 100 na grande sala de conferências. Ali foram abundantemente servidos de café, leite, chocolate, pãezinhos, roscas, brioches, pastas e outros pães de que tanto gostam os meninos. Pode-se imaginar a grande repercussão dessa festa, e quantos teriam vindo se o local permitisse!


Consagrava o domingo inteiro à assistência dos meus meninos; durante a semana ia visitá-los em seus trabalhos nas oficinas e fábricas.170 Isso muito consolava os rapazes, que viam um amigo interessar-se por eles; e agradava aos patrões, que ficavam satisfeitos por terem sob sua dependência rapazes assistidos durante a semana e sobretudo nos domingos, os dias mais perigosos.


Todos os sábados ia às prisões com os bolsos cheios de fumo, ou de frutas, ou de pãezinhos, sempre com o fito de atender aos rapazes que tinham a desgraça de serem encarcerados, e assisti-los, torná-los amigos e conseguir que viessem ao Oratório ao deixarem o lugar de castigo.171


14º

SAGRADO MINISTÉRIO - ESCOLHA DE UM CARGO NO REFÚGIO (setembro de 1844)


Naquele tempo comecei a pregar em público em algumas igrejas de Turim,172 no Hospital da Caridade, no Asilo das Virtudes, nas prisões, no Colégio de São Francisco de Paula,173 dando tríduos, novenas ou exercícios espirituais. Após os dois anos de moral fiz o exame de confissão.174 Pude dessa maneira cultivar com maior proveito a disciplina, a moralidade e o bem das almas dos meus rapazes nas prisões, no Oratório e onde fosse mister.


Era para mim consolador ver meu confessionário, durante a semana e nomeadamente nos domingos, rodeado de 40 ou 50 rapazes, esperando horas e horas que chegasse a vez de se confessarem. Foi essa a vida normal do Oratório por quase três anos, isto é, até outubro de 1844.


Entretanto, a Providência ia preparando novidades, mudanças e também tribulações.


Ao fim do triênio de moral175 devia decidir-me por um determinado setor do sagrado ministério. O velho e alquebrado tio de Comollo, o padre José Comollo, vigário coadjutor de Cinzano, com o parecer do arcebispo, havia-me convidado para ecônomo e administrador da paróquia, trabalho que não mais podia fazer por causa da idade e dos achaques. O teólogo Guala ditou-me a carta de agradecimento ao arcebispo Fransoni, mas ao mesmo tempo me preparava para outra coisa.


Um dia o padre Cafasso me chamou e disse:176


O senhor terminou os estudos; deve agora trabalhar. A messe é muito grande nestes tempos. A que se sente mais inclinado?


Ao que lhe aprouver indicar-me.


Há três trabalhos: vice-pároco em Buttigliera d’Asti, repe­tidor de moral, aqui no Colégio, diretor do Pequeno Hospital, ao lado do Refúgio.177 Que escolhe?


O que o senhor julgar melhor.


Não se sente inclinado a uma coisa mais que a outra?


Minha propensão é para cuidar da juventude. O senhor faça de mim o que quiser; verei no seu conselho a vontade de Deus.


Mas neste momento que há no seu coração? Em que pensa?


Neste momento parece-me estar no meio de uma multidão de jovens que me pedem ajuda.


Vá então de férias por algumas semanas. Quando voltar lhe direi o que deve fazer.


Após as férias o padre Cafasso deixou passar algumas semanas sem nada me dizer; eu também não perguntei.178


Por que não me pergunta o que deve fazer? – disse-me um dia.


Porque quero reconhecer a vontade de Deus na sua deliberação e não quero que nela entre a minha vontade.


Faça a trouxa e vá com o teólogo Borel; lá será diretor do Pequeno Hospital de Santa Filomena;179 trabalhará também na obra do Refúgio. Entretanto Deus lhe mostrará o que deve fazer pela juventude,


À primeira vista esse conselho parecia contrariar minhas inclinações, porque dirigir um hospital, pregar e confessar num instituto de mais de quatrocentas jovens não me deixaria tempo para nenhum outro trabalho. Sem embargo, esta era a vontade de Deus, como pude depois me certificar.


Já no primeiro instante em que conheci o teólogo Borel vi nele um santo sacerdote, um modelo digno de admiração e imitação. Toda vez que podia entreter-me com ele, recebia lições de zelo sacerdotal, bons conselhos e estimulo ao bem. Nos três anos passados no Colégio fui várias vezes convidado por ele a ajudar nas funções sagradas, a confessar, a pregar com ele, de maneira que meu campo de trabalho já me era conhecido e de alguma maneira familiar.


Freqüentes vezes conversamos longa­mente sobre as regras a serem seguidas para ajudar-nos mutua­mente nas visitas aos cárceres e no cumprimento dos deveres a nós confiados, e ao mesmo tempo assistir os meninos, cuja moralidade e abandono exigiam cada vez mais o cuidado dos sacerdotes. Mas como fazer? Onde reunir esses rapazes?


O aposento – disse o teólogo Borel – destinado ao senhor,180 pode por algum tempo servir para reunir os rapazes que hoje vão a São Francisco de Assis. Quando pudermos ir para o edifício preparado para os padres no Pequeno Hospital, então havemos de procurar um lugar melhor.



15º

UM NOVO SONHO


No segundo domingo de outubro daquele ano (1844) devia anunciar aos meninos que o Oratório ia mudar-se para Valdocco. Mas a incerteza do lugar, dos meios, das pessoas deixava-me muito preocupado. Na tarde anterior fui dormir com o coração inquieto. Tive naquela noite outro sonho,181 que parece um apêndice do que tive nos Becchi aos 9 anos. Julgo oportuno contá-lo em pormenores.


Sonhei que estava no meio de uma multidão de lobos, cabras e cabritos, cordeiros, ovelhas, bodes, cães e pássaros. Faziam todos juntos um barulho, uma desordem, ou melhor, uma inferneira de espantar os mais corajosos. Ia fugir, quando uma senhora, muito bem trajada à moda de pastorinha, fez um gesto para que seguisse e acompanhasse o estranho rebanho; enquanto isso se punha à frente. Estivemos vagando por vários lugares; fizemos três estações ou paradas. A cada parada muitos desses animais convertiam-se em cordeiros, cujo número ia sempre aumentando. Depois de muito andar, encontrei-me num prado onde os animais saltitavam e comiam juntos, sem que nenhum deles tentasse prejudicar os outros.182


Esgotado de cansaço, queria sentar-me à beira de um caminho aí perto, mas a pastorinha convidou-me a continuar andando. Após andar um pouco, encontrei-me em vasto pátio rodeado de pórticos, em cuja extremidade se erguia uma igreja. Percebi então que quatro quintos dos animais haviam-se transformado em cordeiros. O número deles tornou-se depois muito maior. Naquele momento chegaram alguns pastorzinhos para vigiá-los. Mas ficavam pouco tempo e iam-se embora. Aconteceu então uma coisa maravilhosa. Muitos cordeiros convertiam-se em pastorzinhos, que cresciam e passavam a tomar conta dos outros. Com o grande aumento do número dos pastorzinhos, eles se separavam e se dirigiam a outros lugares, onde reuniam alguns animais estranhos e os levavam a outros redis.


Eu queria ir embora, porque parecia estar na hora de rezar missa, mas a pastora me convidou a olhar para o sul. Olhei e vi um campo semeado de milho, batatas, couves, beterrabas, alface e muitas outras verduras.


Olha outra vez – disse-me.


Olhei de novo. Vi então uma igreja estupenda e alta. Um conjunto de música instrumental e vocal convidava-me a cantar missa. No interior da igreja havia uma faixa branca, na qual estava escrito em caracteres garrafais: “Hic domus mea, inde gloria mea”.183


Sempre em sonho, quis perguntar à pastora onde é que eu estava, que significava aquele andar e parar, a casa, a igreja e depois outra igreja mais.


Tudo haverás de compreender quando com teus olhos materiais vires realizado o que agora vês com os olhos da mente.


Parecendo-me, porém, estar acordado, disse:


Eu vejo claro e vejo com os olhos materiais. Sei aonde vou e o que faço.


Naquele instante soou o sino de Ave-Marias na igreja de São Francisco, e acordei.


O sonho durou quase a noite inteira, com muitos detalhes. Por então pouco compreendi o significado, porque não lhe dava muito crédito; mas fui entendendo as coisas à proporção que se iam realizando. Posteriormente, junto com outro sonho,184 serviu-me de programa em minhas decisões.



16º

TRANSFERÊNCIA DO ORATÓRIO PARA O REFÚGIO


No segundo domingo de outubro (13), consagrado à Maternidade de Maria, comuniquei aos meus meninos a mudança do Oratório para o Refúgio. No primeiro momento ficaram perturbados; mas quando lhes disse que lá nos aguardava um amplo local, todo ele para nós, para cantar, correr, saltar e brincar, ficaram contentes e aguardavam com impaciência o domingo seguinte para ver as novidades que iam imaginando.


No terceiro domingo desse mês de outubro, dia consagrado à Pureza de Nossa Senhora, uma turba de meninos de várias idades e condições correu para Valdocco, pouco depois do meio-dia, à procura do novo Oratório.


Onde é o Oratório? Onde está Dom Bosco? – indagavam por toda parte.


Ninguém sabia responder-lhes, porque ninguém na vizinhança ouvira sequer falar de Dom Bosco e do Oratório. Julgando-se burlados, os meninos levantavam a voz e insistiam em suas pretensões. Os vizinhos, de sua vez, julgando-se insultados, respondiam com ameaças e pancadas. As coisas iam-se complicando, quando eu e o teólogo Borel, ouvindo a gritaria, saímos para ver o que estava acontecendo. Assim que chegamos, cessou o barulho e a discussão. Apinharam-se em redor de nós, perguntando onde ficava o Oratório.


Dissemos que o verdadeiro Oratório ainda não estava pronto, que por enquanto viessem ao meu quarto, que era espaçoso e serviria muito bem. Naquele domingo, de fato, as coisas correram bastante bem. Mas no domingo seguinte, aos antigos alunos juntaram-se outros da vizinhança e já não sabia onde colocá-los. Quarto, corredor, escada, tudo estava apinhado de meninos. No dia de Todos os Santos pus-me a confessar, eu e o teólogo Borel, e todos queriam confessar-se. Mas como fazer, se éramos 2 confessores e os meninos mais de 200? Um queria acender o fogo, outro apressava-se em apagá-lo. Um trazia lenha, outro água; baldes, torqueses, enxadas, regadores, bacias, cadeiras, sapatos, livros, tudo se espalhava numa admirável confusão pela boa vontade de ordenar e arrumar as coisas.


Assim não é possível continuar – disse o bom teólogo –, é preciso encontrar um local mais adequado.


Todavia, tivemos de ficar outros seis domingos nesse local estreito, que vinha a ser o quarto que se encontra em cima do vestíbulo da primeira porta de entrada do Refúgio.


Enquanto isso, falou-se com o arcebispo Fransoni, o qual compreendeu a importância do nosso projeto.185


Vão para a frente – disse-nos ele –, façam quanto julgarem oportuno para o bem das almas; dou-lhes todas as faculdades de que possam precisar.186 Falem com a marquesa Barolo. Talvez ela lhes possa facilitar um local mais cômodo. Mas, digam-me uma coisa: esses meninos não poderiam ir às suas respectivas paróquias?


Na maioria são rapazes de fora, e passam em Turim somente uma parte do ano. Não sabem sequer a que paróquia pertencem. Muitos deles são maltrapilhos, falam dialetos difíceis, por isso pouco entendem e pouco são entendidos pelos outros. Alguns já são crescidinhos e não se atrevem a juntar-se aos pequenos nas aulas.


Então – replicou o arcebispo –, é preciso um lugar à parte, destinado a eles. Vão, pois. Eu os abençôo e ao projeto também. Venham tranqüilamente procurar-me e farei sempre o que puder para ajudá-los.


Foi-se falar com a marquesa Barolo, e como até agosto do ano seguinte o Pequeno Hospital não seria aberto, a caridosa senhora concordou que transformássemos em capela dois amplos aposentos destinados a salas de estar dos padres do Refúgio, quando para lá mudassem.


Para ir, pois, ao novo Oratório, passava-se onde está agora a porta do hospital, e, pela pequena viela que separa a obra do Cottolengo do citado edifício, chegava-se até à atual residência dos padres, e pela escada interna subia-se ao 3° andar.


Era o lugar escolhido pela divina Providência para a primei­ra igreja do Oratório. Começou a chamar-se de São Francisco de Sales por duas razões: primeira, porque a marquesa Barolo tencionava fundar uma congregação de sacerdotes sob esse título, e com essa intenção encomendara o quadro do santo que ainda hoje se pode ver à entrada do local; segunda, porque como tal ministério exige grande calma e mansidão, havíamo-nos colocado sob a proteção deste santo,187 para que nos alcançasse de Deus a graça de imitá-lo em sua extraordinária mansidão e na conquista das almas. Outra razão era a de colocar-nos sob sua proteção a fim de que do céu nos ajudasse a imitá-lo no combate aos erros contra a religião, especialmente do protestantismo, que começava a insinuar-se insidiosamente nos nossos povoados e sobretudo na cidade de Turim.


Por isso, no ano de 1844, dia 8 de dezembro, consagrado à Imaculada Conceição de Maria, dia de intenso frio, em meio a muita neve que então caía compacta do céu, foi benta com a autorização do arcebispo a suspirada capela, celebrou-se a santa missa, vários meninos confessaram-se e comungaram, e eu celebrei a sagrada função, derramando lágrimas de consolação, porque via estabilizar-se a obra do Oratório,188 destinada a entreter a juventude mais abandonada e periclitante após haver cumprido os deveres religiosos na igreja.189



17º

O ORATÓRIO EM SÃO MARTINHO DOS MOINHOS190 -DIFICULDADES - A MÃO DO SENHOR


Na capela anexa ao edifício do Pequeno Hospital de Santa Filomena, o Oratório ia-se encaminhando muito bem.191 Nos domingos e dias santos acudiam muitos rapazes para confessar-se e comungar. Após a missa fazia-se breve explicação do Evangelho. Depois do meio-dia, catecismo, cantos sacros, breve instrução, ladainhas de Nossa Senhora e bênção. Nos intervalos, os jovens entretinham-se em agradável recreio com jogos diversos. Isso acontecia na pequena viela que ainda hoje existe entre o mosteiro das madalenas e a rua. Lá passamos sete meses e acreditávamos haver encontrado o paraíso terrestre, quando nos vimos obriga­dos a abandonar o acolhedor abrigo e ir à procura de outro.


A marquesa Barolo,192 embora visse com bons olhos qualquer obra de caridade, todavia, aproximando-se a hora de abrir seu Pequeno Hospital (abriu-se a 10 de agosto de 1845), decidiu que o nosso Oratório saísse de lá. É verdade que o local destinado a capela, escola ou recreios dos jovens não tinha comunicação alguma com a parte interna do estabelecimento; as próprias persianas estavam fixas e voltadas para cima; não obstante, foi preciso obedecer.193 Fez-se um apelo insistente à prefeitura de Turim194 e graças a uma recomendação do arcebispo Fransoni, conseguimos195 que o Oratório se transladasse para a igreja de San Martino dei Molazzi, ou dos moinhos da cidade.196


Num domingo de julho de 1845, pegam-se bancos, genuflexórios, candelabros, algumas cadeiras, cruzes, quadros e quadrinhos, e cada um carregando o que podia, em meio à algazarra, risos e mágoa,197 fomos, à maneira de uma emigração popular, estabelecer nosso quartel-general no lugar acima indicado.


O teólogo Borel fez um discurso de ocasião tanto antes da partida como na chegada à nova igreja.


O digno ministro do santuário, num estilo popular, mais único do que raro, exprimiu estes pensamentos:



As couves, queridos jovens, se não são transplantadas não se fazem bonitas e grandes. O mesmo acontece com o nosso Oratório. Até agora mudou muitas vezes de um lugar para outro; mas nos vários lugares onde acampou por algum tempo conseguiu sempre um bom incremento, com grande vantagem para os nossos jovens. São Francisco de Assis viu-o começar como catequese entremeada de cantos; lá não era possível fazer mais. O Refúgio foi por algum tempo como uma parada, dessas que fazem os trens nas estações, e serviu para que os nossos jovens não ficassem privados naqueles poucos meses da ajuda espiritual das confissões, catecismos, pregações e agradáveis entretenimentos.


Ao lado do Pequeno Hospital começou um verdadeiro Ora­tório, e parecia-nos haver encontrado a verdadeira paz, um bom lugar para nós; mas a divina Providência dispôs que tivéssemos que deixar o local e vir aqui para São Martinho. Vamos ficar aqui por muito tempo? Não sabemos; esperamos que sim. Seja como for, acreditamos que, como as couves transplantadas, nosso Oratório haverá de crescer em número de jovens que amam a virtude, crescerá o interesse pelo canto, pela música, pelas escolas noturnas e também diurnas.


Vamos ficar aqui muito tempo? Deixemos de lado essa preocupação e coloquemo-nos nas mãos de Deus, que ele cuidará de nós. Uma coisa é clara: ele nos abençoa, ajuda e socorre; ele pensará no melhor lugar para promover sua glória e o bem das nossas almas. Mas como as graças de Deus formam uma espécie de corrente, de sorte que um anel se une a outro anel, assim, se aproveitarmos as primeiras graças, podemos estar seguros de que Deus concederá outras maiores; e se correspondermos aos fins próprios do Oratório, caminharemos de virtude em virtude, até chegarmos à pátria bem-aventurada, onde a infinita misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo dará o prêmio que cada um houver merecido com suas boas obras”.


Grande número de meninos assistiu a essa solene função; e com a máxima emoção entoou-se um Te Deum de ação de graças.


Aqui as práticas religiosas faziam-se como no Refúgio. Mas não se podia celebrar missa, nem dar a bênção à tarde. Por conseguinte, não podia haver comunhão, que é o elemento fundamental da nossa instituição. O próprio recreio era bastante perturbado, paralisado, porque os meninos eram obrigados a brincar na rua e na pracinha frente à igreja, por onde passavam continuamente pedestres, carros, cavalos e carroças. Como não podíamos dispor de coisa melhor, agradecíamos ao céu quanto nos havia concedido, aguardando melhor lugar; contudo sobre-vieram novos transtornos.


Moleiros, ajudantes, empregados, não podendo suportar os saltos, os cantos e por vezes a algazarra dos nossos alunos, ficaram alarmados e de comum acordo apresentaram queixa à Prefeitura. Começou então a correr voz que aquelas reuniões de jovens eram perigosas, que de um momento para outro podiam provocar motins e revoltas.198 Diziam isso apoiados na obediência pronta com que se submetiam ao mínimo sinal do superior. Acrescentava-se sem razão que os meninos causavam muitos estragos na igreja, fora da igreja, no calçamento; parecia que Turim viria abaixo caso continuássemos a nos reunir naquele lugar.


Nossos males chegaram ao cúmulo quando de uma carta escrita por um secretário dos Moinhos ao prefeito de Turim, a qual recolhia toda a classe de rumores e exagerava prejuízos imaginários(*) e, afirmando ainda ser impossível às famílias que se dedicavam àqueles trabalhos

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(*) O prefeito mandou inspeccionar o lugar, e encontraram as paredes, o calçamento, o pavimento e todas as coisas da Igreja em perfeito estado. O único estrago consistia num pequeno risco na parede que um menino fizera com a ponta de pequeno prego.

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desempenharem suas obrigações e gozarem de tranqüilidade. Chegou-se até a dizer que aquilo era um centro de imoralidade. Não obstante estar persuadido de que a informação carecia de fundamento, o prefeito escreveu violenta carta, mandando transladar imediatamente nosso Oratório para outro sítio.199 Consternação geral, lamentos inúteis! Tivemos de ir embora.


Convém, todavia, observar que o secretário, chamado... (não se publique nunca), autor da famosa carta, escreveu pela última vez, pois foi acometido de forte tremor na mão direita e faleceu três anos depois. Deus dispôs que seu filho ficasse abandonado no meio da rua e obrigado a pedir pão e asilo no inter­nato que mais tarde se abriu em Valdocco.



18°

O ORATÓRIO EM SÃO PEDRO IN VINCULIS - A CRIADA DO CAPELÃO - UMA CARTA - UM TRISTE ACIDENTE200


Como o prefeito e, de modo geral, a Prefeitura estivessem convencidos da inconsistência de quanto se escrevia contra nós, bastou um simples pedido, e a recomendação do arcebispo, para que nos pudéssemos reunir no pátio e na capela do cenotáfio do Santíssimo Crucifixo,201 chamado vulgarmente São Pedro in vinculis.202 Foi assim que, depois de dois meses em São Martinho, tivemos de transladar-nos, com amargo pesar, para outro local, que, por outro lado, era bem melhor para nós. Os longos pórticos, o espaçoso pátio, a igreja apropriada para as sagradas funções, tudo serviu para despertar entusiasmo nos meninos, que pareciam loucos de alegria.


No entanto, existia ali um terrível inimigo por nós ignorado. Não era nenhum defunto, dos que numerosos repousavam nas sepulturas ao lado; era uma pessoa viva, a criada do capelão.203 Nem bem começou a ouvir os cantos e as vozes, e vamos dizer, a algazarra dos alunos, saiu furiosa para fora de casa e com a touca de través e as mãos à cintura, pôs-se a apostrofar a multidão que estava a brincar.


Somavam-se às suas invectivas uma menina, um cão, um gato e todo um galinheiro, de modo que parecia iminente uma guerra européia. Procurei acalmá-la, observando que os meninos não tinham má vontade; brincavam e não cometiam nenhum pecado. Voltou-se então contra mim e presenteou-me com a parte que me tocava.


Naquele momento pareceu-me oportuno interromper o recreio, dar um pouco de catecismo e, depois do terço na igreja, partimos com a esperança de encontrar maior paz no domingo seguinte. Aconteceu precisamente o contrário. Quando, ao entardecer, o capelão204 chegou, a boa criada pôs-se ao lado dele, e chamando Dom Bosco e seus meninos de revolucionários, profanadores dos lugares santos e coisas piores, obrigou o bom amo a escrever uma carta à Prefeitura. Fê-lo por ditado da criada, mas com tamanha dureza, que imediatamente foi dada ordem de prisão a quem quer de nós que por aí aparecesse.


Dói dizê-lo, mas foi a última carta do capelão padre Tésio. Escreveu segunda-feira, e, poucas horas depois,205 teve um ataque apoplético, morreu quase de repente. Passam dois dias e sorte idêntica tocou à criada.


Os fatos espalharam-se e causaram profunda impressão nos jovens e em todos os que tomaram conhecimento da notícia. A pressa de vir e inteirar-se dos tristes acontecimentos foi grande em todos. Como, todavia, estavam proibidas as reuniões em São Pedro in vinculis e não havia sido possível avisar em tempo, ninguém, nem mesmo eu, estava em condições de saber onde encontrar um lugar para a próxima reunião.



19°

O ORATÓRIO NA CASA MORETTA206


No domingo seguinte à proibição, uma multidão de meninos dirigiu-se a São Pedro in vinculis, porque não fora possível avisá-los com antecedência. Encontrando tudo fechado, vieram em massa ao meu quarto no Pequeno Hospital. Que fazer? Via-me com um amontoado de apetrechos de igreja e de recreio; uma turba de meninos seguia-me os passos por toda a parte, e eu não tinha um palmo de terreno onde reuni-los.207


Ocultando minhas preocupações, mostrava-me de bom humor e a todos distraía, contando mil maravilhas do futuro Oratório, que naquele momento existia apenas na minha mente e nos desígnios de Deus. Para de algum modo mantê-los ocupados nos dias santificados, levava-os alguma vez a Sassi,208 outra a Nossa Senhora do Pilone, a Nossa Senhora de Campagna, ao monte dos capuchinhos e mesmo a Superga.209


Nessas igrejas procurava, de manhã, celebrar para eles a missa, com explicação do Evangelho. À tarde havia breve cate­cismo, cantos sacros, alguns fatos; em seguida, algumas voltas pelos arredores e passeios até à hora de retornar às famílias. Parecia que situação tão crítica ia reduzir a cinzas qualquer plano de oratório. Não obstante, ia crescendo de maneira extraordinária o número dos freqüentadores.


Já era chegado o mês de novembro (1845), estação pouco oportuna para passeios ou caminhadas fora da cidade. De acordo com o teólogo Borel, alugamos três quartos da casa do padre Moretta, que é a que fica perto, quase na frente da atual igreja de Maria Auxiliadora. Essa casa, hoje, à força de restaurações, foi quase refeita. Lá passamos quatro meses,210 apertados pela pequenez do local, mas contentes por poder, pelo menos naqueles quartos, reunir os nossos alunos, instruí-los e sobretudo dar-lhes comodidade para se confessarem. E até começamos, naquele inverno, as aulas noturnas.


Era a primeira vez211 que em nossas bandas se falava desse tipo de escola; houve, assim, grande repercussão, ficando alguns a favor, outros contra.212


Foi também por esse tempo que se espalharam alguns diz-que-diz-ques multo estranhos. Alguns qualificavam Dom Bosco de revolucionário, outros diziam-no louco ou hereje. Arrazoavam desta maneira: o oratório afasta os meninos das paróquias, portanto o pároco vai ficar com a igreja vazia, e não poderá conhecer os meninos dos quais deverá prestar contas no tribunal de Deus. Que Dom Bosco, pois, mande os meninos às suas paróquias e deixe de reuni-los fora delas.


Assim me falavam dois respeitáveis párocos desta cidade, que me visitaram também em nome dos seus colegas.


Os jovens que eu reúno – respondi – não diminuem a freqüência às paróquias, porque a maior parte deles não conhece pároco nem paróquia.


Por quê?


Porque são quase todos de fora, largados pelos pais nesta cidade; ou para cá vieram à procura de trabalho e não puderam encontrar. Os que de ordinário freqüentam minhas reuniões são saboianos, suíços, valdostanos, bielenses, novarenses, lombardos.


Não poderia mandar esses meninos às respectivas paróquias?


Não sabem quais são.


Por que o senhor não ensina?


Impossível. A distância da pátria, a diversidade de língua, a incerteza do domicílio e o desconhecimento dos lugares tornam-lhes difícil, para não dizer impossível, ir às paróquias. Além do mais, muitos deles já são adultos, beirando os 18 e os 20 ou mesmo 25 anos de idade, e são completamente ignorantes em religião. Quem os convencerá a misturar-se com meninos de 8 ou 10 anos, muito mais instruídos que eles?


Não poderia o senhor mesmo levá-los e dar-lhes catecismo nas igrejas paroquiais?


Quando muito poderia ir a uma paróquia, mas não a todas. Poder-se-ia ajeitar isso se cada pároco quisesse vir ou mandar alguém recolher estes meninos e guiá-los às respectivas paróquias. Mas mesmo assim é difícil, porque muitos deles são levianos e mesmo travessos; eles vêm unicamente porque atraídos pelos brinquedos e passeios que costumamos dar, e assim se decidem a freqüentar também os catecismos e outras práticas de piedade. Por conseguinte, seria preciso que todas as paróquias tivessem também um lugar adequado onde reunir e entreter esses rapazes em agradável passatempo.


Isso é impossível. Não há locais, nem padres que disponham do domingo para isso.


E então?


E então faça como melhor lhe parecer; e nós decidiremos o que for conveniente fazer.


Entre os párocos de Turim agitou-se a questão: promover os oratórios ou reprová-los? Houve opiniões pró e contra. O cura de Borgo Dora,213 padre Agostinho Gattino, com o teólogo Ponzati,214 cura de Santo Agostinho, trouxe-me a resposta nestes termos:


Os párocos da cidade de Turim, reunidos em suas habituais conferências, trataram da conveniência dos Oratórios. Pesados os prós e os contras, ante a impossibilidade de cada pároco montar um oratório em sua respectiva paróquia, encorajam o padre Bosco a continuar, enquanto não se tomar decisão em contrário.


Chegava, entrementes, a primavera de 1846. A casa Moretta era habitada por muitos inquilinos, os quais, atordoados pela algazarra e pelo barulho contínuo dos que se movimentavam de cá para lá e de lá para cá, queixaram-se com o dono, declarando que se não parassem logo aquelas reuniões, iriam todos embora. Assim o bom sacerdote Moretta viu-se obrigado a comunicar-nos que devíamos procurar imediatamente outro local onde reunir-nos, se quiséssemos manter em vida nosso oratório.



20°

O ORATÓRIO NUM PRADO - PASSEIO A SUPERGA


Com grande pesar e não pequenos inconvenientes para nossas reuniões, em março de 1846 tivemos de deixar a casa Moretta e alugar um prado dos irmãos Filippi,215 onde atualmente existe uma fundição de ferro gusa. Encontrei-me lá a céu aberto, em meio a um prado, cercado de fraca sebe, que deixava passar livremente quem quisesse entrar. Os meninos eram de 300 a 400. Encontravam seu paraíso terrestre naquele ora­tório, cujo teto e paredes eram a abóbada celeste.216


Mas como fazer as práticas de piedade num lugar assim? Dava-se o catecismo como se podia, entoavam-se cânticos, cantavam-se as vésperas; depois o teólogo Borel ou eu subíamos a uma elevação qualquer ou a uma cadeira e fazíamos uma peque­na prática aos jovens, que ansiosos se acercavam para ouvir-nos.


As confissões faziam-se da seguinte maneira: nos dias santificados, bem cedo, eu estava no prado, onde já alguns esperavam. Sentava-me na divisa e ouvia a confissão de uns, enquanto outros faziam a preparação ou a ação de graças, depois do que a maioria recomeçava o recreio.


A determinada hora da manhã, soava uma trombeta e os rapazes se reuniam. A um segundo toque fazia-se silêncio e eu podia falar e marcar onde iríamos ouvir a santa missa e fazer a Comunhão.


Por vezes, como disse, íamos a Nossa Senhora de Campagna, à igreja da Consolata, a Stupinigi217 ou aos lugares já mencionados. Como fazíamos freqüentes caminhadas até lugares distantes, vou contar uma que fizemos a Superga. Por ela se ficará sabendo como se organizavam as outras.


Reunidos os jovens no prado, dava-se tempo para que brincassem com bochas, malhas, andas etc.; em seguida, tocava-se um tambor e depois uma trombeta, anunciando a reunião e a partida. Tinha-se o cuidado de que antes todos ouvissem a missa; e pouco depois das 9 horas partíamos rumo a Superga. Alguns carregavam cestos de pão, outros queijo ou salame, frutas ou outras coisas necessárias para passar o dia. Guardava-se silêncio até sair da cidade, mas sempre em fila e em ordem.


Chegando ao pé da subida que leva à basílica, topei com um estupendo cavalinho, ajaezado a primor, que o cura da igreja, padre Anselmetti,218 me havia enviado. Aí recebi um bilhete do teólogo Borel, que nos havia precedido. Nele dizia: “Venha tranqüilamente com nossos queridos jovens; a sopa, o prato e o vinho estão preparados”. Montei a cavalo e li o bilhete em voz alta. Todos se apinharam ao redor do cavalo. Após a leitura, puseram-se unanimemente a aplaudir e a dar vivas em meio a gritos, muita algazarra e cantos. Alguns pegavam o cavalo pelas orelhas, outros seguravam o nariz ou a cauda, esbarrando ora no pobre animal ora no cavaleiro. O manso animal tudo suportava pacificamente, dando sinais de maior paciência do que a de quem o montava. Em meio àquele alvoroço fazia-se ouvir nossa banda, que consistia num tambor, numa trombeta e num violão. Tudo desafinado; mas servia para fazer barulho, e as vozes dos meninos bastava para produzir maravilhosa harmonia.


Cansados de rir, brincar, cantar e, diria, de urrar, chegamos à meta. Os rapazes, por estarem suados, reuniram-se no pátio do santuário e receberam o necessário para satisfazer-lhes o voraz apetite. Depois de descansarem um pouco, reuni-os a todos e contei-lhes pormenorizadamente a maravilhosa história da basílica, dos sepulcros reais que se encontram na cripta, e da Academia eclesiástica219 aí erigida por Carlos Alberto e promovida pelos bispos dos Estados Sardos.


O teólogo Audísio, que era o presidente, pagou generosamente sopa e cozido a todos os visitantes. O pároco deu vinho e frutas. Durante umas duas horas visitaram os locais, e depois nos reuni­mos na igreja, na qual havia muita gente. Às 3 horas da tarde, fiz no púlpito um sermãozinho, após o qual alguns de boa voz entoaram um Tantum ergo. A novidade das vozes brancas causou a todos muita admiração. Às 6 horas soltamos alguns balões e depois, com cordiais agradecimentos a quem nos havia acolhido, partimos de volta para Turim. Os mesmos cantos, risos e corridas de antes, unidos às vezes a orações, ocuparam nosso caminho.


Chegados à cidade, os meninos iam deixando as fileiras à medida que passavam perto de suas casas. Quando cheguei ao Refúgio, tinha ainda comigo 7 ou 8 rapazes mais fortes, que traziam os utensílios empregados durante o dia.



21º

O MARQUÊS CAVOUR E SUAS AMEAÇAS - NOVOS TRANSTORNOS PARA O ORATÓRIO


Impossível descrever o entusiasmo que esses passeios despertavam nos rapazes. Contentes com essa mistura de devoções, brinquedos e passeios, afeiçoavam-se tanto a mim, que não só obedeciam fielmente às minhas ordens, mas desejavam vivamente que lhes desse alguma incumbência. Um dia, ao ver que com um simples gesto da mão eu impunha silêncio a cerca de 400 jovens que pulavam e faziam algazarra no prado, um guarda pôs-se a exclamar:


Se esse padre fosse um general, poderia combater contra o mais poderoso exército do mundo.


De fato, a obediência e o afeto dos meus alunos raiava pela loucura.


Isso, por outro lado, concorreu para renovar o diz-que-diz-que de que Dom Bosco podia a qualquer momento desencadear uma revolução com seus rapazes. Essa afirmação ridícula novamente mereceu crédito entre as autoridades locais e especialmente do marquês Cavour,220 pai dos célebres Camilo e Gustavo, e que era então vigário da cidade,221 o que equivalia a chefe do poder urbano. Mandou-me chamar ao Palácio Municipal e depois de muito discorrer sobre as intrigas que circulavam a meu respeito, concluiu:222


Meu bom padre, aceite o meu conselho: não se meta com esses canalhas.223 Eles só causarão aborrecimentos ao senhor e às autoridades públicas. Garantiram-me que essas reuniões são perigosas, e por isso não posso tolerá-las.


Não tenho outro objetivo, senhor marquês – respondi –, que não o de melhorar a sorte desses pobres filhos do povo. Não peço recursos pecuniários, mas somente um lugar onde recolhê-los. Espero desse modo diminuir o número dos desordeiros e dos que vão parar na cadeia.


Engana-se meu bom padre; o senhor se cansa inutilmente. Não posso arranjar-lhe nenhum lugar, pois essas reuniões são perigosas; e onde arranjará recursos para pagar aluguéis e fazer frente a tantas despesas que lhe trazem esses vagabundos? Repito que não posso permitir essas concentrações.


Os resultados alcançados, senhor marquês, dão-me a certeza de que não estou trabalhando em vão. Muitos rapazes totalmente abandonados foram recolhidos, libertados dos perigos, encaminhados a algum ofício e não foram parar na cadeia. Não me faltaram até agora os meios materiais; eles estão nas mãos de Deus, o qual algumas vezes se serve de instrumentos desprezíveis para realizar sublimes desígnios.


Tenha paciência, obedeça-me sem mais; não posso permitir-lhe essas reuniões.


Não é por mim, senhor marquês, mas pelo bem de tantos rapazes abandonados, que talvez teriam um triste fim.


Cale-se. Não estou aqui para discutir. Trata-se de uma desordem, e eu quero e devo impedi-la. Não sabe que qualquer reunião é proibida, caso não haja legítima licença?


Minhas reuniões não têm escopo político. Eu ensino o catecismo a meninos pobres e o faço com a licença do arcebispo.


O arcebispo está informado de tudo?


Plenamente informado. Não dei um passo sequer sem o seu consentimento.


Mas eu não posso permitir essas reuniões.


Acredito, senhor marquês, que não quer proibir-me de dar catecismo com a autorização do meu arcebispo.


E se o arcebispo lhe disser que desista dessa ridícula empresa, o senhor oporia alguma dificuldade?


De maneira alguma. Comecei e até agora continuei com o parecer do meu superior eclesiástico, e uma simples palavra dele seria para mim uma ordem.


Pode ir; falarei com o arcebispo. Mas depois não se mantenha obstinado ante suas ordens, porque de outra sorte me obrigaria a medidas severas de que não quero lançar mão.


Estando assim as coisas, pensei que ao menos por algum tempo me deixariam em paz. Qual não foi, porém, meu espanto quando, ao chegar a casa, encontrei uma carta, com a qual os irmãos Filippi me despejavam do local que me haviam alugado!


Seus meninos – diziam –, pisoteando repetidamente nosso prado, vão acabar até com a raiz da grama. De boa mente perdoamos-lhe o aluguel vencido, contanto que dentro de quinze dias nos devolva o terreno. Não podemos conceder-lhe mais tempo.


Correu voz das dificuldades que estávamos atravessando, e vários amigos vieram aconselhar-me a abandonar uma empresa, segundo eles, de todo inútil. Outros, vendo-me preocupado e sempre rodeado de meninos, começavam a dizer que eu ficara louco.224


Um dia, o teólogo Borel começou a me dizer na presença do padre Sebastião Pacchiotti225 e de outros:


Para não nos expormos ao perigo de perder tudo, é melhor salvar alguma coisa. Vamos deixar todos os jovens que temos atualmente e conservar apenas uns 20 dos mais pequenos. Enquanto continuamos a ensinar-lhes o catecismo, Deus nos abrirá um caminho e oferecerá oportunidade para fazer mais.


Respondi-lhes:


Não é preciso aguardar novas oportunidades. O lugar está preparado. Temos um pátio espaçoso, uma casa com muitos meninos, pórticos, igreja, padres e clérigos. Tudo à nossa disposição.


Mas onde está isso tudo? – interrompeu o teólogo Borel.


Não sei dizer onde, mas certamente existe e é nosso.


Então o teólogo Borel começou a chorar e exclamou:


Pobre Dom Bosco! Está de juízo turvado.


Tomou-me pela mão, beijou-me e afastou-se com o padre Pacchiotti, deixando-me só em meu quarto.



22°

DESPEDIDA DO REFÚGIO - NOVA ACUSAÇÃO DE LOUCURA


As muitas coisas que se propalavam a respeito de Dom Bosco começavam a inquietar a marquesa Barolo, tanto mais que a prefeitura de Turim se mostrava contrária aos meus projetos.


Veio um dia ao meu quarto e começou a falar-me assim:226


Estou muito contente com sua dedicação às minhas instituições.227 Agradeço-lhe ter trabalhado tanto para introduzir nelas os cantos sacros, o canto gregoriano, a música, a aritmética e também o sistema métrico.


Não é preciso agradecer. Os padres têm que trabalhar porque é um dever deles. Deus pagará tudo, e não se fale mais nisso.228


Queria dizer que sinto bastante que as muitas ocupações lhe tenham prejudicado a saúde. Não é possível que possa continuar com a direção das minhas obras e com a dos meninos abandonados, tanto mais agora que o número deles cresceu desmesuradamente. Quero propor-lhe que se ocupe somente com o que é obrigação sua, isto é, com a direção do Pequeno Hospital, e não vá mais aos cárceres, ao Cottolengo, e suspenda de todo sua preocupação pelos meninos. Que acha?229


Senhora marquesa, Deus me ajudou até agora e não dei­xará de ajudar-me. Não se preocupe com o trabalho. Entre mim, o padre Pacchiotti e o teólogo Borel faremos tudo.


Mas eu não posso permitir que o senhor se mate. Tantas e tão variadas ocupações, queira ou não, prejudicam sua saúde e minhas instituições. E depois, as vozes que correm acerca da sua saúde mental, a oposição das autoridades locais, obrigam-me a aconselhá-lo...


A que, senhora marquesa?


Ou a deixar a obra dos meninos, ou a obra do Refúgio. Pense e depois me dê a resposta.230


Minha resposta já está pensada. A senhora tem dinheiro e com facilidade encontrará quantos padres quiser para sua obra. O mesmo não acontece com meus pobres meninos. Se me retirar agora, tudo irá por água abaixo; por isso, continuarei a fazer igualmente o que puder pelo Refúgio, deixarei oficialmente o cargo e me dedicarei inteiramente ao cuidado dos meninos abandonados.


E como há de viver?


Deus sempre me ajudou e ajudará também no futuro.


Mas sua saúde está definhando, a cabeça está cansada; mergulhará em dívidas; virá procurar-me, e eu garanto desde agora que não lhe darei um tostão sequer para os seus meninos.231 Aceite meu conselho de mãe. Continuarei a dar-lhe o estipêndio, e, se quiser, aumento-o. Vá passar um, três, cinco anos em algum lugar; descanse; quando estiver restabelecido, volte ao Refúgio, e será sempre bem-vindo. De outra sorte, coloca-me na desagradável necessidade de despedi-lo de minha fundação. Pense seriamente.


Já pensei, senhora marquesa. A minha vida está consagrada ao bem da juventude. Agradeço-lhe as ofertas que me faz, mas não posso afastar-me do caminho que a Providência me traçou.


Prefere então os seus vagabundos aos meus institutos? Se é assim, está desde já despedido. Vou arranjar hoje mesmo um substituto.232


Fiz-lhe ver que uma despedida tão precipitada daria motivo a suposições pouco honrosas para mim e para ela. Era melhor agir com calma e conservar entre nós a mesma caridade com a qual deveríamos ambos falar um dia no tribunal do Senhor.


Então – concluiu – dou-lhe três meses para deixar a direção do meu Pequeno Hospital.


Aceitei a decisão, abandonando-me ao que Deus quisesse dispor a meu respeito.


Entretanto espalhava-se cada vez mais insistente a voz de que Dom Bosco ficara louco. Meus amigos mostravam-se consternados; outros riam; mas todos mantinham-se afastados de mim. O arcebispo deixava a coisa correr; o padre Cafasso aconselhava a contemporizar; o teólogo Borel silenciava. Assim, todos os meus colaboradores me deixaram só, com cerca de 400 meninos.


Nessa ocasião algumas pessoas respeitáveis quiseram cuidar da minha saúde.233


Esse Dom Bosco – dizia uma delas – tem fixações que o levarão inevitavelmente à loucura. Talvez uma cura lhe faça bem. Vamos levá-lo ao manicômio e lá, com os devidos cuidados, far-se-á o que a prudência sugerir.


Encarregaram duas delas234 de virem buscar-me de carruagem e levar-me ao manicômio. Os dois mensageiros cumprimentaram-me gentilmente; depois, perguntando por minha saúde, pelo futuro edifício e pela igreja, lançaram um profundo suspiro e prorromperam nestas palavras:


É verdade.


Após o que convidaram-me a acompanhá-los num passeio.


Um pouco de ar puro lhe fará bem; venha; temos uma carruagem à disposição, vamos juntos e teremos tempo para conversar.


Percebi logo o que estavam armando e sem me dar por achado acompanhei-os à carruagem, insisti que entrassem antes e tomassem assento, e, em vez de entrar, fechei de golpe a porta, dizendo ao cocheiro:


Vá bem depressa ao manicômio,235 onde estes dois padres estão sendo esperados.



23º

TRANSFERÊNCIA PARA O ATUAL ORATÓRIO DE SÃO FRANCISCO DE SALE5 EM VALDOCCO


Enquanto acontecia o que acima expus,236 chegou o último domingo em que ainda me permitiam organizar o Oratório no prado (15 de março de 1846).237 Eu calava, mas todos sabiam de minhas dificuldades e espinhos. Na tarde desse dia contemplei a multidão de meninos a brincar, e pensava na messe abundante que se ia preparando para o sagrado ministério. Vendo-me agora tão só, falto de colaboradores, forças esgotadas, saúde em estado deplorável, sem saber onde no futuro reunir meus meninos, senti-me profundamente comovido.


Afastando-me um pouco, pus-me a passear sozinho, e pela primeira vez quiçá senti-me comovido até às lágrimas. Caminhando e erguendo os olhos ao céu, exclamei:


Meu Deus, por que não me mostrais o lugar em que desejais que reúna esses meninos? Dai-mo a conhecer ou dizei-me o que devo fazer.


Nem bem terminei esse desabafo, chegou um homem chamado Pancrácio Soave,238 que disse a gaguejar:


É verdade que está à procura de um lugar para construir um laboratório?


Laboratório, não. Oratório.


Não sei se é a mesma coisa oratório ou laboratório, mas lugar existe, venha ver. É propriedade do senhor José Pinardi,239 pessoa honesta. Venha e fará um bom contrato.


Precisamente naquele instante chegou um fiel colega do seminário, o padre Pedro Merla,240 fundador de uma obra pia conhecida sob o nome de Família de São Pedro. Dedicava-se com zelo ao sagrado ministério e havia iniciado a sua instituição com o fito de remediar o triste abandono em que se encontram tantas jovens ou mulheres infelizes que, após um tempo de cadeia, são na maioria das vezes rechaçadas pela sociedade e mesmo por pessoas boas, tornando-se quase impossível encontrar quem lhes queira dar pão ou trabalho. Quando lhe sobrava algum retalho de tempo, o digno sacerdote vinha gostosamente ajudar o amigo, que de ordinário se achava sozinho em meio a uma multidão de meninos.


Que é que há? – disse assim que me viu. – Nunca te vi tão triste. Aconteceu alguma desgraça?


Desgraça não, mas um apuro muito grande. Hoje é o último dia que posso ficar neste prado. Já é tarde, faltam duas horas apenas; devo dizer aos meus meninos onde é que se devem reunir no próximo domingo, e não sei. Está aí um amigo que diz existir um local que talvez me convenha. Vem, cuida um pouco do recreio. Eu vou ver e logo estarei de volta.


Chegando ao lugar indicado, vi uma casucha de um só andar, com escada e balcão carcomidos, rodeada de hortas, prados e campos.


Queria subir a escada, mas Pinardi e Pancrácio disseram:


Não, o lugar para o senhor é aqui atrás.


Tratava-se de um longo telheiro, que de um lado se apoiava na parede e do outro terminava cerca de 1 metro do chão. Podia servir, caso fosse necessário, apenas para depósito de material ou de lenha. Para entrar, tive que abaixar a cabeça, senão batia com ela no teto.


Não me serve; é muito baixo – disse.


Mandarei ajeitar como quiser – replicou complacentemente Pinardi. – Cavarei, farei degraus e outro pavimento, mas desejo muito mesmo que instale aqui o seu laboratório.


Não é laboratório, mas oratório, uma pequena igreja para reunir meninos.


Com maior razão ainda. Prestar-me-ei até com mais boa vontade. Vamos fazer um contrato. Eu também sou cantor, virei ajudá-lo; trarei duas cadeiras, uma para mim, outra para minha mulher. Além disso, tenho um lampião lá em casa. Vou trazê-lo para cá.


O bom homem parecia delirar pela satisfação de ter uma igreja em sua casa.


Agradeço-lhe, bom amigo, a caridade e boa vontade. Aceito seus oferecimentos. Se puder rebaixar o chão pelo menos uns dois palmos (50 centímetros), aceito. Mas quanto vai querer?


Trezentos francos; oferecem-me mais, todavia prefiro o senhor porque quer destinar o local para benefício público e religião


Dou-lhe 320, se me der também a faixa de terreno ao lado, para o recreio dos jovens; contanto que me pro­meta que domingo próximo eu possa vir para cá com meus meninos.


Certo, trato feito. Pode vir, que tudo estará arranjado.


Não quis mais nada. Corri logo ao encontro dos meus jovens; reuni-os ao meu redor e pus-me a gritar em voz alta:


Coragem, meus filhos, temos um Oratório mais estável que no passado; teremos igreja, sacristia salas para as aulas, lugar para recreio. Domingo, domingo iremos ao novo Oratório, lá na casa Pinardi.


E indicava-lhes o lugar.


Minhas palavras foram acolhidas com o mais vivo entusiasmo. Alguns corriam ou pulavam de alegria; outros permaneceram imóveis; outros mais gritavam e, diria, urravam, berravam. Mas de comoção, como quem experimenta grande alegria e não sabe como exprimi-la, levados por profunda gratidão; e para agradecer à Santíssima Virgem que havia acolhido e atendido as nossas orações, feitas naquela mesma manhã a Nossa Senhora de Campagna, ajoelhamo-nos pela última vez naquele prado e rezamos o Terço, terminado o qual cada um voltou para a própria casa. Era assim a última saudação a um lugar que havíamos amado por necessidade, mas que, pela esperança de outro melhor, abandonávamos sem mágoa.


No domingo seguinte, solenidade da Páscoa, 12 de abril, leva­ram-se para lá todos os apetrechos da igreja e dos jogos, e fomos tomar posse do novo local.




TERCEIRA DÉCADA: 1846-1856



A NOVA IGREJA


Como havia um aluguel com contrato formal, a nova igreja, apesar de extremamente mesquinha,241 livrava-nos do temor de dever emigrar a qualquer momento de um lugar para outro, com graves transtornos. Além do mais, parecia-me ser de fato o sítio onde havia visto em sonho, “Haec est domus mea, inde gloria mea”,242 ainda que fossem outras as disposições do céu. Não eram pequenos os problemas provenientes do fato de estarmos ao lado de uma casa de imoralidade; problemas causava também a taberna Jardineira, hoje casa Beleza, onde, sobretudo nos dias festivos, se reuniam todos os boêmios da cidade.


Isso não obstante pudemos superar as dificuldades e começar a fazer com regularidade nossas reuniões.


Terminados os trabalhos, o arcebispo concedia, no dia ... de abril,243 a faculdade de benzer e dedicar ao culto divino o modesto edifício. Isso acontecia no domingo, ... de abril de 1846.244 O próprio arcebispo, para mostrar sua satisfação, renovou a faculdade já concedida quando estávamos no Refúgio, isto é, de cantar missa, fazer tríduos, novenas, exercícios espirituais, administrar a Confirmação, a santa Comunhão e, também, poder cumprir-se o preceito pascal por parte de todos os que freqüentassem nossa instituição.


O fato de dispormos de local estável, os sinais de aprovação do arcebispo, as funções solenes, a música, a notícia da existência de um pátio para jogos, atraíam meninos de todos os cantos.


Alguns eclesiásticos começaram a voltar. Entre os que prestavam colaboração destacam-se o padre José Trivero, o teólogo Jacinto Cárpano, o teólogo João Vola, o teólogo Roberto Murialdo e o intrépido teólogo Borel.245


As funções transcorriam da seguinte maneira: nos dias festivos abria-se bem cedo a igreja e começavam as confissões, que íam até a hora da missa. A missa estava marcada para as 8, mas para atender à multidão dos que desejavam confessar-se, passava com freqüência para as 9 e mais tarde ainda. Um dos padres, quando os havia, ficava tomando conta e rezava alternadamente as orações. Durante a missa comungavam os que se achavam preparados. Terminada a missa e depostos os para­mentos, eu subia a um púlpito bastante baixo para fazer a explicação do Evangelho. Por então, em vez da homilia, começamos a narrar em ordem a História Sagrada. Esses relatos, feitos em forma simples e popular, revestidos com dados dos costumes dos tempos, lugares, nomes geográficos e sua versão atual, agradavam muito aos pequeninos, aos adultos e aos próprios eclesiásticos presentes.


Depois da pregação vinham as aulas, que duravam até meio-dia.


A 1 hora da tarde começava o recreio,246 com bochas, pernas de pau, fuzis, espadas de madeira e os primeiros aparelhos de ginástica. Às 2 e meia começava o catecismo. A ignorância era, de modo geral, muito grande. Muitas vezes aconteceu começar o canto da Ave-Maria e, de cerca de 400 meninos presentes, nenhum ser capaz de responder nem de prosseguir, caso eu calasse.


Terminado o catecismo, não sendo possível ainda cantar as vésperas, rezava-se o Terço. Mais tarde começou-se a cantar o “Ave Maris Stella”, depois o “Magnificat”, mais tarde o “Dixit”, em seguida os demais salmos, e por fim uma ou outra antífona; e assim, no espaço de um ano, fomos capazes de cantar todas as vésperas de Nossa Senhora. A essas práticas seguia-se uma breve instrução, quase sempre um exemplo, no qual se ressaltava um vício ou uma virtude. Encerrava-se tudo com o canto das ladainhas e a bênção do Santíssimo Sacramento.


Ao sair da igreja começava o tempo livre, durante o qual cada um se entretinha como bem lhe aprouvesse. Alguns continuavam a aula de catecismo, outros de canto ou leitura, mas a maior parte punha-se a saltar, a correr e a divertir-se nos diversos jogos e passatempos. Os que se juntavam para saltos, corridas, prestidigitação, cordas e barras moviam-se sob meu comando, pois outrora eu havia aprendido isso tudo com os saltimbancos. Assim, era possível conter de alguma maneira aquela multidão, da qual em boa parte podia-se dizer que era sicut equus et mulus, quibus non est intellectus.(1)247

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(1) Tb 6,17 e Sl 31,9.

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Por outra parte devo dizer que na grande ignorância sempre admirei neles grande respeito às coisas de Igreja e aos ministros sagrados, e ainda uma grande disposição para aprender as verdades religiosas.


Mais, servia-me daqueles agitados recreios para insinuar aos meus alunos pensamentos religiosos e convidá-los a freqüentar os santos sacramentos. Com uma palavrinha ao ouvido recomendava a uns maior obediência ou maior pontualidade nos deveres do próprio estado; a outros, que tomassem parte no catecismo, viessem confessar-se e coisas que tais. De sorte que para mim aqueles brinquedos eram um meio oportuno para pôr-me em contato com uma multidão de meninos que, sábado à tarde ou domingo de manhã, vinham com a maior boa vontade fazer sua confissão.


Por vezes tirava-os dos próprios brinquedos para levá-los ao confessionário, quando se mostravam arredios a esses importantes deveres. Vou contar aqui um dos muitos fatos.


Um menino havia sido muitas vezes convidado a fazer a páscoa. Todos os domingos prometia vir, mas não cumpria a palavra. Um domingo, após as sagradas funções, pôs-se a brincar com extraordinário entusiasmo. Enquanto saltava e corria por todos os lados, suando em bicas, rosto tão afogueado que já não sabia se estava neste mundo ou no outro, chamei-o a toda a pressa, pedindo-lhe que viesse comigo à sacristia para ajudar-me num trabalho. Ele queria vir assim como estava, em mangas de camisa.


Não – disse-lhe eu –, põe o casaco e vem.


Chegados à sacristia, levei-o ao coro e disse:


Ajoelha-te neste genuflexório.


Obedeceu, mas como se quisesse transportá-lo para outro lugar.


Não – atalhei –, deixa tudo como está.


Então, que é que o senhor quer de mim?


Confessar-te.


Não estou preparado.


Sei disso.


Então?


Então prepara-te depois te confessarei.


Bem, muito bem – exclamou –; tinha mesmo necessidade, verdadeira necessidade. Fez bem em pegar-me deste jeito, senão ainda não teria vindo, de medo dos colegas.


Enquanto rezei uma parte do breviário, o menino preparou-se um pouco; depois fez de boa vontade a confissão e com muito recolhimento a ação de graças. A partir daí foi sempre dos mais assíduos no cumprimento dos deveres religiosos. Costumava contar o fato aos companheiros, concluindo:


Dom Bosco serviu-se de um belo estratagema para prender o melro na gaiola.


Pelo cair da noite, a um sinal da campainha, todos se recolhiam na igreja, onde se fazia um pouco de oração ou rezava-se o Terço com o “Angelus, e tudo se encerrava com o canto “Louvado seja sempre o Santíssimo Sacramento”.


Quando saíam da igreja, punha-me no meio deles e acompanhava-os por entre cantos e muita algazarra. Quando, subindo, subindo, chegávamos à praça do Rondó,248 entoava-se ainda alguma estrofe de um canto sacro, depois convidavam-se os meninos para o domingo seguinte, e dando-nos boa-noite em voz alta uns aos outros, cada um tomava o seu rumo.


Na hora de deixar o Oratório acontecia uma cena singular. Saindo da igreja, todos davam mil vezes boa-noite sem, contudo, abandonar o grupo dos colegas. Eu me cansava de repetir:


Vão para casa, está anoitecendo, os pais estão esperando vocês.


Inutilmente. Era forçoso deixá-los reunidos. Seis dos mais fortes faziam com os braços uma como cadeira, sobre a qual, à maneira de um trono, eu era forçado a sentar. Formando então várias filas bem organizadas, transportavam Dom Bosco naquele estrado de braços, que emergia acima dos mais altos. Caminhavam cantando, rindo e gritando até à praça chamada Rondó. Aí cantavam-se ainda algumas canções que se encerravam com o canto solene “Louvado seja sempre o Santíssimo Sacramento”.


Fazia-se depois profundo silêncio e eu então podia desejar a todos boa-noite e boa semana. Respondiam, todos, a plenos pulmões: “Boa-noite!”.


Agora eu era deposto do trono, e cada um voltava para a própria família, ao passo que alguns dos mais crescidos me acompanhavam até a casa meio morto de cansaço.



CAVOUR, TRIBUNAL DE CONTAS, GUARDA CÍVICA


Não obstante a ordem, a disciplina e a tranqüilidade do nosso Oratório, o marquês Cavour, vigário da cidade, pretendia o fim das nossas reuniões que ele julgava perigosas. Quando soube que eu sempre havia procedido com o consentimento do arcebispo, reuniu o tribunal de ordem pública no palácio episcopal, por estar o prelado um tanto adoentado.


O tribunal estava formado por uma seleção de conselheiros, em cujas mãos concentrava-se todo o poder civil. O presidente do tribunal, chamado chefe da ordem pública, primeiro decurião ou ainda vigário da cidade, tinha mais poder que o próprio prefeito.


Quando vi todos aqueles figurões – disse mais tarde o arcebispo – reunirem-se nesta sala, pareceu-me que ia começar o juízo universal.


Discutiu-se muito pró e contra, e no fim chegou-se à conclusão de que se devia absolutamente impedir e dispersar aquelas aglomerações porque comprometiam a tranqüilidade pública.


Fazia parte do tribunal o conde José Provana de Collegno,249 nosso insigne benfeitor, então ministro do Controle Geral, ou seja, da Fazenda, do rei Carlos Alberto.250 Várias vezes me havia dado subvenções do seu próprio bolso e também da parte do soberano. O príncipe gostava de ouvir falar do Oratório, e por ocasião de alguma solenidade lia sempre com satisfação a

rela­ção escrita que eu lhe enviava ou que o referido conde lhe fazia oralmente. Mandou-me dizer várias vezes que muito apreciava essa atividade do ministério eclesiástico, que ele comparava às missões estrangeiras, exprimindo vivo desejo de que instituições similares se estabelecessem em todas as cidades e povoados de seu Estado. Por ocasião do ano-bom costumava enviar-me sem­pre um subsídio de 300 liras com estas palavras: “Aos molequinhos de Dom Bosco”.


Quando soube que o tribunal de ordem pública ameaçava proibir as nossas reuniões, encarregou o conde de transmitir sua vontade com estas palavras:


É minha intenção que essas reuniões dominicais sejam

pro­movidas e protegidas; se há perigo de desordens, procure-se a maneira de as prevenir e impedir.


O conde Collegno, que havia assistido em silêncio a toda aquela viva discussão, quando viu propor a ordem de dispersão e dissolução definitiva, levantou-se, pediu a palavra e comunicou a intenção do soberano e a proteção que o rei queria dispensar à minúscula instituição.


Ante essas palavras silenciou Cavour e todo o tribunal. O vigário mandou-me de novo chamar a toda a pressa e em tom ameaçador, chamando-me de obstinado, concluiu com estas indulgentes palavras:


Não quero o mal de ninguém. O senhor trabalha com boa intenção, mas o que faz apresenta muitos perigos, e como sou obrigado a velar pela ordem pública, mandarei vigiá-lo, ao senhor e suas reuniões. A menor coisa que o possa comprometer, farei imediatamente expulsar seus moleques e o senhor me dará conta de quanto acontecer.


Fosse por causa das agitações em que andou envolvido, fosse por alguma doença que já o minava, o fato é que foi essa a última vez que Cavour esteve no palácio municipal. Acometido de gota, muito teve que sofrer, e dentro de poucos meses baixou à sepultura.


Todavia, nos seis meses que ainda viveu, mandou todos os domingos alguns guardas municipais passar o dia inteiro conosco, vigiando sobretudo o que se dizia ou fazia na igreja ou fora dela.


E então – disse uma ocasião o marquês Cavour a um dos guardas –, que é que viram ou ouviram no meio daquela gentalha?


Senhor marquês, vimos uma multidão de meninos divertir-se de mil maneiras; na igreja ouvimos pregações de meter medo.251 Disseram tais coisas sobre o inferno e os demônios que me deram vontade de confessar-me.


E de política?


De política nada se falou, porque aqueles meninos nada entenderiam. Acho que falariam muito bem sobre pãezinhos, pois nisso todos estão em condições de ser os primeiros.


Morto Cavour, já não houve ninguém na prefeitura que nos incomodasse; ao contrário, todas as vezes que se apresentou ocasião, a prefeitura de Turim sempre nos favoreceu, até 1877.



ESCOLAS DOMINICAIS - ESCOLAS NOTURNAS


Já em São Francisco de Assis havia percebido a necessidade de uma escola. Há jovens um tanto avançados nos anos, que ainda ignoram as verdades da fé. Para eles, o simples ensino oral é longo e quase sempre aborrecido; por isso com facilidade o deixam. Tentou-se dar-lhes algumas aulas, mas isso não foi possível por falta de locais e de professores que nos quisessem ajudar. No Refúgio, posteriormente na casa Moretta,252 iniciamos uma escola dominical estável, e também uma escola noturna regular quando nos estabelecemos em Valdocco.


Para alcançar um bom resultado, enfrentava-se uma matéria por vez. Por exemplo, fazia-se num ou dois domingos passar e repassar o alfabeto e soletrar; em seguida tomava-se logo o primeiro catecismo e nele fazia-se soletrar e ler até que fossem capazes de entender uma ou duas das primeiras perguntas; essa era a lição para a semana seguinte. E quando chegava o domingo, fazia-se repetir a mesma matéria, acrescentando novas perguntas e respostas. Destarte pude em oito domingos fazer com que alguns chegassem a ler e estudar sozinho páginas inteiras do catecismo. Com isso ganhamos tempo, pois os maiorzinhos teriam que freqüentar por muito tempo o catecismo antes de conseguirem suficiente instrução para se poderem confessar.


A assistência às aulas dominicais beneficiava a muitos, mas não bastava; porque muitos, de bem pouca inteligência esqueciam totalmente quanto haviam aprendido no domingo anterior. Foi quando introduzimos as escolas noturnas que, começadas no Refúgio, continuaram com maior regularidade na casa Moretta, e melhor ainda quando pudemos dispor de um local estável, em Valdocco.253 As escolas noturnas produziam dois bons efeitos: animavam os rapazes a virem aprender a leitura, da qual sentiam grande necessidade, e ao mesmo tempo nos ensejavam a oportunidade de instruí-los na religião, que era a finalidade de nossa instituição.


Mas donde tirar tantos professores, se quase todos os dias era preciso abrir novas classes? Para resolver o problema, comecei a preparar um determinado número de rapazes da cidade. Ensinava-lhes, sem nada cobrar, italiano, latim, francês e aritmética, com a obrigação, porém, de virem ajudar-me a ensinar o catecismo, dar aula aos domingos e aulas noturnas. Meus pequenos professores, uns 8 ou 10 nesse tempo, continuaram a aumentar, e foi dessa maneira que começou a seção dos estudantes.


Quando ainda me achava no Colégio de São Francisco de Assis, entre meus alunos tive João Coriasco,254 atualmente mestre de marcenaria; Félix Vergnano, agora negociante de passamanaria, e Paulo Delfim. Este último é hoje professor de curso técnico. No Refúgio tive Antônio Melanotte, agora droguista, João Melanotte, confeiteiro; Félix Ferrero, corretor; Pedro Ferrero, tipógrafo; João Piola, carpinteiro, dono de oficina. Juntaram-se a eles Luís Genta, Vitório Mogna, e outros que todavia não foram constantes. Devia gastar muito tempo e dinheiro e, de modo geral, quando se achavam em condições de ajudar-me, a maior parte me abandonava.


Somaram-se a eles vários piedosos senhores de Turim. Foram constantes o senhor José Gagliardi255 quinquilheiro; José Fino, da mesma profissão; Vitório Ritner,256 joalheiro, e outros. Os sacerdotes ajudavam-me especialmente celebrando a missa, pregando e dando catecismo aos mais crescidos.


A falta de livros criava uma grande dificuldade porque,

ter­minado o primeiro catecismo, já não dispúnhamos de nenhum outro texto. Examinei todas as pequenas histórias sagradas que se usam nas escolas, mas não pude encontrar uma sequer que atendesse às nossas necessidades.257 Faltava-lhes simplicidade, traziam episódios inoportunos, perguntas longas e fora de propósito. Além disso, muitos fatos eram expostos de tal forma que punham em perigo a inocência dos meninos. Mais, todos eles bem pouco se preocupavam em ressaltar os pontos que devem servir de fundamento para as verdades da fé. Diga-se o mesmo dos fatos que se referem ao culto externo, ao purgatório à confissão, eucaristia e semelhantes.258


Para sanar essa lacuna na educação, tão insistentemente reclamada pelos tempos, dediquei-me de corpo e alma à compilação de uma história sagrada de exposição fácil e estilo popular, e sem os mencionados defeitos. Essa a razão que me levou a escrever e imprimir a História sagrada para uso das escolas. Não podia garantir um trabalho elegante, mas trabalhei com a melhor boa vontade de servir à juventude.


Após alguns meses de aula, fizemos uma demonstração pública do que nossos alunos haviam aprendido nas lições do domingo.259 Os alunos foram interrogados sobre toda a história sagrada e a geografia com ela relacionada, seguindo um questionário apropriado. Estavam presentes o célebre abade Aporti, Boncompagni, o teólogo Pedro Baricco, o professor José Rayneri,260 e todos aplaudiram a experiência.


Animados pelos progressos alcançados nas escolas dominicais e noturnas, acrescentaram-se aulas de aritmética e desenho às de leitura e escrita. Por toda a parte falava-se delas como de uma grande novidade. Muitos professores e distintas personalidades vinham com freqüência visitá-las. A própria Prefeitura mandou uma comissão, com o comendador José Dupré261 à frente, encarregada exclusivamente de verificar se os decantados resultados das escolas noturnas eram uma realidade. Eles próprios formulavam perguntas sobre a pronúncia, sobre a contabilidade, sobre a declamação, e não podiam entender como jovens inteiramente iletrados até os 18 ou mesmo 20 anos, pudessem em poucos meses progredir tanto na educação e na instrução. Ao contemplar o grande número de jovens, já maiores, que em vez de vagabundear pela rua reuniam-se à noite para estudar, aqueles senhores saíram entusiasmados. Quando informaram o plenário da Câmara, foi-nos destinada como prêmio uma anuidade de 300 francos, que recebemos até 1878, quando – nunca foi possível saber por que – suprimiram-na para dá-la a outra instituição.262


O cavalheiro Gonella, cujo zelo e caridade deixaram em Turim gloriosa e imorredoura memória, era então diretor da obra La Mendicità Istruita.263 Também ele veio ver-nos várias vezes, e no ano seguinte (1847) introduziu o mesmo tipo de ensino, com os mesmos métodos, na obra confiada aos seus cuidados. Quando os administradores dessa obra se inteiraram de como funcionava nosso trabalho, outorgaram-nos uma ajuda de 1 mil francos para nossas escolas. A prefeitura seguiu o exemplo, e no espaço de poucos anos as escolas noturnas propagaram-se por todas as principais cidades do Piemonte.


Apareceu outra necessidade: um devocionário adaptado aos tempos. São incontáveis os que, redigidos por penas competentes, correm nas mãos de todos. Mas em geral são feitos para pessoas cultas, adultas, e ordinariamente servem tanto para os católicos como para os judeus e os protestantes. Vendo como a perigosa heresia ia-se infiltrando de dia para dia, procurei compilar um livro adaptado à juventude, à altura de seus conheci­mentos religiosos, baseado na Bíblia, e que expusesse os fundamentos da religião católica com a maior concisão e clareza. Seria O jovem instruído.264


O mesmo acontecia com o ensino da aritmética e do sistema métrico. É verdade que até 1850 o emprego do sistema métrico não seria obrigatório; mas começou a introduzir-se nas escolas em 1846. E quando fossem adotados legalmente nas escolas, não haveria livros de texto. Para preencher essa lacuna, lancei um opúsculo intitulado O sistema métrico decimal simplificado etc.



DOENÇA, CURA, DECISÃO DE RESIDIR EM VALDOCCO


Os muitos compromissos que eu tinha nas prisões, no Hospital Cottolengo, no Refúgio, no Oratório e nas escolas obrigaram-me a trabalhar de noite para compilar os opúsculos de que precisava sem falta. Por isso, minha saúde, de si mesma bastante precária, deteriorou-se ao ponto de os médicos aconselharem-me a abandonar qualquer ocupação. O teólogo Borel, que muito me estimava, mandou-me passar algum tempo com o cura de Sassi para que me restabelecesse. Descansava durante a semana e no domingo ia trabalhar no Oratório. Mas não era suficiente. Grupos de rapazes vinham visitar-me; a eles juntaram-se os do povoado.265 Resultado: molestavam-me mais do que se estivesse em Turim, e eu também molestava demais meus pequenos amigos.


Não só os que freqüentavam o Oratório é que corriam a Sassi, todos os dias pode-se dizer, mas os próprios alunos dos irmãos das Escolas Cristãs.


Um episódio entre muitos: os alunos das escolas de Santa Bárbara,266 dirigidas por esses religiosos, fizeram os Exercícios espirituais. Como muitos deles costumavam confessar-se comigo,267 no fim dos Exercícios foram juntos procurar-me no Oratório. Não me encontrando, foram a Sassi, a 4 quilômetros de Turim. O tempo estava chuvoso; não conheciam o caminho; por isso andaram vagando por campos, prados e vinhas à procura de Dom Bosco. Chegaram por fim, cerca de 400, inteiramente esgotados pelo cansaço e pela fome, banhados de suor, cobertos de lama, pedindo confissão.


Fizemos os exercícios – diziam –, queremos melhorar, queremos todos fazer uma confissão geral; viemos até aqui com licença dos nossos professores.


Foram aconselhados a voltar imediatamente para o colégio a fim de evitar a preocupação dos professores e dos pais, mas eles insistiam decididamente que queriam confessar-se. O professor municipal, o cura, o vice-cura e eu confessamos o que foi possível. Mas seriam necessários uns 15 confessores.


E agora, como satisfazer, ou melhor, aliviar o apetite daquela multidão? O bom cura (é o atual teólogo Abbondioli268) deu aos caminheiros todas as suas provisões. Pão, polenta, feijão, arroz, batata, queijo, frutas..., juntou tudo e distribuiu aos meninos.


Qual não foi o desaponto no colégio, quando os pregadores, os professores, algumas personalidades convidadas chegaram para o encerramento dos Exercícios, para a missa, comunhão geral e não encontraram um aluno sequer no colégio! Foi um deus-nos-acuda; e tomaram-se medidas para que o caso não viesse a repetir-se.


Novamente em casa, caí sem sentidos e fui levado para a cama. A doença manifestou-se como bronquite, à qual se juntou uma tosse e inflamação muito violenta. Em oito dias achava-me à beira do túmulo. Recebi o santo viático e os santos óleos. Parece-me que naquele momento estava preparado para morrer. Sentia abandonar meus meninos, mas estava contente por terminar meus dias após haver dado forma estável ao Oratório.


Assim que se espalhou a notícia de que a doença era grave, foi geral e intensa a consternação. Não podia ser maior. A cada momento turmas de meninos em lágrimas batiam à porta para informar-se da doença. Quanto mais notícias se davam, mais ainda queriam saber. Eu ouvia os diálogos com o criado e ficava emocionado. Soube depois até onde a afeição levou meus jovens.


Espontaneamente rezavam, jejuavam, ouviam missas, faziam comunhões. Alternavam-se para passar a noite e o dia em oração diante da imagem de Nossa Senhora da Consolata. Pela manhã acendiam velas, e até noite alta ficavam, sempre em número considerável, a rezar e suplicar à augusta Mãe de Deus que conservasse o pobre Dom Bosco.


Alguns fizeram voto de rezar o rosário inteiro por um mês, por um ano, por toda a vida. Não faltou quem prometesse jejuar a pão e água durante meses, anos e até toda a vida. Sei que alguns ajudantes de pedreiro jejuaram a pão e água semanas inteiras, sem diminuir, da manhã à tarde, seus pesados trabalhos. Antes, sobrando pequenos espaços de tempo livre, iam pressurosos passá-los diante do Santíssimo Sacramento.


Deus os ouviu. Era um sábado à tarde e acreditava-se que aquela noite seria a última da minha vida. Assim diziam os médicos que vieram examinar-me; assim estava eu também convencido, porque me sentia totalmente sem forças e perdia sangue sem parar. Noite alta senti vontade de dormir. Adormeci. E acordei fora de perigo. Quando pela manhã os doutores Botta e Cafasso me visitaram, disseram que fosse agradecer a Nossa Senhora da Consolata a graça recebida.


Meus jovens não podiam acreditar se não me vissem. E me viram de fato pouco depois ir com minha bengalinha ao Oratório, tomado de comoção, fácil de imaginar, difícil de descrever. Cantou-se um “Te Deum”. Aclamações sem-fim, entusiasmo indescritível.


Uma das primeiras medidas foi mudar em algo possível os votos e as promessas que muitos haviam feito sem a devida reflexão, quando me achava em perigo de vida.


A doença acometeu-me no começo de julho de 1846, justamente quando devia deixar o Refúgio e mudar-me para outro lugar.


Fui passar alguns dias de convalescença em casa, em Murialdo. Poderia prolongar minha estada no torrão natal, mas os meninos começaram a vir visitar-me em verdadeiros batalhões, de modo que não podia gozar nem de repouso nem de tranqüilidade. Todos me aconselhavam a passar pelo menos um ano fora de Turim, em lugares desconhecidos, para tentar recuperar a saúde de antes. O padre Cafasso e o arcebispo eram dessa opinião. Mas como isso seria penoso demais para mim, deixaram-me voltar ao Oratório com a obrigação de não confessar nem pregar durante dois anos. Desobedeci. De volta ao Oratório, continuei a trabalhar como antes, e por vinte e sete anos não precisei de médicos nem de remédios. Isso me convenceu de que não é o trabalho que prejudica a saúde corporal.



RESIDÊNCIA DEFINITIVA NO ORATÓRIO DE VALDOCCO


Passados alguns meses de convalescença com a família, pensei que poderia voltar para meus queridos filhos, alguns dos quais vinham ver-me todos os dias ou então escreviam, insistindo por que voltasse logo. Mas onde morar, se havia sido despedido do Refúgio? Com que meios sustentar uma obra que se tornava dia a dia mais árdua e dispendiosa? De que viveria eu e as pessoas que me eram indispensáveis?


Nesse tempo desocuparam-se dois quartos na casa Pinardi e aluguei-os para mim e para mamãe.269


Mãe – disse-lhe um dia –, terei que morar em Valdocco; mas considerando as pessoas que estão naquela casa, não posso ter comigo ninguém a não ser a senhora.


Ela compreendeu a força das minhas palavras e replicou imediatamente:


Se achas que essa é a vontade de Deus, estou disposta a partir agora mesmo.


Mamãe fazia um sacrifício enorme porque em casa, embora não fosse rica, era dona de tudo, amada por todos e considerada a rainha dos pequenos e dos adultos.


Mandamos antes as coisas mais indispensáveis que foram levadas para a nova residência junto com as do Refúgio. Mamãe encheu um cesto de roupa branca e objetos indispensáveis; eu peguei o breviário, um missal, alguns livros e cadernos mais necessários. Era toda a nossa fortuna. Partimos a pé dos Becchi para Turim. Fizemos breve parada em Chieri e, na tarde de 3 de novembro de 1846, chegamos a Valdocco.


Ao ver-nos naqueles quartos desprovidos de tudo, mamãe disse a brincar:


Em casa tinha muita preocupação para administrar ou mandar; aqui estou mais sossegada porque nada tenho a manejar, nem ninguém a comandar.


Mas como viver, comer, pagar o aluguel e atender a tantos meninos que a cada instante pediam pão, calçado, roupas ou camisas para poderem ir ao serviço? Havíamos feito trazer de casa um pouco de vinho, farinha, feijão, trigo e coisas assim. Para enfrentar as primeiras despesas, tinha vendido parte do campo e uma vinha. Minha mãe mandou buscar o vestido de noiva, que até então conservara cuidadosamente íntegro. Outros vestidos seus serviram para fazer casulas; com a roupa branca fizeram-se amitos, sanguinhos, sobrepelizes alvas e toalhas. Tudo passou pelas mãos de dona Margarida Gastaldi,270 que desde então acudia às necessidades do Oratório.


Mamãe tinha alguns anéis e um pequeno colar de ouro, que logo vendeu para comprar galões e guarnições para os paramentos sagrados. Uma tarde, minha mãe, que estava sempre de bom humor, cantava para mim a sorrir.


Ai se o mundo nos descobre!

Forasteiros, gente pobre!


Arrumadas as coisas de casa, aluguei mais um quarto, que serviu para sacristia. Como não podia ter locais para as aulas, tive que dá-las, durante algum tempo, na cozinha ou em meu quarto; mas os alunos, verdadeiros moleques, tudo estragavam ou punham de pernas para o ar. Começaram-se algumas aulas na sacristia, no coro e outras partes da igreja; mas as vozes, os cantos, o vaivém de uns estorvava os outros. Alguns meses depois, pudemos alugar dois novos quartos e organizar melhor nossas aulas noturnas. Como já disse, no inverno de 1846-47(1) nossas escolas alcançaram ótimos resultados. Tínhamos em média 300 alunos por noite. Além da cultura geral, havia aulas de canto gregoriano e música vocal, coisas sempre cultivadas entre nós.

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(1) Não se deve esquecer que as primeiras escolas noturnas abertas em Turim foram as da casa Moretta, em novembro de 1845. Não era possível colocar senão 200 alunos em três quartos ou aulas. O bom resultado alcançado moveu-nos a reabri-las no ano seguinte, tão logo pudemos instalar-nos de maneira estável em Valdocco.

Entre os que ajudavam, nas aulas noturnas e preparavam os jovens para a declamação diálogos e pequenas representações teatrais devemos lembrar o professor teólogo Chiaves,271 P. Musso e o teólogo Jacinto Carpano.

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REGULAMENTO PARA OS ORATÓRIOS - COMPANHIA E FESTA DE SÃO LUÍS - VISITA DE DOM FRANSONI


Uma vez instalados definitivamente em Valdocco, pus-me a promover com toda a alma tudo quanto pudesse contribuir para conservar a unidade no espírito, na disciplina e na administração. A primeira coisa foi compilar um Regulamento,272 no qual simples­mente expus o que já se praticava no Oratório e como proceder para conseguir uma maneira uniforme de agir. Como isso já está impresso à parte, cada qual poderá ler como lhe aprouver. Foi assaz notável a utilidade desse pequeno Regulamento. Cada um sabia o que devia fazer, e como eu costumava deixar a cada um a responsabilidade do seu cargo, todos se preocupavam em conhecer e cumprir a sua parte. Muitos bispos e párocos pedi­ram e estudaram o Regulamento, e se esforçaram por introduzir a obra dos oratórios nos povoados e cidades de suas respectivas dioceses.


Estabelecidas as bases orgânicas para a disciplina e a administração do Oratório, era preciso estimular a piedade com práticas fixas e uniformes. Conseguiu-se isso mediante a instituição da Companhia de São Luís.273 Terminados os Regulamentos dentro dos limites próprios da juventude apresentei-os ao arcebispo, que os leu e passou a outros para que os estudassem e depois opinassem. Finalmente elogiou-os e aprovou, concedendo indulgências particulares na data de 12 de abril de 1847.274 O Regulamento se acha em folheto à parte.


A Companhia de São Luís despertou grande entusiasmo entre os nossos meninos. Todos queriam entrar para ela. Para isso exigiam-se duas condições: bom procedimento na igreja e fora dela; evitar as más conversas e freqüentar os santos sacramentos. Notou-se logo sensível melhora nos costumes.


A fim de animar todos os jovens a celebrar os seis domingos de São Luís,275 comprou-se uma estátua do santo,276 fez-se um estandarte, e proporcionava-se aos jovens a comodidade de confessar-se a qualquer hora do dia, da tarde ou da noite. Como quase nenhum deles havia recebido a Crisma,277 foram preparados para o sacramento que seria administrado na festa de São Luís.


A afluência foi muito numerosa. A preparação foi possível graças à ajuda de vários eclesiásticos e leigos. No dia da festa do santo, tudo estava em ordem(1). Era a primeira vez que se faziam essas funções no Oratório, e também a primeira vez que o arcebispo nos vinha visitar,

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(1) Entre os que de bom grado se inscreveram na Companhia de São Luís, convém assinalar o abade Antônio Rosmini, o arcipreste cônego Pedro De Gaudenzi, atualmente bispo de Vigevano, Camilo e Gustavo Cavour, o cardeal Antonucci, arcebispo de Ancona, Sua Santidade Pio IX, o cardeal Antonelli278 e muitos outros.

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Na frente da pequena capela preparou-se uma espécie de dossel, sob o qual o arcebispo foi recebido. Li algumas palavras de ocasião; em seguida, alguns jovens representaram uma breve comédia intitulada “Um cabo de Napoleão”. Tratava-se de um cabo caricato que dizia uma infinidade de coisas engraçadas para manifestar sua maravilha ante a grandiosidade da festa. Provocou muito riso e serviu de agradável distração para o prelado, que chegou a dizer nunca ter rido tanto em sua vida. Foi muito cordial com todos, exprimindo sua grande satisfação pelo bom andamento daquela obra; fez grandes elogios e animou-nos a ir para a frente. Por fim, agradeceu a cordial acolhida que lhe havíamos dispensado.


Celebrou a santa missa e deu a santa Comunhão a mais de 300 meninos, em seguida administrou a santa Crisma.


Foi nessa oportunidade que, ao lhe colocarem a mitra, esquecendo que não estava na catedral ergueu um tanto apressadamente a cabeça e bateu com ela no teto da igreja. O pequeno acidente provocou hilaridade nele e em todos os presentes. Com freqüência e bom humor, o arcebispo contava o episódio, recordando assim nossas reuniões, que o abade Rosmini comparava às que se fazem em terras de missão.


Convém saber que para assistir o arcebispo nas funções sagradas vieram dois cônegos da catedral e muitos outros eclesiásticos. Acabada a função, lavrou-se uma espécie de ata, na qual foram anotados os nomes de quem havia administrado o sacramento, nome e sobrenome do padrinho, lugar e dia. Em seguida prepararam-se os certificados que, divididos conforme as várias paróquias, foram levados à cúria eclesiástica para que os remetesse aos respectivos párocos.



INÍCIOS DO COLÉGIO - PRIMEIRA ACEITAÇÃO DE MENINOS


Enquanto se organizavam os meios para dar instrução religiosa e cultura geral, surgiu outra necessidade imperiosa que era urgente enfrentar. Muitos rapazes de Turim e de fora mostravam-se cheios de boa vontade de se dedicarem a uma vida honesta e laboriosa; todavia, convidados a fazê-lo, costumavam responder que não tinham pão, nem roupa, nem casa onde morar por pouco tempo que fosse. Para alojar pelo menos alguns que à noite não sabiam onde dormir, havia-se adaptado um paiol, onde se podia passar a noite sobre feixes de palha. Mas repetidas vezes aconteceu que uns levavam embora os lençóis, outros as cobertas; houve até quem roubasse a própria palha e a vendesse.


Aconteceu então que numa chuvosa tarde de maio, apresentou-se, ao anoitecer, um rapaz de seus 15 anos, inteiramente ensopado de água. Pedia pão e hospitalidade. Mamãe recebeu-o na cozinha, achegou-o ao fogo, e enquanto se aquecia e enxugava a roupa, deu-lhe sopa e pão para que restaurasse as forças. Entrementes eu perguntei-lhe se havia ido à escola, se tinha pais, e que trabalho fazia. Respondeu:


Sou um pobre órfão, vindo do vale de Sesia279 em busca de trabalho. Tinha comigo 3 francos, mas gastei antes de poder ganhar outros, e agora não tenho mais nada nem ninguém.


Já fizeste a Primeira Comunhão?


Ainda não.


Recebeste a Crisma?


Não.


Já te confessaste?


Uma vez ou outra,


E agora, aonde queres ir?


Não sei. Peço, por caridade, que me deixem passar a noite em algum canto desta casa.


Dito isto, pôs-se a chorar. Mamãe chorava com ele. Eu estava comovido.


Se soubesse que não és um ladrão, eu te ajudaria; mas outros levaram embora parte das cobertas, e tu levarás o resto,


Não senhor. Esteja tranqüilo; sou pobre mas nunca roubei nada.


Se quiseres – continuou minha mãe –, vou acomodá-lo por esta noite, e amanhã Deus proverá.


Onde?


Aqui na cozinha.


Vai levar até as panelas.


Darei um jeito para que isso não aconteça.


Faça como achar melhor.


Ajudada pelo orfãozinho, a boa mulher saiu, juntou alguns pedaços de tijolos e amontoou-os na cozinha formando quatro pilhas; apoiou nelas algumas achas de lenha para sobre elas estender uma enxerga, preparando dessa maneira a primeira cama do Oratório. Minha boa mãe fez-lhe depois um sermãozinho sobre a necessidade do trabalho, sobre a honradez e a religião. Por fim convidou-o a rezar as orações.


Não sei – respondeu.


Rezarás conosco – e assim se fez.


Para que tudo ficasse bem seguro, a cozinha foi fechada à chave e só a abrimos na manhã seguinte.


Foi esse o primeiro jovem do nosso internato. A ele juntou-se logo outro280 e depois outros mais. Mas por falta de lugar, tivemos que limitar-nos naquele ano a apenas dois. Corria o ano 1847.


Percebendo que para muitos meninos era inútil qualquer apostolado caso não se lhes desse abrigo, apressei-me em alugar outros quartos ainda que a preço exorbitante. Assim, além do internato, pôde-se iniciar a aula de canto gregoriano e de música vocal.


Como era a primeira vez (1845) que se davam aulas coletivas de música, a primeira vez que se ensinava a música em aula a muitos alunos contemporaneamente, houve grande afluência de pessoas interessadas. Os famosos maestros Luís Rossi, José Blanchi,281 Cerutti,282 cônego Luís Nasi,283 vinham com muito prazer assistir às minhas lições. Isso em evidente contradição com o Evangelho que diz não estar o discípulo acima do mestre. Entretanto, eu que não sabia a milionésima parte do que sabiam aquelas celebridades, passava como mestre a seus olhos. Eles naturalmente vinham observar como se praticava o novo método, que vem a ser o mesmo que atualmente empregamos em nossas casas. Em tempos passados, todo aluno que desejasse aprender música tinha que procurar um professor particular



ORATÓRIO DE SÃO LUÍS - CASA MORETTA - TERRENO DO SEMINÁRIO


Quanto maior a nossa solicitude em promover a cultura, tanto mais ia crescendo o número de alunos. Aos domingos, apenas uma parte cabia na igreja para as funções, o mesmo acontecendo para o recreio no pátio. Então, sempre de acordo com o teólogo Borel, para atender à necessidade crescente, abri­mos um novo oratório, em outro bairro da cidade. Com esse objetivo alugamos uma pequena casa em Porta Nuova, na alameda do Rei,284 comumente chamada alameda dos Plátanos, pelas árvores que a ladeiam.


Para conseguir a casa foi preciso travar luta renhida com os moradores. Estava ocupada por várias lavadeiras, as quais pensavam que iria acontecer o fim do mundo caso devessem abandonar a antiga morada. Todavia, tratadas com delicadeza e feitas as devidas indenizações, as coisas se arranjaram sem que as partes beligerantes chegassem a guerrear.


O lugar e o quintal eram propriedade da senhora Vaglienti, que deixaria como herdeiro o cavalheiro José Turvano. O aluguel era de 450 francos. O Oratório chamou-se de São Luís Gonzaga, título que até hoje conserva.(*)

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(*) A atual Igreja de São João Evangelista285 cobre o lugar onde se situava a igreja, a sacristia e a pequena casa do porteiro do Oratório São Luís.

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A inauguração foi feita por mim e pelo teólogo Borel no dia da Imaculada Conceição de 1847.286 Houve extraordinária afluência de jovens, que dessa maneira aliviaram as fileiras de Valdocco, até então excessivamente compactas. A direção do oratório foi confiada ao teólogo Jacinto Cárpano, que aí trabalhou alguns anos totalmente grátis. O mesmo Regulamento compilado para Valdocco foi aplicado ao de São Luís, sem que se introduzisse modificação alguma.287


Nesse mesmo ano, com o fito de dar abrigo a uma multidão de meninos que o solicitavam, comprou-se toda a casa Moretta.288 Mas ao dar início aos trabalhos a fim de adaptá-la às nossas necessidades, viu-se que as paredes não haveriam de resistir. Por isso pareceu oportuno revendê-la, tanto mais que nos era oferecido um preço muito vantajoso.


Adquirimos então um trato de terreno (38 ares) ao seminário de Turim,289 que é o lugar onde mais tarde se construiu a igreja de Maria Auxiliadora e o edifício onde estão agora as oficinas dos nossos aprendizes.



1848 AUMENTAM OS APRENDIZES - SEU REGIME DE VIDA - AS BOAS-NOITES - CONCESSÕES DO ARCEBISPO - EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS


Durante este ano, os assuntos políticos e o espírito público sofreram uma mudança, cujo desfecho ainda não se pode prever. Carlos Alberto havia outorgado a Constituição. Pensavam muitos que com a Constituição concedia-se também a liberdade de fazer o bem ou o mal a seu talante. Apoiavam o asserto na emancipação dos judeus e dos protestantes,290 graças à qual pretendia-se já não haver distinção entre catolicismo e demais credos.(*) Isso era verdade no campo político; não, porém, no religioso.(**)

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(*) Em 20 de dezembro de 1847 Carlos Alberto recebia um pedido de 600 ilustres católicos, ao qual se seguiu a famosa emancipação de que aqui se fala.

(**) Em 20 de dezembro de 1847 foi apresentada ao rei Carlos Alberto uma súplica assinada por 600 ilustres cidadãos, na maioria eclesiásticos, que pediam a famosa emancipação. Expunham-se as razões, mas sem prestar atenção às expressões heréticas que na súplica se encontram em questão de religião. A partir desse momento os judeus saíram do gueto291 e conseguiram grande poder econômico. Os protestantes, agora sem freio à própria audácia, e apoiados pela autoridade civil,292 causaram grande dano à religião e à moralidade, embora fossem pouco numerosos.

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Entretanto, uma como loucura apoderou-se da juventude. Reunindo-se em vários pontos da cidade, nas ruas e praças, julgavam legítimos todos os insultos contra o sacerdote ou contra a religião. Eu mesmo sofri vários assaltos em casa e na rua. Um dia, enquanto dava catecismo, uma bala de fuzil entrou por uma janela, varou-me a batina entre o braço e as costas e foi abrir um grande buraco na parede. Outra vez, um indivíduo bem conhecido, enquanto eu me encontrava no meio de uma multidão de meninos, em pleno dia, assaltou-me com longa faca na mão.293 Por milagre, correndo desabaladamente, pude fugir e salvar-me em meu quarto. O teólogo Borel também se salvou milagrosamente de um tiro de pistola e das facadas, quando de uma feita o confundiram comigo. Era, pois, muito difícil segurar essa juventude desenfreada.


Em tal confusão de idéias e pensamentos, assim que se pôde conseguir outras salas, aumentou-se o número dos aprendizes, que chegaram a 15, todos eles meninos abandonados e em perigo (1847).


Não obstante, as dificuldades eram muitas. Como não existiam ainda oficinas no colégio, nossos alunos iam ao trabalho e à aula na cidade, com sérios perigos morais para eles, pois os companheiros com os quais se encontravam, as conversas que ouviam, o que viam, tornavam inútil tudo o que se lhes fazia e dizia no Oratório.


Foi então que, à noite, após as orações, comecei a fazer um sermãozinho bem curto, expondo ou confirmando alguma verdade que porventura houvesse sido contestada no decorrer do dia.294


O que acontecia com os aprendizes, podia-se igualmente lamentar com relação aos estudantes. Por estarem divididos em várias classes, tinha-se que enviar os mais adiantados nos estudos ([d]os estudantes de gramática) ao professor José Bonzanino;295 os que estudavam retórica, ao professor padre Mateus Picco.296 Eram escolas ótimas, mas a ida e a volta estavam cheias de perigos. No ano de 1856, foram definitivamente instaladas as escolas e as oficinas na casa do Oratório, com grande vantagem para todos.297


Havia por esse tempo tal confusão de idéias e tamanha desordem298 que eu já não podia confiar sequer na gente de serviço; por conseqüência eu e minha mãe fazíamos todo o trabalho doméstico. Cozinhar, preparar a mesa, varrer, rachar lenha, cortar e fazer ceroulas, camisas, calças, paletós, toalhas, lençóis, e relativos consertos, eram coisas que a mim competiam. Isso, porém, acabava sendo moralmente muito útil, porque com a maior facilidade podia dar aos jovens um conselho ou dizer uma palavra amiga enquanto lhes servia pão, sopa ou outra coisa qualquer.


Percebendo também a necessidade de contar com alguém que me auxiliasse nos afazeres domésticos e escolares do Oratório, comecei a levar alguns ao campo comigo, outros a veranear em Castelnuovo, minha terra; outros a almoçar comigo, outros vinham à tarde para ler ou escrever alguma coisa, sempre, porém, com a finalidade de opor um antídoto às venenosas opiniões do tempo. Agi assim, com maior ou menor freqüência, de 1841 a 1848. Empregava todos os meios para conseguir ainda uma finalidade particular, que era estudar, conhecer, escolher alguns indivíduos que demonstrassem aptidão e propensão para a vida comum e admiti-los comigo em casa.


Com o mesmo objetivo, tentei nesse ano (1848) um pequeno curso de exercícios espirituais.299 Reuni uns 50 no Oratório. Comiam todos comigo, mas como não havia camas para todos, parte deles ia dormir com a própria família, voltando no dia seguinte. A ida e volta pela manhã e à noitinha ameaçava fazê-los perder quase todo o fruto das pregações e instruções que se costumava dar em tais ocasiões. Começavam domingo à noite e terminavam sábado à noite. Correu tudo muito bem. Muitos, com os quais se havia durante muito tempo trabalhado em vão, deram-se realmente a uma vida virtuosa. Vários fizeram-se religiosos; outros permaneceram no mundo, mas tornaram-se modelos na freqüência dos Oratórios.(*) Desse assunto se haverá de falar à parte na História da Sociedade Salesiana.

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(*) Jacinto Arnaud300 e Sansoldi,301 ambos falecidos; José Buzzetti, Nicolau Galesio; João Cons­tantino,302 falecido; Tiago Cerutti,303 falecido; Carlos Gastini.304 João Gravano;305 Domingos Borgialli,306 falecido, estão entre os que fizeram os primeiros Exercícios naquele ano e que se mostraram sempre bons cristãos.

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Por essa época alguns párocos, sobretudo o de Borgodora, do Carmo e de Santo Agostinho, queixaram-se ao arcebispo por­que nos oratórios se administravam os sacramentos. Por isso o arcebispo emanou um decreto307 pelo qual dava ampla faculdade de preparar e apresentar os meninos para receberem a Crisma, a sagrada Comunhão, e para cumprir o preceito pascal aos que freqüentassem os nossos oratórios. Renovava a faculdade de fazer todas as funções religiosas que se costumavam fazer nas paróquias. Essas igrejas, dizia o arcebispo, serão para esses meninos de fora e abandonados como suas igrejas paroquiais pelo tempo que permanecerem em Turim.



10º

PROGRESSOS NA MÚSICA - PROCISSÃO À CONSOLATA - PRÊMIO DA PREFEITURA E DA OBRA DA MENDICIDADE - A QUINTA-FEIRA SANTA - O LAVA-PÉS


Os perigos a que se achavam expostos os rapazes quanto à religião e à moralidade exigiam maiores esforços para defendê-los. À escola noturna e também diurna, à música vocal julgou-se oportuno acrescentar a aula de piano, de órgão e de música instrumental. Destarte me vi transformado em mestre de música vocal e instrumental de piano e de órgão, sem nunca ter sido propriamente aluno dessas matérias. A boa vontade tudo supria. Depois de preparar bem as melhores vozes brancas do Oratório, começamos a fazer as funções em casa, depois em Turim, em Rívoli, em Moncalieri,308 Chieri e em outros sítios. O cônego Luís Nasi e o padre Miguelanjo Chiatellino309 prestavam-se de muito bom grado a ensaiar os nossos músicos, a acompanhá-los e dirigi-los nas funções públicas em diversos povoados; como até então não se haviam ouvido no coro conjuntos de vozes brancas, os solos, os duetos e os corais constituíam tamanha novidade, que por toda a parte se falava da nossa música e nossos cantores eram dispu­tados para tomar parte em diversas solenidades. O cônego Luís Nasi e o padre Miguelanjo Chiatellino eram os que de ordinário acompanhavam nossa nascente sociedade filarmônica.


Costumávamos ir todos os anos celebrar uma função religiosa na Consolata, mas nesse ano fomos até lá processionalmente desde o Oratório. O canto pela rua e a música na igreja atraíram incontável multidão de gente. Celebrou-se a missa, distribuiu-se a sagrada Comunhão e depois fiz um sermãozinho de ocasião na cripta. Os Oblatos de Maria improvisaram um estupendo desjejum nos claustros do santuário.310


Dessa maneira ia-se vencendo o respeito humano, aumentava o número de jovens e tinha-se a oportunidade de insinuar com a máxima prudência os bons costumes, o respeito para com a autoridade e a freqüência dos santos sacramentos. Tais novidades, porém, davam o que falar.


Nesse ano a prefeitura de Turim mandou outra comissão composta pelo cavalheiro Pedro Ropolo del Capello,311 chamado Moncalvo,312 e o comendador Dupré, a fim de verificar o que a voz comum divulgava de maneira muito confusa. Ficaram muito satisfeitos; após o devido relatório, foi decretada uma ajuda de 1 mil francos, com carta muito elogiosa.313 A partir desse ano a prefeitura desti­nou uma subvenção anual, paga todos os anos até 1878. Nesse ano foram-nos negados os 300 francos que a comissão destinara para pagar a conta de luz das aulas noturnas em beneficio dos filhos do povo.


A Obra da Mendicidade, que, com nosso método, também havia introduzido as escolas noturnas e musicais, mandou uma delegação presidida pelo cavalheiro Gonella para fazer-nos uma visita. Como sinal de aprovação deram-nos outro prêmio de 1 mil francos.


Costumávamos ir juntos todos os anos visitar os santos sepulcros da quinta-feira santa; mas por causa de algumas chacotas, ou melhor, do desprezo de que éramos alvo, muitos não se atreviam a juntar-se aos colegas. Para animar os nossos jovens a desprezar o respeito humano, naquele ano fomos pela primeira vez processionalmente, cantando o “Stabat Mater” e o “Miserere”. Viram-se então jovens de toda idade e condição incorporarem-se sem medo às nossas fileiras durante o trajeto. Tudo transcorreu com ordem e tranqüilidade.


À tarde celebrou-se pela primeira vez a função do lava-pés. Para isso foram escolhidos 12 meninos, aos quais costuma-se chamar de os 12 apóstolos. Após a cerimônia que seguiu o ritual, fez-se uma prática para todo o povo. Em seguida os 12 apóstolos foram admitidos a uma ceia frugal e ganharam um pequeno presente, que com muita alegria levaram para a própria casa.


Naquele ano foi ereta regularmente a via-crúcis314 e bentas com grande solenidade as estações. Em cada estação fazia-se breve prática e cantava-se um motete religioso adequado.


Dessa maneira ia-se consolidando nosso humilde Oratório. Entretanto ocorriam graves acontecimentos públicos que deviam mudar o aspecto da política da Itália e talvez do mundo.315



11º

O ANO 1849 - FECHAMENTO DOS SEMINÁRIOS - CASA PINARDI - ÓBOLO DE SÃO PEDRO; TERÇOS DE PIO IX - ORATÓRIO DO ANJO DA GUARDA316 - VISITA DOS DEPUTADOS


Foi um ano particularmente memorável. A guerra do Piemonte contra a Áustria, começada no ano anterior, havia abalado toda a Itália. As escolas públicas estavam fechadas; os seminários, especialmente o de Chieri e o de Turim, também haviam fechado e estavam ocupados pelos militares; por conseguinte os clérigos da nossa diocese ficaram sem professores e sem local onde reunir-se.


Foi então que para ter pelo menos a consolação de haver feito o possível para mitigar a calamidade pública, resolvemos alugar toda a casa Pinardi. Os inquilinos ficaram furiosos; ameaçaram-me a mim, à minha mãe e ao proprietário. Foi preciso fazer um grande sacrifício pecuniário, mas por fim conseguiu-se que o edifício ficasse inteiramente à nossa disposição.317 Desta sorte aquele ninho de iniqüidade, que havia vinte anos achava-se a serviço de Satanás, ficou em nosso poder. Ocupava todo o espaço que forma o atual pátio entre a igreja de Maria Auxiliadora e a casa que fica atrás.


Pudemos assim aumentar nossas salas de aula, ampliar a igreja, duplicar o espaço para o recreio, e o número de jovens elevou-se a 30. Mas o fito principal era poder recolher, como de fato aconteceu, os clérigos da diocese; pode-se dizer que a casa do Oratório foi por quase vinte anos o seminário diocesano.318


Em fins de 1848, os acontecimentos políticos forçaram o Santo Padre Pio IX a fugir de Roma e refugiar-se em Gaeta. Este grande pontífice já muitas vezes usara de benevolência para conosco. Ao espalhar-se a voz de que ele se encontrava em má situação financeira, abriu-se em Turim uma coleta sob o título de óbolo de São Pedro. Uma comissão composta do teólogo cônego Francisco Valinotti319 e do marquês Gustavo Cavour veio ao Oratório. Nossa coleta rendeu 35 francos. Era pouca coisa, que procuramos tornar de alguma maneira agradável ao Santo Padre mediante uma dedicatória que ele muito apreciou. Manifestou seu agrado numa carta dirigida ao cardeal Antonucci, então núncio em Turim e atual­mente arcebispo de Ancona, encarregando-o de exprimir-nos quão consoladora havia sido para ele a nossa oferta, e mais ainda os pensamentos que a acompanhavam.


Com sua bênção apostólica, Pio IX enviava um pacote com 60 dúzias de terços, que foram solenemente distribuídos dia 20 de julho desse ano. Veja-se o opúsculo impresso na ocasião e diversos jornais. E ainda a carta do cardeal Antonucci, núncio em Turim.320


Em vista do número crescente de rapazes da cidade que acudiam aos oratórios, foi preciso pensar noutro local, surgindo assim o Oratório do Santo Anjo da Guarda, em Vanchiglia,321 pouco distante do lugar onde, por especial cooperação da marquesa Barolo, ergueu-se depois a igreja de Santa Júlia.322


O padre João Cocchis havia fundado vários anos antes aquele Oratório com uma finalidade algo semelhante à nossa. Contudo, inflamado de amor pátrio, julgou bem ensinar seus alunos a manejar o fuzil e a espada, para colocar-se à frente deles e marchar, como realmente fez, contra os austríacos.


O Oratório ficou fechado um ano. Depois nós o alugamos, e a direção foi confiada ao teólogo Gioanni Vola,323 de saudosa memória. Manteve-se aberto até o ano 1871, quando foi transferido para a igreja paroquial. A marquesa Barolo deixou um legado para esse fim, com a condição expressa de que local e capela se destinassem a jovens pertencentes à paróquia, como ainda hoje acontece.


Por esse tempo honrou-nos com sua presença uma comissão de senadores, que vieram ao Oratório juntamente com outra enviada pelo Ministério do Interior.324 Viram todos e tudo, num clima de grande cordialidade. Fizeram depois longo relatório à Câmara dos Deputados. Isso provocou longa e viva discussão, que se pode ler na Gazzetta Piemontese, de 29 de março de 1850. A Câmara dos Deputados concedeu aos nossos jovens uma ajuda de 300 francos. Urbano Ratazzi,325 então ministro do Interior, decretou a soma de 2 mil francos. Consultem-se os documentos.


Finalmente tive a satisfação de ver um dos meus alunos receber o hábito eclesiástico. Ascânio Sávio, atual reitor do Refúgio, foi o primeiro clérigo do Oratório;326 vestiu a batina em fins de outubro daquele ano.


FESTAS NACIONAIS327


Um fato novo ocasionou naqueles dias não poucos inconvenientes às nossas atividades. Pretendia-se que nosso humilde Oratório tomasse parte nas manifestações públicas que se vinham repetindo nas cidades e povoados sob o nome de festas nacionais. Os que nela tomavam parte e queriam mostrar-se publicamente amantes da nação, repartiam os cabelos sobre a fronte e deixavam-nos cair anelados para trás; vestiam um casaco impecável de várias cores e com a bandeira nacional, e colocavam medalha e cocar azul sobre o peito. Assim vestidos, caminhavam como em procissão, entoando hinos à unidade nacional.


O marquês Roberto d’Azeglio,328 principal promotor de tais demonstrações, fez-nos convite formal e, não obstante minha recusa, providenciou o necessário para que pudéssemos fazer boa figura entre os demais. Estava-nos reservado um lugar na praça Vittorio, ao lado de institutos de todos os nomes, finalidades e condições.


Que fazer? Recusar seria declarar-me inimigo da Itália; aceitar significava admitir princípios que eu julgava de funestas conseqüências.329


Senhor marquês – respondi –, a minha família, os jovens da cidade que aqui se recolhem, não são uma entidade moral; eu me tornaria ridículo caso pretendesse ser dono de uma instituição que pertence inteiramente à caridade dos cidadãos.


Melhor ainda. Saiba a caridade dos cidadãos que a obra nascente não é contrária às instituições modernas. Isso o favorecerá: aumentarão as ofertas; a prefeitura e eu mesmo seremos dadivosos convosco.


Senhor marquês, é meu firme propósito conservar-me afastado de tudo quanto se refere à política. Nem a favor, nem contra.


Que deseja fazer, então?


Fazer o pouco de bem que puder aos meninos abando­nados, empregando todas as minhas forças a fim de que se tornem bons cristãos em face da religião, honestos cidadãos na sociedade civil.


Compreendo tudo. Mas o senhor está equivocado, e se persistir nesse princípio, será abandonado por todos, e sua obra se tornará impossível. É preciso estudar o mundo, conhecê-lo e colocar as instituições antigas e modernas à altura dos tempos.


Agradeço-lhe a benevolência e os conselhos que me dá. Convide-me para qualquer coisa em que o padre possa exercer a caridade, e me verá pronto a sacrificar vida e haveres; quero, porém, manter-me agora e sempre à margem da política.330


O renomado político despediu-se cortesmente, e de aí em diante não houve mais relação entre nós. Depois dele, vários outros leigos e eclesiásticos me abandonaram. Mais, depois do fato que vou contar, fiquei praticamente só.



13º

UM FATO CONCRETO331


No domingo depois da festa anteriormente descrita, às 2 da tarde, estava eu no recreio com os jovens. Um deles estava lendo L’Armonia,332 quando chegam os padres que costumavam ajudar-me no sagrado ministério. Apresentaram-se incorporados, com medalha, cocar, bandeira tricolor e um jornal realmente censurável chamado Opinione.333 Um deles, assaz respeitável por zelo e doutrina, dirige-se a mim e vendo L’Armonia nas mãos de quem estava ao meu lado, começou a falar.


Que vergonha! Já é tempo de acabar com estes carolas!


Assim dizendo, arrancou o jornal das mãos do leitor, fê-lo em mil pedaços, jogou-o por terra, e, cuspindo, pisoteou-o e esmagou-o muitas vezes. Passado o primeiro ímpeto de desafogo político, chegou-se a mim.


Este sim que é um bom jornal – disse, aproximando o jornal do meu rosto –; este e não outro é que os verdadeiros e honestos cidadãos devem ler.


Fiquei desconcertado ante esse modo de falar e proceder, e não querendo que aumentasse o escândalo num lugar onde se devia dar bom exemplo, limitei-me a pedir a ele e aos seus colegas que tratassem desses argumentos em particular e somente entre nós.


Não, senhor – replicou –, já não deve haver particular nem segredo. Tudo deve ser exposto à luz do dia.


Nesse momento a sineta nos chamou a todos para a igreja, inclusive um daqueles eclesiásticos, que havia sido encarregado de fazer uma pregaçãozinha moral aos nossos pobres rapa­zes. Mas nessa vez foi deveras inconveniente: as palavras liberdade, emancipação, independência ressoaram durante todo o tempo do sermão.


Eu estava na sacristia, querendo intervir e pôr um freio à desordem, mas o pregador saiu logo da igreja, e apenas terminada a bênção, convidou padres e jovens a unirem-se a ele; entoando, então, a plenos pulmões hinos patrióticos, fazendo ondear freneticamente a bandeira, foram em desfile para as bandas do Monte dos Capuchinhos.334 Lá fizeram a promessa formal de não mais voltar ao Oratório, a não ser que fossem convidados e recebidos com todas as formas nacionais.


Tais coisas iam-se sucedendo umas às outras sem que pudesse expor meu ponto de vista nem aduzir minhas razões. Eu, todavia, não me impressionava com nada que se opusesse aos meus deveres. Mandei dizer a esses padres que estavam severamente proibidos de voltar ao Oratório, e os jovens deveriam apresentar-se a mim, um por um, antes de entrar novamente. A coisa deu certo. Nenhum dos padres tentou voltar. Os rapazes pediram desculpa, alegando haverem sido enganados, e prometeram obediência e disciplina.335



14°

NOVAS DIFICULDADES - UMA CON­SOLAÇÃO - O ABADE ROSMINI E O ARCIPRESTE PEDRO DE GAUDENZI


Acontece que não fiquei sozinho. Nos dias festivos começava a confessar bem cedo e celebrava às 9 horas; em seguida pregava, dava aula de canto e de literatura até meio-dia. À 1 da tarde, recreio, depois catecismo, vésperas, instrução, bênção, e depois recreio, canto e aula até à noite.


Nos dias de semana, cuidava dos meus aprendizes, dava aulas do curso ginasial a uns 10 meninos; à tarde, aula de francês, aritmética, canto gregoriano, música vocal, piano e órgão; tudo por minha conta. Não sei como pude agüentar, Deus me ajudou! Encontrei nesses momentos grande ajuda e apoio no teólogo Borel. O maravilhoso sacerdote, apesar de sobrecarregado de outras gravíssimas ocupações do sagrado ministério, aproveitava o mínimo retalho de tempo para dar-me a mão. Não poucas vezes roubava horas de sono para vir confessar os jovens; negava repouso ao corpo cansado, para pregar.


Situação tão crítica durou até que pude receber alguma ajuda dos clérigos Sávio, Bellia336 e Vacchetta, dos quais, por outra parte, me vi logo privado, porque, atendendo às sugestões de outros, deixaram-me, sem dizer palavra, para entrar nos Oblatos de Maria.337


Num dia festivo fui visitado por dois sacerdotes que julgo oportuno nomear.338 Ao começar o catecismo, estava preocupado em organizar as classes, quando se apresentaram dois eclesiásticos que, em atitude humilde e respeitosa, vinham felicitar-me e pedir notícias sobre a origem e métodos de nossa instituição. Disse-lhes, como única resposta:


Tenham a bondade de ajudar-me. O senhor vá ao coro e cuide dos maiorzinhos. Ao senhor – disse ao mais alto dos dois – confio esta classe que é a dos mais bulhentos.


Notando que davam catecismo maravilhosamente bem, pedi a um deles que fizesse uma pequena prática aos nossos jovens, e ao outro que desse a bênção do Santíssimo. Ambos aceitaram de muito boa vontade.


O sacerdote de menor estatura era o abade Antônio Rosmini, fundador do Instituto da Caridade; o outro era o cônego arcipreste De Gaudenzi, atualmente bispo de Vigevano. A partir de então, tanto um como o outro mostraram-se sempre amigos e benfeitores desta casa.



15º

COMPRA DA CASA PINARDI339 E DA CASA BELEZA - O ANO DE 1850


O ano 1849 foi espinhoso e estéril, não obstante haver-me custado grandes fadigas e sacrifícios enormes; serviu, contudo, como preparação para o ano 1850, menos borrascoso e muito mais fecundo em bons resultados.


Comecemos pela casa Pinardi.


Os que haviam sido desalojados da casa não queriam conformar-se.


Não dá raiva – andavam repetindo – que uma casa de divertimento e descanso caia nas mãos de um padre e, ainda mais, de um padre intolerante?


Ofereceram a Pinardi um aluguel quase duas vezes maior que o nosso. Ele, entretanto, sentia grande remorso em conse­guir maior lucro por negócios imorais; pelo que havia-me, em várias ocasiões, proposto a venda, caso quisesse comprá-la. Mas suas exigências eram exorbitantes. Pedia 80 mil francos por um edifício cujo valor devia ser apenas um terço.


Deus quis mostrar que é dono dos corações. Eis como.


Um domingo, enquanto o teólogo Borel estava a pregar, e eu, na porta do pátio, a fim de evitar aglomeração e desordens, apresentou-se o senhor Pinardi.


Pronto – disse –. Dom Bosco precisa comprar minha casa.


Pronto. É preciso que o senhor Pinardi ma dê pelo seu preço. Nesse caso compro já.


Claro que a dou pelo seu preço.


Quanto?


Pelo preço de sempre.


Não posso pagá-lo.


Faça uma oferta.


Não posso.


Por quê?


Porque é um preço exagerado. Não quero ofendê-lo.


Ofereça o que quer.


Vai dá-la pelo seu valor?


Dou. Palavra de honra!


Aperte a mão e farei a oferta.


Quanto?


Mandei um amigo seu e meu340 avaliar a casa e ele garantiu que, no estado em que se encontra, pode valer entre 26 e 28 mil francos; e eu, para fechar o negócio, dou-lhe 30 mil.


Dará ainda um alfinete de 500 francos à minha mulher?


Pois não.


Pagará em dinheiro?


Em dinheiro.


Quando faremos a escritura?


Quando o senhor quiser.


Dentro de quinze dias a partir de amanhã, tudo de uma vez.


Tudo como o senhor quer.


Cem mil francos de multa a quem voltar atrás.


Feito.


Em cinco minutos fechou-se o negócio. Onde, porém, arranjar essa quantia em tão pouco tempo?


A divina Providência começou então a agir elegantemente.


Naquela mesma tarde, o padre Cafasso, coisa insólita nos domingos, veio visitar-me e me disse que uma piedosa pessoa, a condessa Casazza-Riccardi, encarregara-o de dar-me 10 mil francos para serem empregados no que eu julgasse da maior glória de Deus. No dia seguinte, apresenta-se um religioso rosminiano, que vinha a Turim para aplicar a juros a quantia de 20 mil francos, e me pedia conselho. Propus-lhe que mos emprestasse para cumprir o contrato com Pinardi, e assim juntei a soma necessária.341 Os 3 mil francos de despesas acessórias foram fornecidos pelo cavalheiro Cotta,342 em cujo banco foi passada a suspirada escritura.


Garantida dessa maneira a aquisição do edifício, começou-se a pensar no outro, o da Jardineira. Era uma taverna onde nos domingos e feriados costumavam reunir-se os amigos da boa vida. Realejos, pífaros, clarinetas, violões, violinos, baixos, contrabaixos e cantos de todos os gêneros faziam-se ouvir o dia inteiro; muitas vezes reuniam-se todos de uma vez para seus concertos. Um simples muro separava do edifício da casa Beleza o nosso pátio, e, assim, freqüentemente os cantos da nossa capela eram dominados ou sufocados pelo barulho da música e das garrafas da Jardineira. É fácil imaginar quanto isso nos incomodava e que perigo representava para nossos jovens.


Para livrar-nos de tão graves inconvenientes, tentei comprá-la, mas não consegui Procurei alugá-la, com o que a dona concordava. Todavia a dona da taverna exigia uma indenização excessiva. Fiz então a proposta de ficar com toda a hospedaria, responsabilizando-me pelo aluguel e comprando todo o mobiliário dos quartos, mesas, adega, cozinha etc.343 Pagando tudo a bom preço, pude dispor livremente do local, que destinei logo a outra finalidade. Desta sorte ficava eliminado o segundo foco de maldade que ainda existia em Valdocco perto da casa Pinardi.



16º

IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE SALES


Eliminados os aborrecimentos que nos causavam a casa Pinardi e a Jardineira, era necessário pensar numa igreja mais decorosa para o culto e mais conforme às crescentes necessidades. A antiga havia sido ampliada – correspondia ao lugar onde está atualmente o refeitório dos superiores (1875) –, mas era incômoda pela diminuta capacidade e pouca altura.344 Para entrar era preciso descer dois degraus; por conseguinte, ficávamos alagados no inverno e no tempo da chuva, ao passo que no verão sentíamo-nos sufocados pelo calor e excessivo cheiro de mofo. Poucos eram os domingos em que não acontecia um aluno desmaiar e ser levado para fora meio asfixiado. Era preciso, pois, construir um edifício mais adequado ao número de meninos, mais ventilado e saudável.


O cavalheiro Blachier345 fez um projeto, cuja execução nos proporcionou a atual igreja de São Francisco e o edifício que limita com o pátio ao lado da igreja. O empresário foi o senhor Frederico Bocca.


Abertos os alicerces, procedeu-se à bênção da pedra fundamental, a 20 de julho de 1851. O cavalheiro José Cotta colocou-a em seu lugar; o cônego Moreno, ecônomo-geral, benzeu-a;346 o célebre padre Barrera,347 comovido à vista da multidão presente, subiu a uma elevação de terra e improvisou estupendo discurso de ocasião. Começou com estas textuais palavras:

Senhores, a pedra que acabamos de benzer e colocar como fundamento desta igreja, tem dois grandes significados. Significa o grão de mostarda, que crescerá qual árvore mística, em cuja sombra muitos meninos virão refugiar-se; significa que esta obra se constrói sobre a pedra angular que é Cristo Jesus, contra a qual baldados serão os esforços dos inimigos da fé por abatê-la”.


Demonstrava a seguir ambas as proposições com grande satisfação dos ouvintes, que tinham por inspirado o eloqüente pregador.


Eis a ata etc. (Transcreva-se a ata da solenidade.)348


Tão ruidosas festas atraíam meninos de todas as partes da cidade, e a qualquer hora do dia vinham em grande quantidade; alguns pediam que os alojássemos em nossa casa. Naquele ano o número passou dos 50, e começamos algumas oficinas em casa, já que se evidenciavam cada vez mais os inconvenientes de os rapazes saírem para trabalhar na cidade.


Começava a erguer-se o sagrado e suspirado edifício, quando vi que as finanças estavam totalmente esgotadas. Tinha juntado 35 mil francos com a venda de alguns imóveis, mas desapareceram como gelo ao sol. O Economato destinou para nós 9 mil francos,349 mas a serem entregues quando a obra estivesse quase completa. O bispo de BielIa, dom Pedro Losana, convencido de que o novo edifício e toda a instituição iam ser particularmente úteis aos jovens pedreiros de Biella, escreveu uma circular aos seus párocos, convidando-os a concorrerem com seu óbolo.350 (Transcreva-se a circular.)351


A coleta rendeu 1 mil francos. Mas eram gotas d’água em terra seca. Por isso organizou-se uma rifa com objetos recebidos de presente. Era a primeira vez que recorria dessa maneira à caridade pública, e a rifa foi muito bem-aceita.352 Recolheram-se 3.300 prendas.353


O sumo pontífice, o rei, a rainha-mãe,354 a rainha consorte, e em geral toda a corte distinguiram-se com suas ofertas. Venderam-se todos os bilhetes (a 50 cêntimos cada um), e por ocasião do sorteio público355 na prefeitura houve quem os procurasse oferecendo 5 francos, sem podê-los encontrar. Pode-se transcrever o programa e o regulamento da rifa.356


Muitos ganhadores deixavam prazerosamente o prêmio para a igreja. O que resultou em novo ganho. É verdade que houve grandes despesas, mas lucraram-se 26 mil francos.357



17°

EXPLOSÃO DO PAIOL - GABRIEL FASCIO - BÊNÇÃO DA NOVA IGREJA


Durante a exposição pública das prendas, deu-se (26 de abril de 1852) a explosão do paiol situado junto ao cemitério de São Pedro in vinculis,358 provocando assustador e violento abalo. Muitos edifícios, próximos e distantes, foram sacudidos, sofrendo grandes danos. Houve 28 vítimas entre os trabalhadores. Muito maior teria sido o desastre se um sargento chamado Sacco não houvesse impedido, com grande risco de vida, que o fogo alastrasse, atingindo maior quantidade de pólvora, podendo até destruir toda a cidade de Turim. A casa do Oratório, uma construção precária, sofreu muito; e os deputados nos enviaram 300 francos para ajudar a reparar os estragos.


Quero a este propósito contar um fato que se refere a um nosso jovem aprendiz chamado Gabriel Fascio.


No ano anterior caíra doente, chegando às portas da morte.


Nos momentos de delírio, repetia:


Ai de Turim! Ai de Turim!


Os companheiros perguntavam:


Por quê?


Porque está ameaçada de um grande desastre.


Que desastre?


Um horrível terremoto.


E quando acontecerá?


No ano que vem. Oh! ai de Turim, a 26 de abril!


Que é que devemos fazer?


Rezar a São Luís para que proteja o Oratório e os que nele moram.


Foi então que, a pedido de todos os meninos da casa, acrescentou-se, pela manhã e à noite, um Pai-nosso, uma Ave-Maria e um Glória ao Pai a este santo nas orações em comum. Nossa casa, de fato, pouco sofreu em comparação com o perigo, e os jovens que nela residiam não sofreram nenhum dano pessoal.359


Entretanto, os trabalhos da igreja de São Francisco de Sales progrediam em meio a uma atividade incrível, e no espaço de onze meses a igreja estava pronta. A 20 de junho de 1852 foi consagrada ao culto divino, com uma solenidade mais única do que rara entre nós.360 Ergueu-se à entrada do pátio um arco de altura colossal. Nele estava escrito com letras garrafais: “Em caracteres doirados – escreveremos em todos os lados: – Viva eterno este dia”.


Por todas as partes ecoavam estes versos musicados pelo maestro José Blanchi, de grata memória:


Voltará o sol do ocaso

chegar ao seu oriente,

Todo o rio à sua nascente

Há de um dia remontar;

Mas jamais olvidaremos

Esta data, que queremos

Para sempre recordar.


Rezou-se e cantou-se com grande entusiasmo a seguinte poesia:


Qual avezinha que busca

De ramo em ramo um abrigo (etc.).361


Muitos jornais falaram da solenidade: veja L’Armonia e Patria daqueles dias.362


No dia 1º de junho desse mesmo ano deu-se início à Sociedade de Mútuo Socorro,363 a fim de impedir que os nossos jovens se inscrevessem na chamada Sociedade dos Operários,364 que desde o início não dissimulou seus princípios anti-religiosos. Veja-se o opúsculo impresso. Cumpriu à maravilha seus objetivos. Mais tarde nossa sociedade transformou-se em conferência anexa às de São Vicente de Paulo, e ainda existe.365


Terminada a igreja, era preciso provê-la de todo o necessário. A caridade cristã não falhou. O comendador José Dupré mandou decorar uma capela que foi dedicada a São Luís, e comprou o altar de mármore que ainda hoje adorna aquela igreja. Outro benfeitor mandou fazer o coro, no qual foi colocado o pequeno órgão destinado aos jovens externos. O senhor Miguel Scannagatti366 comprou um jogo completo de castiçais; o marquês Fassati367 mandou fazer o altar de Nossa Senhora, adquiriu um jogo completo de castiçais de bronze e mais tarde a estátua de Nossa Senhora.368 O padre Cafasso pagou todas as despesas do púlpito. O altar-mor foi donativo do doutor Francisco Vallauri e completado por seu filho, o padre Pedro.369 Dessa maneira a nova igreja viu-se em pouco tempo provida de tudo o que era preciso para a celebração das funções, simples ou solenes.



18º

O ANO 1852


Com a nova igreja de São Francisco de Sales, a sacristia e o campanário, facilitava-se aos rapazes que o desejassem a assistência às sagradas funções nos dias festivos, e às escolas noturnas e também diurnas. Mas como atender à multidão de pobres meninos que a todo o momento pediam morada? Tanto mais que a explosão do paiol, no ano anterior, havia quase arruinado o antigo edifício. Naquele momento de suprema necessidade, decidimos acrescentar um novo braço ao edifício. Para aproveitar ainda o velho local, começou-se o novo em sítio separado, isto é, desde o final do atual refeitório até à fundição de tipos.


Os trabalhos avançaram com grande rapidez, e embora o outono já estivesse um tanto adiantado, chegou-se até à cobertura. Estava já colocada toda a armação de madeira, as telhas amontoadas sobre as vigas para posterior colocação, quando violento aguaceiro fez interromper o trabalho. A água caiu torrencialmente durante vários dias e várias noites, e escorrendo por traves e listéis, levou consigo a argamassa, deixando a descoberto os tijolos e as pedras.


Seria meia-noite, estávamos todos descansando, quando se ouviu um rumor violento que se fazia cada vez mais intenso e assustador. Todos acordam, e não sabendo o que estava acontecendo, cheios de terror enrolam-se nos cobertores ou nos lençóis, saem do dormitório e fogem em confusão sem saber para onde, com o fito de apartar-se do perigo iminente. Cresce a desordem e o barulho; a armação do teto, as telhas misturam-se ao material das paredes e tudo cai em ruínas com imenso estrondo.


Como a construção se apoiava na parede do baixo e velho edifício, temia-se que todos ficassem esmagados sob as ruínas; mas nada houve a lamentar, a não ser um espantoso estrondo, que não causou nenhum dano pessoal.


Ao amanhecer, recebemos a visita de alguns engenheiros municipais. O cavalheiro Babbetti,370 ao ver uma alta coluna deslocada da base pender sobre um dormitório, exclamou:


Vão agradecer a Nossa Senhora da Consolata. Aquela coluna está de pé por milagre. Se caísse teria sepultado nos destroços a Dom Bosco com os 30 rapazes que dormiam aí embaixo.


Os trabalhos eram por empreitada, por isso o maior prejuízo tocou ao mestre-de-obras. Nosso prejuízo foi avaliado em 10 mil francos. O desastre aconteceu à meia-noite de 2 de dezembro de 1852.


Em meio às contínuas e tristes vicissitudes que oprimem a pobre humanidade há sempre a mão bondosa do Senhor que mitiga nossas desgraças. Se o desastre houvesse acontecido duas horas antes, teria sepultado os nossos alunos das escolas noturnas, que terminavam as aulas às 10. Saindo das classes, os 300 alunos enfiaram-se durante mais de meia hora pelos locais em construção. Pouco depois acontecia a derrocada.


O adiantado da estação já não permitia, não digo concluir, mas sequer recomeçar os trabalhos da casa em ruínas. Quem nos livraria, então, dos apertos? Que fazer em meio a tantos jovens, com tão pequeno espaço e meio arruinado? Fez-se da necessidade virtude. A antiga igreja, depois de reforçadas as paredes, foi transformada em dormitório. As aulas foram transferidas para a igreja nova, que destarte era igreja nos dias de guarda e colégio durante a semana.


Construiu-se também nesse ano o campanário ao lado da igreja de São Francisco de Sales,371 e o generoso senhor Miguel Scannagatti presenteou o altar-mor com o elegante jogo de castiçais que constitui ainda hoje um dos mais lindos ornamentos da igreja.



O ANO 1853


Assim que o tempo permitiu, pusemo-nos novamente a erguer o edifício que viera abaixo. Os trabalhos progrediram celeremente, de modo que no mês de outubro o edifício estava concluído.372 Havendo grande necessidade de local, ocupamo-lo imediatamente. Pela primeira vez pisei então no quarto em que, por graça de Deus, moro até agora.373 As aulas, o refeitório e o dormitório foram-se instalando e organizando, e o número de internos elevou-se a 65.


Vários benfeitores continuaram a enviar-nos presentes. O cavalheiro José Dupré pagou de seu bolso a balaustrada de mármore no altar de São Luís; mandou ornamentar o altar e estucar toda a capela.374 O marquês Domingos Fassati deu a pequena balaustrada do altar de Nossa Senhora e um jogo de castiçais de bronze dourado para o mesmo altar. O conde Cays,375 nosso insigne benfeitor, pela segunda vez prior da Companhia de São Luís, pagou-nos velha dívida de 1.200 francos ao padeiro, que já começava a fazer dificuldades para fornecer o pão. Comprou um sino que mereceu simpática festa. O teólogo Gattino, nosso cura, de feliz memória, veio benzê-lo;376 depois dirigiu palavras de ocasião ao grande número de pessoas vindas da cidade. Após as sagradas funções foi representada uma comédia que proporcionou a todos muita alegria. O próprio conde Cays providenciou um belo tecido, com o qual se fez o atual baldaquim e outros adornos de igreja.


Provida a nova igreja das coisas mais necessárias para o culto, pôde-se finalmente atender pela primeira vez ao desejo de muitos com a exposição das quarenta horas. Não houve grande riqueza de ornamentos, mas numeroso concurso de fiéis. Para secundar o fervor religioso e proporcionar a todos comodidade de satisfazer a própria devoção, depois das quarenta horas fez-se um oitavário377 de pregações, que foi literalmente empregado em ouvir confissões da multidão. Essa desusada afluência fez com que nos anos sucessivos se continuasse a fazer a exposição das quarenta horas com pregação regular, grande freqüência aos santos sacramentos e outras práticas de piedade.



LEITURAS CATÓLICAS


No mês de março desse ano378 começou a publicação periódica das Leituras Católicas. Em 1847, quando se deu a emancipação dos judeus e dos protestantes, fez-se necessário algum antídoto para oferecê-lo aos fiéis em geral, especialmente à juventude. Parecia que com aquele ato o governo queria apenas dar liberdade a todos os credos, sem detrimento, porém, do catolicismo. Não entenderam assim os protestantes, e puseram-se a fazer propaganda com todos os meios possíveis. Três jornais (La Buona Novella, La Luce Evangelica, I1 Rogantino Piemontese379), muitos livros bíblicos e não bíblicos, eram meios com que inten­tavam fazer prosélitos. Ademais ofereciam ajuda, arrumavam empregos, proporcionavam trabalho, ofereciam dinheiro, roupa, comestíveis aos que iam às suas escolas ou freqüentavam suas conferências ou simplesmente seus templos.380


O governo de tudo sabia e deixava o barco correr, e com seu silêncio acobertava-os de maneira eficaz. Acrescente-se que os protestantes estavam preparados e fornecidos de todos os meios materiais e morais, ao passo que os católicos, confiados nas leis civis que até então os haviam protegido e defendido, dispunham apenas de alguns jornais, de algumas obras clássicas ou de erudição; mas não tinham um só jornal ou livro que estivesse propriamente ao alcance do povo simples.381


Nessas circunstâncias, para fazer frente a essa necessidade, comecei a redigir alguns quadros sinóticos sobre a Igreja católica e outros folhetos intitulados: Lembrança para os católicos. Fi-los distribuir entre os rapazes e os adultos, especialmente, por ocasião de exercícios espirituais e de missões. Os folhetos e opúsculos foram acolhidos com vivo interesse, e em pouco tempo foram distribuídos vários milheiros. Isso me persuadiu da necessidade de algum meio popular para facilitar o conhecimento dos princípios fundamentais do catolicismo. Então publiquei o livreto Avisos aos católicos, com a finalidade de alertar os católicos para que não se deixassem prender nas malhas dos herejes. A venda foi realmente extraordinária; em dois anos difundiram-se mais de 200 mil exemplares. Se isso agradou aos bons, enfureceu os protestantes, que se acreditavam os únicos donos do campo evangélico.382


Percebi então que era urgente preparar e publicar livros para o povo, e ocorreu-me a idéia das Leituras Católicas. Preparados alguns fascículos, queria publicá-los imediatamente. Surgiu, entretanto, uma dificuldade que não podia esperar nem imaginar. Nenhum bispo se atrevia a assumir-lhes a responsabilidade. Vercelli, Biella, Casale recusaram-se, alegando ser perigoso travar batalha com os protestantes.383 Dom Fransoni, que então residia em Lião, aprovou, recomendou, mas ninguém quis assumir sequer o risco da revisão eclesiástica. O cônego José Zappata,384 vigário-geral, foi o único que, a pedido do arcebispo, reviu a metade de um fascículo; depois me devolveu o manuscrito dizendo-me: “Aí tem seu trabalho; não me atrevo a assinar; o que aconteceu a Ximenes e Palma(1) é ainda multo recente. O senhor desafia e ataca de frente o inimigo, e eu prefiro bater em retirada enquanto é tempo”.

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() O padre Ximenes, diretor de um jornal católico, II Contemporaneo, de Roma, foi assassinado. Monsenhor Palma, secretário pontificio e colaborador do mesmo jornal, foi morto a bala nas salas do Quirinal.

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De acordo com o vigário-geral, expus tudo ao arcebispo, o qual me respondeu com uma carta para ser apresentada a dom Moreno,385 bispo de Ivrea. Nela pedia ao prelado que tomasse sob sua proteção a publicação planejada e a avalizasse com sua aprovação e autoridade. Dom Moreno prestou-se de boa vontade a colaborar; delegou, para a revisão, o advogado Pinoli, seu vigário-geral, que, todavia, não pôs o nome do censor. Estudou-se logo um plano, e a 1º de março de 1853 saiu o primeiro fascículo do Cattolico Istruito386 etc.



O ANO 1854


As Leituras Católicas foram recebidas com entusiasmo geral, e o número dos leitores foi extraordinário; de aí a fúria dos protestantes.387 Tentaram combatê-las com seus jornais, com suas Leituras Evangélicas;388 mas não conquistavam leitores. Começaram então toda sorte de ataques contra o pobre Dom Bosco. Um após outro vinham discutir, convencidos, diziam, de que ninguém podia resistir às suas razões; os padres católicos eram muito ignorantes, e por isso, com duas palavras, era possível confundi-los.


Vieram, pois, enfrentar-me ora um, ora dois, ora vários deles.389 Eu sempre os atendi, e lhes recomendava que apresentassem aos seus ministros as dificuldades que não sabiam resolver, e tivessem depois a gentileza de comunicar-me a resposta. Veio Amadeu Bert,390 em seguida Meille,391 o evangelista Pugno, depois outros e mais outros; mas não puderam conseguir que eu deixasse de falar nem de imprimir os nossos trabalhos; isso aumentou-lhes ainda mais a raiva.


Acho interessante contar alguns fatos relativos a esse assunto.


Um domingo de janeiro, à tarde, anunciaram-se dois senhores, que desejavam falar comigo. Entraram, e após prolongados cumprimentos e elogios, um deles começou a dizer:


Senhor teólogo, o senhor recebeu da natureza um grande dom, o de fazer-se compreender e ler pelo povo; por isso, gosta­ríamos de pedir-lhe que empregasse esse dom precioso em coisas úteis para a humanidade, em proveito da ciência, das artes, do comércio.


É justamente o que me proponho com as Leituras Católicas, às quais me dedico com toda a alma.


Seria melhor ocupar-se em algum bom livro para a juventude, como seriam uma história antiga, um tratado de geografia,

física e geometria, não, porém, nas Leituras Católicas.


Por que não?


Porque é um trabalho já feito muitas vezes por tantos outros.


Sim. Esse tipo de trabalho foi feito por muitos outros, mas em livros de erudição, fora do alcance do povo, que é justamente o que eu desejo atingir com as Leituras Católicas.


Mas é um trabalho que não lhe traz benefício algum; pelo contrário, se fizesse os trabalhos que lhe recomendamos, faria também um bem material à maravilhosa instituição que a Providência lhe confiou. Tome, já tem aqui alguma coisa (eram quatro notas de 1 mil francos), mas não será a última oferta. Receberá outras, maiores ainda.


Para que tanto dinheiro?


Para animá-lo a iniciar a publicação das obras de que acabamos de falar e para ajudar sua nunca assaz louvada instituição.


Perdoem-me, senhores, se lhes devolvo o dinheiro; de momento não me é possível dedicar-me a esse tipo de trabalho, mas unicamente às Leituras Católicas.


Mas se é um trabalho inútil...


Se é um trabalho inútil, por que se preocupam tanto? Por que gastar dinheiro para fazer-me desistir?


O senhor não percebe o que está fazendo. Com a recusa está prejudicando sua obra, expondo-se a certas conseqüências, a certos perigos...


Senhores, compreendo o que querem dizer. Digo-lhes, todavia, com toda a franqueza, que diante da verdade não temo a ninguém. Quando me fiz padre, consagrei-me ao bem da Igreja e ao bem da pobre humanidade, e pretendo continuar, na medida de minhas poucas forças, a publicar as Leituras Católicas.


Está cometendo um erro – acrescentaram com voz e fisionomia alteradas e pondo-se de pé –, o senhor está cometendo um erro. O senhor nos insulta. Quem sabe o que lhe pode acontecer aqui! E (em tom de ameaça) se sair de casa, terá a certeza de que poderá voltar?


Os senhores não conhecem os padres católicos. Enquanto estão vivos, trabalham para cumprir o próprio dever. Se em meio ao trabalho e justamente por isso tivessem que morrer, seria para eles uma grande ventura e a maior das glórias.


Mostravam-se ambos tão irritados, que receei me metessem as mãos. Levantei-me e, colocando a cadeira entre mim e eles, disse:


Não temo ameaças. Se quisesse, poderia usar a força, mas a força do padre está na paciência e no perdão. Agora, queiram retirar-se.


Contornando a cadeira, abri a porta do quarto e disse:


Buzzetti, acompanhe estes senhores até o portão, pois não conhecem bem a escada.


Ficaram confusos ante essa intimação e acrescentaram:


Havemos de ver-nos em ocasião mais oportuna.


Assim dizendo, saíram com o rosto e os olhos inflamados de raiva.


O episódio foi publicado por alguns jornais, especialmente por L’Armonia.




ATENTADOS PESSOAIS


Parecia existir todo um plano secreto contra mim,392 urdido pelos protestantes ou pela maçonaria. Contarei rapidamente alguns casos.


Uma noite, enquanto estava dando aula aos jovens, apresentaram-se dois homens, chamando-me para que fosse depressa ao Cuor d’Oro393 assistir um moribundo. Fui imediatamente, fazendo-me, contudo, acompanhar por alguns dos maiorzinhos.


Não é preciso – disseram – incomodar seus alunos. Nós o levaremos e traremos de volta. Talvez o doente se assuste com a presença deles.


Não se preocupem com isso – acrescentei –, esses alunos aproveitarão para um passeiozinho, e ficarão ao pé da escada o tempo que eu permanecer junto ao doente,


Chegados à casa do Cuor d’Oro, disseram:


Venha cá um instante, descanse um pouco enquanto vamos avisar o doente que o senhor chegou.


Levaram-me a um quarto no andar térreo, onde havia alguns amigos da boa vida que, depois de cear, estavam a comer castanhas. Receberam-me com intermináveis encômios e elogios, e queriam que me servisse e comesse das castanhas. Recusei, aduzindo que havia apenas terminado de cear.


Beberá pelo menos um copo do nosso vinho – insistiram –. Vai gostar, vem das bandas de Asti.


Não estou disposto, não estou habituado a beber fora das refeições; iria fazer-me mal.


Um copinho por certo não lhe fará mal.


E dizendo isso, serviram vinho para todos. Ao chegar a minha vez, mudaram garrafa e copo. Apercebi-me da perversa manobra. Isso, não obstante, tomei o copo nas mãos e fiz um brinde. Mas em vez de beber, tentei repô-lo na mesa.


Não faça isso, é uma desfeita – dizia um.


É um insulto – acrescentava outro –, não recuse.


Não estou disposto, não posso e não quero beber.


Deve beber a todo o custo!


Assim dizendo, um deles segurou-me o ombro esquerdo, outro o direito, acrescentando:


Não podemos tolerar este insulto. Beba, por amor ou à força.


Se querem mesmo que eu beba, beberei; deixem-me, porém, agir com liberdade. Como não posso beber, vou dá-lo a alguns dos meus rapazes para que o bebam em meu lugar.


Ao dizer, para disfarçar, essas palavras, dei um largo passo até à porta, abri e convidei os meus jovens a entrar.


Não é preciso, não é preciso que ninguém beba. Fique sossegado, vamos logo avisar o doente. Eles podem ficar aí no fundo da sala.


É evidente que não daria a ninguém aquele copo. Agi dessa maneira para descobrir-lhes a trama, que era de fazer-me beber veneno.


Em seguida fui conduzido a um quarto do 2º andar, onde, em vez de um doente, vi deitado o mesmo indivíduo que tinha vindo chamar-me, o qual, depois de haver respondido a algumas perguntas que lhe fiz, prorrompeu num frouxo de riso, dizendo:


Vou confessar-me amanhã de manhã.


Logo em seguida voltei para casa.


Uma pessoa amiga fez algumas investigações sobre as pessoas que me haviam chamado, sobre suas intenções, e pude certificar-me de que determinada pessoa lhes havia pago uma lauta ceia com a condição de insistirem para que eu bebesse um pouco do vinho que havia preparado.



AGRESSÃO - CHUVA DE PAULADAS


Parecem fábulas os atentados que estou narrando; são, não obstante, dolorosas verdades, que tiveram muitas testemunhas.

Eis aqui outro ainda mais surpreendente.


Uma tarde de agosto, pelas 6 horas, eu estava rodeado de meus jovens, no portão que dá para o pátio do Oratório, quando, de repente, se ouviu um grito:


Um assassino! Um assassino!


Efetivamente, um indivíduo que eu bem conhecia e a quem havia feito favores, corria furioso na minha direção, em mangas de camisa, com longa faca na mão, dizendo:


Onde está Dom Bosco? Onde está Dom Bosco?


Debandaram todos, e ele se pôs a correr atrás de um clérigo, pensando que fosse eu. Quando percebeu o engano, voltou furioso os passos para mim. Mal tive tempo de fugir escada acima para refugiar-me em meu antigo quarto. Apenas dei uma volta à chave, apareceu o infeliz. Batia, gritava, mordia as barras de ferro como para abri-las. Em vão, eu estava seguro. Meus jovens queriam enfrentar o miserável e reduzi-lo a pedaços, mas eu severamente proibi, e eles obedeceram. Avisou-se a segurança pública, a delegacia, os carabineiros, porém não se conseguiu nada até às 9 e meia da noite, quando dois carabineiros prende­ram o malandro e o levaram para o quartel.


No dia seguinte, o delegado mandou um agente perguntar-me se perdoava o criminoso. Respondi que perdoava aquela e outras injúrias; todavia, em nome da lei, recomendava às autoridades que protegessem melhor as pessoas e as casas dos cidadãos. Quem havia de dizer? No dia seguinte à mesma hora da agressão, o mesmo fulano estava esperando, a pouca distância, que eu saísse de casa.


Vendo que das autoridades nada se podia esperar, um amigo quis abordar o miserável.


Estou sendo pago – respondeu –; se me derem o que os outros me dão, vou embora em paz.


Foram-lhe dados 80 francos para pagar o aluguel vencido, e mais 80 para providenciar outra moradia longe de Valdocco; e assim terminou essa primeira comédia.394


Não foi tão simples a segunda, que agora passo a narrar.


Mais ou menos um mês após o fato anterior, num domingo à tarde, pediram-me que fosse depressa à casa Sardi, perto do Refúgio, para confessar uma doente, que, como diziam, estava em fim de vida. Em vista dos fatos anteriores, convidei vários jovens mais crescidos a me acompanharem.


Não é preciso – diziam – nós o acompanharemos, deixe os jovens brincar.


Mais uma razão para eu não sair sozinho. Deixei alguns na rua, ao pé da escada; João Buzzetti e Jacinto Arnaud postaram-se no 1º andar, no patamar da escada, a pouca distância da saída do quarto da doente.395


Entrei e vi uma mulher a ofegar como prestes a exalar o último respiro. Convidei os presentes, que eram quatro, a se afastarem para eu poder falar de assuntos da alma.


Antes de confessar-me – começou a dizer em voz alta –, quero que aquele patife aí na frente retire as calúnias com que me difamou.


Não – respondeu um homem.


Silêncio! – acrescentou outro, pondo-se de pé. E levantaram-se todos.


Sim, não, olha, te mato, te degolo, palavras desse jaez misturavam-se a horríveis imprecações, provocando um barulho infernal no quarto. Em meio a essa barafunda, apagaram-se as luzes, aumentou a algazarra, caiu uma chuva de pauladas na direção do lugar onde eu estava sentado. Adivinhei o plano: queriam acabar comigo. Naquele instante, sem tempo de pensar nem refletir, deixei-me guiar pelo instinto. Segurei uma cadeira, coloquei-a sobre a cabeça e debaixo dessa proteção improvisada encaminhei-me para a saída, recebendo os golpes que com grande ruído eram vibrados sobre a cadeira.


Deixando aquele antro de Satanás, atirei-me nos braços dos meus rapazes, que ao ouvirem o barulho e os gritos queriam a todo o custo entrar na casa. Não recebi nenhum ferimento grave, a não ser uma paulada no polegar da mão esquerda, que havia apoiado no espaldar da cadeira, arrancando a unha e metade de uma falange, como se pode ver pela cicatriz que ainda perdura. O pior foi o susto.


Não pude nunca saber o verdadeiro motivo desses ataques, mas parece que tudo foi tramado para atentar contra minha vida, a fim de fazer-me desistir, diziam eles, de caluniar os protestantes.



O GRÍGIO


O cão Grígio (cinzento) foi assunto de muitas conversas e hipóteses várias. Muitos de vós o haveis visto e até acariciado. Deixando agora de lado as histórias peregrinas que dele se contam, vou expor a pura verdade.


Os freqüentes atentados de que eu era alvo aconselharam-me a não andar sozinho ao ir à cidade de Turim ou de lá voltar. Àquela época o manicômio era o último edifício nas bandas do Oratório. O restante era terreno infestado de espinhos e acácias.


Numa tarde escura, já bastante adiantada, regressava para casa, com certo medo, quando vejo ao meu lado um enorme cão, que à primeira vista me assustou; como, porém, não me ameaçava agressivamente, pelo contrário, fazia-me festa como se fosse seu dono, travamos de imediato boas relações, e ele me acompanhou até o Oratório. O que aconteceu naquela tarde repetiu-se muitas outras vezes, de modo que posso dizer que o Grígio me prestou importantes serviços. Vou expor alguns.396


Em fins de novembro de 1854, numa tarde escura e chuvosa, voltava da cidade, e para não andar muito tempo pelo descampado, vinha pela rua que da Consolata leva ao Cottolengo. Em determinado ponto percebi que dois homens caminhavam a pouca distância na minha frente. Aceleravam ou diminuíam o passo, toda vez que eu acelerava ou diminuía o meu. Quando, para não me encontrar com eles, tentava passar para a parte oposta, eles com grande habilidade colocavam-se à minha frente. Quis voltar sobre meus passos, mas não houve tempo; dando dois pulos para trás, e sem dizer palavra, lançaram-me um manto sobre o rosto. Fiz quanto pude para não me deixar envolver, mas debalde; antes, um deles conseguiu amordaçar-me com um lenço. Queria gritar, mas já não podia. Nesse preciso momento apareceu o Grígio que, urrando como um urso, lançou-se com as patas contra o rosto de um, com a boca escancarada contra o outro, de maneira que mais lhes convinha envolver o cão do que a mim.


Chame o cachorro! – puseram-se a gritar, espantados.


Chamo, sim, mas deixem os transeuntes em paz.


Chame logo! – exclamaram.


O Grígio continuava a uivar como lobo ou urrar como urso enfurecido. Eles retomaram o caminho, e o Grígio, sempre ao meu lado, acompanhou-me até chegar à obra Cottolengo. Refeito do susto e recuperado com um bom copo de vinho que a caridade da obra oferece oportunamente às visitas, regressei ao Oratório bem escoltado.


Nas noites em que não estava acompanhado de alguém, assim que passava as últimas casas via despontar o Grígio de algum lado da rua. Muitas vezes o viram os jovens do Oratório, e certa vez serviu-lhes de entretenimento. Os jovens da casa viram-no entrar no pátio. Alguns queriam bater nele, outros atirar-lhe pedras.


Não o molestem – disse José Buzzetti –, é o cão de Dom Bosco.


Então puseram-se todos a acariciá-lo de todas as maneiras e acompanharam-no até o refeitório, onde eu estava ceando com alguns clérigos e padres, e com minha mãe. Ante tão inesperada visita, ficaram todos amedrontados.


Não tenham medo – disse –, é o meu Grígio, deixem-no vir.


Realmente, dando uma longa volta ao redor da mesa, veio ter comigo, fazendo festa. Eu também o acariciei e ofereci-lhe sopa, pão e carne, mas ele recusou. Mais: sequer cheirou a comida.


Que queres então? – perguntei.


Ele apenas abanou as orelhas e moveu a cauda.


Come, ou bebe, ou então mostra-te contente – concluí.


Continuando então a dar sinais de satisfação, apoiou a cabeça sobre meus joelhos, como se quisesse falar-me ou dar-me boa-noite; em seguida, com grande entusiasmo e alegria, os meninos o acompanharam para fora. Lembro-me que naquela noite havia regressado tarde para casa e que um amigo me havia trazido em sua carruagem.


A última vez que vi o Grigio397 foi em 1866, quando ia de Murialdo a Moncucco,398 à casa de Luís Moglia, meu amigo. O pároco de Buttigliera399 quis acompanhar-me por bom trecho de caminho, e isso fez com que me surpreendesse a noite no meio da estrada.


Oh! se tivesse aqui o meu Grígio – disse de mim para mim –, que bom que seria!


Assim dizendo, subi a um prado para desfrutar do último raio de luz. Naquele momento o Grígio veio correndo com grandes demonstrações de alegria em minha direção, e acompanhou--me pelo trecho de caminho que ainda devia percorrer, uns três quilômetros. Chegado à casa do amigo, que me estava esperando, advertiram-me que desse uma volta para que meu cachorro não se engalfinhasse com dois enormes cães da casa.


Vão-se estraçalhar, se se pegam – dizia Moglia.


Conversei com toda a família e fomos cear, ficando meu companheiro a descansar num canto da sala. Terminada a refeição, disse o amigo:


Vamos dar de comer a teu cachorro.


E tomando um pouco de comida, levou-a ao cão, mas não o encontrou, por mais que o procurasse por todos os cantos da sala e da casa. Todos ficaram admirados porque nenhuma porta, nenhuma janela fora aberta, e os cães não deram nenhum alarme. Procuraram o Grígio nos quartos de cima, mas ninguém o encontrou.


Foi essa a última notícia que tive do cão cinzento, objeto de tantas perguntas e discussões. Jamais soube de seu dono. Sei apenas que esse animal foi para mim uma verdadeira providência400 nos muitos perigos em que me vi metido.










































Esta obra foi composta pela divisão de produção

da Editora Salesiana e impressa na gráfica

das Escolas Profissionais Salesianas.

1 Da Introdução do padre Eugenio Ceria à edição de 1946.

2 Nas notas procuraremos apresentar os documentos de que Dom Bosco se serviu para escrever as Memórias, bem como apresentar pessoas e fatos a que o texto se refere.

3 Em Turim, o primeiro Oratório festivo a ser fundado foi o Oratório do Anjo da Guarda, fundado em 1840 pelo padre João Cocchi, no bairro do Moschino, e depois transferido para o bairro de Vanchiglia.

4 Cf. Pietro Braido, “Memorie del futuro”, RSS 20 (1992), p. 97-127.

5 Como aumenta sensivelmente em diversas universidades e faculdades o número de teses de mestrado e doutorado que tratam de Dom Bosco ou de argumentos salesianos, indicamos em nota também as fontes e outros instrumentos para pesquisa, a fim de facilitar a pesquisa a quem se dedicar a esses trabalhos.

6 A “alta autoridade” é o Papa Pio IX.

7 Dom Bosco sempre acreditou ter nascido a 15 de agosto. Só após sua morte, descobriu-se a verdade, ao consultar seu atestado de Batismo. Quando no Oratório se começou a comemorar seu aniversário, Mamãe Margarida, que poderia corrigir o erro, já havia falecido. Podemos ainda observar que no Piemonte diz-se muitas vezes que aconteceu na “Madonna d’agosto” algo ocorrido pouco antes ou pouco depois do dia 15. Se desde pequenino Dom Bosco ouviu dizer que nasceu na “Madonna d’agosto”, é natural que no dia 15 comemorasse seu aniversário.

8 Castelnuovo d’Asti (a partir de 14/2/1930, Castelnuovo Don Bosco) é um município com cerca de 4 mil habitantes, a 28 quilômetros de Turim. Ao redor do núcleo central, situam-se quatro aldeias (entre as quais Murialdo), onde se encontram os Becchi, pequeno grupo de casas rústicas (o nome Becchi deve-se a uma família que aí morou).

A topografia dos Becchi mudou sensivelmente. Para construir a série de edifícios que honram o berço do Fundador, foi preciso remover muita terra. O lugar é conhecido hoje como Colle Don Bosco. Nele se ergue o Instituto Bernardi Semeria, cuja construção tem um curioso antecedente num dos costumeiros sonhos de Dom Bosco. Em 1886 sonhou que Mamãe Margarida o levava até uma elevação a pouca distância de casa, donde mãe e filho puseram-se a contemplar a planície circunstante, falando do bem que se poderia fazer a essas terras... Estavam a conversar quando Dom Bosco acordou.

No dia seguinte contou o sonho e disse que o lugar parecia-lhe muito acertado para urna grande fundação salesiana, por estar situado num ponto central de muitas aldeias privadas de igreja.

Pois bem, um dia o Reitor-Mor padre Pedro Ricaldone e o ecônomo geral, padre Fedele Giraudi, puseram-se a procurar um lugar para instalar urna obra à qual Bernardi Semeria generosamente oferecia os recursos, e, sem absolutamente lembrar o sonho, escolheram precisamente a colina indicada por Dom Bosco. (O sonho encontra-se nas MB XIX, p. 382-383.)

9 Capriglio, pequeno povoado a 7 quilômetros de Murialdo. A igreja paroquial, estruturada sobre a preexistente igreja do castelo, é dedicada a São Martinho. Aí nasceu Margarida Occhiena (1788-1856). Tendo-a conhecido, Francisco Bosco (1784-1817), que era viúvo e que tinha um filho do primeiro casamento – chamado Antônio (1808-1849) –, casou-se com ela em segundas núpcias. De Margarida Occhiena e Francisco Bosco nasceram José, a 8 de abril de 1813, e João Bosco.

10 Hemina é uma velha medida de capacidade piemontesa. Variava de lugar para lugar. Na região de Asti era de 23 litros.

11 A pequena casa dos Becchi estava construída atrás da casa dos Cavallo e da casa dos Graglia, beneficiando-se de um muro que as dividia.

12 “O abaixo-assinado declara ter recebido £ 37,50, digo, trinta e sete liras e cinqüenta centavos, de João Zucca, tutor da família do falecido Francisco Bosco, por quatro heminas de trigo, deixadas para a dita família, em fé do que faço a quitação, no dia 6 de julho de 1817. Padre Amadei, capelão.” (Quitação citada por S. Caselle, Cascinali e contadini in Monferrato, p. 103, mas original do Colle Don Bosco, Arquivo do Reitor do Santuário. Contabilidade mantida pelos tutores dos órfãos Bosco.)

13 O padre José Lacqua (1764-1847) foi professor primário em Covagno-Casale (1817-1820), Capriglio, Viale Ponzano (1839) e capelão em Goj, onde Dom Bosco foi visitá-lo (cf. E I, p. 20). Mariana Occhiena, tia de Dom Bosco, era a empregada do padre Lacqua.

14 Escreve Lemoyne (MB I, p. 254-256): “A palavra sonho e Dom Bosco são correlativos. É deveras admirável a repetição desse fenômeno durante setenta anos (...). A bondade do Senhor serviu-se dos sonhos no Antigo e no Novo Testamento, bem como na vida de muitos santos, para confortar, aconselhar e mandar; por meio deles fez ouvir sua voz profética, ora de ameaça, ora de esperança, ora de prêmio para os indivíduos ou para as nações (...). A vida de Dom Bosco é uma trama de sonhos tão maravilhosos, que não se compreende sem a assistência divina direta. Fica, pois, de todo em todo excluída a idéia de que houvesse sido um estulto, um iludido, um enganador ou um vaidoso. Os que viveram a seu lado durante trinta, quarenta anos, jamais viram nele o menor sinal de querer conquistar o apreço dos seus, fazendo-se passar por um privilegiado com dotes sobrenaturais. Dom Bosco era humilde, e a humildade aborrece a mentira”.

15 Em Notizie varie dei primi tempi dell´Oratorio su Don Bosco ecc... (ASC A 0030112, FDB 892 A 8), conta-se que dia 30 de outubro de 1875 José Turco, colega de escola de Dom Bosco, foi ao oratório e assim apresentou este sonho:


“Um dia vimos que ele, fora do costume, corria e saltava todo alegre pela nossa vinha e todo em festa apresentou-se a meu pai.

– Que há, Joãozinho, que você está tão alegre, quando de um tempo para cá via você todo triste?

– Boas notícias, boas notícias. Esta noite tive um sonho em que vi que eu teria continuado os estudos, ter-me-ia feito padre, e me encontraria à frente de muitos jovens de cuja educação me ocuparia pelo resto de minha vida. Eia! Agora está tudo pronto, eu poderei ser padre.

– Mas isso não é mais que um sonho, depois, entre o dizer e o acontecer...

– Oh! O resto é nada, eu serei padre e estarei à frente de tantos jovens, a quem farei muito bem.

E assim dizendo, todo alegre e contente, foi, como de costume, ler e estudar e vigiar a uva”.

16 Num primeiro momento, Dom Bosco havia escrito “têm de ser acalmados”. A seguir corrigiu para “deverás ganhar”. Nesta frase se vê toda a essência de seu sistema educativo: ganhar os corações dos jovens.

17 Inicialmente Dom Bosco havia escrito: “Torna-te sadio, forte, robusto”.

18 Em 1885, Dom Bosco escrevia a dom Cagliero: “Recomendo ainda que não se dê grande importância aos sonhos etc. Se eles ajudam a compreender as coisas morais ou das nossas regras, está bem, se conservem. De outra forma, não se dê nenhuma importância a eles” (cf. E IV, p. 314, carta Bosco-Cagliero, 10/2/1885).

19 Os pares de França... Guerino Meschino... Bertoldo. Os dois primeiros são títulos de romances épicos carolíngios, compilados em prosa vulgar por Andrea da Barberino (séculos XIV-XV) e extraídos de fontes toscanas ou franco-vênetas. Tais compilações deram origem a novelas de natureza popular muito difundidas. A mesma sorte coube ao Bertoldo, do bolonhês Giulio Cesare Croce (século XVI), que com esse título descreveu a figura de um camponês desengonçado, mas esperto, que entrou nas graças do rei Al­buíno e tornou-se seu confidente. O autor continuou as aventuras de Bertoldo, narrando as do seu filho Bertoldino. Mais tarde, o monge de Bolonha, Adriano Banchieri, acrescentou-lhe as de Cacasenno (séculos XVI-XVII).

20 Cf. ASC A 0080605 D. Ruffino, Cronache dell´Oratorio di San Francesco di Sales [1859-1864], caderno 2, 1861 1862 1863, p. 128, FDB 1208 E 12.

21 O brinquedo da andorinha é um exercício atlético difícil. Crava-se verticalmente no chão uma vara; o ginasta segura-a fortemente com a mão esquerda, à altura do peito, ao passo que com a direita agarra-a uns 30 centímetros mais abaixo, pondo o cotovelo sobre as cadeiras, tendo assim um ponto de apoio para as pernas, que se projetam para fora, unidas ou separadas (cauda da andorinha), e em ângulo reto com a vara. O corpo conserva-se rigidamente estendido em perfeita linha horizontal. Então o ginasta, separando os pés, imprime ao corpo um impulso que lhe permite dar duas ou três voltas ao redor da vara.

22 Cf. ASC A 0080605 D. Ruffino, Cronache dell´Oratorio di San Francesco di Sales [1859-1864], caderno 2, 1861 1862 1863, p. 129, FDB 1209 A 1.

23 “As crianças, que completarem 12 anos de idade, se souberem os rudimentos da fé, não sejam proibidas de receber a Eucaristia somente por causa da idade. A mesma não deve ser negada aos que estejam gravemente doentes, embora estejam longe da sobredita idade, desde que tenham o uso da razão, e saibam conhecer pela fé a Cristo Senhor escondido sob as espécies sacramentais.” Tais eram as prescrições sinodais em vigor naqueles anos em Turim (Prima dioecesana Synodus taurinensis celebrata XII e XI Kalendas Majas MDCCLV ab Excellentissimo et Reverendissimo Domino D. Joanne Baptista Rotario... Turim, Zappata e Avondi, XX, p. 3).

24 O padre José Sismondi (1771-1826), pároco de Castelnuovo d’Asti de 1812 até à sua morte.

25 Buttigliera d’Asti, 3 quilômetros ao sul de Castelnuovo.

26 Tratava-se do Jubileu que, tendo sido celebrado em Roma em 1825, Leão XII estendera a todo o mundo em 1826. Na arquidiocese de Turim, a indulgência do Jubileu se podia adquirir de 12 de março a 12 de setembro. Para a ocasião foi composto um livrinho: Inni ed orazioni precritte dall´Illmo e Revrmo. Monsignor Colombano Arcivescovo di Torino da recitarsi nelle Processioni di penitenza visitando le quattro Chiese per l´acquinsto del Santo Giubileo com aggiunta de alcune preghiere per la Confessione e Comunione (Turim, Stamperia Reale, s/d). Depois desse Jubileu, não houve uma outra missão em Buttigliera naqueles anos.

27 O padre João Melquior Calosso (1760-1830), que foi pároco de Bruino, de 1791 a 1813 e de 1819 a 1824, esteve auxiliando seu irmão, o padre Carlos Vicente Calosso, pároco de Berzano San Pietro. Foi capelão de Murialdo somente no período de 1829-1830.

Dom Bosco nem sempre é exato nas datas destas suas Memórias. Escreveu-as ao correr da pena para seus filhos, sem se preocupar demasiadamente com uma precisão cronológica. Apresenta-se aqui um caso bem claro. Está demonstrado documentadamente que o padre João Calosso assumiu a capelania de Murialdo em outubro de 1829, e que o primeiro dia da missão em Buttigliera (a meio caminho entre os Becchi e Castelnuovo, para a direita) foi a 5 de novembro de 1829 (cf. J. Klein - E. Valentini, “Una rettificazione cronologica delle Memorie di san Giovanni Bosco”, Salesianum 17 (1955), p. 581-610).

A diferença de datas talvez se deva ao fato que a narração das MO não inclui o período que João Bosco passou trabalhando como empregado do campo em Villa Moglia.

Servindo-nos dessa “retificação cronológica”, corrigimos as datas em nota, citando também outras que não constam nas Memórias, mas podem ser úteis ao leitor interessado.

28 Pela crônica do padre Ruffino, citada acima e por outras fontes se sabe que o argumento do sermão era o encontro da alma com o corpo no juízo universal. Fiel aos objetivos das MO, Dom Bosco substitui esta pregação com este texto, que tem por fonte O jovem instruído na prática de seus deveres religiosos, talvez com a mediação de ASC A 225 Prediche - Conferenze - Discorsi, FDB 84 B 5.

29 Hélio Donato, gramático latino do século IV. Donato passou a ser sinônimo de gramática latina.

30 Qui, quae, quod etc. é uma reminiscência da velha sintaxe latina, que condensava, para ajudar a memória, em pequena estrofe de octonários a concordância do pronome relativo com o seu antecedente. Era formulada assim: “Qui, quae, quod quando é colocado – Depois do nome que o antecede – Lhe consente pôr-se de acordo – só quanto ao número e ao gênero”.

31 “Ele fará como eu fiz; eu nunca fui à escola e fiquei grande e gordo como os outros”, diz o pai de Pedro em G. Bosco, La forza della buona educazione... Turim, Tipografia Paravia e comp., 1855, p. 7; OE VI [281].

32 Dom Bosco silenciou neste capítulo o maior dos seus conflitos. Os maus-tratos do irmão de criação e o perigo de piores conseqüências forçaram a mãe a tomar a gravíssima decisão de fazer João deixar a casa e trabalhar como empregado numa casa de campo. A penosa situação durou quase dois anos, de fevereiro de 1828 até novembro de 1829. Sobre isso escreve Lemoyne (MB I, p. 190): “Tinha João inteligência e coração grandes; era obediente por virtude, mas não se submetia por inclinação natural. O mais pobre sente-se senhor na própria casa, como o rei no seu trono. E Deus fará com ele o que fez com Moisés (...). João está preparado por longo exercício de heróica humildade, tem que sair da própria casa e servir em casa alheia durante dois anos; e ele era de con­dição tal que sentia todo o peso da humilhação”.

33 Em novembro de 1830.

34 Cf. ASC A 103031 FDB 558 A 9. Atestado de óbito na paróquia de Santo André em Castelnuovo d’Asti: “Padre João Calosso, de Chieri, capelão de Murialdo, morreu neste município e paróquia de Catelnuovo d’Asti, dia 21 de novembro de 1837, tendo a idade de 75 anos. Para fé: Castelnuovo, 7 de novembro de 1894. Padre Miguel Vianjone. Timbre da paróquia”.

35 “Entreguei-lhes a chave e tudo o mais”, frase genérica, mais eloqüente do que a expressão real: tudo o que estava debaixo daquela chave. Eram umas 6 mil liras. Todo um capital para o pobre filho de Mamãe Margarida. Este lacônico parágrafo merecia figurar ao lado de muitas expressões simples e sublimes que passaram à história.

36 O padre José Cafasso (1811-1860), sacerdote em 1833, entrou no Colégio Eclesiástico em 1834. Repetidor de moral desde 1837, em 1843 assumiu a responsabilidade das conferências cotidianas, privada e pública. Desenvolveu uma vasta atividade como moralista, confessor, formador de sacerdotes e de leigos. Lembra-se ainda a assistência aos encarcerados, especialmente aos condenados à morte. Quando via que a pastoral da diocese, rigidamente ligada ao esquema paroquial, não respondia a alguma exigência nova dos tempos, procurava algum aluno que tivesse queda para aquele tipo de trabalho e o encaminhava nesse sentido. Deu um válido apoio à obra da catequese e dos Oratórios (cf. L. Nicolis de Robilant, San Giuseppe Cafasso, cofondatore del Convitto ecclesiastico di Torino. 2ª ed. Turim, Edizioni Santuario della Consolata, 1960).

37 Provavelmente, em 1830.

38 Cf. Rimembranza storico-funebre dei giovani dell´Oratorio di San Francesco di Sales verso il sacerdote Cafasso Giuseppe loro insigne benefattore pel sacerdote Bosco Giovanni. Turim, Tip. Paravia e Comp., 1860, p. 18-20; OE XII [365] - 367].

39 Melquior Occhiena (1752-1844).

40 De 1827 a 1834 foi pároco de Castelnuovo d’Asti o padre Bartolomeu Dassano (1796-1854). Foi depois para Cavour, onde investiu os frutos de seu patrimônio e do benefício eclesiástico em obras de caridade. Fundou em Cavour o asilo e o subsidiou; construiu também uma nova sacristia. “Morreu pobre de substâncias, riquíssimo de méritos” (cf. ASC A 1060104 FDB 572 D 11, testemunho do padre Ughetti).

Nos atestados de Batismo desse tempo se encontra: “Batizado pelo padre Campra, vigário cooperador”.

41 Dia 11 de fevereiro de 1826.

42 Em 1830, aos 15 anos.

43 O padre Manoel Virano (1797 - ?) nascido em Poirino. Foi pároco em Mondônio, de 1831 a 1834.

44 Ano 1831.

45 O padre Nicolau Moglia (1755 - ?).

46 No dia 3 de novembro de 1831.

47 Lúcia Matta (1783-1851), filha de João Pianta, esposa de José Matta, morava com o marido em Murialdo. Ficando viúva, transferiu-se para Chieri, onde subalugava alguns quartos da casa Marchisio, talvez no bairro Giraldo. Seu filho, João Batista Matta (1809-1878) foi prefeito de Castelnuovo (cf. S. Casella, Giovanni Bosco studente a Chieri 1831-41: dieci anni che valgono una vita. [Turim], Edições Acclaim [1988].

48 O padre Plácido Valimberti (1802-1848), professor da 5ª série de latinidade a partir de outubro de 1830.

49 “Ao prefeito dos estudos será confiada a observância da boa ordem nas escolas, e na Congregação, e o exato cumprimento de quanto é prescrito tanto aos professores, e mestres, quanto aos estudantes todos da cidade de sua residência, e também aos reitores dos pensionatos, ou internatos que alguém fosse autorizado a manter na mesma” (Regulamento para as escolas, Título terceiro, capítulo terceiro, parágrafo 1º, artigo 102).

50 Quanto à numeração das classes cumpre notar que então faziam-na em ordem decrescente: 6ª, 5ª, 4ª etc., isto é, o que hoje chamamos 4ª, 5ª, 6ª séries etc. João Bosco, aos 16 anos completos, foi, no princípio do curso, colocado entre meninos de 9 ou 10, o que decerto provocava alguma brincadeira dos seus pequenos colegas.

Dizia o Regulamento para as escolas, no título terceiro, capítulo segundo, parágrafo II, artigo 69: “Serão seis as séries de latinidade (...), isto é: 6ª, 5ª, 4ª, gramática, humanidades e retórica”.

51 O teólogo Valeriano Pugnetti (1807-1868). Teve em Chieri vários cargos: capelão reitor do Santuário da Anunciação, reitor do internato, diretor espiritual no seminário, administrador da escola de educação infantil. Foi pároco de Casalgrasso de 1854 em diante. Morreu em Chieri.

52 “As promoções da classe inferior para a superior não poderão ordinariamente ter lugar se não no fim do ano escolar, ou na primeira metade de novembro para as classes inferiores à terceira; se acontecer algum caso extraordinário, espere-se a decisão do Magistrado, ou da Comissão encarregada dos estudos... (Regulamento para as escolas, título quarto, capítulo terceiro, parágrafo IV, artigo 191).

53 O clérigo Vicente Cima (1810 - ?) nasceu em Cambiano. No dia 28 de outubro de 1831 era nomeado professor da quarta classe com o estipêndio de 450 liras anuais (veja Archivio Storico del Comune di Chieri, Registro degli Ordinati, anno 1831, p. 253). Em 1838 compôs o Hino a Nossa Senhora das Graças para a festa da santa em Chieri. Em 1845, já sacerdote, publicava a pregação quaresmal do padre Melquior Sclaverani na colegiada de Chieri. Recordamos que no Reino da Sardenha, para ser professor, devia-se pelo menos ter recebido a tonsura e ser clérigo. Assim todo o ensino oficial estava nas mãos da Igreja.

54 Dom Bosco teve sempre uma memória felicíssima. Já o havia demonstrado com o sermão recitado para o padre Calosso. Dizia que para ele ler e reter eram a mesma coisa. Em idade avançada, divertia por vezes os secretários, após longas horas de audiência, recitando-lhes cantos de Dante ou de Tasso. Poucos meses antes de morrer, indo de carro com o padre Rua e conversando sobre ponto da história sagrada, no qual se havia inspirado Metastásio, repetiu cenas inteiras do poeta, que, certamente não havia tornado a ler desde os tempos de Chieri. Nas MB (I, p. 395, 423, 432-434 etc.), outras provas de memória extraordinária.

55 Em 1831-1832. Como se pode ver do atestado dos resultados escolares de João Bosco (ASC A 0200908 FDB 64 A 1) o ano de gramática foi feito em 1832-1833.

56 “[...] alguns deles são maus, outros não são maus, mas não muito bons, e outros são verdadeiramente bons. Deve-se absolutamente evitar os primeiros, com os segundos tratar só quando haja necessidade, mas sem criar nenhuma familiaridade, e deve-se freqüentar os últimos, e estes são aqueles com os quais se obtém a utilidade espiritual e temporal” (Cenni storici sulla vita del chierico Luigi Comollo [...] scritti da un suo collega. Turim, Speirani e Ferrero, 1844, p. 63-64; OE [63]-[64].

57 “Fica rigorosamente proibido aos estudantes a natação, o ingresso nos teatros, nos jogos de truco, o usar máscaras ou ir a bailes mediante convite, qualquer jogo nas ruas, bares e cafés e outros lugares públicos, almoçar, comer ou beber nos hotéis, ou restaurantes, parar ou fazer rodinhas, ou ficar conversando nos cafés, e recitar em teatros domésticos sem a licença do Prefeito dos estudos” (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo primeiro, parágrafo 2º, artigo 42).

58 Na organização da Sociedade da Alegria, da qual era presidente nato, muito embora nunca se tenha falado de presidência, transparecem as suas qualidades características: zelo apostólico vivo e sagaz, gênio organizador e, sobretudo o espírito que lhe animará depois a obra educativa. Numa palavra, os germes do homem futuro.

Ao contemplar o jovem estudante à frente daquele grupo de colegas, Henri Gheón escreve em seu Saint Jean Bosco (Paris, “Les grands coeurs”, p. 73: “Calçou as sandálias do apóstolo, só lhe faltava a túnica; depois, nada o deterá”.

59 Num primeiro momento Dom Bosco escrevera: “foi colocado como base de nossa amizade”.

60 O padre Guilherme Garigliano (1819-1902), sacerdote em 1842, ficou no Colégio Eclesiástico até 1846. Foi mestre-escola em Aramegna em 1850. Em Poirino foi capelão da Companhia do Sufrágio, com sede na igreja da Santa Cruz. Um seu sobrinho-neto, dom João Batista Garigliano, foi bispo de Biella.

Paulo Victor Braia (1820-1832).

61 A igreja de Santo Antônio foi construída em 1763. O projeto é de F. Juvarra. O campanário é porém do século XIII.

Nela fazia a catequese o padre Isaías Carminati (1798-1851), da Companhia de Jesus. Nascido em Bérgamo (Itália) fez o noviciado em Roma, em 1814. Em 1831 foi transferido para a província de Turim. Ensinava letras aos pós-noviços da casa de Santo Antônio, em Chieri, e foi também prefeito da catequese até 1836. Vice-reitor em Novara, trabalhou depois no Colégio Albertino de Gênova e em Turim. Em 1849, lecionava direito no Colégio Romano.

62 “Os candidatos ao emprego de professor ou mestre nas escolas régias, deverão ser eclesiásticos. Na falta destes, poderão nomear-se clérigos com a obrigação de obter também do bispo da diocese a que serão destinados, a confirmação de poder vestir o hábito clerical [...], deixando de vestir o hábito clerical, serão inabilitados para continuar no emprego de professor ou mestre, nem terão direito à aposentadoria pelo serviço prestado” (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo terceiro, parágrafo IV, artigo 125).

63 “Os estudantes sem religião, de costumes corrompidos, incorrigíveis, os culpados por resistência obstinada e escandalosa às ordens dos superiores, ou réus de delito, serão exemplarmente expulsos das escolas” (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo primeiro, parágrafo segundo, artigo 46).

64 “134. Todos os estudantes nos dias de aula assistirão à santa missa [...].

135. Deverá cada estudante ter seu livro de devoção, e lê-lo enquanto se celebra o santo sacrifício, estando de joelhos com o devido recolhimento” (Regulamento para as escolas, título IV, capítulo primeiro, parágrafo I, artigos 134 e 135).

65 “Começarão de manhã pela recitação das orações da manhã, e terminarão com o Agimus tibi gratias [...]. A aula depois do almoço começará com a recitação do Actiones nostras, e terminará com as orações da noite” (Regulamento para as escolas, título segundo: “Das escolas municipais”, artigo 12).

66 “Nos domingos e outras festas marcadas no calendário, todos os estudantes indistintamente tomarão parte na congregação” [...].

“Na congregação da manhã se observe a seguinte ordem: 1º leitura espiritual durante o quarto de hora de entrada; 2º canto do Veni Creator; 3º o noturno com as lições, e o hino ambrosiano segundo os vários tempos, do ofício da Bem-aventurada Virgem Maria; 4º missa; 5º canto das ladainhas da Bem-aventurada Virgem para dar tempo à oportuna ação de graças do celebrante diretor e dos que comungaram; 6º instrução; 7º salmo Laudate Dominum omnes etc., com o versículo e oração pela Sagrada Real Majestade.

Na congregação da tarde se observará a seguinte ordem: 1º leitura espiritual durante o quarto de hora da entrada; 2º canto das costumeiras preces com a récita dos atos de fé, esperança, caridade e contrição; 3º catequese por três quartos de hora, o bedel avisará a hora de terminar a catequese” (Regulamento para as escolas, título IV, capítulo I, parágrafo I, artigo 139, e parágrafo segundo, artigos 158 e 159).

67 “37. Todos deverão aproximar-se uma vez por mês do sacramento da Penitência,e fazer constar que cumpriram este seu dever, e do preceito pascal, apresentando ao final de cada mês os bilhetes de confissão, e a seu tempo o do preceito pascal ao prefeito dos estudos, e em falta deste ao mestre, ou professor. Será qualidade do jovem morigerado aproximar-se com freqüência do sacramento da Eucaristia.

38. Os estudantes que sem ter sido impedidos por doença não fizessem constar, dentro de quinze dias do término do mês, o cumprimento do dito dever, serão excluídos da escola; serão também excluídos os que ousassem apresentar um certificado falso” (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo primeiro, parágrafo II, artigos 37 e 38).

68 O cônego José Malória (1802-1857) tinha a prebenda de Santa Maria de Suisson e de São Pedro in vinculis. No primeiro ano de teologia, o clérigo Bosco se confessava com ele cada quinze dias, em seguida, o fazia cada semana (cf. S. Casella, Giovanni Bosco studente, p. 65; ASC A 1030328 FDB B 559 A 5).

69 Luís Comollo (1817-1839).

70 Magistrado da Reforma: corpo de oficiais públicos encarregado de superintender aos estudos (rei litterariae moderatores); era o que hoje chamamos Conselho Superior da Instrução Pública.

71 Moltedo Superiore é hoje um distrito de Impéria, município este constituído em 1923 pela união de Oneglia e de Porto Maurício, na riviera lígure ocidental a 114 quilômetros de Gênova.

72 O padre Jacinto dos Condes Giussiana (1774-1844), nascido em Cúneo, entrou em jovem idade no convento de Chieri. Apenas ordenado sacerdote, por causa da supressão da Ordem Dominicana, foi para Parma e Colorno. Voltando a Chieri, foi professor de gramática superior por bem vinte e seis anos. Sendo encarregado da igreja de São Domingos desde 1817, obteve que em 1821 fosse aí restabelecida a Ordem de São Domingos (cf. G. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 70).

73 No dia 10 de julho de 1832.

74 O padre Pedro Banaudi (1802-1885), nascido em Briga Marittima, então Itália, hoje La Brigue, França, em 1824 deixou a diocese de Nice e, por razões de emprego, incardinou-se na de Turim. Desde 1833 substituiu o teólogo João Bosco no ensino de retórica em Chieri. Em 1873 estava em Turim, onde veio a falecer.

75 Em 1834-1835.

76 A vida de Comollo está traduzida em português: São João Bosco, Vida do clérigo Luiz Comollo. Niterói, Escolas Profissionais Salesianas, 1940 (Leituras Católicas, ano 50, fasc. 7, n. 682).

77 O padre José Comollo (1768-1843), nascido e morto em Cinzano.

78 Carniça (mão-na-mula ou pula-sela): os meninos saltam um depois do outro sobre as costas do colega que lhe fica à frente, inclinado à guisa de cavalo.

79 João Pianta, irmão de Lúcia Matta, permaneceu em Chieri apenas um ano, transferindo-se depois com a família para outro lugar (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 84).

80 A hospedagem no café Pianta era perigosa por causa da clientela. A 10 de maio de 1888 os padres salesianos Bonetti, Francesia e Berto encontraram-se em Chieri com João Pianta, o qual declarou-lhes quanto segue e que eles imediatamente anotaram: “Era impossível encontrar outro jovem melhor que João Bosco. Todas as manhãs, bem cedo, ia à igreja de Santo Antônio para ajudar em várias missas. Era de uma caridade admi­rável para com minha mãe, que, velha e cheia de achaques, vivia conosco. Muitas vezes passava a noite em claro, estudando. Encontrava o pela manhã com a luz acesa, lendo e escrevendo”. Pianta nada disse, porém, do lindo aposento onde João passava as noites. O padre Lemoyne (MB I, p. 289) no-lo descreve assim: “Um desvão estreito em cima de pequeno forno, construído para cozinhar doces, e ao qual se subia por uma escadinha, era seu dormitório; por pouco que se estirasse no pequeno leito, os pés assomavam não só fora do incômodo colchão, mas do próprio desvão”. A 22 de abril de 1934 colocou-se uma lápide comemorativa dos sacrifícios do heróico jovem. Nela é lembrado também o outro inquilino, Blanchar, vendedor de frutas, que às vezes lhe saciava a fome.

81 O padre Pedro Banaudi nascera no dia 14 de maio de 1802 (cf. Archives Historiques du Diocèse de Nice, Stato nominativo di tutti i signori ecclesiastici della Diocesi di Nizza). Dia 19 de maio celebrava-se a memória de São Pedro Celestino.

82 Próximo à antiga igreja construída sobre o Tépice, a meio quilômetro de Chieri, nascia a Fontana Rossa, com a capacidade de cerca de 300 litros por hora.

83 Provavelmente Filipe Camandona, morto dia 19 de maio de 1834, perto da festa da Ascensão (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 117).

84 Em 1835.

85 Talvez se trate de Jacó Levi (1816 - ?), tintureiro e tecelão. Recebido o Batismo, assumiu o sobrenome Bólmida, do padrinho, e foi habitar na casa do casal Bertinetti. Casou-se em 1840 e em segundas núpcias em 1860. Transferiu-se para Turim depois de 1865 (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 110-114). Não sabemos se se trata de Luís Bólmida, tintureiro de Chieri, que faleceu em Turim dia 13 de julho de 1870.

86 Elias Foa, negociante de tecidos no varejo.

87 Sem muitas distinções, Dom Bosco reproduz a conversa que, jovem estudante de 19 anos, manteve com o colega Jonas. Escrevendo para seus salesianos, estava convencido de que saberiam compreender-lhe o pensa­mento, durante toda a sua vida sempre fiel à mais pura doutrina católica.

Nos seus vários documentos, o Concílio esclarece o pensamento da Igreja. No n. 42 da Lumen Gentium, assim se manifesta: “Os que ainda não receberam o Evangelho se ordenam por diversos modos ao Povo de Deus. Em primeiro lugar aquele povo a quem foram dados os testamentos e as promessas e do qual nasceu Cristo segundo a carne (cf. Rm 9,4-5). Por causa dos patriarcas, é um povo caríssimo segundo a eleição, pois os dons e a vocação de Deus são irreversíveis (cf. Rm 11,28-29)”.

O Decreto Ad Gentes (n. 7) é explícito: “‘Deus quer que todos os homens sejam salvos e venham ao conhecimento da verdade. Porque um é Deus, um também o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que se entregou para redenção de todos’ (1Tm 2,4-5). ‘E em nenhum outro há salvação’ (At 4-12). É necessário que pela pregação da Igreja todos o reconheçam e a ele se convertam e pelo Batismo sejam incorporados nele e na Igreja, seu Corpo. Cristo mesmo por sua vez ‘inculcando com palavras expressas a necessidade da fé e do Batismo, ao mesmo tempo confirmou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo como por uma porta. Por isso não podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja Católica foi fundada por Deus por meio de Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disto não quiseram nela entrar ou nela perseverar’ (LG 14)”.

88 O pai de Jacó Levi se chamava Lázaro e sua mãe Bella Pavia (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 108 e 113).

89 A Irmandade do Espírito Santo, fundada em 1576 em Chieri, tinha especial cuidado no preparar ao Batismo e assistir aqueles poucos catecúmenos que do hebraísmo passavam à religião católica (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 113).

90 Carlos Bertinetti faleceu em Chieri, em 1868, com a idade de 75 anos. Otávia Maria Debernardi Bertinetti o seguiu em 1869, aos 72 anos.

Do registro paroquial de Santa Maria da Scala, onde consta o Batismo, resulta, porém, que foram padrinhos o senhor Jacinto Bólmida e a senhora Otávia Maria Bertinetti (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 113-114).

O neófito tomou os nomes de Luís Jacinto Lourenço Otávio Maria Bólmida (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 113-114).

91 Segundo uma tradição, o convertido viveu como bom cristão e conservou sempre amizade e gratidão pelo amigo. Até 1880 visitava Dom Bosco no oratório. Talvez a força dos argumentos não tenha por si só surtido efeito; não obstante, as virtudes de modo admirável praticadas por seu querido conterrâneo acabaram por convencê-lo.

O leitor, porém, veja a nota 85, sobre Luís Bólmida.

O casal Bertinetti fez Dom Bosco seu herdeiro universal, surgindo então a obra salesiana de Chieri.

92 Esqueceu todavia de queimar algumas de suas composições. Temos uma sua caderneta intitulada Códice contenente sonetti ed altre poesie varie. Começou essa coleção a 27 de maio de 1835. Com várias coisas de autores e colegas, há também algumas suas, entre elas um soneto intitulado “Constância de Pio VII oprimido por Napoleão”. Na capa, um hexâmetro: Quidquid agunt homines, intentio iudicat omnes (“O verdadeiro juízo sobre ações humanas depende da intenção de quem as faz”). Mais acima lê-se: “Entregue, morrendo, ao padre Lemoyne”. Letra de Lemoyne (cf. ASC A 226 caderno 2 FDB 67 E 11 a 69 A 2).

93 Durante o curso de 1834-1835, o vigário de Castelnuovo havia colocado João como pensionista, por 8 liras mensais, na casa dos Cumino, que viviam a pouca distância da igreja de Santo Antônio. O dono, alfaiate, colocou-o para dormir numa sua cocheira, com a obrigação de trabalhar um pouco na vinha e cuidar de um jumento. O padre Cafasso, que também esteve ali por quatro anos, alcançou para João melhores condições alguns meses depois.

S. Casella, Giovanni Bosco studente, p. 121-123 narra as vicissitudes dessa casa que depois pertenceu a Luís Bertinetti.

94 O padre Luís Bertinetti (1791-1845) era irmão de Carlos.

95 O cônego Máximo Búrzio (1777-1847), cônego da colegiada de Chieri desde 1818; desde 1823, cantor, e de 1833 em diante, arcipreste daquela colegiada.

96 “a ignorância é a mestra da admiração”.

97 A grande destreza alcançada por Dom Bosco em seus verdes anos no manejo da varinha mágica pode inferir-se de que aos 70 anos, em 1885, já muito acabado de saúde, repetiu a proeza de um modo impecável com um bastãozinho (cf. MB I, p. 315).

98 O albergue não era chamado Muretto, mas Muletto, e estava situado no fundo da praça São Bernardino, ao longo da via Maestra, a poucos metros do café Pianta. Era propriedade de Marcos Balbiano, de Andezeno (cf. S. Casella, Giovanni Bosco studente, p. 106).

99 A Biblioteca popular moral e religiosa, iniciada em 1825, por José Pomba.

100 No que respeita ao domínio do latim por parte do santo, lembramos este episódio. Em 1882, o cardeal Nina, secretário de Estado, elogiou-o por um escrito latino apresentado à Santa Sé e perguntou-lhe se havia cursado estudos literários. Dom Bosco respondeu que havia lido todos os clássicos latinos, com os melhores comentários e começou a citar nomes de autores e títulos de obras, até que o prelado o interrompeu, dizendo que falaria disso ao Papa, porque Leão XIII, pouco antes, tinha lido e julgado elegante aquele latim, e achava impossível que fosse de Dom Bosco, a quem reputava alheio aos estudos clássicos (cf. MB XV, p. 430).

101 Em 1875, Dom Bosco deixará como recordação aos missionários que partiam para a Argentina: “Tenham cuidado da saúde. Trabalhem, mas só o quanto as próprias forças comportam” (J. Borrego, “Recuerdos de San Juan Bosco a los primeros misioneros”, RSS 3 [1984], p. 207).

102 Fez o pedido de entrar para o convento franciscano em março de 1834. Apresentou-se ao exame de vocação em Turim, no convento de Santa Maria dos Anjos, a 18 de abril, e foi aceito a 28 do mesmo mês, conforme consta do registro dos postulantes onde se afirma ter ele todos os requisitos e ter sido admitido por unanimidade.

103 A capela votiva de Nossa Senhora das Graças, construída de 1757 a 1759, é do arquiteto Bernardo Vittone.

104 Para a herança Bertinetti (Carlos, Otávia, Jacinta), veja-se ASC A 101 FDB 545 C 1.

105 “João – escreve Lemoyne – foi despedir-se dos superiores do colégio. O doutor teólogo Bosco e outros conspícuos personagens contaram-nos que foi algo maravilhoso ver como João havia sabido conquistar não só o coração dos colegas, mas também do prefeito dos estudos, do diretor espiritual e de cada um dos professores, os quais tinham por ele grande afeição e sempre quiseram tê-lo como amigo e confidente. Seu professor de retórica (o já mencionado homônimo João Bosco, doutor em letras e professor na Universidade de Turim) quis, ao terminar o curso, que João fosse seu amigo e o tuteasse. Basta isso para demonstrar o apreço que dispensavam ao pobre camponês dos Becchi, apreço provocado por sua virtude e algo que transparecia em todas as suas ações e o tornavam ainda mais amável. Embora ativo e empreendedor, era calmo e ponderado no agir; rico de idéias e de grande facilidade para comunicá-las em tempo oportuno, era parco em palavras, especialmente com os superiores. Assim o conhecemos durante muitos anos e assim era quando ainda jovem” (MB I, p. 364ss).

106 No dia 25 de outubro de 1835.

107 O teólogo Antônio Cinzano (1804-1870), nascido em Pecetto. Em 1833 o encontramos em Turim, adido à conferência de moral. De 1834 até à morte, foi pároco de Castelnuovo d’Asti.

108 “Despoje-te o Senhor do velho homem e das suas ações”.

109 “Revista-te o Senhor do novo homem, que foi criado segundo Deus, na justiça e na santidade da verdade”.

110 Pároco e paroquianos ajudaram-no generosamente com roupas. Quanto à pensão, o teólogo Guala, a pedido do padre Cinzano, vigário de Castel­nuovo, e sugestão do padre Cafasso, fez valer sua grande influência sobre o arcebispo Fransoni para conseguir que entrasse gratuitamente para o seminário, pelo menos no primeiro ano.

111 “Lentas para os aflitos, são céleres as horas para os que estão alegres”.

112 O teólogo Francisco Ternavásio (1806-1885).

113 Era o cônego Sebastião Mottura (1795-1876), nascido em Villafranca, Piemonte, cônego da colegiada de Chieri desde 1830. De 1847 em diante, arcipreste da mesma colegiada. Foi reitor do seminário de Chieri de 1829 a 1860.

114 Talvez Dom Bosco se refira a três seminaristas expulsos do seminário em 1837 (cf. AAT 19.5 a carta Mottura-arcebispo de Turim, 10 de abril de 1837).

115 O padre João Giacomelli (1820-1901), nascido em Avigliana, entrou no seminário de Chieri em 1836. Foi ordenado sacerdote em 1843. Terminado o Colégio Eclesiástico foi vigário cooperador numa paróquia fora de Turim. Desde 1854 foi diretor espiritual do Pequeno Hospital de Santa Filomena, da Obra Barolo.

O padre João Giacomelli foi sempre muito querido por Dom Bosco e, a partir de 1873, seu confessor, após a morte do teólogo Golzio, que sucedeu nesse ministério a São José Cafasso, falecido em 1860. Giacomelli seria uma das testemunhas do processo informativo. De Garigliano sabemos que fora seu colega no ginásio.

116 Consagrada em 1681, a igreja de São Filipe foi construída no lugar de duas casas onde, desde 1664 tinha sede a Congregação do Oratório de São Filipe Néri. Em 1828 o convento de São Filipe tinha sido entregue ao novo seminário que se devia abrir em Chieri. De uma carta ao clero da arquidiocese, de 1º de setembro de 1834, e assinada por dom Fransoni, resulta que os seminários de Chieri e Bra estavam destinados aos clérigos que não aspiravam conseguir os graus acadêmicos que conferia a Faculdade de Teologia da Real Universidade de Turim (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 148 e 150).

117 “3. Logo após a Comunhão do celebrante, seja permitido a todo aluno, a quem o diretor de sua consciência o permita, também todos os dias aproximar-se da sagrada Mesa: e depois lhe seja concedido um quarto de hora para a ação de graças” (Regulae Seminariorum Archiepiscopalium clericorum Archidiocesis Taurinensis. Turim, Marietti, 1875, capítulo VII, 3, p. 24).

Dom Lourenço Gastaldi (1815-1883) nasceu em Turim. Doutorou-se em teologia em 1836. Foi ordenado sacerdote em 1837. Em 1841 era cônego da Santíssima Trindade. Em 1851 entrou no Instituto da Caridade, fundado por Antônio Rosmini, e foi para a Inglaterra, onde ficou até 1862. Bispo de Saluzzo em 1867, foi feito arcebispo de Turim em 1871. Veio a falecer de morte repentina em Turim. Para a sua biografia veja G. Tuninetti, Lorenzo Gastaldi 1815-1883; vol. I, Teologo, pubblicista, rosminiano, Vescovo di Saluzzo 1815-1871. Roma, Edizioni Piemme di Pietro Marietti, 1983; vol. II, Arcivescovo di Torino 1871-1883. Roma, Piemme [1988].

118 O padre Domingos Peretti (1816-1893), que nascera em Volvera, Turim, e foi pároco em Buttigliera Alta de 1850 até à morte. Bom pastor, foi também um administrador capaz, conseguindo impedir que os bens da paróquia fossem confiscados pelo Estado.

Buttigliera Alta fica a 21 quilômetros de Turim.

119 Garigliano era gago.

120 Confronte-se com quanto Dom Bosco dirá em 1877: “[O aluno] não se irrita pela correção feita nem pelo castigo ameaçado, ou mesmo infligido, pois a punição contém em si um aviso amigável e preventivo que o leva a refletir e, as mais das vezes, consegue granjear-lhe o coração. Assim o aluno conhece a necessidade do castigo e quase o deseja” (São João Bosco, O Sistema Preventivo na educação dos jovens, 1.1).

121 Alfiano Natta, província de Alessândria, aldeia do Baixo Monferrato, a 6 quilômetros de Moncalvo e a cerca de 20 quilômetros de Castelnuovo d’Asti, foi feudo dos marqueses de Natta, na Diocese de Casale.

122 O padre José Pellato (1797-1864), pároco de Alfiano de 1823 até a morte. Foi homem de conselho e de oração. Morrendo, deixou seus bens para a Igreja, provendo estavelmente o estipêndio de um vigário cooperador e uma substancial ajuda aos pobres e ao culto divino.

123 Talvez sejam deste período os seguintes sermões que se encontram em ASC A 225 Prediche - Conferenze - Discorsi FDB 83 A 12 - 83 B 5 Assunção; FDB 83 D 9 - 83 E 6 Rosário; FDB 86 B 9 - 86 C 6 São Roque.

124 O padre Caviglia (Don Bosco: profilo storico, 2a ed., p. 97 e 99) assim retrata Dom Bosco escritor: “Escreve simples e claro, com ordem e tranqüilidade, com objetividade; quer sempre dizer algo e fazer-se entender. [...] Para conseguir seu objetivo de divulgação popular e juvenil, escolheu e cultivou um estilo fácil e a preocupação por uma comunicação familiar e popular; ou seja, pela máxima simplicidade em todo tema dirigido ao povo e aos rapazes: um caráter popular no melhor sentido, e também nele o mais completo, da palavra”.

125 Dom Bosco italianizou para “Croveglia” o distrito de “Crivelle”, situado a 3 quilômetros de Buttigliera, em direção de Villanova d’Asti. Ao longo das MO encontraremos outros casos semelhantes.

126 Este episódio é tirado de Cenni sulla vita del giovane Luigi Comollo [...] scritti dal Sac. Bosco Giovanni suo collega. Turim, De Agostini, 1854, p. 50-51.

127 O registro de óbito de Comollo (Registri di morte della Parrocchia del Duomo 1839, atto n. 71) é transcrito por S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 199. Quanto à sepultura, veja no Corriere di Chieri (1986), n. 46, a notícia do encontro da tumba de Comollo no subterrâneo que fica debaixo do presbitério da igreja de São Filipe.

128 Quanto aos prêmios concedidos a Dom Bosco, cf. AAT 12.17.6 Elenco dei chierici del Seminario di Torino, Chieri e Bra, de 1834 a 1841.

129 O padre João Borel (Dom Bosco italianiza em Borrelli, como escreve Caffasso) foi um autêntico salesiano, anterior aos da primeira hora. Estas mesmas Memórias nos oferecerão novas ocasiões de admirá-lo. Fazemos sua apresentação com as palavras de quem foi por muitos anos ecônomo geral dos salesianos, o padre Fedele Giraudi (L’Oratorio di don Bosco. Turim, SEI, 2a ed., p. 65): “Conquanto muito ocupado na instituição do Refúgio, nas prisões do Estado e em muitos outros lugares da cidade, encontrava ainda tempo esse homem de pequena estatura, mas de alma grande e generosa, para trabalhar no oratório. Roubava horas ao sono para ir confessar. Negava ao corpo, cansado já de tantos trabalhos, o necessário descanso, para ir pregar aos meninos de Dom Bosco nas tardes dos dias festivos, a fim de poupar a Dom Bosco pelo menos esse trabalho. Ao lembrar os méritos do teólogo Borel, exclama Lemoyne nas Memórias biográficas: ‘Louvor eterno seja dado a este sacerdote incomparável’. Sua lembrança está imortalizada no oratório num medalhão de bronze, sobre uma lápide de mármore, sob os pórticos, no lugar do antigo telheiro-capela Pinardi, que foi testemunha do seu zelo”.

O teólogo João Borel (1801-1873) nasceu em Turim. Em 1864 foi admitido como clérigo da câmara e da capela do rei. Tendo sido ordenado sacerdote naquele mesmo ano, foi capelão de Sua Majestade em 1831. Em 1838 era diretor das escolas de São Francisco de Paula. A lápide de sua tumba recorda que por trinta e quatro anos foi diretor espiritual das Pias Obras do Refúgio e das madalenas. Distinguiu-se também pela caridade para com os pobres e pelo trabalho em favor dos encarcerados. Muito fez para favorecer Dom Bosco nos primeiros anos do apostolado deste. Foi ele quem benzeu a capela Pinardi e que manteve em vida o Oratório de Valdocco durante a grave doença de Dom Bosco, no verão de 1846. Até 1852 seu nome aparece em quase todos os atos da cúria ou outros que dizem respeito aos oratórios. Faleceu, em grande pobreza, a 8 de setembro de 1873, aos 72 anos.

Para maior conhecimento de sua vida e obra, veja Natale Cerrato, “Il teologo Giovanni Battista Borel inedito”, RSS 32 (1998), p. 151-177.

130 Instituição de antiga data, o Colégio dos Nobres foi confiado aos jesuítas em 1818. Eles fizeram dele um colégio para alunos internos. Depois da partida dos religiosos de Santo Inácio, em 1848, as classes do colégio passaram a fazer parte do Colégio Nacional, criado naquele ano. Pelo fato de ter sede no ex-convento dos carmelitas, foi chamado Colégio do Carmo.

131 “O reverendo senhor João Bosco de Castelnuovo d’Asti, Diocese de Turim, tendo ocupado o cargo de prefeito neste Real Colégio dos Nobres de Nossa Senhora do Carmo do dia 11 de julho a 17 outubro deste ano, a meu ver saiu-se muito bem, pela honestidade dos costumes, pela piedade para com Deus e a freqüência dos sacramentos. É o que atesto. Dando fé disso. Turim, 16 das calendas de novembro do ano de 1836. João Batista Dassi, SJ, Reitor, mp. Timbre do colégio” (cópia em ASC A 0200910 FDB 64 A2).

132 Dia 29 de março de 1840 (cf. ASC A 0200912 FDB D 11 e ASC 0200913 FDB D 12).

133 Dom Luís Fransoni (1789-1862) nasceu em Gênova. Refugiou-se em Roma de 1797 a 1814. Foi ordenado sacerdote em Gênova em 1814 e entrou na Congregação dos Missionários Urbanos. Bispo de Fossano em 1821, foi nomeado administrador apostólico da Arquidiocese de Turim em 1831-1832. Arcebispo de Turim, foi exilado para a Suíça de 1848 a 1850. Expulso do reino da Sardenha, em 1850, passou a residir em Lião, França, até à morte.

134 Os padres da Missão ocupavam o ex-convento das visitandinas com a igreja anexa da Visitação.

135 Como se pode ver em P. Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale (1815-1870), p. 413, eram 5 os seminaristas que tinham o cargo de prefeito: Tiago Bosco, Antônio Giacomelli, João Bosco, José Tepatti e Pedro Merla.

136 Dom Bosco foi ordenado por dom Fransoni na igreja da Imaculada Conceição anexa ao palácio episcopal, no dia 5 de junho de 1841.

137 A igreja de São Francisco de Assis, atendida pelos padres franciscanos conventuais até o período napoleônico, em 1608 adquiriu o aspecto atual. A fachada e o altar-mor são de Bernardo Vittone. Aí tinha sede a Congregação dos Artífices ligados à construção civil, da qual foi reitor primeiro o padre Guala e depois o padre Cafasso. Tal fato vai explicar por que os alunos do Oratório de Dom Bosco, nos primeiros tempos, trabalhavam quase todos na construção civil.

138 As origens do santuário da Consolata de Turim remontam ao século V, com uma capela dedicada a Santo André. Em 1679, naquele lugar foi reconstruído o santuário à Virgem, com desenho de Guarini. Nos tempos de Dom Bosco se construiu o adro. O atual ícone da Virgem é uma artística reprodução da efígie de Santa Maria del Popolo de Roma. De 1834 a 1855 atenderam à igreja os oblatos de Maria Virgem que substituíram os cistercienses. De 1860 a 1866 entraram em seu lugar os franciscanos. Em 1869 o santuário foi confiado ao Colégio Eclesiástico. Alguns dos leigos que trabalhavam no Oratório de Valdocco, em seus inícios, eram provenientes dos círculos ligados ao Santuário da Consolata.

139 A igreja de São Domingos existia já em 1260. Com fachada em estilo gótico e imponente campanário ela possui pinturas de Moncalvo e de outros. Justamente na terceira capela à direita, onde Dom Bosco celebrou sua terceira missa, encontra-se a tela de Nossa Senhora do Rosário, de Moncalvo.

140 Lavriano fica na estrada que de Turim leva a Casale, passando por Gassino e Brusasco.

141 O padre João Grassino (1821-1902) nasceu em Lavriano. Entrou no seminário de Chieri em 1840. Uma vez ordenado sacerdote, freqüentou o Colégio Eclesiástico de Turim e mais tarde se uniu ao grupo de sacerdotes que trabalhavam nos oratórios. Campo de trabalho foram o Oratório do Anjo da Guarda e o de Valdocco. Depois trabalhou em Giaveno. Sua presença em Scalenghe é documentada apenas a partir do ano 1886.

142 Scalenghe é um povoado na planície, a 27 quilômetros de Turim e 16 quilômetros a leste de Pinerolo.

143 Casalborgone, aldeia do Baixo Monferrato a 33 quilômetros de Turim e 12 de Chivasso.

Cinzano, localidade a 27 quilômetros de Turim.

Berzano di San Pietro, a 7 quilômetros de Castelnuovo d’Asti.

144 Talvez João Calosso, falecido em Berzano em 1860 e que tinha uma única filha.

145 Asti, antiga cidade romana à esquerda do Tânaro. Foi ducado com os longobardos, condado com os carolíngios e depois senhoria eclesiástica. Município livre de 1095 a 1313, passou para o domínio dos Sabóia em 1575. Grande centro agrícola e comercial, está no meio de uma das mais famosas zonas produtoras de vinhos piemonteses. É capital de província e diocese.

146 Spírito Sartoris (1784-1836), de Turim, tinha deixado rendas no valor de 800 liras anuais para um eventual capelão (cf. P. Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale, p. 34-35).

147 “A necessidade de ter bons eclesiásticos ministros da Igreja, e a calamidade dos tempos que fizeram encalhar todos os meios para isso, fizeram refletir. Sempre se reconheceu ser necessário aos eclesiásticos, depois do quinqüênio de teologia, o estudo da moral prática. Ser necessário para os jovens eclesiásticos algum exercício e preparação para o púlpito antes de nele se encontrarem obrigados por razão de emprego, e por isso foram tomadas providências pelos nossos reverendíssimos arcebispos a esse respeito” (AAT 19.15 Convitto ecclesiastico e altre congregazioni di sacerdoti, Regolamento del Convitto Ecclesiastico, Motivi dell´erezone del Convitto, segunda versão com as indulgências de 1842).

148 As práticas para a criação do Colégio Eclesiástico e a sua sistematização em São Francisco de Assis se podem encontrar em AAT 19.15 Convitto ecclesiastico e altre congregazioni di sacerdoti. Podem ser resumidas assim:

1808, o teólogo Guala dá início à Conferência Moral privada de São Francisco de Assis;

1814 as patentes reais reconhecem Guala como chefe e diretor de Conferência Moral: a de São Francisco de Assis passa a ter efeitos jurídicos e valor iguais aos das conferências existentes no seminário e na universidade;

1816: memorial com o qual Pio Bruno Lanteri pede a criação do Colégio Eclesiástico em São Francisco de Assis;

1817: pró-memória de Guala ao Real Economato Eclesiástico no mesmo sentido. Foi aceito no mesmo dia;

1822: patentes reais com as quais se entrega ao Colégio Eclesiástico a parte ainda não vendida do convento dos franciscanos;

1823: patentes reais com as quais se reconhece ao Colégio eclesiástsico a capacidade de adquirir bens e aceitar legados; decreto do arcebispo dom Columbano Chiaverotti que nomeia Guala reitor do Colégio Eclesiástico.

149 Quando Dom Bosco escreve estas linhas, já existia a polêmica de dom Lourenço Gastaldi com o Colégio eclesiástsico. Talvez isso explique a defesa apaixonada que Dom Bosco faz dele (veja a esse respeito G. Tuninetti, Lorenzo Gastaldi 1815-1883, vol. II, p. 68-70).

150 O teólogo Luís Guala (1775-1848) nasceu em Turim. Doutorou-se em teologia pela Real Universidade de Turim, de cujo Colégio Teológico fez parte. Discípulo de Pio Bruno Lanteri, entrou na Amizade Cristã em 1804. Durante o tempo em que Pio VII esteve preso em Savona, tomou parte – com o teólogo Daverio, o cavalheiro Renato D’Agliano e o banqueiro Marcos Gonella e muitos outros – de um Comitê que, sob a guia de Lanteri, se mantinha em contato com o Pontífice, o informava e o sustinha também materialmente. Denunciados às autoridades francesas, Lanteri e Daverio foram punidos. Graças a um equívoco da polícia, que buscava o banqueiro Guala e o teólogo Gonella, estes dois conseguiram escapar. De 1814 a 1836 foi administrador do santuário de Santo Inácio acima de Lanzo, do qual foi reitor de 1836 a 1848.

151 O jansenismo é um conjunto de doutrinas rígidas sobre a graça, o livre arbítrio e as condições para receber os sacramentos, com declarada hostilidade à autoridade do Papa. Fundamenta-se no Augustinus, obra póstuma de Cornélio Jansênio (1585-1638), bispo de Ypres, publicada em 1640. Durante o domínio napoleônico, os círculos jansenistas criaram força no Piemonte. No tempo a que Dom Bosco se refere, tinha ainda alguma força.

Sobre toda esta questão, veja P. Stella, Don Bosco nella religiosità cattolica, vol. I, p. 85-95. Exemplos de exercícios morais preparados pelo teólogo Guala podem ser vistos em AAT 19.15 Convitto ecclesiastico e altre congregazioni di sacerdoti.

152 O probabilismo e o probabiliorismo são dois sistemas de teologia moral. O primeiro ensina que é lícita a ação que seja validamente provável, isto é, apoiada em razões ou autores tais que mereça a aprovação de uma pessoa prudente; ao passo que o probabiliorismo ensina que não é licito seguir uma opinião provável quando houver outra mais provável. José Antônio Alasia (1731-1812) e Paulo Gabriel Antoine (1679-1743), aqui mencionados, eram probabilioristas e jansenizantes. Tanto em moral como em ascética, Dom Bosco muito deve a Santo Afonso.

153 Em 20 de novembro de 1875, escrevendo em forma privada aos “cônegos, párocos e outros sacerdotes adidos ao ministério na Arquidiocese de Turim” dom Gastaldi louva quanto fizeram os seus predecessores desde dom Gattinara até dom Columbano, os quais “tinham procurado que se adotassem as doutrinas de São Carlos Borromeu, São Francisco de Sales, São Leonardo de Porto Maurício, do Beato Sebastião Valfrè e do célebre Antoine da Companhia de Jesus, seguido fielmente por Alásia [...]” (ASC A 1110701, p. 3 FDB 618 D 7).

154 Dia 18 de dezembro de 1875, em sua carta sobre o ensino da teologia moral, dirigida aos “sacerdotes diretores das Conferências Morais na Arquidiocese de Turim”, dom Gastaldi escrevia: “As minhas ditas intenções são: [...] 2º Não afirmar que a Igreja aprovou todas e cada uma das doutrinas de Santo Afonso de Ligório no sentido de que quem segue todas e cada uma destas doutrinas segue em tudo a doutrina da Igreja (Lettere pastorali, commemorazioni funebri e panegirici di Monsignor Lorenzo Gastaldi... Turim, Tip. B. Canonica e filhos, herdeiros Binelli, 1883, p. 599).

155 Na carta de 20 de novembro de 1875, dom Gastaldi convidada a exprimir um juízo de consciência sobre as novas doutrinas: “Observe-se bem: não perguntamos se de dez, quinze ou vinte anos para cá tenha crescido a freqüência aos sacramentos, aos sermões, aos exercícios de piedade numa parte dos católicos; porque já sabemos que a vossa resposta será afirmativa; mas perguntamos, se entre os paroquianos de ambos os sexos, especialmente da idade jovem, que freqüentam os sacramentos e as práticas de piedade mais do que se fazia tempos atrás, veja-se ainda, não direi mais, mas pelo menos o mesmo grau de castidade, paciência, generosidade, desinteresse, resignação à vontade de Deus, de modéstia, de mortificação interna e externa, facilidade para perdoar as ofensas, docilidade, obediência aos pais quanto se via outrora. [...] Se tais virtudes abundem entre os nossos diocesanos que hoje freqüentam os sacramentos e os exercícios de devoção é justamente o que desejamos conhecer por meio dos nossos colaboradores, que têm longa experiência no ministério eclesiástico” (ASC A 1110701 FDB 618 D 7 e 618 D 8).

Entre os que tinham sido alunos do Colégio Eclesiástico, encontravam-se na diocese de Turim 4 párocos, 5 reitores de igrejas, 8 vigários cooperadores e 4 mestres ou capelães (cf. AAT 19.15 Nota dei Rev.di Ecclesiastici già allievi nel Convito [sic] di S. Francesco di Torino diretto daí Sig. Teol.o Coll.o Luigi e passati ad impieghi).

156 O teólogo Félix Gólzio (1808-1873), reitor do santuário da Consolata e do anexo Colégio Eclesiástico, pertencia ao Seminário Consiliário de Turim. Como já dissemos, sucedeu como confessor de Dom Bosco ao padre Cafasso, falecido em 1860. Estava persuadido de que Deus conduzia seu penitente por caminhos extraordinários, e aprovava seu método de direção espiritual. Dirigiu o Colégio Eclesiástico de 1867 até seu fechamento, por ordem de dom Gastaldi, em 1876. Em AAT 19.15 pode-se ver parte da correspondência do teólogo Gólzio, inclusive cartas a dom Gastaldi de 1869 a 1872.

157 Cinco eram os cárceres existentes em Turim: o cárcere do Magistrado de apelo, vulgarmente chamado de Senado; a casa correcional; o cárcere do antigo vicariato, no palácio das Torres; aquele a serviço da questura para os homens; e o cárcere chamado das Forçadas para as mulheres. Dom Bosco ia ao cárcere do Senado e à casa correcional.

158 De acordo com o Código Penal, “o menor de 14 anos, quando tiver agido sem discernimento, não estará sujeito a pena”. Só em 1845, com a abertura da Generala, começou-se a colocar em prática quanto prescrito pelo artigo 28 do Código Penal, que impunha a separação dos delinqüentes de tenra idade ou de tênue discernimento, dos demais prisioneiros (cf. Codice penale per gli Stati di S. M. il Re di Sardegna. Turim, Stamperia Reale, 1839, artigos 93, 94, 28).

159 Confronte-se com quanto Dom Bosco escreve em O jovem instruído (p. 8, OE II, p. [187]: “Para que tal desgraça não vos aconteça a vós, aqui vos proponho uma breve e fácil norma de vida, mas suficiente para vos tornardes a consolação dos vossos pais, a honra da pátria, bons cidadãos na terra e mais tarde venturosos habitantes do Céu”.

“Entre 1831 e 1846 o furto simples correspondia a cerca de 30% dos crimes punidos pelo vicariato de polícia, seguidos por uns 20% por ociosidade, vagabundagem, mau-caráter, mendicidade e, a distância maior (a relação com os precedentes era de 5 para 1), por violências contra a pessoa, das quais a metade era constituída por ameaças, pancadas, rixas e brigas... deste ponto de vista, Turim era uma cidade de deserdados, mais que de criminosos...” (U. Levra, “Il bisogno, il castigo, la pietà, Torino 1814-1848”. In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco. Turim, ASCT, 1989, I, p. 76).

160 “Estes jovens têm verdadeiramente necessidade de uma mão amiga, que cuide deles, os cultive, os guie à virtude, os afaste do vício” (“Piano di Regolamento per l’Oratorio maschile di San Francesco di Sales in Torino nella regione di Valdocco”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 108.

Em 1846 constituía-se em Turim a Régia Sociedade de Patronato para Jovens Libertados da Casa de Educação Correcional, cujo escopo era preservar dos perigos de uma recaída os egressos da Generala, procurando para eles os meios de completar sua instrução religiosa, civil e profissional (cf. C. Felloni - R. Audísio, “I giovani discoli”. In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco. Turim, ASCT, 1989, I, p. 119, nota 92). Dom Bosco foi um dos sócios fundadores.

161 Do mesmo Dom Bosco provêem duas tradições diversas a respeito do início de seu Oratório festivo. A primeira, mais antiga, é trazida pelo Cenno storico dell´Oratorio di S. Francesco di Sales, de 1854: “Este Oratório, ou seja, reunião de jovens nos dias festivos, começou na igreja de São Francisco de Assis [...] comecei com o reunir no mesmo lugar 2 jovens adultos, gravemente necessitados de instrução religiosa. A estes se uniram outros e no decorrer de 1842 o número chegou a 20 e às vezes a 25” (G. Bosco, Cenno storico. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 110-111).

A segunda, mais recente, aparece já nas Crônicas de Ruffino e fala somente de Bartolomeu Garelli. Ruffino, porém, deixa em branco o ano em que teria acontecido o encontro de Garelli com Dom Bosco: “Origem do Oratório. No ano [...] Dom Bosco se encontrava no Colégio Eclesiástico de São Francisco de Assis. No dia da festa da Imaculada Conceição, vestia-se para celebrar a santa missa, entrementes um jovem lá pelos 17 ou 18 anos estava na sacristia, esperando para ouvir a santa missa [...]” (R1 1860, p. 28-30 FDB 1206 C 9 - C 11).

A história oficial dos salesianos, com a publicação, no BS, da História do Oratório de São Francisco de Sales, adotou esta segunda tradição.

162 “– Como te chamas?

– N. N.” (R1 1860, p. 30, FDB 1206 C 10).

163 Dom Bosco provavelmente italianizou em Garelli o sobrenome Carel.

164 Lemoyne (MB II, p. 76) diz que o santo, depois do “não sei nada”, prosseguiu assim o diálogo:

“– Sabes cantar?

Não.­

Sabes assobiar?

E então o menino sorriu”.

Era o que Dom Bosco queria: conquistar a confiança.

165 Garelli trouxe logo outros meninos para o catecismo e freqüentou-o por algum tempo, mas não se sabe até quando. Lemoyne afirma que o padre Anfossi, então seminarista no Oratório, e outros viram-no por ali depois de 1855. Posteriormente perdeu-se lhe a pista. “Garelli aparece aos olhos de Dom Bosco como o apelo de toda a juventude necessitada e abandonada” (Fr. Veuillot, Saint Jean Bosco et les salésiens. Paris, 1943, p. 22).

166 Quando, em 1869, Dom Bosco pedia cartas de recomendação dos prelados para alcançar a aprovação pontifícia da Congregação Salesiana, incluía nas petições que lhes fazia um resumo histórico desde as origens. Começava assim: “Esta Sociedade era no princípio um simples catecismo”. Era, com efeito, o catecismo iniciado a 8 de dezembro de 1841 e continuado na mesma igreja, e que dali passou a outros lugares, com a colaboração de leigos e eclesiásticos e com a aprovação do arcebispo, sob a direção do santo.

Ele próprio assinala uma circunstância desse primeiro catecismo. Depois do sinal-da-cruz, rezou a Ave-Maria, e, a 8 de dezembro de 1885, revelou a eficácia dessa oração. Dava uma conferência no Oratório aos sócios reunidos e assim se expressou: “Todas as bênçãos que nos choveram do céu são fruto da Ave-Maria rezada com fervor e reta intenção junto com o jovem Bartolomeu Garelli na igreja de São Francisco de Assis” (MB XVII, p. 510).

Por esse motivo, os salesianos datam a origem da Sociedade a 8 de dezembro de 1841.

167 Quanto às festas de preceito na cidade e Arquidiocese de Turim, veja “Feste da osservarsi nella Città e Diocesi di Torino a tenore del Breve di S. S. Pio VI del 27 maggio 1786, e della lettera pastorale di S. E. Reverendissima Mons. Arcivescovo di Torino del 21 giugno”. In: Synodus Dioecesana Taurinensis [...]. Turim, Eredi Avondo [1788], p. 288, e a circular do vigário geral Celestino Fissore, de 16 de setembro de 1858, p. 3-4.

168 José Buzzetti (1832-1891), chegando a Turim em busca de trabalho, foi um dos meninos que freqüentaram os catecismos de São Francisco de Assis. Em 1847, começou os estudos eclesiásticos, que teve que interromper por causa da amputação do dedo indicador esquerdo. Colocou-se então à disposição de Dom Bosco para tudo o que fosse necessário. Desde 1853 cuidou da administração das Leituras católicas em tudo o que dependia de Valdocco. Em 1877 fez os votos na Congregação Salesiana. Depois da morte de Dom Bosco, retirou-se para Lanzo para cuidar da saúde abalada e viver na oração os seus últimos anos.

169 Carlos Buzzetti (1829-1891) tendo-se encontrado com Dom Bosco no tempo dos catecismos de São Francisco de Assis, conduziu depois seus irmãos ao oratório. Trabalhou desde 1856 em Valdocco, na qualidade de simples operário. Em 1860 era chefe de obras. Depois foi o construtor a quem Dom Bosco confiou a construção de seus edifícios, e em particular a construção da igreja de Maria Auxiliadora. Assessorado pelo irmão Josué, tornou-se um dos primeiros empresários e construtores de casas e de igrejas de Turim.

Josué Buzetti (1840-1902) em 1874 se declara chefe de obras em Turim.

Talvez João Gariboldi seja o pai de Bernardino Gariboldi, estudante no Oratório em 1857-1858 (cf. ASC E 720 Censimento dal 1847 al 1869).

170 Compare-se com quanto prescrito pelo “Regolamento per gli allievi della Regia Opera della Mendicità Istruita”, de 1831, e apresentado por G. Chiosso, “La gioventù povera a Torino nell´ottocento [...]”. In: J. M. Prellezo [aos cuidados], L’impegno dell´educare [...]. Roma, LAS [1991], p. 397-398.

171 “Notou-se, além disso, que, à medida que se fazia notar a eles a dignidade do homem, que é racional e deve buscar o pão da vida com honestas fadigas e não com a ladroagem, em suma, apenas se fazia ressoar em suas mentes o princípio moral e religioso, experimentavam no coração um prazer que não sabiam explicar, mas que fazia com que desejassem se tornar melhores [...]”. Às reuniões festivas de São Francisco de Assis “eram convidados aqueles que saíam da cadeia e os que ao longo da semana se ia recolhendo cá e lá nas praças, na ruas e também nas oficinas. Contos morais e religiosos, canto de loas sagradas, pequenos presentes, alguns brinquedos eram os meios que se usavam para entretê-los nos dias festivos” (G. Bosco, “Cenni storici intorno all’Oratorio di San Francesco di Sales”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 134).

172 Alguns desses sermões em ASC A 225 Prediche - Conferenze - Discorsi FDB 75 E 8 - 79 A 8, FDB 83 E 8 - 83 E 9.

173 Real Albergue Geral de Caridade erigido em 1628. Recebia os pobres de ambos os sexos nascidos em Turim, cidade e território, inclusive os órfãos. Era também hospital. Trabalhavam nele as Irmãs de Caridade, chamadas Cinzentas. Entre os administradores havia representantes do governo, da prefeitura municipal e do clero (cf. L’Armonia 4 (1851), 117, 29 de setembro, p. 467, col. 2).

Real Asilo das Virtudes, pia obra fundada no século XVI por iniciativa da Companhia de Caridade e da de São Paulo; tinha como escopo o ensino das artes e ofícios aos jovens mais pobres, dando a eles comida, alojamento gratuito e uma remuneração proporcionada (cf. P. Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale, p. 170-171).

Colégio Governamental de São Francisco de Paula, com classes elementares, de gramática e de retórica, que em 1859 se transformou em Ginásio Real.

174 Por motivo de um pedido urgente de ajuda, feito pelo pároco de Cinzano, o arcebispo, em 30 de novembro de 1842, autorizou Dom Bosco a dar o exame de confissão perante o teólogo Guala e o padre Cafasso. A patente de confissão lhe foi conferida no dia 10 de junho de 1843.

175 No Colégio Eclesiástico os estudos duravam dois anos; mas aos que mais se distinguiam por piedade e aplicação permitia-se passar mais um ano, favor que o teólogo Guala concedeu a Dom Bosco. Nomearam-no repetidor extraordinário e encarregaram-no ao mesmo tempo de alguns alunos de menor alcance intelectual.

176 “Um dia, o padre Cafasso me mandou chamar e me disse:

– Decidi-vos. Há três coisas. Há o pároco de Buttigliera e algum outro que vos pede como vigário cooperador, há também a marquesa Barolo que vos quer no Refúgio, haverá ainda a possibilidade de ficar no Colégio Eclesiástico e preparar-vos para a conferência da tarde.

Eu respondi:

– Se me pergunta, eu prefiro o Colégio Eclesiástico, mas no mais eu absolutamente não me decido, vou aonde me manda. Eu agora por uma semana vou a... No entanto, o senhor decida...

Era já o dia em que devia partir. Eu me vestia. O padre Cafasso me mandou chamar. Vou, e ele me diz:

– Diga-me, pois, qual a coisa que mais lhe agrada.

Eu respondi:

– Ocupar-me dos meninos.

– Bem, vá cuidar de seus afazeres” (R1 1861 1862 1863, p. 49, 50 FDB 1207 D 3 e 1207 D 6).

177 A marquesa Julieta Colbert, viúva do marquês Falletti de Barolo, havia fundado ao redor do chamado Refúgio, no bairro de Valdocco, um grupo de instituições. O Refúgio (hoje Instituto Barolo) é um grande colégio para meninas pobres “a quem a sedução induziu ao erro e as quais, arrependidas, procuram a paz de um retiro. Primeira condição para que sejam aceitas é que estejam arrependidas e entrem espontaneamente no colégio” (L’Armonia 4 [1851] 41, 4 de abril, p. 163, coluna 1). O nome é tirado da padroeira, Nossa Senhora Refúgio dos Pecadores.

Está situado entre a Pequena Casa da Divina Providência e o Oratório salesiano: três obras grandiosas, uma ao lado da outra, na rua Cottolengo. O teólogo Borel era então o diretor espiritual do Refúgio. Em 1844, a marquesa fazia construir, ao lado, o Pequeno Hospital, para meninas enfermas, o Santa Filomena.

178 “Voltando daquela aldeia estive ainda oito a dez dias. Depois, me chamou:

– Já decidiu?

– Não, mesmo. Eu não decido nada. Mande-me a qualquer lugar e eu parto logo.

– Ide ao Refúgio” (R1 1861 1862 1863, p. 50 FDB 1207 D 7).

179 Fundado pela marquesa Barolo em 1843, o Hospital Santa Filomena ou Hospitalzinho era destinado a meninas pobres dos 4 aos 14 anos. Às meninas convalescentes se ensinava a ler e ecrever. Dom Bosco introduziu o ensino da aritmética (cf. ASC 1451610 FDB 1581 D 4 carta irmã Madalena Teresa- Bosco 16/12/1864).

180 “Então a marquesa consentiu em dar-lhe desde então o estipêndio de 600 francos e o teólogo Borel lhe cedeu para alojamento provisório um quarto seu no Refúgio. Dom Bosco antes de ir para lá faz o acordo de poder ser visitado por vários jovens, os quais iam aprender o catecismo. Entre estes Buzzetti que ainda está aqui em casa. Foi-lhe concedido e assim Dom Bosco continua lá o Oratório começado já em São Francisco de Assis como foi notado em outro lugar. O teólogo Borelli o ajudava na catequese. Fizeram-se diversos banquinhos e foram colocados no quarto” (R5, p. 58-59 FDB 1212 A 7).

181 Depois do primeiro sonho entre os 9 e 10 anos, Dom Bosco teve outros seis, que concorreram para esclarecer gradualmente o desenvolvimento do primeiro. Merecem atenção um sonho aos 16 anos, quando lhe foram prometidos recursos materiais, e outro aos 19, com a ordem terminante de ocupar-se da juventude.

182 Cf. Is 11,6-9.

183 “Aqui a minha casa, daqui sairá a minha glória”.

184 Dom Bosco sonhou que trabalhava como alfaiate: “Fui e somente lá, onde começou a história do Oratório, intuí o que significasse aquele trabalhar como alfaiate” (R2 1861 1862 1863, p. 50 FDB 1207 D 6). O sonho “indicava como ele não fosse chamado só a escolher os jovens santos e empenhar-se em aperfeiçoá-los e protegê-los, mas sim a reunir em torno de si jovens desviados e estragados pelos perigos do mundo, os quais por meio de seus cuidados se fizessem bons cristãos e cooperassem para a reforma da sociedade” (MB I, p. 382).

185 “Quando, pois, no ano de 1844 por motivo de emprego fui estabelecer-me na Pia Obra do Refúgio, aqueles jovens continuaram a ir lá para a sua instrução espiritual. Foi exatamente naquele tempo que, de acordo com o senhor teólogo Borelli e o padre Pacchiotti, apresentamos um memorial ao senhor arcebispo, que nos autorizou a converter um nosso aposento em oratório, onde se fazia a catequese, se ouviam as confissões, se celebrava a santa missa para os sobreditos jovens” (ASCT, Vicariato, Corrispondenza, 1846, pasta 73, carta Bosco-vigário da cidade, 13/3/1846).

186 Cf. ASC F 593 FDB 230 D 9 - 230 D 11, “Facoltà concesse dall´arcivescovo Fransoni”.

187 No Regulamento de 1847, publicado por volta de 1852, expondo o fim da obra dos oratórios, Dom Bosco dirá: “O Oratório colocou-se sob a proteção de São Francisco de Sales, porque os que se querem dedicar a esse gênero de trabalho devem tomar este santo como modelo de caridade e boas maneiras, que são as fontes donde promanam os frutos que se esperam da obra dos oratórios” (MB III, p. 91).

188 “Ele recolhe nos dias festivos, lá naquele solitário recinto de 400 a 500 jovens acima dos 8 anos, para afastá-los dos perigos e divagações, e instruí-los nas máximas da moral cristã. E isso entretendo-os em agradáveis e honestos recreios, depois que assistiram aos ritos e aos exercícios de religiosa piedade, sendo ele pontífice e ministro, mestre e pregador, pai e irmão, celebrados com a mais edificante santidade (“Cronichetta di Casimiro Danna”, Giornale della Società d’Istruzione e d’Educazione I [1849], julho, p. 459-460).

189 Dom Bosco acrescenta: “Vila da benemérita condessa Gabriela Peletta Corsi, Nizza Monferrato, 21 de outubro de 1873”. Terminava aqui o texto primitivo das Memórias do Oratório qual foi entregue ao Papa Pio IX.

190 Historicamente, os fatos de São Pedro in vinculis precedem a ida do Oratório para os Moinhos. Não obstante isso, já nas Cronache dell´Oratorio di San Francesco di Sales nº I 1860 (ASC A 0080601) segue-se a ordem dos fatos que depois será retomada nas Memórias do Oratório, isto é, antes o Oratório nos Moinhos e depois em São Pedro in vinculis. À p. 33 (FDB 1206 D 2), o texto começa: “Dois fatos provaram a proteção manifesta do Senhor”.

191 “A voz de uma capela destinada unicamente para os jovens, as sagradas funções feitas especialmente para eles, um pouco de lugar livre para saltar, foram chamariz poderoso, e a nossa igreja que, naquela época começou a ser chamada Oratório, ficou pequena. Ajustamo-nos como pudemos. Quartos, cozinha, corredores, em cada ângulo da casa havia classes de catequese, tudo era Oratório (G. Bosco, “Cenno storico”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 114).

192 A marquesa Júlia Colbert Falletti de Barolo (1785-1864) nasceu em Maulévrier, França. Educada cristãmente, perdeu a mãe quando tinha 7 anos e foi com o pai para o exílio, na Holanda e na Alemanha. Voltando à França, no tempo de Napoleão I, desposou em 1806 o jovem Tancredi de Barolo, do qual ficou viúva em 1838. Em Turim, procurava imitar as iniciativas de caridade que tinha conhecido em suas viagens na França. Aqui interessa a Pia Obra do Refúgio e a Irmandade de Santa Maria Madalena. A última obra a que se dedicou foi a igreja de Santa Júlia, no bairro de Vanchiglia. Dela está em curso a causa de santificação.

193 Um sonho veio confortar Dom Bosco nessa ocasião. Só o contou a 2 de fevereiro de 1875, ao padre Barberis que vinha com ele de via Borgo Nuovo. O padre Le­moyne o transcreveu (MB II, p. 297-298). O sonho pode ser encontrado em ASC A 0030112 “Notizie varie dei primi tempi dell´Oratorio su Don Bosco ecc.”, FDB 892 A 11 e 892 A 12. Eis sua tradução:

“Pareceu-me estar numa planície cheia de uma multidão incontável de jovens. Uns brigavam, outros blasfemavam. Aqui se roubava, ali se ofendiam os bons costumes. Via-se no ar uma nuvem de pedras lançadas pelos que travavam batalha entre si. Eram jovens abandonados e corrompidos. Estava para fugir daí, quando vi ao meu lado uma Senhora que me disse:

Põe-te no meio desses jovens e trabalha.

Adiantei-me, mas, que fazer? Não havia um local onde reuni-los; queria fazer lhes o bem e dirigi-me a pessoas que estavam a olhar de longe e podiam ser de valiosa ajuda para mim. Ninguém, contudo, me dava ouvidos, ninguém me ajudava. Voltei-me para a Senhora, e ela me disse:

Olha esse lugar!

E me fez ver um grande prado.

Mas há aqui tão-somente um prado – disse eu.

Ela respondeu:

Meu Filho e os apóstolos não tinham um palmo de terra onde pousar a cabeça.

Comecei a trabalhar naquele prado, avisando, pregando, confessando; mas vi que em grande parte resultava inútil qualquer esforço se não encontrasse um local com um edifício para recolhê-los e abrigar os que haviam sido totalmente abandonados pelos pais e rejeitados e desprezados pela sociedade. Então aquela Senhora conduziu-me um pouco mais para o norte e me disse:

Observa!

Olhei e vi uma igreja pequena e baixa, um pátio diminuto e grande número de jovens. Retomei meu trabalho. Mas, como a igreja era multo pequena, recorri outra vez à Senhora, que me fez ver outra bastante maior e com um edifício ao lado. Depois, levando-me consigo a um trato de terreno cultivado, quase diante da fachada da segunda igreja, acrescentou:

Neste lugar, onde os gloriosos mártires de Turim, Aventor e Otávio, sofreram o martírio, nesta terra que foi banhada e santificada por seu sangue, quero que Deus seja honrado de modo muito particular.

Assim dizendo, adiantou um pé até descansá-lo no ponto exato onde teve lugar o martírio, e indicou-me com precisão. Eu queria pôr um sinal para encontrá-lo quando voltasse a esse campo, mas não achei nada, nem um pedaço de madeira, nem uma pedra; contudo, fixei-o na memória com toda a exatidão. Corresponde exatamente ao ângulo interior da capela dos Santos Mártires, chamada depois de Sant’Ana, do lado do Evangelho, na igreja de Maria Auxiliadora. Entretanto via-me rodeado de um número imenso e sempre crescente de jovens; e olhando para a Senhora, cresciam os meios e o local; vi depois uma igreja muito grande, precisamente no lugar onde me disseram haver ocorrido o martírio dos santos da legião tebéia, com muitos prédios ao redor e um lindo monumento ao centro. Enquanto tudo isso acontecia, sempre em sonho, tinha como colaborado­res alguns sacerdotes, que num primeiro momento me ajudavam, mas depois fugiam. Buscava com grande trabalho atraí-los para num, e eles pouco depois iam-se embora e deixavam me só. Então voltei me de novo para a Senhora, que me disse:

Queres saber como fazer para que não vão embora? Toma esta fita e ata-lhes na cabeça.

Respeitosamente tomei de sua mão a fita branca e vi que nela estava escrito uma palavra: ‘obediência’. Experimentei em seguida fazer o que a Senhora me disse e comecei a atar a cabeça de alguns dos meus colaboradores voluntários com a fita, e vi logo uma grande mudança, de fato surpreendente, que se tornava cada vez mais patente, à medida que ia cumprindo o conselho que havia recebido, já que eles abandonaram o desejo de ir para outra parte e ficaram, por fim, para ajudar-me. Assim constituiu se a Sociedade Salesiana”

As três igrejas são o telheiro-capela Pinardi, a igreja de São Francisco de Sales e a basílica de Nossa Senhora Auxiliadora.

194 ASCT, “Collezione I lettere”, vol. 172, n. 447, carta Borel-illustrissimo signor Cavaliere, reproduzida por G. Bracco, “Don Bosco e le istituzioni”. In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, I, p. 124-125.

195 No dia 12 de julho de 1845 Nomis di Pollonio, contador-chefe do município, concedia a autorização pedida (cf. G. Bracco, “Don Bosco e le istituzioni”. In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, I, p. 125).

196O contador-chefe era o primeiro dos decuriões da cidade. Era também o vigário da cidade e tinha autoridade sobre os dois prefeitos. Veja também nota 194.

? Os Moinhos Dora eram chamados popularmente de molassi, para distingui-los dos moinhos menores que estavam sobre as margens do rio Pó. Hoje não existem mais.

197 “Aqueles jovens em parte aflitos porque deviam abandonar um lugar que estimavam como próprio deles, em parte ansiosos pela novidade todos se dispunham a partir. Você teria visto um que levava uma cadeira, aquele outro um banco, este um quadro ou uma estatuinha, aquele um paramental, ou cestas, ou ampolas. Outros muito mais festivos levavam pernas de pau ou saquinhos de bochas ou piastrelas, mas todos ansiosos por ver o novo oratório” (G. Bosco, “Cenno storico”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 114).

O Oratório ficou nos Moinhos Dora de 13 de julho até o quarto domingo do Advento, 23 de dezembro (cf. ASC A 102 Memorie dell´Oratorio di San Francesco di Sales, p. 4).

198 Cf. G. Bosco, “Cenno storico”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 115.

199 “Informada a contadoria dos inconvenientes ocorridos por parte dos meninos que vão, segundo a autorização dada à S. V. Ilustríssima e muito Rev., à capela da cidade nos Moinhos de Dora para ser catequizados, deliberou que deva cessar com o dia 1º do próximo janeiro a concessão feita a V. S. do uso da dita capela (ASCT, Collezione I, copia lettere, 1845, vol. 189, n. 407, carta dos síndicos Serravalle e Bosco di Ruffino ao teólogo Borel 18/11/1845, transcrita por G. Bracco, “Don Bosco e le istituzioni”. In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, I, p. 125-126). A deliberação da contadoria foi motivada por um pedido do conde Marchetti Melina, diretor dos moinhos municipais.

A contadoria era uma comissão municipal a serviço do corpo dos decuriões da cidade de Turim. Tratava dos assuntos econômicos, das taxas, dos balanços, da contabilidade etc. Existiu até 1848.

200 Quanto ao episódio inteiro, veja-se F. Motto, “L’oratorio di Don Bosco presso il cimitero di San Pietro in vincoli in Torino: una documentata ricostruzione del noto episodio”, RSS 5 (1986) p. 199-220.

201 Capela em forma de cruz grega no interior do cemitério de São Pedro in vinculis.

202 O cemitério surgiu em 1777 e tomou o nome do humilde oratório que surgia perto dali e tinha sido erigido pelos hortelãos em 1775 em honra de São Pedro in vinculis. Em 1829 foi declarado fechado, mas até 1881 ainda houve enterros nele.

203 Margarida Sussolino.

204 O padre José Tésio (1777-1845) nascido em Raconigi e morto em Turim dia 28 de maio. Tinha sido capuchinho e depois, por muitos anos, vigário cooperador, antes de ser nomeado capelão de São Pedro in vinculis.

205 Veio a falecer aos trinta minutos da quarta-feira seguinte, como reza o atestado de óbito.

206 “Durante aquele inverno fizemos a catequese parte em nossa casa e parte em vários quartos alugados” (carta Bosco-vigário da cidade, 13/3/1846, transcrita por G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, II, p. 23).

207 As Memórias do Oratório colocam este período de setembro a novembro. Historicamente, ele durou do fim de maio ao princípio de julho. O texto tem como fonte G. Bosco, “Cenno storico”. In: P. Braido [ed.],

Don Bosco educatore, p. 116-117.

208 Sassi, na periferia de Turim, sobre a margem direita do Pó, entre Nossa Senhora do Pilone e Nossa Senhora de Campagna e a estrada municipal para Superga. Nos tempos de Dom Bosco era uma pequena vila com igreja paroquial dedicada ao martírio de São João Batista, na encosta de uma colina, hoje substituída, mais na planície, pela paróquia de Nossa Senhora do Rosário.

Nossa Senhora de Campagna, igreja paroquial da Anunciação de Nossa Senhora, numa pequena vila, então a 3 quilômetros ao norte da cidade, além da margem esquerda do rio Dora. Construída em 1675, esteve no centro dos acontecimentos do assédio de Turim em 1706. Paróquia em 1834, foi reconstruída em 1883 e, novamente, em 1949, depois dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial, com projeto do arquiteto U. Cento.

209 Real Basílica de Superga, construída por Victor Manoel II entre 1717 e 1731, cumprindo uma promessa feita à Virgem durante o assédio de Turim de 1706. É dedicada à Natividade de Nossa Senhora.

210 O Oratório serviu-se da casa Moretta para a catequese até dia 2 de abril de 1846 (cf. ASC A 102 Memoriale dell´Oratorio di San Francesco di Sales, p. 4).

O padre João Moretta (1777-1847) nasceu e morreu em Turim. Em 1833 morava perto da paróquia da Anunciação. Tinha sido capuchinho. Foi reitor de Santa Margarida e um dos sacerdotes encarregados das funções da Pia Sociedade do Patrocíno de São José, na igreja da Consolata.

211 Dia 7 de janeiro de 1846 a direção da Obra Pia da Mendicidade Instruída inaugurava uma escola noturna na paróquia de Santa Pelágia, limitada, porém, aos que já soubessem ler e escrever, e a confiaram aos Irmãos das Escolas Cristãs. O anúncio da abertura dessa escola tinha sido feito dia 3 de dezembro de 1845.

Dom Bosco repetirá mais adiante que suas escolas noturnas foram as primeiras em ordem de tempo. Em 1934, os Irmãos das Escolas Cristãs contestaram tal prioridade. A questão é tratada nas MB XVII, p. 850-852. Eis a conclusão: “Se se fala de aulas noturnas em sentido estrito, os Irmãos precederam Dom Bosco de alguns meses; dispondo de pessoal técnico, em janeiro de 1846 começaram-nas regularmente. Mas se se trata de aulas noturnas sic et simpliciter, isto é, de aulas mesmo e dadas à noite a operários que haviam passado o dia nas oficinas, locais de trabalho ou nos campos, cabe a Dom Bosco a prioridade de pelo menos dois meses (novembro de 1845)”.

212 Nas Letture Popolari antes, e depois nas Letture di Famiglia, desde 1837 eram publicadas em continuação notícias, artigos e simples indicações destinadas a iniciativas educativas em favor dos filhos do povo. De 1842 em diante começou-se a falar das escolas dominicais. Alguns periódicos de tendência moderada, como L’Educatore Primario, apoiaram a difusão de iniciativas desse tipo, às quais não faltava o apoio discreto do mesmo rei.

213 Borgo Dora, região periférica de Turim, perto da ponte Mosca sobre o rio Dora. Os limites da paróquia se estendiam além da zona edificada, compreendendo também as regiões de Valdocco e de Borgo San Donato. A igreja paroquial, aberta ao culto em 1785, fechada em 1882 e demolida em 1956, encontrava-se na praça Borgo Dora.

214 O teólogo Vicente Ponsati (1801-1874) nasceu em Volvera, Turim, e morreu na cidade de Turim. Era pároco de São Filipe e São Tiago em Santo Agostinho.

Veja-se em ASC A 0000101 G. Barberis, Cronichetta 1º, p. 29-30 FDB 833 D 3 - 833 D 4, a descrição da visita dos párocos ao Oratório.

215 “21 de fevereiro. Compra da porta para o prado 11,50” (ASC A 102 Memoriale dell´Oratorio di San Francesco di Sales, p. 3, FDB 552 E 5).

216 Cf. G. Bosco, “Cenno storico”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 116.

217 Stupinigi: distrito do município de Nichelino, 10 quilômetros a Sudoeste de Turim. A localidade é conhecida sobretudo pelo Palácio de Caça dos Savóia, grandioso complexo arquitetônico barroco de Filipe Juvara (1729-1730).

218 O padre José Maurício Anselmetti (1788-1852) nasceu em Turim. No Stato degli ecclesiastici della diocesi di Torino 1833 (AAT 12.6.7) afirma-se que o cargo de cura da basílica de Superga era verdadeiramente apropriado para o padre Anselmetti.

219 Com decreto real de 21 de julho de 1833, Carlos Alberto havia instituído a Academia eclesiástica, que tinha como finalidade formar nos estudos religiosos membros escolhidos do clero subalpino. Os escolhidos deviam ser laureados em teologia e em direito e dedicavam-se por quatro anos ao estudo do direito canônico e da sagrada eloqüência e às conferências de moral. De volta às respectivas dioceses, eram preferidos a outros na colação dos benefícios e na promoção às dignidades eclesiásticas. Foi supressa em 1855, mas já havia ficado sem alunos desde 1843, após a expulsão do teólogo Guilherme Audísio.

O teólogo Guilherme Audísio (1802-1882) nasceu em Bra e morreu em Roma. Diretor espiritual das escolas em 1833. Presidente da Academia de Superga, colaborador do jornal L’Armonia, escreveu sobre direito canônico, história eclesiástica e sagrada eloqüência. Faleceu em Roma, onde foi cônego de São Pedro e professor. Era muito consultado como competente canonista. Suas posições sobre a situação italiana daqueles anos lhe criaram dificuldades tanto em Turim quanto em Roma.

220 Miguel Benso, marquês de Cavour (1781-1850), na sua juventude foi aguerrido antijacobino. Depois aproximou-se do regime do Consulado e do Império. Casou-se em 1805. A partir de 1819 é decurião da cidade e, desde 1833, um dos síndicos. Em 1835 foi nomeado vigário da cidade. Exerceu seu cargo com inexaurível energia e constante atividade.

221 O vigário da cidade e de polícia era um magistrado nomeado pelo rei entre os decuriões da administração municipal de Turim. Seus poderes, judiciais, administrativos e de polícia, eram superiores aos puramente municipais, pois também tinha poderes conferidos pelo Estado. Quanto às competências de polícia, competia-lhe “promover a observância da ordem no tocante à religião, à abundância e o discreto preço dos víveres, à tranqüilidade e à Segurança pública”.

222 O diálogo entre Cavour e Dom Bosco é tirado de G. Bosco, “Cenno storico”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p.118-119.

Quanto as MO dizem de Cavour, e o diálogo com a marquesa Barolo, que encontraremos mais adiante, são exemplos importantes para entender, do ponto de vista literário, como Dom Bosco construiu seu conto.

A imagem que as MO transmitem de Cavour corresponde nas suas grandes linhas com a de outras fontes históricas: a pertinácia com que procurava atingir seus objetivos e os métodos de que às vezes se servia lhe valeram os juízos mais duros dos liberais de seu tempo (cf. R. Romeo, Cavour e il suo tempo (1810-1842). Bari, Laterza, 1984, p. 607-610).

Além disso, dispomos de elementos que dizem respeito a essa fase do relacionamento de Dom Bosco com o marquês Miguel Benso de Cavour: dia 13 de março de 1846 Dom Bosco tinha escrito a Cavour uma carta expondo a situação do Oratório, explicando que agora dispunha de um lugar onde recolher os jovens (estavam em andamento as tratativas para a casa Pinardi) e pedindo licença para abrir o novo Oratório em Valdocco. Dia 28 de março, Cavour escreve o rascunho de uma resposta que se devia dar a Dom Bosco: “Tendo eu falado com S. Ex.a o senhor arcebispo e com o conde Colegno que nenhuma dúvida pode existir sobre a vantagem de um catecismo – e que receberei de boa vontade o senhor sacerdote Bosco segunda-feira, 30, no escritório à duas da tarde. Dia 28 de março. M. Benso de Cavour” (ASCT, Vicariato, Corrispondenza, 1846, pasta 73, reproduzido em G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, II, p. 25. A carta de resposta se encontra em ASC F 583 FDB 228 E 5).

223 O marquês de Cavour chama-os de canalhas. Em resposta, Dom Bosco define-os como pobres filhos do povo. Logo depois, quando o marquês trata-os por vagabundos, Dom Bosco retruca, dizendo serem rapazes abandonados e meninos pobres.

224 Cf. G. Bosco, “Cenno storico”. P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 120.

225 O padre Sebastião Pacchiotti (1806-1886), nascido na vila Sala di Giaveno, foi vigário cooperador em Castagnole, diretor espiritual, junto com o teólogo Borel, na obra Barolo, em Turim, e capelão na terra natal. Foi vereador em Giaveno por vinte e cinco anos. Recebeu a condecoração de Cavalheiro dos Santos Maurício e Lázaro. No cemitério de Giaveno, a lápide sobre sua tumba diz que “foi querido de todos pela inexaurível bondade e doçura de ânimo”.

226 Ao que parece este diálogo foi construído baseado na carta Barolo-Borel de 18/5/1846 (ASC A 141240 FDB 541 B 5 - B 8). Por meio da ironia com que descreve o diálogo com a marquesa Barolo, Dom Bosco esconde o heroísmo de sua opção de ficar na pobreza, mas com os meninos.

227 “Senhor teólogo, o senhor escolheu o ótimo Dom Bosco e mo apresentou. Agradou também a mim desde o primeiro momento e encontrei nele aquele ar de recolhimento e de simplicidade próprio das almas santas...”

228 “Recordar-se-á de quantas vezes lhe recomendei que tivesse cuidado [com a saúde dele], e o deixasse repousar etc. etc. Não me dava atenção, dizia que os padres devem trabalhar etc. (carta Barolo-Borel FDB 541 B 6).

229 “Foi então que recebi uma carta sua, senhor teólogo, onde o senhor me dizia que Dom Bosco não estava mais em condições de cobrir o cargo que lhe fora confiado. Logo respondi que eu estava pronta a continuar a pagar o estipêndio a Dom Bosco com a condição que não fizesse mais nada, e estou pronta a manter a minha palavra. O senhor teólogo crê que não é fazer nada confessar, exortar a uma centena de meninas; eu creio que prejudica a Dom Bosco, e creio ser necessário que se afaste de Turim o bastante para não ter que cansar assim os seus pulmões” (carta Barolo-Borel FDB 541 B 6).

230 “O senhor tem tanta caridade, senhor teólogo, que certamente mereci a opinião desfavorável que tem de mim, fazendo-me conhecer claramente que eu quero impedir a doutrina que se ensina aos meninos no domingo e os cuidados que se tem com eles durante a semana. Creio que é uma ótima obra em si, e digna das pessoas que a empreenderam; mas não creio por uma parte que a saúde de Dom Bosco lhe permite absolutamente continuar, e por outra parte creio que a reunião daqueles meninos que antes esperavam seu diretor na porta do Refúgio, e agora o esperam na porta do Pequeno Hospital, não é conveniente [...]”. E depois de ter citado algum fato a esse respeito, continua: “Para resumir, aprovo e louvo a obra de instrução dos meninos; mas encontro que haja perigo no reunirem-se nas portas de meus institutos dada a natureza das pessoas que aí se encontram” (carta Barolo-Borel FDB 541 B 7 e 541 B 8).

A obra da marquesa Barolo se destinava a meninas em perigo de caírem na vida e a filhas de prostitutas.

231 “Não continuarei a dar-lhe o pequeno estipêndio que ele ficaria bem contente de receber de mim, a não ser com a condição de que se afaste de Turim para não ficar na ocasião de prejudicar gravemente à sua saúde, a qual tanto mais me preocupa quanto mais o estimo” (carta Barolo-Borel FDB 541 B 8).

232 “Eu sei, muito reverendo senhor teólogo, que não temos os mesmos sentimentos sobre este ponto. Se não ouvisse a voz de minha consciência, estaria como de costume pronta a submeter-me ao seu juízo” (carta Barolo-Borel FDB 541 B 8).

233 MB II, p. 414, lê este episódio à luz de Mc 3,20-21.

234 Os encarregados do plano de internar a Dom Bosco foram os teólogos Vicente Ponzati, pároco de Santo Agostinho, e Luís Nasi. Agiram certamente com reta intenção e motivos de caridade. Nasi, especialmente, conservou-se sempre muito amigo de Dom Bosco e continuou a ajudá-lo nos catecismos, na pregação e na música.

235 Em 1828 o manicômio passava a ocupar a nova sede construída pelo arquiteto Tarluchi em Via S. Domenico, tendo a avenida Regina Margherita às suas costas. Hoje é sede de diversos escritórios municipais e regionais.

236 Numa conferência feita a 10 de maio de 1864, resumida logo em seguida por escrito pelo diácono Bonetti e conservada nos nossos arquivos. Dom Bosco narrou mais detalhes desses fatos.

Foi-lhe mostrada em sonho não muito longe do Refúgio, onde ele morava, uma casa, que seria para ele e para seus jovens. Na manhã seguinte, disse logo a Borel:

Agora temos casa!

O bom teólogo perguntou-lhe onde. Disse-lhe. Foi vê-la. Mas, ai!, era uma casa de má fama. Mortificado exclamou:

São ilusões diabólicas! – e corou por haver tão afoitamente acreditado, e, sem mais tocar no assunto, continuou com o Oratório ambulante.

Eis, porém, que novamente lhe é mostrada a mesma casa. No dia seguinte voltou àquele lugar e pôs se a chorar, não podendo convencer-se de que devia ir justamente para um lugar de infâmia. Disse:

Está na hora de rezar para que Deus se digne iluminar me e tirar-me desta embrulhada.

E eis que uma terceira vez a casa lhe é mostrada. Ouviu então uma voz que lhe disse:

Não tenhas medo de ir para lá. Não sabes que Deus pode enriquecer o seu povo com os despojos dos egípcios?

Contente, estava a procurar a maneira de conseguir a referida casa, quando sobreveio a despedida do prado e em seguida a oferta de Pinardi.

237 O padre Bonetti corrige esta data e coloca 5 de abril de 1846, porque a Páscoa naquele ano se celebrava no dia 12 de abril. Porém, considerando que já em 13 de março Dom Bosco escrevia a Cavour que estava em tratativas para a casa Pinardi, e que no dia 30 de março tinha já todas as licenças para a nova obra, preferimos a versão de Dom Bosco, sem nos esquecermos, porém, de que, no contrato de aluguel da capela Pinardi, é colocada a data 1º de abril.

Aliás, 15 de março é também a data que Dom Bosco coloca também no “Cenno storico”, escrito em 1854 (cf. P. Braido, “Cenno storico” [ed.]. Don Bosco educatore, p. 122.

238 Nasceu em Verolengo, província de Turim. Pancrácio Soave tinha alugado a casa Pinardi em novembro de 1845.

239 Não José, mas Francisco Pinardi, nascido em Arcisate, província de Como. Tinha adquirido a casa com o terreno circunstante em 14 de julho de 1845, dos irmãos Filippi.

240 O padre Pedro Merla (1815-1855) nasceu em Rivara Canavese, província de Turim. Foi companheiro de Dom Bosco no seminário. Ordenado sacerdote, foi capelão real, diretor espiritual do cárcere das Torres. Após 1852, dedicou-se a uma própria atividade pastoral em favor das egressas do cárcere. Em 1854 deu início ao Retiro de São Pedro in vinculis, chamado depois Retiro de São Pedro Apóstolo. Até 1852, trabalhou também na Obra dos Oratórios, ajudando Dom Bosco na primeira experiência de formar quatro jovens como colaboradores do Oratório: Buzzetti, Gastini, Bellia, Reviglio.

241 Os trabalhos realizados por Pinardi a tinham transformado num salão de uns 15 metros de comprimento por cerca 6 metros de largura, que devia servir de capela, e outros dois cômodos pequenos, o primeiro usado como sacristia e o outro como depósito.

242 Parece que Dom Bosco viu a inscrição “Esta é minha casa; daqui sairá minha glória” em três ocasiões e em três formas um tanto diferentes.

Viu-a pela primeira vez na “alta e grandiosa igreja” do sonho narrado anteriormente, escrita com caracteres garrafais: “Aqui está minha casa; daqui sairá minha glória”.

Pareceu-lhe vê-la uma segunda vez na capela Pinardi, da seguinte forma: “Esta é minha casa, daqui sairá minha glória”. E acreditou, então, que aquele era o lugar que lhe havia sido mostrado no outro sonho.

Todavia, trinta anos mais tarde, quando já existia a igreja de Nossa Senhora Auxiliadora, relendo a cópia destas memórias, escreveu à margem: “Mas as disposições do céu não acabam aí”. Na terceira vez havia lido no frontispício de uma casa com capacidade para 200 jovens, que ainda não existia (que mais tarde se ergueu junto à igreja de São Francisco de Sales): “Hic nomen meum, hinc inde exibit gloria mea”, isto é: “Aqui está meu poder, daqui e daí sairá minha glória”. Este “daqui e daí” eram os dois lados da rua chamada da Jardineira, que passava pelo meio e que foi extinta em 1865, depois de haver começado a construir a igreja de Nossa Senhora Auxiliadora. Com efeito, de um lado ficava o oratório nascente; do outro, o campo onde logo se ergueu o templo maior (MB III, p. 456).

Pelo que se pode ver, os sonhos indicavam a obra total. Portanto, os pontos exatos, correspondentes a cada um deles, podiam variar dentro do perímetro da obra.

243 No dia 10 de abril.

244 A bênção foi dada pelo teólogo Borel na segunda-feira de Páscoa, 13 de abril de 1846 (cf. ASC F 593 FDB 230 D 10).

245 O padre José Trivero (1816-1894) foi ordenado sacerdote em 1844. Seu nome não se encontra entre os alunos do Colégio Eclesiástico de São Francisco de Assis. Dedicou-se, com o padre Ponte, ao trabalho entre os limpa-chaminés e depois na Obra dos Oratórios. Foi capelão da Ordem Mauriciana e sacristão da Real Capela da Santa Síndone.

O padre Jacinto Cárpano (1821-1894) estudou nas Escolas de São Francisco de Paula. Seminarista em Turim, foi inscrito no clero da Corte. Ordenado sacerdote em 1844, seu nome não se encontra entre os alunos do Colégio Eclesiástico de São Francisco de Assis. Trabalhou quer na Obra dos Oratórios quer com o padre Ponte, com os limpa-chaminés. Na própria casa abriu uma obra para a assistência dos jovens abandonados. No Cottolengo deu aulas aos Tommasinos. Exercitou o seu ministério também na Generala e com os Irmãos das Escolas Cristãs e com a Mendicidade Instruída. Foi capelão de São Pedro in vinculis e no cemitério geral, cônego da colegiada de São Lourenço, secretário da Congregação da Caridade.

O teólogo João Batista Vola (1806-1872) foi diretor do Oratório do Anjo da Guarda e do Retiro de São Pedro.

O teólogo Roberto Murialdo (1815-1882), nomeado pelo arcebispo diretor do Oratório do Anjo da Guarda em 1852, ajudou o padre João Cocchi a fundar a Obra dos Artigianelli. Co-fundador das Conferências de São Vicente de Paulo. Capelão real, diretor do Retiro de São Pedro Apóstolo em 1873, trocou seu nome para Instituto São Pedro e a finalidade: não mais para egressas do cárcere, mas para meninas órfãs e em perigo de se perderem. Fundou as Irmãs de Nossa Senhora das Dores.

246 “A leste e ao sul havia o pátio dos divertimentos. Esse pátio estava separado por uma sebe viva da rua pública da Regia Fucina delle Canne, entrava-se no pátio por um grande portão de madeira colorido de verde. Para o norte havia o pátio dos fornos, onde se representava o teatro” (Memoria di G. Brosio, FDB 555 C 6).

247 “como o cavalo e o jumento, animais sem razão”.

248 Rondó é um nome comum, que significa uma pracinha no cruza­mento de várias ruas, mas em Turim emprega-se somente à maneira de nome próprio, para indicar um largo de forma redonda, ao qual, sobre a avenida Regina Margherita, confluem as avenidas Valdocco e Príncipe Eugênio e a rua Cigna. O Rondó de Turim tornou-se famoso, porque nele executavam-se os condenados à forca. Chamava-se, por isso, o Rondó da forca.

249 José Provana, conde de Collegno (1785-1854), reitor da Companhia de São Paulo em 1832 e em 1839 consultor da mesma.

250 Carlos Alberto de Savóia (1798-1849), príncipe de Carignano, sucedeu a Carlos Félix no trono do reino da Sardenha por falta de herdeiros do sexo masculino no ramo direto dos Savóia. É conhecido o eficaz interesse que teve por todas as obras de beneficência, hospitais, asilos, a Pequena Casa da Divina Providência do Cottolengo, os oratórios, os marginalizados (cf. N. Rodolico, Carlo Alberto negli anni del regno 1831-1843. Florença, Le Monnier, 1936).

251 Numa pequena crônica escrita em 27 de dezembro de 1877, relata o padre Júlio Barberis uma conversa que teve com Dom Bosco sobre os primeiros tempos do Oratório. Afirmava o santo: “Seria um belo quadro ver centenas de jovem sentados e atentos pendentes dos meus lábios, e seis guardas com seus uniformes, de pé, dois a dois, imóveis, em três pontos diversos da igreja, que, braços cruzados, ouviam também o sermão. Ajudavam-me muito bem na assistência dos jovens, embora lá estivessem para assistir-me a mim! Seria também sobremaneira bonito pintar os guardas a enxugar furtivamente as lágrimas com o dorso da mão, ou a esconder o rosto com o lenço, para que ninguém lhes percebesse a emoção. Ou ainda desenhá-los de joelhos entre os jovens, ao redor do meu confessionário, aguardando a própria vez. Porque eu fazia a pregação mais para eles do que para os jovens, tratando dos novíssimos: o pecado, a morte, o juízo, o inferno” (MB XXII, p. 402).

252 A casa Moretta ocupava parte da área onde hoje existe a igreja sucursal da paróquia de Maria Auxliadora, e parte do atual pátio da Sociedade Editora Internacional.

253 “[...] Então começou-se a ensinar primeiro nos domingos e depois cada noite na estação invernal a leitura, a escrita, os elementos da aritmética e da língua italiana, e um empenho particular se colocou para tornar familiar àqueles jovens de boa vontade o uso das medidas legais, pois sendo a maior parte ligados a trabalhos onde sentiam a maior necessidade” (“Apello per una lotteria”, 20/12/1851, E I 50).

254 João Batista Coriasco, nascido em Vanda di San Maurizio. Fez trabalhos na casa e na capela Pinardi. A ele Dom Bosco cedeu pequena parte do terreno que comprara do seminário. Coriasco construiu aí uma casa, que Dom Bosco readquiriu em 1873.

255 José Gagliardi tinha uma mercearia perto da basílica Mauriciana. Em 1856 participou da loteria para a Obra da Família de São Pedro. O Bibliofilo Cattolico ou Bolettino Salesiano, de setembro de 1877, diz que tinha morrido poucos anos antes.

256 Vitório Ritner foi membro da Pia Sociedade do Patrocínio de São José, do Santuário da Consolata. Seu nome aparece em algum contrato firmado por Dom Bosco em favor de seus aprendizes e na comissão promotora da primeira loteria.

257 “Começando a examiná-las fiquei desiludido; pois mesmo abstraindo do fato de que muitas dessas histórias são demasiadamente volumosas ou muito breves, digo somente que algumas pela suntuosidade dos conceitos e das frases tiram a doçura do simples e do popular dos livros sagrados; outras omitem quase inteiramente a cronologia. [...] Em quase todas se encontram diversas maneiras de falar aptas para despertar idéias menos puras nas nobres e tenras mentes dos jovens” (Storia sacra per uso delle scole utile ad ogni stato di persone arricchita di analoghe incisioni compilata dal sacerdote Giovanni Bosco. Turim, Tipografi Editori Speirani e Ferrero, 1847, p. 5, 6; OE III, p. [5] - [6]).

258 “Em cada página tive sempre fixo aquele princípio: iluminar a mente para tornar bom o coração, e (como se exprime um bom mestre) tornar popular quanto mais possível o conhecimento da Sagrada Bíblia, que é o fundamento da nossa Santa Religião, enquanto contém seus dogmas e os prova, de forma que se torne mais fácil do conto sagrado passar ao ensino da moral e da religião [...]” (Storia sacra, p. 7; OE III [7]).

259 Cf. Saggio dei figliuoli dell´Oratorio di San Francesco di Sales sopra la storia sacra dell´Antico Testamento, 15 ag. 1848 ore 4 pomeridiane. Turim, Tip. Paravia e Comp., 1848, que é o mais antigo documento que encontramos destas representações.

260 Ferrante Aporti (1791-1858) nasceu em S. Martino dell’Argine, Mântua. Fez três anos de aperfeiçoamento no Instituto Superior Eclesiástico (Höhere Bildungsanstalf für Weltpriester) de Viena, Áustria. Lecionou exegese bíblica no seminário de Cremona. A partir de 1821 foi diretor da escola elementar maior da cidade. Em 1828-29, querendo resgatar os filhos do povo da ignorância e da abjeção moral, deu início aos asilos de infância em Cremona. Em 1844 foi a Turim para dar os cursos dos quais surgiram depois as Escolas de Método no Piemonte. Por causa do apoio dado à guerra de libertação contra a Áustria, transferiu-se para o Piemonte em 1848. Feito senador por Carlos Alberto, em 1849 foi nomeado presidente do conselho universitário da capital e da comissão permanente para as escolas secundárias.

O conde Carlos Boncompagni (1804-1880), professor de direito constitucional na Universidade de Turim. Conselheiro da Ordem dos Santos Maurício e Lázaro e daquela da Coroa da Itália.

O teólogo Pedro Baricco (1819-1887), doutor em teologia em 1841 e ordenado sacerdote no fim daquele ano, lecionou teologia no Colégio das Províncias até 1848. Diretor espiritual do Colégio do Carmo e depois do Colégio das Províncias, foi membro e presidente da Academia Solariana. Vereador de 1848 a 1867 e de 1879 a 1887, potencializou e deu melhor organização às escolas elementares de Turim, entre 1848 e 1870. Foi inspetor seccional dos estudos na província de Turim, inspetor central da instrução pública, diretor do Liceu-ginásio Gioberti e do Liceu Cavour. O cardeal Alimonda lhe administrou os últimos sacramentos em 1887.

261 José Luís Dupré (? - 1884), filho do banqueiro José Dupré, desde 1831 esteve com o pai no banco. Em 1847 apoiou a criação do Banco de Turim. Vereador, foi eleito em 1853 para o conselho de administração da Caixa Econômica de Turim. Foi ainda membro do conselho de direção do Banco Nacional, diretor da tesouraria e da contabilidade do Asilo da Mendicidade, membro da Companhia da Misericórdia. Foi também tesoureiro da comissão promotora das obras de completação da fachada do santuário da Consolata em 1855 e sucessivamente presidente do Conservatório do Santo Rosário (Sapelline).

262 Foi dada ao Colégio dos Artigianelli, na avenida Valdocco. Começado pelo padre Cocchi, teve como diretor antes o teólogo José Berizzi e depois São Leonardo Murialdo.

263 A atividade de assistência aos mendigos teve início com o padre Di Garesio e o irmão Fontana, do Oratório de São Filipe. A pia obra da Mendicidade Instruída começou lá por volta de 1770, com uma sede estável na capela de Santa Ana e São José, dos Menores Observantes. Aprovada canonicamente em 1775, obteve a instituição real em 1776. Momentos principais: a participação dos pobres mendigos na missa, na catequese e em outras funções, por ocasião das quais se distribuíam esmolas e pão. Desde os primeiros anos da Restauração, pôde contar com rendas fixas. De 1830 a 1850 a instrução religiosa dos adultos foi gradualmente dando lugar à instrução catequética dos meninos e depois à instrução elementar. Para isso foram chamados os irmãos das Escolas Cristãs, da França, e da Sabóia, as irmãs de São José.

264 O jovem instruído teve êxito imediato e extraordinário. A 1ª edição é de 1847, ano em que se fizeram duas reedições, e foram de 20 mil exemplares. Afirma o padre Lemoyne que, durante a vida de Dom Bosco, as edições chegaram a 122, com 150 mil exemplares cada uma.

265 “Porque quando estava em Gassino, estes meninos iam confessar-se com ele, e ele os reconduzia a Turim” (carta Barolo-Borel, FDB 541 B 6 541 B 7); cf. também ASC 1020502, memória de carta Borel-Barolo, 3/1/1846 FDB 552 D 9).

266 As classes da escola primária masculina diurna municipal, situada na estrada de Santa Bárbara, hoje início da avenida Regina Margherita, no pedaço compreendido entre a praça da República e a avenida Regio Parco. De 1833 a 1856, a escola foi dirigida pelos irmãos das Escolas Cristãs.

267 Cf. ASC 0040201 Notizie 1867 [Berto], p. 22-23 FDB 900 C 8 - 900 C 9.

268 O teólogo Pedro Abbondioli (1812-1893), conhecido pelos exercícios espirituais e as missões que pregava ao povo.

269 Não podendo obter toda a casa, Dom Bosco, dia 5 de junho de 1846, subalugava ao Soave três quartos contíguos, no plano superior, do lado do oriente, cada um ao preço de 5 liras por mês. O teólogo Borel desocupou o aposento usado por Dom Bosco no Refúgio e levou para aqueles paupérrimos quartos os poucos objetos que pertenciam ao amigo.

270 Margarida Gastaldi Volpato (1790-1868), mãe de dom Lourenço Gastaldi.

271 O teólogo Félix Chiaves, nascido em Turim, em 1852 celebrava missa na igreja de Santo Agostinho.

272 “11º - Talvez você tenha manuscrito um regulamento do Oratório antigo – regulamento que nunca se imprimiu – precedido de uma relação histórica escrita por Dom Bosco mesmo, muito importante” (carta Barberis-Bologna, 6/1/1879. In: G. Barberis, Cronichetta, caderno 14, ms, p. 75 FDB E 12).

Para o texto do Regulamento, veja ASC A 222 Piano di Regolamento dell’Oratorio, FDB 1955 B 1 - 1955 - D 5. A introdução e a relação histórica foram publicadas em P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 107-150.

273 Sobre a Companhia de São Luís, veja-se P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, II, p. 347-349.

274 Manuscrito do Regulamento da Companhia de São Luís, com a aprovação do arcebispo em ASC A 230 FDB 1896 D 4 - 1896 E 3.

275 Em maio de 1846, Dom Bosco comprou da Tipografia Speirani e Ferrero 3 mil cópias do opúsculo Le sei domeniche di San Luigi Gonzaga con un cenno sulla vita del santo. Turim, Tipografia Speirani e Ferrero, 1846 (cf. ASC A 0210333 FDB 113 E 10; ASC A 234 FDB 343 B 10 - 344 A 7).

276 A estátua de São Luís foi colocada num nicho da capela Pinardi, à direita da entrada.

277 Os crismandos foram 98 e padrinho deles foi Frederico Bocca. A distribuição dos jovens conforme as respectivas paróquias se pode ver em ASC E 600 Cresime 1847-1886.

278 Antônio Rosmini Serbati (1797-1855), tendo sido ordenado padre em 1821, fundou em 1828 em Domodóssola o Instituto da Caridade. Em Roma gozou da estima dos sumos pontífices. Voltando para a alta Itália, fundou em 1833 as Irmãs da Providência. No entanto, seu instituto se expandia também na Inglaterra. Em 1848 foi enviado a Roma por Carlos Alberto. Seguiu o Papa no exílio em Gaeta, mas foi obrigado a deixar o reino de Nápoles. Passou os últimos anos em Stresa. São conhecidas as vicissitudes por que passaram seus escritos. Dom Bosco louva-o muito pela humilde e incondicionada submissão aos juízos da Santa Sé. Hoje é sempre maior o consenso em apreciar positivamente seus escritos ascéticos e a sua santidade pessoal. É citado pelo Papa João Paulo II na encíclica Fidei Donum.

Dom Pedro De Gaudenzi (1812-1891) foi ordenado sacerdote em 1835. Em 1836 doutorou-se em teologia pela Universidade de Turim. Foi cônego da catedral de Vercelli, bispo de Vigevano em 1871, assistente ao sólio pontifício em 1885.

Camilo Benso, conde de Cavour (1810-1861), abraçou a carreira militar, mas licenciou-se em 1831. A partir de 1835 dedicou-se ao progresso da agricultura e da economia em geral. Completou a sua formação religiosa no contato com protestantes e católicos liberais. Em 1847 deu origem ao jornal Il Risorgimento. Em 1850 defendeu a lei Siccardi, que abolia o foro e as imunidades eclesiásticas. Logo tornou-se o expoente mais prestigioso do Partido Liberal. De 1852 até à morte, com exceção de algum momento de crise, foi o chefe do governo. Somente em parte viu realizar-se seu sonho de unidade da Itália e de uma Igreja que, em liberdade, convivesse com o Estado (sobre Cavour veja R. Romeo, Cavour e il suo tempo. Bari, Laterza, 1984).

Gustavo Benso, marquês Cavour (1806-1864), herdou do pai, por direito de primogenitura, o título de marquês. Tendo ficado viúvo em 1833, dedicou-se inteiramente aos estudos. Apreciou e difundiu as idéias de Rosmini. Foi deputado de 1852 até à sua morte.

O cardeal Antônio Benedito Antonucci (1798-1879). Em 1840 foi eleito bispo e em 1844 arcebispo titular de Tarso. Foi núncio apostólico em Turim até 1850. Arcebispo de Ancona em 1851, foi feito cardeal em 1858.

O cardeal Tiago Antonelli (1806-1876) estudou no Seminário Romano e na Universidade da Sapienza. Não recebeu o presbiterado. Do pai, recebeu os fundos para constituir uma prelazia de família. Completados os estudos jurídicos, dedicou-se aos negócios públicos, distinguindo-se no esforço para reorganizar as finanças do Estado Pontifício. Feito cardeal, apoiou Pio IX no primitivo plano de reformas do Estado. Falido esse plano, conseguiu levar o Pontífice para Gaeta e reconduzi-lo de novo a Roma, com o apoio dos franceses. Até o fim de sua vida ocupou o cargo de secretário de Estado. Assumiu sempre uma posição de intransigente defesa dos direitos da Santa Sé. Durante a caminhada da unificação italiana, soube mobilizar a opinião pública internacional a favor do Papa. Com relação ao Brasil, foi decisiva sua ação para pôr fim à questão religiosa.

279 Situada aos pés do Monte Rosa, na parte meridional, nos confins com a Suíça, o Valsesia é percorrido pelo rio Sésia. Tem como centros principais Varallo, Borgo Sesia e Romagnano, nas províncias de Vercelli e Novara.

280 Dom Bosco o encontrou na avenida que hoje se chama Regina Margherita. Estava a chorar, cabeça recostada a um olmeiro (não havia plátanos, então). Não tinha pai, morrera-lhe a mãe no dia anterior, e o dono da casa o havia posto para fora, ficando com seus trastes para compensar-se do não pagamento da pensão. Dom Bosco levou-o à Mamãe Margarida e arranjou-lhe emprego. Conseguiu estabelecer-se bem na vida e conservou-se sempre digno e benfeitor Os primeiros historiadores do Ora­tório por delicadeza calaram-lhe o nome e assim ninguém nunca o soube.

281 José Bianchi desde 1822 pertencia à Pia Sociedade de São José, na Consolata. Está também entre os que, em 1850, participaram da campanha para fazer um presente a dom Fransoni.

282 Provavelmente o maestro José Cerruti (? - 1869).

283 O cônego Luís Nasi (1821-1879) começou a trabalhar nos oratórios ainda antes de ser sacerdote. Foi vigário para as religiosas e tesoureiro da catedral metropolitana de Turim. Distinguiu-se pela prudência, fineza de trato e piedade. Era um pregador apreciado e dedicou-se principalmente à pregação durante a Quaresma.

284 A alameda do Rei foi aberta em 1814 da praça do Rei (hoje praça Carlo Felice) até o Pó. Prolongou-se também na parte oposta, quando foi transportada a praça das Armas. Corresponde à atual avenida Vittorio Emmanuele II.

285 A igreja de São João Evangelista foi iniciada em 1877 e aberta ao público em 1882. A rigorosa opção estilista que tende ao gótico deve-se ao projetista Eduardo Arbório Mella a quem Dom Bosco confiou os trabalhos e que soube adaptar a igreja às tendências medievais do lugar.

286 A licença para benzer a capela do Oratório São Luís e para celebrar aí as sagradas funções tem a data de 18/12/1847. Na súplica, porém, Dom Bosco e o teólogo Borel apresentam o oratório como já aberto (cf. ASC A 221 FDB 1989 B 3 e 1989 B 4).

287 “Não tardou em ser conhecida [a utilidade do Oratório de São Francisco de Sales] e humildes, sábios e santos sacerdotes não deixaram de unir-se ao Fundador para propagar-lhe a idéia; fundaram novas casas, recolheram ao redor de si pobres meninos e adultos, e prepararam assim para a sociedade homens melhores, aliviando-a de muitos outros que, encaminhando-se por um caminho sinistro, davam pouca esperança de seu futuro. Por esse motivo são caros a todos os bons os nomes do teólogo Vola, teólogo Borel, teólogo Cárpano e do padre Ponte, os quais, nos dias festivos, circundados por várias centenas desses meninos, os educam religiosa e civilmente numa pequena casa do instituto na vila real do Valentino” (L’Armonia 2 (1849), 4 de maio, p. 211, col. 3).

288 A casa Moretta foi adquirida em 1848, com quintal, horta e campo. Em 1849 e 1850 foi revendida, dividindo-se a propriedade em duas partes diversas. Foi readquirida em 1875 junto com o terreno circunstante (cf. G. Bracco, Don Bosco e le istituzioni. In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, I, p. 145-146; ASC A 0210242 e A 02210243 FDB 112 E 9 e 112 E 10; ASC F 593).

289 Dom Bosco adquiriu do seminário de Turim dois pedaços de horta e um prado. Em 1851 vendeu parte desse terreno e, em 1854, ainda uma outra parte, dessa vez para o abade Rosmini. Recuperou a parte de Rosmini em 1863, e em 1873 a de Coriasco e por último a que tinha vendido a João Emanuel (cf. G. Bracco, Don Bosco e le istituzioni. In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, I, p. 146, 147, 149; P. Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale, p. 82; F. Giraudi, L´Oratorio di Don Bosco, p. 112.

290 O Estatuto albertino sancionou a liberdade religiosa nos seguintes termos:

Art. 1º - A religião católica, apostólica e romana é a única religião do Estado. Os outros cultos agora existentes são tolerados de acordo com as leis. [...]

Art. 24 - Todos os súditos do reino, qualquer que seja seu título ou grau, são iguais diante da lei. Todos gozam igualmente dos direitos civis e políticos e são admitidos aos cargos civis e militares, salvas as exceções determinadas pelas leis”.

A real patente de 19 de março de 1848 declarava: “Os israelitas súditos do reino gozarão, a partir da presente data, de todos os direitos civis e da faculdade de conseguir os graus acadêmicos: não se muda nada quanto ao exercício de seu culto e das escolas dirigidas por eles. Ficam abolidas as leis contrárias à presente”.

291 O gueto tinha surgido em Turim por ordem de Joana de Nemours, regente do Ducado de Sabóia, em 1679. Os hebreus residentes em Turim tiveram que deixar suas casas e estabelecer-se no quarteirão do Hospital de Caridade. Com o Estatuto se restituía a eles a liberdade de escolher onde morar.

292 Era diversa a visão que o padre Cafasso tinha dos acontecimentos. Em uma carta, existente no arquivo do Santuário da Consolata, ele fazia ver a Dom Bosco que a atitude das autoridades podia sim ser atribuída às idéias liberais herdadas da Revolução Francesa, mas não era uma atitude deliberadamente anticatólica.

293 Talvez José Brosio se refira a este fato: “Um dia apresentou-se no portão de entrada do pátio um jovem que vinha ao Oratório (tinha feito os Exercícios conosco em Giaveno, era um dos mais velhos de idade) armado de um estilete e também [disposto] a usá-lo se fosse necessário, porque era já uma pele vendida aos protestantes e era um daqueles que ficavam fazendo barulho na taberna da Jardineira que Dom Bosco me tinha já dito alguma coisa a respeito de sua conduta quando vinha ao Oratório, para assustar-nos (assim pensava ele). Apenas um companheiro o viu armado daquele jeito veio logo advertir-me. Eu o vigiava já e aproximei-me tratando-o um pouco com boas maneiras e um pouco com grosseria. Vendo que nada tinha a lucrar foi-se em santa paz” (ASC A 1020806 Memoria di G. Brosio, FDB 555 B 6).

294 “Mulher [...] Cuida, meu pobre Pedro, de contar-me todas as noites o que os companheiros te tiverem dito durante o dia. Assim eu poderei sempre dar-te bons conselhos sobre o que deves fazer e o que deves evitar” (G. Bosco, La forza della buona educazione, p. 8,13, OE VI [282]).

295 Carlos José Bonzanino (? - 1888), professor, cooperador salesiano, desde 1837 tinha uma escola particular para jovens externos do ginásio inferior, situada muito próximo da igreja de São Francisco de Assis.

296 O padre Mateus Picco (1812-1880) tinha uma escola para jovens externos do ginásio superior (humanidades e retórica) próximo à igreja de Santo Agostinho. Possuía também uma vila na colina turinense onde lecionava e dava aulas de recuperação.

297 Em Valdocco abriram-se as oficinas de sapataria e alfaiataria em 1853, em 1854 a encadernação e dois anos depois a carpintaria. Em 1862 abria-se a oficina para ferreiros e a tipografia.

298 Num Resumo histórico sobre a Congregação de São Francisco de Sales e alguns esclarecimentos (Roma, Poliglota, 1874), Dom Bosco mostra um dos resultados de tal perversão quando escreve: “Naquele ano (1848) um espírito de revolução levantou-se contra as ordens religiosas e contra o clero e todas as autoridades da Igreja. Esta explosão de furor e desprezo contra a religião trazia consigo a conseqüência de apartar a juventude dos bons costumes, da piedade e da vocação ao estado eclesiástico. Enquanto os institutos religiosos se iam dispersando e os sacerdotes eram vilipendiados, encarcerados uns, confinados outros..., como cultivar o espírito de vocação?”. E, não obstante, devia em tempo tão adverso, preparar elementos com os quais fundar uma nova congregação religiosa. Eis, porém, o que acrescenta no mesmo lugar: “Naquele tempo Deus fez conhecer de maneira clara um novo gênero de milícia que queria escolher; não entre famílias abastadas, porque, em geral, por mandarem seus filhos às escolas públicas ou aos grandes colégios, perdiam logo toda idéia e qualquer inclinação a esse estado. Os que manejavam a enxada ou o martelo seriam escolhidos para ocupar um posto glorioso entre os que se encaminhavam para o estado eclesiástico”. Agiu precisamente assim em seu Oratório.

299 A iniciativa dos exercícios espirituais para jovens operários na Itália partiu de Dom Bosco, constituindo-se numa verdadeira novidade. Pregou os Exercícios o teólogo Frederico Albert (1820-1876), capelão palatino e depois pároco em Turim e em Lanzo. Foi beatificado por João Paulo II em 1984.

300 Jacinto Arnaud (1826 - ?) entrou no Oratório de Valdocco como aprendiz em 1847 e saiu em fevereiro de 1856 (cf. ASC E 720 Censimento dal 1847 al 1869).

301 Tiago Sansoldi, sapateiro, desde 1856 membro da Conferência de São Vicente de Paulo, de Valdocco.

302 João Constantino, aluno interno no Oratório em 1849.

303 Talvez Tiago Cerruti, de Andorno, ferreiro, falecido em Turim em 1865 aos 47 anos (cf. ASC E Censimento dal 1847 al 1869, p. 6; L’Unità Cattolica (1865) 68, 22 de março, p. 288, col. 5).

304 Carlos Gastini (1833-1902) foi uma figura característica do Oratório. Tendo ficado órfão de pai, a partir de 1848 viveu no Oratório. Foi um dos quatro que Dom Bosco fez estudar, com a esperança de ter nele um auxílio para o Oratório. Depois freqüentou-o assiduamente como mestre de encadernação. Em 1856 encontrou trabalho fora do Oratório e se casou. Em 1861 voltou a trabalhar com Dom Bosco. Deve-se a ele a idéia de uma Associação dos Ex-alunos (1870). Era tido como o menestrel de Dom Bosco. Nas festas de família não faltava nunca, manifestando sentimentos delicados e ternos com uma veia inexaurível de expressões originalíssimas. Fazia versos que se gloriava de medir com o metro cúbico. Mas os supérstites que o conheceram não deixarão de concordar com o padre Giraudi (L´Oratorio di Don Bosco, p. 217) que “as suas idéias atingiam os ouvintes, e quanto mais novas eram, tanto mais alegres se tornavam e eram aplaudidas”. Vinha-lhe constantemente aos lábios o refrão: “Devo chegar – a setentão – assim me disse – papai João”. Morreu em 28 de janeiro de 1902, aos 70 anos e um dia.

305 João Gravano, negociante, participava das reuniões da Conferência de São Vicente de Paulo de Valdocco já em 1858 (cf. ASC F 582 Verbali della Conferenza di S. Vincenzo de Paoli 1858-1859, n. 120).

306 Domingos Borgialli, segundo ASC A 227 Quaderni-Taccuini 9 Repertorio Domestico FDB 753 D 5, teria sido aluno interno em Valdocco por alguns meses, começando de 20/3/1848. F. Motto, “Ricordi e riflessioni di un’educazione ricevuta...”, RSS 6 (1987) p. 362, sugere a hipótese de que se trate de Roberto Borgialli, aluno do Oratório desde os tempos dos catecismos de São Francisco de Assis, sócio da Companhia de São Luís e aluno interno em Valdocco por alguns meses, antes de ser chamado a servir o exército, e que escreveu uma carta a Dom Bosco em 1867.

Se a hipótese fosse fundada, ficaria ainda por esclarecer uma possível relação com Domingos Borgialli, empregado da Caixa da Dívida Pública, nascido em Fávria e falecido em Turim, em 1866, com a idade de 69 anos (cf. L’Unità Cattolica [1866] n. 285, 7 de dezembro, p. 1264, col. 4). Recordamos que Dom Bosco com freqüência colocava o nome do pai em lugar daquele do jovem aluno interno, como se pode ver no Epistolário editado por

F. Motto.

307 Cf. ASC A 1412401 carta Fransoni-Bosco 30/3/1847 FDB 1510 A 6.

308 A notícia de que Dom Bosco vinha com os seus moleques para cantar na igreja do mosteiro das Carmelitas Descalças de Moncalieri chegou por meio dos testemunhos das irmãs mais antigas. A crônica do Mosteiro recomeça somente em 1900 (cf. ASC carta irmã Leonilda do S. Rosário-Ferreira, 23/10/1989).

309 O padre Miguelanjo Chiatellino (1822-1901) entrou no seminário de Turim, onde foi organista. Tendo sido ordenado sacerdote em 1845, foi aluno do Colégio Eclesiástico de 1845 a 1847. No Oratório cuidava dos mais velhos e ensinava música. Compôs uma missa para os meninos. Em 1849 obteve o diploma de professor elementar. Foi capelão de Borgo Cornalese, distrito de Villastellone, por mais de vinte anos. Distinguiu-se pelo ministério das confissões e pela caridade. Voltando à terra natal, em Carignano, dedicou-se à catequese dos meninos.

310 Os Oblatos de Maria Virgem tomaram conta do santuário da Consolata de 1834 a 1855. A Congregação tinha sido fundada em 1816. O padre Pio Bruno Lanteri logo se tornou seu superior. Escopo da Congregação era a formação do clero, a pregação de exercícios espirituais ao povo, a difusão de bons livros e a luta contra os erros da época.

311 Pedro Roppolo, fabricante e serralheiro, fez parte da comissão promotora da primeira loteria em favor da igreja de São Francisco de Sales.

312 Moncalvo, vereador, é o cavalheiro Gabriel Capello, titular de uma fábrica de móveis na avenida Regina Margherita e que, em 1848, começou a dar aulas de desenho, aritmética e geometria aos operários que dele dependiam. Ele também fez parte da comissão promotora da primeira loteria.

313 “Entre Dom Bosco e os administradores públicos havia ocasião de estabelecer relações por duas grandes categorias de motivos que essencialmente se relacionavam com a solução dos problemas derivados da aplicação da legislação vigente e aos pedidos de intervenção. Naturalmente o sentido da direção do relacionamento não era único; antes, parece que o volume dos pedidos de intervenção era mais relevante da parte das instituições para com Dom Bosco e não vice-versa. Esta primeira constatação é importante para compreender o sentido de algumas atitudes fundamentais, não negativas, que unem na maneira de se comportar hipotéticos amigos e inimigos ideológicos” (G. Bracco, Don Bosco e le istituzioni. In: G. Bracco, Torino e Don Bosco, I, p. 122).

314 A via-crúcis foi ereta por Fr. Bonagrazia dia 1º de abril de 1847 (cf. ASC F 583 FDB 230 E 6 - 230 E 7).

315 A revolução de 1848.

316 Para notícias sobre o Oratório do Anjo da Guarda, veja G. Cocchi - R. Murialdo, “L´Oratorio dell´Angelo Custode”, L’Educatore 3 (1847), p. 762-765.

317 Pancrácio Soave subalugava a Dom Bosco toda a casa Pinardi com o terreno adjacente por 710 liras anuais. Para o exercício de sua profissão, reteve o uso do andar térreo até 1º de março de 1847, sem cobrar aluguel. Expirado o contrato com Pancrácio Soave, Dom Bosco fazia um novo contrato de aluguel diretamente com o proprietário, Pinardi, de 1º de abril de 1849 até 31 de março de 1852. O contrato, com data de 22 de junho de 1849, é assinado pelo teólogo Borel como quem aluga e Dom Bosco como testemunha (cf. ASC F 596). Os trabalhos de adaptação da casa foram feitos por Luís Antônio Bellia, de Pettinengo.

318 Os seminaristas foram acolhidos parte pelo Oratório e parte pela comunidade dos oratorianos de São Filipe Néri, ficando aos cuidados do padre Félix Carpignano.

319 O teólogo Francisco Valinotti (1813-1873), cônego honorário da catedral de Ivrea.

O jornal L’Armonia 2 (1849) 40, 2 de abril, p. 158, col. 2, p. 159, col. 1, traz a notícia da festinha feita no Oratório no dia 25 de março para a entrega do óbolo aos dois delegados do comitê da obra.

320 Cf. “Regalo di Pio IX ai giovanetti degli Oratorii di Torino”, L’Armonia 3 (1850) 87, 26 de julho, p. 373, col. 1-2. Breve ragguaglio della festa fattasi nel distribuire il regalo di Pio IX ai giovani degli orotorii di Torino (Turim, Tipografia Eredi Botta, 1850), OE IV [93] - [119]; ASC A 1361402 FDB 1442 B 8 e 1442 B 9 carta Antonucci-Bosco, 28/4/1849.

Rohrbacher, em sua História Universal da Igreja (vol. XV, p. 558, 6a ed. italiana), depois de narrar alguns fatos comovedores de pessoas humildes que ajudaram o Papa, lembra também a contribuição do Oratório de Dom Bosco com estas palavras: “Mais significativo ainda é o caso de certos meninos verdadeiramente pobres e aprendizes de pro­fissão, que, economizando cada dia alguns cêntimos, chegaram a reunir a pequena soma de 33 francos e remeteram-na aos organizadores da coleta com uma carta comovedora”.

321 Vanchiglia é um bairro sobre a margem esquerda do Pó. Hoje aproximadamente é delimitado pelas avenidas San Maurizio, Regina Margherita (em sua última parte) e Lungo Po’ Antonelli (Vanchiglietta).

322 A igreja de Santa Júlia foi construída entre 1863 e 1866, em estilo gótico, por Giambattista Ferrante. Para agradar a quem a encomendara, a marquesa Júlia Colbert Falletti di Barolo, o comitê promotor renunciou ao desenho precedente apresentado por Alexandre Antonelli. A igreja foi aberta ao público em 1866 e consagrada em 1875. A marquesa morreu em 1864. Sua sepultura se encontra no presbitério, ao lado do novo altar de que a igreja foi dotada – a primeira em Turim, segundo a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.

323 O teólogo João Batista Vola.

324 Na tarde de um domingo de janeiro de 1850, três senadores – conde Frederico Sclopis, um dos mais ilustres patrícios piemonteses, o marquês Inácio Pallavicini e o conde Luís de Collegno – mandados pelo governo para tomar informações sobre o Oratório, para o qual tinha sido pedido um subsídio, encontraram-se por longo tempo com Dom Bosco e depois assistiram na capela ao canto das vésperas, à instrução e à bênção. O senado do reino, com deliberação unânime, insistia junto ao governo do rei para que apoiasse uma instituição tão benemérita da religião e da sociedade (cf. L’Armonia 3 [1850], n. 87, 26 de julho, p. 373, col. 1. Cf. também G. Bosco, “Cenno storico”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 128.

325 Urbano Rattazzi (1808-1873), advogado, deputado do parlamento subalpino, por uma vez ministro da Instrução Pública, por duas vezes presidente do Conselho dos Ministros do Reino da Itália, ministro de Graça e Justiça e ministro do Interior em diversos governos do reino da Sardenha e, - depois da unificação da Itália, no governo de La Mármora. Mais do que falar de quanto interveio nas relações entre Igreja e Estado, para os fins da compreensão das MO interessa a sua intensa atividade voltada para a reforma do judiciário, para regulamentar a admissão ao benefício de advogado dos pobres, para modificar o código do processo penal e sobretudo o código penal em vigor nos Estados de Sua Majestade o Rei da Sardenha. Com efeito, uma das hipóteses que poderiam explicar a visita de Rattazzi a Dom Bosco em 1854 é justamente a de uma troca de idéias sobre a possibilidade de dar aos jovens com problemas sociais um tratamento mais adequado à condição deles.

326 Propriamente o primeiro aluno que recebeu o hábito eclesiástico foi o teólogo Félix Reviglio (1831-1902) (cf. BS 26 [1902] 3, p. 93-94).

O teólogo Ascânio Sávio (1832-1902), de Castelnuovo d’Asti, obteve do arcebispo a permissão de não ir para o seminário de Chieri, mas de permanecer em Valdocco para ajudar Dom Bosco. Tendo saído do Oratório, entrou nos Oblatos de Maria Virgem, mas não pôde permanecer com eles por motivo de saúde. Foi diretor do Refúgio, vice-reitor do seminário de Turim, reitor do seminário do Parque Real de Turim, professor de moral no Colégio Eclesiástico. Ficou sempre muito ligado a Dom Bosco.

327 Quanto à ação sociopolítica, Dom Bosco chegou à posição expressa nestas páginas por meio de um longo e sofrido processo de amadurecimento, que continuará ainda após a redação das MO. Como hipótese de trabalho, este processo se pode dividir em quatro partes:

a) os anos anteriores a 1848: Dom Bosco fazia parte de um grupo de sacerdotes e leigos que se orientavam para novas formas de apostolado, em particular ao trabalho nos oratórios. Sem deixar de lado a clássica organização da caridade e no contexto da inquietação preventiva daqueles anos, a atividade deles se manifestou em iniciativas que levavam em consideração as exigências emergentes dos jovens trabalhadores temporários e dos rapazes dos bairros pobres. Ao mesmo tempo procuravam enxertar gradualmente, no tronco dos valores religiosos e dos valores por eles expressos, as novidades que se seguiam às transformações no campo civil, econômico e social. Em particular, Dom Bosco apresentou aos jovens uma proposta de vida capaz de fazer deles bons cidadãos para encaminhá-los pela estrada da salvação;

b) os dez anos que se seguem a 1848: passado o momento de entusiasmo por uma confederação italiana sob a presidência do Papa, crescia em Dom Bosco a desconfiança para com a classe política, vendo que o Estado percorria os caminhos da dissidência com a Igreja. Mas também na sociedade eram sempre mais evidentes os sinais de uma crise religiosa que parecia dilatar-se.

Unido antes a outros sacerdotes e apóstolos leigos, e depois em forma sempre mais autônoma, Dom Bosco procurou criar instrumentos eficazes de educação popular, capazes de fazer concorrência às iniciativas tomadas por quantos tinham uma diversa perspectiva da vida social. Indicamos a Sociedade de Mútuo Socorro, os contratos de trabalho em favor dos jovens do Oratório, os diversos projetos em favor da cultura popular, as Leituras Católicas;

c) o período da unidade italiana: o sulco entre o Estado e a Igreja alargou-se ulteriormente. Houve a anexação de territórios dos Estados Pontifícios, com as conseqüentes excomunhões, a proclamação da unidade da Itália, a contenda entre o reino e o papado por Roma capital. Nesse clima, Dom Bosco agiu com prudência, mas de tal maneira que fosse manifesto seu apoio ao Papa, chefe da Igreja. No entanto, amadureciam as suas atitudes. Igreja e Estado tinham necessidade uma do outro para promover o bem do povo. Mesmo que não se conseguisse chegar à solução da espinhosa questão de fundo – a questão romana – ambos deveriam procurar os pontos de interesse comum para promover o bem de todos. Em primeira pessoa, Dom Bosco pediu e ofereceu colaboração em favor dos jovens pobres e abandonados. E mesmo nos momentos de mais forte tensão entre o Estado e a Igreja, ele continuou a propor aos jovens que se tornassem bons cristãos diante da religião e honestos cidadãos diante da sociedade. A partir de 1858, começava além disso aquela delicada obra de mediação a que foi chamado para questões que diziam respeito a alguns aspectos particulares das relações entre o Estado e a Igreja, como as sedes episcopais vacantes;

d) a precariedade da condição juvenil no mundo: enquanto Dom Bosco corrigia o caderno 3.3. das MO e o preparava para servir à publicação da História do Oratório de São Francisco de Sales, a obra salesiana assumia uma dimensão universal com a fundação de casas em diversas regiões da Itália, da Europa e da América. A precariedade, fruto do abandono e da indiferença da sociedade, aparecia finalmente ao Fundador como própria da condição juvenil em quanto tal, em todos os lugares e em todos os níveis.

Ele tinha lançado a Congregação Salesiana, as FMA, os cooperadores salesianos no serviço de acolhida, apoio, promoção para os jovens de todo o mundo e das mais variadas extrações sociais. Teve consciência de que o problema, de âmbito universal, exigia a participação de todos. Por meio do BS, das conferências aos cooperadores, das cansativas viagens da última década de vida, buscou a colaboração de um círculo sempre mais vasto de pessoas. Confiou à imprensa mundial a ressonância das suas obras e das suas idéias, deu origem a um vasto movimento de opinião pública eclesial e civil, que levou tantas pessoas de boa vontade a participar de algum modo do empreendimento comum da salvação da juventude (cf. P. Braido, “Il progetto operativo di don Bosco e l’utopia della società cristiana”, Salesianum 6, Roma, LAS [1982]; F. Motto, “L’azione mediatrice di Don Bosco nella questione delle sedi vacanti”. In: P. Braido [ed.], Don Bosco nella Chiesa, p. 251-328; P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, I, p. 106-107; II p. 75-96).

328 O marquês Roberto Taparelli d’Azeglio (1790-1862), conhecido pelas suas iniciativas em favor da educação popular.

329 Os princípios do liberalismo eram, para alguns, a solução de todos os problemas políticos, um deus ex machina, “Dom Bosco amava sinceramente sua pátria, mas por suas relações e, sobretudo, pelas conversas amiudadas vezes mantidas com o arcebispo, via o que outros não viam, isto é, as armas que, sob pretexto de patriotismo, se estavam afiando contra a Igreja. Sua reserva inspira-se, portanto, em razões profundas. De resto, parecia-lhe fazer bastante, recolhendo jovens abandonados para entregá-los à pátria convertidos em bons cidadãos” (E. Ceria, San Giovanni Bosco: nella vita e nelle opere. 2ª ed. Turim, SEI, p. 98).

Quem conhece a vida de Dom Bosco sabe que ele também interveio em assuntos relacionados com a política, mas não era política de partido, da qual ele disse: “Jamais nenhum partido me fará seu”. Tratava-se da grande política, a que visava aos interesses unidos do Estado e da Igreja; interveio nela porque convidado, mais ainda, solicitado por ambas as partes, e em tudo e por tudo agiu como um sacerdote.

330 Escreveu dom Bonomelli, bispo de Cremona (Questioni religiose, morali, sociali del giorno, vol, 1, p. 310. Milão, Cogliatti): “Um dia, não faz muitos anos, entretive-me familiarmente com aquele homem de Deus chamado João Bosco, verdadeiro apóstolo da juventude e cujo nome abençoamos. Com suas maneiras simples, cheias de tato e sentido prático, disse-me estas precisas palavras, que jamais esquecerei: ‘Em 1848 dei-me conta de que, se queria fazer algum bem, tinha que deixar de lado toda política. Guardei-me sempre dela, e assim pude fazer alguma coisa e não encontrei obstáculos; antes, encontrei ajuda onde menos esperava’. Essa regra é fruto da experiência, e não precisa de comentários”.

331 Dom Bosco resume neste capítulo as várias crises que aconteceram no Oratório, de 1849 a 1852.

332 L’Armonia della religione colla civiltà, fundado em 1848 e que passou para Florença em 1866, quando para lá se mudou a capital da Itália. A presidência do Conselho de Administração ficou com dom Luís Moreno, bispo de Ivrea. No início foram seus diretores o teólogo Guilherme André Audísio e o teólogo Tiago Margotti. Depois veio o padre Celestino Muso.

333 Tiago Durando (1807-1894), fundador de Opinione, queria fazer um jornal que seguisse o caminho do meio entre La Concordia, jornal dos progressistas, e Il Risorgimento, do grupo moderado a que pertencia Camilo Benso de Cavour. Fundado em 1847, o jornal conservou esta orientação durante o tempo em que Durando foi seu diretor. Depois, pouco a pouco assumiu uma orientação anticlerical. L’Armonia e Opinione estiveram sempre em polêmica entre eles: cf. L’Armonia 2 (1849) em vários lugares e especialmente o serviço Processo contro il gerente dell´Opinione (L’Armonia 2 (1849), n. 136, 16 de novembro, p. 542, col. 3 a 543, coluna 1).

334 O Monte dos Capuchinhos é uma altura coberta de bosques e isolada na margem direita do Pó, acima de Borgo Pó e à direita, no alto,da igreja da Grande Mãe de Deus. Entre 1583 e 1596, sobre esta altura foi erigida a igreja de Santa Maria do Monte, tendo ao lado o convento dos padres capuchinhos.

335 José Brósio coloca esta crise nos anos 1850 ou 1851. Ele reconstrói à sua maneira os artifícios que os opositores de Dom Bosco usaram para arrancar-lhe os jovens maiores (cf. ASC 1020806 FDB 555 B 3 a 555 B 6 Memoria di G. Brosio intorno alla vita dell´Oratorio).

336 O padre Tiago Bellia (1834-1908), com 16 anos, ajudava Dom Bosco nas aulas noturnas e dominicais. Vestiu o hábito clerical em 1851. Entrou para os Oblatos de Maria Virgem, mas não pôde ficar lá por motivo de saúde. Foi então acolhido na diocese de Biella.

337 Em 1903, o padre Bellia exprimia seu ponto de vista a este respeito com uma folha intitulada Os primeiros clérigos de Dom Bosco. De si mesmo diz: “Antes, fui constrangido a ir para o seminário de Chieri, onde Dom Bosco veio visitar-me muitas vezes e uma vez me levou para almoçar com o cônego Luís Cottolengo; depois, mandado para casa por causa da saúde, fui proibido de freqüentar o Oratório e também de ir confessar-me com Dom Bosco. Tive que dirigir-me à Consolata, e, enamorado da paz que gozavam os oblatos, pedi para ser aceito e o pobre papai deu seu consentimento sem concordar. Depois Dom Bosco me disse que não era chamado para aquilo e me exortou à paciência, mas o meu confessor cofirmava a minha vocação...! Entrei lá e saí depois de dez anos por motivo de saúde. Então poderia ter voltado com Dom Bosco, mas o bispo dom Franzoni não me recebeu na diocese e o mesmo Dom Bosco me recomendou ao bispo de Biella que me aceitou com a condição de que ficasse junto dele. E tive que ficar. Eis-me, pois, separado de Dom Bosco, mas não o abandonei (ASC 1010310 I primi chierici di Don Bosco FDB 543 C 10 e 543 C 11).

338 Veja-se a relação desta visita em ASC A 0000103 G. Barberis, Cronichetta caderno 3º 75-76, p. 52-54 FDB 835 E 3 a 835 E 5.

339 Em 1851, Dom Bosco – numa sociedade em partes iguais com os sacerdotes João Borel, José Cafasso e Roberto Murialdo – adquiriu a casa Pinardi com terreiro, jardim e parte de horta, com uma superfície de 3.699 metros quadrados, ao preço de 28 mil liras. Em 1853, o teólogo Borel e o teólogo Murialdo transferiram a Dom Bosco e ao padre Cafasso a parte deles, estimada no preço de 10 mil liras. Finalmente, o padre Cafasso deixou em herança para Dom Bosco a sua parte da casa Pinardi (cf. carta Bosco-Gastaldi, 24/11/1852, E I, p. 66-67; ASC 1030104 Estratto del testamento del sacerdote Giuseppe Cafasso FDB 556 A 1 - 556 A 2).

340 O amigo comum era o engenheiro Antônio Spezia (? - 1892), que morava não longe dali e que depois fez o desenho da igreja de Maria Auxiliadora.

341 Desde 1850 que Dom Bosco tratava com Rosmini para este empréstimo. Vejam-se a propósito as cartas a Rosmini e aos rosminianos contidas em E I, 31, 32, 33, 34, 38, 41, 42 e 45. O empréstimo foi feito dia 19 de fevereiro de 1851, por ocasião da compra da casa Pinardi, como se vê na carta Rinaldi-Gilardi, conservada no arquivo dos rosminianos.

342 Cavalheiro José Antônio Cotta (1785-1868), senador do reino, vereador, banqueiro. Foi um dos diretores da Mendicidade Instruída. Cavalheiro da Ordem dos Santos Maurício e Lázaro. Seu pequeno banco existia já em 1831. Em 1847, colaborou prevalentemente na elaboração dos estatutos do Banco de Turim que, em 1849, se uniu com o de Gênova para formar o Banco Nacional. Desde 1853, foi membro do grupo administrativo da Caixa Econômica de Turim. Foi chamado “o banqueiro da caridade”.

343 O contrato de aluguel tem a data de 1º de setembro de 1853 (ASC A 0200601 FDB108 A 10 e 108 B 1). A casa Beleza foi depois adquirida pelos salesianos em 1884.

344 Falando da Crisma administrada em 1851 por dom Renaldi, L’Armonia diz: “Para tornar magnífica esta solenidade faltava uma igreja conveniente, porque dois terços dos que compareceram tiveram que ficar do lado de fora, pois o edifício era baixo e estreito; mas o ânimo se alegra na divina Providência, a qual parece que prepara os meios para uma nova igreja mais decente para o culto divino, mais adaptada às necessidades presentes (L’Armonia 4 [1851] n. 80, 4 de julho, p. 319, col. 1).

345 O cavalheiro José Blanchier desde 1837 era membro da Pia Sociedade do Patrocínio de São José, da Consolata. O Calendario generale del regno pel 1841, p. 536, apresenta-o no Real Conselho dos Edis, com o ofício de desenhista.

346 Veja em ASC A 0210411 FDB 1973 C 4 a autorização da Cúria de Turim para a bênção desta primeira pedra e a declaração do cônego abade Otávio Moreno (1799-1852), senador do reino, de tê-la realizado em 20 de julho de 1851.

347 O padre André Barrera era procurador-geral dos padres da Doutrina Cristã.

348 O secretário não transcreveu a ata. Em ASC A 220 FDB 1973 C 7 e 1973 C 8, o diálogo em homenagem às autoridades presentes.

349 Cf. L’Armonia 4 (1851) 132, 3 de novembro, p. 528, col. 1.

O Real Apostólico Economato Geral, que controlava a administração dos bens eclesiásticos. Depois da proclamação do reino da Itália foi denominado Real Economato Geral dos Benefícios Vacantes e, depois de 1871, Real Economato Geral. Até 1864 o cargo de ecônomo-geral foi ocupado por um eclesiástico. Depois os fundos foram utilizados para a ereção de novas igrejas, reforma de edifícios eclesiásticos, subvenções a institutos religiosos ou de beneficência e socorro ao clero.

350 Cf. L’Armonia 4 (1851) 118, 1º de outubro, p. 471, col. 3, Notizie religiose.

Dom João Pedro Losana (1793-1873) estudou em Turim, onde ocupou diversos cargos na diocese. Bispo titular de Ábido e vigário de Alepo (Síria) foi transferido para Biella em 1833. Em E I 57-58 se encontra a carta com que Dom Bosco lhe agradece a circular.

351 O secretário não transcreveu a circular, nós a apresentamos em nota, tirando o texto do BS 5 (1881) 6, junho, p. 11-12):


Reverendíssimo Senhor,

O insigne e piedoso sacerdote Dom Bosco, animado de caridade verdadeiramente angélica, começou a recolher nos dias festivos em Turim a quantos jovens encontrava abandonados e espalhados pelas praças e ruas do grande e populoso setor entre Borgo Dora e o Martinetto e a abrigá-los num sítio apropriado, para encontrarem um honesto entretenimento e receberem instrução e educação cristã. Tamanha foi sua santa dedicação, que a capela local tornou-se pequena para a sua obra, não sendo suficiente atualmente para conter mais de um terço dos 600 e mais que para lá acodem. Impelido pelo amor a tão grande causa, iniciou o árduo traba­lho de construir uma igreja correspondente às necessidades de sua obra, e para tanto dirigiu-se à caridade dos fiéis católicos, a fim de poder fazer frente às mui pesadas despesas que se devem fazer para a construção.

Assim, pois, por meu intermédio recorre com particular confiança a esta província e diocese, uma vez que dos 600 e mais jovens que já se reúnem com ele, mais de um terço (200 e mais) são jovens de Biella, alguns dos quais são também recolhidos em sua casa e providos gratuitamente do que lhes ocorre para alimento e roupa, a fim de poderem aprender uma profissão. Não só a caridade reclama de nós uma ajuda, mas a própria justiça. Pelo que rogo a V. Revma. notifique a seus paroquianos um assunto de tamanho interesse; recorra aos mais abastados e destine um domingo para uma esmola a ser feita na igreja para tal fim. O produto será imediatamente entregue à cúria de modo seguro, com uma etiqueta que indique a quantia e o lugar de proveniência.

Se os filhos das trevas tentam abrir um templo para ensinar o erro com prejuízo espiritual dos seus irmãos, vamos ser menos decididos os filhos da luz que não abramos uma igreja para nela ensinar a verdade da salvação própria e dos seus irmãos e, sobretudo, de compatriotas nossos? Na viva esperança, pois, de poder quanto antes, com as ofertas que nos chegarem, oferecer apreciável ajuda à obra desse conhecido homem de Deus, e ao mesmo tempo um público atestado da piedade iluminada e agradecida dos meus diocesanos para com uma obra tão santa, tão útil, antes tão necessária nos tempos que correm, aproveito esta oportunidade para reiterar-me com a maior estima e afeto.


Biella, 13 de setembro de 1851.

Devmo. e Obrmo. Servo

João Pedro, bispo


352 “Ainda mais, o grande trabalho de coleta dos presentes e depois a distribuição dos bilhetes reentrava em alguns casos num complicado esquema de relações sociais, até tocar a dinâmica da sociedade. Dom Bosco, mais esperto e sobretudo já empresário de uma obra ampla, parece conhecer bem estes mecanismos e se move de modo a tirar deles o maior resultado possível. Não se tratava somente de obter muito dinheiro, embora indispensável, mas também de engajar sempre mais pessoas, construindo uma rede de conhecimentos e relacionamentos, os quais estarão sempre presentes na continuação de sua ação, facilitando a sua expansão” (G. Bracco, Don Bosco e le istituzioni. In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, I, p. 138).

353 O elenco manuscrito de 3.200 prendas para a rifa se encontra em ASC A 02110701 FDB 399 D 10 - 402 B 9).

L’Armonia 5 (1852) 21, 19 de fevereiro, p. 107, traz o anúncio da “exposição pública de objetos da rifa em favor da igreja em construção do Oratório de São Francisco de Sales”.

354 Era rainha-mãe Maria Teresa Francisca de Toscana (1801-1855). As prendas oferecidas pela rainha consorte, Maria Adelaide Francisca, arquiduquesa da Áustria (1822-1855), estão elencados do n. 129 ao n. 133 do Elenco dos objetos doados em favor da rifa (FDB 400 A 3).

355 Cópia de “Verbale dell´estrazione della lotteria”, se encontra em ASC A 0210619 FDB 399 D 7 - 399 D 9.

356 Para a circular, veja-se E I, 49-51. Apresentamos aqui o “Plano de uma rifa de objetos aprovada pela intendência geral, para completar a nova capela do Oratório de São Francisco de Sales, situada na região de Valdocco, fora de Porta Susa, em Turim”, como se encontra em ASC A 176 “Circolari e inviti”):

1. Será recebido com gratidão qualquer objeto de arte ou artesanato, isto é, trabalhos de bordado e de malha, quadros, livros, cortes, tecidos e semelhantes.

2. No ato da entrega da prenda será passado um recibo, no qual se descreverá a qualidade do presente e o nome do doador, a menos que ele prefira conservar-se anônimo.

3. Os bilhetes da rifa serão emitidos em número proporcionado ao valor dos objetos e nos limites postos pela lei, isto é, com a isenção de um quarto das taxas.

4. Os bilhetes serão destacados de uma matriz e trarão a firma de dois membros da comissão. Seu preço é de 50 cêntimos.

5. Far-se-á uma exposição pública de todos os objetos no próximo mês de março, e durará pelo espaço de pelo menos um mês. Avisar-se-á, na Gazzetta Officiale do reino, o tempo e lugar em que se fará a exposição. Será outrossim indicado o dia que será marcado para a extração pública dos números vencedores.

6. Os números serão extraídos um por vez. Se por engano se extraírem dois, não serão lidos, mas repostos na urna.

7. Serão extraídos tantos números quantos os prêmios a serem sor­teados. O primeiro número extraído será premiado com o objeto correspondente marcado com o número um; assim o segundo, e sucessivamente, até que se tenham extraído tantos números quantos os prêmios.

8. No Giornale Officiale do reino serão publicados os números ven­cedores, e três dias depois se começará a distribuição dos prêmios.

9. As prendas não retiradas dentro de três meses serão consideradas como cedidas em benefício do Oratório.

357 A metade da soma foi entregue à Pequena Casa da Divina Providência, fundada por São José Bento Cottolengo (cf. ASC 0210618 FDB 399 D 5 e 399 D 6, carta Fransoni-Bosco, 29/7/1852).

358 A fábrica de pólvora, com os depósitos, ficava em Borgo Dora, perto do cemitério de São Pedro in vinculis, a mais ou menos 500 metros do Oratório de São Francisco de Sales. A explosão do paiol aconteceu no dia 26 de abril de 1852, causando umas 30 vítimas entre os operários. A coragem, a iniciativa e a fé do sargento Paulo Sacchi, de Voghera, evitou um desastre mais grave.

359 Como lembrança da graça alcançada, Dom Bosco fez imprimir um belo santinho de Nossa Senhora da Consolata (cf. ASC 0210232 FDB 112 D 10, fatura 324). Na relação dos trabalhos feitos pelos Irmãos Doyen e Cia., por conta de Dom Bosco, encontra-se: “1852 junho 29. Desenho, impressão e papel de 5 mil santinhos (graça recebida por ocasião da explosão do paiol de pólvora) L. 90”.

360 O dia 20 de junho é, em Turim, o dia da festa da Virgem da Consolata. Em ASC F 593 FDB 230 E 10 e E 11, a carta Bosco-vigário-geral comunicando a bênção da igreja e pedindo autorização para o pároco de Borgo Dora proceder a tal bênção.

361 Texto completo da poesia em ASC 223 “Stampati” FDB 91 B 2; BS 5 (1881) 8, agosto, p. 10-11.

362 Cf. L’Armonia 5 (1852) n. 75, 23 de junho, p. 350, col. 1, “Benedizione dell´Oratorio di San Francesco di Sales”.

363 Fundada em 1849, o Regulamento entrou em vigor em 1850. Empenhava-se em ajudar os sócios doentes ou acidentalmente desocupados com somas de dinheiro e outros auxílios. Seu diretor era o mesmo Dom Bosco (cf. Società di mutuo soccorso di alcuni individui della compagnia di San Luigi eretta nell´Oratorio di San Francesco di Sales. Turim, Tipografia Speirani e Ferrero, 1850, OE IV [83] - [90]).

364 A Sociedade Geral dos Operários foi fundada em Turim em 1850 e tinha como escopo promover a fraternidade, o socorro mútuo, a instrução e, em geral, o bem-estar material e moral dos inscritos. Seja Dom Bosco seja G. Brósio, que fala dela, estão preocupados com as atitudes anticlericais que ela assumiu (cf. ASC A 1020806 FDB 555 B 2 G. Brosio, Memoria di G. Brosio intorno alla vita dell´Oratorio nei primi anni).

365 Cf. F. Motto, Le conferenze di San Vincenzo de’Paoli negli oratori di don Bosco [...]. In: J. Prellezo [aos cuidados], Impegno nell´educare [...]. Roma, LAS [1991], p. 467-492.

366 Miguel Scannagatti (1803-1879) é citado muitas vezes quer entre os benfeitores de Dom Bosco quer nas diversas atividades em favor da Igreja. Fez parte da comissão para a rifa de 1852.

367 Domingos Fassati Roero San Severino (1804-1878), major comandante da guarda pessoal do rei Carlos Alberto. Era o intermediário de Dom Bosco com Victor Emanuel II. Ajudou Dom Bosco não apenas materialmente, mas também com seus conselhos. Distinguiu-se pelas atividades em favor da Igreja, dos pobres e da juventude.

368 Na capela Pinardi ficou a graciosa estátua de Nossa Senhora da Consolata, que Dom Bosco tinha adquirido em 1847. Em 1856, foi levada pelo padre Giacomelli para sua casa paterna, em Avigliana, e restituída ao Oratório em 12 de abril de 1929. Encontra-se na renovada capela Pinardi.

369 O padre Pedro Vallauri (1829-1900), sacerdote, confessor, freqüentava a igreja de São Francisco de Assis.

370 O cavalheiro Carlos Gabbetti, arquiteto municipal, tinha por atribuição aprovar os novos edifícios. Em 1876 era chefe do setor de edilícia da prefeitura.

Em março de 1853, a prefeitura manda suspender os trabalhos, exigindo que se apresentasse o certificado de um engenheiro e de um arquiteto autorizado, que assumissem a responsabilidade por ela. No entanto era indiciado o mestre-de-obras Bocca. Luís Antônio Bellia, que tinha feito os trabalhos de reforma da casa Pinardi, tinha já advertido Dom Bosco da pouca honestidade de Bocca. Dom Bosco não fizera caso da advertência de Bellia; submeteu-se às exigências da prefeitura, mas quis interceder em favor do mestre-de-obras.

371 Pela construção da igreja e do campanário, o mestre-de-obras e empresário Frederico Bocca tinha recebido 43.565 liras e 75 cêntimos (cf. ASC A 0210128 FDB 122 A 2).

372 “Quando em dezembro de 1928 se iniciaram os trabalhos para a construção de uma nova e ampla escada nas proximidades dos aposentos de Dom Bosco, ao romper alguns pedaços das paredes mestras desta primeira casa do Oratório, descobriu-se que eram feitos em grande parte de pedregulhos e de reboque muito pobre de cal. O edifício que ruíra devia encontrar-se ainda em piores condições de material” (F. Giraudi, L´Oratorio di Don Bosco, p. 111, nota 1).

373 O quarto escolhido por Dom Bosco no braço paralelo à igreja de São Francisco de Sales, era a última das três salas que se encontram no segundo plano; depois, por muitos anos, serviu de sala de espera para seu escritório.

374 Cf. ASC A 0210124, “Prezzo per il lavoro di stucco da eseguire nella cappella di St. Luigi nel venerando Oratorio di Valdocco. All [sic] reverendo Signor Don Bosco Direttore”, FDB 111 D 3.

375 O padre Carlos Cays, conde de Gilletta e Caselette (1813-1882). Doutor em direito, ficou viúvo aos 32 anos. Tomou parte ativa nas atividades caritativas e sociais de Turim. Foi presidente das Conferências de SãoVicente de Paulo, catequista e benfeitor dos oratórios de Dom Bosco, prior da Companhia de São Luís no biênio 1853-1855. De 1857 a 1860 foi deputado no parlamento subalpino. Em 1877 pediu para entrar na sociedade salesiana e foi ordenado padre em 1878. Foi primeiro diretor de Challonges (Sabóia), depois foi chamado a Turim na qualidade de diretor das Leituras Católicas.

376 Em ASC A 0210408 e A 0210409 FDB 1973 C 1 e C 2, faculdade para benzer o sino.

O cavalheiro padre Agostinho Gattino era cura da paróquia dos Santos Simão e Judas. Nasceu em Giaveno em 1816 e morreu em Turim em 1896.

377 Na nota dos débitos de Dom Bosco com a tipografia Speirani e Tortone, dia 27 de março de 1853 está assinalado: “Impressão de 400 convites para o oitavário no Oratório, papel verde, 15 liras” (ASC A 210334 FDB E 11).

378 Em 1853.

379 La Buona Novella, semanal valdense que surgiu em Turim em 1851. No começo era dirigido por J. P. Meille. Foi então o único jornal que conduziu sistematicamente a polêmica contra as Leituras Católicas. Abandonou-a quando Meille deixou a direção do jornal. De 1861 para a frente, passou a ser impresso em Florença.

La Luce Evangelica, periódico dos evangélicos italianos, independente da Igreja valdense. Foi fundado em Turim em maio de 1854. Saiu de 3 de junho de 1854 a 28 de abril de 1855.

Il Rogantino nunca é citado entre os jornais evangélicos, antes, foi expressamente declarado imprensa não-evangélica por um jornal de segura fé evangélica, qual La Buona Novella.

380 “Trabalho dos protestantes para arranjar prosélitos: no passado, os protestantes trabalhavam clamorosamente com os jornais, com promessas e artimanhas de toda a espécie; atualmente, mudaram de mão e trabalham clandestinamente quanto lhes é possível. Os meios por eles utilizados são três: 1º doações, 2º catequese e 3º livros. Por doações se entende empregos no comércio, nos escritórios, de prestação de serviços, de trabalho, fornecimento ou doação de dinheiro, promessas de todo o gênero. Por catequese se entende as conferências que fazem os evangélicos na cidade e nas aldeias de província, escolas infantis, escolas primárias, explicação da Bíblia nos dias festivos. Por livros se entende a publicação de jornais, livros, folhetos, almanaques, Bíblias do Deodati, que os vendedores de livros [...] de acordo com os evangelistas locais vendem onde podem e por qualquer preço...” (ASC A 221 FDB 90 C 3 “Al Congresso dei Vescovi della Prov. Eccl. di Torino radunati Decano Vesc. d’Acqui 1863 X.bre 9”, E I, p. 292-293).

Ao pró-memória enviado aos bispos, Dom Bosco anexou uma relação de livreiros que eram sustentados pela obra de evangelização inglesa (cf. ASC 221 FDB 90 C 3 e C 5; veja-se, também, L’Armonia 3 (1850), n. 79, 8 de julho, p. 340, col. 1).

381 Do mesmo parecer era L’Armonia 2 (1849), n. 138, 212 de novembro, p. 550, col. 3-551, col. 1, “Avviso ai cattolici”.

382 Deste período temos: La Chiesa Cattolica Apostolica Romana è la sola Chiesa di Gesù Cristo: avvisi ai cattolici. Turim,Tipografia Speirani e Ferrero, 1850, OE IV [121]-[143], e Avvisi ai catolici. Turim, De Agostini, 1853, OE IV [165]-[193].

383 Veja-se a esse respeito a carta Cafasso-Bosco existente no Arquivo do Santuário da Consolata, entre os papéis do padre Cafasso.

384 O teólogo cônego José Zappata (1796-1883), vigário-geral, foi preboste do capítulo metropolitano desde 1865; vigário capitular de 1862 a 1867 e depois de 1870 a 1871. Sempre teve uma atitude tranqüila e moderada nos grandes problemas da arquidiocese.

385 Dom Luís Moreno (1800-1878) cresceu numa família permeada pela religiosidade da mãe. Em 1823, antes de ser sacerdote, era secretário do arcebispo de Sássari. Foi ordenado sacerdote naquele mesmo ano. Doutorou-se em direito civil e eclesiástico em 1828 pela Universidade de Gênova. Em 1829, depois da morte do arcebispo, deixou Sássari. Tendo sido cônego em Alba, Pró-vigário-geral, inspetor escolar, foi bispo de Ivrea de 1838 até à morte. Promoveu a imprensa católica, publicou livros de teologia. Distinguiu-se pela dedicação ao trabalho pastoral e a austeridade de vida (cf. L. Bettazzi, Obbediente in Ivrea: monsignor Luigi Moreno vescovo dal 1838 al 1878. Turim, SEI [1989]).

386 O título completo da obra é Il cattolico istruito nella sua religione: trattenimenti di un padre di famiglia co’ suoi figliuoli secondo i bisogni del tempo, epilogati dal sac. Bosco Giovanni.Turim, Tipografia dirigida por P. De Agostini, 1853, OE IV [195]-[646].

387 Começaram com 3 mil cópias. O empenho de Dom Bosco para que penetrassem nas paróquias do Piemonte fez que a tiragem subisse além das 10 mil cópias (cf. ASC A 021 “Fatture”).

388 As Letture Evangeliche eram publicadas pela Livraria Evangélica, aberta em Turim em 1853. Em 1860 a Livraria se transferiu para a Tipografia Claudiana, próxima ao templo valdense. Em 1862 a Claudiana transferiu-se para Florença.

389 “Note, porém, que fui insultado várias vezes pelos protestantes com escritos, com palavras e com ameaças, mas o Senhor fez que presentemente eu seja quase todos os dias visitado pelos protestantes aqui enviados para fazer-se explicar quanto encontram nas Leituras Católicas: mas com boa fé (E I, p. 74 carta Bosco-De Gaudenzi, 6/4/1853). Veja-se em Il Rogantino Piemontese, de 30 de setembro de 1853, um exemplo dessas polêmicas, vistas por parte dos valdenses (ASC A 165 FDB A 7 e A 8).

390 Amadeu Bert (1809-1883), tendo terminado os estudos de teologia em Genebra, foi consagrado ministro em 1832 e enviado à paróquia de Rodoretto. Debaixo de sua guia a congregação reformada de Turim assumiu pouco a pouco uma regular estrutura eclesiástica.

391 João Paulo Meille (1817-1887) iniciou seus estudos a preço de grandes sacrifícios. Aos 16 anos entrou na Academia de Lausane. Em 1838 recebia o título de proponente na Faculdade Teológica de Lausane. Depois de grave enfermidade, voltou ao Piemonte, ocupando o cargo de reitor de duas classes do Collegium Sanctae Trinitatis de Torre Pellice. Consagrado pastor, considerou a instrução dos meninos a parte predileta do próprio ministério. Depois da emancipação, fundou o jornal mensal L´Echo des Valées. De 1850 até à morte trabalhou em Turim. Tocou a ele inaugurar o Templo no Viale del Re. Fundou a Sociedade das Donzelas Protestantes para a Proteção da Infância Pobre e o Colégio dos Aprendizes Valdenses. Publicou diversas obras.

392 As contínuas publicações de Dom Bosco em defesa da verdade católica estavam redigidas de acordo com a moderação e a caridade cristã. No fim de O católico instruído dirigia-se aos ministros protestantes, dizendo-lhes: “Estas são as palavras de um irmão vosso que vos ama, e vos ama muito mais do que podeis crer. Palavra de um irmão que oferece toda a sua pessoa e quanto possa ter neste mundo por vosso bem”. Isso não obstante, seus escritos enfureciam os adversários.

Na Coleção de fatos curiosos contemporâneos, referente aos protestantes (abril de 1854), escrevia: “Nosso fim ao publicar esta Coleção é informar nossos leitores que os protestantes se mostraram profundamente indignados por outros fatos por nós já publicados sobre eles. Demonstram-no com palavras, com cartas e nas próprias páginas dos seus periódicos. Esperávamos que destacassem algum erro publicado por nós, mas isso não aconteceu. Todas as suas palavras, escritos e publicações não passam de um tecido de grosserias e injúrias contra as Leituras Católicas e quem as escreveu; nisto lhe concedemos de boa mente a vitória, sem que tratemos de acrescentar uma só palavra. Por isso temos tido sempre o máximo cuidado de não publicar nada contrário à caridade que devemos ter com qualquer pessoa deste mundo. Por conseguinte, perdoando de coração a todos os que nos injuriaram, guardar-nos-emos muito bem de alusões pessoais, mas perseguiremos o erro onde quer que se esconda”.

393 Cuor d’Oro: era assim denominada uma taverna. A casa, à qual se acrescentou um andar, existe ainda. Chega-se a ela atravessando um pequeno pátio, na rua Cottolengo, número 34.

394 “Aluguei pois de sua dona o resto daquela casa [Bellezza]. Aqui é onde um certo Andrein, vendo que eu o despejava por não ter ainda pago o aluguel de dois ou três meses, atentou contra a minha vida correndo atrás de um clérigo de túnica, pensando que era Dom Bosco, com uma faca na mão. Enganado, voltou-se e viu Dom Bosco que já subia as escadas percebendo que estava sendo seguido e quando chegou apenas em tempo de cerrar a cancela que fechava a escada. Ficou batendo na cancela com uma pedra das 5 às 9 da noite... Tendo sido chamada a segurança pública, às 9 foi preso e conduzido à cadeia. Tendo saído, para acalmá-lo lhe paguei o aluguel, de onde foi e ficou por três ou quatro meses e assim me deixou em paz” (ASC A 0040201 Notizie 1867 [Berto], p. 21-22 FDB 900 C 7 e C 8).

395 Em ASC A 0080601 Cronache dell´Ortorio di San Francesco di Sales Nº 1 1860, p. 40, FDB 1206 D 9, Dom Bosco foi acompanhado pelo jovem Ribaudi.

396 Cf. ASC A 0080601 Cronache dell´Oratorio di San Francesco di Sales Nº 1 1860, p. 38, FDB 1206 D 7.

397 Cf. ASC A 0040603 1862 Bonetti, Annali II, p. 74-75, FDB 922 D 9.

398 Moncucco Torinese, Asti, cidadezinha agrícola a 37 quilômetros de Asti e cerca de 5 quilômetros ao norte de Castelnuovo Don Bosco.

399 O teólogo José Vaccarino (1805-1891), pároco de Buttigliera d’Asti desde 1832. Introduziu a indústria caseira dos teares. Em 1861, criou o Jardim de Infância. Fez parte da comissão que criou o hospital do lugar. Abriu um oratório para a juventude. Foi inspirador incansável de vocações sacerdotais e religiosas. Endereçou muitas moças a se tornarem professoras. Com uma pregação sólida e clara e com exemplar conduta, procurou restaurar a fé e os costumes na cidade, avizinhando-se com grande bondade de seus paroquianos.

400 Depois de escritas estas Memórias, Dom Bosco tornou a ver o misterioso animal em 1883, quando na escuridão da noite voltava de Ven­timiglia para Vallecrosia (MB XVIII, p. 8). Falou disso várias vezes e em diferentes lugares. Entre outros, ouviram-lhe a narração seu biógrafo, o doutor D’Espiney (id., p. 10), e o padre Secundo Gay, cura de São Silvestre, em Asti, como testemunhou em sua relação de 17 de outubro de 1908.

Ghéon escreve: “A Providência pode servir-se de um cachorro. Um anjo pode dispor de recursos necessários para isso. O menos que podemos afirmar é que o animal farejou a santidade, defendendo-a ardentemente. Se há milagres, Deus fez ainda muitos outros para o pai dos Salesianos e esse não nos deve surpreender” (Henri Ghéon, São João Bosco. Tradução de M. Cavalcanti Horta. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1948, p. 134).