A3__COMO_SE_VISSE_O_INVISIVEL___P._Gildasio_Mendes__26_agosto__2024_Roma


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Gildásio Mendes dos Santos
COMO SE VISSE
O INVISÍVEL

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PREFÁCIO
Por ocasião do bicentenário do sonho dos nove anos de Dom
Bosco, o P. Gildásio Mendes dos Santos, Conselheiro Geral para a
Comunicação Social, quis oferecer-nos estas páginas com o título de
"Como se visse o invisível". A frase retoma como fonte de inspiração
a carta aos Hebreus 11,27, com que o autor bíblico sintetizou todos
os insignes feitos de Moisés. Inspirando-se nela, o autor traça uma
luminosa interpretação do conceito evangélico da fé, com
animadoras reflexões para a vida salesiana. É um texto decisivo para
compreender a evolução do pensamento de Dom Bosco, apresentado
a nós como modelo no artigo 21 das Constituições Salesianas.
Situando-se desde essa perspectiva, o P. Gildásio, de forma
persuasiva, percorre ao reverso a história do sonho dos nove anos de
Dom Bosco, comparando-o a Moisés, como um peregrino a caminho
da "terra prometida". O sonho de Dom Bosco, o famoso "sonho dos
três estágios", será desdobrado em temáticas nas quais o sempre
possível exercício da mente humana explicita o icônico percurso da
visão mística: num primeiro momento os lobos se tornam cordeiros;
depois, alguns cordeiros se tornam pastores; finalmente, crescendo o
número dos pastores, estes se tornam missionários, sempre a serviço
dos jovens em outras partes do mundo. Trata-se de uma ação a
serviço imediato dos últimos, dos jovens abandonados; de um amor
por quem sofre; do verdadeiro sentido da vida, que consiste num
único mandamento, o do amor.
Nesse excursus, o autor relê a história de Dom Bosco como a
história de um jovem sacerdote que, no início de tudo, dá os
primeiros passos na casa da família Moglia; depois em Chieri, na casa
de Lúcia Matta e de José Pianta, onde sobrevive em meio a indizíveis
dificuldades, encurralado num acanhado vão da casa; em seguida,
como jovem padre, é obrigado a buscar um lugar para seus jovens,
passando da igreja de São Francisco de Assis à Obra da Marquesa
Barolo; de São Pedro in Vincolis, junto aos Moinhos da Cidade, à Casa
Moretta; do prado dos irmãos Filippi, até o encontro providencial
com Pancrácio Soave, que lhe oferece um lugar para seu

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3
"laboratório". À resposta de Dom Bosco: «Não um laboratório, mas
um Oratório», Soave replica: «Oratório ou laboratório, seja lá o que
for; o fato é que um lugar existe e é propriedade do senhor José
Pinardi»; feito o contrato, finalmente Dom Bosco encerra sua
interminável peregrinação pelo "deserto" ao chegar a Valdocco, "a
terra prometida".
As várias experiências que levaram Dom Bosco a vagar de cá
para lá, a compartilhar as mesmas situações em que viviam muitos
jovens, levaram-no mais tarde a se abrir sempre mais ao espírito de
acolhida e ao sentido de oferecer hospitalidade. Este é o conceito e a
palavra-chave com que o P. Gildásio faz uma interpretação bíblica e
cristã da hospitalidade, pela qual a pessoa humana é vista como
hóspede, dado que tudo pertence a Deus e, por consequência, vive
em comunhão fraterna e solidariedade com e para o outro. Eis, pois,
como ele aborda ao longo do livro a figura de Dom Bosco e sua
experiência espiritual e educativa.
De fato, o P. Gildásio define a obra de Dom Bosco como
"hospitalidade salesiana", "essência da caridade educativa de Dom
Bosco", e qualifica sua ação como "hospitalidade evangélica e
educativa".
Cito literalmente o texto que considero o mais significativo
para a releitura que o autor faz de Dom Bosco e do Oratório de
Valdocco:
«A hospitalidade de Dom Bosco se traduz em doar-se aos outros,
em acolher o jovem órfão e cuidar dele a fim de que possa
desenvolver-se como pessoa humana, amada por Deus, com a
missão de responder ao projeto de Deus em sua vida».
O autor continua assim sua reflexão:
«Para Dom Bosco, a hospitalidade consiste na responsabilidade
e no empenho para encontrar para os jovens os meios e os
recursos necessários a fim de construir um lugar para acolhê-
los, dar-lhes de comer, oferecer-lhes um local para dormir, um
espaço para jogar e se divertir, livros para estudar, um mestre
para ensinar-lhes um ofício».

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4
Em seguida, o P. Gildásio sublinha:
«Para ele, a hospitalidade acontece ao criar um clima de alegria,
no qual os educadores são amigos dos jovens, o relacionamento
se realiza com confiança e familiaridade, os jovens aprendem a
tocar instrumentos musicais, a cantar, a fazer teatro, a viver a
liturgia em sua beleza e grandeza espiritual».
Não há nenhum tipo de arrazoado com que se possa ocultar ao
cristão essa evidente e indubitável verdade, ou seja, a originalidade
da abordagem que se encontra nesta releitura de Dom Bosco a partir
dos dois sonhos: o dos 9 anos (1824) e o do jovem sacerdote (1844),
como verdadeira e autêntica peregrinação, semelhante à de Moisés
em busca da "terra prometida", caminhando no escuro, sustentado
pela fé e, portanto, "como se visse o invisível".
Por que falo de originalidade dessa abordagem? Na
antropologia bíblica o fundamento do bem do ser humano consiste
na "Teologia da Hospitalidade", pela qual o ser humano se sente
devedor e, sendo hóspede neste mundo, reconhece que tudo pertence
só e totalmente a Deus. Ele nos acolhe e faz de nós seus hóspedes,
com a responsabilidade de sermos colaboradores em tornar a vida de
todos mais humana; de modo particular os estrangeiros, os
migrantes, os sem teto, os sem família e sem trabalho. Este é um
quadro dramático que caracteriza nosso mundo de hoje. Desde esse
ponto de vista é preciso termos consciência da dimensão desse drama
universal em todas as partes do mundo, no qual muito jovens se
encontram em peregrinação, vagando pelo deserto da vida à busca
de acolhida, de hospitalidade e de amor.
Na repetida evocação que o P. Gildásio faz do episódio da Santa
Missa de Dom Bosco na igreja do Sagrado Coração em Roma, em
maio de 1887, poucos meses antes de sua chegada definitiva à Casa
do Pai; e das lágrimas que, por quinze vezes, o obrigaram a
interromper a celebração, enquanto comtemplava, cheio de estupor
e reconhecimento, como num "flashback", todo o percurso daquele
sonho, são as palavras confortadoras de Maria, mãe e mestra: «A seu

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5
tempo tudo compreenderás», que confirmam a autenticidade de sua
vocação e missão, e, portanto, de sua santidade a serviço de «um
projeto de vida fortemente unitário: o serviço aos jovens», que nosso
Pai «realizou com firmeza e constância, por entre obstáculos e
canseiras, com sensibilidade de um coração generoso» (C. 21).
Faço votos que a leitura deste livro desperte sempre mais o
empenho em continuar a levar adiante o "sonho de Deus", enquanto,
como Dom Bosco, vamos caminhando "como se víssemos o invisível".
P. Pascual Chávez Villanueva, SDB
Roma, 24 de fevereiro de 2024

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6
INTERPRETAR UM SONHO, HOJE
Celebrando o bicentenário do "Sonho dos nove anos" de Dom
Bosco, estas páginas se propõem aprofundar o sonho de Joãozinho
em 1824, que ele voltou a sonhar como jovem padre em Turim em
1844.
Anos mais tarde, quando visita o Papa Pio IX e recebe dele a
obediência de pôr por escrito suas memórias e seu sistema educativo,
redigirá suas famosas Memórias do Oratório.1
É evidente que, para um menino, um sonho, mesmo que venha
da parte de Deus, não é fácil de assimilar e compreender
rapidamente; haverá de ser interpretado aos poucos e encontrar sua
confirmação ao longo das experiências da vida, na comprovação dos
fatos a que o sonho se referiu e na gradualidade dos acontecimentos.
O sonho é relido a partir de uma perspectiva ampla: a revelação
faz parte do plano do amor e do chamado de Deus. É um sinal, uma
mensagem que João Bosco assume e segue, interpreta e vive no
contexto do projeto de Deus, do carisma e da missão que o Espírito
Santo lhe confia. Esse sonho orientou seu caminho para o sacerdócio
e marcou profundamente toda sua existência.
Podemos perguntar: quando foi que Dom Bosco assumiu como
próprio, de forma explícita e experiencial, esse sonho? Estas páginas
visam precisamente responder essa pergunta.
A argumentação da resposta leva-nos a mostrar como Dom
Bosco, de 1844 a 1846, enfrenta incansável, corajosa e contínua
1 SÃO JOÃO BOSCO, Memórias do Oratório de São Francisco de Sales 1815-1855. Tradução de
Fausto Santa Catarina. Edição revista e ampliada, aos cuidados de Antônio da Silva Ferreira. EDEBÊ
2018. [Citação: Memórias do Oratório...] Aqui referimos as citações das Memórias do Oratório e das
Memórias Biográficas sem aprofundar as fontes. Para um estudo mais aprofundado da vida do Santo,
sugerimos: A. GIRAUDO (a cura di), Memorie dell’Oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815 al 1855.
Saggio introduttivo e note storiche, LAS, Roma 2021. T. BOSCO (a cura di), SAN GIOVANNI BOSCO,
Memorie, Elledici, Torino 1985 (com alguns retoques na linguagem de 1800 em relação à linguagem
popular de hoje). Ou os diversos estudos pelo Instituto Histórico Salesiano, na revista «Ricerche
Storiche Salesiane» (LAS).

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7
peregrinação em busca de um lugar para seus jovens em Turim, a
fim de traduzir em realidade o que apenas entreviu no sonho. É, pois,
em Dom Bosco adulto que o sonho se torna vida, existência,
experiência.
Duas são as questões fundamentais a esclarecer: o que significa
para Dom Bosco viver a experiência de peregrino na contínua busca
de um lugar para se fixar e, depois de tê-lo encontrado, como criar
um ambiente amistoso para acolher e abrigar os jovens mais pobres?
Como consequência, na vivência pessoal dessa busca de um lugar
para viver e acolher seus jovens, como Dom Bosco desenvolveu e
integrou em sua vida, em sua espiritualidade e praxe educativa o
valor da hospitalidade?
Dom Bosco é um peregrino que caminha com fé para realizar
o projeto do amor de Deus em sua vida! Da viagem inicial em busca
de um lugar estável até a realização de sua obra de educador e
fundador, Dom Bosco viveu um caminho espiritual, uma verdadeira
e autêntica peregrinação, nas pegadas de Moisés, em busca da "Terra
Prometida Salesiana": Valdocco!
Seguindo a trama desse sofrido caminhar, queremos mostrar
como Dom Bosco, partindo da experiência de peregrino, faz
experiência do valor evangélico da hospitalidade, fundando a Obra
Salesiana como lugar de acolhida, de afeto e de crescimento humano
e espiritual.
Pelas suas experiências de vida, sabe muito bem o que significa
ser hóspede e, por sua vez, o que significa oferecer hospitalidade: ser
acolhido numa casa, ter o que comer, sentir o calor do afeto das
pessoas, receber um apoio educativo, ter um trabalho... Como menino
e como jovem, viveu na própria carne o valor evangélico da
hospitalidade, motivo pelo qual, como padre, ele vê a Deus no rosto
de todos que procuram um lugar de acolhida.
Divinamente inspirado e com grande sabedoria educativa, sabia
tocar o coração de seus jovens mediante o amor de um pai, de um
educador genial e incansável, de um líder capaz de atrair os jovens
para colaborar na missão que Deus lhe tinha confiado. Em tudo que
fazia tinha um escopo muito preciso: fazer a vontade de Deus e
realizar seu sonho, o sonho de salvar as almas!

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8
Para seus jovens, para os primeiros Salesianos e para muitos
leigos, Dom Bosco foi um homem de Deus vindo ao mundo a fim de
cumprir uma grande missão. Sua santidade é um dom maravilhoso
para a Igreja e para o mundo. Ainda hoje, em todas as partes do
mundo, nos pátios dos Oratórios, a figura de Dom Bosco se levanta
como farol de esperança e luz para todos os jovens que representam
o futuro que virá.
Como numa espiral do tempo, com um salto cronológico e
dinâmico para dentro do sonho dos nove anos de Joãozinho, numa
inversão reflexa a modo de uma imagem num espelho,
mergulharemos nas suas intenções, Entre o sonho dos 9 anos e o
sonho do jovem padre, só mistério e busca incansável de
hospitalidade!
Como Dom Bosco, somos todos peregrinos de Deus.
Peregrinos com os jovens!
P. Gildásio Mendes dos Santos, SDB
Roma, 24 de maio de 2024

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9
Becchi, Piemonte, 1824. Dom Bosco, menino, 9 anos.
«Nessa idade tive um sonho que me ficou profundamente impresso
na mente por toda a vida. [...] Nesse ponto, sempre no sonho, desatei
a chorar e pedi que falassem de maneira que pudesse compreender,
porque não sabia o que significava tudo aquilo. A senhora descansou
a mão em minha cabeça, dizendo: "A seu tempo tudo
compreenderás"».2
2 Memórias de Oratório..., p. 32, 34.

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10
Turim, outubro de 1844. Dom Bosco, jovem padre.
«No segundo domingo de outubro daquele ano (1844) devia anunciar
aos meninos que o Oratório ia mudar-se para Valdocco. Contudo, a
incerteza do lugar, dos meios, das pessoas deixava-me muito
preocupado. Na tarde anterior fui dormir com o coração inquieto. Tive
naquela noite outro sonho, que parece um apêndice do que tive nos
Becchi aos 9 anos».3
3 Memórias do Oratório..., p. 146-147.

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11
Basílica do Sagrado Coração, Roma, maio de 1887. Dom Bosco,
8 meses antes de sua morte.
«Naquela manhã Dom Bosco quis descer à igreja e celebrar no altar
de Maria Auxiliadora. Pelo menos quinze vezes durante o Divino
Sacrifício parou, tomado por forte comoção e derramando lágrimas.
[...] Eu tinha diante dos olhos de forma muito viva a cena de quando,
perto dos dez anos, sonhei a respeito da Congregação. Eu via e ouvia
a mamãe o os irmãos discutir a respeito do sonho. [...] Então Nossa
Senhora lhe tinha dito: "A seu tempo tudo compreenderás"».4
4 EUGENIO CERIA, Memorie Biografiche di San Giovanni Bosco 1886-1888, vol. XVIII, SEI,
Torino 1937, p. 340-341.

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Das Constituições Salesianas.
«O Senhor nos deu Dom Bosco como pai e mestre. Nós o estudamos
e imitamos, admirando nele esplêndida harmonia de natureza e graça.
Profundamente homem, rico das virtudes do seu povo, era aberto às
realidades terrenas; profundamente homem de Deus, cheio dos dons
do Espírito Santo, vivia "como se visse o invisível"».5
5 Constituições e Regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales, art. 21.

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13
PRIMEIRA PARTE

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Dom Bosco, padre novo, revive o sonho dos 9 anos
Em 1844, Dom Bosco, padre novo em Turim, revive como num
"flashback" o sonho dos 9 anos de 1824.
«No segundo domingo de outubro daquele ano (1844) eu devia
anunciar aos meninos que o Oratório ia mudar-se para Valdocco.
Contudo, a incerteza do lugar, dos meios, das pessoas deixava-me
muito preocupado. Na noite anterior fui para a cama com o coração
inquieto. Tive naquela noite outro sonho, que parece um apêndice do
que tive nos Becchi aos 9 anos».6
Os bandos dos desordeiros
Turim, 1844. Dom Bosco é padre há poucos anos. No bairro da
periferia de Turim chamado Valdocco dá início ao Oratório de São
Francisco de Sales, que se consolida no momento em que encontra
uma sede estável na casa Pinardi em 1846.
Naqueles anos, um grande número de jovens pobres, impelidos
pela necessidade de encontrar trabalho, está chegando a Turim,
cidade em rápido desenvolvimento econômico e social, todos eles
muito frágeis em nível religioso, afetivo e educacional.7
Dom Bosco decide dedicar-se totalmente a eles, sobretudo aos
mais pobres e abandonados. São jovens em busca de um futuro
melhor, mas que ninguém quer, inclusive assustam as pessoas de
bem.
«Tomando consciência de que as estruturas de Igreja não eram mais
adaptadas para responder aos desequilíbrios sociais e culturais da
época, animado pela tradição caritativa católica, Dom Bosco tentou
uma interação diferente com os jovens arrancados do próprio
ambiente de origem».8
6 Memórias do Oratório..., p. 146-147.
7 Para uma visão ampla da vida e missão de Dom Bosco em Valdocco, cf. PIETRO BRAIDO,
Don Bosco prete dei Giovani nel secolo delle libertà, voll. I-II, LAS, Roma 2009.
8 PIETRO BRAIDO, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libertà, Vol. II, LAS, Roma
2009, p. 42.

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Lobos e cordeiros
No segundo sonho, Dom Bosco já é homem feito, integrado na
comunidade cristã como sacerdote que amadureceu seu pensamento
e concretizou sua personalidade de forma plena e também
sacrificada.
Dar vida ao sonho significa ter plena consciência dessa divina
responsabilidade e, com os pés no chão, começar a concretizá-lo.
«No segundo domingo de outubro daquele ano (1844) devia anunciar
aos meninos que o Oratório ia mudar-se para Valdocco. Contudo, a
incerteza do lugar, dos meios, das pessoas deixava-me muito
preocupado. Na tarde anterior fui dormir com o coração inquieto».9
Dom Bosco continua narrando seu segundo sonho e observa:
«Julgo oportuno contá-lo em pormenores. Sonhei que estava no meio
de uma multidão de lobos, cabras e cabritos, cordeiros, ovelhas, bodes,
cães e pássaros. Faziam todos juntos um barulho, uma desordem, ou
melhor, uma inferneira de espantar os mais corajosos. Ia fugir,
quando uma senhora, muito bem trajada à moda de pastorinha, fez
um gesto para que seguisse e acompanhasse o estranho rebanho;
enquanto isso, ela se punha à frente».10
O sonho do peregrino
Dom Bosco é um verdadeiro peregrino que sonha. O sonho
lança-o numa atividade ininterrupta e comprometedora. Expressão
da sua vitalidade interior, é energia e entusiasmo. O sonho no coração
de Dom Bosco é como uma sarça ardente: chama de fogo interior,
de movimento vital que dele emana, em Deus.
A realização do sonho exige concentração e atenção para
descobrir os sinais de Deus, dia por dia, nas pequenas coisas, para
9 Memórias do Oratório..., p. 146-147.
10 Memórias do Oratório..., p. 147.

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interpretar e dar significado a tudo o que está relacionado com o
sonho.
Todavia, carregar um sonho no coração exige busca constante,
às vezes até mesmo caminhar na escuridão; interrogar-se
continuamente a respeito do que fazer para concretizar o que o sonho
veladamente anunciou.
O período que vai de 1844 a 1846 é um tempo de profundas
interrogações existenciais a respeito do significado, particularmente
da concreta realização do sonho dos 9 anos. Dom Bosco, psicológica
e espiritualmente vive um verdadeiro peso existencial, deslocando-se
de um lugar para outro, confrontanto-se com pessoas próximas dele
nas intenções, que, no entanto, chegaram duvidar de sua saúde
mental.
Escolhido por Deus para uma grande missão, o caminho da fé
de Dom Bosco é dinâmico, sempre em subida. Ele vive o êxodo de
seu povoado dos Becchi, em contínua busca de um lugar, para si e
para seus jovens.
No seu horizonte de fé, pela frente só se vê deserto e caminhar!
Uma estrada no deserto
O percurso empreendido por Dom Bosco estabelece um
paralelo com a viagem de Moisés a caminho da Terra Prometida.11
Tanto Moisés quanto Dom Bosco têm grande missão a cumprir,
confiada a eles por Deus.
A peregrinação, vista em seu sentido mais recôndito como
"encontro" e "cuidado", é a expressão mais significativa que o ser
humano pode colher em relação à condição humana.
Quem percorre uma estrada pantanosa, logo pensa em desviar
alguns passos para ver como ela é e para onde leva. No fim, na
chegada, fica-se admirado de ter tido a força de enfrentar um
percurso tão árduo e vive-se a gratificação da canseira que cessou.
11 Cf. JACQUES LOEW, Preghiera e Vita. Grandi modelli, Edizione Morcellana, Brescia 1991.

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Como numa luta, ao debater-se para aquém do limite sonhado,
Dom Bosco empreende uma longa peregrinação em busca de uma
meta prometida, de um lugar fixo, de um terreno sólido que
represente o limite da chegada.
Dom Bosco, como Moisés, deverá atravessar o "deserto", para
chegar ao último limite de seu sonho, traduzindo em prática o
modelo evangélico do cuidado para com o próximo.12
A pastorinha põe-se à frente
O segundo sonho tem uma sequência simples e concreta. Abre-
se rapidamente ao novo, ao que há de vir, ao que deve ser realizado:
os animais se transformam em cordeiros, crescem, chegam novos
cordeiros que ajudam os outros animais a se tornarem cordeiros...
Tudo muito pedagógico! No sonho, tudo se desvela, é mostrado um
horizonte, desponta uma promessa e um grande futuro.
Nesse cenário, um detalhe fundamental esclarece a missão de
Dom Bosco que o marcará para sempre. Algo maravilhoso: cordeiros
que tomam conta dos outros: "uma maravilha", escreve Dom Bosco.
«Aconteceu então uma coisa maravilhosa. Muitos cordeiros
convertiam-se em pastorzinhos, que cresciam e passavam a tomar
conta dos outros. Com o grande aumento do número dos
pastorzinhos, eles se separavam e se dirigiam a outros lugares, onde
reuniam alguns animais estranhos e os levavam a outros redis».13
O sonho será compartilhado com outras pessoas, muitas outras.
Seu sonho, que é o sonho de Deus para ele, será o sonho de muita
gente que haverá de chegar para ajudá-lo na missão. Caminhar
juntos! Este é o segredo de todos que caminham com Deus.
A segunda parte do sonho prossegue com outra indicação
muito preciosa e reveladora para Dom Bosco por parte da pastorinha:
uma igreja com uma inscrição dedicada a Maria.
12 Morand Wirth, nel libro Don Bosco et la Bible, apresenta uum estudo sobre o influxo e os
textos do Antigo e do Novo Testamento na vida de Dom Bosco, p. 46-85.
13 Memórias do Oratório..., p. 147.

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O sonho vem confirmar que é Maria quem guia Dom Bosco
com segurança. Ele é convocado a tomar conta dos jovens pobres,
entre os quais surgirão os que cuidarão de outros jovens e
colaborarão com a missão (seus colaboradores, os futuros Salesianos).
No sonho, Dom Bosco também entrevê a igreja dedicada a Maria,
donde a missão se expandirá e a glória da Mãe do Filho de Deus será
proclamada.
«Eu queria ir embora, porque parecia estar na hora de rezar Missa,
mas a pastorinha me convidou a olhar para o sul. Olhei e vi um
campo semeado de milho, batata, couve, beterraba, alface e muitas
outras verduras. Olha outra vez disse-me. Olhei de novo. Vi então
uma igreja estupenda e alta. Um conjunto de música instrumental e
vocal convidava-me a cantar Missa. No interior da igreja havia uma
faixa branca, na qual estava escrito em caracteres garrafais: Hic
domus mea, inde gloria mea. Sempre em sonho, quis perguntar à
pastorinha onde eu estava, que significava aquele andar e parar, a
casa, a igreja e depois outra igreja mais. – “Tudo haverás de
compreender quando com teus olhos materiais vires realizado o que
agora vês com os olhos da mente”. Parecendo-me, porém, estar
acordado, disse: – “Eu vejo claro e vejo com os olhos materiais. Sei
aonde vou e o que faço. Naquele instante soou o sino das Ave-marias
na igreja de São Francisco, e acordei».14
Impossível... Maravilhoso!
O sonho levanta perguntas necessárias, naturais, desperta
visões quanto ao futuro que levam a questionar a pastorinha: «E
agora? Que significado têm esses animais, essa igreja? A que futuro
se refere isso?». São perguntas que estabelecem uma espécie de
diálogo com ela, como quem diz: «Sim, tudo isso é maravilhoso. Eu
sei que provém de Ti, eu confio em Ti. Mas, como posso realizar tudo
isso?».
Há ainda muito a fazer... Há uma grande distância entre o
sonho e a realidade. Dom Bosco, em sua fé, sente necessidade de fazer
essa passagem, de realizar o que é mais comprometedor e sacrificado:
14 Memórias do Oratório..., p.148.

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transformar o sonho em realidade; de carregar dentro de si, no
silêncio, um sonho como uma semente que germina, cresce e
frutifica...
O sonho do menino de 9 anos aos poucos vai amadurecendo
em seu coração, no interior profundo de Dom Bosco sacerdote.
Tudo isso tem implicações importantes para interpretar o que
ele crê em sua fé. Cabe a ele agora interpretar o sonho, sonhar com
os pés no chão, com a mente centrada nas perguntas concretas às
quais deve dar resposta, descobrir onde estão os meninos pobres, os
jovens perdidos que gritam por sua ajuda.
Quanto pesa um sonho?
Um sonho sempre projeta algo novo, coloca a pessoa diante do
imprevisto, do imaginário, do simbólico. Toda essa realidade
psicológica e espiritual tem forte impacto na psique humana, nas
emoções, no modo de interpretar a vida.
A isto se soma o peso espiritual: como carregar dentro de si
essa nova realidade que ainda não se concretizou? Como viver a vida
ordinária em nível existencial, conservando intacta dentro de si uma
realidade que ainda não se vê, que ainda não se realizou e, assim
mesmo, torná-la concreta?
Quem pode carregar esse peso? Só o escolhido por Deus, mais
ninguém: a pessoa e Deus! É evidente que Dom Bosco compartilhava
sua inquietação e sua busca espiritual com seu grande orientador, o
P. José Cafasso. Entretanto, o próprio Dom Bosco sabia que poderia
ir muito além. Entre o que tinha visto em seu sonho, entre o que
estava realizando e que ainda deveria realizar, a espessura era subtil,
como entre a loucura e uma ideia genial.
A noite clara como o dia
O silêncio do coração e da alma para uma pessoa chamada por
Deus a desempenhar uma grande missão muitas vezes acontece na
escuridão da noite, à luz da chama insegura de uma vela; muitas
vezes se transforma num turbilhão de imagens e vozes que

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perpassam a mente e o coração. Deus é luz invisível nesse difícil
exercício do amor doado, um sopro divino que assinala o destino.
Assim, agora Dom Bosco sabe ter acolhido em si uma mensagem
vinda do céu.
Essa tensão psico-espiritual cresce e alcança seu vértice, no qual
a pessoa entra em crise existencial. Como é possível realizar um
projeto nos limites de si, sem ter a certeza de que se trata realmente
da vontade de Deus? Porque um grande sonho supõe também
grandes empreitadas!
O segredo do futuro
É interessante observar a sequência de verbos usados pelo Santo
na narração do segundo sonho.
Dom Bosco exprime seu estado interior em viver esse sonho e
as etapas da dinâmica psicológico-espiritual da narração onírica:
olhar, ouvir, acompanhar, seguir, cansar-se, fugir e transformar. Fala
da precariedade de lugares, meios e pessoas. É muito concreto. Segue
uma lógica simples, mas realista. O que deveria fazer, com que meios,
com que pessoas levar a termo essa tarefa?
«O sonho durou quase a noite inteira, com muitos detalhes. Por então
pouco compreendi o significado, porque não lhe dava muito crédito;
mas fui entendendo as coisas à proporção que se iam realizando.
Posteriormente, junto com outro sonho, serviu-me de programa em
minhas decisões».15
Lendo o sonho por inteiro, notamos que a incerteza não se
refere simplesmente à busca de um lugar material para seus jovens,
mas a algo mais, ao que Deus lhe pede e lhe mostra. O que o
preocupa é a missão do futuro, o que Deus haverá de revelar-lhe em
segredo.
15 Memórias do Oratório..., p.148.

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Inspirado pelo invisível
É interessante notar o verbo "cansar". Em meio a todas essas
imagens simbólicas, tanto pela sua intensidade visiva, quanto pelo
seu surpreendente movimento e pela crescente e inesperada
conclusão, têm um grande efeito psicológico sobre seu processo
afetivo-cognitivo que recolhe informações e que tenta compreendê-
las.
O sonho é como uma imensa torrente que invade nosso
universo interior, com movimentos rápidos, transformações velozes,
num crescendo contínuo, que emotivamente nos cansa.
O protagonista do sonho é Dom Bosco. Não fica olhando de
longe, como se se tratasse de algo muito distante. É chamado a agir,
a intervir, a fazer alguma acoisa para aplacar o conflito. Além disso,
sente a impotência física e emotiva de não poder resolver a situação.
Como acalmar os jovens que brigam? Além do limite físico, há
outro que ele deve enfrentar, mas em nível mais profundo (espiritual
e existencial): Como tomar conta desses jovens? Que missão Deus
reserva para ele?
«Estivemos vagando por vários lugares; fizemos três estações ou
paradas. A cada parada muitos desses animais convertiam-se em
cordeiros, cujo número ia sempre aumentando. Depois de muito
andar, encontrei-me num prado onde os animais saltitavam e comiam
juntos, sem que nenhum deles tentasse prejudicar os outros».16
Peregrino solitário da Graça
Pergunta difícil, mas necessária, para um jovem padre diante
de uma missão: «Como posso fazer com que tudo isso se realize?».
A resposta, consoladora, é muito simples, mas ainda carregada
de mistério: «A seu tempo tudo compreenderás».
Na prática, Dom Bosco, completamente sozinho, carregará o
peso de um sonho, de uma grande promessa e de um projeto sem
16 Memórias do Oratório..., p.147.

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22
medidas. Um caminho de solidão para carregar, no silêncio, na dor
e na alegria, um sonho que desabrocha no tempo de Deus.
Mediante sua experiência pessoal de fé, Dom Bosco é chamado
a interpretar sua vida, os acontecimentos do seu dia a dia, conferindo-
lhes um sentido, operando uma entrega total a uma contínua
peregrinação, de dia e de noite, à procura... de um sentido e de uma
realização.
Nada do que acontece na vida se encontra fora de seu universo
de interpretação da fé: das pessoas que encontra até as estradas que
se abrem; das dificuldades que aparecem até os passos a realizar para
o início da Congregação. Tudo é interpetado pela fé e pela confiança
em Deus e em sua graça.
Sua tarefa era guardar essa revelação entre Deus e ele mesmo;
nada mais do que esse pacto íntimo que ele trazia em seu coração e
que sabia não poder revelar. Aqui Dom Bosco entra por um caminho
de solidão, onde se encontra sozinho; entra num mistério que
somente ele, na oração e na interpretação mediante sua fé em Deus,
pode encontrar uma janela aberta de esperança e de conforto.
Em sua fé, ele sabe que seu sonho é também o sonho de outros,
como Moisés, José...

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23
SEGUNDA PARTE

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24
Vá! O caminho será mostrado a seu tempo
Vinte anos depois do sonho dos 9 anos, Dom Bosco sonha de
novo, à luz da realidade... o invisível.
Arrebatadores e densos são os pensamentos desse homem
comum; sua vontade fortalecida pela Graça é uma aljava de flechas
agudas. É assim que Dom Bosco parte para a "Terra Prometida",
Valdocco, como Moisés partiu para sua Terra Prometida.
Essa comparação aponta para uma visão bíblica que acomuna
essas duas figuras extraordinárias.
Tal como o sonho sublinha, o caminho, palavra-chave do
viático espiritual, faz com que a vocação de Dom Bosco se identifique
com a confiança em Deus, sinal que desafia o espaço sem limites do
deserto.
Entre os personagens bíblicos, aquele com quem Dom Bosco
mais se assemelha é precisamente Moisés. Ambos devem
empreender uma viagem de fé, carregar em si uma promessa: a
missão de levar um povo a um lugar predestinado.
A fé os conduzirá a secundar o plano de Deus. Na carta aos
Hebreus lê-se que...
«... pela fé, Moisés deixou o Egito, sem temer a ira do rei; de fato, ele
se manteve firme como se visse o invisível».17
Na biografia de Dom Bosco, insolitamente encontramos uma
passagem em que se faz referência ao povo de Deus que saía do Egito.
Emerge aqui um particular muito interessante quanto ao interesse
de Dom Bosco por essa passagem bíblica que aborda precisamente o
tema do êxodo do povo hebreu, da sua peregrinação que busca um
lugar, uma terra, uma hospitalidade.
17 Hb 11,27.

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25
«Esses sonhos eram de grande conforto para o Servo de Deus.
"Conforme narra José Buzzetti, recordo que às vezes nosso querido
Dom Bosco, aludindo ao fato do povo hebreu que saía do Egito,
penetrava no deserto e construía seus acampamentos em diversos
lugares, ele nos encorajava a esperar que, mais cedo ou mais tarde,
Deus haveria de dar também a nós uma Terra Prometida, onde fixar
estavelmente nossa morada"».18
Dom Bosco enfrenta todos os desafios da vida com grande fé,
procurando dar significado a tudo o que aparece em seu caminho.
Não era homem de partilhar facilmente sua experiência
pessoal com Deus; era um peregrino que aprendera a caminhar no
deserto da vida com grande liberdade interior.
O que o deserto ensina
Biblicamente, o deserto é o lugar da purificação, da liberdade,
o lugar onde Deus fala ao coração e educa quem Ele escolhe para
uma missão especial.
Deus educa servindo-se do desconhecido, do imprevisível.
Prepara a pessoa para entrar na "pedagogia do deserto", para
caminhar na incerteza, seguindo uma lógica de fé, na qual a pessoa
se confronta diretamente com Deus que fala por meio do caminho,
do espaço vazio e sem fim, do constante movimento interior e
exterior.
No deserto, a fé amadurece e cresce. O deserto conduz a pessoa
ao imperceptível, à incógnita das coisas, porque, somente chegando
ao real limite de si mesmo, revelará o que é o ser humano.
O deserto é o lugar da oração, da liberdade interior, da entrega,
no exercício do longo caminhar, que muitas vezes acontece sem
conhecer a meta.
Eis a grandeza de Dom Bosco. Não tem medo do deserto. Não
foge.
18 G.B. LEMOYNE, Vita di San Giovanni Bosco, vol. I - Nuova Edizione a cura di Don Angelo
Amadei, SEI, Torino 1983, p. 278.

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26
Com a ajuda da Graça, ele lê a presença de Deus no
desconhecido, na incerteza, na crítica hostil dentro da Igreja do seu
tempo, na fragilidade física e na enfermidade.
No deserto, Moisés ouviu o clamor do seu povo. No "deserto",
Dom Bosco ouviu o clamor dos seus jovens pobres.
Como Moisés, Dom Bosco é chamado por Deus a uma missão
imensa e comprometedora.
Contra toda esperança, Dom Bosco caminha. Em busca de uma
terra prometida para os jovens, faz-se peregrino.
Tudo isto requer grande confiança na promessa de Deus.
Um ninho para os passarinhos
Dom Bosco estava angustiado! Precisamente assim, conforme
narra o P. Lemoyne, referindo-se a Dom Bosco que procura um lugar
para tantos jovens que continuam a chegar.
«Servindo-se das santas indústrias acima descritas, o pequeno Oratório
festivo em 1843 ia prosperando maravilhosamente. Dom Bosco,
porém, estava um tanto angustiado por causa da estreiteza do espaço
que lhe tinha sido concedido. Por causa do número, não era mais
conveniente que os jovens ficassem na praça da igreja de São
Francisco deAssis, mesmo para uma rápida recreação...».19
Considerando que essa igreja era central, com muitas missas,
vários padres, numerosa afluência de gente... não era um lugar
adequado para essa atividade, nem ela era bem vista por boa parte
da sociedade.
«Por isso, os jovens acabavam provocando desordens e incomodando.
Além disso, os guardas da cidade não podiam tolerar um
agrupamento barulhento num dos pontos mais centrais e nobres das
residências... Por isso, Dom Bosco, antes ou depois de suas reuniões, ia
para a praça da Igreja e para os cruzamentos das ruas vizinhas...».20
19 G.B. LEMOYNE, Memorie Biografiche, vol. II, p. 135.
20 G.B. LEMOYNE, Memorie Biografiche, vol. II, p. 135s.

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27
Em meio a uma multidão de jovens, sozinho, o sonho e a
realidade se confrontaram duramente.
«Está maluco!»
Em seu caminhar, Dom Bosco deve enfrentar sozinho, com
Deus, aquele mistério que envolve a todos que percorrem o caminho
da vontade de Deus, que se manifesta lentamente, criando às vezes
incompreensões.
Verdade é que ele teve bons diretores espirituais, de modo
especial o P. José Cafasso que o acompanhou em seu caminho
espiritual. Todavia, quem pode penetrar na grandeza de seu coração
inquieto, portador de um sonho incompreensível?
Só resta caminhar no mistério, com profunda fé e confiança.
Em vez de encontrar compreensão, ou pelo menos a
possibilidade de não ser perturbado em seu caminho de busca
espiritual para realizar seu sonho, acontece precisamente o contrário.
A experiência pessoal de Dom Bosco de crer e de seguir seu
sonho deixou algumas pessoas, embora próximas dele, muito
preocupadas quanto a seu modo de interpretar a realidade a seu
redor.
Esssa atitude, considerada errada da parte de seus estreitos
colaboradores, é narrada em sua biografia pelo P. Lemoyne.
Em 1846, «quando se espalhou a voz a respeito das graves dificuldades
que se levantavam a cada passo para obstaculizar a obra de Dom
Bosco, muitos dos seus amigos, em vez de estimulá-lo a perseverar,
começaram a sugerir-lhe que abandonasse o empreendimento [...]
Alguns seus condiscípulos do seminário e do Colégio Eclesiástico
tentaram aconselhá-lo a modificar seu método de apostolado. Diziam-
lhe:
Veja, você compromete o caráter sacerdotal.
De que jeito? retrucava Dom Bosco.
Com suas extravagâncias. Você se rebaixa a tomar parte nos jogos
desses meninos que vivem nas ruas, deixa que o acompanhem com
toda essa gritaria irreverente. Jamais se viu uma coisa dessas em

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28
Turim; ela é contrária aos antigos costumes de um clero tão sério e
reservado como o nosso».21
Lemoyne, ao escrever sobre a situação psicológica de Dom
Bosco, afirma que o próprio Teólogo Borel, seu grande amigo, estava
muito preocupado, pensando até que ele sofresse de um distúrbio
mental.
«Até mesmo o incomparável Teólogo Borel, que aprovava cem por
cento suas ideias, começou a dizer-lhe na presença do P. Sebastião
Pacchiotti:
Meu caro Dom Bosco, para não corrermos o risco de perder tudo, é
melhor que tratemos de salvar ao menos uma parte. Esperemos por
tempos melhores para nossos planos. Vamos despedir os atuais
meninos do Oratório, fiquemos apenas com uns vinte dos menores.
Enquanto, em privado, cuidarmos desses poucos, o Senhor nos abrirá
os caminhos para fazer mais, providenciando-nos os meios e um local
oportuno.
Como alguém que sabe o que está fazendo, Dom Bosco respondeu:
Não, não; isso não! O Senhor na sua misericórdia começou a sua
obra e deve terminá-la. E o senhor sabe muito bem como foi difícil
afastar do mau caminho tão grande número de meninos e como eles
nos correspondem tão bem. Minha opinião é de que não convém
deixá-los novamente a si mesmos, expostos aos perigos do mundo,
com grave prejuízo para sua alma.
Sim, mas onde reuni-los?
No Oratório.
Onde está esse Oratório?
Eu o vejo já pronto: vejo uma igreja, vejo uma casa, vejo um recinto
para brincar. Isso existe e eu o vejo.
E onde estão todas essas coisas? perguntou o bom Teólogo Borel.
Não posso ainda dizer onde estão, mas existem com certeza; eu as
vejo e serão nossas».22
Esse diálogo perturba intensamente o grande amigo de Dom
Bosco, o Teólogo Borel, que a cada pergunta recebe uma resposta
21 G.B. LEMOYNE, Memorie Biografiche, vol. II, p. 408s.
22 G.B. LEMOYNE, Memorie Biografiche, vol. II, p. 409s.

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29
precisa. Diante disso, faz mais perguntas, e Dom Bosco responde a
todas elas com firmeza.
«Ao ouvir essas palavras, o Teólogo Borel se sentiu profundamente
comovido, como afirmava ele mesmo anos depois ao contar esse fato
a alguns Salesianos provectos. Aquelas afirmações lhe pareciam uma
prova evidente da demência do querido amigo e exclamou:
Meu pobre Dom Bosco! De fato está enlouquecido!
E não podendo suportar a pena imensa que experimentava em seu
coração, chegou perto dele, beijou-o e se afastou desfeito em lágrimas.
Também o P. Pachiotti olhou para ele com compaixão, dizendo:
Pobre Dom Bosco! E se retirou entristecido».23
Luzes no caminho
Diante dessas reações por parte de amigos e outras pessoas,
Dom Bosco continua seu caminho pessoal, interpretando seu sonho
à luz da fé e trabalhando para torná-lo realidade. Segue com
determinação cada indício, a fim de encontrar sinais concretos no dia
a dia que tornem factível o caminho que está percorrendo.
Preocupado e inquieto, rodeia-se de silêncio, mergulha em seu
profundo mistério e percorre, cansado e incerto, mas confiante, sua
íngreme estrada.
Trata-se de dúvidas naturais que atravessam o coração de quem
é chamado a uma grande missão em nome de Deus.
Dentro do seu próprio ser, Dom Bosco interpreta sua viagem e
as realidades que surgem a cada passo, com uma atitude de fé
persevante, com a certeza de que Deus está com ele e que deverá
continuar seu caminho, buscando interpretá-lo à luz da confiança em
Deus.
23 G.B. LEMOYNE, Memorie Biografiche, vol. II, p. 410.

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30
A enfermidade
Incompreensões, críticas, incertezas, enfermidade! Dom Bosco,
jovem padre, que carrega em si o desafio de encontrar um lugar para
seus jovens em Turim, improvisamente adoece.
Nos primeiros dias de julho de 1846, num domingo, voltando
do Oratório no Refúgio da Marquesa Barolo, desmaiou e teve que
deitar, com febre. Pela gravidade e pelo evoluir da enfermidade pode-
se pensar numa grave afecção pulmonar, talvez uma
broncopneumonia. Superada a crise, impunha-se a urgência de uma
longa convalescença em sua terra natal...
Desde Castelnuovo, Dom Bosco se mantinha em constante
contato epistolar com o Teólogo Borel. Enfim, terminada a longa
convalescença de quase quatro meses, no dia 3 de novembro de 1846,
ajeitava-se com a mãe na casa alugada em junho.
Exausto e obrigado à imobilidade, Dom Bosco, mesmo durante
sua enfermidade, não para de pensar em seus jovens: a missão não
pode ser abandonada.
O que se revelou a seu olhar fica oculto a nós. Nem se conhece
que panorama, que dramáticas experiências teve de vivenciar nesse
caminho pedregoso. Somente quem pode elevar-se acima do nível do
ser humano, até as alturas celestes, pode olhar corajosamente para
elas e enfrentá-las.
A força do alto
Apesar de todas as incertezas e dificuldades, Dom Bosco
continuou a percorrer seu caminho no silêncio interior, alimentado
unicamente pela confiança em Deus e em si mesmo. Por esse motivo
pouco escreveu a respeito de si mesmo. Não quis falar muito de sua
vida interior. O que ele escreveu e descreveu é somente uma pequena
parte do grande mosaico de sua experiência de fé.
Quanto à vida espiritual, entregou-se totalmente à guia do P.
Cafasso, que foi o primeiro a colaborar com ele. A relação de
confiança com seu diretor espiritual o ajudou no processo de
discernimento e nas decisões mais importantes em sua vida.

4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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31
Quando inicia a fundação da Congregação, reunindo o pequeno
grupo dos seus primeiros Salesianos, diante de Dom Bosco abre-se
um imenso horizonte a uma nova realidade que ele abraça
amplamente: fundar um Congregação a serviço dos jovens mais
pobres. Que empreendimento!
Somente graças à confiança e a uma vontade férrea, ele pode
mergulhar de alma e corpo nessa aventura sobrenatural que estava
totalmente para além da lógica humana. Essa confiança lhe propicia
segurança e serenidade no caminho espiritual de sacerdote e de
fundador da Congregação Salesiana.
Dom Bosco vive na confiança. Em sua relação de pai, educador
e fundador, junto com seus Salesianos e seus jovens, ele inicia um
grande movimento de educação dos jovens.
Confiar é viver o caminho evangélico do Reino de Deus,
cumprir sua vontade, vivenciar os valores do Evangelho e abraçar o
caminho da santidade. A confiança gera atitudes coerentes e claras.
Torna credível tudo o que Dom Bosco realizou. Dessa forma, ele cria
uma rede de relações baseadas na verdade, demonstrando que a
credibilidade nasce de sua continua entrega e confiança em Deus.
Esta confiança, para Dom Bosco, nasce do profundo abandono
ao projeto de Deus, na certeza de colocar sua vida a serviço de uma
missão maior do que ele.
Sua confiança abraça as realidades da vida diária, das novas
situações que surgem. No encadeamento de todas essas dificuldades,
ele experimenta na vida quotidiana a certeza de que Deus está
confirmando as obras que sua Graça opera.
Com grande sentido de concretude e uma vontade decidida a
realizar o sonho de Deus em sua vida, ele procura os jovens pelos
arredores de Turim: acolhe um, dois, depois muitos jovens pobres. A
chegada de cada um deles ao Oratório de Valdocco é uma prova da
certeza de que Deus está presente e de que sua obra em favor dos
jovens pobres e abandonados haveráde crescer desmedidamente.

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32
TERCEIRA PARTE

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33
Como um mar agitado
A constante busca de um lugar seguro para os seus jovens é
também uma constante incerteza. Sua mente e seu coração se agitam
como um mar irrequieto e um vento em redemoinho.
Em suas Memórias do Oratório, Dom Bosco começa a narrar a
seu "povo" que haveria de chegar um momento surpreendente em
sua vida. É o ano de 1841.
«Mal entrei no Colegio Eclesiástico de São Francisco, vi-me logo
cercado por um bando de meninos que me acompanhavam em ruas
e praças, ate mesmo na sacristia da igreja do instituto. Não podia,
entretanto, cuidar deles diretamente por falta de local».24
Dom Bosco começa no Colégio Eclesiástico de São Francisco
de Assis o primeiro Oratório e ali permanece, surpreendentemente,
até o ano de 1844:
«Foi essa a vida normal do Oratório por quase três anos, isto é, até
outubro de 1844. Entretanto, a Providência ia preparando novidades,
mudanças e também tribulações».25
Se, por um lado, Dom Bosco empenha por inteiro seu coração
para concretizar uma ideia de Oratório, pelo fato de padre jovem há
outras propostas de trabalho para ele:
«Nos três anos passados no Colégio fui várias vezes convidado por ele
[Teólogo Borel] a ajudar nas funções sagradas, a confessar, a pregar
com ele, de maneira que meu campo de trabalho já me era conhecido
e de alguma maneira familiar».26
Naquele mesmo ano, além da dificuldade para Dom Bosco
dedicar-se aos jovens e encontrar um lugar adequado para ele, havia
também o compromisso de responder a diversos convites e
24 Memórias do Oratório..., p. 135.
25 Memórias do Oratório..., p. 143.
26 Memórias do Oratório..., p. 146.

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34
desempenhar outras funções para o Colégio Eclesiástico. Na verdade,
Dom Bosco percebia que um tempo muito difícil logo iria começar.
Era um momento dramático para ele e para os seus jovens:
«No segundo domingo de outubro daquele ano [1844] devia anunciar
aos meninos que o Oratório ia mudar-se para Valdocco. Mas a
incerteza do lugar, dos meios, das pessoas deixava-me muito
preocupado. Na tarde anterior fui dormir com o coração inquieto. Tive
naquela noite outro sonho, que parece um apêndice do que tive nos
Becchi aos 9 anos».27
Apesar de tudo prevalece a perseverança em continuar o
caminho.
De um lugar para outro, em cada transferência de lugar, Dom
Bosco leva consigo seus jovens e algumas coisas, como um crucifixo,
material litúrgico, particularmente sua profunda tristeza de
peregrino em busca de um lugar seguro.
É peregrino quem busca com devoção algo sagrado, mais além,
como um cavaleiro em terra estrangeira que viaja à procura de Deus,
a fim de que o céu recupere suas cores.
«...Lá passamos sete meses e acreditávamos haver encontrado o
paraíso terrestre, quando nos vimos obrigados a abandonar o
acolhedor abrigo e ir à procura de outro. [...] Num domingo de julho
de 1845, pegam-se bancos, genuflexórios, candelabros, algumas
cadeiras, cruzes, quadros e quadrinhos, e cada um carregando o que
podia, em meio à algazarra, risos e mágoa, fomos, à maneira de uma
emigração popular...».28.
A respeito disso, Pedro Braido afirma:
«A abertura do Pequeno Hospital no dia primeiro de agosto de 1845,
já meses antes havia privado os capelães do uso dos locais, agora
destinados ao Oratório. Começava a peregrinação do Oratório em
lugares que se sucediam, simplesmente para os catecismos ou
27 Memórias do Oratório..., p. 146-147.
28 Memórias do Oratório..., p. 153, 155.

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35
somente para o recreio: São Pedro in Vincolis, Moinhos Dora, casa
Moretta, prado Filippi, até o último, Valdocco».29
Tudo acontece rapidamente: a chegada com os jovens a um
lugar e a esperança de permanecer ali. Todavia, muito rapidamente
também chega outra notícia, triste: não é possível permanecer ali,
por vários motivos. Outro êxodo se prepara para aquele padre
acompanhando por um barulhento grupo de jovens pelas ruas de
Turim.
Um lugar seguro para cumprir a missão
Finalmente chega a resposta certa para se contrapor a esse
grande sofrimento: um lugar seguro, um verdadeiro consolo. Trata-
se da transferência para o atual Oratório de São Francisco de Sales
em Valdocco. Dom Bosco narra esse momento decisivo e histórico,
revelando seus sentimentos repletos de emoção e esperança.
«Enquanto acontecia o que acima expus, chegou o último domingo
em que ainda me permitiam organizar o Oratório no prado (15 de
março de 1846). Eu calava, mas todos sabiam de minhas dificuldades
e espinhos. Na tarde desse dia contemplei a multidão de meninos a
brincar, e pensava na messe abundante que se ia preparando para o
sagrado ministério. Vendo-me agora tão só, falto de colaboradores,
forças esgotadas, saúde em estado deplorável, sem saber onde no
futuro reunir meus meninos, senti-me profundamente comovido.
Afastando-me um pouco, pus-me a passear sozinho, e pela primeira
vez quiçá senti-me comovido até às lágrimas. Caminhando e erguendo
os olhos ao céu, exclamei: “Meu Deus, por que não me mostrais o
lugar em que desejais que reúna esses meninos? Dai-me a conhecer
ou dizei-me o que devo fazer”. Nem bem terminei esse desabafo,
chegou um homem chamado Pancrácio Soave, que disse a gaguejar:
É verdade que está à procura de um lugar para construir um
laboratório?
Laboratório, não, Oratório.
29 PIETRO BRAIDO, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libertà, Istituto Storico
Salesiano, vol. I, LAS, Roma 2009, p. 182-183. Na realidade, o Pequeno Hospital foi aberto em 10 de
agosto de 1845.

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36
Não sei se é a mesma coisa Oratório ou laboratório, mas lugar existe,
venha ver. É propriedade do senhor José Pinardi, pessoa honesta.
Venha e fará um bom contrato. [...] No domingo seguinte, solenidade
da Páscoa, 12 de abril, levaram-se para lá todos os apetrechos da igreja
e dos jogos, e fomos tomar posse do novo local».30
Procurando um lugar para os seus jovens que aumentam cada
dia, o P. Braido diz que se evidenciam diversos momentos em que
Dom Bosco vive como peregrino:
«Para a Missa e as demais funções sagradas, Dom Bosco levava os
jovens de uma igreja para outra, dando preferência a algumas delas,
como ele mesmo narra no "Cenno Storico" [Síntese Histórica]: "Nos
dias santos, eu os levava a Sassi, às vezes a Nossa Senhora de
Campagna, outras aos Capuchinhos do Monte ou então a Superga"».31
Por essa passagem podemos deduzir também as dificuldades
que a realidade lhe impunha:
«A efêmera presença em São Pedro in Vincolis, interrompida,
segundo Dom Bosco, também pela maliciosa denúncia do capelão, o
ex-capuchinho P. José Tesio (1777-1845)».32
A incansável busca às vezes levava a opções difíceis que iam
fechando num círculo de ferro as contínuas tentativas de dispor de
um lugar estável e seguro:
«A opção exclusivamente oratoriana, de fato, vinha amadurecendo há
vários meses, também pela crescente impossibilidade de coexistência
da missão entre os jovens e o serviço de capelão no Pequeno Hospital
de Santa Filomena. Entre outras coisas, as adversidades do Oratório
itinerante coincidiram com as condições sempre mais precárias da
saúde de Dom Bosco. A marquesa Barolo em Roma para a aprovação
30 Memórias do Oratório..., p. 176-177, 180.
31 PIETRO BRAIDO, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libertà, Istituto Storico
Salesiano, Roma - Studi 20, vol. I, LAS, Roma 2009, p. 183. As pesquisas nos arquivos apuraram que
as andanças do Oratório ocorreram numa ordem cronológica diversa. Para uma compreensão mais
cuidadosa, cf. FRANCESCO MOTTO, L’Oratorio di Don Bosco presso il cimitero di S. Pietro in Torino.
Una documentata ricostruzione del noto episodio, RSS 5 [1986] p. 199-220.
32 Ibidem.

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37
de seus institutos religiosos estava-lhe próxima com sensibilidade
materna, servindo-se dos bons ofícios do Teólogo Borel, a quem
empenhava com insistência a ocupar-se da saúde do padre
castelnuovense, admitida como precária pelo próprio interessado,
devido ao excesso de trabalho. Em carta de 3 de janeiro de 1846, no
dia seguinte à Epifania, o Teólogo Borel garantia-lhe que Dom Bosco
haveria de tomar um período de reposo. Mas a permanência junto ao
amigo padre Abbondioli, pároco no subúrbio turinense de Sassi, não
resolvia o problema, pois os jovens não deixavam de ir à sua procura,
cansando seus pulmões com as confissões».33
Mas a persistência e a abnegação de Dom Bosco não conheciam
limites. As opções aconteciam também com base nas urgências dos
seus jovens, que ocupavam o primeiro lugar em seu coração. Cada
tentativa por parte da Marquesa Barolo de apropriar-se de uma
personalidade tão carismática e capaz como Dom Bosco era vã. «Era
inevitável para Dom Bosco a recisão da relação "profissional". Assim
ele teria dito à enérgica marquesa:
«Minha resposta já está pensada. A senhora tem dinheiro e com
facilidade encontrará quantos padres quiser para sua obra. O mesmo
não acontece com meus pobres meninos. Se eu me retirar agora, tudo
irá por água abaixo; por isso [...] deixarei oficialmente o cargo e me
dedicarei inteiramente ao cuidado dos meninos abandonados».34
Dom Bosco, que sentiu na pele o drama de procurar um espaço
para viver, comer... ele, que sofreu para encontrar um espaço para
dormir e estudar, é enfático, fica junto dos seus jovens que conhecem
seu drama.
Mas sua sabedoria de peregrino o coloca sempre no caminho
da busca da vontade de Deus. O sonho se realiza ao caminhar.
33 PIETRO BRAIDO, PIETRO BRAIDO, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libertà,
Istituto Storico Salesiano, Roma, vol. I, LAS, Roma 2009, p. 186-187.
34 Memórias do Oratório..., p. 173-174.

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QUARTA PARTE

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«Meu nome é João»
A dimensão de Dom Bosco como peregrino já começa na sua
infância. Na dinâmica interior da criança e do adolescente está a dura
realidade da morte e da falta do pai, que ele perde quando é ainda
menino.35
Ele está consciente da sua realidade humana e de sua história
difícil. Em seu decisivo e emocionante encontro com o P. Calosso, diz
com transparência e grande sentido da realidade e de coragem:
«Chamo-me João Bosco; meu pai morreu quando eu era criança.
Minha mãe é viúva e tem cinco bocas para alimentar. Aprendi a ler e
também a escrever um pouquinho».36
Como adolescente, Dom Bosco é um peregrino que busca um
pai, um ponto de referência espiritual para crescer e amadurecer.
De família simples e pobre, carrega consigo a experiência da
carestia, dos tempos difíceis, particularmente depois da morte do pai.
«Mas como viver, comer, pagar o aluguel e atender a tantos meninos
que a cada instante pediam pão, calçado, roupas ou camisas para
poderem ir ao trabalho? Havíamos feito trazer de casa um pouco de
vinho, farinha, feijão, trigo e coisas assim. Para enfrentar as primeiras
despesas, tinha vendido parte do campo e uma vinha.».37.
35 Cf. Memórias do Oratório..., p. 28-29.
36 Memórias do Oratório..., p. 48.
37 Memórias do Oratório..., p. 209.

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Com o chapéu na mão
Um episódio marcará de forma particular sua vida. Estamos
em fevereiro de 1828, pela manhã; as colinas estão cobertas de neve,
num dos invernos mais gelados da época. Por razão dos
desentendimentos com o meio-irmão Antônio, a pobre Mamãe
Margarida viu-se obrigada a mandar seu Joãozinho a procurar
trabalho em alguma das propriedades vizinhas. Um costume bastante
comum na época, mas não em pleno inverno, quando os trabalhos
do campo estão parados e ninguém contrata mão de obra, disponível
a baixo preço: empregados só se contratam no fim de março.
João está com treze anos e, chorando, deixa a casa onde nasceu.
Depois de vagar pelas colinas da redondeza, chega à propriedade do
casal Moglia, parentes da mãe. O diálogo é sofrido:
«Luís Moglia pergunta:
Quem é que você procura, rapaz?
Procuro Luís Moglia.
Sou eu, o que você quer?
Minha mãe me disse que viesse aqui para cuidar de suas vacas.
Pobre rapaz, eu não posso contratar você agora; estamos no inverno
e os vaqueiros são dispensados: não costumamos contratar ninguém
antes da festa da Anunciação. Tenha paciência e vá para casa.
(Chorando). Contrate-me por um pouco de tempo! Não precisa me
pagar nada.
Não quero, não; você não sabe fazer nada.
Contrate-me: eu vou me sentar aqui no chão e não saio daqui. E
dizendo isso, Joãozinho começa a recolher vimes espalhados pelo
chão, como os outros faziam.
Doroteia Moglia convenceu o marido de que, pelo menos por alguns
dias, contratasse o pobre rapaz, como se fez».38
Joãozinho ficará ali quase dois anos, como um servente modelo,
que verá aumentar seu "pagamento" até chegar a 50 liras por ano,
tão precioso era seu serviço.
38 TERESIO BOSCO, Don Bosco Storie di un prete, Elledici (Leuman-Torino), 1999, p. 44s.

5 Pages 41-50

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41
Ao acolher seus pobres jovens, chorando e perdidos, quantas
vezes terá visto a si mesmo, com o chapéu na mão e o coração ferido,
sem dinheiro, sem afetos e sem apoio, e terá voltado a chorar, sem
se deixar ver, escondendo aquelas lágrimas num sorriso acolhedor e
generoso.
Peregrino também como estudante!
Nas Memórias do Oratório narra sua dificuldade em ter que
percorrer longo trecho de estrada a pé todos os dias para ir à escola.
«A entrada para uma escola pública, com professor novo, depois dos
estudos feitos em particular, foi para mim um transtorno, pois quase
tive de começar a gramática italiana para depois passar à latina. Por
algum tempo ia todos os dias de casa à escola no povoado, mas no
rigor do inverno isso era quase impossível».39
Com muita simplicidade e honestidade, confessa que era muito
duro, quase impossível, continuar com aquelas caminhadas bastante
cansativas de ida e volta todos os dias.
«Entre idas e voltas somavam-se 20 quilômetro de estrada por dia».40
O peregrino João Bosco encontra, finalmente, uma pensão, pois
sua saúde não teria resistido a tanto esforço.
« Passei então a ser pensionista de um bom homem chamado João
Roberto, alfaiate e entusiasta do canto gregoriano e da música
vocal».41
39 Memórias do Oratório..., p. 56-57.
40 Ibidem.
41 Ibidem.

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42
Um adolescente na cidade
João tem dezesseis anos e chega a Chieri, pequena cidade perto
de Turim, a fim de estudar. Ele mesmo narra como procura um
lugar, certamente com a ajuda da Mamãe Margarida.
« Depois de tanto tempo perdido, ficou resolvido que eu iria para
Chieri, a fim de aplicar-me com seriedade ao estudo. Era o ano de
1830. Para quem foi criado na roça e só conheceu um ou outro
povoado do interior, qualquer pequena novidade causa grande
impressão. Hospedei-me na casa de uma conterrânea, Lúcia Matta,
viúva com um só filho, que se mudara para aquela cidade a fim de
assisti-lo e vigiá-lo».42
João é educado pela mãe a viver na simplicidade, com grande
fé e generosidade. Narrando sua experiência em Chieri, procura não
falar de si mesmo, do sacrifício e das incertezas que viveu naquela
cidade.
«João morou por algum tempo com certo Cavalli, que pôs à sua
disposição um canto do estábulo para passar a noite, e o obrigou a
cuidar de um jumento e dedicar-se a alguns trabalhos num seu
vinhedo não muito longe da cidade».43
Narrando o próprio êxodo em busca de um lugar para viver, é
dramática humanamente falando a situação que João Bosco deve
viver, um jovem que decididamente quer chegar ao impossível para
estudar e para ser padre. Ele é determinado e flexível; é corajoso e
humilde.
42 Memórias do Oratório..., p.58-59. Dom Bosco deveria escrever 1831. O ano escolar começava
em 1º de novembro, com um tríduo de exercícios espirituais, e se encerrava com a festa de São Luís
Gonzaga (21 de junho).
43 MARCO BAY, Giovanni Bosco a Chieri - 1831-1841, Prefazione di S.E. Mons. Carlo Chenis,
SDB, Vescovo della Diocesi di Civitavecchia, LAS, Roma 2010, p. 59.

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43
«Naquele ano, um primo e amigo da família Bosco, do mesmo
povoado de Morialdo, José Pianta, decidiu abrir uma casa de cafés e
liquores em Chieri. Margarida aproveitou a ocasião e lhe pediu para
acolher João em sua casa, e o senhor Pianta propôs ao jovem o ofício
de garçom e de responsável pelo café em sua venda».44
João Bosco aceita fazer os serviços mais simples e humildes em
troca de um lugar para poder dormir e comer.
«Esse foi um ano em que teve de suportar as maiores privações, até
mesmo uma alimentação deficiente. Diz-se que o senhor Ceppi, que
lidava com ferro em Chieri, teria insistido com o senhor Pianta para
que se apressasse a hospedar João em sua casa. Seja lá como
aconteceram as coisas, nós o encontramos na casa do primo, como
vigia noturno e respondendo por diversos trabalhos domésticos. Não
recebia pagamento, mas tinha o tempo livre para estudar. O primo
lhe dava a sopa. A mãe, como de costume, providenciava para ele pão
e carne. Um vão apertado acima do pequeno forno, construído para
cozinhar doces e ao qual se tinha acesso por uma escadinha, era o
lugar destinado para dormir. Mesmo que João não se estirasse por
completo sobre a cama, seus pés ficavam de fora do incômodo colchão
e até mesmo da abertura do vão" (MB I, 288-289)».45
Era verdadeiramente um cantinho muito estreito para dormir.
Entretanto, no coração de João Bosco vivia um sonho que contrasta
violentamente com a realidade.
A fé desse jovem peregrino o ajuda a interpretar a vida como
um longo caminhar. Em seu coração ele abriga o dom maravilhoso
e imprescindível para viver: a acolhida, o alojamento, um espaço de
hospitalidade!
44 MARCO BAY, op. cit., p. 58.
45 MARCO BAY, op. cit., p. 59.

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44
Um coração sem limites
Dom Bosco viveu profundamente a experiência do peregrino
em busca de um lugar seguro e estável, tanto psicologicamente
quanto espiritualmente.
Na prática, ele desenha um amplo mapa do seu caminho de
peregrino, indo de um lado para outro em busca da realização do
projeto com que Deus o investe.
Enquanto faz essa peregrinação de fé profunda, experimenta
duas realidades ligadas entre si: procura um lugar e, quando o
encontra, quer fazer dele um lugar de hospitalidade. É um peregrino
em busca de um lugar para viver, onde possa cuidar dos seus jovens,
onde seja possível aviar um Oratório e realizar o projeto de Deus.
Na experiência pessoal, real, cansativa, do dia a dia, entre viver
como peregrino e depois como educador que acolhe, cuida, dá
hospitalidade, Dom Bosco vive toda essa realidade a partir da sua fé,
da sua interpretação da ação de Deus que encontra na Bíblia, da
maneira como alguns personagens bíblicos (Abraão e Moisés)
viveram essa realidade.
Um lugar no coração
João Bosco, que viveu complemente a busca da hospitalidade,
torna-se ele mesmo doador de hospitalidade. Dessa experiência que
ele vive como peregrino em busca de um lugar para viver, estudar,
trabalhar e acolher seus jovens; da sua experiência de acolher os
jovens pobres que chegam a Turim em busca de trabalho, casa e pão;
de seu testemunho de peregrino que procura a Deus para realizar
um sonho..., de tudo isso nasce seu verdadeiro Credo: amar é oferecer
hospitalidade, educar é criar um ambiente de hospitalidade.
A conjuntura histórica em que vivia Dom Bosco era de miséria,
pobreza, carestia, desgraças nas famílias, instabilidade econômica e
política, migração de jovens do mundo rural em busca de trabalho
nas grandes cidades.

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45
Na periferia de Turim, Dom Bosco vive a cansativa experiência
de procurar sem parar um lugar seguro para dar hospitalidade aos
seus jovens pobres. Ali ele dá vida a uma casa de hospitalidade aberta
à acolhida, à confiança, à reciprocidade, ao amor ao dom de si. O
ambiente de Valdocco, nos inícios, é pobre de estruturas, mas rico de
hospitalidade.
Os primeiros Salesianos que crescem no Oratório de Valdocco
vivem uma vida muito simples, trabalhando, tomando conta da casa,
recebendo algum apoio e auxílio por parte dos primeiros
colaboradores. A hospitalidade é o coração de sua vida. Essa dinâmica
de um Dom Bosco peregrino é importante para compreender melhor
de que forma ele educa os Salesianos a serem missionários, a sair, a
fundar novas casas, a ser peregrinos com os jovens.
Para ele, a hospitalidade não é somente uma ação social
caritativa. Pelo contrário, seu modo de acolher revela sua
espiritualidade profundamente transformada pela experiência da
própria vida, de um jovem em busca de um lugar para viver e
estudar. Dom Bosco incorpora profundamente em sua vida e em sua
fé a experiência fundadora de ser um peregrino e um hóspede neste
mundo. Educar é dar aos jovens pobres, que também são peregrinos
na vida, hospitalidade.
Na visão bíblica, a pessoa que busca um lugar para viver é um
verdadeiro estrangeiro. O povo de Deus foi um povo estrangeiro. Os
jovens de Dom Bosco também eram "estrangeiros".
Por trás da condição de hóspede há uma imensa realidade
existencial: sentir-se estrangeiro, isto é, ter que aprender a conhecer
novas pessoas, novo lugar, novas condições de vida, adaptar-se às
novas exigências das normas do novo lugar, renunciar a algumas
coisas pessoais e, particularmente, saber deixar as coisas correr, sentir
que a vida é frágil, que dependemos dos outros...

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46
QUINTA PARTE

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47
A voz inquietadora dos jovens
A gênese da experiência de Dom Bosco como educador
praticamente nasce desta grande verdade: quem é o outro para ele?
O que significa a pessoa de um jovem pobre que o olha nos olhos?
Uma interrogação que busca um sentido, que interpreta a realidade
a partir da fé e da visão de Deus.
Quem e o que é um hóspede?
O hóspede é essencialmente um estrangeiro, aquele que vem
de fora.46
A gênese da hospitalidade bíblica se encontra na história do
povo de Deus, que deixa sua terra para entrar numa terra nova;
portanto, a condição do homem na Bíblia é a condição de estrangeiro.
«O estrangeiro na Bíblia é sobretudo uma figura antropológica».47
Na Bíblia, o estrangeiro é o órfão, a viúva, o faminto, aquele
que nada tem para vestir, o enfermo, o prisioneiro.48
O outro, na sua fraqueza, no seu silêncio, no seu nada, no seu
empobrecimento e na sua necessidade, me interroga profundamente.
«Por isso, a voz mais inquietadora é a da vítima, em quem seu silêncio
continua a interrogar para além de sua própria existência».49
No sonho dos nove anos, João Bosco se confronta quase de
forma violenta com a realidade gritante do outro: há os jovens que
brigam, que gritam palavrões, mas também que se transformam de
lobos em cordeiros.
Tocado profundamente pela realidade do outro, toda a vida de
Dom Bosco se torna uma busca do humano. Ele é um apaixonado
pela pessoa, pelo significado profundo do viver, do amor e do ser
feliz.
46 CARMINE DI SANTE, Lo straniero nella Bibbia. Saggio sull’ospi- talità, Editrice Città
Aperta, Enna 2002.
47 CARMINE DI SANTE, «Teologia biblica dell’Ospitalità. Statuto epistemologico ed etico»,
in MARCO DAL CORSO (a cura di), Teologia dell’Ospitalità, Queriniana, Brescia 2019, p. 40.
48 Cf. Mt 25,31-46.
49 CARMINE DI SANTE, «Teologia biblica», op. cit., p. 41.

5.8 Page 48

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48
Medo, jamais!
Esse encontro com a realidade, que leva Dom Bosco a se
interrogar a respeito do humano, já começa desde criança em sua
casa. Joãozinho vive ali a dura realidade da perda do pai, as
dificuldades com o irmão mais velho, a necessidade de sair de casa
para estudar.
Em sua comovente narração das Memórias do Oratório a
respeito do impacto emotivo e social vivido por ele por ocasião da
morte do pai, podemos colher sua capacidade de se situar no papel
desempenhado por sua mãe.
«[Ele] faleceu na bela idade de 34 anos, no dia 12 de maio de 1817.
Não sei o que aconteceu comigo em tão triste circunstância. Lembro
apenas, e é o primeiro fato de minha vida que guardo na memória,
que todos saíam do quarto do falecido e eu queria ficar lá a todo o
custo. "Vem, João, vem comigo", insistia minha aflita mãe. "Se papai
não vem, eu também não vou", retorqui. “Pobre filho, continuou
mamãe, vem comigo, já não tens pai"».50
Dom Bosco fala de seu choro desconsolado e das lágrimas de
sua mãe. Filho e mãe intimamente unidos numa empatia amorosa e
fiel.
«Ditas essas palavras, prorrompeu em soluços, tomou-me pela mão e
levou-me para fora, ao passo que eu chorava porque a via chorar.
Naquela idade não podia evidentemente compreender a grande
desgraça que é a perda de um pai».51
Dom Bosco vive a experiência da fragilidade humana e da vida:
a morte de um pai ainda joven, a dura realidade da perda de uma
referência afetiva para com a mãe e com os filhos, a dificuldade de
50 Memórias do Oratório..., p. 29.
51 Memórias do Oratório..., p. 29-30.

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49
uma família que de agora em diante deve tocar a própria vida sem
um chefe de família.
Dura experiência da perda!
«O acontecimento deixou a família profundamente consternada.
Deviam-se manter cinco pessoas; as colheitas do ano, nosso único
recurso, falharam por causa de terrível seca; os comestíveis chegaram
a preços fabulosos».52
Toca então à mãe assumir a direção da família. Mamãe
Margarida, mulher de grande fé, de espírito de trabalho, de sacrifício
e de aguda sensibilidade humana, abraça a nova realidade de viúva
com ternura e determinação.
Joãozinho absorve de Mamãe Margarida a sensibilidade para
com tudo o que é humano. Dela aprende a se colocar no lugar dos
outros. Não era difícil compreender o que podia significar para uma
mãe viúva assumir o cuidado de todos os filhos, sem esquecer a
maneira de administrar a dimensão emocional e material da vida.
Tanto nos semblantes dos jovens abandonados e assustados do
sonho dos 9 anos, quanto na realidade da vida de família, bem como
na sua própria experiência de órfão, Dom Bosco aprende a
importância fundamental de não ter medo, mas de procurar olhar
sem temor para o semblante e a fragilidade do outro.
Sobre esse tema, Carmine di Sante, inspirando-se em
Emmanuel Lévinas, diz que é "o outro que desafia o eu com sua
nudez e sua necessidade».53 Isto significa que a pobreza do outro me
interpela profundamente.
Usando linguagem bíblica, deve-se dizer que o outro que me
interpela é mensagem de Deus para mim. Continuando, di Sante
sublinha:
«Nessa evidente nudez, [ele] interpreta o lugar originário do Absoluto
e os sinais indeléveis de sua presença».54
52 Ibidem.
53 Para o sentido geral do texo, veja CARMINE DI SANTE, «Teologia biblica», op. cit., p. 37-
38.
54 Ibidem.

5.10 Page 50

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50
No amadurecimento do homem peregrino em busca de
hospitalidade, Dom Bosco desenvolve uma grande atitude espiritual
em busca do outro, do fraco, do pobre e do abandonado.
O encontro de Dom Bosco om o pobre e frágil Bartolomeu
Garelli é um verdadeiro arquétipo de sua pedagogia. Nesse encontro,
considerado como início do Oratório Salesiano, encontramos a
grandeza do Santo dos jovens que reconhece no pequeno Bartolomeu
Garelli o ser humano, em seu semblante o semblante de Deus, em
sua presença um peregrino em busca de casa e pão, em sua resposta
a voz de Deus. Em Bartolomeu Garelli, Dom Bosco encontra a si
mesmo, recorda sua vida de órfão, revive seu caminho de peregrino
em busca de hospitalidade.
«Dom Bosco começou a interrogá-lo assim:
Meu bom amigo, como te chamas?
Bartolomeu Garelli.
De onde és?
De Asti.
Tens pai?
Não, meu pai morreu.
E tua mãe?
Morreu também.
Quantos anos tens?
Dezesseis.
Sabes ler e escrever?
Não sei nada.
Já fizeste a primeira comunhão?
Ainda não».55
Esse encontro revela a dinâmica espiritual de Dom Bosco
peregrino: no outro, ele encontra a si mesmo: Bartolomeu é o eco do
amor do seu coração de pai. Ele vê Deus no outro! Entra na dinâmica
espiritual em que transforma o seu "eu", o seu "ser", no seu "ser para
o outro".
55 Memórias do Oratório..., p.137.

6 Pages 51-60

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51
No seu caminho espiritual, vivendo e amando os mais pobres,
Dom Bosco se dedica intensamente ao outro. Dia e noite encontramos
um Dom Bosco que busca intensa e apaixonadamente o outro.
Para Dom Bosco, educar é tomar conta do outro, de cada jovem,
especialmente do mais pobre, porque Deus habita no ser humano!
O cuidado de um pai que ama
Dom Bosco defende com todas as suas forças a dignidade dos
seus jovens pobres.
O fato de ter vivido na própria carne a fragilidade da vida,
aquilo que significa ser hóspede, leva-o a integrar profundamente em
seu ser e em sua espiritualidade o cuidado para com os outros. O
jovem pobre é um hóspede neste mundo. Para Dom Bosco, essa ética
é fundamental.
Seus escritos refletem a profunda convicção de um educador
que vê Deus nos jovens pobres. Por isso ele dizia com grande
convicção: «Basta que sejam jovens para que eu os ame».
A hospitalidade de Dom Bosco é integral: é cuidado da pessoa
em sua totalidade. Para ele, cada jovem deve ser amado porque é
filho de Deus e deve ser feliz.
Chamado por Deus para educar os jovens pobres, ele caminha
com eles em busca de um lugar seguro. Ele se oferece e se entrega
aos jovens porque são a verdadeira imagem de Deus.
Um povo ferido
Diante da realidade de uma grande perda, da busca de um
lugar para viver, a pessoa humana é livre para fazer suas opções:
enfrentar tudo para encontrar o próprio lugar no mundo ou
abandonar a realidade e fugir dela.
Na Bíblia, Deus mediante a hospitalidade educa seu povo a
experimentar a dimensão humana de forma autentica e realista.

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52
«Se Deus se revela a Israel e o escolhe como povo, é para mostrar a
esse povo e por meio desse povo à humanidade o humano como
humano hospitaleiro».56
Sobre essa base, a antropologia bíblica é construída com base
na figura do ser humano hospedado e acolhido.
Para a Bíblia, responsabilidade é cuidar do outro que se
acolheu: todo outro que, ao cruzar nosso caminho, pede solidariedade
e proximidade.
No Novo Testamento temos diversas parábolas de Jesus que
mostram como deve ser o humano hospitaleiro.
A parábola do Bom Samaritano,57 por exemplo, exprime a
importância categórica de tomar conta do outro com compaixão e
dignidade porque, no homem assaltado, ferido e abandonado habita
a presença de Deus.
O Bom Samaritano encontrou a si mesmo no outro; viveu o
amor de Deus na proximidade e na solidariedade sem limites.
O humano frágil, o semblante do jovem pobre e abandonado,
a pessoa que está com fome e busca um lugar para viver..., em tudo
isso Dom Bosco vai vendo a realização concreta do sonho dos 9 anos
e vai descobrindo o significado da segunda parte do sonho realizado
diversos anos depois. De fato, ele está em busca da realização da sua
missão que encontra significado no cuidado do outro.
De acordo com o exemplo de Jesus Bom Pastor,58 que cuida de
suas ovelhas com amor e compaixão, Dom Bosco é sensível à situação
dos jovens do seu tempo, procura o jovem, contempla seu semblante,
sente as palpitações de seu coração, busca para ele uma realização e
um lugar onde possa viver...
Dom Bosco é uma pessoa que sabe ler a realidade que o rodeia,
com grande capacidade crítica e visão de futuro. Por isso, ele observa
o contexto sociológico, cultural e político em que os jovens vivem.
Analisando o que Dom Bosco realizou, vê-se como ele sabe
desenvolver uma análise atenta dos dados demográficos juvenis. Sabe
56 CARMINE DI SANTE. Teologia dell’Ospitalità, op. cit., p. 45.
57 Cf. Lc 10,25-37.
58 Cf. Jo 10,1-21.

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53
fazer uma diagnose coerente das suas condições de vida e interpreta
essa realidade com um olhar de fé numa mais ampla visão cristã.
Ele mergulha em profundidade porque, como sacerdote, a
partir de um horizonte de fé em Deus, possui uma visão evangélica
muito clara do valor da vida, da pessoa humana, da força dos seus
talentos, da importância de promover o protagonismo dos jovens.
Atento à realidade dos jovens pobres de Turim, procura um
espaço para acolhê-los e educá-los, um lugar que lhes permita
dormir, comer, brincar, rezar, cantar e aprender uma profissão.
«Dom Bosco viveu uma típica experiência pastoral no seu primeiro
Oratório, que foi para os jovens casa que acolhe, paróquia que
evangeliza, escola que encaminha para a vida, e pátio para se
encontrarem como amigos e viverem com alegria».59
Una porta sempre aperta
A base bíblica da hospitalidade tem como ponto de partida a
consciência de que o povo de Deus não possui terra, não tem um
lugar para viver. Trata-se, portanto, de uma abordagem bíblica
antropológica: o ser humano como hóspede humano situa-se em
posição de solidariedade para com os outros.
Essa é a condição fundamental: sentir-se hóspede nos abre à
procura e ao significado do outro em nossa vida. Encontranto a nós
mesmos e a Deus, encontramos o outro. Esse caminho de saída de si
mesmo em direção ao outro constitui um percurso espiritual
importante.
Deus se revela e promete uma terra. Ao dar a terra a seu povo,
Deus o educa a viver numa recíproca fraternidade. Antes de tudo,
Deus lhe assegura categoricamente três coisas: que ama seu povo,
que lhe garante a terra prometida e que essa terra sempre pertence
a Deus. Viver a hospitalidade, portanto, é definir a identidade da
pessoa que crê em Deus, que sabe que tudo isso que possui é dom de
Deus e, precisamente por isso pertence a Ele.
59 Constituições e Regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales, art. 40.

6.4 Page 54

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54
«Mas, se minha própria identidade é hospitalidade, decorre, então, que
minha própria identidade individual, original e irrepetível, é um fato
ético: eu não sou o que sou, um dado qualquer, mas sou o que estou
disposto a me tornar na complexa relação com o outro, cuja
hospitalidade é vestígio. A nossa identidade não é um fato qualquer,
é uma tarefa moral. Viver não é um acontecimento casual, é
responder a um apelo, é precisamente abrir a porta ao hóspede,
deixar-se inquietar pela tensão entre direito e justiça, e encontrar
também na acolhida do hóspede o sentido de bênção da nossa vida».60
Na pedagogia de Deus que dialoga com seu povo, quem deve
sair e caminhar é aquele que aprende a ser hóspede na terra que
Deus lhe dá; quem a habita, portanto, é "estrangeiro".
A experiência de viver a fé como povo de Deus é sempre
dinâmica, criativa, aberta e livre. Ser estrangeiro não significa não
pertencer. Pelo contrárfio, significa ser totalmente de Deus, porque
Deus é guia, ama, se preocupa, caminha conosco.
Pondo sempre Deus no centro de todo nosso ser, o significado
de hóspede que não possui coisas materiais vê sua pertença como
um dom.
Como sabemos pela Bíblia, a idolatria foi a grande tentação do
povo de Deus. A idolatria do eu leva a uma atitude de egoísmo, de
individualismo e de indiferença para com os outros. É uma maneira
de viver que pode destruir o sentido da comunidade, de ser povo de
Deus, de fidelidade à sua palavra. O homem idólatra busca o poder
e o domínio: é individualista, sua terra é somente sua, tem medo da
vida como peregrinação e se fecha ao dom da hospitalidade. O
antídoto da idolatria é a hospitalidade!
Ligado ao egocentrismo, o povo corria o perigo de buscar
outros deuses, viver na idolatria e abandonar o verdadeiro Deus Javé.
Entre os diversos tipos de idolatria, há sempre o poder, o
dinheiro e o relativismo ético. A pedagogia de Deus propõe um
percurso totalmente diferente: viver como hóspede requer grande
60 PLACIDO SGROI, «Per un’etica come ospitalità», in MARCO DEL CORSO, Teologia
dell’Ospitalità, Queriniana, Brescia 2019, p. 84.

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55
liberdade interior, a obediência a Deus e a fidelidade a seu chamado
porque somente ele é a verdade.
Desde esse ângulo, Valdocco é a casa do humano que ama.
Na experiência educativa de Valdocco, Dom Bosco tem a ver
com o humano: para ele, cada jovem é um coração que ama e que
quer ser amado; cada menino busca um pai que possa tomar conta
dele.
Valdocco se torna a cada da hospitalidade e da caridade; casa
de acolhida, onde os jovens encontram comida, amizade, Deus e um
motivo para viver.
Somos todos hóspedes neste mundo.
Orientados por uma perspectiva bíblica,61 podemos dizer que o
povo de Deus viveu uma peregrinação numa contínua busca de um
lugar estável. Durante o caminho, Deus adota o povo como
propriedade sua, revela-se, ama e acompanha seu povo ao longo do
caminho. Nesse processo de estar sempre a caminho, evidencia-se um
aspecto fundamental da maneira como o povo de Deus vive sua
espiritualidade: o povo faz experiência da hospitalidade. É o próprio
Deus que educa seu povo a viver uma vida de fé numa contínua
experiência de abertura ao próximo, como uma verdadeira e
autêntica educação do coração.
Em primeiro lugar, Deus dá a seu povo uma terra onde possa
viver, crescer e se multiplicar. Mas há uma condição: a terra pertence
a Deus, não pertence ao povo. Nesse ponto, emerge claramente uma
exigência que todo o povo de Deus deve acolher. Uma exigência que
61 Os cinco livros do Deuteronômio narram na prática o fundamento da hospitalidade. Criando
Adão e Eva e colocando-os no jardim do Éden, Deus revela seu amor de Criador, oferece-lhes a liberdade
para crescer e se multiplicar, para conhecer a lei do bem e do mal e para saber que sua condição é a de
hóspedes. A hospitalidade, de fato, começa com a história da Criação. Essa dinâmica continua
sucessivamente nos outros quatro livros do Deuteronômio. Deus educa seu povo a viver profundamente
como hóspede em sua terra. É nessa realidade que o povo de Deus é amado e experimenta Deus que se
revela. Esses textos «são narrações unitárias e coerentes que comparecem nos cinco livros da Bíblia
(Pentateuco). É uma narração intuitiva do humano como humano que hospeda». CARMINE DI
SANTE, «Teologia Biblica», op. cit., p. 44.

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56
toca a condição humana e o modo com que as pessoas se relacionam
consigo mesmas, com os outros e com a terra.
Isso vale para todos os tempos e para cada ser humano: se a
terra não é nossa, nós todos somos hóspedes desse universo. Este é o
ponto de partida da hospitalidade. Deus cria uma aliança eterna de
amor, é fiel e nos dá tudo, mas a terra não é nossa: nós somos
"hóspedes".
A fraternidade humana nasce dessa atitude: a vida é dom. O
universo com todas as coisas criadas por Deus é dom. A gratuidade
é a expressão da liberdade de ser e compartilha os dons porque tudo
é de Deus.
Toda pessoa é sagrada
Biblicamente falando, Deus dá a terra a seu povo, mas a terra
é de Deus, não do povo! Isso significa que Deus é o Senhor de tudo
e que seus filhos e filhas são chamados a viver sobre a terra com
grande sentido de gratidão, liberdade, fraternidade e solidariedade
para com os outros.
Este é o fundamento da caridade para com os outros: somos
todos irmãos e irmãs, criados por Deus para viver neste mundo; mas
não devemos sentir-nos proprietátios das coisas, porque elas são todas
dom de Deus e tudo Lhe pertence.
Nos escritos espirituais de Dom Bosco, em seus ensinamentos,
nas próprias Constituições dos Salesianos, ele insiste sempre no fato
de que a Congregação Salesiana é um dom de Deus aos jovens.
Tudo o que somos e temos é iniciativa de Deus.
«Com sentimento de humilde gratidão cremos que a Sociedade de
São Francisco de Sales não nasceu de simples projeto humano, mas
por iniciativa de Deus. Para colaborar na salvação da juventude, "a
porção mais delicada e preciosa da sociedade humana", o Espírito
Santo, com a maternal intervenção de Maria, suscitou São João
Bosco».62
62 Constituições e Regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales, art. 1º.

6.7 Page 57

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57
Para Dom Bosco, a vida é um dom e devemos colocá-la a
serviço dos outros neste mundo, como ele dizia: «O Senhor nos
colocou no mundo para os outros».
Por trás dessa visão há uma atitude de fé pratica e convicta:
somos passageiros neste mundo. Viemos para cá para uma missão.
Tudo pertence a Deus.
Na espiritualidade de Dom Bosco, essa verdade é muito clara:
«Ele nos ama, cuida de nós, nos chama e nos acompanha neste mundo
para cumprir uma missão e nos aguarda na eternidade».63
Nós, suas criaturas, somos "hóspedes" neste mundo. Quem tiver
profunda consciência dessa realidade, aprende a amar e acolher.
Colaboradores da Criação
Dom Bosco desenvolveu uma espiritualidade cuja centralidade
é muito clara: Deus cuida, acompanha, vê, acolhe e ama.
Em todos os seus escritos há um princípio fundante: neste
mundo estamos de passagem para realizar uma missão; depois desta
peregrinação chegaremos ao paraíso. Essa é uma grande convicção,
impressa em tudo o que vive e ensina o Santo: a vida é transitória,
estamos aqui só de passagem. Por isso, é importante viver bem, na
alegria e colocar-se a serviço dos outros.
Com frequência Dom Bosco falava da abnegação, da
simplicidade, da pobreza, da fragilidade da vida. Essa condição
existencial nos coloca de frente para a fragilidade e a caducidade da
vida. Reconhecer-nos hóspedes neste mundo significa viver com
grande desapego de nós mesmos e dos outros.
63 Os ensinamentos de vida espiritual de Dom Bosco estão profundamente fundados na
espiritualidade bíblica, na doutrina e na tradição da Igreja. Cf. SÃO JOÃO BOSCO, Ensinamentos de
vida espiritual. Uma antologia. Introdução e notas por Aldo Giraudo, Editora Dom Bosco, São Paulo
2014.

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58
Um elemento que emerge da visão de ser hóspedes perante
Deus é nosso modo de ver e de relacionar-nos com os outros. Se
somos hóspedes, se não somos donos da terra, também o outro é
hóspede e se encontra na minha idêntica condição. Não sou superior
ao outro por aquilo que eu tenho, dado que não é totalmente meu.
Tudo pertence a Deus: o dom da vida, a família, a terra, a
natureza, os bens materiais, as conquistas, tudo é dom de Deus e tudo
pertence a Ele.
Esse modo de ver desperta em nós uma atitude de humildade
e de igualdade em relação aos demais. Há uma urgência de acolher
os outros: os pobres, os migrantes, os enfermos, os necessitados,
porque eles e eu somos um.
Essa atitude é um ponto de partida para uma ética social de
abertura e de compromisso para com o outro.
«Há um lugar também para ti!»
No Novo Testamento, essa dinâmica retorna porque a pessoa é
sempre a mesma em sua psicodinâmica.
Jesus, em sua pregação, exorta as pessoas a deixar as idolatrias
do poder, do dinheiro, do relativismo ético e do egocentrismo para
viver como fiéis a Deus de todo coração. As Bem-aventuranças são
verdadeiro e autêntico antídoto contra o individualismo e o egoísmo.
Jesus aplica a pedagogia de Deus de forma muito original:
somos todos peregrinos neste mundo. Dessa visão nasce uma ética
da liberdade da pessoa. A parábola do Bom Samaritano é um
arquéticpo dessa visão de Deus que se revela no outro, no mais fraco,
no estrangeiro.
Jesus, consciente de que tudo pertence a Deus, fala da
simplicidade da vida.
«Olhai os pássaros do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam
em celeiros. No entanto, vosso Pai celeste os alimenta. Será que vós
não valeis mais do que eles. Quem de vós pode, com sua preocupação,
acrescentar alguma coisa à duração de sua vida? E por que ficar
preocupados quanto ao vestuário? Aprendei dos lírios do campo, como

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59
crescem. Não trabalham, nem fiam, e, no entanto, eu vos digo, nem
Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um só dentre
eles».64
«A verdade vos fará livres»,65 disse a Jesus. E a verdade passa
por Ele, pela promessa do Pai, porque Deus revela sua Sabedoria aos
simples, aos humildes e aos pobres.
Em sua pedagogia, Deus é sempre amoroso e concreto. A vida
de fé deve ser prática, autêntico testemunho. Por isso, a visão da
hospitalidade é uma verdadeira síntese da vida de quem crê em Deus.
A hospitalidade exprime a verdadeira fé, a liberdade de viver
neste mundo sem se apegar às coisas deste mundo, de praticar a
espiritualidade da acolhida, do compartilhamento fraterno, do
cuidado dos que sofrem, de viver a vida diária como dom e
gratuidade. Isso, evidentemente, exige um empenho concreto, uma
mudança de mentalidade, um contínuo colocar-se a serviço do outro.
A identidade é um verdadeiro exercício de vida cristã. É um
modo de ser que sempre se encontra no outro, no irmão. A
fraternidade se torna, desde esse ponto de vista, uma consequência
natural do crer em Deus. Isso não significa absolutamente que a
pessoa perca sua singularidade, sua subjetividade, sua autonomia.
A experiência de fé em Deus enriquece todos esses aspectos
porque são vividos no encontro com o outro. O elemento que define
concretamente minha vida de fé é minha experiência de caridade e
de comunhão com os outros. Não posso aprender e desenvolver
minha vida de fé sem a presença do outro.
O outro, assim, se torna o meu ser em Deus.
«Somos hóspedes (host) porque somente a relação com o outro nos
liberta da prisão de uma identidade fechada e anônima e nos restitui
nossa insubstituível unicidade, cujo nome é responsabilidade. Nossa
originalidade, nossa individualidade irredutível, não nasce de um ato
de autoidentificação, mas do fato de que me é atribuída uma
responsabilidade insubstituível em relação ao outro».66
64 Mt 6,26-29.
65 Jo 8,32.
66 PLACIDO SGROI, «Per un’etica come Ospitalità», op. cit., p. 82.

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60
Como consequência dessas considerações avulta claramente a
importância e a responsabilidade do ser humano, do cristão, que se
revela na complementação humana de duas metades que se mantêm
juntas e em equilíbrio: caridade e hospitalidade, resultando uma
concepção do mundo ao mesmo tempo conforme à realidade e à
espiritualidade.

7 Pages 61-70

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7.1 Page 61

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61
SEXTA PARTE

7.2 Page 62

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62
Uma hospitalidade evangélica e educativa
A hospitalidade de Dom Bosco se manifesta em tomar conta
dos outros, em acolher um jovem órfão e em cuidar dele, a fim de
que possa desenvolver-se como pessoa, amada por Deus, com a
missão de responder ao projeto de Deus em sua vida.
Para Dom Bosco, cuidar do corpo e da alma de um jovem
estrangeiro e pobre é uma tarefa que toca o coração, isto é, o amor e
a responsabilidade para com o outro.
A hospitalidade para Dom Bosco consiste na responsabilidade
e no empenho em providenciar para os jovens os meios e os recursos
necessários para construir um lugar para acolhê-los, dar-lhes comida,
onde dormir, um espaço para jogar e divertir-se, livros para estudar,
um mestre para ensinar-lhes um ofício.
A hospitalidade se manifesta na responsabilidade social de criar
um ambiente educativo, no qual os bons cristãos e os colaboradores
se envolvem com a educação humana, cristã e profissional dos
jovens.
A hospitalidade se traduz em preparar os jovens acolhidos entre
os próprios muros a ler, escrever, aprender um ofício, entrar para a
sociedade e encontrar um trabalho para sustentar a própria vida.
Para Dom Bosco, a hospitalidade acontece também ao criar um
clima de alegria, onde os educadores são amigos dos jovens, o
relacionamento se realiza com confiança e familiaridade, onde os
jovens aprendem a tocar instrumentos musicais, a cantar, a viver a
liturgia na sua beleza e na sua grandeza espiritual.
Educar é acolher o outro com fraternidade e alegria
Hospitalidade salesiana! Em qualquer lugar que encontrarmos
esta icônica inscrição "Acolhida/Hospitalidade", em sua terminologia
direta, ela sintetiza a essência da caridade educativa de Dom Bosco.
Partindo da experiência pessoal de peregrino e de criador do
ambiente, da hospitalidade educativa, Dom Bosco, de modo genial,
cria a amizade social como base do seu sistema educativo e a

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63
consciência de que cada um de nós é dom de Deus, único, não cópia
de outro.
Somente por meio da relação é que a pessoa se desenvolve e
aprende a viver em comunidade fraterna. Desse elemento
fundamental brota o grande sentido de pôr a vida a serviço do outro.
«Eu por vós estudo, por vós trabalho, por vós vivo, por vós estou
disposto a dar a vida».67
Em nível psicológico e espiritual, podemos afirmar que Dom
Bosco, apesar de seu temperamento forte, se "esvaziava" para permitir
que o outro se tornasse parte dele. A hospitalidade para Dom Bosco
é a base do amor fraterno, da entrega ao outro, do doar-se. Seu amor
não conhece limites. Vários estudos procuraram evidenciar esse amor
incondicionado pelos jovens, o sentido pleno de acolhida da
diversidade e a ausência de julgamento prévio em relação às pessoas
com quem ele se encontrava. A alegria verdadeira nasce da
experiencia de ser para os outros.
No Oratório, embora houvesse a presença de muitíssimos
jovens, de idade, proveniencia e índole diversa, ele sabia como amar
a cada um de tal modo que cada qual se sentisse como o preferido.
Num círculo imaginário, ele sabia colher no outro o pathos
inteligível da alma. Cada um deles representava a página de um livro
diferente, porque cada ser humano é uma realidade que deve ser
acolhida.
Dom Bosco crê e ama. Ama e crê. Isso lhe confere a capacidade
de integrar de forma natural a graça de unir o que é profundamente
humano ao profundamente santo.
67 DON RUFFINO, Cronaca dell’Oratorio, ASC 110, Quaderno 5, p. 10.

7.4 Page 64

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64
«Dom Bosco nos amava de maneira única»
Um dos testemunhos mais vívidos e fortes a respeito de como
Dom Bosco amava é o do P. Paulo Albera, seu segundo sucessor.
Numa de suas cartas circulares ao Salesianos, ele descreve como
percebia o amor de Dom Bosco:
«Dom Bosco nos amava de maneira única, tipicamente sua: sentia-se
um fascínio irrestivível por ele, fascínio que as palavras não podem
exprimir ou fazer compreender a quem não teve a felicidade de
experimentá-lo».68
O P. Albera continua afirmando:
«Seu amor atraiu, conquistou e transformou os nossos corações. Ele
nos atraiu a si com a plenitude do amor sobrenatural que ardia em
seu coração e que, com suas chamas, absorveu e unificou as pequenas
cintilas do nosso amor suscitado em nossos corações pela mão de
Deus».69
A hospitalidade vivida por Dom Bosco é profundamente
assinalada por um grande amor, o amor de um pai, o amor de um
amigo, o amor que gasta a própria vida em favor dos outros.
Quando Dom Bosco, jovem sacerdote, adoeceu gravemente,
seus jovens começam uma verdadeira e autêntica novena de orações
e sacrifícios pessoais para implorar sua cura. Constatamos nesse
momento a grande expressão do amor que cura, da fidelidade
amorosa dos jovens para com Dom Bosco.
Dom Bosco fascinava seus jovens, jogava e cantava com eles,
acompanhava-os na formação, rezava com eles e criava em torno
deles um espírito de família. Por consequência, os jovens só podiam
sentir-se tocados por esse modo de ser: um sacerdote que se coloca
totalmente a seu serviço e que se diverte estando com eles.
68 PAOLO ALBERA, Lettere Circolari di D. Paolo Albera ai Salesiani, SEI, Torino 1922, p.
341.
69 Ibi, p. 342.

7.5 Page 65

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65
O amor é a lareira da casa
Na experiência de hospitalidade que Dom Bosco faz com seus
jovens, o amor é o lar que acolhe, o pão partilhado, um espaço para
morar em seu coração. Porque a hospitalidade de Dom Bosco não
consiste somente em acolher os jovens num lugar onde possam
dormir e comer.
É tudo isso, mas é muito mais: é hospitalidade do afeto de um
pai, da acolhida amorosa, do gesto de quem é fiel e que estabelece a
morada da Divina Providência no universo que se desvela.
A maneira de amar de Dom Bosco define sua capacidade de
criar uma atmosfera de hospitalidade, de preparar um terreno
melhor. Cria laços com seus jovens e abre-lhes um horizonte de
possibilidades e de crescimento para se tornarem pessoas cristãs a
serviço dos outros na sociedade.
Como um bom pastor que ama e dá sua vida pelos seus jovens
A imagem do Bom Pastor,70 que é associada a Dom Bosco como
Pai e Mestre dos jovens, exprime a verdadeira ágape do amor do
Santo pelos seus jovens.
O Salmo 23 diz que «o pastor prepara a mesa...».71 Esse rito de
acolhida manifesta o amor que se doa, que torna o outro feliz em
Deus.
Partindo de sua experiência espiritual, Dom Bosco em Valdocco
cria uma verdadeira e autêntica escola de hospitalidade, de amor
operante. Inspirado e guiado por essa visão da acolhida dos jovens na
casa salesiana, ele desenvolve nos seus escritos essa visão evangélica
do peregrino em busca de Deus, do hóspede que cria um ambiente
para acolher e amar.
70 Cf. Jo 10,11-18.
71 Sl 23 (22), 8.

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66
A pedagogia salesiana se identifica com toda sua ação e sua
ação com sua personalidade; a interioridade de Dom Bosco se
concentra definitivamente em seu coração.
«A educação é coisa do coração». Coração que ama e acolhe
como Deus acolhe.
Valdocco, uma casa hospitaleira
Dom Bosco educa os seus Salesianos e os jovens a viver à escola
da hospitalidade evangélica. Cada jovem sonha e tem o direito a uma
casa, uma escola, uma instrução, a aprender um ofício,
independentemente da própria situação social.
Para Dom Bosco, viver o Evangelho acolhendo, hospedando,
criando um lugar e um ambiente para os jovens é a grande
mensagem que ele transmite. Dom Bosco está firmemente
convencido de que todos os jovens, sobretudo os mais pobres, têm
necessidade de hospitalidade, porque ela é universal e evangélica. Os
primeiros missionários salesianos que partiam para a América
estavam profundamente imbuídos dessa visão. O carisma salesiano é
o verdadeiro alicerce na acolhida, na criação de um centro juvenil,
onde a essência da escuta se torna um modelo de ensino.
Valdocco é a casa mãe da acolhida. Nessa casa nasceu o carisma
salesiano, dom de Deus para a Igreja, dom de Deus para os jovens.
Valdocco é a fonte do carisma e a nossa opção, hoje e sempre.
Para nós, ter um profundo desejo de crescimento da nossa
identidade carismática significa voltar às raízes do espírito salesiano,
às nossas fontes salesianas, à opção Valdocco72, às nossas origens.
De Valdocco, fonte carismática de um sonho, de uma
experiência, de uma doação, caminhamos com os jovens e com os
tempos, rumo à eternidade. Valdocco é a casa do sonho: o sonho que
faz sonhar,73 hoje e amanhã.
72 PASCUAL CHÁVEZ VILLANUEVA, Il Carisma Salesiano, Rassegna CNOS, Settembre-
Dicembre 2022, pag. 39.
73 ÁNGEL FERNÁNDEZ ARTIME, Strenna 2024. «Il sogno che fa so- gnare» Un cuore che
trasforma i “lupi” in “agnelli”, Valdocco, 2023.

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67
Dom Bosco contemplou a glória de Deus e nos ensinou que
estamos neste mundo para servir aos outros.
Estamos neste mundo como hóspedes, em peregrinação rumo
a outro lugar, o céu, onde Deus é Pai e nos acolhe porque somos
hóspedes em sua Casa Eterna.

7.8 Page 68

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68
SÉTIMA PARTE

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69
O sol batendo nos olhos
Dom Bosco crê que tudo foi criado por Deus e que nós somos
suas criaturas, portanto, nada é nosso. Somos hóspedes de Deus sobre
esta terra e neste mundo.
Ele está profundamente convencido de que Deus ama cada
jovem e que cada qual é chamado a responder generosamente a este
seu dom, para se desenvolver como pessoa livre em Deus e ser feliz.
A gratuidade é dom de Deus e por isso é preciso viver com
alegria, respondendo a esse dom: fazer o próprio dever, trabalhar,
viver na alegria.
Para Dom Bosco, a vida é transitória e passa rapidamente; nós
estamos neste mundo para uma missão: devemos empenhar todo o
nosso coração e toda a nossa vida em prol das coisas de Deus, porque
tudo é transitório: lugares, pessoas, bens humanos e materiais; só
Deus permanece.
Fazer tudo para a glória de Deus!
Dom Bosco usava com frequência essa expressão: «Fazer tudo
para a glória de Deus».
Na grande visão de construção da bsasílica de Maria
Auxiliadora, sua convicção de que a basílica seria para a glória de
Deus era o fruto de um imaginário muito forte.
Quando se fala de espiritualidade de Dom Bosco, muitos
estudiosos do Santo dos jovens procuram manter um estreito liame
entre o profundamente humano e o profundamento santo. O
conhecimento autêntico de sua santidade conduz diretamente ao
coração.
Ele viveu sua espiritualidade na vida diária, valendo-se de
orações simples e populares, experimentando o valor da alegria como
expressão de santidade.
Uma descrição muito realista da santidade de Dom Bosco foi
feita por D. Carlos Chenis:

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70
«Dom Bosco praticou o "martírio da ferialidade", construindo a própria
santidade, etapa por etapa, entre muitas adversidades humanas e
abundantes auxílios sobrenaturais. Santidade que não foi improvisada,
mas construída dia a dia com constância camponesa. Nem o martírio
de sangue se improvisa. É somente o êxito de um martírio já
celebrado com a própria existência na caridade para com Deus e para
com o próximo».74
Dom Bosco, como peregrino de Deus, viveu concretamente o
que Jesus ensinou quanto ao critério para a salvação de um crente:
«Pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede,
e me destes de beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa;
estava nu, e me vestistes; doente e cuidastes de mim; na prisão, e
viestes a mim».75
Sua espiritualidade foi amorosa, acolhedora e concreta!
A santidade de Dom Bosco
Há diversos estudos sobre a santidade de Dom Bosco.76 Não é o
caso de entrarmos aqui em questões teológicas e canônicas sobre a
santidade de Dom Bosco, mas gostaria de sublinhar alguns aspectos
importantes da santidade à luz do que refletimos nestas páginas.
Dom Bosco, peregrino, na sua busca de Deus e da sua glória,
faz a experiência humana e espiritual de ser hóspede e depois dá
início a uma Congregação para hospedar os jovens de forma plena.
Falamos da santidade de Dom Bosco, considerando sua
experiência de criança que carrega um sonho no coração, estuda,
vive, sofre e ama para realizá-lo; sua contínua busca, como peregrino
da terra prometida de Valdocco; a criação de uma espiritualidade da
74 MARCO BAY, Giovanni Bosco a Chieri, op. cit, pag. 7.
75 Mt 25,35-36.
76 Como exemplo recordamos: ANDREA BOZZOLO. La Santità di Don Bosco: ermeneutica
teologica delle deposizioni nei processi di beatificazione e canonizzazione, LAS, Roma 2015; TERESIO
BOSCO, Don Bosco visto da vicino, Elledici, Leumann-Torino 1996.

8 Pages 71-80

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8.1 Page 71

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71
acolhida e da hospitalidade para seus jovens pobres; sua santidade
vivida e testemunhada.
Sendo assim, aqui falamos da santidade de Dom Bosco a partir
de sua fé em Deus, como peregrino, hóspede e santo, que fez da sua
hospitalidade para com os mais pobres a expressão mais significativa
de sua santidade.
Dom Bosco viveu sua espiritualidade com um grande sentido
de Igreja. Viveu na Igreja, fiel à doutrina e aos ensinamentos da
Igreja.
Por diversos estudos sobre a santidade de Dom Bosco sabemos
que foi homem de profunda vida de oração, de intenso trabalho
pastoral, de desinteressado serviço aos outros.77
Os raios de sua luz
Dom Bosco foi um homem de Igreja!
Sua santidade foi reconhecida pela Igreja! Fundamentalmente,
a santidade é um dom para uma pessoa que crê em Deus, vive e
pratica a fé, a esperança e a caridade.
A Constituição Dogmática Lumen Gentiumdo Concílio
Vaticano II nos oferece a teologia da Igreja quanto à santidade: a
vocação universal à santidade é fundamental para a vida e a missão
de toda a Igreja.
O ponto central da santidade consiste na perfeição da caridade,
isto é, na expressão mais profunda e mais verdadeira do mistério de
amor e de fé, vivido no coração de uma pessoa. É a livre resposta de
fé de uma pessoa que ama a Deus com todo seu ser e procura viver
esse dom a serviço dos outros.
A santidade de Dom Bosco foi profundamente vivida na graça
de Deus, na resposta ao dom do Espírito Santo em sua vida, na
experiência do mistério da Cruz e da Ressurreição de Cristo, em sua
imensa caridade para com os mais pobres, no seu grande amor a
77 Cf. EUGENIO CERIA, Don Bosco con Dio, SEI, Torino 1929.

8.2 Page 72

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72
Maria e à Igreja. «A santidade é caracterizada como perfeição da
caridade».78
O jovem padre, nascido nos Becchi, vive originalmente a
santidade com seus jovens e, em Valdocco, infunde um espírito de
vida e de ação enraizado no Evangelho, que se torna em seguida
espiritualidade e pedagogia salesiana.
Esse dom original da santidade de Dom Bosco é um dom para
a Igreja e para o mundo.79
A santidade: Dom Bosco viveu-a ao longo de toda sua vida; foi
construída ao longo do caminho de fé que ele percorreru, conforme
sua maneira de responder aos sinais de Deus, de acordo com seu
carisma, de sua cultura. Podemos dizer, conforme sua identidade de
camponês, de homem simples, de artista, de comunicador e de
fundador.
Dom Bosco viveu um dom divino, encarnado em sua vida e em
sua realidade pessoal.
Dom Bosco recebeu de Deus, mediante o Espírito Santo, o dom
do "carisma salesiano". Por esse motivo, para compreender a
santidade de Dom Bosco no contexto do imenso e rico mosaico dos
Santos, é importante sublinhar o dom recebido como Santo fundador.
A santidade de Dom Bosco, reconhecida pel Igreja, é um dom
maravilhoso, um atestado oficial de suas virtudes, do carisma
salesiano e de toda a Família Salesiana. Essa santidade foi
testemunhada por pessoas que conheceram Dom Bosco.
78 CONCILIO ECUMENICO VATICANO II, Lumen Gentium, Constituição Dogmtica sobre a
Igreja, 1964, n. 39.
79 Sobre esta originalidade de santidade de uma pessoa é interessante a reflexão de Andrea
Bozzolo: «Depois de lembrar a dimensão objetiva da santidade, convém recordar que ela possui uma
infinidade de cores e de extraordinários matizes, habita os tempos, os lugares e as experiências mais
diversas, apresenta-se cada vez com a audácia criativa do amor, fora de toda uniformidade achatada e
repetitiva. Se, de fato, o poder do mal opera uma espécie de massificação por baixo, envolvendo tudo
numa única nuvem escura, o poder do Espírito faz resplandecer com infinitas variantes cromáticas e
representativas os raios da sua luz». ANDREA BOZZOLO, La Santità di Don Bosco, op. cit., pag. 13.

8.3 Page 73

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73
Até o último respiro
Dom Bosco é o Santo da caridade pastoral. A leitura de sua vida
apostólica revela claramente que ele se doou completamente a seus
jovens.
Em Valdocco, Dom Bosco viveu uma experiência de santidade
com o seu coração de Bom Pastor. Dom Bosco acolhe, ama, prepara
a mesa, a comida, sabe ouvir suas ovelhas, cuida dos jovens
abandonados, aponta o bom caminho, vive intensamente a alegria.
A santidade de Dom Bosco está diretamente ligada ao cuidado
dos outros, vivendo esse caminho na completa entrega a Deus.
Num ambiente em que os jovens experimentavam a vida cristã
na simplicidade, eles tinham a possibilidade de viver a devoção à
Eucaristia, praticar o sacramento da Reconciliação, crescer na
devoção a Nossa Senhora e a São Francisco de Sales.
A Igreja ensina que a santidade é sobretudo resposta ao dom
do amor de Deus. Não é uma conquista pessoal. Não é um empenho
moral categórico. Pelo contrário, é uma resposta ao dom do amor de
Deus, de sua Graça, vivida na fé, na esperança e na caridade.
Dom Bosco amava profundamente Jesus Cristo. Seguiu-o e deu
a vida por ele. Carregou em sua vida o mistério da Cruz de Cristo.
Foi o servo bom que, até o fim, tudo ofereceu por amor a Ele através
do seu amor e sua doação aos jovens.
Dom Bosco viveu e participou, em sua fé, do mistério da Vida,
Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, de sua Redenção. Sua
santidade é a expressão de sua vida vivida no mistério do amor de
Cristo Redentor.
A expressão de Dom Bosco em relação ao seu amor aos jovens
nos mostra a profundidade e a verdade de sua entrega a Deus na
pessoa dos jovens.
Essa santidade fascina os seus Salesianos e os seus jovens. É
uma santidade do quotidiano. Ela amadurece no seu modo de se
relacionar, de educar, de tomar decisões difíceis, de abandonar-se à
Divina Providência, buscando a glória de Deus.

8.4 Page 74

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74
Dom Bosco viveu a santidade em casa com os seus jovens, nas
atividades diárias do Oratório, nas suas viagens, nos seus escritos, em
seu imenso trabalho de fundação da Congregação Salesiana.
Dom Bosco viveu uma santidade simples, prática, profunda e
alegre. Por isso, deixou marcas indeléveis em todos: desde o P. Rua,
seu sucessor, até os jovens do Oratório.
A santidade como vivência da caridade é a expressão madura e
o elemento visível e concreto de uma vida de fé e de esperança.
A caridade é o fruto da santidade para a riqueza da vida da
Igreja.

8.5 Page 75

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75
OITAVA PARTE

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76
«Nós o conhecemos...»
Grande número de Salesianos, jovens e leigos conheceram
Dom Bosco de perto: puderam conferir seu modo de ser, de viver, de
rezar, de amar, de educar, de despender a vida a serviço dos seus
jovens.
Sem dúvida, todos tinham alguma coisa para contar a respeito
da santidade de Dom Bosco. Refiro aqui alguns testemunhos do
processo de Canonização de Dom Bosco, tais como são narrados pelo
P. Teresio Bosco.80
O bispo D. João Batista Bertagna observa que a vida em Deus
era o centro da vida do Santo:
«Dom Bosco, em qualquer circunstância, parecia não saber falar senão
de coisas espirituais e da glória de Deus».81
O senhor João Villa, confeiteiro, que certamente experimentou
o amor paternal de Dom Bosco, recorda que...
«...o método de educação de Dom Bosco era intensamente paterno.
Em síntese, era um pai amoroso em meio a seus filhos».82
Logo em seguida, com simplicidade, ele cita um seu
companheiro que conheceu Dom Bosco:
«Todos sabiam que ele caminhava na presença de Deus. Um colega
meu me disse um dia que, ao observar Dom Bosco em seu
comportamento exterior, não se podia negar que ele estivesse, por
assim dizer, sempre na presença de Deus».83
João Bisio, que entrou para o Oratório com 26 anos e que se
tornou depois comerciante, esteve com Dom Bosco por sete anos.
Declarou que devia tudo ao Santo, e falando do paraíso, dizia:
80 Cf. TERESIO BOSCO, Don Bosco visto da vicino, Elledici, Leumann-Torino 1996.
81 Ibi, p. 52.
82 Ibi, p. 59.
83 Ibi, p. 60.

8.7 Page 77

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77
«Ouvi-o muitas vezes dizer: "Que alegria quando estivermos todos no
paraíso". Ele me dirigiu espiritualmente por onze anos e, se
atualmente sou o que sou, quanto à alma e à posição social, devo tudo
a Dom Bosco».84
Um camponês, Jorge Moglia, encontrando-se com Dom Bosco
pela última vez, testemunhou com muita simplicidade como o Santo
confiava tudo a Deus:
«Dom Bosco morreu poucos anos atrás no Oratório de Valdocco. Eu
o vi alguns meses antes. Encontrei-o sentado numa poltrona, sem
forças, sofrendo, mas jovial. Perguntando-lhe como estava, ele me
disse: "Estamos nas mãos de Deus"».85
D. João Cagliero, bispo e vigário apostólico na Patagônia, em
seu testamento testemunha a confiança de Dom Bosco na Divina
Providência:
«Nos 35 anos em que vivi a seu lado, não recordo tê-lo visto um
momento sequer desanimado, aborrecido ou inquieto por causa das
dívidas de que muitas vezes estava sobrecarregado. Com frequência
dizia: "A DivinaProvidência é grande, e assim como pensa nos
passarinhos do ar, pensará também nos meus jovens"».86
Miguel Rua, sacerdote salesiano, sucessor de Dom Bosco,
testemunhou a maneira de Dom Bosco contemplar a Deus.
«Tarde da noite, acompanhando-o ao repouso, parava a contemplar o
céu estrelado e, esquecido de seu cansaço, nos entretinha a discorrer
sobre a imensidade, a onipotência e a sabedoria divinas. Às vezes,
viajando pelo interior, nos fazia observar a beleza dos campos, dos
prados, a abundância dos frutos, e nos falava da bondade e providência
de Deus».87
84 Ibi, p. 63
85 Ibi, p. 35
86 Ibi, p. 125.
87 Ibi, p. 168.

8.8 Page 78

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78
Uma contribuição decisiva para a causa de Dom Bosco foi a do
P. Felipe Rinaldi, o qual, em 29 de setembro de 1926, escrevendo ao
Cardeal Prefeito da Congregação dos Ritos, testemunhava, entre
outras coisas:
«E aqui, Eminência, permita-me acrescentar minha íntima convicção
de que o Venerável foi realmente um homem de Deus,
continuamente unido a Deus na oração».88
O P. J. B. Lemoyne, o primeiro grande biógrafo de Dom Bosco,
escreve:
«O poder divino que irrompe silenciosamente e quase ocultamente na
vida de Dom Bosco é tal que nem todos percebem. Ele manifestava o
extraordinário com tanta simplicidade que parecia ter muito menos
esplendor, ser menos estranho à nossa pobre natureza».89
Esses testemunhos para a canonização de Dom Bosco,
exprimem uma santidade vivida e compartilhada com as pessoas.
Dom Bosco era muito simples, transparente e concreto em seu modo
de viver a fé a serviço dos outros.
As afirmações das pessoas que conheceram Dom Bosco
confirmam como ele percorreu um caminho de santidade através de
sua peregrinação pessoal, de seu modo de viver a fé como bom
samaritano que procura os jovens perdidos e que os acolhe mediante
sua hospitalidade.
Desde o sonho dos 9 anos até o fim de sua vida, Dom Bosco
caminhou com os pés no chão, com o coração em Deus e com seus
jovens. Caminhava contemplando o semblante de cada pessoa e
contemplando o semblante de Deus.
Nas Constituições Salesianas lemos um artigo precioso que
sintetiza quem foi Dom Bosco:
88 EUGENIO CERIA, Don Bosco con Dio, op.cit., p. 144.
89 G. B. LEMOYNE, Memorie Biografiche, op. cit., vol II, p. 157.

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«Profundamente homem, rico das vitudes do seu povo,era aberto às
realidades terrenas; profundamente homem de Deus, cheio dos dons
do Espírito Santo, vivia "como se visse o invisível"».90
Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer...
«Naquela manhã, Dom Bosco quis descer para a igreja para celebrar
no altar de Maria Auxiliadora. Mais de quinze vezes, durante o
Sacrifício Divino, parou, dominado por forte comoção e derramando
lágrimas... [...] "Eu tinha diante de meus olhos de forma muito viva a
cena de quando, em torno dos dez anos, sonhei a respeito da
Congregação. Eu via de verdade e ouvia mamãe e meus irmãos
discutirem a respeito do sonho... [...] Então Nossa Senhora lhe tinha
dito: "A seu tempo tudo compreenderás"».91
Temos pouquíssimas informações sobre a última celebração
eucarística de Dom Bosco em Roma, na basílica do Sagrado Coração,
em 1887. O que de fato aconteceu naquelas interrupções, marcadas
por um pranto incontido, não sabemos. Sem dúvida, aquele momento
representa um liame fundamental entre o passado e o futuro. Um
liame temporal liga o sonho dos 9 anos ao sonho seguinte, por
ocasião dos 29 anos. Dom Bosco interrompe a Santa Missa por mais
de quinze vezes; não conseguindo prosseguir, tomado pela comoção.
O importante é seu silencio que, em sua invisível gestualidade,
fala alto, exprimindo o projeto que Deus confiou a esse Dom Bosco
peregrino, que tanto vagou e lutou, que fundou uma Congregçaão,
construiu igrejas e casas, elaborou uma pedagogia para os jovens
abandonados.
Finalmente, o peregrino de Deus, como Moisés, contempla a
glória de Deus no deserto que ele percorreu. Aquele jovem, que
buscava hospitalidade para comer e dormir, foi o primeiro hóspede
de Valdocco. Nesse lugar germinou a semente da Obra de Dom
Bosco, que crescerá no mundo todo.
Aquele momendo da Eucaristia tocou-o profundamente. Era
para ele um momeno especial de agradecimento, de glória dada a
90 Constituições e Regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales, art. 21.
91 EUGENIO CERIA, Memorie Biografiche, op. cit., vol. XVIII, p. 340-341.

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Deus, que invade todo seu ser, porque tudo o que ele realizou é fruto
de uma vida vivida para o amor: de seu amor despendido em favor
do outro.
Recorda, chora e agradece. É um momento em que Dom Bosco
é tomado por uma multidão de sentimentos que enchem de
significado esse caminho que, em meio a múltiplas e espinhosas
dificuldades, o convida à presença de Deus.
Deus assegura para seus filhos esses momentos de testemunho
confortador: a santidade é um caminho em subida que deve ser
percorrido decididamente nesta terra: nisso tudo, Dom Bosco é um
mestre de vida.
«Ela se punha adiante...»
A presença da "senhora" é uma constante e um ponto de
referência central no sonho. No segundo sonho, Dom Bosco narra:
«Ela se punha adiante...». É interessante observar como "Ela" guia,
aponta a direção, encoraja... Dom Bosco confessa que,
«oprimido pelo cansaço, queria sentar-me à beira de uma estrada
próxima... mas a pastorinha me convidou a continuar o caminho...».92
O caminho levará a um lugar onde há um amplo pátio com
um pórtico em redor, onde ele via uma igreja. As imagens se
entrelaçam e formam uma passagem impressionante.
«Percorrido ainda um breve trecho de caminho, eu me encontrei no
meio de amplo pátio, com pórticos em torno dele, em cuja
extremidade havia uma igreja».93
É interessante observar que, logo após ter narrado a respeito do
lugar onde havia uma igreja, Dom Bosco fala de forma
surpreendente da transformação de um grande número de animais
em cordeiros.
92 Memórias do Oratório..., p. 147.
93 Ibidem.

9 Pages 81-90

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81
Essa transformação é uma passagem extremamente importante
para Dom Bosco, precisamente porque ali está a intervenção de Deus
e de Maria na vida dos jovens. Ele integra profundamente na vida e
na espiritualidade esta verdade: Deus age por primeiro. Ela, a
pastorinha, o quer.
«Então percebi que quatro quintos daqueles animais se tinham
transformado em cordeiros. Seu número depois aumentou
enormemente. Mas eles ficavam muito pouco tempo, e logo
partiam».94
Desde seu sonho dos 9 anos até o sonho feito como jovem padre
em Turim, ao longo de todos os anos de apostolado como educador
e fundador, Dom Bosco foi sempre um homem inteiramente
mariano. A expressão "Totus Tuus, ó Maria", é muito adequada para
definir quem era Dom Bosco.
Dom Bosco é um homem mariano dia e noite: reza, medita,
ama, confia e dedica tudo a Ela, a pastorinha do seu sonho. Ela é
Aquela que o guia no caminho sacerdotal, Aquela que é sua
Auxiliadora, a terna Mãe que ele considera como a verdadeira
Fundadora da Congregação Salesiana.
«Foi Ela quem tudo fez»
A santidade de Dom Bosco é profundamente assinalada por
uma genuína e forte devoção mariana. Seu amor por Maria, que
começou na infância, amadureceu e cresceu até seu último
momento, na hora de sua morte.
No segundo sonho, o Santo tem uma visão da igreja de Maria
Auxiliadora, vinte anos antes de sua construção. Como sabemos,
Dom Bosco trabalhou com grande empenho e sacrifício para
constrtuir essa basílica dedicada a Maria, «Aquela que tudo fez».
Maria é uma guia para Dom Bosco. É Mãe e Mestra. É uma
referência afetiva e espiritual, constante e rica de sabedoria. Maria,
94 Ibidem.

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Aquela que lhe apareceu no sonho aos 9 anos estará sempre com ele,
jamais o abandonará, para guiá-lo e ajudá-lo a caminhar.
Nos momentos escuros, nas horas do desconforto, Maria
sempre esteve presente como Mãe: Aquela que gera a vida e que
permanecerá para sempre como liame ancestral e intimamente
profundo, que, entre o finito e o infinito, dá origem ao mistério da
sua e da nossa existência.
A devoção mariana de Dom Bosco se revela em sua vida, em
seus escritos, em sua pedagogia educativa, em suas mensagens aos
colaboradores, praticamente em todo seu ser. A expressão «Foi Ela
quem tudo fez», era para Dom Bosco uma profunda convicção de fé.
Na construção da basílica de Maria Auxiliadora, Dom Bosco
empenhou todo o seu grande amor pela Virgem Maria, toda sua
gratidão que, pouco a pouco, assinala a passagem entre o invisível e
a alma, entre o espírito humano e a certeza da misericórdia divina.
Por tudo isso, reconhecemos em Dom Bosco sua autenticidade,
o inexaurível exemplo de quem, ao ver o outro, soube exprimir a
pureza do amor operante.
O dom do tempo
Certamente com muita comoção e grande gratidão, Dom Bosco
escreve a seguinte passagem do seu sonho dos 9 anos:
«Neste ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi que falassem
de maneira que pudesse compreender, porque não sabia o que
significava tudo aquilo. A senhora descansou a mão em minha cabeça,
dizendo: “A seu tempo tudo compreenderás”».95
Memória emocionante do sonho dos 9 anos, que se realizou no
tempo de sua vida como peregrino, em busca da realização do plano
de Deus para ele.
Profecia potente, nascida no coração e na alma de João Bosco,
que seguiu seu caminho como Moisés para encontrar a "Terra
Prometida" de Valdocco.
95 Memórias do Oratório..., p. 34-35.

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Casa fraterna, casa de acolhida, educação e festa em Deus: os
jovens cantarão o dom de um pai que caminha com eles.
Esperança alegre que germina da santidade de Dom Bosco e se
difunde por tudo o mundo. Santidade luminosa de quem, do início
ao fim da vida, preocurou realizar os planos de Deus.
«Tudo está consumado!»
Uma luz irrompe do alto: é a glória do céu a iluminar o infinito;
dois olhos são muito pouco para compreender o universo que se
desvela:
«Naquela manhã, Dom Bosco quis descer para a igreja para celebrar
no altar de Maria Auxiliadora. Mais de quinze vezes, durante o
Sacrifício Divino, parou, dominado por forte comoção e derramando
lágrimas...».96
Quando o secretário lhe pergunta por que estava tão
emocionado durante a celebração da Missa, o Santo fez uma
revelação maravilhosa, expressão de seu grande coração mariano:
«Eu tinha diante de meus olhos de forma muito viva a cena de
quando, em torno dos dez anos, sonhei a respeito da Congregação. Eu
via de verdade e ouvia mamãe e meus irmãos discutirem a respeito
do sonho... [...] Então Nossa Senhora lhe tinha dito: "A seu tempo tudo
compreenderás"».97
Ninguém conhece o profundo silêncio, as lágrimas e a paz de
Dom Bosco na intensa liturgia daquela manhã. Somente então, nas
dobras da alma, um mar sereno finalmente cobria o longo tempo
passado a fazer, a criar, a pensar. Tudo agora estava ao alcance da
mão.
Sim, é preciso um olhar muito límpido e claro para enxergar a
luz mortiça de quem sabe que caminha rente ao chão. Agora Dom
Bosco estava próximo ao pulsar que vibra nas profundidades do ser.
96 EUGENIO CERIA, Memorie Biografiche, op. cit., vol. XVIII, p. 340-341.
97 Ibidem.

9.4 Page 84

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84
Passo a passo, o significado ia tomando forma e as imagens se
tornavam verdadeiras.
O sonho numa noite de outubro de 1844, no qual tinha
empenhado toda uma vida para sua realização, agora era tangível
como o Corpo de Cristo naquela última Eucaristia.
O Corpo era o pão doado, como todo o amor aos jovens era a
felicidade de ter possuído um espaço para poder dar assistência ao
outro.
No caminho que nós, hoje, fazemos com Dom Bosco e os
jovens, possa ressoar a voz profunda em cada um de nós: "Como se
víssimos o invisível".

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85
BIBLIOGRAFIA
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TERESIO BOSCO, Don Bosco visto da vicino, Elledici, Leumann-Torino 1996.

9.6 Page 86

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86
SUMÁRIO
Prefácio.................................................................................................................... 02
Interpretar um sonho, hoje.......................................................................... 06
Primeira Parte
Dom Bosco, padre novo, revive o sonho dos nove anos............. 14
Os bandos dos desoredeiros......................................................................... 14
Lobos e cordeiros............................................................................................... 15
O sonho do peregrino...................................................................................... 15
Uma estrada no deserto.................................................................................. 16
A Pastorinha imperiosa................................................................................... 17
Impossível... Maravilhoso................................................................................ 18
Quanto pesa uum sonho?............................................................................... 19
A noite clara como o dia................................................................................. 19
O segredo do futuro............................................................................................ 20
Inspirado pelo invisível...................................................................................... 21
Peregrino solitário da Graça............................................................................ 21
Segunda Parte
Vá! O caminho será revelado a seu tempo............................................... 24
O que o deserto ensina......................................................................................... 25
Um ninho para os passarinhos......................................................................... 26
«Está maluco!»............................................................................................................ 27
Luzes no caminho..................................................................................................... 29
A enfermidade............................................................................................................ 30
A força do alto .......................................................................................................... 30
Terceira Parte
Como um mar agitado.......................................................................................... 33
Um lugar seguro e a missão confiada.......................................................... 35
Quarta Parte
«Meu nome é João».................................................................................................. 39
Com o chapéu na mão .......................................................................................... 40
Peregrino também como estudante!............................................................... 41
Um adolescente na cidade ....................................................................................42
Um coração sem limites......................................................................................... 44
Um lugar no coração................................................................................................ 44
Quinta Parte
A voz inquietante dos jovens................................................................................ 47
Medo, jamais!................................................................................................................... 48

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87
Um cuidado de um pai que ama .......................................................................... 51
Um povo ferido ................................................................................................................ 51
Uma porta sempre aberta .......................................................................................... 53
Somos todos hóspedes neste mundo .................................................................... 55
Toda pessoa é sagrada ................................................................................................... 56
Colaboradores da Criação ............................................................................................ 57
«Há um lugar também para ti!» ............................................................................ 58
Sexta Parte
Uma hospitalidade evangélica e educativa ......................................................... 62
Educar é acolher o outro com alegria e fraternidade ................................... 62
«Dom Bosco nos amava de maneira única» ........................................................ 64
O amor é a lareia da casa ................................................................................................ 65
Como um bom pastor que ama e dá sua vida pelos seus jovens ............. 65
Valdocco, uma casa hospitaleira .................................................................................. .66
Sétima Parte
O sol batendo nos olhos ...................................................................................................... 69
Fazer tudo para a glória de Deus! .................................................................................. 69
A santidade de Dom Bosco ................................................................................................. 71
Os raios de sua luz .................................................................................................................... 71
Até o último respiro ................................................................................................................. 73
Oitava Parte
«Nós o conhecemos...» ............................................................................................................. 76
Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer........................................................ 79
«Ela se punha à frente...» ........................................................................................................ 80
«Foi Ela quem tudo fez» .......................................................................................................... 81
O dom do tempo ........................................................................................................................... 82
«Tudo está consumado»............................................................................................................. 83
Bibliografia ....................................................................................................................................... 85

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88
O autor
Gildásio Mendes dos Santos é sacerdote salesiano, nascido em Conceição
da Barra, Espírito Santo, Brasil. Estudou filosofia e teologia em São Paulo, e
comunicação social em Roma. Obteve mestrado e doutorado em Realidade
Virtual e Mídias Digitais pelo Departamento de Telecomunicações da Michigan
State University e da Wayne State University, Michigan, USA. É autor de 23
livros em português, inglês e italiano, e de artigos científicos, além de docente
e pesquisador na área das mídias digitais, redes e interações humanas. É
estudioso e pesquisador em relações humanas e mídias digitais.
Em 2020 foi eleito Conselheiro Mundial para a Comunicação Social dos
Salesianos. Atualmente reside em Roma, na sede da Congregação Salesiana.
Ficha Técnica:
Texto original: Come se vedesse l’invisibile
Editora Elledici Torino Itália 2024
Tradução do italiano para o português: Don Hilário Moser SDB Agosto - 2024