ESTREIA_2023_Comentario_PT


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ESTREIA 2023
COMO FERMENTO NA FAMÍLIA HUMANA DE HOJE
A dimensão laical da Família de Dom Bosco
Durante a reunião da Consulta Mundial da Família Salesiana, realizada em maio
de 2022 em Valdocco-Turim, foi-me pedido que aprofundasse, com a Estreia de
2023, o tema da dimensão laical da Família Salesiana: uma família que procura
ser sempre fiel ao Senhor nos "passos" de Dom Bosco. Este comentário destina-se
a responder a esse pedido.
Quero recordar, primeiramente, que a Estreia 2023 é dirigida a dois grupos.
Os primeiros são os adolescentes e os jovens de todas as presenças da Família de
Dom Bosco no mundo — como os primeiros "destinatários" da missão salesiana.
Eles, de fato, desde o início, estiveram presentes nas casas salesianas e no centro
da atenção de todos os grupos da nossa família, e precisam conhecer — como
cristãos ou mesmo como crentes de outras religiões — a força da mensagem do
Senhor: «ser sal da terra e luz do mundo»; ser fermento na família humana de hoje.
Trata-se de um compromisso muito belo, de uma bela maneira de viver a própria
vocação; e, ao mesmo tempo, de um desafio precioso para nós, educadores, que
temos a tarefa de acompanhar os jovens no caminho da vida para que ela seja
vivida sob a bandeira do empenho e da responsabilidade, na busca da fraternidade
e da justiça para todos e para cada um.
Ao mesmo tempo, a Estreia também é dirigida a todos os grupos da Família
Salesiana, convidados a redescobrir (ou descobrir) a dimensão laical própria da
nossa família e a complementaridade vocacional que existe e sempre deverá existir
entre nós.
À luz do que mais caracteriza a nossa pedagogia e a nossa espiritualidade,
pretendemos ajudar sobretudo os adolescentes e os jovens a descobrirem que cada
um deles é chamado a ser como o fermento de que fala Jesus: o bom fermento que
ajuda a fazer crescer e tornar saboroso o "pão" da família humana. Cada um deles
é chamado a ser um verdadeiro protagonista porque, à sua maneira, é «uma missão
sobre esta terra».1
Para a Família de Dom Bosco, quer ser uma mensagem que a encoraje
vigorosamente a redescobrir a sua dimensão laical. Na verdade, ela é uma família
em que a maioria dos membros é formada de leigos: homens e mulheres de muitas
nações, distribuídos por todos os continentes. A variedade que nos distingue é em
1 EG, 273; ChV, 25.
1

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si mesma um dom e uma responsabilidade que não podemos recusar. Ser tão rico
em cultura e tão amplamente presente no mundo é fruto da história da missão e
do carisma em que fomos gerados e que são um dom do Espírito. Viver juntos como
povo de Deus (laós = povo, do qual provém leigo, ou seja, membro do povo) para o
bem dos jovens do Oriente ao Ocidente do globo, do Sul ao Norte, está em plena
sintonia com o que a Igreja pede insistentemente há muito tempo, e é do que o
nosso mundo fragmentado precisa sempre mais.
Como consagrados e consagradas na Família Salesiana, somos igualmente
convidados a ser "fermento na massa do pão da humanidade" e a viver uns com os
outros, deixando-nos enriquecer pela secularidade evangélica de tantos irmãos e
irmãs. Com eles, de fato, partilhamos grande parte dos nossos dias. Portanto, a
secularidade já está no nosso DNA de salesianos consagrados e consagradas,
porque fomos gerados na família à qual Dom Bosco deu vida no primeiro Oratório
e que, desde o início, era formada por consagrados e leigos. Nascemos com esta
intensa proximidade e participação entre estados de vida e vocações. Enfim, e para
dizer em poucas palavras, somos chamados como Família a doar-nos e
complementar-nos reciprocamente.
1. O fermento do Reino
Jesus disse ainda:
«A que posso comparar o Reino de Deus?
É semelhante ao fermento que uma mulher toma
e mistura em três medidas de farinha
e toda a massa fica fermentada.» (Lc 13,20-21)
O fermento trabalha silenciosamente. A fermentação acontece no silêncio, assim
como a ação do Reino de Deus; trabalha "a partir de dentro".
Quem, de fato, consegue ouvir o fermento enquanto atua na farinha e na massa
em que foi colocado, enquanto fermenta a massa toda? Esta imagem permite-nos
compreender a ação do Reino de Deus. O próprio apóstolo Paulo apresenta o Reino
recordando o essencial: «O Reino de Deus, de fato, não é nem comida nem bebida,
mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo" (Rm 14,17). Pois bem, este é o modo
de o Espírito agir interior e invisivelmente; é o fermento colocado no coração. E,
como o fermento realiza a sua ação através do contato direto, o mesmo acontece
com o Evangelho.
A parábola do fermento, escolhida como tema da Estreia 2023, possui uma grande
sabedoria evangélica e pedagógica apresentando um vigoroso valor educativo: ela
expressa de forma completa a natureza do Reino de Deus que Jesus viveu e
ensinou.
Há várias interpretações e ênfases possíveis. A minha opção interpretativa para a
Estreia deste ano é apresentar o fermento como imagem-símbolo da fecundidade e
2

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do crescimento, típicos do Reino de Deus. Reino que no coração das pessoas
fecunda o chamado à vida, a vocação que Deus nos plantou, orientando a missão
dos leigos e da família inteira de Dom Bosco no mundo todo.
«Um pouco de fermento faz fermentar a massa inteira» (Gl 5,9). Impressiona ver
como uma porção de farinha dobra ou triplica o seu volume graças à adição de
uma pitada de fermento. O Senhor diz que o Reino de Deus é como o fermento que
fermenta a farinha amassada e prepara o pão. O fermento, como Jesus ressalta,
não é um elemento presente em grandes quantidades. Pelo contrário, usa-se muito
pouco dele. Mas o que o distingue é ser o único ingrediente vivo e, por estar vivo,
tem o poder de influenciar, condicionar e transformar a massa inteira.
Podemos afirmar, então, que o Reino de Deus é
«uma realidade humanamente pequena e de aparência irrelevante. Para fazer
parte dele é preciso ser pobre de coração; não confiar nas próprias capacidades,
mas no poder do amor de Deus; não atuar para ser importante aos olhos do
mundo, mas precioso aos olhos de Deus, que tem predileção pelos simples e
humildes... o Reino de Deus requer a nossa colaboração, mas é sobretudo
iniciativa e dom do Senhor. A nossa obra frágil, aparentemente pequenina face à
complexidade dos problemas do mundo, se for inserida na de Deus, não receia
as dificuldades. A vitória do Senhor é certa: o seu amor fará germinar e crescer
todas as sementes de bem presentes na terra. Isso nos abre à confiança e à
esperança, não obstante os dramas, as injustiças, os sofrimentos que
encontramos. A semente do bem e da paz germina e desenvolve-se, porque o amor
misericordioso de Deus a faz amadurecer».2
2. O Reino de Deus continua a crescer no nosso mundo, entre luzes
e sombras
No Evangelho, o Reino vem com o próprio Jesus: é a sua presença, a sua palavra
— ele, o Verbo feito carne. É o seu modo de viver com o povo, misturando-se com
pessoas de todas as camadas sociais, entre as quais Ele prefere aqueles que os
outros excluem. Há uma passagem no Evangelho segundo Mateus que abre uma
janela sobre o modo como o Reino de Deus é vivido por Jesus.
«Os fariseus saíram e deliberaram sobre os meios de o matar.
Jesus ao saber disso afastou-se daquele lugar.
Uma grande multidão o seguiu, e ele curou a todos e impôs-lhes de não o divulgar,
para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías:
"Eis o meu servo a quem escolhi,
o meu bem-amado em quem pus toda a minha afeição.
Porei o meu Espírito sobre ele
e ele anunciará a justiça às nações.
Ele não contestará nem gritará;
não se ouvirá a sua voz nas praças.
2 FRANCISCO, Ângelus, Roma, 14 de junho de 2015.
3

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Não quebrará o caniço rachado,
nem apagará a mecha que ainda fumega,
até que faça triunfar a justiça.
Em seu nome as nações pagãs porão a sua esperança"» (Mt 12,14-21).
Jesus mesmo age como fermento no meio do povo mais simples, entre os pobres e
os doentes carentes de cura.
«E ele curou a todos»: é o aspecto "laical" de Jesus, entre o laós, o seu povo, em os
quais não há diferença de classe social ou proveniência; em que todos parecem
unir-se pela pobreza e pela necessidade de ajuda. Uma vulnerabilidade que não lhe
é estranha, como apresentam os primeiros versículos, que falam da clara
hostilidade dos fariseus: sinal premonitório da cruz que se aproxima e, quando Ele
se faz pobre para nos enriquecer, alcançando a sua plena realização (cf. Jo 19,30).
«Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no
Evangelho» (Mc 1,14-15). A expressão está presente 122 vezes no Evangelho e 90
vezes nos lábios de Jesus. Como o grande teólogo Karl Rahner expressou muitas
vezes, é evidente que o Reino de Deus está no centro da pregação de Jesus. Jesus
viveu o Reino em plenitude, demonstrando em sua ação o amor incondicional de
Deus pelos últimos, e o seu modo de vida é assumido como por osmose pelos doze
e continuado na Igreja primitiva: «Aquele que crê em mim também fará as obras
que eu faço e fará obras ainda maiores» (Jo 14,12).
Também hoje reconhecemos que há muito de bom sendo feito e crescendo em todas
as latitudes, neste Reino em construção. Também reconhecemos a presença de
muita dor: uma aflição que muitas vezes é consequência direta do nosso modo de
ser e agir no interior da família humana.
Somos chamados a abrir os olhos e os corações ao modo de agir de Deus que
estabelece o seu Reino de acordo com os seus caminhos. Sintonizando-nos com a
sua maneira de ser e agir, colaboramos com Ele, como trabalhadores na sua vinha.
Caso contrário, ela deixa de ser "de Deus" para ser somente uma obra nossa.
A abertura universal que nos caracteriza como Família Salesiana está em plena
harmonia com o Evangelho do Reino. A proximidade com muitas comunidades
humanas diferentes em cerca de 75% dos países do mundo já é um potencial
formidável de unidade e missão. A Igreja é constituída por mais de 99% de leigos.
Imaginemos como a proporção aumenta se considerarmos e abraçarmos toda a
família humana: os leigos são a massa além de fermento do Reino. Como São João
Paulo II escrevia há mais de 30 anos, neste vasto mundo, «a missão está apenas
nos inícios».3
Às vezes, a nossa contribuição humana ou os nossos pequenos esforços podem
parecer insignificantes, mas perante Deus são sempre preciosos. Não devemos nem
podemos medir a eficácia ou os resultados dos nossos esforços calculando o quanto
investimos neles, o esforço que exigem de nós, como se fossem os únicos fatores
3 JOÃO PAULO II, Carta encíclica Redemptoris missio, Roma 7 de dezembro de 1990, n. 40.
4

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envolvidos, já que a razão e o movente de tudo é Deus. Não nos percamos em
desculpas que paralisam a missão e a construção do Reino. Para Dom Bosco,
também o ótimo pode ser inimigo do bom: não é preciso esperar pelas
circunstâncias ideais para dar o primeiro passo. O estilo do Reino vivido de acordo
com o carisma salesiano é este: ter consciência dos nossos limites, livres do
triunfalismo e do gosto da autorreferência estéril e, ao mesmo tempo, cheios de
confiança, certos de que sempre começamos por «um ponto acessível ao bem» (MBp
V, 316).
Contemplando a realidade com os "olhos" e o "coração" de Deus, compreenderemos
que a pequenez e a humildade não significam fraqueza e inércia. É pouco o que
podemos fazer diante do muito que nos é exigido. No entanto, nunca é "não
suficiente" ou irrelevante, porque é Deus quem nos faz crescer. É a força de Deus
que vem em nosso auxílio. E, enfim, é Deus quem acompanha o nosso trabalho, os
nossos esforços, o nosso ser um pobre fermento na massa. Desde que façamos
tudo e sempre em seu nome.
3. A família humana precisa de filhos e filhas responsáveis
«As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há
realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu
coração»4.
Assim começa a Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II.
Dentro de três anos, comemoraremos o 60º aniversário da sua promulgação.5
Ela marcou e continua a marcar o horizonte em que a Igreja é chamada a se
mover: um panorama tão familiar aos que, na Igreja e no mundo, realizam uma
missão como a de Dom Bosco, em que a vitalidade juvenil e a compaixão por
aqueles que são pobres e sofrem estão sempre presentes.
É um convite a sentir-nos solidários e a entrar sem temores neste tempo que nos
é dado viver, com desafios que parecem crescer em intensidade, sempre mais
globais e nos quais os primeiros a serem afetados, muitas vezes de modo trágico,
são os segmentos mais jovens da população.
É um estímulo para descobrir o significado da própria existência sabendo que a
minha vida nunca está isolada da de todos os outros. O "eu" e o "nós" só podem
existir juntos e viver bem. A parábola do fermento e a proposta desta Estreia
ajudam a sintonizar-nos com os processos em evolução que moldam a história
humana. O fermento amalgamado com a massa do pão precisa do próprio tempo
para fermentar; e nós também temos a responsabilidade e o compromisso de
4 GS, 1.
5 A Constituição foi promulgada por ocasião da celebração das Vésperas da Solenidade da
Imaculada Conceição em 7 de dezembro de 1965.
5

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construir esta família humana para que o mundo seja mais habitável, mais justo,
mais fraterno.
Conhecemos o quanto de bem nos rodeia, mas também o sofrimento, a injustiça
e o sofrimento que, como já disse, ainda oprimem o mundo em que vivemos. O
Papa Francisco lembra-nos exatamente disso quando afirma:
«cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e
levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a
justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser
conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no
passado nem se instalar a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar
que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos
interpelam a todos».6
Aumenta o grito dos pobres, a maioria dos quais são crianças, adolescentes e
jovens; enfrentamos desafios que são tão extensos quanto os que encontramos
nas origens da nossa missão. Nascemos para este tempo não menos do que Dom
Bosco para o dele. Sentimos intenso o chamado que vem da família humana da
qual fazemos parte como indivíduos e como comunidade; família marcada e
ferida pela carência premente de justiça e dignidade para os últimos e os
descartados;7 carente de paz e fraternidade;8 necessitada de cuidados pela casa
comum.9
Não menos forte e radical, ou seja, na raiz de todos os anseios, estão a necessidade
da verdade10 e a necessidade de Deus.11
Diante desta realidade, precisamos viver muito conscientes da impossibilidade de
adiar para amanhã o bem que podemos e devemos fazer hoje. Somos chamados a
ser o fermento que transforma a família humana a partir de dentro. É um mandato
fundamental e coincide com a nossa própria vida, com o nosso ser humanos:
ninguém pode se retirar ou se considerar excluído desse mandato.
Por isso, como membros da Família de Dom Bosco e inspirados pela dinâmica
evangélica do fermento, pretendemos aprofundar e reconhecer a riqueza de fazer
parte desta Família, humana e salesiana, na qual muitos nesta Família de Dom
Bosco são leigos e leigas, e em que, como consagrados, devemos enriquecer-nos
desta complementaridade.12 Ser leigo é um estado de vida, uma vocação que
caracteriza de maneira tão preponderante todas as presenças no mundo que, de
6 FRANCISCO, Encontro com as autoridades, a sociedade civil e o Corpo diplomático, Santiago do Chile
(16 de janeiro de 2018), citato in Fratelli tutti, 11. FT, 8 e 11.
7 Cf. FT, 15-17; 18-21; 29-31; 69-71; 80-83; 124-127; 234.
8 Cf. FT 88-111; 216-221; ChV 163-167.
9 Cf. toda a Encíclica Laudato Si’.
10 Cf. LF 23-25; FT 226-227.
11 Cf. LF 1-7; 35; 50-51; 58-60.
12 Cf. J. E. VECCHI, La famiglia salesiana compie venticinque anni, in M. BAY (ED.), Educatori
appassionati esperti e consacrati per i giovani. Lettere circolari ai Salesiani di don Juan E. Vecchi,
LAS, Roma 2013, 137.
6

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várias maneiras, se identificam ou se sintonizam com a Família de Dom Bosco.
Reconhecidos e unidos como autêntica família, queremos valorizar ao máximo o
dom da sua vida, a força da sua fé, a beleza da sua família, a sua experiência de
vida e trabalho, a sua capacidade de interpretar e viver o carisma e a missão de
Dom Bosco para os jovens e para o mundo de hoje.
4. O leigo, um cristão que "santifica o mundo a partir de dentro"
As coisas estão assim: o leigo na Igreja e na Família Salesiana é e sempre será um
cristão comprometido que "santifica o mundo a partir de dentro".
Um olhar correto e atento sobre a eclesiologia proposta pelo Concílio Vaticano II
permite-nos declarar que hoje, especialmente como cristãos, não podemos aceitar
(e muito menos encorajar) um dualismo entre sagrado e profano na realidade de
um mundo que foi criado por Deus. Certamente a deriva dualista ocorreu quando
a legítima autonomia das "coisas seculares" não foi adequadamente compreendida,
em oposição às "coisas sagradas" ou religiosas.
A Igreja, desde as origens do cristianismo e especialmente desde o Concílio
Vaticano II, reconheceu claramente a relação do cristão com o mundo em que vive;
mesmo em uma sociedade onde ser cristão era e é algo marginal.
A Carta "A Diogneto" (século II d.C.) — na minha opinião uma bela obra da
literatura cristã primitiva — oferece uma descrição admirável do cristão no mundo:
«Os cristãos, na verdade, não se distinguem dos outros homens, nem pela sua terra,
nem pela sua língua ou costumes. Na verdade, não moram em cidades próprias,
nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina
não foi inventada por eles, graças ao talento e a especulação de homens excêntricos,
nem professam, como outros, algum ensinamento humano.
Vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adequando-
se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um
modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem em sua pátria, mas como
forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros;
toda pátria estrangeira é sua pátria, mas vivem em cada pátria como em terra
estrangeira. [...]
Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim também estão os
cristãos no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo, e os
cristãos estão em todas as partes do mundo [...].13
É um texto magnífico e muito útil para compreender a laicidade cristã que
pretendemos apresentar, indicado no título da Estreia com "dimensão laical" da
vida cristã e da nossa Família Salesiana.
A Família Salesiana de Dom Bosco é chamada hoje a viver no mundo como
fermento, colaborando, a partir da própria condição de crente, na construção de
13 Carta a Diogneto (Cap. 5-6; Funk 1, 317-321).
7

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um mundo melhor, onde quer que estejamos, independentemente de nação,
cultura ou religião. A Igreja deu um nome a este amplo campo de ação: a natureza
secular da vocação dos leigos.
«O caráter secular é próprio e peculiar dos leigos. [...] Por vocação própria, compete
aos leigos buscar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-
as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e atividade
terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como
que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu
próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do
mundo a partir de dentro, como o fermento, e assim manifestem Cristo aos outros,
antes de mais nada pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé,
esperança e caridade. Portanto, a eles compete especialmente, iluminar e ordenar
de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas
sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e
Redentor».14
E não é menos verdadeiro que a condição dos fiéis leigos é comum a todos, e que
todos somos corresponsáveis do Reino.
«Teologicamente, a laicidade da Igreja é entendida a partir do significado da relação
igreja-mundo e do sacerdócio comum, da profecia e da dimensão real; todo batizado
é membro de uma Igreja que deve servir ao mundo para tornar presente a vontade
salvífica de Deus e Seu Reino, mesmo que todo batizado exerça ou desenvolva essa
secularidade de uma forma particular, de modo que haja uma diversidade de
ministérios e funções e, em certa medida, de "presença e situação" no mundo, na
história e na sociedade».15
É importante entender em que consiste esse "estilo cristão" como modo de estar
presente na sociedade, segundo o Concílio Vaticano II;16 o caminho a seguir para
a evangelização e a ação missionária da Igreja numa sociedade em que a
religiosidade não pode mais ser considerada como algo óbvio e sempre presente.
Ao reconhecer a "autonomia do profano" como um aspecto legítimo da
secularidade, a teologia preocupa-se em distinguir entre a autonomia das tarefas
profanas e o reino do religioso, com o legítimo direito à coexistência de ambas as
realidades. Em outras palavras, destaca o aspecto legítimo da laicidade, que é
muito diferente do "secularismo" associado a uma secularização radical inimiga de
tudo que seja religioso. O fato religioso em seus vários "credos" tem todo o direito
14 LG, 31. A exortação apostólica Christifideles laici (1988) sintetiza muito bem que é tarefa de todos
os batizados, embora de diversas maneiras, ser fermento no mundo: «As imagens evangélicas do
sal, da luz e do fermento, embora se refiram indistintamente a todos os discípulos de Jesus, têm
uma aplicação específica nos fiéis leigos. São imagens maravilhosamente significativas, porque
falam não só da inserção profunda e da participação plena dos fiéis leigos na terra, no mundo, na
comunidade humana, mas também e, sobretudo, da novidade e da originalidade de uma inserção
e de uma participação destinadas à difusão do Evangelho que salva» (Cf. ChL 15).
15 R. BERZOSA, «¿Una teología y espiritualidad laical?», Revista Misión Abierta,
(mercaba.org/fichas/laico).
16 Cf. C. THEOBALD, La fede nell’attuale contesto europeo. Cristianesimo come stile, Queriniana,
Brescia 2021, 96-146.
8

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de existir e de ter "carta de cidadania". O Concílio Vaticano II é decisivo sobre esse
propósito:
«Muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a ligação íntima entre a
atividade humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos
homens, das sociedades ou das ciências. Se por autonomia das realidades terrenas
se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios,
que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é
perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de ser uma exigência dos
homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do
Criador (...).
Seja permitido, por isso, deplorar certas atitudes de espírito que não faltaram entre
os mesmos cristãos, por não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia
da ciência [...]. Se, porém, com as palavras "autonomia das realidades temporais"
se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas
sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade
de tais asserções. Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste».17
A antropologia cristã deve procurar traduzir, hoje assim como no passado, os
valores e a mensagem de salvação transmitida pelo Evangelho para a linguagem
das diversas sociedades e culturas do mundo. Trata-se de harmonizar a legítima
autonomia do homem com a validade, autenticidade e coerência da fé cristã. Este
é o desafio para o crente, para os fiéis cristãos e para nós em nossa missão como
Família de Dom Bosco: respeito por todos, mas sem temor e vergonha pela nossa
condição de crentes!
A Igreja, com a voz do Concílio Vaticano II, recorda-nos que é um grave erro separar
a vida quotidiana da vida de fé.
«Afastam-se da verdade os que, sabendo que não temos aqui na terra uma cidade
permanente, mas que vamos em demanda da futura, pensam que podem por isso
descuidar dos seus deveres terrenos, sem atenderem ao que a própria fé ainda os
obriga mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um. Mas não erram
menos os que, pelo contrário, opinam poder entregar-se às ocupações terrenas,
como se estas fossem inteiramente alheias à vida religiosa, que pensam consistir
apenas no cumprimento dos atos de culto e de certos deveres morais. Esta
dissociação entre a fé que professam e o comportamento quotidiano de muitos deve
ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo».18
Trata-se de viver como cristãos em um mundo que não será melhor sem o pequeno
fermento que o cristianismo traz ao mundo criado por Deus. É pela humildade,
mas também pela convicção do valor da nossa fé, em diálogo com as diversas
sociedades e culturas, que podemos contribuir para melhorar a vida das pessoas
ao nosso redor, renunciando a toda lógica de proselitismo ou imposição. Para dizer
com as palavras de um magnífico pastor e homem de reflexão capaz de dialogar
com a cultura, o Cardeal Carlo Maria Martini: «Brandir um credo, seja ele científico,
17 GS, 36.
18 GS, 43.
9

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filosófico ou teológico, para conseguir fechar as contas impondo uma solução, é
uma dolorosa premissa para uma ideologia que é fonte de violência».19 Mas também
não é aceitável que os cristãos de todos os tempos — e especialmente de hoje —
pratiquem um confortável irenismo ou uma tolerância que reduz a coerência, o
testemunho e a autenticidade pessoal e comunitária.
E, como o fermento na massa passa quase despercebido, também a nossa
colaboração na edificação da Igreja e na construção de uma sociedade mais
humana, mais justa e mais de acordo com a vontade de Deus, pede-nos para
considerarmos que é mais importante fazer o bem do que ser-nos atribuído o bem
que é feito; o mais importante será sempre contribuir para o bem da sociedade e
do mundo, mesmo "sem direitos autorais", sem confundir ação efetiva com
protagonismo, reconhecendo ao mesmo tempo que o bem que é feito pelos outros
é no mínimo tão valioso quanto o nosso. Se não estivermos convencidos, releiamos
a passagem do Evangelho em que o Senhor corrige os discípulos por tentarem
impedir o bem que outros estavam fazendo, mesmo não sendo do "grupo deles".
Devemos exercitar-nos para uma leitura crente da realidade que inclua outros,
promovendo o diálogo com os outros, com a cultura, com os meios de comunicação,
com os intelectuais, com aqueles que pensam diferente e até mesmo em oposição
a nós. Esses são os hábitos virtuosos exigidos pela nossa maneira de estar no
mundo, o "estilo cristão e salesiano" que podemos trazer para a visão do mundo e
das coisas.
Esse estilo permitirá tecer relações com outras pessoas consagradas, com outros
ministros ordenados, com outros fiéis leigos, com outros cristãos e com outros
homens e mulheres de outras religiões. Parece que essa é uma boa maneira de ser
«chamados a contribuir, como a partir de dentro como fermento, para a santificação
do mundo».20 Um modo de fazer as coisas que nos coloca em sintonia com «a
vocação universal à santidade na Igreja».21 E como a Igreja está envolvida no
mundo na dupla dimensão transcendente e imanente, todo cristão deve ser um
sinal do Reino de Deus já presente na história humana. Se a piedade e a devoção,
a vida de oração e a vida sacramental enfatizam o perfil transcendente desta
santidade, o compromisso social com a justiça e a fraternidade humana ressalta,
para nós, a dimensão cristã imanente. Como Dom Bosco, vivemos com os pés no
chão e os olhos fixos no céu. Nesse sentido, um membro qualificado da nossa
Família Salesiana ofereceu-nos a própria reflexão vital como leigo no mundo e na
Família de Dom Bosco, definindo os fiéis leigos na Igreja e na Família de Dom Bosco
como aqueles homens e mulheres com uma tripla pertença: pertencer a Cristo,
pertencer à Igreja e pertencer ao mundo.22
19 Cf. C. M. MARTINI, Los movimientos en la Iglesia, LEV, 1999, p. 156 (tradução do autor para a
língua italiana).
20 Lumen gentium, 31.
21 Título do capítulo V da Lumen gentium
22 Cf. A. BOCCIA, Credenti Laici nella Chiesa e nella Famiglia di Don Bosco. Uomini e donne delle tre
appartenenze, Edizione privata.
10

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O Papa Francisco, no belo encontro que tivemos por ocasião da canonização de
Artêmides Zatti, ao apresentá-lo como "parente de todos os pobres", lembrou-nos
que faz parte da nossa vocação salesiana ser educadores do coração, preparando
as pessoas, especialmente os jovens, para o mundo de hoje:
«Assim, um hospital tornou-se a “Pousada do Pai”, sinal de uma Igreja que quer ser
rica em dons de humanidade e Graça, morada do mandamento do amor a Deus e
ao irmão, lugar de saúde como penhor de salvação. É também verdade que isto faz
parte da vocação salesiana: os salesianos são os grandes educadores do coração, do
amor, da afetividade, da vida social; grandes educadores do coração!»23
Levar à Igreja e ao mundo o dom do carisma laical vivido na Família Salesiana é a
resposta vocacional que nos leva a estar presentes como sinais e testemunhas,
dialogando e oferecendo o humilde serviço do que somos pelo bem comum.
É da e na própria vida laical, que em muitos casos passa por meio da vocação
específica na família e na vida profissional no mundo, que os leigos, e em particular
os leigos cristãos, os leigos da família de Dom Bosco, são chamados a estabelecer,
promover e apoiar os valores evangélicos na sociedade e na história, contribuindo
para a consecratio mundi, para a consagração do mundo, para o estabelecimento
do Reino de Deus aqui e agora.
São Francisco de Sales, cujo quarto centenário da morte acabamos de celebrar, é
um dos profetas mais singulares e fecundos da história da Igreja, capaz de iluminar
a grandeza da vocação de cada um. Assim foi para muitos leigos de todas as
camadas sociais que ele acompanhou pessoalmente, ajudando-os a florescer no
jardim em que foram plantados pelo Senhor, até a plena santidade. São Francisco
de Sales continua a ser fonte de inspiração sempre nova e insubstituível para
aqueles que se reconhecem como "Salesianos", qualquer que seja o seu estado de
vida.
Em sua recente Carta Apostólica oferecida pelo Papa Francisco a todas as famílias
religiosas que se referem ao carisma de São Francisco de Sales, destaca-se a
importância da espiritualidade que o santo genebrino propôs no seu tempo, e que
ainda hoje é de extrema atualidade na teologia dos leigos.
«Quase todos os que trataram da devoção interessaram-se em instruir pessoas
apartadas do mundo ou, pelo menos, têm ensinado um tipo de devoção que leva a
esse isolamento. Pretendo oferecer meus ensinamentos àqueles que vivem nas
cidades, na família, na corte, e que, em virtude de seu estado, são forçados por
conveniências sociais a viver entre os outros».24
É por isso que erram aqueles que pensam em relegar a devoção a algum âmbito
protegido e reservado. Ao contrário, ela pertence a todos e é para todos, onde quer
23 FRANCISCO, Discurso aos Salesianos reunidos para a canonização do Beato Artêmides Zatti, Roma,
8 de outubro de 2022.
24 S. FRANÇOIS DE SALES, Introduction à la vie dévote, I,1: ed. Ravier – Devos, Paris 1969, 23 (tradução
do autor para a língua italiana).
11

2.2 Page 12

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que vivamos, e todos podem praticá-la de acordo com a própria vocação. Como
escreveu São Paulo VI no quarto centenário do nascimento de Francisco de Sales:
«A santidade não é prerrogativa de uma ou de outra classe; mas a todos os cristãos
é dirigido o convite premente: "Amigo, vem mais para cima" (Lc 14,10); todos estão
ligados pela obrigação de subir a montanha de Deus, mesmo que nem todos pelo
mesmo caminho.
A devoção deve ser exercida de maneira diferente pelo cavalheiro, o artesão, o servo,
o príncipe, a viúva, a jovem, a esposa. Ainda, a prática da devoção deve ser adequada
às forças, aos negócios e aos deveres de cada um».25
Esta era a sua intenção e continua a ser uma valiosa lição para cada mulher e
homem do nosso tempo: passar pela cidade secular, conservando a interioridade,
unir o desejo de perfeição ao estado de vida, encontrando um centro que não se
aparta do mundo, mas ensina como habitá-lo, como apreciá-lo, ao mesmo tempo
em que aprende a se distanciar dele.
Este é o tema conciliar da vocação universal à santidade:
«Munidos de meios salutares de tal abundância e grandeza, todos os fiéis de todos
os estados e condições são chamados pelo Senhor, cada um à sua maneira, a uma
santidade cuja perfeição é a do próprio Pai celeste».26
«Cada um à sua maneira».
«Portanto, não é o caso de desanimar ao contemplar modelos de santidade que
parecem inalcançáveis. A Mãe Igreja no-los propõe não para procurarmos copiá-los,
mas para nos estimularem a caminhar no caminho único e específico que o Senhor
projetou para nós. O importante é que cada crente descubra o próprio caminho e
faça sobressair o melhor de si, aquilo que de muito pessoal Deus colocou nele» (Cf.
1Cor 12,7).27
A Igreja, «conjunto dos que são chamados», estando no significado original do
termo, vive graças à riqueza de cada vocação que a define. Todo chamado está a
serviço de todos os outros e somente no doar-se pode expressar e redescobrir a sua
plena identidade. Os dons não são propriedade privada e exclusiva de um grupo.
Como batizados, todos nós participamos do sacerdócio de Cristo, da profecia e da
realeza d'Aquele que veio para servir e dar a vida. O ministério ordenado só pode
ser entendido como um serviço ao sacerdócio comum de todos os fiéis. Assim
também, o que é típico da condição laical é um dom para todos, que entra na vida
e no chamado de todos os outros membros do único corpo de Cristo. A "dimensão
secular" é, portanto, compartilhada também por aqueles que pertencem à vida
consagrada ou ao ministério ordenado: a história de Dom Bosco oferece-nos uma
esplêndida evidência disso. Dom Bosco é um padre da diocese de Turim que funda
25 PAULO VI, Carta Ap. Sabaudiae gemma, no IV centenário do nascimento de São Francisco de
Sales, doutor da Igreja (29 de janeiro de 1967), in AAS 59 (1967), 119.
26 LG, 11.
27 FRANCISCO, Carta Apostólica Totum amoris est, no IV Centenário da morte de São Francisco de
Sales, LEV, Cidade do Vaticano 2022, 32-34.
12

2.3 Page 13

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duas congregações de consagrados e consagradas e duas outras associações
laicais; e com todos eles, e com tantos outros que sabe envolver, mergulha
intensamente no "século" em que vive, nas vidas e problemas de centenas de
milhares de jovens, superando sem temor as grandes dificuldades e fronteiras, com
uma fecundidade que hoje inspira milhões de pessoas – para além das diferenças
nacionais, culturais e religiosas.
Ser cristão e ser leigo abre o caminho para fazer frutificar com a máxima
intensidade o talento laical, secular, empenhando-o na infinita riqueza de
possibilidades abertas àqueles que vivem no mundo animados pela fé, esperança e
caridade. O Concílio Vaticano II proclamou-o claramente:
«Por vocação própria, compete aos leigos buscar o Reino de Deus tratando das
realidades temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em
toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida
familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São chamados
por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito
evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o
fermento,28 e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais nada pelo
testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade.
Portanto, a eles compete especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as
realidades temporais, às quais estão estreitamente ligados, para que sejam sempre
feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor».29
Não é tarefa do comentário à Estreia definir todas as áreas e realidades da vida em
que a presença dos leigos é transformadora e pode ser o fermento do Reino de Deus
que ninguém mais poderia "amassar" com a mesma eficácia e capilaridade. Em
todo caso, os leigos na Igreja têm um espectro amplo e complexo de potencialidades
e desafios, de situações a enfrentar que são ao mesmo tempo outros tantos apelos
para quem deseja ser «sal da terra e luz do mundo».
Entrar na concretude do "onde", do "quando" e do "como" é o caminho aberto diante
de cada pessoa e de cada grupo, de acordo com a sua natureza específica. Um
caminho que a Estreia deste ano nos convida e exorta a retomar, intensificar e fazer
nosso com coragem e generosidade, tornando atual a mensagem da própria Igreja
quando diz:
«Aos olhos iluminados pela fé abre-se um cenário maravilhoso: o de inúmeros fiéis
leigos, homens e mulheres, que, precisamente na vida e nas ocupações do dia a dia,
muitas vezes inobservados ou até incompreendidos e ignorados pelos grandes da
terra, mas vistos com amor pelo Pai, são obreiros incansáveis que trabalham na
vinha do Senhor, artífices humildes e grandes — certamente pelo poder da graça de
Deus — do crescimento do Reino de Deus na história».30
28 Observo que a indicação em cursivo e negrito é uma opção pessoal, justamente para destacar o
tema que este comentário sobre a Estreia 2023 pretende enfatizar especificamente.
29 LG, 31.
30 ChL, 17.
13

2.4 Page 14

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Não resta dúvida de que para todos os membros leigos da Família Salesiana de hoje
— e para os consagrados e consagradas que vivem dia a dia enriquecidos pela sua
vocação e complementaridade — o mundo, a sociedade, a economia e a política, a
ação social a serviço dos outros, a vida cristã na vida diária é e deve ser sempre um
lugar teológico de encontro com Deus:
«O campo próprio da sua atividade evangelizadora é o mesmo mundo vasto e
complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da
cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos instrumentos de
comunicação social e, ainda, de outras realidades abertas à evangelização, como
sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho
profissional e o sofrimento. Quanto mais leigos houver impregnados do Evangelho,
responsáveis em relação a tais realidades e comprometidos claramente nas mesmas,
competentes para promovê-las e conscientes de que é necessário fazer desabrochar
a sua capacidade cristã muitas vezes escondida e asfixiada, tanto mais essas
realidades, sem nada perder ou sacrificar do próprio coeficiente humano, mas
patenteando uma dimensão transcendente para o além, não raro desconhecida, se
virão a encontrar ao serviço da edificação do reino de Deus e, por conseguinte, da
salvação em Jesus Cristo»31
5. A família de Dom Bosco chamada a ser fermento
Dom Bosco foi capaz de envolver muitas pessoas, tornando-as protagonistas ativas
e empreendedoras do mesmo sonho de salvação para os jovens. P. Júlio Barberis
anotou cuidadosamente o que Dom Bosco disse dirigindo-se aos jovens mais velhos
do Oratório na noite da festa de São José, 19 de março de 1876, pouco mais de
cinco meses após a partida dos primeiros missionários para a Patagônia. Referindo-
se ao campo e à vinha das parábolas evangélicas, e servindo-se da sua experiência
pessoal de vida no campo, ajuda os jovens de Valdocco a entender como cada um
pode desempenhar o seu papel, sempre precioso e importante, para o crescimento
do Reino de Deus. É tanto um exemplo secular quanto um exemplo evangélico e
eclesial de como somos chamados a fazer frutificar os nossos talentos, cada um
segundo a sua história de vida, a sua capacidade e o seu chamado. P. Barberis
retoma assim as palavras de Dom Bosco, que sem dúvida nos parecem da máxima
relevância teológica:
«O divino Salvador, vós compreendeis muito bem, por campo ou vinha entendia falar
da Igreja e de todos os homens do mundo: a colheita a se fazer consiste na salvação
das almas, pois todas as almas devem ser recolhidas e levadas para os silos do
Senhor. Oh, como é copiosa a messe; quantos milhões de homens há na terra!
Quanto trabalho ainda a fazer para conseguir que todos se salvem, mas operarii
autem pauci, os operários são poucos!
Por operários que trabalham na vinha do Senhor entendem-se todos os que de
alguma maneira concorrem para a salvação das almas. E, notai bem, que, como
alguém pode pensar, por operários aqui não se compreendem somente sacerdotes,
31 EN, 70.
14

2.5 Page 15

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pregadores e confessores, que sem dúvida mais efetivamente são postos a trabalhar
e mais diretamente se afadigam em recolher a messe, mas eles não estão sós, nem
seriam suficientes. Operários são todos que de alguma forma concorrem para a
salvação das almas; assim como operários no campo não são somente os que
recolhem o grão, mas também os demais.
Há quem ara a terra, quem a limpa; outros, com a enxada, a ajeitam; há quem a
aplaina com o ancinho; alguns lançam a semente, outros a cobrem; há quem
arranca as ervas daninhas, outros regam a terra em tempo oportuno; há quem colhe
os grãos, faz os feixes e os amontoa; há quem carrega o carro, quem o conduz; há
quem espalha os feixes no terreiro, quem bate o grão; há quem separa o grão da
palha; outros os leva ao moinho para fazer a farinha, depois a ensacam; há também
quem a peneira, quem a empasta, prepara o pão, coloca no forno.
Vede, caros amigos, quanta variedade de operários é necessária antes que a messe
possa chegar ao seu destino de dar-nos um pão excelente do paraíso.
Tanto no campo quanto na Igreja há necessidade de todo tipo de operários; não há
um só do qual se possa dizer: “Eu, embora meu comportamento seja irrepreensível,
não sirvo para nada no trabalho para a maior glória de Deus”. Não, não se fale isso
de ninguém; todos podem fazer alguma coisa de algum modo».32
Nascemos carismáticos como comunidade e como comunhão de pessoas de
diversas origens sociais, estados de vida, perfis profissionais... unidos pela mesma
missão e motivados pela mesma carga carismática que Dom Bosco sabe
comunicar.33 Essa é a natureza do Oratório nos anos da sua fundação — de 1841
a 1859 (18 anos!) —, em que a sinergia do povo de Deus ainda é fortemente
refletida, cooperando de várias maneiras para tornar os jovens em maior risco
«bons cristãos e honestos cidadãos». É inegável que nascemos desde o início como
um grupo do povo de Deus; essa é a natureza do nosso carisma e da nossa missão.
Estou muito consciente — e procuro transmitir esta consciência à nossa Família
Salesiana — de um fato particularmente óbvio: somente juntos, somente vivendo
em comunhão seremos capazes de fazer hoje algo significativo.
Fiz um forte apelo à Congregação Salesiana sobre a nossa missão compartilhada
com os leigos — um apelo que serve a toda a Família de Dom Bosco — e não o
atender levaria, em um futuro não muito distante, a um ponto perigoso de não
retorno.
Declarei:
«O nosso CG24 foi certamente uma resposta carismática à eclesiologia de comunhão
do Concílio Vaticano II. Bem sabemos que Dom Bosco, desde o início de sua missão
em Valdocco, envolveu muitos leigos, amigos e colaboradores para que eles
participassem de sua missão entre os jovens. Desde o início, ele "desperta
participação e corresponsabilidade de eclesiástico e leigos, de homens e mulheres".34
Trata-se, portanto, apesar das nossas resistências, de um ponto de não retorno
32 ISS, Fontes salesianas, 1. Dom Bosco a sua obra, EDB, Brasília 2014, 801-802.
33 J. E. VECCHI, o.c., 140-142.
34 CG24, n. 71.
15

2.6 Page 16

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pois, além de corresponder às ações de Dom Bosco, o modelo operativo da missão
compartilhada com os leigos proposto pelo GC24 é de fato "o único praticável nas
condições atuais"».35
Temos, assim, um ponto de não retorno para aqueles que decidem e decidiram
entrar neste estilo de missão, formação, vida compartilhada, que abre novos
horizontes de futuro para o carisma de Dom Bosco em plena harmonia com o
caminho que a Igreja está levando adiante com a orientação do Papa Francisco,
sem dúvida profético e exemplar.
Ao mesmo tempo, há também outro perigoso e arriscado não retorno daqueles que
não podem ou não querem cruzar este limiar e fecham-se em formas de isolamento
autorreferencial, não acompanhando mais os tempos no modo de viver e
interpretar a presença salesiana, e destinados a se tornarem irrelevantes e se
extinguirem com o passar dos anos.
O objetivo final da missão de Dom Bosco é, juntamente com a salvação dos seus
meninos, a transformação da sociedade. A visão ampla e corajosa de Dom Bosco,
a sua incansável operosidade, a sua resistência diante dos obstáculos... só se
explicam com esse horizonte de transformação social e evangelização dos jovens
em escala global.
Dom Bosco não se envolve em política, mas pode falar com os representantes dos
vários níveis de governo, porque o seu trabalho orienta-se claramente para o bem
dos jovens, dos quais ninguém que leve a sério a sociedade humana e o serviço aos
outros — como também o serviço público é e deveria ser para o bem de todos —
pode desinteressar-se.
Por isso, a nossa voz comum pode obter acesso e escuta muito além das fronteiras
confessionais se hoje encarnamos juntos esse mesmo zelo de predileção pelos
jovens que nos foi dado como carisma e que não podemos realizar a não ser em
comunhão como Família de Dom Bosco.
A complementaridade das vocações na família de Dom Bosco, viver unidos como
Família Salesiana e unidos ao grande número de leigos e leigas das presenças no
mundo, juntos na missão e na formação, torna-se uma exigência inevitável hoje e
ainda mais no futuro, se não quisermos permanecer irrelevantes.
E a comunhão no espírito de família e no interior do vasto movimento salesiano é
o grande dom que possuímos como herança preciosa.
6. À sombra de uma grande árvore com frutos esplêndidos
Em minha carta no final do Segundo Seminário para a promoção das Causas de
Beatificação e Canonização da Família Salesiana, escrevi:
35 CG24, n. 39.
16

2.7 Page 17

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«Desde Dom Bosco até hoje reconhecemos uma tradição de santidade que merece
atenção, pois é a encarnação do carisma que se originou com ele e se expressou em
uma pluralidade de estados de vida e de formas. Falamos de homens e mulheres,
jovens e adultos, consagrados e leigos, bispos e missionários que, em diferentes
contextos históricos, culturais e sociais no tempo e no espaço fizeram brilhar o
carisma salesiano com uma luz singular, representando a herança que desempenha
um papel eficaz na vida e na comunidade dos crentes e para os homens de boa
vontade».36
Com humildade e profundo sentimento de gratidão, reconhecemos na Família
Salesiana uma grande árvore com muitos frutos de santidade. São homens e
mulheres, jovens e adultos que encheram suas vidas com o fermento do amor,
amor que se entrega até o fim, fiel a Jesus Cristo e ao seu Evangelho.
A eclesiologia demonstra, como sabemos, que as diversas vocações têm uma raiz
batismal comum e são destinadas a contribuírem para o crescimento do povo de
Deus:
«Na Igreja-Comunhão os estados de vida encontram-se de tal maneira interligados
que são ordenados uns para os outros. Comum, direi mesmo único, é, sem dúvida,
o seu significado profundo: constituir a modalidade segundo a qual se deve viver a
igual dignidade cristã e a universal vocação à santidade na perfeição do amor. São
modalidades, ao mesmo tempo, diferentes e complementares, de modo que cada
uma delas tem a sua fisionomia original e inconfundível e, simultaneamente, cada
uma delas se relaciona com as outras e se põe ao seu serviço».37
Tal perspectiva indica que o carisma salesiano se completa quando a vocação e a
missão são vividas na reciprocidade e complementaridade dos diversos chamados.
Este deve ser o sentido profundo da Família Salesiana: um vasto movimento
apostólico para a salvação dos jovens.
É interessante notar que, entre os 173 santos, beatos, veneráveis e servos de Deus
da nossa Família, 25 são leigos que encarnaram o carisma salesiano na família, na
casa salesiana, na vida secular, na profissão, no espaço privilegiado do testemunho
cristão e em diferentes contextos sociais, históricos e culturais. Considero muito
apropriado lembrá-los como testemunho no interior do comentário desta Estreia:
- São Domingos Sávio, adolescente, expressão da santidade juvenil, fruto da
graça preventiva e primeiro de uma longa linhagem de jovens santos.
- Beata Laura Vicuña, adolescente, testemunha do poder do amor que dá vida e
recorda a realidade de uma família ferida.
- Beato Zeferino Namuncurá, jovem mapuche, recordando o valor e o respeito
pelas culturas indígenas e o trabalho de enculturação da fé e do carisma.
36 A. FERNÁNDEZ ARTIME, Carta do Reitor-Mor na conclusão do II Seminário de promoção da Causas
de Beatificação e Canonização da Família Salesiana, Roma, abril de 2018.
37 ChL, 55.
17

2.8 Page 18

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- Beatos Francisco Kęsy, Czesław Jóźwiak, Eduardo Kaźmierski, Eduardo
Klinik, Jarogniew Wojciechowski, mártires do Oratório de Poznań,
testemunhas da fé até o martírio.
- Entre os bem-aventurados mártires da perseguição espanhola, encontramos:
Alexandre Planas Saurí e João da Mata Díez, colaboradores leigos; Tomás Gil
de la Cal, Frederico Cobo Sanz e Higino de Mata Díez, três aspirantes à vida
salesiana; Bartolomeu Blanco Márquez, leigo e noivo; Teresa Cejudo
Redondo, esposa e mãe, salesianos cooperadores comprometidos com a
realidade eclesial, social e associativa de seu ambiente.
- Beata Alexandrina Maria da Costa, Salesiana Cooperadora, recordando a mais
elevada forma de cooperação: a união com a paixão redentora de Jesus.
- Beato Alberto Marvelli, ex-aluno do Oratório de Rimini, comprometido com o
mundo social e político.
- Venerável Mamãe Margarida Occhiena, presença materna e feminina na
origem do carisma.
- Venerável Doroteia Chopitea, esposa e mãe, que "acolhe" e faz crescer o
carisma salesiano, optando por uma vida pobre e pela disposição de se deixar
evangelizar pelos pobres.
- Venerável Atílio Giordani, esposo e pai, que encarna a alegria salesiana na
família, no trabalho, no oratório, em terras de missão.
- Servo de Deus Simão, indígena bororo, que compartilha a missão salesiana com
o P. Rodolfo Lunkenbein e recorda a necessidade de reconhecer e acolher as
sementes da verdade presentes em cada cultura e tradição.
- Serva de Deus Matilde Salem, esposa e benfeitora, que doa seus bens e sua
vida pela fecundidade do carisma na Síria e dá testemunho da força da
comunhão entre os cristãos e da capacidade de coexistência com fiéis de outras
religiões.
- Servo de Deus Antonino Baglieri, voluntário com Dom Bosco, que sabe como
ser fermento evangélico mesmo na doença.
- Serva de Deus Vera Grita, Salesiana Cooperadora e Professora, instrumento de
uma Obra mística que empenha todo cristão a fazer frutificar a graça da
Eucaristia.
- Servo de Deus Akash Bashir, jovem ex-aluno do Paquistão que deu a vida pelos
seus irmãos.
Entre estas numerosas e variadas figuras de santidade, gostaria de destacar
algumas que nos oferecem um testemunho significativo e original de santidade
laical e que, em minha opinião, mostram aquele aspecto multifacetado, ou seja,
rico em aspectos, lados, formas e cores, da vida laical vivida em diferentes
contextos, em diferentes séculos, com diferentes vocações, mas cheia da santidade
simples da vida quotidiana. A santidade da "porta ao lado" que sempre nos fará
muito bem descobrir. Detenho-me a contemplar:
18

2.9 Page 19

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Margarida Occhiena, a "Mamãe".
Sabemos como Dom Bosco, no início do Oratório, após pensar e repensar em
como sair das dificuldades, foi falar com o seu pároco em Castelnuovo, expondo-
lhe as suas necessidades e os seus temores. «Tens a tua mãe!» — respondeu o
pároco sem hesitar um momento — «faze-a ir contigo a Turim». Mamãe
Margarida chegou a Valdocco em novembro de 1846 e, durante dez anos, foi a
mãe de centenas de meninos. Em 1846 só o Oratório estava aberto e os meninos
afluíam principalmente aos domingos.
As Memórias Biográficas falam de ao menos 800 frequentadores. Durante a
semana, todas as noites após o trabalho na cidade, vinham os jovens da escola
noturna. Pode-se imaginar o barulho. As aulas ocupavam a cozinha e o quarto
de Dom Bosco, a sacristia, o coro, a capela. Vozes, cantos, indo e vindo. Mamãe
Margarida estava ali com eles. É certo que também alguns sacerdotes e leigos
vinham para ajudar Dom Bosco e algumas mulheres vieram mais tarde para
dar uma mão. Contudo, só Mamãe Margarida estava sempre presente, em tempo
integral. Essa disponibilidade tornou-a querida de todos e, por isso, era
reverenciada por todos os que a conheciam. Desde o início, quando chegou a
Turim, assim ficou conhecida pelo povo dos bairros vizinhos, não foi chamada
por outro nome que não fosse "Mamãe".
Ali, durante dez anos, a sua vida misturou-se com a do filho e com os inícios da
obra salesiana; ela foi a primeira e principal cooperadora de Dom Bosco; com
bondade ativa tornou-se o elemento materno do sistema preventivo. Iletrada —
mas cheia da sabedoria que vem do alto —, ela também foi o auxílio de muitos
pobres garotos de rua, filhos de ninguém, colocando Deus em primeiro lugar,
consumindo-se por Ele em uma vida de pobreza, oração e sacrifício.
Bartolomeu Blanco Márquez, jovem integralmente cristão
«Sou um operário, nascido de pais que também o eram. Vivi e vivo no ambiente
de estreiteza e trabalho das classes humildes e sinto certa rebelião correndo
pelas minhas veias, exacerbada às vezes pelo fogo do entusiasmo juvenil, uma
rebelião vigorosa contra aqueles que acreditam que não somos homens como
eles porque tivemos o infortúnio — ou talvez o destino — de nascer na pobreza,
de usar o avental de trabalho e ter as mãos ásperas e calejadas. Mas sejamos
claros: "Eu sou um operário e sou católico"».
Quem fala assim é um jovem de 19 anos, fabricante de cadeiras, um marceneiro,
no comício da Ação Popular em 5 de novembro de 1933 em Pozoblanco
(Córdoba, Espanha); um jovem íntegro e corajoso, com inteligência incomum,
de origens humildes, da classe trabalhadora, defensor dos direitos do povo e da
Igreja.
Nascido em Pozoblanco, em 25 de dezembro de 1914, perdeu a mãe na chamada
gripe espanhola. Também órfão de pai aos doze anos, precisou deixar a escola
e trabalhar como fabricante de cadeiras. Quando os salesianos chegaram a
Pozoblanco, em setembro de 1930, Bartolomeu frequentou o oratório e ajudou
como catequista e animador. Encontrou no P. Antonio do Muiño um diretor que
19

2.10 Page 20

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o incentivou a continuar a sua formação intelectual, cultural e espiritual por
meio da participação em círculos de estudo. Esse salesiano será, até a morte
prematura de Bartolomeu, o seu confessor e guia espiritual.
Bartolomeu é apreciado pelos parentes, amigos e colegas pela inteligência, pelo
trabalho apostólico e pelo comportamento de líder. Mais tarde, entra na Ação
Católica, da qual foi secretário, dando o melhor de si. Mudou-se para Madri a
fim de especializar-se no apostolado entre os operários no Instituto Social
Operário, destacando-se como orador eloquente e estudioso da questão social.
Após obter uma bolsa de estudos, pôde conhecer as organizações católicas de
trabalhadores na França, Bélgica e Holanda em uma viagem organizada pelo
Instituto Social Operário. Nomeado delegado dos sindicatos católicos, fundou
oito seções na província de Córdoba.
Quando explode a revolução, em 30 de junho de 1936, Bartolomeu retorna a
Pozoblanco, colocando-se à disposição da Guarda Civil para defender a cidade,
que após um mês se rendeu à outra facção em conflito. Acusado de rebelião, foi
levado para a prisão, onde continuou o seu comportamento exemplar: «Para
merecer o martírio, é preciso oferecer-se a Deus como mártir!». Foi julgado e
condenado à morte em Jaén, no dia 29 de setembro. Após a sentença, mantendo
a tranquilidade e defendendo-se com dignidade, ele diz: «Pensais fazer-me um
mal e, em vez disso, estais fazendo-me um bem porque estais esculpindo uma
coroa para mim».
As cartas que escreve à família e à noiva na véspera da sua morte são uma prova
clara disso. Escreveu às tias e aos primos: «Que esta seja minha última vontade:
perdão, perdão e perdão; mas indulgência, que desejo que seja acompanhada
fazendo o melhor possível. Portanto, peço-vos que me vinguem com a vingança
do cristão, retribuindo com o bem àqueles que tentaram me prejudicar».
E à noiva, Maruja: «Quando me restam algumas horas para o meu descanso
final, só quero te pedir uma coisa: que ao lembrares do amor que tivemos um
pelo outro e que está aumentando neste momento, cuides da salvação da tua
alma como teu objetivo principal, para que possamos nos encontrar no céu por
toda a eternidade, onde ninguém nos haverá de separar".
Seus companheiros de prisão mantiveram os detalhes emocionantes da sua
partida para a morte: com os pés nus, para assemelhar-se mais de perto a
Cristo. Quando lhe puseram as algemas nos pulsos, ele beijou as mãos do
miliciano que as colocava. Não aceita, como lhe propõem, ser baleado pelas
costas. «Quem morre por Cristo», disse ele, «deve fazê-lo de frente e com o peito
nu. Viva Cristo Rei!» e cai com os braços abertos em forma de cruz, crivado de
balas, ao lado de um carvalho. Estamos em 2 de outubro de 1936. Não tinha 22
anos de idade. Foi beatificado em Roma, em 28 de outubro de 2007.
Atílio Giordani, um laico “à moda de Dom Bosco”.
Nasce em Milão, em 3 de fevereiro de 1913. Distinguiu-se desde os primeiros
anos pela grande paixão pelo Oratório Salesiano Santo Agostinho e, aos dezoito
anos, pela sua dedicação aos jovens que o frequentavam. Durante décadas, foi
20

3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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um catequista diligente e um constante e brilhante animador, com grande
simplicidade e alegria. Cuida da liturgia, da formação, dos jogos, do lazer, do
teatro. Ama a Deus com todo o coração e encontra na vida sacramental, na
oração e na direção espiritual o recurso para a vida da graça. Durante o serviço
militar, que começou em 1934 e terminou, com fases alternadas, em 1945,
demonstrou a sua sensibilidade apostólica entre os companheiros.
Trabalha na indústria Pirelli de Milão, onde também espalha alegria e bom
humor, com o mais profundo senso de dever. Casa-se, em 6 de maio de 1944,
com a catequista Noemi D'Avanzo. Terão três filhos: Piergiorgio, Mariagrazia e
Paola. Em família, ele é um marido e pai cheio de grande fé e serenidade, em
uma deliberada austeridade e pobreza evangélica em benefício dos mais
necessitados.
Sem se afastar um mínimo da família, faz do oratório a sua segunda família,
pondo sua rica capacidade inventiva e sua extraordinária arte educativa a
serviço dos jovens. De acordo com a esposa Noemi, foi para o Mato Grosso
(Brasil) acompanhando os filhos na opção do trabalho missionário. Em 18 de
dezembro de 1972, durante uma reunião, depois de falar com entusiasmo e
ardor sobre o dever de dar a própria vida pelos outros, sentiu-se falhar
repentinamente. Teve o tempo de dizer ao filho: «Pier, tu continuas». Morreu de
um ataque cardíaco. É venerável desde 9 de outubro de 2013.
Sua vida de cristão, apostolicamente comprometido, tomou uma orientação tão
decisiva e pessoal que descobriu (estas são todas frases suas): "A alegria de
servir a Cristo"; "Não ser bom de qualquer jeito"; "Viver no mundo sem ser do
mundo"; "Caminhar contra a maré"; "Não buscar, mas dar"; "É preciso viver o
que se quer fazer viver". Essa maturidade cresce nas diversas etapas da vida:
como adolescente, como jovem militar, como soldado no front militar greco-
albanês, como resulta do seu "Diário de Guerra". Até mesmo a escolha da noiva
Noemi Davanzo é motivada por razões de fé, como lhe escreveu: «O Senhor, ao
aproximar-me de ti, colocou diante dos meus olhos o teu amor e o espírito de
dedicação pelos prediletos do Salvador: esta foi a mola mestra que me levou a
pedir-te como companheira».
A fé de Atílio é tão grande que é verdadeiramente um "sinal" da presença de
Deus na família, no oratório, na comunidade paroquial e para todos os que o
encontram; uma fé, mais do que proclamada, brilha em suas ações e em sua
maneira de ser: «A medida do nosso crer manifesta-se em nosso ser».
Vera Grita, "A excelente professora de Savona".
Nascida em Roma no dia 28 de janeiro de 1923, viveu e estudou em Savona,
onde obteve o diploma de magistério. Aos 21 anos, durante um imprevisível
ataque aéreo à cidade (1944), ela foi atropelada e pisoteada pela multidão em
fuga, com graves consequências para o seu corpo, ficando para sempre marcada
pelo sofrimento. Passou sem ser notada em sua breve vida terrena, ensinando
em escolas do interior da Ligúria, onde ganhou a estima e o afeto de todos pelo
seu caráter bom e afável. Em Savona, na paróquia salesiana de Maria
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3.2 Page 22

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Auxiliadora, participava da missa e era assídua ao sacramento da Penitência.
Salesiana Cooperadora desde 1967, percebeu o seu chamado ao dom total de si
ao Senhor, que de forma extraordinária se entregou a ela, no fundo de seu
coração, com a "Voz", com a "Palavra", para comunicar-lhe a Obra dos
Tabernáculos Vivos.
Sob o impulso da graça divina e aceitando a mediação de guias espirituais, Vera
Grita respondeu ao dom de Deus dando testemunho em sua vida marcada pelo
cansaço da doença, pelo encontro com o Ressuscitado e dedicando-se com
generosidade heroica ao ensino e à educação de seus alunos, contribuindo para
as necessidades de sua família e dando testemunho de uma vida de pobreza
evangélica. Faleceu em 22 de dezembro de 1969, aos 46 anos, em um pequeno
quarto de hospital em Pietra Ligure.
Vera Grita testemunha, antes de tudo, uma orientação eucarística totalizante,
que se tornou explícita especialmente nos últimos anos da sua existência. Ela
não pensou em termos de programas, iniciativas apostólicas e projetos; acolheu
o "projeto" fundamental que é aquele de Jesus, a ponto de torná-lo sua própria
vida. O mundo de hoje confirma uma grande necessidade da Eucaristia.
Sua caminhada na cansativa laboriosidade de todos os dias também oferece
uma nova perspectiva laical à santidade, tornando-se exemplo de conversão,
aceitação e santificação pelos "pobres", "frágeis", "doentes" que nela podem se
reconhecer e obter esperança.
Como Salesiana Cooperadora, Vera Grita vive e trabalha, ensina e encontra
pessoas com uma diferenciada sensibilidade salesiana: da doçura da sua
presença discreta, mas eficaz, à capacidade de fazer-se amar pelas crianças e
suas famílias; da pedagogia da bondade que vive com o seu sorriso constante à
generosa prontidão com que, atenta às dificuldades, volta sua atenção para o
último, o pequeno, o distante, o esquecido; da sua generosa paixão por Deus e
Sua glória até o caminho da cruz, deixando-se levar tudo em sua condição de
doente.
Akash Bashir, testemunha de fortaleza e de paz.
Ex-aluno de Dom Bosco, ele é o primeiro paquistanês cujo processo de
beatificação e canonização está em andamento. Em 15 de março de 2015,
sacrificou-se para impedir que um terrorista suicida causasse um massacre na
Igreja de São João em Youhannabad, um bairro cristão de Lahore, no Paquistão.
Akash Bashir tinha 20 anos, estudara no Instituto Técnico Dom Bosco em
Lahore e tornara-se voluntário da segurança.
O mais marcante neste simples jovem foi a sua fortaleza ao enfrentar o mal e
combater a violência homicida. A frase proferida ao terrorista antes da sua morte
— «Eu morrerei, mas não te deixarei entrar na igreja» — expressa sua fé intensa
e sua coragem heroica no testemunho de um amor sem medida. O evangelho
daquele quarto domingo da Quaresma (15 de março de 2015) anunciava as
palavras de Jesus a Nicodemos: «Quem pratica o mal odeia a luz e não vem para
a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas quem pratica a verdade
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vem para a luz. Torna-se assim claro que as suas obras são feitas em Deus» (Jo
3,20-21). Akash selou essas palavras com o seu sangue de jovem cristão. Lutou
corpo a corpo com o poder da morte, do ódio e da violência e fez triunfarem a luz
e a verdade. Lavou sua veste branca com o sangue do Cordeiro, tornando-a
resplendente (cf. Ap 7,14).
O contato com o mundo e o carisma salesiano reforçou em Akash as disposições
de bondade e generosidade que ele havia aprendido em família e na comunidade
cristã. Akash Bashir é um exemplo de santidade para todos os cristãos, um
exemplo para todos os jovens cristãos ao redor do mundo. E é, sem dúvida, um
sinal carismático do sistema educativo salesiano. Akash é a voz de muitos jovens
corajosos que conseguem dar suas vidas pela fé apesar das dificuldades, da
pobreza, do extremismo religioso, da indiferença, da desigualdade social e da
discriminação. A vida e o martírio deste jovem paquistanês fazem-nos reconhecer
o poder do Espírito Santo de Deus, vivo, presente nos lugares menos esperados,
nos humildes, nos perseguidos, nos jovens, nos pequenos de Deus.
E não nos esqueçamos de Artêmides Zatti no ano da sua canonização.
Ele era certamente um religioso consagrado, mas não se pode deixar de ficar
impressionado com a dimensão laical da sua santidade, vivida no exercício diário
da caridade na simplicidade de um pequeno hospital de uma humilde povoação.
Ele é exemplo e modelo de consagração ao seu povo no trabalho sacrificado e
paciente, tendo Deus como sua fonte, motivação na fé e objetivo único e último
de sua vida.
Suas vidas, as vidas de todos eles e seus exemplos são como "fermento na
massa" que continua a fazer crescer o Reino dentro de nós e ao nosso lado.
Os leigos dão o húmus ao crescimento da fé.38 A expressão de Bento XVI
lembra-nos que, graças à fé e ao trabalho de evangelização de muitos leigos, de
casados, de famílias e de comunidades cristãs, o cristianismo se enraíza e se
desenvolve no mundo. Por meio da graça do Batismo, a fé cresce e difunde-se.
Analogamente, também as testemunhas leigas da santidade salesiana
mencionadas anteriormente e muitas outras da porta ao lado deram e dão o húmus
para o crescimento do carisma salesiano. A companhia de santos recorda-nos que
antes das obras e dos papéis, o lugar privilegiado para a proclamação do Evangelho
e o florescimento do carisma é a qualidade das relações humanas.
Estes testemunhos recordam-nos o chamado universal à santidade, tão caro quer
a São Francisco de Sales — como já dissemos — quer ao Pai da Família Salesiana,
Dom Bosco, quando propôs aos jovens do Oratório e às classes populares a meta
da santidade como horizonte aberto a todos, fácil de alcançar e orientada para a
felicidade sem fim.
Tudo isso tendo ao lado deles Maria Auxiliadora, Aquela que acolheu Jesus em seu
ventre virginal e por isso é Mãe, Mestra e Guia da fé, especialmente no
38 BENTO XVI, Catequese de 7 de fevereiro de 2007.
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acompanhamento das gerações mais jovens no seu caminho de santidade. A vida
de todos eles e o seu exemplo são como o "fermento para o pão".
7. Os nossos jovens como FERMENTO no mundo de hoje
Quero concluir a mensagem da Estreia deste ano com uma palavra final, dirigida
aos nossos jovens e ao caminho que queremos percorrer juntos, pois eles também
querem acompanhar-nos como nós queremos acompanhá-los:
«Queremos dizer-vos com força, de todo o coração: estar aqui para nós foi um sonho
que se tornou realidade, neste lugar especial que é Valdocco, onde começou a
missão salesiana, com salesianos e jovens para a missão salesiana, com a nossa
vontade comum de juntos sermos santos. Tendes os nossos corações em vossas
mãos. Cuidai desse vosso tesouro precioso. Por favor, jamais vos esqueçais de nós
e continuai a escutar-nos. Turim, 7 de março de 2020».39
Na verdade, os jovens preparam-se para a vida, nós os acompanhamos nesta
caminhada, e não tenho dúvidas de que um grande serviço que prestaríamos a
eles, à sociedade e à Igreja seria ajudá-los a tomar consciência do papel social que
devem desempenhar e para o qual devem preparar-se. Por isso eles também são os
primeiros a saber, e o sabem, que são chamados a ser fermento na família humana.
Ao preparar-me para escrever este comentário, decidi procurar e ler, precisamente
para esta seção final da Estreia, um pouco do que os três últimos papas — São
João Paulo II, Bento XVI e Francisco — disseram aos jovens, por ter certeza de que
suas mensagens seriam abundantes e muito poderosas. E é assim que me
parecem: tão relevantes, tão oportunas e, ouso dizê-lo, tão "salesianas". E, ao
mesmo tempo, quero afirmar intensamente quão vasta, extensa e exigente é a
tarefa que os jovens têm diante de si na Igreja e no mundo, se aceitarem o desafio
de ser verdadeiramente jovens de hoje, ativos em seu empenho cristão e social e
verdadeiro "fermento" na família humana.
O Papa João Paulo II, três anos antes da sua morte, propôs em um dos seus
discursos40 oito grandes desafios que são autênticas propostas para a vida cristã,
social e política e compromisso para os jovens que desejam enfrentar desafios
significativos. Na verdade, são oito desafios que alguns estudiosos reduzem a um
único que poderia ser expresso assim: colocar o ser humano no centro da economia
e da política. A tarefa é esta: a defesa da vida humana em todas as situações; a
promoção da família e a erradicação da pobreza (com a redução da dívida, a
promoção do desenvolvimento e a justa abertura ao comércio internacional); a
defesa dos direitos humanos e o trabalho para garantir o desarmamento (com a
redução da venda de armas e a consolidação da paz uma vez terminados os
conflitos); a luta contra as principais doenças e o acesso de todos aos
39 CG 28, Quais salesianos para os jovens de hoje? Carta dos jovens aos capitulares, Anexo 3.
40 JOÃO PAULO II, Discurso aos embaixadores dos países acreditados junto à Santa Sé, Roma, 10 de
janeiro de 2002.
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medicamentos mais necessários; a preservação da natureza e a prevenção de
desastres naturais; e, enfim, a aplicação rigorosa do direito e das convenções
internacionais.
Por sua vez, na carta encíclica sobre o desenvolvimento humano integral, Caritas
in veritate,41 Papa Bento XVI enuncia os desafios atuais que são urgentes e
essenciais para a vida do mundo e nos quais os jovens de hoje podem empenhar-
se, tais como: o uso dos recursos da terra, o respeito à ecologia, a distribuição justa
dos bens e o controle dos mecanismos financeiros, a luta contra a fome no mundo,
a promoção da dignidade do trabalho, a solidariedade humana com os países mais
pobres, o serviço à cultura da vida, o diálogo inter-religioso e a construção da paz
entre os povos e nações.
Enfim, o Papa Francisco propõe uma série de tarefas desafiadoras que temos
como cristãos e são esperadas pelos jovens que querem assumi-las e empenhar-se
nelas com a sua fé e o seu trabalho, pois muitos outros jovens sofrem com essas
violências e extorsões.
Entre seus diversos escritos (encíclicas, exortações apostólicas e mensagens aos
jovens),42 gostaria de mencionar o seguinte: existem contextos terríveis e dolorosos
de guerra (e não posso deixar de mencionar a guerra injusta contra o povo
ucraniano, que todos conhecemos porque já dura onze meses); há muitas pessoas
e jovens que sofrem de violência manifestada de muitas maneiras: sequestros,
extorsões, crime organizado, tráfico de pessoas, escravidão e exploração sexual,
crimes de guerra etc.
Algumas crianças são forçadas a ser soldados, a juntar-se a quadrilhas armadas e
criminosas, a envolver-se no tráfico de drogas. Não poucas crianças e adolescentes
são escravizados no comércio e tráfico sexual. E não faltam pessoas e jovens
marginalizados e até mesmo martirizados em razão de sua etnia ou credo. A dor da
migração (em situações desumanas) e o flagelo da xenofobia não podem ser
esquecidos.43 O descarte de pessoas no mundo inteiro, o racismo e a violação dos
direitos humanos universais são outras realidades de um mundo onde também há
muita dor.44
Estamos conscientes de que tudo isso e muito mais afeta esta família humana na
qual queremos ser fermento, sal e luz?45 Seria possível dizer que esta é uma visão
pessimista? Não, de forma alguma. O próprio Papa Francisco cita muitos
progressos que existem hoje, mas que vão pari passu com a "deterioração da ética":
41 Cf. BENTO XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate, Roma, 29 de junho de 2009.
42 Cf. ChV, 72-74; Cf. FT, 25.
43 FT, 38-40.
44 Ibid, 18-24.
45 Quero destacar muito significativamente o que o Reitor-Mor P. Pascual Chávez escreveu sobre a
Família Salesiana em defesa da vida, em todos os seus sentidos e em todas as suas dimensões. É
uma lista muito rica do nosso trabalho atual (que também envolve os jovens): Cf. CHÁVEZ, P., Amas
todas as coisas e não desprezas nada do que fizeste... Senhor amante da vida (Sb 11,24;12,1), em
ID, Lettere circolari ai salesiani (ACG 396 (2006) Lettera 019), LAS, Roma 2021, 604-605, 609-617.
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«O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os avanços positivos que se
verificaram na ciência, na tecnologia, na medicina, na indústria e no bem-estar,
sobretudo nos países desenvolvidos. Todavia "ressaltamos que, juntamente com tais
progressos históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética,
que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores
espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar
uma sensação geral de frustração, solidão e desespero [...]. Nascem focos de tensão
e acumulam-se armas e munições, em uma situação mundial dominada pela
incerteza, pela decepção e pelo medo do futuro e controlada por míopes interesses
econômicos". Assinalamos também "as graves crises políticas, a injustiça e a falta
de uma distribuição equitativa dos recursos naturais […]. Sobre tais crises que
fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por
causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional"».46
Essa realidade é uma oportunidade para todos nós, mas especialmente para os
jovens, de sentir o chamado do Senhor para viver a sua vida cristã e também
salesiana (no interior da família de Dom Bosco) como uma grande tarefa.
Essa tarefa e esse desafio já haviam sido lembrados pelo Papa Paulo VI no final do
Concílio Vaticano II na mensagem dirigida aos jovens, em que disse:
«É a vós, rapazes e moças de todo o mundo, que o Concílio quer dirigir a sua última
mensagem, pois sereis vós a recolher a tocha das mãos dos vossos antepassados e
a viver no mundo no momento das mais gigantescas transformações da sua história,
sois vós que, recolhendo o melhor do exemplo e do ensinamento dos vossos pais e
mestres, ides constituir a sociedade de amanhã: sereis salvos ou perecereis com ela.
[...] E construí com entusiasmo um mundo melhor que o atual!».47
Essa súplica, que chega a todos nós para sermos verdadeiro fermento na família
humana, eu dirijo hoje com profunda convicção a todos vós, queridos jovens. Esses
desafios exigem que por vossas vidas, vossa educação, vossos estudos, vosso
trabalho e vossa vocação digais sim ou não ao vosso empenho na construção de
um mundo mais justo e fraterno. Esses desafios colocam-vos na encruzilhada de
aceitar ou rejeitar uma vida exigente e excitante na qual colocar toda a força e
energia de acordo com o sonho de Deus para cada um de vós.
E certamente não vos é pedido nenhum heroísmo especial e extraordinário, mas
somente — e já é muito — fazer frutificar os vossos dons e talentos dados por Deus,
comprometendo-vos a crescer na fé, no verdadeiro Amor, na fraternidade e no
serviço a todos, especialmente àqueles mais atingidos pela vida, que têm menos
oportunidades.
Parece-me uma proposta valiosa para todo jovem cristão e salesiano que hoje deseje
ser discípulo-missionário do Senhor, e também um desafio e uma proposta de tal
dignidade e abrangência que, sem qualquer modéstia, pode ser oferecida a todo
jovem que deseje viver plenamente a sua condição humana, quer seja cristã quer
46 FT, 29 que cita também o Documento sulla fratellanza umana per la pace mondiale e la convivenza
comune, Abu Dhabi (4 febbraio 2019): L’Osservatore Romano 4-5 febbraio 2019, p. 6.
47 PAULO VI, Mensagem aos jovens, Roma, 8 de dezembro 1965.
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professando outras crenças religiosas ou procurando viver um humanismo
essencial e autêntico, e ao mesmo tempo levá-lo a viver fora das "zonas de conforto"
que, como as sereias com seus cantos, podem hipnotizá-los no sono.
Referi-me ao humanismo, e gostaria de concluir explicitamente com uma menção
a este "humanismo salesiano" com que podemos educar todos os jovens de todas
as nações do mundo nas presenças salesianas, porque
«para Dom Bosco, significava valorizar tudo o que há de positivo enraizado na vida
das pessoas, nas realidades criadas, nos acontecimentos da história. Isso o levava
a perceber os valores autênticos presentes no mundo, sobretudo se agradáveis aos
jovens; a inserir-se no fluxo da cultura e do desenvolvimento humano do próprio
tempo, estimulando o bem e recusando lamentar-se sobre os males; a sábia busca
da cooperação de muitos, convencido de que todos possuem dons a serem
descobertos, reconhecidos e valorizados; a crer na força da educação que sustenta
o crescimento do jovem e o encoraja a ser cidadão honesto e bom cristão; a entregar-
se sempre e em qualquer situação à providência de Deus, percebido e amado como
Pai».48
Concluo agradecendo ao Senhor por tantas vidas belas e plenas em nossa Família
Salesiana a serviço do Evangelho, pedindo ao Senhor para toda a Igreja e para nós,
como parte da mesma Igreja, que aceitemos a alegre tarefa de evangelizar, porque
«por Cristo foi enviada para revelar e comunicar a caridade de Deus a todos os
povos».49
Que nossa Mãe Auxiliadora ajude todos nós a sermos discípulos-missionários,
pequenas estrelas que refletem a sua luz. E rezemos a fim de que os corações se
abram para receber com alegria a proclamação da salvação, que é o próprio Deus
em Jesus.
P. Ángel Fernández Artime, S.D.B.
Reitor-Mor
48 P. Chávez, Como Dom Bosco educador, ofereçamos aos jovens o Evangelho da alegria mediante a
pedagogia da bondade. Estreia 2013 (ACG 415), p. 22.
49 Ad Gentes, 10.
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