A gruta do Natal, onde o C%C3%A9u encontra a terra


A gruta do Natal, onde o C%C3%A9u encontra a terra

1 Page 1

▲torna in alto
⏱️ Tempo de leitura: 4 min.
O mistério do Natal começa com um escândalo de amor: o Grande que se faz pequeno. Não
é uma imagem poética, mas a realidade mais explosiva da história humana.
Deus, o Infinito, escolhe tornar-se finito; o Onipotente opta pela fragilidade de um recém-
nascido que ainda não sabe falar, andar ou se defender. É a pura gratuidade que se
manifesta, um dom que não pede nada em troca, que não impõe condições de acesso.
1. Reconhecer a gratuidade: Deus vem sem condições
A gruta de Belém é a encruzilhada humana mais humilde que se possa imaginar. Não um
palácio, não um templo majestoso, nem mesmo uma casa digna. Uma gruta, um abrigo para
animais, onde o frio penetra e o cheiro é de terra e palha. Aqui não há barreiras de entrada,
não é necessário convite, não se exige roupa especial. A porta está aberta a todos: aos
pastores com seus mantos gastos, aos pobres, aos excluídos, àqueles que não têm nada a
oferecer senão sua humanidade ferida.
São Paulo nos lembra com palavras que atravessam os séculos: assumindo a condição de
servo (Fl 2,7). O Criador do universo despe-se de sua glória, renuncia às suas prerrogativas
divinas, para vestir as vestes do servo. Não vem como conquistador, nem como juiz severo
que exige prestação de contas. Vem como aquele que serve, como quem se coloca no último
lugar, como quem lava os pés antes mesmo de ensinar a caminhar.
Essa gratuidade nos interpela profundamente. Num mundo onde tudo tem preço, onde toda
relação parece baseada numa troca, onde o amor muitas vezes se torna condicional, o Natal
nos lembra que existe um dom completamente gratuito. Reconhecer essa gratuidade
significa aceitar ser amado sem méritos, ser procurado quando ainda estamos distantes, ser
desejado quando nos sentimos indignos.
2. Interpretar a proximidade: Deus entra na nossa história
O segundo movimento do Natal é o da proximidade radical. Deus não observa a história
humana de longe, como um espectador distante. Entra na história, com seus protagonistas
assim como são: imperfeitos, contraditórios, frágeis. José com suas dúvidas, Maria com seus
medos, os pastores com sua marginalização social, os Magos com sua busca inquieta.
Nossa história pessoal, com todas as suas dobras obscuras e zonas de sombra, faz parte da
Sua história. Não somos estranhos, não somos hóspedes indesejados. Somos filhos e filhas,
parte de uma família que Deus nunca renega. O Natal nos diz que Deus não despreza sua
criação, não olha suas criaturas com repulsa ou decepção. Ao contrário, Ele as abraça
exatamente na sua concretude, na sua humanidade autêntica.
Cada um de nós tem uma personalidade única, uma história irrepetível. Há os exuberantes e
os reservados, os fortes e os frágeis, os que têm feridas abertas e os que têm cicatrizes

2 Page 2

▲torna in alto
escondidas. Deus nos encontra exatamente onde estamos, não onde gostaríamos de estar ou
onde pensamos que deveríamos estar. Encontra o alcoólatra em seu bar, o preso em sua
cela, a mãe exausta em sua cozinha, o estudante em sua solidão, o idoso em seu silêncio.
Mas essa proximidade não é estática, não é resignação. Deus nos encontra onde estamos
para nos conduzir aonde merecemos estar. Não merecemos por nossos esforços ou virtudes,
mas merecemos enquanto filhos amados. Merecemos a plenitude da vida, a alegria
profunda, a dignidade recuperada, as relações curadas. A proximidade de Deus é dinâmica:
é uma mão estendida que nos convida a nos reerguer, é uma voz que sussurra “vem mais
para a frente”; é uma presença que caminha ao nosso lado rumo a horizontes mais
luminosos.
3. Escolher a acolhida: A Verdade bate à porta da liberdade
Eis o terceiro movimento, talvez o mais delicado: a acolhida. Na gruta joga-se a partida da
nossa vida. Não é uma exageração retórica, mas a verdade mais profunda do nosso existir.
Aquela gruta é a imagem de cada uma de nossas grutas interiores, daqueles espaços
escondidos do coração onde se decide quem queremos ser.
A Verdade – que não é uma ideia abstrata, mas uma Pessoa, é aquela Criança na
manjedoura – bate à porta da nossa liberdade. É uma batida discreta, gentil, nunca violenta.
Deus poderia arrombar a porta, poderia impor-se pela força de sua onipotência. Mas escolhe
mendigar. O Divino torna-se pedinte da humanidade. Que paradoxo estonteante! Aquele que
criou tudo pede a nós, suas criaturas, que lhe ofereçamos lugar.
A Verdade chama, esperando que a Liberdade responda. Não há coerção, não há
manipulação. Há apenas um convite, renovado todo dia, a todo instante: “Você quer me
acolher?”. É a liberdade humana, frágil e potente ao mesmo tempo, que deve decidir.
Podemos fechar a porta, fingir que não ouvimos, adiar para amanhã. Ou podemos abrir.
Escolher a acolhida significa reconhecer nossa indigência. Como aquela gruta era espaço
vazio pronto para ser preenchido, assim também devemos nos esvaziar de nossas
presunções, de nossas autossuficiências, de nossos ídolos. A acolhida exige espaço interior.
Não podemos acolher a Deus se já estamos cheios de nós mesmos.
Mas quando escolhemos abrir aquela porta, quando dizemos o nosso sim, o milagre
acontece. A gruta pobre torna-se catedral de luz. Nossa vida ordinária torna-se lugar de
Presença. Nossas fragilidades tornam-se espaços onde a graça pode operar. A acolhida
transforma: não somos mais os mesmos depois de termos acolhido aquela Vida que vem nos
visitar.
O Natal, portanto, é esse triplo movimento que nos envolve inteiramente: reconhecer a
gratuidade escandalosa de um Deus que se faz pequeno; interpretar a proximidade de Quem
entra na nossa história concreta; escolher a acolhida, abrindo a porta do coração à Verdade

3 Page 3

▲torna in alto
que bate. Na gruta de Belém, como na gruta do nosso coração, decide-se tudo. Cada Natal é
a oportunidade de responder novamente àquela pergunta antiga e sempre nova: “Há lugar
para Ele?”