Maria_levantou_se


Maria_levantou_se

1 Pages 1-10

▲torna in alto

1.1 Page 1

▲torna in alto
1. CARTA DO REITOR-MOR
1.1 MARIA LEVANTOU-SE E PARTIU DEPRESSA (LC 1, 39)
A experiência espiritual, alma da ação pastoral
Pe. Fabio Attard, sdb
1. ESCUTA. Escutar Deus, Escutar o próximo. Desafios da escuta:
Primado da Palavra sobre as palavras. Frequência assídua, sistemáti-
ca e “sistêmica” 2. DISPONIBILIDADE E ABERTURA DO CO-
RAÇÃO. Primeiramente para o Outro, depois para o outro. Contem-
plar, não só analisar. Superar as fronteiras. Como resposta desde o
profundo. Desafios à disponibilidade e abertura: Uma visão reduzida
da realidade. Autorreferencialidade e individualismo. Leitura e inter-
pretação horizontal da missão. Condicionamento pelos resultados. 3.
GENEROSIDADE E AUTODOAÇÃO. Dimensão e expressão não
objetiva. Resposta a um chamado. Livre e libertadora. Desafios à gene-
rosidade e autodoação: Buscar frutos mais do que lançar “sementes”.
Procurar afirmar-se como pessoas de sucesso Eficiência mais do que
eficácia. Buscar resultados mais do que criar processo. Conclusão.
O primeiro ato que Maria realizou
depois de ter acolhido a mensagem do Anjo,
foi a de ir “depressa” à casa da sua prima Isabel
para lhe prestar o seu serviço (cf. Lc 1, 39).
A iniciativa da Virgem foi um gesto
de caridade autêntica, humilde e corajosa,
movida pela fé na Palavra de Deus
e pelo estímulo interior do Espírito Santo.
Quem ama esquece-se de si mesmo
e coloca-se ao serviço do próximo.
Eis a imagem e o modelo da Igreja!
Todas as Comunidades eclesiais, como a Mãe de Cristo,
estão chamadas a acolher com plena disponibilidade
o mistério de Deus que vem habitar nelas
e as estimula pelos caminhos do amor.
Papa Bento XVI
25 de março de 2006

1.2 Page 2

▲torna in alto
4 ATOS DO CONSELHO GERAL
Queridos irmãos,
cumprimento-os cordialmente enquanto ofereço esta reflexão que
introduz o Projeto do Sexênio 2025-2031 do Conselho Geral.
Gostaria de apresentar este Projeto a partir de uma frase do Evan-
gelho que serve como ponte entre duas experiências significativas e
quase espontaneamente relacionadas entre si: o anúncio do Anjo
a Maria e a visita a Isabel para lhe oferecer o seu serviço: “Maria
levantou-se e partiu depressa”(Lc 1, 39).
Meu desejo de comentar esta frase nasce do que estou a viver e
sentir nestes primeiros meses do meu ministério como Reitor-Mor.
Vejo surgir com sempre maior clareza um paralelo entre a experiência
do Espírito que vivemos durante o CG29 e estes primeiros meses do
sexênio. Parece-me vislumbrar nesta experiência dinâmica de Maria
um ícone vivo e muito pertinente para nós, um ícone que se torna luz
e fonte de encorajamento.
Vivemos semanas cujo protagonista principal foi o Espírito San-
to de Deus. Muitos participantes expressaram a convicção (ou pelo
menos a percepção) de que a Sua presença deu uma tonalidade dife-
rente aos trabalhos do CG29. Essa presença não foi apenas invocada
na oração, mas foi buscada, sentida e reconhecida através dos vários
momentos que vivemos, dos diálogos compartilhados e das decisões
que tomamos juntos.
Gostaria de comentar agora três atitudes que podem ajudar-nos a
viver bem e com inteligência pastoral as opções que propusemos e os
caminhos que queremos percorrer. Espero que elas se tornem estilos
de vida para que a nossa vida comunitária, junto com as nossas pro-
postas pastorais, possa ser um reflexo da mesma iniciativa de Deus em
nós, por nós e através de nós. Desejo que a nossa resposta seja o fruto
maduro da escuta contínua da vontade de Deus que alimenta o nosso
ser servos dos jovens. Nessa dinâmica, a nossa consagração encontra
a sua verdadeira identidade.
Confio-lhes as minhas reflexões, as minhas absolutas convicções
interiores exatamente como vêm do meu coração. Não esperem um tra-
tado teológico ou pedagógico, não é a minha intenção. É como um
boa-noite um pouco mais longo, uma partilha em família. Ajudemo-
-nos e ajudem-me a torná-las reais, a vivê-las juntos no mesmo
espírito.

1.3 Page 3

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 5
ESCUTA – DISPONIBILIDADE – GENEROSIDADE: são as
três atitudes sobre as quais os convido a refletir e que os encorajo a
privilegiar. Três atitudes a serem enraizadas e cultivadas num coração
livre para que depois amadureçam dentro da experiência educativo-
-pastoral salesiana. Só assim a contribuição de cada Salesiano de Dom
Bosco torna-se realmente um dom precioso compartilhado no interior
das nossas Comunidades Educativo-Pastorais (CEP) em favor dos jo-
vens, especialmente os mais pobres.
1. ESCUTA
Numa cultura que agora parece estar focada e concentrada apenas
numa visão veloz e fugaz, no fazer os olhos correrem de cá para lá,
queremos que o apelo trazido pela Boa Nova nos ajude a recuperar a
dimensão da escuta. Os antigos diziam que a fé vem da escuta. Isso
continua absolutamente verdadeiro e válido para nós, ainda hoje. O
testemunho que o Evangelho comunica não pode ser substituído por
um vídeo, um cartaz, uma apresentação. Se a visão for como estar
diante de uma janela ou de uma tela enquanto tudo acontece à nossa
frente, pode parecer que basta vermos o que temos diante de nós,
deixar-nos impressionar superficialmente. E nos iludimos ao pensar
que podemos realmente “conhecer” as coisas só porque as vimos
uma vez, e talvez nem sequer as observamos em profundidade. Ver
sozinho não basta, oferece-nos apenas fatos, dados; é preciso uma
escuta atenta, calma e profunda. Sem a escuta não podemos “enten-
der”, interpretar, captar o sentido dos fatos e a sua voz de apelo.
Maria, que se levanta e vai depressa para servir, fez antes a expe-
riência da escuta. É dessa experiência da escuta que Maria conserva
uma verdade profunda e divinamente salvadora. Ao escutar a Palavra,
Maria acolhe a Palavra.
A atitude de escuta pede que Maria assuma o caminho do discipu-
lado, tornando-se assim participante do plano de Deus. O seu escutar é
sinônimo de obedecer – ob-audire. Maria deixa-se atrair pela Palavra,
aceita ser envolvida, entrar no mistério que lhe é revelado. Em Maria,
a verdade que lhe é confiada e a liberdade que já a marcava se encon-
tram. Verdade e liberdade, e nasce a fé. Fé como relação verdadeira.
Fé marcada pela Palavra, como relação consigo mesma, com Deus e
com os outros.

1.4 Page 4

▲torna in alto
6 ATOS DO CONSELHO GERAL
Ao anúncio do anjo, Maria não pede “provas”, não exige que lhe
seja mostrada a “razoabilidade” ou o sentido para que possa primeira-
mente ver, compreender e possuir. Ela segue a voz e põe-se em movi-
mento. Ela escuta e obedece, e assim acontece a verdade que é Cristo
nela: a encarnação de Cristo. Acontece o milagre que faz a mãe
mover-se até a prima porque a escuta torna a mãe semelhante à forma
do ilho. A escuta torna-se missão, dedicação aos irmãos e irmãs.
Desde o início a escuta leva-a a entregar-se pelo bem deles, a morrer
por eles, a dar a vida pela vida dos outros.
Contemplando este primeiro ponto, queridos irmãos, façamos o
esforço de voltar a essa escuta que é fonte de vida. Ouvir como ati-
tude que vivemos e renovamos a cada dia para que o encontro com a
Palavra tenha a força de fazer brotar um verdadeiro caminho. Reco-
nhecemos que esse caminho nutrido pela Palavra é difícil porque nos
convida a colocar-nos em movimento, a sermos discípulos, a
desapegar-nos do que nos torna menos livres. Um movimento que não
exige ver de imediato o resultado, que não busca a falsa certeza do que
deve acontecer. Um caminho que não nos deixa espectadores
passivos.
Escutar Deus
Então, antes de tudo, comecemos a escutar Deus. A sua palavra é
palavra criadora. Não é apenas um conjunto de sons, não há confusão
e muito menos falsidade na palavra de Deus, ela é o puro poder daque-
le que cria um mundo novo e envolve chamando ao diálogo para que
aquele que realmente escuta participe da alegria do seu Senhor.
É o difícil caminho do discernimento, da abertura de espaço para
uma voz que sopra sutil como um vento muito leve e que muitas vezes
é abafada pelas muitas vozes e pelos muitos enganos do nosso cami-
nho. Para nós Salesianos trata-se de uma tentação constante. Sermos
tomados por muitas preocupações, justas e generosas, mas que correm
o risco de nos afastar da voz do Mestre.
Não se pode ouvir a voz do mensageiro de Deus se não nos treina-
mos para o silêncio e a meditação. Não temos grandes notícias sobre
Maria antes do chamado de Gabriel, mas a tradição sempre nos falou
de uma menina que desde pequena foi educada para escutar Deus.
Apresentada ao templo desde criança, conservou a capacidade de dei-
xar no seu dia a dia um espaço para o silêncio, que não é um simples

1.5 Page 5

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 7
vazio de sons, mas o recipiente da fala de Deus. Assim, o anjo pode
aproximar-se e ser ouvido no espaço criado pela oração.
Nosso pai Dom Bosco também lutava todos os dias para obter si-
lêncio, mesmo em meio às mil tribulações e trabalhos que o ocupa-
vam. Antes e depois da santa missa, na meditação, ele nunca deixava
de buscar o silêncio porque só assim podia ouvir a voz de Deus e de
Maria que o incentivavam a levar adiante a missão.
Eis então a importância da meditação diária para o Salesiano. Não
é tanto uma prática a ser colocada ao lado das demais, ou seja, um dos
vários modos de rezar que podemos ter e que podemos substituir por
outros mais adequados, mais bonitos ou mais práticos. A meditação é
a alma da oração pessoal e comunitária porque vai ao cerne da própria
oração; ela treina para a escuta. Deus fala sempre e continuamente, o
Verbo não deixa os seus discípulos no silêncio, mas busca sempre um
espaço que só a escuta pode proporcionar.
Escutar o próximo
Assim sendo, o outro lugar da escuta é o próximo, consciente de
que todo irmão e irmã são a imagem de Cristo, seus membros predile-
tos, presença do Filho de Deus na terra.
E Maria vai depressa, porque a palavra do Anjo a impele a con-
tinuar, a ir escutar a palavra de quem mais precisa dela, porque só
assim continuará a escutar Deus. A anunciação, então, não será um
evento isolado, vivido de forma intimista, mas um caminho que con-
tinua e que preenche uma vida inteira, a própria e a das pessoas
encontradas e servidas.
Maria o fará com Isabel, mas também em Caná e depois com os
discípulos no cenáculo. Maria estará sempre com os últimos; também
as aparições destes dois milênios o comprovam, Maria está com os pe-
quenos, com quem precisa, porque assim está com o seu Filho e assim
continua a escutar e a transmitir a sua voz.
Dessa escuta nasce o verdadeiro e autêntico discernimento que se
torna prática espiritual vivida na fé, porque o Cristo que nasce no co-
ração continua a falar-nos através dos pobres, através dos jovens mais
necessitados e abandonados. Esta é a realidade que fala de Deus e que
hoje nos indica a missão. É necessário, então, uma comunidade de
crentes que viva a escuta, uma comunidade que caminhe unida ouvin-

1.6 Page 6

▲torna in alto
8 ATOS DO CONSELHO GERAL
do e respondendo ao clamor dos pobres – uma Igreja sinodal. Nessa
experiência, a escuta não se torna uma simples análise sociológica,
mas missão apostólica e chamado divino.
É muito urgente que todos estejamos conscientes de que só existin-
do a escuta de Deus, verdadeira e sincera, pode seguir-se a escuta dos
irmãos e irmãs, pode seguir-se uma resposta educativo-pastoral cheia
de compaixão, esperança e futuro.
DESAFIOS À ESCUTA
Primado da Palavra sobre as palavras
A Escritura inteira é atravessada pela ordem de escutar porque é
graças à escuta que entramos na vida de Deus e sobretudo permitimos
a Deus entrar na nossa vida, coisa que é para nós o único modo de real-
mente viver. A escuta é, pois, a forma mais adequada ao nosso relacio-
namento com Deus, e se traduz na oração, que é a sua forma natural de
expressão, e na qual somente se realiza o nosso eu autêntico, a verdade
de nós mesmos e da nossa vocação mais profunda.
Só escutaremos o clamor dos jovens e ouviremos o projeto que Deus
tem para nós se entrarmos na verdadeira dinâmica da escuta, que não é
primeiramente pesquisa e estudo, mas disponibilidade e abertura. Escu-
tar significa, portanto, discernimento, vigilância, prontidão, ação.
Escutar é sempre o início de um caminho que, como para Maria,
amadurece na abertura total do coração, e justamente por isso não es-
conde a perturbação e as perguntas que nela são suscitadas. No en-
tanto, essa perturbação não impede a sua disponibilidade para Deus
que a escolheu, acolhendo livremente o seu projeto. O Papa Francisco
apresenta o verdadeiro sentido desse chamado quando diz que “pre-
cisamos implorar-lhe todos os dias, pedir a sua graça para que abra o
nosso coração frio e faça vibrar a nossa vida tíbia e superficial. [...] É
urgente recuperar o espírito contemplativo, que nos permita redesco-
brir, a cada dia, que somos depositários de um bem que humaniza, que
ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor para transmitir
aos outros” (Evangelii gaudium, 264).
É preciso aprender a interiorizar, a perder algum tempo para ou-
vir e não tentar agir de imediato. A ação às vezes é superestimada. O

1.7 Page 7

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 9
primeiro passo para agir é o silêncio e a escuta. Só assim a semente
dá frutos. Caso contrário, toda ação deixa apenas frustração e vazio
interior. É preciso dar tempo à escuta, é preciso perseverar nela, lutan-
do contra as tentações da pressa, do tudo agora, onde a Palavra acaba
sendo sufocada.
Frequência assídua, sistemática, “sistêmica”
Jamais faltarão dificuldades materiais e ambientais: rumor, falta de
silêncio, lugar não adequado à contemplação. Além disso, há o perigo
de entrar num círculo vicioso que favorece gradualmente a supervalo-
rização do fazer que faz surgir a sensação de que o tempo do silêncio
e da escuta é uma perda de tempo.
Nessa situação, falta aquela verdade que nos diz que a missão não é
apenas praticar algumas ações, mas antes de tudo cuidar de uma iden-
tidade espiritual dinâmica que responda à vocação que recebemos. Na
ausência dessa convicção, predominam diversas preocupações, distra-
ções e, enfim, o cansaço e o desencanto. É preciso conhecer bem as
raízes e as razões do cansaço que muitos de nós experimentam após
algum período de ativismo frenético. É necessário revisitar com sin-
ceridade as opções que subestimaram ou até descartaram o espaço do
silêncio e da oração.
2. DISPONIBILIDADE E ABERTURA DO CORAÇÃO
A escuta, então, move o coração. Como as ondas sonoras, ela se
expande e abre horizontes inéditos. Pede para ter um espaço de res-
sonância que, antes de ser logo ação, seja esvaziamento do coração e
disponibilidade à obediência, exatamente como um lenço nas mãos de
Deus, uma imagem recorrente na vida espiritual.
Em primeiro lugar, portanto, disponibilidade é deixar a Deus a ini-
ciativa de ter um espaço para possuir dentro do nosso coração. A dis-
ponibilidade é esvaziamento, é passividade, é um caminho de kenosis
da pessoa, que deve imitar o seu Senhor justamente ao deixar toda a
iniciativa ao Pai.
A caridade é, portanto, assemelhar-se a Jesus, não porque se trate
de uma ação específica, mas porque é pura imitação da mesma dispo-
nibilidade de Cristo, que não considerou nada da própria pessoa como

1.8 Page 8

▲torna in alto
10 ATOS DO CONSELHO GERAL
um tesouro cioso. Cristo esvaziou todo o seu ser para poder agir como
Ressuscitado.
Também Maria deve aprender a abandonar os próprios desejos e
sonhos e ir até Isabel com total disponibilidade, ou seja, com o cora-
ção vazio de si mesma. Repleta de Cristo, Maria manifesta-se assim
na caridade do Magnificat. Deve ajudar Isabel não por iniciativa pró-
pria, nem pelo dever de parentesco ou simples bondade, mas porque,
esquecendo-se de si mesma, deixa que as suas ações sejam guiadas por
Alguém além de si, por aquele Jesus que já tem dentro de si.
Diante do anúncio do anjo, Maria não negocia nem pede confir-
mações, tampouco questiona qual será a natureza da sua missão ou
qual será o seu espaço. Maria não se preocupa com o seu “fazer”. Ela
entrega a totalidade do seu coração e da sua pessoa sem impor condi-
ções. Submete-se num ato de fé e humildade, oferecendo a sua dispo-
nibilidade ao projeto de salvação. Maria abre o próprio “ventre” com
total confiança, acolhendo o Verbo, sendo instrumento divino para os
eventos futuros da história da salvação.
Com o seu consenso, Maria aceitou a dignidade e a honra da Divina
Maternidade, mas também os sofrimentos e sacrifícios a ela relacio-
nados. Aceitou, sem impor condições, que a sua identidade estivesse
nas mãos do Filho. Como serva, coloca-se numa atitude de total dis-
ponibilidade para com o seu Senhor, colocando-o acima de qualquer
reivindicação ou direito próprio.
Maria compreendeu a grandeza de Deus e o nosso “nada” humano.
Pela sua humildade, ficou justamente surpresa ao ouvir os louvores
do Anjo: “Ave, cheia de graça”, e com a mesma humildade acolherá
o que a vida lhe apresentar, até os eventos dramáticos da cruz. Assim,
a espada que trespassará a sua alma não é nada além do ápice da sua
kenosis, do caminho de desapropriação de si mesma à imitação do seu
Filho. Não é simplesmente o sofrimento de uma mãe que vê o Filho
morrer, mas a participação da Virgem nesse sofrimento encontra a sua
definição no ser totalmente Mãe do Cristo Crucificado e nada mais.
Primeiramente para o Outro, depois para o outro
Apenas esse caminho de total abertura a Deus leva ao verdadeiro
amor ao próximo. Embora se diga frequentemente que amar o outro

1.9 Page 9

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 11
é como amar Cristo, e apesar do Evangelho afirmá-lo de forma clara
e categórica, essa passagem de identificação do pobre com Cristo
não é nada fácil.
Os grandes santos da caridade, na verdade, estão conscientes de
que a caridade não é um simples amor pela humanidade, mas partici-
pação da mesma vida de Deus, ou ainda mais, a habitação de Deus em
nossa vida. A vida de Santa Teresa de Calcutá é um exemplo disso: a
santa contemporânea mais famosa pela caridade aos pobres sustentava
a sua forte dedicação aos outros graças à oração incessante, feita de
longa adoração cotidiana e constante união com Deus.
O mesmo amor de Dom Bosco pelos jovens não tem outra causa
senão ser “consagrado” aos seus jovens. O sonho dos 9 anos é um
caminho de recentralização da caridade de Joãozinho, não só da vio-
lência à mansidão, mas sobretudo da caridade aos companheiros na
forma de protagonismo pessoal como disponibilidade à caridade de
Cristo, aprendida justamente com a Mestra que Ele lhe dá.
Contemplar, não só analisar
A consagração fundamenta o apostolado, porque é a nossa iden-
tidade de consagrados que permite à caridade de Cristo alcançar-nos
e fazer de nós “na Igreja sinais e portadores do amor de Deus aos
jovens, especialmente aos mais pobres” (Cost. 2).
Assim, os nossos projetos não são tanto fruto de estratégia, de ob-
servação da realidade, de impulsos generosos pelo bem dos outros, mas
sobretudo fruto da contemplação, ou seja, da adoção do mesmo ponto
de vista de Deus sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre o mundo.
A contemplação vem de uma verdadeira oração pessoal e comuni-
tária, de um discernimento maduro da vontade de Deus para compre-
ender o que Ele nos chama a ser e fazer pelo bem dos outros.
Então, a ação pastoral pelo bem do outro, como o é a visita de Ma-
ria a Isabel, surge de uma oração íntima, um “cor ad cor loquitur” – o
coração que fala ao coração (São Francisco de Sales). A ação é, pois, a
continuação da relação que se funda e brota da fé e do amor. É respirar
o Espírito Santo, é sair de si mesmo para acessar uma relação trinitária
em que Deus mesmo fala ao nosso coração e inspira as nossas ações
pelos outros.

1.10 Page 10

▲torna in alto
12 ATOS DO CONSELHO GERAL
Na sua raiz mais profunda, portanto, todo projeto pastoral, toda
ação de caridade que queremos realizar seria uma ação superficial se
não fosse fruto de uma vocação, de um chamado do Pai, que provoca
no Filho o esvaziamento de si e dá espaço à ação do Espírito dentro de
nós e através de nós. É fundamental favorecer esse verdadeiro movi-
mento que impulsiona nossas propostas e processos, movimento que
começa pelo nosso amor a Deus como resposta ao “amor que Deus
derramou em nossos corações” (Rm 5,5).
Contemplação e conhecimento de Deus, meditação e projeto pas-
toral significam, portanto, buscar o rosto de Deus e buscá-lo no irmão,
naquele que encontramos, naquele que nos chama em socorro, naque-
le que clama com seu ser carente. Contemplar é, então, assumir o olhar
de Deus, ver como Deus vê, e ter assim os mesmos sentimentos de
Jesus, o único que vê e conhece o Pai, e sempre cumpre a sua vontade.
Poderá, talvez, o discípulo ser maior do que o Mestre, viver outras
formas de fazer crescer o Reino?
Quão frequente e doloroso é ver o perigo de uma ação pastoral não
enraizada numa vida de oração, de acolhimento em nós do Espírito de
Jesus. Bem sabemos que quando isso acontece, ou seja, quando falta a
escuta de Deus, acaba-se num labirinto de ativismo incessante.
Superar as fronteiras
Essa abertura ultrapassa fronteiras geográficas, culturais, psicoló-
gicas, religiosas. A verdadeira disponibilidade é sempre um “êxodo”,
um sair de si mesmo, dos próprios esquemas, da própria linguagem
espiritual. Não teme o diferente, pelo contrário, busca-o, acolhe-o,
porque reconhece no outro um irmão, uma irmã.
Maria precisa sair de casa para “tornar verdadeiro” o anúncio em
que acreditou e ao qual se entregou. Pode-se quase dizer que não só
o anúncio recebido provoca nela a necessidade de ir até Isabel, mas,
de certa forma, se ela não tivesse ido até a prima, o anúncio não teria
sido completamente verdadeiro, pois a graça recebida não teria sido
totalmente frutuosa.
A caridade faz-nos ir além de nós mesmos e, portanto, derruba bar-
reiras e distâncias. A caridade que nos move não se “adéqua” à nossa
cultura, mas purifica-a criando uma nova. Se é verdade que nenhum

2 Pages 11-20

▲torna in alto

2.1 Page 11

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 13
carisma, nenhuma força da fé pode existir se não estiver encarnada em
uma cultura, também é verdade que nenhuma cultura pode limitar o
poder do chamado de Deus e da sua caridade. Na verdade, é a própria
fé que purifica a nossa visão de mundo, as nossas categorias, as nossas
visões, criando novas.
É por isso que uma Congregação como a nossa encontra a
sua unidade no carisma e vê na diversidade dentro e fora de si a
oportunidade para uma unidade maior, porque é a diversidade e unida-
de de Deus que a faz assim.
Cada um dos nossos olhares sobre o mundo é limitado e limitador.
Cada um de nós tem um limite além do qual não deseja ir ou atrás
do qual só vislumbra negatividade, hostilidade, perigos, incertezas,
inutilidade, ameaças. Só o apelo de Deus à total disponibilidade, só
a contemplação do mundo com os olhos do Espírito torna também o
desconhecido “casa nossa”.
Todo “além” em que às vezes parece não podermos ir não é nada
mais do que uma casa onde ainda não estivemos, e cada desconhe-
cido que aparece no horizonte não é senão um irmão a quem ainda
não fomos. Não existe lugar ou pessoa no universo onde Deus não
esteja presente, que não seja sustentado por Deus e que não nos
chame a compartilhar a mesma caridade de Deus como única famí-
lia e única Igreja.
Isso vale tanto no espaço, quanto nas relações fraternas, quanto no
tempo: não há futuro que não esteja nas mãos de Deus e todo apego
ao passado é uma traição à disponibilidade que prometemos a Deus.
Por isso, não posso ficar parado, devo ir até a temeridade (uma
palavra que nós, Salesianos, conhecemos bem porque foi o estilo
do nosso Fundador, e também de vários irmãos que foram pionei-
ros e profetas), e realizar o que Deus está a me pedir. O coração
não pode parar ao compreender que Deus o chama e que Maria tem
pronta aquela graça que talvez nos abra novos horizontes, como
aconteceu no início da Patagônia. São horizontes que não podemos
ignorar.
As fronteiras são derrubadas e podemos partir para o outro lado
do mundo porque o impulso que vem de dentro não tem limites e
não aceita meios termos. Não basta ir apenas até onde as forças,

2.2 Page 12

▲torna in alto
14 ATOS DO CONSELHO GERAL
medidas com a nossa régua, prometem-nos chegar, mas planejando
o que é incompreensível para a régua do homem, ir até onde exige
o impulso de Deus.
É por isso que um filho de camponeses do século XIX como Dom
Bosco tem em sua escrivaninha um globo terrestre e nele mede a am-
plitude dos seus projetos: ele deve ir até onde chega a mesma caridade
de Deus, deve ir para “morrer”, para dar a vida por todos aqueles a
quem Cristo foi o primeiro a dá-la.
Como resposta desde o profundo
Por isso, Maria não pode ficar em casa. Possui como uma força
interior que leva à ação, que nasce justamente da contemplação e da
disponibilidade; e Maria não tem dúvidas, não põe obstáculos: é do
fundo de si mesma, do lugar onde a sua consciência encontra o cha-
mado de Deus, que ela sente que tudo leva ao caminho.
Como foi para Dom Bosco (que não pôde ficar em casa depois
de ter adquirido uma com tanto esforço), também para nós e dentro
de nós a graça recebida põe-se em movimento exatamente na forma
de um dom divino, certamente gratuito, mas nem por isso menos
vinculante.
A graça de Deus, o chamado vocacional, o pedido de plena dispo-
nibilidade é feito por Deus para ligar-nos a Ele. Não um vínculo que
impede a liberdade de ser, mas aquele que é garantia do bom funcio-
namento da liberdade. Ele pede-nos a disponibilidade de viver um
para o outro, sendo feitos para o dom, ou seja, para uma gratuidade
que nos liga a Ele libertando-nos e abrindo espaço para a fé que só
pode preencher o coração esvaziado de quem obedece a Deus.
DESAFIOS À DISPONIBILIDADE E ABERTURA
Uma visão reduzida da realidade
Em uma circular de 1885, Dom Bosco escreveu que o Salesiano
deve obedecer não porque lhe foi ordenado, mas por uma razão supe-
rior, a maior glória de Deus. É esse o espírito que está na base da nossa
obediência, disponibilidade, abertura de coração. Não é uma questão
burocrática, feita de regras e prescrições, e não se resolve na sua apli-

2.3 Page 13

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 15
cação exata. E por isso é ainda mais exigente. Pede uma verdadeira
adesão do coração ao coração do superior e, através dele e da Congre-
gação, ao próprio coração de Deus.
Assim, o clima de família, longe de ser um simples afeto exterior,
é uma ligação vinculante do coração e da vontade, na total disponibi-
lidade de si mesmo, ou seja, na renúncia a ser dono do próprio eu para
deixar-se dispor em verdade e liberdade por aquele que tomou posse
da nossa vida, porque acreditamos n’Ele.
A disponibilidade, no entanto, é desafiada hoje em vários fronts. O
“Eu” não disponível insiste em impor a própria visão de mundo, de si
mesmo e da vida, e o faz a partir de um ponto de observação restrito,
acreditando que aquele é o lugar de onde se vê ou se revela a verda-
de completa. Mas a verdade completa, recorda-nos o Evangelho, não
pode ser vista se não estivermos cheios do Espírito Santo, e não se
pode estar cheio do Espírito se não estivermos vazios de nós mesmos.
E assim, o indisponível tem uma visão limitada da realidade, pen-
sa que ele mesmo conhece a verdade das coisas e planeja a própria
vida e a sua ação pastoral limitando-as à sua perspectiva parcial.
Não chega a intuir que há muito mais além do próprio horizonte,
que reduz tudo ao já visto, medido, programável: nos limites da sua
experiência pessoal.
Quando se deixa de acreditar que existe um “além”, e não se deixa
conduzir para fora de si mesmo pela caridade que nos move, perde-se
a tensão da espera do Filho, e a nossa ação missionária torna-se apenas
um objeto a administrar.
Não se vai à Patagônia se não deixamos que Deus nos abra ou es-
cancare os olhos. Mas o fato de não ir e não querer ver desvirtua o que
somos e impede que o ramo dê frutos porque está separado da videira
que o alimenta e lhe dá a força para crescer mais do que ele mesmo
possa imaginar. E apenas com as próprias forças este é um projeto
absolutamente fora de alcance.
O projeto do sexênio, assim como os PEPS de nossas casas e ins-
petorias, não é, portanto, um papel burocrático descritivo do que po-
deríamos fazer segundo nossas ideias, mas um instrumento de parti-
lha e discernimento comunitário para ver além e obedecer à vontade
de Deus.

2.4 Page 14

▲torna in alto
16 ATOS DO CONSELHO GERAL
Autorreferencialidade e individualismo
Vivemos perante desafios que, se não enfrentados, correm o risco de
consolidar uma visão distorcida da realidade. Iludimo-nos muitas vezes
ao pensar que, em nossa vida espiritual e na missão que nos é confiada,
devemos olhar primeiro para nós mesmos e só depois para os outros,
como se fossem apenas clientes a quem damos o que é nosso. Se esta-
mos acostumados a medir-nos apenas pelo que fazemos, pensamos ou
conquistamos, acabamos por fixar ou dirigir o olhar sobre nós mesmos,
iludindo-nos de que nos conhecemos melhor e nos vemos mais. Na ver-
dade, somos chamados a elevar os olhos e ir ao encontro do outro.
Maria não se detém para refletir, não se dá tempo para entender o
que aconteceu, o que ela se tornou, quais são as consequências. Maria
põe-se rapidamente em movimento para recentrar toda a sua vida na
necessidade de Isabel.
Se defendermos a nossa imagem e priorizarmos as nossas convic-
ções com a tenacidade de um lutador, acabamos lutando por nada, sem
colher nenhum fruto. Fundamentamos as nossas certezas na convicção
de fazer o que “queremos”, enquanto é muito mais seguro para nós
mesmos tentar fazer o que o Outro deseja.
A “missão” não é um bem privado que compartilhamos entre nós;
a missão é por definição comunitária porque é trinitária, ou seja,
pertence a Deus, não às nossas ideias e projetos. Não estamos juntos
porque é mais fácil ou mais conveniente, mas estamos juntos porque
só posso ser eu mesmo doando-me ao outro de forma radical, esva-
ziando-me pela comunidade, sendo comunhão e, portanto, fazendo
comunhão com todos.
A verdadeira disponibilidade é consagração, expropriação de si
mesmo que tem na raiz a coragem de se questionar, de renunciar a
si mesmo, mesmo quando isso parece uma perda. É a dinâmica da
kenosis que dá frutos, de ir depressa à montanha, mesmo que talvez
eu, antes de tudo, precise da ajuda de alguém para entender quem sou
e o que acontecerá comigo.
Leitura e interpretação horizontal da missão
Não podemos dar-nos ao luxo de reduzir a nossa missão apenas à
tarefa educativa e promocional de uma ONG ou de uma organização

2.5 Page 15

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 17
sem fins lucrativos. A missão que nos é oferecida como vocação é a
continuação da missão do Salvador enviado pelo Pai e tem como hori-
zonte o Paraíso, como Dom Bosco lembrava frequentemente aos seus
jovens e representou de maneira icônica na pintura da Auxiliadora da
Basílica de Valdocco.
Nossa tarefa educativa não pode limitar-se a um serviço social
ou a um projeto meramente humano, por mais meritórios, valio-
sos e essenciais que sejam. Somos educadores e evangelizadores,
sempre; se nem sempre na ação, nós o somos na intenção, naquilo
que nos anima e sustenta. A fonte única e indispensável de toda a
nossa obra de educação e evangelização brota do encontro pessoal
com Cristo. Por isso, desde o primeiro momento, todo processo
educativo deve ser inspirado no Evangelho e a evangelização deve
se adequar à condição evolutiva do jovem. Com a fórmula que nos
distingue e que não é um jogo de palavras, educamos evangelizan-
do e evangelizamos educando: compreendê-lo e vivê-lo é garantia
de que trabalhamos na Igreja.
Estamos cientes de que somos chamados a educar e evangelizar
mentalidades, linguagens, costumes e instituições, e isso só é possível
se formos iluminados pelo Evangelho, chamados pela graça, impeli-
dos pelo Espírito. Só com uma identidade evangélica e carismatica-
mente clara podemos encontrar os jovens, todos os jovens, “no ponto
em que se acha a sua liberdade” (Const. 38).
Maria não vai até Isabel só porque, humanamente, acredita que a
prima idosa precisa da sua ajuda, dado o estado particular em que se
encontra, mas tudo nela é real e ganha forma dentro de uma visão de
caridade, ou seja, de dedicação ao outro que tem Cristo como exem-
plo, o Espírito como visão e o Pai como destino final. A visitação
não é um gesto de bondade, mas uma decisão que antecipa o modo
de ser do Filho que, no ventre, já está agindo para conformar a Mãe
a si mesmo.
Igualmente no sonho dos 9 anos: é de Jesus que vem a missão e de
Maria, a forma. A ciência e a obediência que Joãozinho deve pôr em
prática não se relacionam às necessidades da humanidade, mas a uma
resposta obediente à própria vontade de Deus, ou seja, à sua missão
salvadora junto à humanidade.

2.6 Page 16

▲torna in alto
18 ATOS DO CONSELHO GERAL
Condicionamento pelos resultados
Há, enfim, uma tentação muito sutil, mas sempre presente: a de
uma disponibilidade condicionada pelos resultados. Abrimo-nos en-
quanto há respostas, frutos, reconhecimentos. Mas a disponibilidade
do coração não pode ser pelo desempenho. Se a raiz da disponibilidade
é uma kenosis do discípulo, é sempre necessário lembrar que a medida
da missão e do seu sucesso é a da cruz e não a do triunfo mundano.
A disponibilidade é uma graça que deve ser conservada, exercita-
da, invocada. É uma forma de amor que compreendeu ser necessário
morrer para salvar a própria vida e a dos outros. O evangelho não
pode ser considerado como algo super-rogativo, como uma maquia-
gem espiritual ou um belo ornamento, do qual, no fundo, até se pode-
ria prescindir. Por outro lado, o sucesso só pode ser interpretado à luz
do mistério pascal. O pão deve ser sempre partido antes de se tornar
alimento para o caminho do mundo.
Da mesma forma a nossa missão não pode basear-se apenas em
estatísticas, números, quantidades de qualquer tipo. O Salesiano é cha-
mado a dar a vida, e isso não é uma expressão vazia. A disponibilidade
esvazia-se até de si mesmo, e a morte só pode ser vencida participando
da mesma morte de Cristo. Mais uma vez, uma espada deve ferir o
coração da Virgem Mãe, porque a sua identidade e a sua missão não
podem ser diferentes daquelas do Filho que ela carrega no ventre.
A proximidade de Dom Bosco com Deus e o intenso amor ao pró-
ximo que daí deriva não se explicam sem um profundo componente
ascético de sacrifício, desapego, esquecimento de si e paciência.
Muito além dos triunfalismos fáceis que frequentemente defor-
mam a sua figura, o santo mostra a sua verdadeira face de autêntico
discípulo do Crucificado prostrado sob o peso de cruzes inauditas que
dilaceram o coração. A vida de Dom Bosco, diz o Pe. Ceria, “foi toda
semeada de espinhos pungentes”: incompreensões, conflitos, perse-
guições, até atentados, dificuldades econômicas; e, depois, problemas
físicos tão graves que fizeram o seu médico afirmar que “após cerca
de 1880, o seu organismo estava quase reduzido a um laboratório am-
bulante de patologias”.
No entanto, “ele nunca perdia a serenidade; na verdade, parecia
que justamente nos tempos de tribulação adquiria mais coragem, pois

2.7 Page 17

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 19
era visto mais alegre e brincalhão do que o habitual”. Nem pedia para
ser libertado dos seus males. O motivo de uma conduta tão desconcer-
tante, explica o Pe. Ceria, é relativamente simples: “Os sofrimentos
físicos aceitos com tão perfeita conformidade à vontade de Deus são
atos de grande amor divino e penitências voluntárias”, e “as almas que
se sentem fortemente atraídas para Deus se entregam à mortificação
quase por um instinto irresistível de amor” (Ceria, E., Dom Bosco com
Deus, Cap I, VIII e XX).
Isso é confirmado pelos frutos de tanto sofrimento, confirmado
pelos santos e mártires da nossa Família e confirmado pelos muitos
irmãos que viveram uma verdadeira existência vitimal pelo bem da
juventude.
3. GENEROSIDADE E AUTODOAÇÃO
A generosidade não é apenas um ato ocasional ou uma resposta im-
pulsiva a uma situação de necessidade, decorrente da espontaneidade
de uma alma boa. É, antes, uma disposição interior profunda, enrai-
zada na identidade da pessoa. Não nasce de um cálculo, nem de um
dever moral externo, mas brota de uma compreensão do próprio lugar
no mundo: ser para o outro um dom e uma presença significativa.
Isso quer dizer que a generosidade, como dom de si toto corde
para o outro, tem em sua raiz assumir a mesma forma de Cristo, a
mesma forma de Deus. A disponibilidade, que tornou o nosso cora-
ção capaz de conter a forma de Cristo, torna-se agora ação e respon-
sabilidade.
A graça recebida da experiência da kenosis torna-se capacidade
pessoal de doação de si, resposta cotidiana e forma de vida. É o que
acontece em Pentecostes: a comunidade dos discípulos, abandonando
a própria humanidade pecadora e ligada à Lei, é renovada pelo dom do
Espírito do Ressuscitado. Essa comunidade – que permanece a mesma
nas pessoas que a compõem – agora “é outra”, muda de vida e torna-se
anunciadora de algo que a transcende: da Palavra de salvação que é a
raiz de toda generosidade e de todo dom.
Ser generoso, a força para realizar todos os dias o próprio ser-
viço, não se limita a um ato de vontade ou bondade, mas provém
diretamente da união com Deus permitida pela consagração. O

2.8 Page 18

▲torna in alto
20 ATOS DO CONSELHO GERAL
amor de Dom Bosco pelos jovens não vem apenas da sua espon-
tânea delicadeza de espírito, mas decorre diretamente do fato de
ser padre: o padre é sempre padre, e deve manifestá-lo em cada
palavra. Ora, ser padre significa ter, por obrigação (ou melhor, por
vocação), continuamente em vista o grande interesse das almas; o
grande interesse de Deus.
Dimensão e expressão, não objetivo
Quem vive na lógica da autodoação não age para receber em
troca reconhecimento ou gratidão, mas para responder a uma vo-
cação que o chama à responsabilidade. A generosidade não é uma
tarefa ou um resultado a ser alcançado; é uma dimensão fundamen-
tal da nossa identidade, a forma como essa identidade se expressa
e se caracteriza.
Frequentemente silenciosa, cotidiana, oculta e, justamente por isso,
ainda mais fecunda, a generosidade é o nosso nome próprio no sentido
de que faz parte da definição da nossa identidade, como indivíduos e
como comunidade. Como é a missão que define a nossa identidade e
o nosso lugar na Igreja e no mundo, a generosidade não vem depois,
não se acrescenta de fora à vida cotidiana, não é “algo a fazer”. A mis-
são é nossa competência em ação, e ela é radicalmente generosidade,
dedicação de si, doação da própria vida para a salvação do mundo,
especialmente dos jovens.
O artigo 21 das nossas Constituições fala de maneira muito viva
do “coração generoso” de Dom Bosco: “O Senhor nos deu Dom
Bosco como pai e mestre. Nós o estudamos e imitamos, admiran-
do nele esplêndida harmonia de natureza e graça.… (esse) projeto
de vida fortemente unitário... realizou-o com firmeza e constância,
por entre obstáculos e canseiras, com sensibilidade de um coração
generoso”.
Resposta a um chamado
Nossa vocação é marcada por um dom especial de Deus, a predi-
leção pelos jovens: “Basta que sejais jovens para que eu vos queira
muito”. Esse amor, expressão da caridade pastoral, dá sentido a toda a
nossa vida (Const. 14).

2.9 Page 19

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 21
A vocação não se sobrepõe à nossa identidade num segundo mo-
mento, não intervém depois como algo que se adiciona à nossa vida. A
nossa vocação é a nossa vida, é a nossa identidade. Somos radicalmen-
te chamados a ser nós mesmos em total obediência e disponibilidade.
Vivendo a nossa generosidade já no início da resposta, respondemos
em plena liberdade e com total protagonismo.
Quem é chamado por Jesus tem a possibilidade de se tornar fecun-
do mediante o seu serviço no Reino tão somente se todas as coisas
contingentes que faz e oferece surgirem de uma disponibilidade ili-
mitada. Maria, em sua total e imediata disponibilidade ao Anjo e aos
irmãos (a prima Isabel), ensina-nos que o único ato pelo qual uma pes-
soa pode corresponder a Deus é o da disponibilidade ilimitada. Esse
gesto é a unidade de fé, esperança e amor. É o sim que Deus exige do
crente porque é o sim que Deus pronunciou em nosso favor. Somente
nesse sentido de absoluta generosidade, Deus planta a semente da sua
Palavra e do seu serviço missionário.
Por isso, as exigências de Jesus ao acolher os discípulos que Ele
chamou referem-se à própria identidade dos apóstolos, chegando a
mudar seus nomes (de Simão para Pedro), porque o discípulo se deixa
modificar pelo mestre para identificar-se com ele. Essa é a garantia de
que o próprio nome, a nova identidade de autodoação, seja escrito no
Reino dos céus.
É preciso enfatizá-lo de maneira forte porque, hoje, os “sins” limi-
tados e condicionados por cláusulas pessoais paralisam muitas vezes
as vocações. O que Deus pode usar, segundo as intenções do seu Rei-
no, é apenas um dom total que não impõe nenhuma condição.
Livre e libertadora
A generosidade profunda nunca é imposta, e ainda assim é sempre
vinculante em seu chamado original. Graças ao caráter unificador e
totalizante do projeto de Deus para cada um de nós, a nossa resposta é
semelhante à experiência que bem conhecemos, ser ou tornar-se “uma
bela veste para o Senhor”.
A generosidade na resposta ao chamado e a obediência que lhe é de-
vida são, como consequência, um sinal claro do desejo de ser si mesmo.

2.10 Page 20

▲torna in alto
22 ATOS DO CONSELHO GERAL
Ser a serva do Senhor, para Maria, longe de ser uma limitação dos
seus desejos e objetivos de vida, é na verdade a porta aberta para o
cumprimento pleno da sua liberdade e da sua identidade: precisamen-
te, “do Senhor”.
Maria é a mulher plenamente realizada, em completa liberdade e
autodeterminação. Esse movimento é nutrido e guiado pela ligação
com Deus, com o seu Filho e com os irmãos e as irmãs que encontra
ao seu lado (de Isabel aos noivos de Caná, aos próprios discípulos,
a nós).
DESAFIOS À GENEROSIDADE
Buscar frutos, mais do que lançar “sementes”
O caminho da generosidade não está livre de obstáculos. Um dos
mais traiçoeiros é a busca de frutos imediatos, viver com a expectativa
de ver imediatamente os resultados das próprias ações e processos.
Isso leva ao desânimo, à decepção ou mesmo a formas sutis de orgu-
lho ferido. A verdadeira generosidade, por outro lado, é medida pela
capacidade de semear mesmo sem ver a colheita, de deixar que o tem-
po e a graça façam o resto do trabalho.
Num mundo que recompensa quem mostra resultados concretos,
rápidos e visíveis, é difícil aceitar a ideia de que semear é por si só
um gesto completo e suficiente. No entanto, é justamente aí que se
manifesta a autenticidade e a beleza de quem se doa, na capacidade
de “ceder” a vontade de controle, de confiar na força da semente
lançada, mesmo escondida na terra por muito tempo, nos invernos
silenciosos.
Procurar afirmar-se como pessoas de sucesso
Outro obstáculo à generosidade é a pressão constante para afirmar-
-se como pessoa de sucesso. Hoje, a mensagem dominante é clara:
“Só conta aquilo que te faz sobressair, o que te diferencia, o que te faz
parecer melhor do que os outros”: o sintoma do like! Nesse contexto,
o ato gratuito de doar-se corre o risco de ser percebido como fraqueza,
como perda de tempo ou como renúncia ao próprio potencial.
Contudo, de modo paradoxal, é justamente no ato de doar-se que
a pessoa se realiza plenamente. Não se trata de negar-se ou apagar a

3 Pages 21-30

▲torna in alto

3.1 Page 21

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 23
própria identidade, mas de colocá-la em relação, de construir-se não
contra os outros, mas com os outros. Uma vida doada não é uma vida
sacrificada, mas uma vida multiplicada.
Eficiência mais do que eficácia
Vivemos numa sociedade dominada pela lógica da eficiência: tudo
deve ser mensurável, otimizado, produtivo. Às vezes, corre-se o ris-
co até mesmo nas relações de avaliar o próprio empenho segundo os
“resultados” alcançados, como se as pessoas fossem projetos a serem
concluídos. Uma mentalidade que descarta quem não se adéqua às
regras preestabelecidas, que não deixa espaço à gradualidade dos ca-
minhos, que são diferentes de pessoa para pessoa. No entanto, a verda-
deira eficácia humana não se mede com números ou gráficos, mas com
a capacidade de transformar interiormente, de tocar a vida dos outros,
de construir relações duradouras e autênticas.
Nesse desafio está a nossa capacidade de “estar” com os jovens,
“gastar” tempo na escuta, acreditar no dom de uma compaixão que
reconhece as perguntas e aceita humildemente que nem sempre temos
as respostas. Uma presença capaz de entrever os sinais invisíveis de
crescimento potencial, dando-lhes o tempo necessário.
Buscar resultados, mais do que criar processos
Acredito que somos ajudados aqui por uma reflexão do Papa
Francisco feita no início do seu pontificado: “Dar prioridade ao
tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espa-
ços... Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos
na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desen-
volverão até frutificar em acontecimentos históricos importantes.
Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes”. (Evangelii
Gaudium, 223).
Temos aqui a base do projeto que a CEP está desenvolvendo. Pro-
jeto que reconhece e promove um caminho através da diversidade das
propostas pastorais. O objetivo não é um dado predefinido a ser al-
cançado a qualquer custo. É, antes, a atenção para favorecer aqueles
processos de crescimento onde a comunidade é sempre protagonista,
vivendo e verificando o próprio projeto.

3.2 Page 22

▲torna in alto
24 ATOS DO CONSELHO GERAL
“Aqueles que entram em campo na pastoral juvenil devem estar
cientes do caminho a trilhar, da situação de onde partir e da meta
a alcançar. Deve adquirir familiaridade com todo o processo edu-
cativo que se põe em prática concretamente. Planejar é atitude da
mente e do coração, antes de ser obra concreta. Planejar é mais um
processo do que um resultado, planejar é mais um aspecto da pas-
toral do que um ato passageiro, planejar é um itinerário de envol-
vimento e de unificação das forças” (A Pastoral Juvenil Salesiana.
Quadro Referencial, p. 136, 20143).
CONCLUSÃO
Concluo com uma reflexão do Cardeal Carlo Maria Martini, que resu-
me o desafio que temos à frente.
Ao primado da Palavra corresponde, pois, a fé. Se a Palavra não
encontra resposta na fé, ela ressoa no ar, não tem eficácia. Quando,
porém, a Palavra é recebida no homem por meio de uma atitude de
fé, ela exerce a sua eficácia. A eficácia que a Palavra, acolhida na
fé do homem, exerce é a caridade. A semente é a Palavra; a fé é
o ventre, a terra do homem que acolhe a semente; a caridade é o
fruto que nasce da semente.
Dessa estrutura muito simples do processo salvífico, podemos ti-
rar consequências muito importantes para a nossa vida pastoral.
Queremos crescer na caridade? Ampliemos as raízes da fé, abrin-
do-nos à escuta da Palavra. Seria inútil exigir que na comunidade
haja mais caridade se não houver crescimento da fé, e é inútil
exigir mais fé se não houver uma escuta profunda da Palavra. O
processo – Palavra, fé, caridade – constitui a realidade orgânica
de toda a pastoral”.1
Palavra, fé e caridade: um trinômio que, na lógica da escuta, dis-
ponibilidade e generosidade, nos impulsionam a viver hoje o nos-
so chamado a sermos pessoas geradoras de esperança pelo bem dos
jovens. Com os muitos colaboradores e colaboradoras que vivem e
compartilham conosco a missão salesiana, a centralidade da Palavra
testemunha a recuperação do que é essencial: para nós, uma pessoa,
Jesus Cristo, filho de Deus, nascido de Maria virgem.
1 C.M. MARTINI, La scuola della Parola, Bompani – Milano, 2018, p. 470-471.

3.3 Page 23

▲torna in alto
CARTA DO REITOR-MOR 25
Maria é a mulher que viveu essa dinâmica profunda e radical em
sua plenitude. Com humildade, Ela acolhe a Palavra e com fé levan-
ta-se rapidamente para doar aos outros o que recebeu. O seu “partir
depressa” comunica aquele gesto de caridade que reflete um coração
livre e libertador. Este é o nosso chamado, que buscamos viver com a
ajuda d’Aquela que “tudo fez”!
Pe. Fabio Attard
Reitor-Mor