Olhares de um Tuyuka


Olhares de um Tuyuka



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JUSTINO SARMENTO REZENDE
OLHARES DE UM TUYUKA
SOBRE AS DIVERSAS REALIDADES INDÍGENAS E OCIDENTAIS
MANAUS
2009

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SUMÁRIO
1. BIAR¢ YARA ATIYA: VENHAM COMER QUINHAPIRA: Refeição familiar e
comunitária ....................................................................................................4
2. ESCUTANDO OS MEUS PAIS .................................................................. 25
3. UM DIA DE MINHA INFÂNCIA ..................................................................53
4. AVENTURAS DE UM ÍNDIO .......................................................................67
5. EDUCAÇÃO INDÍGENA ..............................................................................86
6. REPENSAR A “CIVILIZAÇÃO” .................................................................106
7. ESPIRITUALIDADE INDÍGENA: a noite como construção da vida! .........113
8. PESCARIA ................................................................................................129
9. CRIANÇAS INDÍGENAS DE IAUARETÉ: Fortalecimento das identidades e
diferenças! .................................................................................................146
10.MITOS, MEMÓRIAS E RESISTÊNCIA .....................................................155
11.RELEITURAS DAS DIRETRIZES PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR
INDÍGENA E ESCOLAS DA BACIA DO RIO UAUPÉS ............................171
12.EM CACHOEIRA DA ONÇA: Crianças, Adolescentes e Jovens dão novos
contornos às línguas indígenas e à língua portuguesa! ............................181
13.O MÉTODO ETNOGRÁFICO E AS PESQUISAS COM OS POVOS
INDÍGENAS ..............................................................................................192
14.PEDAGOGIA DAS VISITAS: Breve descrição das visitas às comunidades
indígenas ...................................................................................................199

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3
Iniciando a conversa
Desde o dia em que comecei a viver os meus pais, quando vivos, me conduziram
por diversos tempos e espaços. Ensinaram-me alguns conhecimentos que eles
adquiriram nos tempos e espaços anteriores aos meus. De seus ensinamentos eu
guardei alguns.
Depois passando por diversos espaços e tempos meus e dos outros adquiri outros
conhecimentos, obtive diretamente visões sobre as realidades diversas.
Estes trabalhos são produções minhas. Mostram as minhas visões, minhas
interpretações das realidades, são releituras, ressignificações, desconstruções de
inúmeros e complexos mundos que me envolvem.
Essa coletânea com o título OLHARES DE UM TUYUKA SOBRE AS DIVERSAS
REALIDADES INGÍGENAS E OCIDENTAIS que ser um instrumento provocador
para os leitores e se esforcem para perceber os olhares de um Tuyuka. Quer ser
um instrumento de aprofundamento sobre os diversos aspectos culturais para os
educadores e professores indígenas e não indígenas. A motivação em organizar
este trabalho é incentivar aos educadores, crianças e aos jovens estudantes
indígenas escreverem suas histórias, visões, interpretações, experiência...
Muitas vezes, nós indígenas reclamamos que os livros didáticos só vêm imbuídos de conteúdos
ocidentais, que destroem as nossas culturas etc.
O desafio para nós é escrever sobre nós mesmos, nossas culturas, nossas
práticas... Com certeza os não-índios não conhecem bastante sobre nós!
A escrita não era a prática comum dos povos indígenas desta região do alto rio
Negro – AM, mas já a partir de 1914 (1915) que a escrita vem se constituindo uma
prática cultural dos povos indígenas. Então, não tenhamos receio de usar a escrita
para registrar nossos saberes.
Justino Sarmento Rezende – Tuyuka

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4
FIGURA: COMUNIDADE JUTICA – ALTO UAUPÉS
FONTE: REZENDE, Justino, 2008
BIAYARA ATIYA!1
VENHAM COMER QUINHAPIRA!
Refeição familiar e comunitária
1 O autor é indígena da etnia Tuyuka, nascido (1961) na aldeia Onça-Igarapé, na região do alto Rio
Negro – Amazonas. É sacerdote (1994) da Sociedade de São Francisco de Sales (Salesianos).
Este artigo foi produzido em 1999. Neste ano estava fazendo o Curso de Missiologia na Pontifícia
Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, SP.

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Iniciando a conversa
Elaborei este trabalho em 1999, quando eu estava morando em São Paulo/SP,
vivendo longe dos meus parentes tuyuka e sem quinhapira, por isso, o título do
trabalho foi escrito em língua tuyuka: Biar¡ yara atiya! Venham comer
quinhapira! Refeição familiar e comunitária. Este trabalho descreve em detalhes
muitas realidades que envolvem a quinhapira: sua preparação e participação;
tarefa da mulher, homem, família e comunidade; vida de trabalho; diversos
significados para a educação da pessoa; significados para as convivências
interétnicas.
Em 2008 quando eu estava em Iauareté, ambiente indígena, onde eu participava
da quinhapira, eu retomei e reelaborei porque percebi que havia aumentado as
mudanças e variedades da compreensão e prática da quinhapira. E, finalmente,
em março/2009 transformei o trabalho num texto didático para aqueles que
quiserem estudar algo sobre a educação indígena dos povos da bacia do rio
Uaupés.
A expressão Biar¡ yara atiya2 está em língua tuyuka. Tradução literal: Biar¡:
recipiente de pimenta; Yara: comer; Atiya: venham! Tradução para o português:
venham comer o recipiente de pimenta! Termo usado: venham comer
quinhapira! Observação: o termo quinhapira é uma palavra em nheengatú
(língua geral). Quinha significa pimenta e pira (pirá): significa peixe: peixe na e
com pimenta.
O Biar¡ yara atiya (venham comer recipiente de pimenta ou venham comer
quinhapira) possui significados profundos para os povos que vivem na região do
alto rio Negro – AM: tuyuka, tukano, desano, piratapuia, tariano, arapaso, baniwa,
hupda, kubeu, mirititapuia, barasana, wanano...
A prática do Biar¡ yara atiya entre estes povos acontece de forma semelhante. A
leitura sobre tal prática está situada dentro da compreensão da educação
indígena. A base desta atual leitura parte da prática do povo Tuyuka do qual sou
parte.
A prática do Biar¡ yara atiya é um dos elementos que sustentam e expressam a
educação tuyuka. Sua prática é a medida da maturidade, responsabilidade e
participação na/da vida tuyuka.
A conceitualização desta prática é um modo de analisar sobre alguns processos
que estão por detrás desta prática social. O contato e a participação com o Biar¡
2 Em lingua tukano se diz: Biat¡ barã a’tiá.

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yara atiya levaram-me a analisar sobre as várias dimensões sociais que
sustentam esta prática: sociológica, religiosa, psicológica, política, educacional,
pedagógica, econômica, antropológica, moral, ética etc.
A educação tuyuka leva em conta um vasto conhecimento sobre a vida, sobre o
mundo, o ser humano, natureza, o cosmo, água, o que está dentro da água, o que
está dentro da terra, a vida existente nas árvores, florestas, sobre as vidas que
voam... O ser humano é parte da natureza.
A educação tuyuka ensina sobre os significados das realidades que envolvem o
ser humano. Aquilo que o Tuyuka é e tem não vêm somente dos ensinamentos
humanos, mas também de diversas maneiras como o ser humano se relaciona
com tudo o que está ao ser redor, nas profundezas da terra, dos rios, florestas,
animais e o que está nas alturas.
Os pais e a comunidade tuyuka ensinam para seus filhos todas as realidades
visíveis, sensíveis, audíveis, palpáveis e experimentáveis. Cada Tuyuka aprende
um pouco sobre algumas realidades, isto é, ele não aprende tudo. Também, quem
ensina, ensina um pouco sobre as diversas realidades, isto é, não consegue
ensinar tudo.
Muitas coisas o Tuyuka aprenderá ao longo de sua vida sem que haja outro ser
humano para ensiná-lo. A partir do pouco ou muito que ele aprendeu com outros
no aperto da vida, no sofrimento, no medo, na coragem frente ao mundo que se
apresenta diante dele, conseguirá aprender novas maneiras de relacionar-se com
o mundo. Além do mais, a partir daquilo que lhe foi ensinado, com a sua
criatividade ele cria novas formas de conhecimento.
Dentro desta visão que insiro o Biar¡ yara atiya. As práticas culturais são bem
refletidas a partir de dentro, isto é, os Tuyuka sabem sobre os processos diversos
pelos quais deve acontecer o Biar¡ yara atiya.
1. Biar¡ yara atiya e seus significados
1.1. Biar¡ yara atiya: um convite
O Biar¡ yara atiya é um convite. Nas aldeias tuyuka o Biar¡ yara atiya é um
convite-imperativo. O convidar e o aceitar exigem responsabilidade e
compromisso com a vida familiar e comunitária.
A educação da pessoa tuyuka é que conduz para esta participação
corresponsabilizada. Tanto o convite, aceitação e a participação no Biar¡ yara
atiya é processo gradual e progressivo. Existem dois fatores que acompanham a
inclusão gradual e progressiva do Tuyuka para o Biar¡ yara atiya: a família e a
comunidade. Os fatores família e comunidade tanto podem antecipar ou retardar a

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inclusão. O critério para a inclusão é a participação nos trabalhos que a
comunidade ou famílias promovem.
Aquilo que marca a maturidade da pessoa é a sua participação nos trabalhos. O
Biar¡ yara atiya é o ponto de partida e de chegada do sentido de participação no
trabalho. Ele não um fim em si mesmo, ele é o meio. O Biar¡ yara atiya
comunitário é um direito e obrigação para quem vai trabalhar ou trabalhou. O
Biar¡ yara atiya familiar já possui outro sentido mais restrito: acesso ao alimento
como um direito, mas também como um dever a nível familiar.
A obrigatoriedade de convidar e aceitar para o Biar¡ yara atiya público começa
com a adolescência. Nesta fase, ainda, o adolescente pode optar em participar ou
não. Para um jovem já se torna uma obrigatoriedade. Os pais já educam os seus
filhos para isso. Para os casais é obrigatória a participação e de levar o Biar¡
(quinhapira) para a comunidade. A partir do casamento a não-aceitação e não-
participação ao Biar¡ yara atiya já é considerada “desprezo” para com a
coletividade, a não ser que ele ou alguém por ele justifique a sua ausência.
1.2. Biar¡ yara atiya: agentes
Os agentes são:
a) Mulher
A mulher é a responsável pela preparação do Biar¡ (quinhapira). De madrugada a
mulher prepara o w¡abe (beiju), ñumuku (mingau), esquenta a quinhapira e
cozinha peixe/carne, após a pescaria ou caçada. Normalmente, antes do
amanhecer e antes do banho tais alimentos ficam prontos.
Este trabalho, geralmente, quando há várias mulheres na casa é assumida em
conjunto. Uma ajuda à outra. Também, os homens ajudam, mas o trabalho é
prioritariamente das mulheres.
Aqui existem elementos profundos para este funcionamento: a) entre os Tuyuka o
casamento acontece com uma mulher não-tuyuka. A mulher de outra etnia é que
entra na etnia Tuyuka; b) a mulher que casa com um Tuyuka traz consigo toda a
educação (formação) que ela recebeu dentro de sua família e de sua etnia. Ela é
responsável para fazer perdurar a educação recebida dos pais e da etnia dentro
de outra etnia em que ela está entrando. Caso não consiga, ela é desprestigiada,
assim como a sua família e etnia; c) esta prática está educando (formando) uma
nova mulher tuyuka para que onde ela estiver dentro de outras etnias ela saiba
representar a educação de sua família e da etnia tuyuka.
A agilidade e os bons serviços fazem dela uma mulher respeitável e amável. Para
que isso aconteça mulheres tuyuka e não-tuyuka que já estão mais tempo como
os Tuyuka ensinam para a nova mulher que chega. Também, ela já sabe como

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funciona a vida com os Tuyuka, mas as mulheres que já estão mais tempo com os
Tuyuka acrescentam seus conhecimentos.
O trabalho da mulher é enriquecido pelo trabalho do homem, principalmente,
através de sua pescaria e a caça. A qualidade de serviços da mulher depende
muito dos trabalhos do homem. Para ter w¡abe (beiju) e ñumuku (mingau)
precisa ter roça; para ter peixe o homem tem que pescar; para ter carne o homem
tem que caçar. Neste sentido há interação (interdependência) e o enriquecimento
mútuo entre o trabalho do homem e mulher.
A família que oferece o peixe no momento do Biar¡ yara atiya é bem conceituada
na comunidade e gera respeito e alegria de viver. São motivações para que os
homens e as mulheres sejam bons trabalhadores, participantes, pessoas alegres,
pessoas que partilham os bens materiais.
A esposa que é mãe depois do banho quando o dia está amanhecendo, alimenta
os seus filhos. Depois que eles já estão servidos a esposa leva a comida para o
meio (centro) da casa e pede para que o marido convide os moradores da casa
e/ou da aldeia. E, na ausência do marido, chefe da casa é oferecido ao filho (se
tiver mais de 12 anos) ou para o sogro ou para o cunhado, isto é, parente mais
próximo.
Os parentes da esposa não podem fazer o convite, pois são hóspedes. A função
de convidar é própria de quem está na sua casa/aldeia. Fora da aldeia é sempre
visitante/hóspede. Por isso só pode ser convidado.
b) Homem
Ele tem a função de convidar os moradores da casa e/ou da aldeia para o Biar¡
yara atiya. O convite pode ser somente para os moradores da casa ou para os
moradores da aldeia. O chefe sai e fica na porta e grita com voz forte pelo menos
três vezes: Biar¡ yara atiya! (Venham comer quinhapira!) Ao ouvirem este
chamado os homens respondem com voz alta. Nesse momento fica uma gritaria!
Muitas vezes o convite é nominal, isto é, chama pelo nome todos os casados. Ao
ouvir o convite cada esposo convida a sua esposa e os filhos que já têm a idade
para participar do Biar¡ yara atiya. Às vezes algumas pessoas não vão.
Ao aceitar, cada família leva o seu Biar¡ (quinhapira), W¡abe (beiju) e Ñumuku
(mingau).
Os visitantes/hóspedes não são obrigados a levar nada e se quiserem podem, mas devem
participar.
Depois que chega toda a comida que cada mulher vai trazendo e colocando no
centro da casa, aquele que convidou, convida para que os homens comecem a
comer.

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Cada família traz o que tiver em casa: pode ser só quinhapira, pode ser mujeca
(sopa de peixe), carne caça, e, outros alimentos conseguidos. Todos comem das
mesmas quinhapiras, dos mesmos pratos, dos mesmos beijus e tomam os
mesmos mingaus com a mesma cuia. Quase terminando a comida, aquele que
convidou mostra a bebida para os homens. Quando os homens acabam de comer,
aquele que convidou passa a vez para sua esposa para que ela convide as
mulheres para a comida.
Enquanto os homens estão se alimentando, as mulheres conversam entre elas,
contam histórias, falam sobre os seus maridos, contam fatos engraçados e dão
gargalhadas. Os homens também intervêm nas suas conversas. Faz parte do
momento. É um momento lúdico, de alegria, de partilha da vida.
c) Mulher
É a vez de ela convidar as mulheres para a comida. Esta mulher é aquela que
colocou o Biar¡ (quinhapira) no centro da casa. É a vez das mulheres se
alimentarem. São convidadas todas as casadas (adultas) e as jovens.
Geralmente as mulheres correm mais para pegar a comida. Por quê? Todas às
vezes que tem peixe, carne e outros alimentos elas pegam para os seus filhos
pequenos. Só depois elas começam comer. Elas demoram bastante. Elas
saboreiam, conversam e comem tudo, não deixam nada.
Terminada a comida a mulher que convidou indica a bebida ñumuku (mingau)
para que elas bebam. Geralmente sobra muito pouco, pois os homens tomam
quase tudo. Elas não acham ruins porque foi para isso que elas prepararam. Se
sobrar é que elas ficam tristes por achar que não gostaram da bebida que elas
prepararam.
Enquanto as mulheres se alimentam os homens ficam conversando contando
histórias, sonhos, achando graça, falando sobre projetos de trabalhos,
acontecimentos de outros lugares, sobre os trabalhos dos outros, experiência de
outros lugares, sobre o trabalho que está fazendo na roça, conta sobre o
andamento da educação dos filhos etc.
Assim ficam ocupados como comunidade. Depois que todos já comeram o chefe,
aquele que convidou encerra agradecendo a todos. Todos se despedem, vão para
as casas e para os seus afazeres: roça, pescaria, caça, passeio ou mesmo ficar
em casa.
1.3. Biar¡ yara atiya: espaço de crescimento
O Biar¡ yara atiya é o momento de crescimento como um indivíduo, como
membro da aldeia (comunidade) e membro da etnia. A primeira participação do
Biar¡ yara atiya começa dentro da família. A partir de uma determinada idade os
pais vão treinando os/as filhos/as para este momento importante na vida e os
introduzem na prática familiar e comunitária.

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Na medida que o filho cresce o pai (marido) pede à esposa para que ela não
ofereça o biar¡ a ele, mas ao filho. O filho aprendiz por sua vez aprende a
convidar outras pessoas usando os termos adequados, dizendo: papai, avô, titio,
irmão menor, irmão maior, Biar¡ yara atiya! Usando os mesmos termos, ao
término da comida, indica o lugar para tomar o ñumuku (mingau). Depois passa a
vez para quem lhe ofereceu e esta pode ser sua mãe, irmã, avó ou outra pessoa.
Assim o menino já vai aprendendo gradualmente a prática de convidar e praticar o
Biar¡ yara atiya.
A mesma educação se dá para a menina. Ela começa muito cedo aprender as
atividades de preparação do biar¡, w¡abe e ñumuku, com a mãe. Ela acorda
cedo com a mãe. E, a mãe vai ensinando todas as técnicas para a sua filha. A
partir de certa idade a mãe já passa atividade de oferecer o biar¡ para a filha
aprendiz. Ela oferece o biar¡ usando os termos certos para o pai, irmão maior
(menor), avô, tio... Depois ao convidar as mulheres usa os termos certos e convida
à mãe, ato, tia, irmã para o Biar¡ yara atiya.
Assim, na ausência dos pais, eles/as começam assumir o serviço de oferecer,
convidar aos outros e aceitar o convite e participar do Biar¡ yara atiya. A
responsabilidade é maior quando os pais são responsáveis da comunidade,
principalmente, como líder da etnia/comunidade. Os líderes étnicos têm por
obrigação formar filhos líderes. Pela formação que lhes dão e de sua prática boa
depene a respeitabilidade da autoridade da família e da comunidade.
Quando os filhos dos líderes se comportam bem e sabem tratar bem as pessoas
em qualquer momento e em qualquer trabalhar é uma situação normal. Segundo a
crença étnica os líderes têm que formar bons filhos.
Por outro lado, quando os filhos daqueles que não são líderes sabem trabalhar
bem é um elogio. É visto como exemplo que todos devem imitar até os filhos dos
chefes. Quando eles não conseguem ser bons é visto como algo norma.
O Biar¡ yara atiya é um momento de crescimento na responsabilidade e na
convicção da participação. Ao fazer o convite o líder ou quem convida está
exercendo a sua responsabilidade de animar os membros da comunidade. É uma
atitude de quem já está na condição de conviver com os membros da comunidade
de modo responsável e de forma ativa.
Uma pessoa e a família que aceita o convite e participa está se comprometendo
com o estilo de vida da comunidade. É importante a atitude de aceitar o convite,
pois através do aceitar as pessoas incluem-se na comunidade. É como se ele
estivesse dizendo para a comunidade: eu estou aqui e podem contar comigo nas
atividades comunitárias! Do contrário, há auto-exclusão da pessoa e família.
É por causa disso que há toda preparação anterior dentro da família. Nenhum
jovem chega à etapa da participação na comunidade por acaso. Às vezes a
participação começa muito cedo para algumas pessoas, chegam meninos, ainda.

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A comunidade respeita, sabendo que este menino ou menina já deve ter
conhecimento das exigências da participação do Biar¡ yara atiya.
Geralmente após o término do Biar¡ yara atiya que o líder ou pessoa que
convidou faz o convite para o trabalho comunitário ou particular. Geralmente,
todos aceitam o convite. Tal aceitação faz com que deixem seus trabalhos
particulares para outro dia. Poucas vezes aparece quem justifica a sua ausência
(não participação). A aceitação acontece num clima de alegria.
O trabalho comunitário é importante porque com mais pessoas o trabalho vai mais
rápido. Também, é importante para a convivência das pessoas. Eles não vão
trabalhar direto (sem descanso), trabalham e descansam. Vão ter momentos de
descanso, vão tomar seu chibé (farinha com água), vão fumar o cigarro etc.
Nestes momentos de descanso conversam sobre vários assuntos do passado
étnico, falam do presente e falam das previsões para o futuro. É verdadeiramente
um momento educativo (formativo) muito forte para quem participa.
Na volta do trabalho mais uma vez quem convidou para o trabalho irá convidar
para mais um Biar¡ yara atiya. E, só participam quem foi trabalhar. É muito
gostoso participar assim, eu gosto muito, pois a gente se sente realizado.
O Biar¡ yara atiya é espaço de surpresas. O convidar e o aceitar para o Biar¡
yara atiya esconde e revela muitas surpresas. Em sua participação não
encontraremos somente o biar¡, mas lá encontraremos famílias que levam o
peixe, carne, alimentos extraídos da floresta, boas bebidas de frutas.
Encontraremos as mesmas comidas, mas que foram preparadas de forma
diferente e aprenderemos como foram preparadas aquelas comidas. Nós nos
surpreendemos com as manifestações das sabedorias dos homens e das
mulheres da comunidade. Quem participa aprende e ensina.
Neste momento encontraremos pessoas novas ou as mesmas pessoas, mas cada
vez elas nos surpreendem. Elas nos ensinam novas atitudes, novos
comportamentos, novas falas, novas histórias e novos pensamentos. Informam-
nos sobre as novas técnicas de plantio, de pesca, de caça, trabalho... É uma
educação contínua. Para receber esta educação há necessidade de participação,
pois se não participar não aprenderá tais conhecimentos e nem ensinará.
É um momento e espaço para que cada um partilhe daquilo que sabe. Às vezes
somos questionados sobre alguma coisa. Se respondermos bem, as pessoas
percebem como anda o nosso amadurecimento. Esta participação é importante
para o indivíduo no seu crescimento e aprendizagem. À medida que percebemos
a importância deste momento começamos a participar espontaneamente, sem que
haja alguém que nos obrigue.
A partir desta compreensão percebe-se que o Biar¡ yara atiya não é apenas
comida pela comida. É um momento onde adquirimos novos conhecimentos sobre
a vida, trabalho, festas, pescaria, caça... É a educação indígena funcionando onde

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12
um ensina ao outro. Só quem nasce e vive dentro da comunidade ou que quem
dela já participou entende o seu valor. É difícil expressar todos os sentidos, pois
cada vez que participamos dele algo novo aprendemos, reaprendemos, vivemos e
revivemos. O que está escrito aqui é pouquinho de sua riqueza, mas surgirão
muitas riquezas, ainda. Cada geração dará sentidos novos e diferentes. O Biar¡
yara atiya é dinâmico, tem vida e dá vida. Aí se faz a memória de nossos avôs e
eles fazem presentes através disso. Que bonito isso!
A prática do Biar¡ yara atiya acontece a qualquer momento do dia. Quando
chega uma visita em casa primeira coisa que se faz é oferecer o biar¡. Ele tem
seu simbolismo profundo. É um valor simbólico. Têm sentidos que nem sempre
chegamos a entendê-los. Através dele está presente a própria vida das pessoas
envolvidas: educação, sabedoria, conhecimentos, dificuldades, sonhos, técnicas
de trabalho, hospitalidade, reciprocidade... Mesmo quando uma visita chega para
visitar apenas uma família os membros da comunidade trazem o seu biar¡ para
demonstrar toda a hospitalidade. Eles sentam, escutam as histórias do visitante,
perguntam novidades, contam as histórias da aldeia (comunidade). Há verdadeira
partilha das práticas de vida. Assim o biar¡ torna-se um elemento educativo
(formador) da mentalidade indígena. A pessoa que visita e é bem acolhida fica
com boas impressões da família e da etnia. Esta é uma preocupação de todos:
serem bem vistos e serem queridos por outros.
Os visitantes bem acolhidos elogiam os moradores de uma comunidade: os
moradores daquela comunidade são pessoas boas! Por outro lado, quando não
são acolhidos poderiam falar mal das pessoas e de determinadas comunidades:
as pessoas daquela comunidade não sabem acolher as pessoas, evitem visitá-las!
Também, por isso, a educação que se recebe como comunidade deve ser
demonstrada como comunidade. Os moradores de uma aldeia formam uma
grande família e todos devem zela pela imagem diante de outros povos.
1.4. Biar¡ yara atiya: união da comunidade
O Biar¡ yara atiya é símbolo de vida de uma comunidade. A vitalidade, a
unidade, a fraternidade dos membros de uma comunidade se mede pelo
funcionamento dele. Eu vejo que o Biar¡ yara atiya é como coração da
comunidade, algo que a comunidade precisa cuidar com carinho, convidando e
participando.
A participação do Biar¡ yara atiya eleva a qualidade de nossa vida pessoal e
comunitária. Nela aprendemos uma visão diferente sobre a nossa própria vida,
sobre os trabalhos e sobre outras pessoas. Aprendemos que todos querem o bem
dos outros. Este querer bem se manifesta na partilha da comida.
A comida simboliza todo o trabalho da família, simboliza a capacidade de realizar
uma boa pesca, caça, coleta de frutas... Simboliza todo o trabalho da roça.
Simboliza todo o aprendizado do homem e da mulher. Colocar em comum todos
estes sentidos é fortalecer a unidade da comunidade. Por isso muitas

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comunidades praticam o Biar¡ yara atiya comunitário todos os dias. Os nossos
avôs já praticavam assim, embora hoje tal prática não seja da mesma forma como
no passado o sentido que eles davam continua, mas são acrescentados outros
sentidos conforme cada geração vai entendendo a vida.
Os nossos avôs vivendo em malocas (casa comum) tinham um irmão maior que
hoje podemos denominá-lo, chefe. Quando digo irmão maior é o irmão maior
segundo a classificação étnica. Ele é o responsável para animar, cuidar, motivar a
vida dos irmãos menores. Toda manhã convidava seus irmãos menores para o
biar¡. Ele era educador (formado) para esta responsabilidade e tinha consciência
disso. Os outros irmãos sabiam de sua responsabilidade e colaboravam
corresponsavelmente.
A função de convidar sempre foi do irmão maior e na ausência dele cabia ao outro
seguindo a hierarquia. Ele, geralmente era firme, perseverante na animação,
dirigia os seus irmãos durante a comida, incentivava para o trabalho. Ele tomava a
frente nas viagens e visitas a outras comunidades (aldeias). Nas frestas e
cerimônias ele é que fazia discursos cerimoniais.
Ainda, a figura do irmão maior é simbólica, pois nele estão contidos muitos
conteúdos que cada vez mais precisamos aprender: unidade, fraternidade,
coragem... Esta função passava de pai para filho. Por isso, era grande a exigência
de ser bom líder, pois dele dependia a vitalidade da comunidade, dos trabalhos,
festas etc. Ele era grande conhecedor dos acontecimentos da comunidade e de
outras comunidades para poder acompanhar o andamento da vida de seus
membros. Cuidava do bom andamento da vida dos membros da comunidade para
que não houvesse brigas entre eles e, quando surgiam problemas, resolvia logo.
A capacidade de colocar em comum os serviços era algo normal. Quem precisava
de ajuda era só comunicar ao chefe e ele comunicava diretamente ou pedia que o
próprio interessado comunicasse aos outros, mas ele próprio dava apoio.
Como viviam numa casa só partilhavam a comida, peixe, caça, frutas... A
educação, os costumes e outros valores conduziam para a unidade. As pessoas
cresciam num ambiente pequeno e aprendiam os valores familiares e
comunitários. Os membros da comunidade procuravam viver todos os valores
aprendidos e geravam ambientes bons para se viver. Colaboravam com a
realização das pessoas: união, partilha, solidariedade...
1.5. Biar¡ yara atiya: as crianças
As crianças são chamadas de wimarã (wimag£ = menino; wimagõ = menina). A
educação de uma pessoa acontece, principalmente, dentro de casa, na família.
Quando digo família estou me referindo às pessoas que moram dentro de uma
casa: pai, mãe, avô, avó, irmão maior, irmã, tia, tio... Todos eles são responsáveis
para educar para a nova pessoa os valores humanos.

2.4 Page 14

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14
Dentro da casa, a família ensina os elementos que eles conhecem para viver bem
a vida. Sabemos que ao longo da vida este novo ser aprenderá muitas coisas com
outros. Mas a família é a primeira para ensinar a trabalhar, a pensar como pessoa,
como tratar bem as pessoas e como se alimentar. Ensina diversos valores da vida
e da sociedade. Muitas vezes a criança fica com raiva de quem está ensinado e
exigido, mas isso faz parte da aprendizagem. E, às vezes acaba apanhando dos
pais ou irmãos, porém, isso a leva para o amadurecimento.
Entre nós povos indígenas do alto rio Negro – AM, a criança com a idade de nove
anos, ainda, não está preparada para participar ativamente do Biar¡ yara atiya
comunitário.
Como já disse anteriormente o Biar¡ yara atiya comunitário é muito
comprometedor para a pessoa. A criança não está preparada para participar
ativamente da vida adulta. Não participa do Biar¡ yara atiya comunitário, pois não
saberá se comportar entre as pessoas de mais idade, não entenderá os assuntos
ou ainda, há assuntos que as crianças não podem aprender e participar (não
queimar etapas). Às vezes a criança pode causar vexame entre os adultos e isto
pode causar vergonha para os pais da criança.
Assim, as crianças não participam deste momento que é para as pessoas adultas
que já sabem se comprometer com a vida comunitária. As crianças participam do
Biar¡ yara atiya dentro família. Lá elas aprendem como participar posteriormente
no Biar¡ yara atiya comunitário. Elas são participarem acompanhadas por eles.
Os pais as acompanham e controlam o comportamento até que saibam se
comportar bem dentro da comunidade. Também, pouco a pouco assumem
compromissos dentro da comunidade. Elas precisam demonstrar para a
comunidade suas responsabilidades, principalmente, participando dos trabalhos.
Uma vez que a comunidade comprova responsabilidade da criança fica admitida
como pessoa adulta. Nesse sentido o Biar¡ yara atiya, poderia ser entendido
como um dos ritos de iniciação para a vida adulta, pois a maturidade da pessoa se
manifesta, também, neste momento.
A não-participação da criança do Biar¡ yara atiya dentro da comunidade significa
que está sendo preparada, formada e educada pelos pais. Significa tempo de
preparação e de espera. Quando ela começar participar, ela mostrará aquilo que
os seus pais a ensinaram.
Essa fase de preparação da criança é muito importante para os pais como para a
criança. O começo de sua participação é prova tanto para os pais como para
criança. O bom entrosamento dela na comunidade dependerá da educação inicial
dentro de casa, isto é, educação familiar.
1.6. Biar¡ yara atiya: os anciãos

2.5 Page 15

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15
Os anciãos são denominados b¡toa (b¡k¡ = ancião; b¡k¡o = anciã).
Consideramos os anciãos àqueles homens e mulheres que já têm uma longa
vivência de vida. Eles/as ocupam o espaço próprio.
Eles são lideranças na comunidade, não no sentido de estar liderando os
trabalhos de forma direta, mas no sentido de que eles são seguranças da
caminhada das pessoas de uma comunidade. Eles são conhecedores da vida em
seus diversos sentidos, alegria, realização, satisfação, paciência, coragem,
sofrimento, dor, sacrifício, trabalhos, pescarias, caçarias, plantações,
conhecimentos diversos, sabedoria de vida... São fontes de conhecimentos onde
os jovens bebem de suas sabedorias.
Eles são orientadores das pessoas, são curandeiros, benzedores... São pessoas que estão no
nível de equilíbrio/harmonia consigo mesmo, com as pessoas, com a natureza, cosmo, divindades,
forças da natureza etc.
Eles têm papel de educadores (formadores) das gerações mais novas com as
suas opiniões, orientações, conselhos e práticas sobre os vários assuntos.
Com os benzimentos preparam o caminho da pessoa para que ela descubra e
desenvolva o seu modo de trabalhar, a maneira de relacionar-se com as pessoas
de sua etnia e com as de outras etnias. Os anciãos curam as doenças,
interpretam os sonhos etc. Os anciãos são pessoas que têm um aguçado
conhecimento sobre a vida da natureza, água, o ar, floresta e, sobre a vida
humana etc.
A estes a família, filhos, netos e parentes, devem cuidar de forma bem especial e
particular. Com isso quero dizer que aquilo que já se faz: reservar a comida e
bebida. A mesma consideração deve ter a comunidade para com eles. Eles não
precisam estar concorrendo com os jovens no Biar¡ yara atiya. Eles já têm sua
comida separada. É um respeito que todos precisam conscientizar-se.
É dentro deste sentido que os anciãos não são obrigados a estar participando do
Biar¡ yara atiya. Eles também não estão obrigados estar nos trabalhos, mas para
aqueles que ainda quiserem participar a comunidade é aberta. As pessoas
entendem que os anciãos prestam serviço à comunidade e como tal, também
recebe o apoio e o cuidado de todos os moradores da comunidade (aldeia).
Os anciãos já criam outro ritmo de vida, também dentro da família. Mas continuam
exercendo a atitude educadora das pessoas e da comunidade. Eles conversam
transmitindo os conhecimentos sobre a origem da vida, da humanidade, da
história humana, origem da natureza; contam histórias acontecidas com os
membros da etnia; contam as formas de relacionamento com as pessoas de
outras etnias; contam como se deve relacionar com a natureza: floresta, água...;
mostram como se deve respeitar as forças da natureza; informam sobre os
perigos presentes na natureza; falam das previsões da vida futura; interpretam os
acontecimentos.

2.6 Page 16

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16
Eles criam seu ritmo de vida. Não há exigência e controle sobre eles. Veja
exemplos: o ancião pode ir à roça, mas sem exigências de fazer trabalhos
pesados; pode ir à pescaria, mas sobre ele não há exigência que seja bom
pescador. As pessoas entendem que essas atividades são as diversas maneiras
dele se ocupar bem o tempo.
Eu, quando era criança, adolescente convivi bem com o meu avô (já falecido). Nós
íamos pescar juntos. Na pescaria ele me contava vários fatos da vida; outras
vezes ele cantava as músicas rituais; ele me ensinava como eu deveria pescar
etc.
Eles podem ficar em casa com os seus netos, cuidando da casa ou ficar fazendo
alguns trabalhos que eles podem criar: artesanato (balaio, peneira...), puçá (rede
de pesca) etc.
Os mais jovens é que devem se preocupar com eles. E, geralmente a gente vê
que quem foi pescar, traz algum peixe para o ancião. Quem foi caçar, traz algum
pedaço de carne. A mulher quando prepara o beiju ou farinha sempre oferece um
pouco ao ancião (anciã). Assim, é reconhecido pelos trabalhos e pela vida dentro
da comunidade.
No Biar¡ yara atiya ele nem sempre está presente. Assim como acontece com a
criança todo o tratamento acontece dentro da própria família e sendo ajudado pela
comunidade.
2. Biar¡ yara atiya e seus valores
Nesta parte estou descrevendo os valores presentes. É uma visão muito pessoal e
é uma visão interpretativa. Outros indígenas podem perceber outros valores que
não coloco aqui. A partir daquilo que eu vivencio cada vez que eu participo do
Biar¡ yara atiya eu consigo sentir e perceber estes valores.
2.1. Animação
O primeiro elemento que nós encontramos entre as pessoas que vão participar do
Biar¡ yara atiya é a animação, alegria, descontração, risadas, gargalhadas,
contos pitorescos, fatos divertidos...
Toda vez que vamos participar do Biar¡ yara atiya logo de entrada já
encontramos pessoas achando graça. É sinal que alguém já começou contar
história engraçada. É um momento de alegria mesmo. Nele sentimos bem com os
outros membros da comunidade. É momento em que entramos nas histórias dos
outros, momento que os outros entram nas nossas histórias. É o momento em que
as dificuldades pessoais, familiares, comunitários ficam de lado e até mesmo
ficam esquecidos. Quem participar Biar¡ yara atiya sempre volta para casa

2.7 Page 17

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17
diferente de quando foi. Dentro do Biar¡ yara atiya a nossa vida adquire novos
sentidos.
O Biar¡ yara atiya ajuda a pessoa a se sentir membro importante de uma
comunidade. Com a comunidade reunida ao redor do Biar¡ yara atiya, nas
pessoas que nele participam, brota a alegria de viver, trabalhar, pescar, caçar e
ajudar a comunidade a viver na alegria.
2.2. Bondade e gratuidade (reciprocidade)
Quem participa do Biar¡ yara atiya está aí porque está disposto a crescer como
membro da comunidade. Ele sabe que sua ausência pode prejudicar os membros
da comunidade. Desta forma eu arrisco em dizer que quem está no Biar¡ yara
atiya é gente boa.
A bondade da pessoa manifesta-se na sua participação ativa, isto é, participa
trazendo o biar¡ (quinhapira), w¡abe (beiju) e ñumuku (mingau). Estes materiais
são elementos simbólicos, pois atrás destes três elementos podem vir muitos
outros alimentos que as pessoas vão trazendo e colocando para a alimentação da
comunidade. Cada família que participa sente-se na obrigação de levar alguma
coisa que tiver e faz gratuitamente.
Além de todos os alimentos postos em comum a presença da pessoa no Biar¡
yara atiya gera alegria nas pessoas. Os alimentos que são levados no Biar¡ yara
atiya são frutos do trabalho. Mesmo encontrados na natureza, como frutas, caça,
peixe... são frutos do esforço humano, da criatividade, do sacrifício, da
persistência etc.
Todos os alimentos colocados no Biar¡ yara atiya é partilha da vida, da luta, do
trabalho. E, ninguém cobra nada para colocar estes alimentos em comum. Mas
todos se sentem na obrigação de colocar em comum o melhor que possa
conseguir para alegrar a comunidade.
2.3. Partilha
O Biar¡ yara atiya é uma expressão da partilha. É o símbolo da partilha do que
temos de melhor e mais importante na casa. Oferecer o biar¡ dentro da família e
na comunidade é ser capaz de dar o melhor para os outros. A partilha é sinal de
maturidade. O espaço melhor para colocar em prática este valor é no Biar¡ yara
atiya.
A partilha é uma atitude de respeito e amor para com a pessoa e com a
comunidade. A partilha nos leva para além dos interesses pessoais. É começar
pensar e praticar que aquilo que é bom para mim é bom para outras pessoas e,
sem exigência de troca.

2.8 Page 18

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18
Entre nós, indígenas vemos muito a prática da partilha. Quando uma pessoa
chega numa casa a primeira coisa que se faz após os cumprimentos é oferecer o
biar¡. Se tiver peixe oferece, carne etc. Eu vejo que a nossa prática de partilha
como uma preocupação de deixar a outra pessoa feliz, sentir-se acolhida, sentir-
se valorizada, respeitada, amada...
O Biar¡ yara atiya é o lugar de encontro de irmãos que querem estar bem com a
vida, com a comunidade, com as famílias, com os trabalhos e com êxitos dos
próprios trabalhos.
A participação no Biar¡ yara atiya, antes de pensar na comida, nos leva a pensar
nas pessoas que se reúnem para conversar, trocar idéias, sonhos, contar as
coisas alegres, contar as dificuldades e obter soluções de vários problemas.
O Biar¡ yara atiya aprofunda cada vez mais na compreensão e vivência da
fraternidade. Assim a comunidade cresce baseando no espírito de família. Esta
vivência exige saber conversar com as pessoas e escutá-las. Enfim, é sentir-se
bem com os outros.
2.4. União das pessoas
O Biar¡ yara atiya é a expressão de união das pessoas. Os moradores de uma
comunidade estão na comunidade porque de alguma forma estão ligados ao
sentido da unidade étnica. Os moradores de uma comunidade estão ali porque
têm algo importante que os une: pertença étnica e/ou está casado com a mulher
daquela etnia e/ou são parentes da mulher casada com algum homem daquela
comunidade.
O Biar¡ yara atiya simboliza a unidade. O chamado, isto é, o convite e a
aceitação para Biar¡ yara atiya é para a unidade. A prática de comer do mesmo
biar¡ (quinhapira), comer do mesmo w¡abe (beiju) e tomar da mesma panela de
ñumuku (mingau) com a mesma cuia é grande sinal de unidade.
O Biar¡ yara atiya simboliza estar unido com o chefe, líder, irmãos menores,
maiores, com os primos, com avós, com as mulheres, com os jovens... Reúne ao
seu redor todas as pessoas: moradores da comunidade e visitantes.
Deixar de praticar o Biar¡ yara atiya seria perder um dos instrumentos mais forte
para manter a unidade das pessoas de uma comunidade e perder o símbolo da
hospitalidade. O Biar¡ yara atiya combate o individualismo, o egoísmo,
fechamento de si mesmo e abre para alegria, confiança, crescimento, partilha,
solidariedade...
2.5. Simplicidade
O Biar¡ yara atiya significa oferecer aquilo que se tem. Não existe uma
determinação do que pessoa se colocar durante o Biar¡ yara atiya. O que fica

2.9 Page 19

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19
bem claro é que o Biar¡ yara atiya é momento da partilha de alimentos e bebidas.
As pessoas praticam esta partilha com humildade. Ninguém fica preocupado se
aquela bebida e comida vão ser consumidas ou não. Coloca-se qualquer tipo de
comida e bebida em comum e as diversas pessoas presentes no Biar¡ yara atiya
consomem. O que eu sei é que qualquer alimento que se coloca em comum não
volta para casa.
A humildade a que faço referência é a de não se envergonhar com aquilo que a
pessoa possa oferecer para a comunidade. Essa maneira de entender e pratica o
Biar¡ yara atiya nos leva a vencer o egoísmo, a inveja, o medo e a vergonha.
Além destes gestos o povo Tuyuka e outros povos da região do alto rio Negro –
AM, vão fortalecendo seus valores étnicos, valores ancestrais e criando outros
valores. Cada vez mais o Biar¡ yara atiya assume diferentes significados para o
bem das pessoas. Assim o Biar¡ yara atiya continua sendo valor aglutinador das
forças humanas de uma aldeia, de uma família.
Quando diminui a participação durante o Biar¡ yara atiya surge preocupação com
o andamento da comunidade, pois significa a diminuição do valor dado à
comunidade, o respeito aos membros da comunidade. Esta preocupação nos leva
a questionar como líder da comunidade está exercendo a sua autoridade, como
animar da comunidade. Às vezes acontece isso porque o líder é indiferente frente
à comunidade, é preguiçoso, desanimado... Mas geralmente, a comunidade dá um
novo ânimo ao líder. As pessoas de uma comunidade não querem perder o Biar¡
yara atiya, pois ele é importante para o fortalecimento da vida das pessoas.
3. Biar¡ yara atiya e os seus desafios
Atualmente existem muitas realidades diferentes nas comunidades tuyuka. O
importante é que as comunidades acompanham a caminhada histórica atual. Elas,
porém, mantêm vivas as tradições milenares do povo Tuyuka, tal como o é o
Biar¡ yara atiya. É um dos valores que podemos com mais facilidade perceber o
sentido comunitário do povo. Por meio de tal prática os Tuyuka fortalecem a
unidade existente entre as pessoas da mesma etnia e entre as diferentes etnias.
As práticas do Biar¡ yara atiya ao longo de sua existência vai recebendo
características próprias. Mantém sues sentidos simbólicos de unidade, partilha,
simplicidade, solidariedade, hospitalidade etc., porém, vai incluindo outros tipos de
alimentação que no passado não existia em meio às comunidades tuyuka: arroz,
feijão... São alimentações que estão incluídas no momento do Biar¡ yara atiya e
vão enriquecendo o momento.
Eu entendo que o Biar¡ yara atiya é o momento muito aberto para a participação.
Pessoa de qualquer cultura pode participar com aquilo que pode contribuir para
enriquecimento do momento do Biar¡ yara atiya. Por outro lado, está aberto para

2.10 Page 20

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20
quem não possa oferecer nada. Também, a pessoa poderá contribuir com outros
tipos de alimentos de sociedades não-indígenas.
O símbolo de partilha de alimento nos leva a partilhar os nossos valores pessoais
e comunitários. Acima de tudo o Biar¡ yara atiya é o espaço de aprendizagem,
momento de ensino. Quem participa dele só sai ganhando.
O Biar¡ yara atiya é algo dinâmico, tem vida. Ele se reveste de novas roupagens
em cada momento e em cada comunidade. Vejo que com todas as influências de
culturas não-indígenas dentro das comunidades o Biar¡ yara atiya continua vivo.
Percebo que os não-indígenas que passam nas comunidades indígenas
participam e gostam de comida e/ou bebida. O Biar¡ yara atiya é momento
importante da comunidade revestido de muita descontração e alegria. Nós
indígenas entendemos que os não-indígenas sentem dificuldades em alimentar-se
das comidas, pois geralmente são muito apimentadas. Para quem não está
acostumado é difícil comer. O fato de comerem do mesmo prato, aqueles que vêm
de fora e olham tais práticas ficam assustados, pois para eles é anti-higiênico.
Para os indígenas da região é normal e comum. Aos povos indígenas aquilo que
parece anormal é cada qual ficar com o seu prato, mas esta prática, também
começar a fazer parte. Eu vi que algumas pessoas não conseguem comer junto
com os outros e aí o responsável providencia prato separado. Esta prática
acontece se tiver mais alimento que possa ser dividido. O povo indígena é muito
sensível e compreensível com as pessoas de culturas não-indígenas.
Hoje em dia existem pessoas que “pensam” que o Biar¡ yara atiya é coisa do
passado. “Passado” no sentido de dizer que é algo que simboliza o “atraso” e
como prática que deve ser abandonada. Aqueles que pensam assim acreditam
que cada família deve cuidar para alimentar a sua família.
A educação escolar criou uma mentalidade de concorrência e o acúmulo das
coisas materiais. No caso do Biar¡ yara atiya que trata diretamente da partilha da
comida, a partir da mentalidade de acúmulo das coisas materiais, alguns
indígenas dizem: “quem quiser comer tem que pescar”; “eu como peixe, carne...
porque eu sou bom pescador, caçador”. Com esta mentalidade deixam de partilhar
e tem receio de participar do Biar¡ yara atiya, pois acham que as outras pessoas
vão criticá-los. Eles, ainda crêem que a partilha não dá lucro, preferem vender.
Ainda bem que o Biar¡ yara atiya não discrimina ninguém à participação. A
pessoa se exclui por si mesma quando não vai participar.
A parte de cuidar da família sempre existiu e vai existir. Conforme já descrevi o
Biar¡ yara atiya funciona também dentro da família. Tem o sentido de partilha
familiar e fortalecimento da família. Outro sentido importante é o seu sentido
comunitário que visa incentivar a partilha comunitária e o fortalecimento da
comunidade.

3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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21
Acredito que cada geração compreenderá de forma diferente o Biar¡ yara atiya.
Porém, acredito que o seu sentido vai ser sempre lembrado e praticado. Eu
conheço muitas famílias que há tempo vivem nas grandes cidades, porém, sempre
mantiveram vivos estes valores. Vejo que Biar¡ yara atiya é o valor que dá
sentido à vida indígena na cidade. Em alguns momentos de reunião indígena
prática o Biar¡ yara atiya está sempre presente como forma de alimentação e
como assunto de conversa.
Nos tempos atuais o Biar¡ yara atiya assume muitos sentidos de acordo com as
famílias, espaços, lugares, comunidades. Suas práticas comunitárias variam
conforme as programações comunitárias.
O Biar¡ yara atiya é algo que se move bem. Em lugares maiores já não é mais
um acontecimento cotidiano. Está ligado aos acontecimentos importantes da vida
de uma comunidade: trabalho comunitário, domingo e dias festivos. Desta forma
vai dando sentido de verdadeiro encontro de família, verdadeira celebração da
vida comunitária.
A diminuição da prática comunitária do Biar¡ yara atiya não significa que ele
acabou. Ele continua vivo dentro da família. Assim como a saída da família
indígena para cidade não significa o esquecimento do Biar¡ yara atiya. Pelo que
eu tenho observado e ouvido, no primeiro momento da saída, parece dar essa
sensação por achar que agora indo para cidade terá que abandonar os costumes
indígenas, mas logo ele sente falta de algo que constituiu o cotidiano de sua
existência. Assim a família recomeça a prática do Biar¡ yara atiya. Nos últimos
anos, com o fortalecimento do movimento indígena os indígenas espalhados nas
cidades começam a re-valorizar seus valores como o Biar¡ yara atiya e que
agora está se tornando cardápio em alguns restaurantes (Norte do Brasil), neste
caso com outros sentidos.
A mentalidade indígena influenciada pela venda e lucro dos bens materiais tem
contribuído pela diminuição da partilha da comida, da força do trabalho e outras
atividades curativas (alegria...). É uma realidade que as próprias comunidades
indígenas conversam sobre tais situações, pois as comunidades, também zelam
por seus valores étnicos. São novas realidades e novas práticas dialogando com
os costumes e tradições milenares.
Enfim, vejo que o povo indígena quer manter viva a tradição, quer manter vivos os
valores culturais. O Biar¡ yara atiya é o valor a ser praticado com o espírito da
responsabilidade familiar e comunitária.
4. Biar¡ yara atiya e a evangelização
Os missionários não-indígenas são possuidores dos valores de outras culturas.
Chegando na nossa região eles encontraram indígenas, possuidores de valores e

3.2 Page 22

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22
práticas culturais diferentes. Nos contatos com os indígenas da região eles viram a
prática do Biar¡ yara atiya.
Na época que eles chegaram a maior parte da população indígena da região
viviam em casas comunitárias chamadas malocas. Era uma tradição da época,
mas os missionários achavam que aquela forma de viver era anti-higiênica.
Acredito que segundo a visão de não-indígena poderia ser vista daquele jeito.
Só que para os indígenas aquela maloca não era simplesmente uma casa. Esta
maloca possui sentidos religiosos, míticos, mitológicos. A maloca simboliza a
cobra de transformação do ser humano. Eles morando dentro da maloca
estavam vivendo este sentido. Sentiam-se como filhos protegidos. O chefe é irmão
maior dos seus irmãos menores. Dentro desta maloca estão presentes todos os
símbolos de danças... Ela é símbolo da vida, da fertilidade, da continuidade, da
criação, da revelação, do sagrado... Dentro desta maloca o Biar¡ yara atiya como
algo cotidiano é símbolo da unidade entre o chefe e os seus irmãos.
A partir do momento que os missionários vindos de fora a consideram como
espaço anti-higiênico eles profanam todos os sentidos nela contidos. Provocam o
processo de eliminação destas malocas e incentivam a construção de casas
particulares. A partir daí se pode perceber que os missionários provocam a perda
de muitos referenciais étnicos importantes. E, colocam outros referenciais
religiosos.
Para os missionários, segundo seus projetos evangelizadores foi uma coisa boa,
mas não para os indígenas. As casas particulares provocaram o crescimento do
individualismo, a indiferença, o isolamento dentro das casas, diminuição de
partilha da comida com outros membros da comunidade, enfraquecimento da
unidade, desestruturação da liderança etc.
Dentro deste contexto o Biar¡ yara atiya foi mantido pela comunidade. A prática
freqüente ou não do Biar¡ yara atiya continua provocando a criação de sentidos
diferentes que sustenta a vida indígena.
A própria prática missionária não conseguiu acabar com esta prática do Biar¡
yara atiya. Hoje este espaço está reconhecidamente como espaço evangelizador.
Eu acredito que uma das grandes novidades do Evangelho é a
Gratuidade/Partilha. Os valores do Biar¡ yara atiya aproxima-se bem da partilha
que o Evangelho de Jesus Cristo quis para os seus seguidores.
Muitas vezes estes valores são ofuscados pelas práticas dos próprios
missionários: pregar a partilha e não praticar. É interessante ouvir o que os
indígenas falam criticando: “os missionários pregam que devemos partilhar; mas
só que na hora de almoçar/jantar não partilham conosco, entram e fecham seus
refeitórios para almoçarem/jantarem escondidos; e, nós não somos padres e
irmãs, partilhamos mais do que eles”. Estas observações indígenas provocam

3.3 Page 23

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23
uma revisão da própria atitude missionária. O horizonte possível é revitalização da
gratuidade e partilha, não somente com palavras, mas com a prática.
5. Biar¡ yara atiya e as comunidades indígenas cristãs hoje
O povo Tuyuka ao longo de sua história de contato com a prática da
evangelização tem mantido vivo o Biar¡ yara atiya e tem procurado reservar um
tempo/espaço para ele. O Biar¡ yara atiya no encontro com o Evangelho de
Jesus Cristo tem feito alguns deslocamentos de diversos valores.
O momento da Oração Comunitária e o Biar¡ yara atiya têm favorecido a
participação da comunidade para os dois momentos. Hoje, na maioria das
comunidades, todos os dias se faz a oração da manhã na capela e em seguida
passa para o Biar¡ na casa comunitária (centro comunitário) ou na casa do líder
ou mesmo no espaço de quem convida para esse momento.
Quem dirige a oração da manhã é o catequista (líder espiritual). Após a oração
quem dirige é o líder da comunidade e/ou outro que assume o papel de convidar.
Faço notar que diariamente não são todos os que participam da oração nem do
Biar¡ por entende que quem vai para oração, também deve participar do Biar¡.
Esta mentalidade foi criada pelas mesmas pessoas, mas os dois momentos são
momentos/espaços abertos. Pode acontecer que a pessoa que foi para a oração
não participar do Biar¡ ou vice-versa.
O Biar¡ yara atiya torna-se mais solene aos domingos e festas, quando
praticamente todos participam, principalmente nas comunidades menores. A
preparação começa no dia anterior (sábado ou na véspera da festa), quando os
homens saem para a pescaria e só voltam de madrugada. As mulheres por sua
vez vão à roça, carregar mandioca, preparar melhor farinha, beiju e fazer boa
bebida. Somente assim o domingo e festa se tornam dia festivo, dia de partilha, de
alegria.
No dia de domingo e dia de festa após a preparação da comida inicia-se o culto
dominical. É o momento de orações, cantos, escuta da palavra de Deus, partilha
da palavra, reflexões, busca de soluções dos problemas da comunidade etc.
Terminado este momento os participantes dirigem-se para a casa comunitária
(centro comunitário ou na casa do líder). Na capela, ainda, o líder já convida as
pessoas para que busquem a comida. Saindo da capela as pessoas já se dirigem
para as casas buscar a comida e bebida.
Assim começa o Biar¡ yara atiya. Se junta todas as comidas e começa a
celebração da partilha das comidas que foram preparadas com esforço de todos
os homens na pescaria da noite e das mulheres com o trabalho das roças,

3.4 Page 24

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24
preparação do beiju, farinha, mingau e outras bebidas. Este é o mento de
verdadeira alegria. Para experimentar a alegria de estar no Biar¡ yara atiya
estando lá para sentir, pois é indescritível.
Após este momento, hoje, já existe outro momento importante: o lazer
comunitário. Todos os membros da comunidade se reúnem ao redor de uma
atividade esportiva, onde participam os casados, casadas, jovens e crianças.
Quem não pode jogar fica conversando, contando histórias, piadas, torcendo e
achando graça. Levam água com farinha (chibé) para beber. Geralmente tem a
bebida chamada caxiri (bebida fermentada). Este momento é muito gostoso, pois,
dá para ver como as pessoas se sentem bem. As pessoas ficam sentadas na
sombra da casa, na sombra da árvore, outros vão tomar banho e voltam a
participar ou assistir dos jogos. As gargalhadas nunca faltam.
Estas atividades vão exigindo mais esforços de todos e quem não se esforça para
entrar no ritmo, se exclui, mas geralmente todos participam. A partir destes
momentos pode-se ver que há valores indígenas que casam bem os valores
evangélicos: partilha e alegria.
Conclusão
O Biar¡ yara atiya é uma prática de fraternidade, partilha, unidade, alegria,
sinceridade e construção da comunidade etc.
A meu ver o Biar¡ yara atiya é uma mostra da presença de Deus da vida nas
culturas dos povos indígenas. A finalidade do Biar¡ yara atiya é o fortalecimento
da alegria da comunidade.
O Evangelho de Jesus é um convite para uma nova vida consigo, com outros e
com Deus. “E ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a tua
alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua força. Ame o seu próximo
com a si mesmo” (Mc 12,30-31). É um convite para a vida de amor, de respeito, de
valorização de si e do outro. Certamente nisto consistirá a alegria de viver. A partir
disto muda o modo de viver no dia dia-a-dia.
O Biar¡ yara atiya é uma Boa Nova para o povo indígena e destes para outros
povos não-indígenas que querem conhecê-la. O Biar¡ yara atiya é a expressão
do amor familiar e o amor comunitário. A sua prática via de encontro com o projeto
de Jesus, construir uma comunidade unida que partilha a alegria, a comida, que
cresce toda vez que celebra comendo o Biar¡ yara atiya. Nele a comunidade vai
além da sua existência material. O Biar¡ yara atiya diferente e com diferentes
saberes, saem mais unidos.

3.5 Page 25

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25
Os diversos sentidos descritos não esgotam todo o significado do Biar¡ yara
atiya. Cada indígena e não-indígena que participa deste momento com certeza
com terá muito a dizer sobre ele. Desta forma quero concluir dizendo que o Biar¡
yara atiya é uma fonte inesgotável de riquezas. Esta descrição é uma experiência
minha como indígena Tuyuka, Salesiano e Padre. Por causa destas identidades
as minhas visões sobre o Biayara atiya é complexa.
FIGURA: ALUNOS DA ESCOLA TUYUKA OUVINDO AS NARRATIVAS DE UM ANCIÃO
FONTE: REZENDE, Justino, 2007.
ESCUTANDO OS MEUS PAIS!

3.6 Page 26

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26
Iniciando a conversa
Elaborado em 2005 quando eu estava em Campo Grande/MS. Seguindo o
Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação/UCDB (Linha de Pesquisa
3: Diversidade Cultural e Educação Indígena), estudávamos muitos temas
indígenas e provocou-me a escrever algo que aprendi com os meus pais em
Onça-Igarapé (1961-1979).
São ensinamentos simples organizados em forma de pequenos diálogos3, mas em
cada diálogo se faz presente uma filosofia de vida etc. Seguem pequenas
explicações complementares e interpretativas. Também, este trabalho, em
março/2009 foi reorganizado num texto didático com o nome: Ouvindo, Vendo e
Fazendo. O trabalho está organizado em três línguas: Tukano4, Tuyuka5 e
Português. Assim quem estiver utilizando este texto terá contato pelo menos com
duas línguas indígenas.
3 Estes diálogos de forma mais ampliada foram publicados em 1990: Noa tho niati teré? “Quem foi que disse
isso?”: Leituras pré-escolares para Tukanos. Manaus: SEDUC/ART, 1990. Estes mesmos diálogos receberam
nova organização feita por mim em 2005. Titulo: ESCUTANDO OS MEUS PAIS. Neste trabalho acrescentei
pequeno vocabulário após cada diálogo e a mensagem de cada diálogo (enviado para os amigos via e-mail).
4 Na bacia do rio Uaupés já existem várias maneiras de escrever a língua tukana. Nenhuma forma foi
assumida como oficial. Esta escrita é mais outra maneira. O nome mitológico do Tukano é Yepâ-masa.
5 O Tuyuka autodenomina-se ¢tãpinopona: ¢tã (Pedra), Pino (Cobra), Pona (Filhos): Filhos-da-Cobra-de-
Pedra.

3.7 Page 27

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27
OUVINDO, VENDO E FAZENDO!
“As práticas educativas indígenas são fundamentadas nas filosofias, teorias do conhecimento, pedagogias,
metodologias de ensino-aprendizagem-vivência e correntes políticas próprias. São elas que dão
sustentabilidade à história de cada povo, desde as suas origens. Muitos povos indígenas têm suas origens no
Lago de Leite (vida na água) passando pelas diversas Casas de Transformação até a sua emergência para o
patamar da terra (o chão de nossa vida). Para outros povos indígenas as suas origens encontram-se no patamar
de cima. Eles saem do patamar de cima para pousar e pisar sobre a terra (nosso patamar). Tanto os povos que
se originam no Lago de Leite e do Patamar de cima pisando no chão – patamar onde vivemos – seguem seus
processos históricos de construção de suas identidades e diferenças, em diversos caminhos e espaços.” 6
INICIANDO A CONVERSA!
Justino Sarmento Rezende
Os assuntos de nossa conversa são as Práticas Educativas Indígenas. Com este
trabalho começo organizar em vários números a visualização de diversos aspectos das
práticas educativas dos povos indígenas da bacia do rio Uaupés: Arapaso, Bará, Carapanã,
Desano, Piratapuia, Wanano, Kubeu, Mirititapuia, Yeba-masa, Tariano, Tukano, Tuyuka e
outros. A bacia do rio Uaupés abrange as três regiões: Pari-Cachoeira (rio Tiquié), Taracuá
(rio Uaupés) e Iauareté (rio Uaupés). A maioria dos povos indígenas destas regiões fala a
língua tukana como língua de comunicação interétnica. Estas (3) regiões são denominadas
de Triângulo Tukano. A bacia do rio Uaupés localiza-se no município de São Gabriel da
Cachoeira/AM. Eu nasci nesta região, conheço algumas características culturais destes
povos que nos mostram as semelhanças e diferenças.
Há algumas décadas contrapondo às realidades da educação escolar, muito se tem
falado da educação indígena (escolas, universidades, legislação). E, na maioria das vezes
são teorias sobre a educação indígena elaboradas pelos teóricos não-indígenas, seguindo as
normas de trabalhos científicos ocidentais. Para uma academia valem mais tais discursos do
que as falas indígenas.
Diante desta constatação penso que nós indígenas que vivenciamos desde o nosso
nascimento os diversos sentidos da nossa educação (da etnia) podemos contribuir e
interagir com os diferentes discursos elaborados pelos teóricos ocidentais sobre a educação
indígena. É importante afirmar que as práticas educativas são dinâmicas e são construídas
historicamente.
6 Trecho do artigo elaborado nos dias 1-5/12/2008 com o título: Releituras das Diretrizes para Educação
Escolar Indígena e Escolas da bacia do rio Uaupés.

3.8 Page 28

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28
Com o subtema Ouvindo, Vendo e Fazendo proponho mostrar um dos modos de
educar indígena. Na minha dissertação de mestrado eu afirmei que a educação indígena
consistia: 1) ENSINAR mostrando-vivendo-falando e 2) APRENDER vendo-praticando-
ouvindo. As pedagogias indígenas são centradas na oralidade que expressa o modo de
pensar, de ser, de guardar a memória e veicular esta memória de uma geração para outra.
As narrativas postas aqui são memórias daquilo que os meus pais, Eduardo Barbosa
Rezende (Tuyuka) e Luiza Sarmento Rezende (Tukana) me falavam para me educar. São
ensinamentos simples. Quando os meus me educavam eles queriam que os escutasse. São
pequenos diálogos7, mas por detrás de cada diálogo se faz presente filosofia de vida etc.
Seguem pequenas explicações complementares. O trabalho está organizado em três línguas:
Tukano8, Tuyuka9 e Português. Assim quem estiver utilizando este texto para estudar a
educação indígena terá contato pelo menos com duas línguas indígenas.
1) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak£, m¡ pakore añuro Mak£ m¡ pakore añuro Filho obedeça bem à sua
y¡tiya.
y¡ya.
mãe.
Añuro y¡r¡ sir•g¡.
Añuro netõ d¡gag¡
Se quiser passar bem.
Toho weya mak£.
Tero tiya mak£
Faça isso, filho.
A¡, tohota weg¡ti pak¡.
Ha¡, terora tig¡da pak¡. Sim, vou fazer isso, papai.
Meu pai ensinava insistentemente sobre a importância da obediência dos filhos aos pais.
Neste fato, ele mostra que eu devo obedecer a minha mãe. Ele me diz o porquê da
obediência: a obediência para com a mãe trará coisas boas para mim.
2) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Mak¡, darag¡ tutuak¡
nig¡ wua wakãg¡ waya.
Wuatig¡ tutuasome m¡.
Ma¥, tere weg¡ta ñami
kãrek† nikãti ukã,
wuag¡ niap¡ y¡a.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Mak£ padeg¡ tutuag¡da
h•g¡ kusa wakãg¡ waya.
Kusaeg¡ tutuariku m¡
Pako tere tig¡ra ñami
kãrek† sikato wederi,
kusag¡ niaw£ y¡ha.
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Filho para ser forte no
trabalho
banhe-se de madrugada.
Se não tomar banho você
será fraco.
Mamãe, por isso mesmo,
bem cedo
quando o galo canta pela
primeira vez,
eu já estou no banho.
7 Estes diálogos de forma mais ampliada foram publicados em 1990: Noa tho niati teré? “Quem foi que disse
isso?”: Leituras pré-escolares para Tukanos. Manaus: SEDUC/ART, 1990. Estes mesmos diálogos receberam
nova organização feita por mim em 2005. Titulo: ESCUTANDO OS MEUS PAIS. Neste trabalho acrescentei
pequeno vocabulário após cada diálogo e a mensagem de cada diálogo (enviado para os amigos via e-mail).
8 Na bacia do rio Uaupés já existem várias maneiras de escrever a língua tukana. Nenhuma forma foi
assumida como oficial. Esta escrita é mais outra maneira. O nome mitológico do Tukano é Yepâ-masa.
9 O Tuyuka autodenomina-se ¢tãpinopona: ¢tã (Pedra), Pino (Cobra), Pona (Filhos): Filhos-da-Cobra-de-
Pedra.

3.9 Page 29

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29
Os meus avôs e meus pais insistiam para que banhássemos de madrugada, três ou quatro
horas da manhã, ou no primeiro cantar do galo. Eles nos educavam dizendo que nesta hora é
hora boa para adquirir a força que vem da água. Durante o banho tínhamos que fazer o
barulho batendo as mãos na água e fazer barulho. Deveríamos ficar bom tempo dentro da
água até sentir muito frio. E na volta a casa pediam que ficássemos longe do fogo, pois o
fogo poderia impedir a aprendizagem dos saberes. Neste fato, é minha mãe que insistia mais
e era a disciplinadora.
3) TUKANO:
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk£se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak¡, m¡ w¡ag¡ ehati m¡? Mak£ m¡ kusag¡ ehar• Filho, você já tomou
m¡?
banho?
Wuatig¡ma, numiã ¡atiwã na. Kusaeg¡reha numiã
Para quem não se banha as
boriwa k¡ã.
mulheres não querem.
Ma¥, m¡ y¡re ñatigota wesa Pako, m¡ y¡re ñaegorã Mamãe você não está me
m¡.
tiku m¡.
acompanhando.
¢m¡kohori n¡k¡ wuag¡ B¡rekori kañe kusag¡ Todos os dias eu costumo
niap¡, y¡a.
niaw£ y¡ha.
tomar meu banho.
Minha mãe pergunta se eu já fui ao banho. Ela dizia que as mulheres (de outras etnias) não
gostam de quem não toma banho. Não tomar banho cedo significa não ter forças. Por isso,
ela insiste sobre o banho da manhã (madrugada) porque quem toma banho cedo tem forças
para desenvolver trabalhos da roça... Segundo minha mãe se eu não me tornar bom
trabalhador e não tiver as minhas roças, nenhuma mulher vai querer casar comigo. Quem
vai querer casar com um homem que não trabalha? Vai passar fome? Esta é a realidade que
preocupa a minha mãe. Ela está preocupada com o meu bem-estar e com o futuro da
esposa.
4) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Mak¡, noã b¡k¡rã berop¡
wuarã
mata b¡k¡rã dohopãra.
Toho weg¡, b¡k¡rã d¡poro
wuag¡ waya.
T¡oti m¡, mak¡?
Tere weg¡ta,
nipetirã d¡poro wuag¡ niap¡
y¡a pak¡.
Añu mak¡.
Wua wakãña tutuag¡ti nig¡.
¢m¡kohori n¡k¡ wuag¡ti,
pak¡.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Mak£, nia b¡toa sirop¡
kusara
matã b¡toa posaira k¡ã.
Te tig¡ b¡toa s¡gero
kusag¡ waya.
T¡oi mak£?
Tiere tig¡ra,
nipetira s¡gero kusag¡
niaw£ yuha, paku.
Añua mak£.
Kusa wakaña tutuag¡da
h•g¡.
B¡rekori kañe kusag¡da,
pak¡.
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Filho, aqueles que tomam
banho depois de velhos
envelhecem mais rápido.
Por isso, vá se banhar antes
dos velhos.
Entendeu filho?
Por isso mesmo,
tomo banho antes de todos,
papai.
Está bem filho.
Tome banho cedo para ser
forte.
Vou tomar banho todos os
dias, papai.

3.10 Page 30

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30
O meu pai ensinava que os jovens que tomam banho depois dos velhos envelhecem mais
rápido. Segundo os seus ensinamentos, quando os velhos tomam banho, a roupa velha dos
velhos fica na água. Os jovens devem se banhar antes dos velhos. É uma simbologia para
que explicar que os jovens precisam ser bem fortes e corajosos. Os nossos pais entendiam
que era importante que os jovens assumissem as condições de jovens: forças, espertezas,
disponibilidade, coragem... Os adultos sempre estavam nos ensinando os segredos da vida.
Para eles, um dos grandes segredos da vida, estava na água, no banho, e, antes dos velhos.
Os meus pais controlavam para ver se eu estava praticando isso. Assim cada família
controlava os filhos. Deste modo, nós nos juntávamos em grupos e descíamos ao porto
para o banho da madrugada.
5) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsa uk¥se
B¡k¡o,
B¡k¡o,
Mulher (esposa),
m¡ porãr† añuse boeapa, M¡ ponar† añurer†
ensina coisas boas para seus
boewa,
filhos,
bero na añukã ñasir•gõa.
siro k¡ã añuri iña
se quiser vê-los bem depois,
d¡gagoha.
Ñasir•tigo buetikaña.
Iña d¡gaego buerihaña. Se não quiser vê-los bem,
não ensine.
M¡pewaro, were weti nar†? M¡pete, wederi k¡ãre. E, você não vai ensiná-los?
M¡kerã wereya mehõ.
M¡kã wedeya b¡ri.
Você também deve ensiná-
los.
O meu pai e minha mãe sempre discutiam sobre a responsabilidade de educar seus filhos.
O meu pai sabendo que a minha mãe era mais firme na educação sempre apelava para ela.
Minha mãe mostrava para o meu pai que educar os filhos não cabia somente a ela, mas
também a ele. Os objetivos da educação são: realização dos filhos; que eles construam uma
vida melhor; convivam bem com outras pessoas; evitar que os filhos passem mal,
vergonha, humilhação etc.
6) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Mak¡, y¡ dutikã añuro
y¡tiya.
Toho werã pehe boenosa.
A¡ pak¡, añuro y¡tig¡ti
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Mak£, y¡ dutiri añuro
y¡ya.
Te tira pe boenoku.
Ha¡ pak¡, añuro y¡g¡da
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Filho, quando eu mando,
obedeça-me bem.
Fazendo isso, a gente
aprende muitas coisas.
Sim papai obedecerei bem.

4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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31
m¡r†.
m¡r†
A obediência é um dos valores a ser bem cultivado na educação de uma pessoa. Meu pai
volta e meia estava falando de obedecer a minha mãe, avós, aos mais velhos. A vida é
baseada na obediência. Quem obedece aprende muitas coisas novas. A desobediência
significa não querer aprender. Todas as famílias insistiam com seus filhos. A obediência a
gente aprende muito cedo.
7) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak¡, m¡ b¡k¡ag¡,
Mak¡, m¡ b¡k¡ag¡
Filho, quando você crescer,
añuse diak¡ weboeapa.
añure do ti boewa.
aprenda a fazer só coisas
boas.
Añug¡r†ta, masã añuro Añug¡rena basoka añuro Para quem é bom, as
t¡sawã na.
t¡sawa k¡ã.
pessoas gostam muito.
A¡, pak¡. Añuro ehõpeog¡ti Ha¡ pak¡. Añuro Sim, pai. Tratarei bem todas
nipetirãre.
padeog¡da nipetirare.
as pessoas.
O meu pai me ensina que ao longo de nossa vida temos que fazer o bem para todas as
pessoas. A partir do bom trato que damos aos outros, eles nos respeitam e gostam. Quando
uma pessoa é boa, as pessoas da aldeia estimam e respeitam.
8) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Makõ, m¡ pakore añuro Makõ, m¡ pakore añuro Filha, obedeça bem à sua
y¡tiya.
y¡ya.
mãe.
Añuro y¡r¡sir•gõ.
Añuro netõ d¡gago.
Se quiser passar bem.
Y¡tigosari m¡?
Y¡go dari m¡?
Você vai obedecer?
A¡, tohota wegoti, pak¡.
Ha¡, terora tigoda pak¡. Sim, farei isso, papai.
A obediência, também era exigida para as minhas irmãs. Meu pai gostava que elas
obedecessem bem à minha mãe. Elas aprenderam a obedecê-la. Na nossa tradição, a
mulher é que sai da etnia quando um homem de outra etnia vem buscá-la para o
casamento. Por isso na educação exige-se que ela seja bem preparada aos valores de sua
etnia e assim ela levará muitas práticas culturais que aprendeu com os pais para dentro de
outra cultura, outra etnia (do marido).
9) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Makõ, ako wago waya.
Makõ, ako wago waya. Filha vá buscar água (no
rio).
A¡, soharo mera wa Ha¡, boyero wakoro Sim, eu vou lá rapidamente.
mahagõti
hãda.
Wa mahaña, makõ.
Wakorohaña makõ.
Vá logo, filha.
Os meus pais exigiam muita agilidade em fazer as coisas. Segundo a compreensão deles os
jovens têm que ser ágeis e disponíveis. Quando minha mãe pede para minha irmã buscar
água ela está querendo que seja feito rapidamente. A minha irmã tem que pegar a panela,
descer para o porto e voltar com a panela cheia de água. Assim ela mostra que está

4.2 Page 32

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32
assimilando os conteúdos que minha mãe está transmitindo todos os dias.
10) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mamiõ, tea ako warã.
Sowõ ham¡ ako wako.
Irmã maior,vamos buscar
água (no rio).
Mar• pako marir† Mar• pako marir† Nossa mãe,já nos ensinou,
weretohamo.
wedetoawõ.
Añuro dara boeya niamo. Añuro pade boeya h•awõ. Disse que é para
aprendermos a trabalhar
bem.
Wagosari m¡?
Wagodari m¡?
Você vai?
Wagoti, numiõ.
Wagoda bairo.
Eu vou, irmã menor.
As minhas irmãs estão discutindo sobre o ensinamento de meus pais, principalmente da
minha mãe. Minha mãe já teria educado para elas sobre a importância do trabalho. E, a
minha segunda irmã está insistindo com a irmã mais velha para que vá com ela buscar a
água e motivando-a a partir das palavras da minha mãe: que devem aprender a trabalhar
bem. Diante desta insistência a irmã mais velha, vai com ela. A educação recebida deve ser
continuada pelas pessoas que a recebem. Quando são muitos irmãos um deve ensinar ao
outro, um deve lembrar o que o outro esquece, um deve ajudar naquilo que o outro não sabe
fazer.
11) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak¡,
Mak£,
Filho,
m¡ akahabihirã merã ato m¡ baira na ano wi duiya. fique em casa com os seus
wi duhiya.
irmãos menores.
Wita duhikãpa.
Wira duihãwa.
Fique aqui em casa.
Nar† kõakã wetikãpa.
K£ar† kõawa tirihãwa.
Não vá abandoná-los.
¢sã wesep¡ warã we.
¢sã wesep¡ wara tia.
Nós estamos indo para roça.
Waya. Añuro koteg¡ti na Waya. Añuro koteg¡da Podem ir. Acompanharei
wimarar†.
k£a wimarar†.
bem as crianças aqui.
Por ser irmão mais velho eu cuidava dos meus irmãos menores. Isto significava ficar em
casa, dar comida, levar para o banho. Quando eram crianças demais, tinha que preparar
mingau, deitar com ela na rede até ela dormir e ficar balançando a rede. Era praticamente
ser a mãe, naquele espaço de tempo, na ausência dos pais. Tinha que garantir a segurança
das crianças. As crianças até certa horas agüentam bem, brincam, querem tomar banho,
querem comer, querem dormir. E, depois de certa hora começam a sentir saudade da mãe e
choram e, aí, não tem como dar jeito, só volta da mãe.
12) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Nihã, atop¡!
Ñenohõ niti?
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Y¡ bai anop¡
Ñeno ni?
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Irmão menor vem para cá!
O que é que tem?

4.3 Page 33

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33
Kero atia atop¡!
Boyero atiya anop¡!
Venha rápido para cá.
Wa tohag¡ta we.
Wag¡ratia me.
Eu já estou indo.
Pirõ pahig¡ kuñamí ato.
Pino paig¡ kõa• ano.
Tem uma cobra grande
deitada aqui.
O texto ensina como se deve chamar o irmão pela consideração e não pelo nome. Os meus
pais diziam que o modo correto segundo as regras étnicas é chamar a pessoa sempre pela
consideração: irmão maior, irmão menor, irmã maior, irmã menor, avô, avó, titio, titia,
papai, mamãe. O texto ensina a partilhar a vida, mostrar as novidades, os perigos, etc.
13) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak¡, tea mar• siharã. Mak£ ham¡ mar• Filho, vamos passear.
N¡k£p¡ warã.
kamesãko. Makãn¡k¡p¡ Vamos à floresta.
wada.
A¡, tea.
Ha¡, ham¡.
Sim, vamos.
Komeã w¡apa.
Komeã opawa.
Carregue o machado.
Mar• yag¡ diay¡kerã Mar•ya diayikã wag¡dari? O nosso cachorro também
wag¡sari?
vai?
Pihiya, bu n¡r¡kã.
Sioya k£ bu n¡n¡seri
Chame-o para que cace a
cutia.
Bua paharã niwã mar• Bua añuriwa mar• Lá aonde vamos tem muitas
waroma.
waroreha.
cutias.
O meu pai gostava de caçar com o cachorro na floresta. Quando ele usava a palavra
“passear na floresta” era para dizer vamos caçar. Ele dizia que nunca se deve dizer “vamos
caçar, vamos pescar”, pois a natureza avisa para a caça e para os peixes e eles fogem de
nós. Era uma crença que ele tinha. Quando eu já estava mais crescido sempre o
acompanhava. Ele caminhava muito longe e rápido e, ficava reclamando comigo, pois eu
queria voltar logo. Ele dizia: nem achamos a caça, ainda! E, o nosso cachorro corria para
pela floresta procurando caça. Quando ele encontrava a caça, saía latindo e o meu pai corria
em direção aos latidos do cachorro. Eu ia bem atrás. E, o meu pai brigando comigo pedia
para eu corresse mais rápido. Correr no mato não é fácil. Ainda mais que eu era criança!
Depois que eu cresci um pouco mais corria mais do que meu pai. E, ele ficava pedindo que
eu fosse mais devagar.
14) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Pak¡ ise ori ¡m¡ti
y¡r¡ap¡to.
Toho nirõ wew¡ te nohõ
oria.
¢asari m¡ te orire?
¢a y¡r¡asa y¡a.
Misari?
Míña.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Pak¡
iye
koó
sitiañuhamaw£ to.
Te biro tiw¡ te no koóha.
Bogari m¡ te koóre?
Bo netõ wahãga y¡ha.
Negari?
Neña.
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Papai aquelas flores são
cheirosas demais.
Essa qualidade de flores é
assim mesmo.
Você quer essas flores?
Eu quero demais.
Posso pegar?
Pegue.

4.4 Page 34

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34
Quando eu andava com meu pai na floresta, no rio, na roça, na pescaria, eu via muitas
riquezas da natureza e eu perguntava o que era. Ele me explica. Às vezes não queria
explicar, principalmente, quando estava pescando. Queria silêncio. Havia flores bonitas e
cheirosas. Muitas vezes, meu pai deixava olhar e outras vezes não deixava. Ele dizia que
algumas flores são venenosas. Ele explicava o que ele conseguia explicar. Outras vezes ele
não conseguia explicar, dizia: meu filho, eu também não sei, é da natureza. Não podemos
saber de tudo. Existem muitas coisas que não precisam de explicações.
15) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Akoro atitohasato mak¡. Oko atitoagato mak£.
Filho, já está chegando a
chuva.
Ma akoroari wi aporã.
Ma okoroari wi kenoko.
Vamos preparar uma casinha
(tapiri).
Oho pur• amaña.
Ho p¥ amaña
Procure a folha de
bananeira.
Ñari wiakã wekehokãrã.
Ñañari wigã tikorohãda.
Vamos logo fazer uma
casinha mal-feita.
Pak¡, pekame wihama? Pak¡ pekame dioma?
Papai, eu posso preparar o
fogo?
Wihaña, y¡s¡a nisa.
Dioya ¡s¡a niga.
Prepare o fogo porque está
frio.
Pekame yoa kurero Pekame yoa sañuro duiwa. Sente-se mais afastado do
duhiapa!
fogo!
Mas• toha mak¡.
Mas•a me mak£.
Eu já sei, meu filho.
Durante a pescaria ou a caça, quando vinha a chuva, logo o meu pai ficava preocupado em
fazer a casinha improvisada para passarmos a chuva. Procurávamos a folha de bananeira
(sororoca) ou outras folhas grandes para fazermos a casinha. O meu pai era rápido para
isso. Por isso, ele dizia que eu era mole demais. Eu não tinha prática. Ele tinha porque o
tempo de vida ensinou-lhe muitas práticas. Depois de preparar a casinha, ele preparava o
fogo. Quando era na pescaria aproveitava para assar alguns peixes para comermos. Assim o
meu pai ia ensinando a sobreviver em qualquer situação da vida. Vendo isso eu ficava
pensando comigo: cada pai deve ensinar aos filhos o seu jeito de viver a vida; por isso que
eles levam seus filhos para pescaria, caçada, trabalho...
16) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Nihã, tea diap¡.
A¡, tea.
Wahapih• miãpa.
Tea, mig¡ti.
Ma¥, ¡sã warã we.
Berop¡
daharãti.
Kotetikaña ¡sãre.
A¡ y¡ porã. Añuro sihapa.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Y¡ bai ham¡ diap¡.
Ha¡, ham¡.
Warip• newa.
Ham¡, neg£da.
Pako, ¡sã wara tia.
Sirop¡ pota ehada.
Koterihaña ¡sãre.
Ha¡ y¡ pona. Añuro
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Irmão menor vamos pescar.
Sim,vamos.
Pegue o remo.
Vamos, eu vou levar.
Mamãe, nós já vamos.
Nós vamos voltar tarde. Não
espere por nós.
Sim, meus filhos. Andem

4.5 Page 35

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35
kamesãwa.
com cuidado.
Tea y¡k¡s¡
y¡r¡orã.
wehe Ham¡ y¡k¡soro we netõ Vamos passar a canoa.
neko.
Diap¡ weherãsari?
Diap¡ wea dari?
Vamos passar pelo rio?
Map¡ weherã.
Map¡ weada.
Vamos passar pelo caminho.
Poea wio niap¡.
Poewa kio niaw£.
A cachoeira está perigosa.
Top¡ta warã!
Top¡ra wada!
Vamos por lá.
Eu convidava os meus irmãos menores para ir pescar comigo. Recomendava que eles
pegassem seus remos para ajudar a remar, pois num trecho do percurso havia cachoeiras e
correntezas. Quando a gente é criança só por não conseguir vencer tais cachoeiras e
correntezas já dá vontade de chorar e desistir da pescaria. Ao despedir da mãe eu sempre
dizia para ela não ficar esperando. Meu pai havia ensinado para nós que quando alguém vai
para a pesca e caça não se deve esperar, pois isso pode atrapalhar a pescaria e caça. E, nós
repetíamos estes pensamentos quando saíamos para pescaria... Aprendíamos a puxar canoa
nas cachoeiras e às vezes pelo caminho. Assim, aprendíamos o nosso jeito de viver a vida.
17) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Nikã ma sihag¡ wag¡ti.
Mek£gar†hã kamesag£ Hoje eu vou passear.
wag¡da.
Nõ y¡ ¡aro wag¡ti.
No y¡ boro wag¡da.
Eu vou para onde eu quiser.
Yag¡ diay¡ merã wag¡ti Yag¡ diayi mena wag¡da. Eu vou com o meu cachorro.
Nikarõ ñamíka dahag¡ti. Mek£ ñamika pota Eu vou voltar bem tarde.
ehag¡da.
Añuro sihapa.
Añuro kamesãwa.
Passeie com cuidado.
M¡ mak¡ k†rar† pihiya
M¡ mak£ kar† sioya.
Leve também o seu filho.
k£ m¡r† bapatikã.
k£ m¡r† bapatiri.
para acompanhá-lo.
Watikãto k£a.
Warihãro k¡hã.
Ele não vai.
Wi duhikãto k¡ã.
Wi duihãro k£hã.
Deixa-o ficar em casa.
Y¡ merã wesep¡ wato.
Y¡ mena wesep¡ waro. Ele vai comigo para roça.
Tea mak¡.
Ham¡ mak£.
Vamos meu filho!
Meu pai quando estava para sair para a caça comunicava à minha mãe dizendo que iria
passear e voltaria bem tarde. Levaria consigo o cachorro. Assim a minha mãe ficava sem o
cachorro para aquele dia. O cachorro era sempre amigo do meu pai e da minha mãe.
Quando ele ia com minha mãe para a roça, ele ia à frente espantando o perigo. Enquanto
minha trabalhava na roça, ele aproveitava para dormir e de vez em quando ia procurar caça
na beira da roça. Geralmente, minha mãe não gostava que ele caçasse, pois atrapalhava o
trabalho dela. Quando ia com o meu pai, ele não descansava, pois ele estava para caçar.
Meu pai e o cachorro se entendiam muito bem. Por isso, meu pai dizia que no passado, o
cachorro já havia sido gente. Algumas vezes meu pai não queria me levar consigo para
pescaria ou caça, pois dizia que eu não dava sossego para que ele pescasse ou caçasse com
calma, querendo voltar logo para casa. Quando não tinha nada para fazer em casa minha
mãe levava-me para roça.

4.6 Page 36

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36
18) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Mak¡, wai w†he boeapa Mak£, wai we boewa wai Filho, aprenda a pescar para
wai bag¡ti nig£.
yag¡da h•g¡.
comer peixe
Boeg¡ta we pak¡.
Boeg¡ra tia pak¡.
Estou aprendendo, papai.
Petap¡ w†heg£ wag¡ti. Petamak¡ weg¡ wag¡da. Vou pescar lá no porto.
Bero baya.
Siro yaya.
Depois coma!
Waya mak¡. Weheg¡sa Waya mak£. Weg¡a yada Vá meu filho. Vá pescar
bahã nirã.
h•ra.
para comermos.
Eu acompanhava o meu pai na pescaria. Lá ele me mostrava como pescar, os lugares que
deveria pescar e como pescar em cada época do ano. Mostrava os lugares para encontrar as
iscas. Para cada lugar de pesca mostrava as suas técnicas. Cada pai tem suas maneiras de
pescar. Estas técnicas cada pai ensina para os seus filhos. Os filhos sãos herdeiros das
sabedorias de seus pais. Quando o meu pai percebia que eu já podia sair sozinho ou com
meus irmãos menores para pescaria ele recomendava que eu praticasse os seus
ensinamentos. Outras vezes ele me acompanhava e complementava com outras instruções.
19) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Pak¡,
Pak¡,
Papai,
m¡pe kasaw¡ ¡seweti? m¡pe kasaw¡ suari?
você não vai tecer matapí?
Tuahap¡, mak¡.
Titoaw£, mak£.
Já aprontei, meu filho.
Ñamiakã diap¡ warã,
Ñamigã diap¡ wara,
Amanhã vamos no rio,
top¡ kasaka aporã.
top¡ kasaka kenoada.
lá vamos preparar a
cerquinha.
Tohota werã, pak¡.
Terora tiada, pak¡.
Faremos isso, papai.
Y¡ oho diha apog¡ti.
Y¡ ho diwa kenog£da.
Eu vou mergulhar e
preparar.
Y¡pe wag¡ti mak¡.
Y¡pe wag¡da mak£..
Eu é que vou, filho.
M¡r† boeg¡tig¡ we.
M¡r† boeg¡d¡ tia.
Porque eu vou te ensinar!
Añurosa, pak¡.
Añuadaku pak¡.
Está bem, papai.
Ape n¡m¡ wag¡ti y¡a.
Ape b¡reko wag¡da y¡ha. Outro dia eu irei.
Uma das técnicas para pegar o peixe é a do matapi. É feito com talas de uma paxiúba. A
quantidade de talas depende para o tamanho do matapi. Em Onça-Igarapé, onde eu nasci
como não temos grandes peixes os matapis são pequenos. Quando o peixe entra no matapi
ele não volta mais. Para colocar o matapi a gente procura um canal no rio, onde a gente
calcula que o peixe vai passar. O matapi é colocado no fundo do rio e precisa fazer uma
cerquinha e colocar o matapi no meio, sempre com a boca do matapi voltada contra a
correnteza. Quando o peixe passa por lá, entra no matapi. Cada dia alguém da família
poderá ir ver se tem peixe e aproveitar par limpar as folhas que entra no matapi. Para que o
matapi atraia peixes, a pessoa que fez o matapi e colocou tem que fazer jejum que consiste:
não se assustar; não comer dos primeiros peixes que entraram no matapi etc.

4.7 Page 37

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37
20) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Pak¡, poeap¡re wai bupu Pak¡ poweap¡ wai bup¡ Papai, lá na cachoeira os
y¡r¡rã weama.
netõra tiawã.
peixes estão pulando e
passando.
Mak¡, tea nar† ñerã. Bero Mak£ ham¡ k£ar† ñeko. Filho, vamos pegá-los!
doa barã.
Siro doa yada.
Depois vamos cozinhar e
comer.
Y¡ pako wese dahago Y¡ pako wese potaheago Minha mãe ao voltar da roça
waire bagosamo.
waire yago dakio.
comerá os peixes!
Tea kero mak¡.
Ham¡ boyero mak£
Vamos logo, meu filho.
Bati merã ñeg¡ti y¡a.
Bati mena ñeg¡da y¡ha. Eu vou pegar com peneira.
W†hek¡ merã ñug¡ti y¡a. Bapig¡ mena sug¡da Eu vou aparar com puçá.
y¡ha.
Há época do ano em que os peixes vão subindo o rio, nas cachoeiras para passarem eles
pulam. Nós aproveitávamos para pegá-los, aparando-os com peneira de cipó (bati) e com
puçá (rede de pesca, pequena). Geralmente muitos peixes passam sem serem pegas.
21) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak¡, wai weheg¡sa
Mak£ wai weg¡a
Filho vá pescar
m¡ n¡mo ko bakã!.
m¡ n¡mo ko yari.
para que sua mulher coma.
Wag¡ti, pak¡. Wai ma Wag¡da pak¡. Waireha Eu vou papai. Eu sou bom
¡ariti nias¡ y¡a.
¡gariti niaw£ y¡ha.
pescador.
Y¡ n¡mo ¡ha boasome. Y¡ n¡mo h¡a boarikio.
Minha mulher não passará
fome.
Y¡kerã wag¡ti, mak¡.
Y¡kã wag¡da mak£.
Filho, eu também vou.
Tea mar• p¡arã warã.
Ham¡ mar• p¡arã wada. Vamos nós dois.
Mata daharã nikama.
Matã
potaheada Hoje voltaremos logo.
mek¡gãrehã.
Ma¥, diap¡ siharã wa.
Pako, diap¡ kamesãra wa. Mamãe, nós vamos passear
no rio.
Waya mak¡. Añuro sihapa. Waya mak£. Añuro Vá, meu filho. Passeie com
kamesãwa.
cuidado.
A pescaria é uma atividade de sustento da família e da comunidade. O homem é que deve
exercer esta atividade. Os pais insistem com seus filhos para que aprendam a pescar, pois
com a pescaria sustentarão as suas esposas. Os filhos vão assimilando este ensinamento,
pois acreditam que isto dignifica a vida da família.
22) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Nihã, tea mar•
Y¡ bai, ham¡ mar•
Irmão menor vamos
w†hek¡ merã wai torã ako bapig¡mena wai toko oko pegar peixes com puçá

4.8 Page 38

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38
doka.
doka.
debaixo da chuva.
Nope warãsari, ato sirope o Nope wadari, hõ sotoape o Para onde nós vamos, rio
buipe?
hõ dokape?
abaixo acima?
Sirope warã topere wai Hõ dokape wada topere Vamos daqui para baixo,
niwã.
wai niwã.
pois lá tem mais peixes.
Y¡s¡atisarito m¡r†?
Y¡s¡arigari to m¡r†?
Você não está com frio?
Y¡s¡atisa y¡ma, mam¡ ni Y¡s¡ariga y¡reha, mam¡ Eu não sinto frio pois eu sou
y¡a.
nia y¡ha.
jovem.
Eu e meus irmãos saíamos para pescar debaixo da chuva. Quando meus irmãos não podiam,
minhas irmãs iam comigo. Quando chovia a água ficava barrenta e nós imaginávamos que
os peixes não estivessem nos enxergando. Acontecia isso mesmo. Dependo da quantidade
da chuva, da cheia e época do ano a gente escolhia se iríamos acima do povoado ou abaixo.
O importante era adivinhar onde havia mais possibilidade de pegar mais peixe. Os nossos
pais diziam que para o jovem não teria que ter tempo ruim.
23) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Ma¥, wai w†heap¡ ¡sã. Pako wai s•aw£ ¡sã. Aniã Mamãe, nós matamos
Ãra nima.
niya.
peixes! Eles estão aqui.
Noãta mak¡? Mitia ato.
Nia te mak£? Neatiya ano. Onde estão, meu filho?
Traga aqui.
Ma doaya.
Ma doaya
Aqui estão, cozinha-os.
Y¡ porã, wai doatoha y¡ Y¡ pona wai doatoa y¡ sa. Meus filhos, os peixes estão
mahã.
cozidos.
Barã atia. D¡sasere Yara atiya. D¡sarere Venham comer. O que
aperãre ekagoti.
aperãre ekagodo tia.
sobrar vou oferecer aos
outros.
Tohota weya, ma¥. ¢ha Tero tiya pako. H¡a boakia Faça isso, mamãe. Eles
boasama na.
k¡ã.
devem sentir fome.
Quando voltávamos da pescaria eu e os meus irmãos chegávamos contentes em casa
trazendo peixes. Entregávamos para a nossa mãe. Ela cozinhava e quando estava pronta a
comida nos convidava para comer. Todo o pessoal de casa comia. Ela insistia que nós
comêssemos bem, pois o que sobrasse ela distribuiria para os moradores da aldeia. Partilhar
a comida era uma característica muito forte de minha mãe.
24) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Pak¡, wai paharã w†heap¡
y¡a.
M¡ t¡oñaka y¡ n¡moti
mas•sari?
Kote niña d¡sa m¡
m¡motiatoho.
Wimag¡ waro ni m¡a.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Pak¡, wai pa¡ s•aw£
y¡ha.
M¡ t¡geñari y¡ n¡moti
mas•gari?
Koteya na d¡sa m¡
n¡motiadaro.
Wimag£ p¡ti nia m¡hã.
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Papai, eu matei muitos
peixes.
A seu ver eu já poderia
casar?
Espera ainda, não é hora de
você casar.
Você é criança, filho.

4.9 Page 39

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39
Mam¡ wag¡ n¡motiya Mam¡ niwag¡ n¡motiya Quando ficar mais moço
mak£
mak£.
você casará, meu filho.
Añurosa pak¡.
Añuadaku pak¡.
Está bem, papai.
B¡k¡ag¡ n¡moti porãtig¡ti. B¡k¡ag¡
n¡moti Quando eu ficar adulto vou
ponatig¡da.
casar e ter filhos.
Tudo o que os nossos pais nos ensinavam e o que nós aprendíamos estava ligado ao
casamento. Por isso, quando a gente fazia bem os trabalhos crescia em nós a proximidade
do casamento. Para casar a condição é saber trabalhar, saber pescar... Por isso, quando os
pais percebem que o filho já sabe fazer os trabalhos básicos que possam sustentar a família
já buscam a mulher.
25) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak¡ ãr¡g£ dog¡ti we.
Mak£ kan¡g£ dog¡d¡ tia. Filho, eu vou preparar a
flecha.
Wai b¡erã wahã nirã.
Wai b¡era wada h•ra.
Para a gente ir flechar peixe.
Apokeoya, pak¡. P¡ag¡ Keno korohaña pak¡. Prepare logo, papai. Prepare
apoya.
P¡ag¡ kenoña.
duas flechas.
Y¡kerã b¡eg¡ti we.
Y¡kã b¡eg¡d¡ tia.
Eu também vou flechar.
Mak¡ y¡k¡s¡ mera diap¡ Mak£ y¡k¡soro mena Filho você vai com canoa
waha m¡aña m¡ã.
diap¡ wa m¡aña m¡hã. subindo pelo rio.
Waire ña bokag¡ añuro Waire iña b¡ag¡ añuro Ao enxergar o peixe fleche
b¡eapa.
b¡ewa.
bem.
Y¡a dia bui b¡e m¡ag£ti. Y¡ha dia wesa b¡e Eu vou beirando o rio pela
m¡ag£da.
terra e flechando.
Meu pai sabia manusear muito bem o arco e a flecha. Eram bons instrumentos nas mãos de
meu pai. Antes da pescaria sempre reforçava a flecha. Eu sempre pedia que preparasse
flecha também para mim. Quando nós saíamos para pescar, em alguns momentos ele ia
beirando o rio para flechar. Ele fazia assim para que o peixe não enxergasse o nosso
movimento e nossa aproximação. Como o nosso rio era de águas claras há vários metros os
peixes já percebiam e já saíam para a parte mais funda do rio. Por isso, meu pai usando a
sua sabedoria surpreendia os peixes. Caminhando pela beira do rio ele flechava os peixes.
Só que quando o peixe puxava a flecha para o meio do rio, ele ficava gritando para que eu
caísse na água para pegar o peixe, e ficava rindo de mim. Mas eu fazia com muito gosto,
sabendo que naquele dia iríamos ter comida.
26) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Makõ dara boeapa m¡
pako merã.
Aperãp¡a boetisama na.
Butu yagoma ¡m¡a ¡atiwã
na.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Makõ pade boeya m¡
pako mena.
Aperãp¡ha boerikia k¡ã.
Dadegoreha ¡m¡ã boriwa
k¡ã.
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Filha aprenda a trabalhar
com a sua mãe.
Os outros não vão lhe
ensinar.
Para preguiçosa os homens
não gostam.

4.10 Page 40

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40
A¡, pak¡ dara boegoti.
Ha¡ pak¡ pade boegoda. Sim, papai eu vou aprender
a trabalhar.
Y¡ pako ¡m¡kori n¡k¡
Y¡ pako b¡rekori kañe
A minha mãe todos os dias
pehe boem¡hamo y¡ma. pe boerukuawõ y¡reha. me ensina muitas coisas.
Meu pai e minha mãe se preocupavam bastante com a nossa educação. Meu pai insistia que
minhas irmãs aprendessem com mamãe. Elas tinham que aprender a trabalhar bem, pois
um dia elas iriam casar e sair para outras aldeias em meio a outras etnias. Neste texto minha
irmã mostra sua disposição para aprender. E afirma que a mãe todos os dias ensina muitas
coisas para vida dela.
27) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Mak¡ dero nikã dara
boeg¡sari m¡ã?
M¡ dara boe bokaro y¡r¡a
wato mahã.
Mak£ dero biri pade
boeg¡dari m¡hã?
M¡ pade boeboro netõ
wahãto sa.
Filho, quando é que você vai
aprender a trabalhar?
O tempo de você aprender já
está passando.
Y¡ m¡ pak¡ nig¡ta m¡r† Y¡ m¡ pak¡ nig¡rã m¡r† Eu estou falando porque eu
were y¡.
wedea y¡.
sou seu pai.
Aperãp¡a weretiwã na.
Aperã p¡ha wederiwa Os outros nunca falam.
k£a.
Dara boeg¡ti, pak¡. Boeya Pade boeg¡da pak¡. Eu vou aprender a trabalhar,
y¡re.
Boeya y¡re.
papai. Ensina-me.
Masĩg¡tig¡ we y¡ k†ra!
Mas•g¡d¡ tia y¡kã.
Eu também quero saber.
Dara boeya, mak¡.
Pade boeya, mak£.
Aprenda a trabalhar filho.
N¡motig¡p¡a
N¡motig¡p¡ha
quando você tiver a sua
mulher
m¡ basita dara bag¡sa m¡. m¡ basira pade yag¡ daku você que vai trabalhar para
m¡.
ter comida.
Ñamiakãta wese tãra
n¡kãg¡ wag¡ti pak¡.
¢ag¡a darag¡ nohõ niw¡
y¡a.
Ñamigarã wese
n¡kãg¡ wag¡da.
Bog¡ha padeg¡no
y¡ha.
tana
niw£
Amanhã mesmo vou
começar a roçar a roça,
papai.
Quando eu quero, eu sou
trabalhador.
Quando eu estava na aldeia eu percebia que todos os dias os pais insistiam para que os
filhos aprendessem a trabalhar. Esta insistência é para demonstrar o amor que tem pelos
filhos. Se os filhos souberem trabalhar, outros não terão motivos para falar mal deles. Por
isso, no texto acima vemos um diálogo onde é possível perceber a preocupação com o filho
que está demorando em aprender a trabalhar. O adolescente já começa a se ocupar mais
com os trabalhos. A prática dos jogos só depois de já ter trabalhado.
28) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Y¡ mañekõ w¡h¡ bati
¡apo.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Y¡ mañeko w¡ bati boego.
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
A minha sogra quer balaio
de arumã.

5 Pages 41-50

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5.1 Page 41

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41
Pehe batiri og¡ti kore.
Pe batiri tikog¡da kore.
Eu vou dar muitas peneiras
para ela.
Añuse weapa marir† Añure tiwa mar•re buihãri Faça-os bonito para que eles
buhikãri na.
k¡ã.
não gozem de nós.
Merĩg¡ ni y¡a.
Menig£ nia y¡ha.
Eu sou bom para isso.
Ña mariã warasama na.
Iña mani wahã dakia Eles vão ficar admirados.
k£ahã.
Y¡ pak¡ boenok¡ ni y¡a. Y¡ pak¡ boenorig¡ nia Eu fui ensinado pelo meu
y¡ha.
pai.
Um dos trabalhos dos homens é preparar os artesanatos, confecção de balaio de arumã. Os
homens de algumas etnias são especialistas para este trabalho. Meu pai sabia fazer muito
bem. Só não fazia mais porque os parentes da minha avó, da etnia Yeba-masa, sabiam fazer
melhor. O meu pai encomendava deles. Quando os membros da etnia Tukano
encomendavam, meu pai fazia, pois as minhas tias são casadas com os homens da etnia
Tukano. Meu pai dizia que se vai fazer tem que ser bem feito para que os outros não fiquem
zombando do trabalho mal feito.
29) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Mak¡ tea yuk¡s¡ darerã. Mak£ ham¡ y¡k¡soro Filho vamos fazer a canoa.
padeko.
Tea, pak¡ y¡kerã nikaw£ Ham¡ pak¡, y¡kã sikaw¡ Vamos papai, eu também
dareg¡ti.
padeg¡da.
vou fazer uma canoa.
Añuro boeapa, mak¡.
Añuro boewa mak£.
Aprenda bem, filho.
Tota dasea
n¡motig¡sa.
numiar† Tora dasea
n¡motig¡daku.
numiã Assim você vai casar com as
mulheres Tukana.
Toho weg¡ta
Te tig¡ra
Por isso mesmo
y¡ yuk¡s¡ darekã
y¡ y¡k¡soro paderi
quando eu estiver fazendo a
m¡ y¡re ñaoña, pak¡.
m¡ y¡re iñakoya pak¡.
canoa
você vai me orientar, papai.
Añurosa mak¡.
Añuadaku mak£.
Está bem, filho.
Y¡ m¡ pak¡ m¡re boeg¡ti. Y¡ m¡ pak¡ m¡r† Eu, seu pai, vou lhe ensinar.
boeg¡da.
Os Tuyuka são conhecidos como exímios na confecção de canoas. A briga de minha mãe
(Tukana) com o meu pai se tratava disso. Meu pai fazia canoas para os outros, mas para o
uso próprio não fazia. Quando queríamos viajar, meu pai ficava consertando uma canoa
velha e furada. Durante a viagem a canoa começava a vazar e minha mãe reclamava: vocês
não são Tuyuka? Por que estamos viajando nessa canoa velha e furada? Eu casei com o
Tuyuka para andar numa canoa nova e boa, e, onde está a canoa?
30) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Pak¡ dero nikã wese dara
n¡kag£sari?
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Pak¡ dero biri wese pade
n¡kag£dari?
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Papai, quando vai começar a
fazer a roça?

5.2 Page 42

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42
Ape samarã n¡kãg¡ti, Ape samarõ n¡kag£da Vou começar na outra
makõ.
makõ.
semana, filha.
M¡ akabihi mera warãti. M¡ bai mena wada.
Nós vamos com o seu irmão
Tohota, mak¡?
Terora mak£?
menor.
É assim, filho?
Tohota werã, pak¡.
Terora tiada pak¡.
Vamos fazer isso, papai.
Tea mahã, mak¡.
Ham¡ sa mak£.
Vamos, então filho.
Ati samarã ma mehõ Ati samarõrehã b¡ri Nesta semana vamos roçar.
tarãra.
tanada.
Ape samarã pa n¡kãra.
Ape samarõ kiti n¡kãda. Na outra semana vamos
começar a derrubar.
Nop¡ nisari to wese wekã Nop¡ nigari to wese tire Onde tem um lugar bom
añuro?
añuro?
para fazer a roça?
Marĩya nit¡ori wiakarop¡ Mar•ya nit¡ori wiarirop¡ A nossa última capoeira é
añusa.
añuku.
boa,
As filhas, também se preocupam com a vida de trabalho do pai, quando vai começar a fazer
a roça. Diante desta preocupação o pai acaba se comprometendo em fazer a roça. Fazer
roça significa escolher o lugar onde será feita a roça, conhecer o terreno, conhecer sua
localização. As mulheres não querem que faltem as roças porque a roça diz muita coisa
para a vida da mulher, para a vida da família, para a vida do homem. A roça é símbolo de
vida, funcionamento da vida e um dos eixos estruturantes da vida.
31) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Tea, y¡ porã, wese ¡harã.
Tea, pak¡.
Muhípũ asirí kura ¡harã.
Y¡ porá ati wese ni mar•
¡hãti wese.
Pahi butiari wese nikã to.
Toho werãta paharã atiap¡
mar•a.
Dero we ¡harãsari mar•?
Y¡ m¡sãre boeg¡ti y¡
porã.
M¡p¡r• pihĩri miña.
Wasiaro eha n¡kaña
b¡roya.
Ma ¡hã n¡karã. Nikãro
merã s•a yo kãra.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Ham¡ y¡ pona wese
h£ako.
Ham¡ pak¡.
Muip¥ asiri tabe h£ada.
Y¡ pona ati wese nia mar•
h£adari wese.
Paihamari wese nihã to.
Te tirara pa¡ atiaw£
marihã.
De ti h£adari mar•?
Y¡ m¡ar† boeg¡da y¡
pona.
P£meri pir• neña.
Wasiaro eha n¡kã y¡koya.
Ma h£a n¡kãko. S•karõ
mena s•a yo k¡t¡ada.
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Vamos, meus filhos,
queimar a roça.
Vamos, papai.
Queimaremos quando o sol
estiver bem quente.
Meus filhos, esta é a roça
que queimaremos.
A roça é muito grande.
Por isso que viemos muitas
pessoas.
Como é que nós
queimaremos?
Eu vou ensiná-los, meus
filhos.
Peguem lascas de turi.
Espalhem-se espaçadamente
na roça.
Agora comecemos a atear.
Juntos vamos ateando.

5.3 Page 43

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43
A queimada da roça é uma das etapas do trabalho da roça. Depois da derrubada os pais
acompanham como a roça vai secando. Quando percebem que está bem seca e as árvores já
pode pegar fogo decidem queimar. No dia marcado, os pais convidam os filhos para
queimar a roça. Quanto mais pessoas a queimada é mais rápida. Os pais dão instruções para
os seus filhos. A roça bem queimada favorecerá a boa plantação e boa colheita.
32) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Mak¡, m¡ wese weapa Mak£ m¡ wese tiwa Meu filho faça roça se quiser
n¡moti sirĩg¡.
n¡moti d¡gag¡.
casar.
M¡ daratikã
serĩbasa we y¡.
numia M¡ padeiri numiã s† Se você não trabalhar não
basaria y¡.
buscarei mulher.
A¡, pak¡. Nikãta wese Ha¡ pak¡. Mek£garã Está bem, papai. Hoje
dara n¡kag£ti.
Maũ, nikã ma wese pag¡
wa.
wese pade n¡kag£da.
Pako mek¡gãrehã wese
kitig¡ wa.
mesmo vou começar fazer a
roça.
Mamãe, hoje eu vou
derrubar a roça.
Y¡ n¡mo niakore apoyug¡ Y¡ n¡mo nigõdore Estou preparando para a
we.
kenoyug¡ tia.
futura esposa.
Añu, mak¡.
Añua mak£.
Está bem, meu filho.
As culturas indígenas da região donde eu nasci giram ao redor do trabalho da roça. Por isso
os pais insistem bastante para que os seus filhos e filhas aprendam a trabalhar na roça. A
roça continua sendo uma das fontes de sustentabilidade da vida indígena.
33) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Makõ, m¡ pakore Makõ m¡ pakore tiapuya. Filha ajude a sua mãe.
wetamuña.
Toho wego dara boegosa. Te tigo pade boegodaku. Assim, você aprenderá a
trabalhar.
A¡, tohota wegoti, pak¡. Ha¡, terora tigoda pak¡. Está bem, papai, farei isso.
Maũ dero nikã wesep¡ ta Pako de biri wesep¡ ta Mamãe, quando vai limpar a
kurego wagosari?
wãgõ wagodari?
roça?
Wago y¡re pihiya.
Wago y¡re sioya.
Quando for me chame.
Wago pihigoti, makõ.
Wago siogoda makõ.
Quando eu for, chamarei,
filha.
A mãe ensina à sua filha como ela deve trabalhar na roça. Mas a própria filha, também deve
se interessar para aprender com a mãe. A mãe que ensina para a filha todas as técnicas de
trabalho da roça: preparar a plantação, limpeza, plantio de fruteiras, seleção de maniwa
(tipo de mandioca), época certa para plantar, colheita; mandioca própria para fazer a
farinha... Ensina os segredos das plantas medicinais para fazer crescer e dar bons frutos.
34) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se

5.4 Page 44

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44
Maũ, wese wago weti?
Pako wese wago ti?
Mamãe está indo para roça?
Wagota we, y¡ porã.
Wagora tia y¡ pona.
Estou indo, meus filhos.
¢sã kerã warãti.
¤sakã wada.
Nós também vamos.
Tea, piseri omapa.
Ham¡, piseri omawa.
Vamos, carregam os aturás.
Em alguns dias, a minha mãe levava todos os filhos e filhas para a roça. Na maioria das
vezes ela não gostava de levar o grupo, pois nós brincávamos demais e às vezes alguém
acabava chorando e, isso perturbava a minha mãe e os seus trabalhos. Mas havia dias que
ela queria que nós fôssemos para brincar na roça, brincar de roçar, derrubar as árvores,
limpar a mandioca, comer frutas que lá tivesse. Mas neste dia ela não ficava muito tempo
na roça porque ela sabia que nós nos cansávamos muito cedo. Quando ela queria ficar mais
tempo ela pedia que nós voltássemos mais cedo. Quem deveria tomar conta dos mais novos
é sempre o mais velho. Nessas idas ela nós ensinava muitas coisas. Ia mostrando as plantas
medicinais que se encontravam na beira do caminho de roça.
35) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Nop¡ ehati, mamí?
Nop¡ hear• sow£?
Ao onde você foi meu irmão
maior?
Ya wesep¡ ehap¡, nihã. Ya wesep¡ heaw£ y¡ bai. Eu fui à minha roça, meu
irmão menor.
Dero weg¡ ehati?
Dero tig¡ hear•?
O que você foi fazer?
Peka w¡ag¡ ehap¡.
Peka opag¡ heaw£.
Eu fui carregar lenha.
Peka niati wesep¡re?
Peka niar• wesep¡re?
Tem lenha na roça?
Pehe niap¡, w¡ag¡sa.
Pe nihaw£, opag¡a.
Tem muita, vá carregar.
Añu, mami.
Añua sow£.
Está bem, meu irmão maior.
Carregar lenha faz parte do dia-a-dia. A lenha é necessária para muitas coisas que se vai
fazer: cozinhar, fazer beiju, cozinhar manicoera, acender de noite... Carregar lenha já está
dentro da programação do dia, geralmente pela parte da tarde que vão carregar a lenha. É
uma atividade para toda pessoa. Cada família busca para sua casa.
36) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Maũ, wesep¡ wago we Pako wesep¡ wagotia Mamãe, eu estou indo para
y¡a.
y¡ha.
roça.
Wa weti m¡a?
Wari m¡hã?
Você não vai?
Wa we, makõ.
Waria makõ.
Não vou, filha.
M¡ nikõta waya nikãma.
s•korã
waya Vá você sozinha hoje.
mek¡gãrehã.
Na medida em que as meninas vão crescendo e aprendendo a trabalhar, elas começam a
tomar a iniciativa para o trabalho. Não é necessário ficar esperando que a mãe convide.
Elas próprias começam a convidar a mãe, as irmãs, os irmãos para os trabalhos. As
meninas, geralmente amadurecem muito cedo, pois elas sabem que qualquer dia alguém
pode aparecer para levá-las para o casamento.

5.5 Page 45

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45
37) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Maũ, wesep¡ ta kurego wa Pako, wesep¡ ta wãgõ wa Mamãe eu vou limpar o
y¡a.
y¡ha.
capim da roça.
Belo ñamika dahagoti.
Siro ñamika potaheagoda. Voltarei bem tarde.
M¡sã wa weti y¡ mera? M¡ahã wari y¡ mena?
Vocês não vão comigo?
Wa m¡taña, makõ.
Wa s¡geya, makõ.
Vá adiante, filha.
Bero wagoti, y¡a.
Siro wagoda, y¡ha.
Eu irei depois.
Nihã tea y¡ mera.
Y¡ bai ham¡ y¡ mena.
Meu irmão menor vamos
comigo.
Tea mamiõ.
Ham¡ sowõ.
Vamos, irmã maior.
A moça vai assumindo os trabalhos de casa. Assim a mãe só vai acompanhando se a filha
está aprendendo e fazendo as coisas corretamente. A alegria da mãe é ver a sua filha
assumindo bem os trabalhos. E, a mesma coisa ela quer ver seu filho fazendo com relação
àquilo que é próprio do homem: pescar, caçar, fazer, fazer artesanato... A educação é a
preparação dos filhos para a construção da vida. A partir daquilo que lhes foi ensinado os
filhos e filhas vão desenvolvendo com modos próprios.
38) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Nihã, tea marĩ wesep¡.
Y¡ bai, ham¡ mar• Irmão menor vamos para
wesep¡.
roça.
Marĩ k†ra dara boerã.
Tea, mami.
Marikã pade boeko.
Ham¡, sow£.
Vamos também nós
aprender a trabalhar.
Vamos, irmão maior.
Dara masirãp¡ nirã we Pade mas•rap¡ nirã tia Hoje nós já sabemos
marĩa nikãroakã ma.
marihã mek£tigãrehã.
trabalhar.
Marĩ pak¡s¡m¡ã boe Mar•
pak¡s¡m¡a Nossos pais já nos
tohawã marir†.
boetoawã marir†.
ensinaram muita coisa.
Numa família quando são muitos filhos vão assumindo os trabalhos com os ensinamentos
que recebem dos pais. Ficam mais independentes dos pais. Eles mesmos se animam e vão
trabalhando. Até certo momento os pais orientam de forma mais direta e exigente, mas
passado aquele momento, eles permitem que os seus filhos caminhem com sua autonomia,
organizando o dia-a-dia de sua vida: se vai pescar, caçar, se vai ajudar o pai em outras
atividades...
39) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Mami, tea marĩ ne† amarã.
Nop¡ nisari to?
Ne† tap¡ nisa, mami.
N¡k¡p¡ nisa.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Sow£, ham¡ mar• ne†
amako.
Nop¡ nigari to?
Ne† tatap¡ niku sow£.
Makãn¡k£p¡ niku.
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Irmão maior vamos buscar o
buriti.
Onde terá?
Está no buritizal.
Fica na floresta.

5.6 Page 46

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46
Yoa nisari m¡ t¡oñakã?
Yoa niw¡. ¢m¡ñaro merã
warã mar• kerã.
Yoa nigari m¡ t¡geñari?
Yoa niw£. Boyero mena
wada marikã.
Segundo o seu pensamento,
é longe?
É longe. Nós andaremos
rápido.
lá.
A floresta nos oferece muitas frutas. A educação que os pais dão aos filhos ajuda a
conhecer cada tempo de cada fruta. Os animais acompanham conforme a época das frutas,
pois são também consumidores de frutas. Esta realidade é importante saber para poder
caçar. Na época do buriti várias pessoas se juntam para colher o buriti. Tem que ser várias
pessoas, pois o cacho de buriti é grande. Uma pessoa sozinha não carrega tudo. O buriti
serve para comer e tomar o seu vinho, com mingau e chibé. Geralmente os grandes
buritizais ficam bem distantes das aldeias. Há casos que precisa dormir lá e voltar no dia
seguinte. Existem também pés de buriti perto da aldeia, mas estas já têm donos.
40) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Tea pak¡, mipĩ m¡harã.
Ham¡ pak¡ mip• m¡ãko. Papai, vamos buscar o açaí.
Tea, mak¡, m¡ta m¡hãpa. Ham¡ mak£, m¡rã Vamos filho, você que vai
m¡ãwa.
subir no açaizeiro.
Ui nikati y¡a pak¡.
Kui nit¡ y¡ha pak¡.
Papai, eu tenho medo.
Tea. Y¡ m¡hãg¡ti, mak¡. Ham¡. Y¡ m¡ag£da mak£. Vamos. Eu vou subir.
M¡r† boeg¡tig¡ we.
M¡r† boeg¡d¡ tia.
Eu vou ensiná-lo.
Bero atig¡ m¡ m¡hãpa.
Siro atig¡ m¡ m¡ãwa.
Quando vir outra vez, você
que vai subir.
Añurõsa, pak¡.
Añuadaku pak¡.
Tudo bem, papai.
Em Onça-igarapé há uma região onde há muitos açaizeiros. Só que para subir no pé de
açaizeiros precisa de muita coragem e técnica, pois alguns açaizeiros são altos e finos. Eu
vi muitas vezes o meu pai subir e trazer o cacho de açaí. Eu admirava o meu pai fazer isso.
Eu mesmo não consigo fazer como ele fazia. Para tomar o vinho de açaí às vezes tem que
agüentar as ferradas de formigas. Meu pai dizia que as formigas são donas do açaí. Se
quisermos tomar açaí temos que passar por meio delas. As pessoas corajosas pensam assim.
41) TUKANO
Yepâ-masa uk¥se
Pak¡, tea ki duarã kibo
kuãha nirã.
Bero poka ¡t† duarã warã.
Te merã suti durã.
A¡, makõ, tohota werã.
Sutireta ¡p¡t¡ ¡ap¡ y¡a.
TUYUKA
¢tãpinopona wedesere
Pak¡, ham¡ ki duako kibo
k¥ada h•ra.
Siro poka ¡t† duara wada.
Te mena suti duada.
Ha¡ makõ, terora tiada.
Sutire na baiyro boaw£
PORTUGUÊS
Pekãsã uk¥se
Papai vamos arrancar
mandioca e deixá-la de
molho.
Depois faremos farinha e
vendê-la.
Com ela compraremos
roupas.
Está bem, filha, faremos
isso.
Estou precisando mesmo de

5.7 Page 47

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47
y¡ha.
roupas.
Com a plantação de mandioca se pode fazer farinha para o consumo do dia-a-dia, partilhar
com outros e até vender para comprar materiais necessários. O sistema de compra de
farinha começou com a chegada de comerciantes e missionários. Hoje os próprios
indígenas comerciantes compram a farinha. Quem tem roça vende bastante farinha.
42) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Maũ, tea marĩ ki duarã.
Pako, ham¡ mar• ki duako. Mamãe vamos arrancar
mandioca.
Tea, mak¡. Pi omaña.
Ham¡, mak£. Pi omaña. Vamos filho. Carregue o
aturá.
Pahiripi omag¡ti y¡a.
Pairipi omãg¡da y¡ha.
Eu vou carregar aturá
grande.
Tutuag¡sari m¡ mak¡?
Tutuag¡dari m¡ mak£? Você vai ter força, filho?
Tutuag¡ ni y¡a, maũ.
Tutuag¡ nia y¡ha, pako. Eu sou forte, mamãe.
Añu mak¡, ¡m¡ ni m¡a. Añua mak£, ¡m¡ nia Está bem filho, você é
m¡hã.
homem.
Depois que comecei a estudar com os missionários eu precisava adquirir o material escolar
e comprar roupas. E, ainda tinha levar dois paneiros de farinha para contribuir com a vida
de internato. Por isso eu ajudava minha mãe a fazer farinha. Ia com ela para roça para
carregar mandioca com aturá. Já aconteceu que levava aturá grande e depois não agüentava
carregar. Minha mãe fazia de tudo para ajudar nos meus estudos.
43) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Makõ, ãhugã peo boeapa. Makõ, w¡abe peo boewa. Filha aprenda a preparar o
beiju.
Marãp¡tigo wago ñarõ Man¡tigo wago ñañaro Para não passar mal quando
y¡r¡ri m¡.
netõri m¡.
for casar.
Añuri ãhugã we boepa.
Añuri w¡abe ti boewa.
Aprenda a fazer beiju bom.
We boegoti, maũ. Añuro Ti boegoda, pako. Añuro Eu vou aprender, mamãe.
¡sari ãhugã wegoti.
poari w¡abe tigoda.
Vou preparar beiju bem
gostoso.
Añu, makõ.
Añua, makõ.
Está bem, filha.
Atiro ni t¡oñakãta añuro Biro h– t¡geñarirã añuro Quando se pensa assim, que
wa darase.
wa padere.
trabalho vai bem.
Uma das atividades diárias da mulher é confecção do beiju. O beiju é feito com a goma de
mandioca. Esta goma é chamada de tapioca. Também o beiju pode ser feito com a massa de
mandioca. Existem pelo menos três tipos de beiju. Geralmente a menina começa ajudando a
mãe na preparação do beiju: peneirando, fazendo fogo, limpando o forno. Quando a menina
vai crescendo a mãe começa a pedir que ela prepare o beiju. Ter beiju significa ter roça. Daí
a importância de fazer a roça. A mulher que não leva beiju na comida comunitária não é
bem vista por outras pessoas. O beiju é símbolo da pessoa trabalhadora.

5.8 Page 48

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48
44) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak¡, n¡motig¡ añuro Mak£ n¡motig¡ añuro Filho, quando tiver mulher a
kore ehõpeoapa.
kore padeowa.
respeite bem.
Base d¡a ekaya. Ne kore Yarige d¡a ekawa. Ne Guarde come para ela. Não
baweo wetikaña.
kore yaweo tirihaña.
come toda comida.
M¡ toho wekã tutuago M¡ te tiri tutuago nigõ Se fizer isso, ela será forte.
nígõsamo.
dakio.
Baweosome, pak¡.
Yaweoriku pak¡.
Não deixarei faltar comida,
papai.
Ko mera nikãro merã Ko mena sikarõ mena Faremos a refeição juntos.
bag¡ti.
yag¡da.
Aperã kerãre base ekapa. Aperã kar† yarige ekawa. Partilhe comida com os
outros.
Toho weka masã Te tiri basoka t¡sadakia. Se fizer isso, as pessoas vão
t¡sarãsama.
gostar de você.
Añu, pak¡.
Añua, pak¡.
Muito obrigado, papai.
Añuse butiase m¡ y¡re Añuhamar† m¡ y¡re Você me ensina muitas
wer¡g¡ we.
wedeg¡ tia.
coisas boas.
Tohota nisetig¡ti.
Terora nir†tig¡da.
Eu viverei como está me
ensinando.
Um dos ensinamentos dos pais era de trabalhar para que não falte a comida. O marido deve
se cuidar para que a esposa não passe fome. Outro ensinamento é sobre a partilha da
comida entre os moradores de uma aldeia. Os moradores de uma aldeia formam uma
grande família.
45) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
B¡k¡o, peru dareapa.
B¡k¡o, peyuru padewa. Mulher prepare o caxiri.
Wese tãrag£tig¡ we.
Wese tanag£d¡ tia.
Vou preparar a roça.
A¡ b¡k¡.
Ha¡ b¡k¡.
Está bem marido.
Ape samarã daregoti.
Ape samarõ padegoda.
Na outra semana preparo.
Os maridos pedem para que as esposas preparem caxiri. Geralmente, preparam para a festa,
mas há ocasiões em que o caxiri serve para o dia de trabalho coletivo. Quando uma família
vai convidar os moradores da aldeia para ajudar no trabalho fazem o caxiri para ser
consumido no trabalho. Se sobrar, no retorno do trabalho bebem. Existem vários tipos de
caxiri. Caxiri que o pessoal mais gosta é caxiri fermentado com caldo de cana-de-açúcar,
que é mais forte. Quem convida para trabalhar não pode oferecer só o caxiri. Primeiro tem
que oferecer a comida e na volta do trabalho tem que oferecer novamente a comida.
46) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Tea marĩ peru sirĩra.
Ham¡ mar• peyuru siniko. Vamos tomar caxiri.
Niati?
Niar•?
Tem?
Niap¡. W†opari apo Niaw£. Perurige keno Tem. Já preparei o cariço.

5.9 Page 49

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49
tohap¡
toaw£.
Bero marĩ putiatehe.
Siro mar• putiadare.
Depois nós tocaremos.
Añu butiaro weapã m¡ã. Añuhamarõ tiayu m¡hã. Você fez muito bem.
Añuro weap¡. M¡ya ¡sero Añuro tiaw£. M¡ya ¡sero Preparei bem. Prepare a sua
apoya putiak¡ nig£.
kenoña putig¡da h•g¡.
boca para tocar.
O dia do caxiri é dia de alegria. Os moradores bebem o caxiri, contam histórias, piadas... E
não pode faltar o cariço que é um instrumento composto de sete a oito flautinhas. É tocado
conjuntamente. Cada integrante toca um instrumento. Tem um tocador principal que toca
parte da melodia e os outros completam a melodia. Tocando o cariço os homens saem
dançando e as mulheres escolhem o parceiro e dançam. A mulher fica no lado esquerdo do
homem, pois com a mão direita o homem segura o instrumento, segurando junto à boca. A
dança em movimento dura de cinco a dez minutos.
47) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Makõ, peru sir•ri n¡m¡r† Makõ peyuru siniri Filha, no dia do caxiri tenha
t¡o mas•apa.
b¡rekore t¡o mas•wa.
bastante cuidado.
Atokãtero kãhara ¡m¡a Atie b¡rekori makarã Os homens de hoje são
wio niwã na.
mamarã kio niwã k£a.
perigosos.
Wihawe, y¡a, pak¡.
Witi waria y¡ha pak¡.
Eu não vou sair papai.
M¡ akabihirã mera duhiya, M¡ baira mena duiya Fique em com seus irmãos
makõ.
makõ.
menores.
Tohota wegoti, pak¡.
Terora tigoda, pak¡.
Farei isso, papai.
No dia das festas os pais se preocupam com as filhas e filhos. Os rapazes não devem mexer
com as filhas dos outros (abuso sexual). As moças não devem dar confiança. Algumas
meninas ficam em casa acompanhadas de irmãos menores. As criancinhas neste sentido são
sinais de segurança. Por isso, geralmente as moças, as mães sempre estão acompanhadas de
crianças.
48) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Y¡ porã,
Y¡ pona
Meus filhos,
peru
sirĩra
amektikãpa.
warã peyuru sinirã wara kame quando forem tomar caxiri,
k†rihãwa.
não vão brigar.
Ameksome, pak¡.
Kame k†riku pak¡.
Não brigaremos, papai.
Añuro siharãti.
Añuro kamesãda.
Vamos passear direitinho.
M¡sãre añuro were y¡a, M¡ar† añuro wedea y¡, y¡ Eu estou aconselhando bem
y¡ porã.
pona.
para vocês meus filhos.
Añuro t¡o, pak¡.
Añuro t¡oa, pak¡.
Entendemos bem, papai.
No dia caxiri há sempre alguém que gosta de causar confusões e brigas. Por isso, os pais
antes das festas aconselham que evitem as brigas. Os pais sabem que as brigas provocam
um mal-estar entre os moradores. As pessoas ficam envergonhadas, ficam se escondendo.
Outras vezes cria ódio entre as pessoas. Para evitar esta triste situação é importante prevenir
para que não aconteçam as cenas de brigas. Apesar dos conselhos dos pais, ainda

5.10 Page 50

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50
acontecem a pequenas brigas.
49) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Y¡ porã numiã, m¡sar† Y¡ pona numia, m¡ar† Minhas filhas, eu avisar para
weregoti.
wedegoda.
vocês.
Aperã yere yaha wetikaña. Aperãyere ya tirihaña.
Nunca roubem as coisas dos
outros.
Yahase piharã ñarõ Yarepira ñañaro netõwã Quem rouba passa mal.
y¡r¡wã na.
k£a.
T¡oti, m¡sã y¡ porã T¡oi m¡ã y¡ pona numia. Estão entendendo, minhas
numiã?
filhas?
T¡o, maũ.
T¡oa pako.
Entendemos, mamãe.
Wiopesaro merã ñarãti.
Kio pesaro mena iñada.
Olharemos com muito
respeito.
A educação dos filhos ensina o respeito às coisas dos outros, começando de dentro de casa.
O roubo é reprovado. Quando alguém quer algo deve saber pedir. O roubo deve ser evitado,
pois se acontecer vai começar a surgir desconfiança entre as pessoas e cria atitudes de
indiferenças. Tais atitudes não ajudam para que os moradores vivam na tranqüilidade e na
harmonia.
50) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Y¡ porã numiã atere añuro Y¡ pona numiã atere Minhas filhas entendam bem
t¡oya.
añuro t¡oya.
isto.
Marãp¡tirã warã, ¡sãre Man¡tira wara ¡sãre Quando forem casar
toho wak¥ nukukãpa.
terora wak¥ruku hãwa.
lembrem-se de nós.
Wãkũrati, maũ.
Wak£ada pako.
Lembraremos, mamãe.
M¡sar† ekatise orãti.
M¡ar† ¡senire tikoada.
Nós daremos alegria para
vocês.
M¡sã marãp¡s¡m¡ar† M¡ã nam¡s¡m¡ar† añuro Respeitem bem aos seus
añuro ehõpeoapa.
padeowa.
maridos.
M¡sãre añuro were boew¡ M¡ar† añuro wede boew¡ Eu ensinei bem para vocês.
y¡.
y¡.
Okobosome, maũ.
Okoboriku pako.
Não esqueceremos, mamãe.
As mães educam as suas filhas com carinho e firmeza. Sabem também que elas não
permanecerão por muito tempo dentro da família. Onde estiverem casadas elas devem
mostrar com qualidade a educação recebida dentro de sua família. Mas as filhas têm a
obrigação de visitar aos seus pais.
51) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Wameõ, y¡, m¡ makõre Mekõ, y¡ m¡ makor† Titia, eu quero a sua filha.

6 Pages 51-60

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6.1 Page 51

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51
¡asa.
boga.
Pehe darase k¡otohap¡ Pe padere k¡otoaw£ Eu já tenho muitos
y¡a.
y¡ha.
trabalhos.
Toho weg¡ kore ¡asa.
Te tig¡ kore boga.
Por isso, eu a quero.
Añurosa, niamo y¡ makõ. Añuadaku, niawõ y¡ makõ. Está bem, minha filha está
ai.
M¡ basuko nimo koa. M¡ teño niyo koha. Ela é a sua prima. Leve-a.
Miaña.
Newaya.
Añuro kore ehõpeo weya. Añuro kore padeo tiya.
Respeite-a bem.
¢sãre ñasihag¡ ati weya. ¢sãre iña kamesag£ ati Venha sempre nos visitar.
tiya.
Para que o filho possa casar, os pais procuram a mulher de outra etnia. Se as irmãs do pai
que casaram tiverem filhas é mais fácil. Pelo direito as primas deveriam casar com o primo,
sobrinho da mãe delas. Serve como intercâmbio. As filhas voltam para a etnia de onde saiu
sua mãe. Porém, nem sempre funciona assim.
52) TUKANO
TUYUKA
PORTUGUÊS
Yepâ-masa uk¥se
¢tãpinopona wedesere
Pekãsã uk¥se
Mak¡, basese t¡oapa. M¡ Mak£, basere t¡owa. M¡ Meu filho aprenda os
ñek¡hore t¡oya.
ñek£k¡re t¡oya.
benzimentos. Escute ao seu
avô.
K£ katikãta t¡oya.
K£ katirira t¡oya.
Aprenda enquanto ele está
vivo.
Berop¡ ma, basio some Sirop¡reha basiorikuto sa. Depois ficará difícil.
mahã.
A¡, pak¡.
Ha¡, pak¡.
Está bem, papai.
Nikãta t¡o n¡kãg¡ti.
Mek£garã t¡o n¡kag£da. Começarei hoje mesmo.
Pak¡ho, y¡re basese Pak¡k¡ y¡re basere Meu avô me ensine os
wereya.
wedeya.
benzimentos.
A¡, y¡ param.
Ha¡ y¡ panama.
Está bem, meu neto.
D¡poa niãse baserore D¡poa niñaro baserore Começarei ensinando o
were n¡kãg¡ti.
wede n¡kag£da.
benzimento para dor de
cabeça.
Añurosa, pak¡ho.
Añuadaku, pak¡k¡.
Está bem, meu avô.
Os homens precisam aprender os benzimentos que são medicinas imateriais. Funciona pela
força do sopro do benzedor. Em cada família alguém terá que saber: os benzimentos da
alma, da água, da comida (peixe, carne), do nascimento, etc. Os benzimentos têm efeito
preventivo e curativo. A parte principal é a preventiva. Ela impede que as pessoas peguem
doenças. A parte curativa é mais difícil, precisa de benzedores especializados e com muita
força. Meu pai queria que eu aprendesse com o meu avô, os benzimentos, pois ele era um
grande benzedor dentro da aldeia e fora dela. Livrou muitas pessoas de fortes doenças.
Infelizmente, eu não consegui aprender com ele. Embora ele tenha ensinado muitos
benzimentos, eu não consegui memorizar, pois era muito menino e, não estava focado para
isso.

6.2 Page 52

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52
FECHANDO A CONVERSA!
Estes pequenos diálogos mostram como funciona a educação de uma pessoa. A
educação é feita de instruções, exigências, convites, pedidos, negações, provocações,
disciplinas, regras... Os mesmos assuntos se repetem cotidianamente. A oralidade é uma
metodologia de ensino-aprendizagem-vivência. Na minha convivência com os diversos
povos indígenas e não-indígenas percebi que a oralidade é a primeira metodologia de
ensino-aprendizagem-vivência. Tal metodologia não fica restrita aos primeiros anos de
educação de uma pessoa, mas se torna metodologia presente em cada momento da nossa
existência. Nós transmitimos mais conteúdos experienciais e aprendidos para os outros com
esta metodologia do que a escrita.
Os conteúdos transmitidos devem produzir resultados bons para a vida pessoal,
familiar, comunitária e social.
O leitor, principalmente indígena, poderá acrescentar outros diálogos conforme foi
e está sendo educado pelos pais. Mais ainda, como está educando os seus filhos.

6.3 Page 53

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53
FIGURA: UMA CRIANÇA DA ESCOLA TUYUKA
ARQUIVO: REZENDE, Justino, 2007.
UM DIA DE MINHA INFÂNCIA

6.4 Page 54

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54
Iniciando a conversa
No dia 26/11/2005 (Campo Grande/MS) elaborei este trabalho. Os estudos que
fazíamos sobre as pedagogias indígenas me provocaram a entrar no meu interior,
aldeia imaginária e reviver um dia de minha infância vivido com muita intensidade
com os pais, com o estilo de vida, com o estilo da casa, atitudes de uma criança
frente à vida adulta, concepções sobre a presença de pais, sentido da noite, do
tempo, do trabalho, dos jogos etc.
DE NOITE
É de noite!
Eu estou na minha rede deitado, dormindo e acordando de vez em quando. Mas
durmo com muita tranqüilidade.
Eu estou dentro de uma casa que tem cobertura de palhas. As paredes são feitas
de barro.
A minha rede está armada perto da rede do meu pai e de minha mãe. Ainda sou
criança, não dá para eu ficar muito afastado de meus pais. Principalmente, de
noite eu tenho medo da escuridão, dos bichos que dizem que têm de noite. Para
qualquer coisa que eu queira fazer, vivo chamando os meus pais.
Ao nosso lado está um fogo sempre aceso para nos aquecer e iluminar a casa.
Quem coloca a lenha no fogo é minha mãe e meu pai. Só que nessa noite o meu
pai foi para a pescaria. Ele não voltou, ainda, da pescaria. Por isso, a minha mãe
quando acorda coloca a lenha e de vez em quando o fogo se apaga. A minha mãe
pega o fósforo e começa a acender novamente.
O ambiente de nossa aldeia de noite fica muito frio, pois está localizado na beira
do rio, à distância de cem metros aproximadamente. Faz mais frio porque existem
várias cachoeiras perto da aldeia.
As correntezas, as quedas das águas produzem ventos frios. As águas das
cachoeiras provocam um efeito parecido como a de fumaça. Tudo isso ajuda no
esfriamento noturno. As cachoeiras durante a noite produzem barulhos variados.
Parece que as cachoeiras, também, falam. Meu pai sempre dizia para mim que de
vez em quando ele ouve barulho diferente da cachoeira. Dizia: a cachoeira estava
chorando, alguém da nossa aldeia vai morrer. Quando ele dizia isso eu sempre
ficava com medo, pois poderia ser eu a morrer!

6.5 Page 55

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55
A minha mãe está com uma filhinha nova, minha irmãzinha. Por isso, a minha mãe
quando desce da rede para acender o fogo, desce com muito cuidado para que a
minha irmãzinha não se acorde.
Mesmo com todos os cuidados que a minha mãe tem, de vez em quando, a minha
irmãzinha acorda, chora, grita e cala.
A minha mãe tenta acalmá-la, dizendo que é para ela dormir, porque é de noite. A
minha irmãzinha é, ainda, bebê, não distingue o que é de dia e de noite. Ela não
sabe que não deve chorar, quando dá vontade de chorar, ela chora.
Quando ela chora, a minha mãe conversa com ela. Parece que a minha irmãzinha
entende a linguagem da mamãe. É coisa de criança e de mãe. Não se sabe bem o
que passa na vida de um bebê. Uma criancinha parece ser um adulto que ainda
não sabe falar.
A minha mãe, possuidora de afeto materno profundo, sabe quando o choro da
minha irmãzinha significa fome, calor ou a dor.
Só nesta noite a minha irmãzinha já chorou porque estava com fome, pois eu vi
que a minha mãe levantou da rede e sentou no banquinho que está colocado
perto do fogo e deu de mamar à minha irmãzinha.
A minha mãe me acordou e disse para eu descer da rede para acender o fogo. Eu
desci e acendi o fogo. Depois fiquei sentado perto da minha mãe. Fiquei brincando
com o narizinho da minha irmãzinha, mas minha mãe disse para eu não pegar,
senão ela poderia chorar. Mas a minha irmãzinha parecia sorrir para mim. Eu vi
que a minha mãe estava com sono. Ela disse para ir à rede, pois ela também, já
iria deitar. Mas na rede a minha mãe continuou dando de mamar à minha
irmãzinha. Mas eu vi que a minha irmãzinha acabou dormindo com o peito da
mamãe em sua boca.
Ainda nesta noite, ela chorou outras vezes. Minha mãe achou que ela estivesse
querendo tomar banho. Novamente minha mãe acordou, levantou e me chamou.
Ela disse para eu acender uma lasca de turi e pegar mais três. As lascas de turi
que meu pai prepara para usarmos quando saímos na escuridão é de
aproximadamente um a dois metros de comprimento, três centímetros de largura e
três milímetros de grossura.
A minha mãe disse para acompanhá-la até ao porto, pois ela iria dar banho na
minha irmãzinha. Eu estava com sono, mas fui. Também não queria ficar sozinho
em casa. Se eu descobrisse que eu estava sozinho em casa eu iria chorar e
talvez, por isso, que minha mãe me chamou.
Eu acendo a lasca de turi sigo iluminando na frente de minha mãe até ao porto.
Pelo caminho do porto, minha mãe sempre vai dizendo para eu ter cuidado, pois
no caminho pode aparecer a jararaca. Eu vou seguindo na frente, mas sempre
olhando bem se não tem nenhuma jararaca.

6.6 Page 56

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56
Lá no porto a minha mãe entra no rio e dá o banho na minha irmãzinha. Melhor, as
duas tomam o banho. Ela dá banho até minha irmãzinha ficar com o corpo bem
frio. Minha irmãzinha no início chora, mas pouco a pouco vai parando de chorar.
Quando minha mãe percebe que ela está começando a tremer de frio, pára de dar
banho.
Enquanto a minha mãe dá banho eu fico na pedra com a lasca de turi acesa. Eu
fico cochilando, mas devo cuidar para que a lasca de turi não se apague, mas se
apagar eu tenho o fósforo para acender outra vez.
Minha mãe está dando banho na minha irmãzinha, mas ela está atenta comigo.
Vendo que eu estou cochilando ela diz para eu não cair da pedra.
Quando ela acaba de dar o banho, a minha mãe sai da água e prepara para voltar.
Na volta eu venho na frente de minha mãe iluminando o caminho de volta até a
casa.
Após o banho a minha irmãzinha dorme bem tranqüila e, também, a minha mãe.
Também, eu durmo.
Eu durmo e acordo, esperando ver o meu voltar da pescaria. Mas nesta noite ele
está demorando. Talvez não tenha conseguido pegar peixes. Por isso, deve estar
pescando, ainda.
Eu, também sou criança. Por isso, de noite, eu chamo a minha mãe para ela me
acompanhar lá fora porque eu quero urinar. Ela diz para eu não perturbar o sono
dela, mas acaba levantando para me acompanhar lá fora.
Eu chamo a minha mãe neste momento, pois, sou criança. Tenho medo de sair
fora de casa sozinho, na escuridão. Com a minha imaginação de criança penso
que lá fora, na escuridão, tem bichos que podem me atacar e comer. Estes
pensamentos vêm, também, porque os meus pais quando querem dar medo,
dizem que vão me jogar na escuridão da noite e o bicho vão me pegar e comer.
MADRUGADA
A noite vai passando e a madrugada vem chegando. De vez em quando, a minha
mãe acorda e olha para a rede do meu pai para ver se ele já está rede. Na maioria
das vezes quando o meu pai volta da pescaria, ele entra bem devagarzinho para
dentro de casa para não acordar a ninguém.
Numa certa altura da madrugada eu vi que meu pai chegou da pescaria. Passou
perto de mim com um feixe de peixes. Parece que minha mãe, também percebeu,
mas não perguntou nada. Depois de um tempo minha mãe acordou. Perguntou ao
papai se já está amanhecendo.
Meu pai que é conhecedor da noite, dos cantares dos pássaros noturnos, dos
cantares dos sapos noturnos, dos cantares dos grilos noturnos, dos cantares dos

6.7 Page 57

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57
bacuraus e corujas, e conhecedor do movimento das estrelas, disse que ainda
falta bastante para amanhecer.
Na aldeia os melhores informantes das horas são os galos que cantam. Os galos,
geralmente, começam cantar pelas três horas da madrugada. E, alguns mais
exagerados mais cedo, ainda. Quanto ao cantar dos galos, os meus pais sabiam,
e escolhiam o cantar de alguns galos para se orientarem. O cantar dos galos é
bem programado, por isso, as pessoas organizam as atividades pelo cantar dos
galos. Na ausência dos galos na aldeia as pessoas ficam desorientadas.
Na nossa casa, também, temos um cachorro chamado Singre-péru. Ao longo da
noite, ele fica deitado na porta da entrada principal da casa. O seu latido alerta o
perigo, pessoa estranha, outro cachorro que passa, um pescador que está saindo
ou voltando da pescaria, algum bicho que está passando, e às vezes ele, também,
se assusta com o seu próprio sonho.
Quando o meu pai voltou da pescaria ele não latiu, porque ele já o conhece, ele
corre ao encontro do meu pai, lambe os seus pés, balança o rabo e corre na frente
dele. Ele fica todo alegre.
Pelas quatro horas da manhã, quando os galos cantaram pela segunda vez, a
minha mãe acorda e vai tomar banho. Ela pega a panela para carregar a água.
Hoje ela quer que eu a acompanhe e tome banho. Eu vou com muita alegria, pois
eu sei que o dia de hoje vai ser bom porque o meu pai foi para a pescaria e matou
muitos peixes.
É madrugada, esta noite é estrelada, porém, está escura! Por isso, pego e acendo
a lasca de turi para iluminar o caminho do porto. Mas nessa hora já tem outras
mulheres tomando banho. Outros homens estão voltando da pescaria.
Na volta do banho ela carrega a panela da água na cabeça. Eu apenas peguei o
remo que o meu pai deixou na canoa. Ele pediu para que eu o trouxesse para
casa.
Chegando de volta em casa, minha mãe prepara o fogo, coloca a panela de água
no fogo para preparar o mingau. Eu fico sentado perto do fogo. Todas as vezes
que minha mãe pedir para fazer alguma coisa eu faço. Fico mexendo a panela de
mingau.
Depois que o mingau fica pronto, minha mãe começa a fazer o fogo no forno para
preparar o beiju. O nosso beiju, geralmente, mede vinte centímetros de diâmetro e
grossura de um a dois centímetros. O beiju de hoje vai ser bem maior porque para
comer com peixe precisa de muito beiju. Geralmente, um beiju é para o dia inteiro.
Só não dura muito se chegarem visitas em casa. Eu queria me esquentar do fogo
que sai da porta do forno, mas minha mãe disse para eu não ficar ali, porque se
eu me esquentasse ali, mais tarde eu poderia encontrar uma sogra brava. É uma
crença tuyuka! Atendendo ao pedido da minha mãe afastei e fiquei perto do outro
fogo.

6.8 Page 58

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58
Enquanto o fogo do forno estava acendendo, minha mãe colocou outra panela no
outro fogo. Esta vez era para cozinhar os peixes que meu pai pegou. Meu pai
pegou vários peixes e por isso, ela não cozinhou todos.
Enquanto a minha mãe faz o fogo, eu fico mexendo e cuidando da panela de
peixe. O meu pai parece dormir! Só que está me acompanhando. De vez em
quando ele diz para eu mexer o peixe da panela e colocar mais lenha no fogo.
A minha irmãzinha continua dormindo tranqüila. Parece que algumas criancinhas
dormem melhor de manhãzinha, depois de terem atrapalhado sonos de seus pais.
Minha mãe continua fazendo o beiju. Eu continuo perto de outro fogo, cuidando da
panela de peixe. Ela pede para eu colocar sal e pimenta. Eu vou fazendo o que
ela me pede. Mas depois ela que vai provar.
A minha irmãzinha começa a se mexer na rede. Meu pai também acorda e levanta
da rede. Senta-se perto do fogo para esquentar o seu corpo!
Nesse momento a minha irmãzinha começa a chorar. Minha mãe chama o papai
para cuidar do beiju que está no forno. Minha mãe pega a minha irmãzinha e
senta no chão. Começa a dar de mamar. Mesmo cuidando da minha irmãzinha,
ela fica acompanhando os trabalhos em andamento: o beiju e a panela de peixes.
Ela vai instruindo ao meu pai e a mim. De vez em quando conversa com a minha
irmãzinha, jeito carinhoso de mãe.
Quando ela acaba de dar o peito para a minha irmãzinha, ela pede que eu deite
na rede dela e coloca a minha irmãzinha no meio lado direito. Eu acabo deitando
com ela para ela pensar que eu sou a mamãe, mas a criança sente que eu não
sou a mamãe, mas como já me conhece, não chora, dorme! De vez em quando a
minha irmãzinha acaba urinando em mim. Eu fico chorando por causa disso. Eu
reclamo com mamãe. Ela diz para eu agüentar e diz: assim que eu criei você!
Meu pai diz para mim que já vamos tomar banho e ficarei limpo de novo. Quando
a minha mãe acaba de fazer o beiju e cozinhar o peixe, ela convida o meu pai e eu
para ir ao banho. Ela pega a criança e pede para que o meu pai pegue uma
panela para carregar água.
Ainda está muito escuro, mas nos cinco portos que têm, aumentam os barulhos de
pessoas tomando banho. Os homens e as mulheres quando tomam banho tem
que bater na água com as mãos, fazendo grandes barulhos, parecendo batidas de
tambor. Estas batidas se ouvem a longas distâncias.
Os homens quando voltam do banho, ao longo do caminho têm que fazer batidas
entre braços ou fazer barulho soprando com as duas mãos, produzindo o efeito da
buzina.
Ouvem-se os barulhos de panelas das mulheres que descem para o banho e
sobem.

6.9 Page 59

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59
Ouvem-se os choros de crianças nos portos. É sinal de que tem crianças que não
querem tomar banho e que as mães estão levando-as para as águas.
Em algumas casas, ouve-se gargalhadas de jovens. Estão contando coisas
engraçadas!
De noite, também, se ouve muitos choros de crianças.
O AMANHECER
O dia vai clareando cada vez mais. Agora são os mais velhos que estão descendo
para o banho. Eles podem tomar banho nessa hora.
Os mais jovens têm que tomar banho quando, ainda, é escuro, pois é horário que
a água dá muita força para as pessoas. Os idosos ensinando aos seus netos
falam que quem toma o banho depois dos velhos, envelhece rapidamente.
A essa altura da manhã minha mãe já preparou tudo. Já fomos tomar banho de
novo. Estamos de novo na beira do fogo, por causa da claridade. Meu pai e minha
mãe ficam conversando sobre os sonhos que tiveram ao longo da noite. Meu pai
conta para nós como foi a pescaria. Quantos pescadores ele encontrou no rio
naquela noite etc.
O dia vai clareando cada vez mais. Como é o costume, a minha mãe oferece um
prato de peixe para o meu pai. Ele convida a minha mãe e eu para comermos
juntos. Ao lado do prato de peixe está o balaio com o beiju dentro. A comida é
muito apimentada. Eu digo que a pimenta está muito forte e o meu pai me diz que
é assim mesmo e eu preciso me acostumar. Minha mãe enche outra vez o prato
de peixe. A minha mãe está sempre tirando espinha de peixes para que eu, ao
comer o peixe, não me engasgue. Minha mãe pede que eu coma um pedaço de
peixe e pedaço de beiju. Não devo comer somente o pedaço de peixe.
Após comer o peixe, a minha mãe coloca uma panela de água para lavarmos as
mãos. Coloca a panela de mingau para que cada um tome o que puder.
Com isso estamos todos alimentados, satisfeitos e podemos bater na barriga de
alegria.
QUINHAPIRA10
Quando o dia já fica mais claro e o sol já começa aparecer nas pontas das
árvores, o líder da aldeia, da porta de sua casa dá um grito, convidando para que
os moradores da aldeia venham comer a quinhapira.
10 Para entender o que é quinhapira leia a Coletânea nº 1: BIAR¢ YARA ATIYA – VENHAM COMER
QUINHAPIRA! Comida familiar e comunitária.

6.10 Page 60

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60
Ao ouvir este convite do líder todas as famílias se dirigem na casa dele. Este
convite é para os adultos e jovens.
O meu pai e minha mãe vão para a casa do líder, levando beiju, panela de mingau
e pratos de peixes. Cada casal leva para lá o que tiver de comida e bebida.
Colocam em comum e todos comem de todos os pratos. Primeiro comem os
homens e depois as mulheres.
As crianças não participam. Mas as crianças sempre estão por aí espiando quem
está presente e que comida que há.
Algumas mães dão para os seus filhos um pedacinho de peixe ou carne em cima
de um pedacinho de beiju. Mas recomenda-se que comam longe. Dizem assim,
para evitar que algum adulto reclame. Segundo a tradição, a criança deve comer
em casa e não em público.
Assim a criança recebe um pedacinho de comida das mãos de sua generosa mãe
e sai correndo, para comer bem distante dali.
Eu nem cheguei perto de minha mãe, pois eu já havia comido peixe em casa.
Estava de barriga cheia. Eu vi que, também, o meu pai e mãe não comiam muito.
Assim sobrou mais para os outros.
Os adultos demoram em terminar de comer, pois eles ficam conversando,
contando histórias, contando fatos engraçados e muitos ficam achando graça e
dando gargalhadas. Tanto os homens e as mulheres fazem assim. É um momento
de muita alegria.
Depois que todos comem ficam um tempinho a mais para conversar com as
pessoas. Alguns homens começam a fumar o cigarro.
Depois, pouco a pouco, vão saindo. Até que o líder dá por encerrado o momento
de comer a quinhapira. Todos voltam para suas casas.
Os meus pais também pegaram seu balaio de beiju, panela de mingau e pratos
vazios com os quais levaram o peixe. Eu, também, os acompanhei, segurando os
pratos vazios.
PREPARANNDO PARA IR PARA ROÇA
Na volta deste momento da quinhapira, chegando em casa minha mãe já começa
a preparar para ir para a roça. Ela muda de roupa, dá de mamar à minha
irmãzinha, prepara alguma comida que vai levar para a roça para eu comer. Ela
convida, também, ao papai para ir à roça, mas ele responde dizendo que naquele
dia ele não irá, pois estará indo para a pescaria.

7 Pages 61-70

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7.1 Page 61

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61
A minha mãe procura pelo cachorro Singre-péru11. Ela diz para mim: procura o seu
cachorro! Eu o chamo gritando e ele logo chega todo alegre. Outros dias ele
chega triste, mas hoje está alegre. Com certeza já comeu as sobras dos alimentos
que a minha mãe jogou lá fora de casa. Minha mãe molha os pedaços de beiju no
caldo de peixe e dá ao cachorro. Eu vi que ele está comendo com muita rapidez e
com muito gosto. Ele tem que se alimentar bem porque ele, também, irá para a
roça.
Depois minha mãe prepara o aturá (cesto de cipó). Faz alguns remendos que
precisam ser feitos no aturá. Depois pega o facão, coloca a caixinha de fósforos
no aturá, pega a rede para minha irmãzinha. Coloca tudo no aturá. Numa
panelinha coloca alguns pedaços de beiju, peixe e farinha.
O meu pai prepara para ir à pescaria. Pega os anzóis e fica amolando. Depois
prepara os vários caniços que ele vai levar. Reforça as pontas da flecha. Ele,
também, prepara pedaços de beiju, coloca algumas pimentas, embrulha um pouco
de sal, coloca farinha... No aturazinho coloca os anzóis, fósforos...
O meu pai continua preparando os seus materiais da pescaria, mas minha já está
pronta para ir para roça. Eu irei com ela.
INDO PARA A ROÇA
Minha mãe coloca o aturá na costa. Ela me chama.
O nosso cachorro está olhando para o meu pai e para a minha mãe. Parece que
ele está esperando ouvir uma decisão. O meu pai fala para ele: eu não vou te
levar comigo, vai para roça com a sua dona. Ele entende bem a decisão. E, já vai
saindo em direção ao caminho de roça.
Último lembrete da minha mãe para o meu pai: fechar bem as portas de casa para
que não entre algum cachorro para comer o beiju e outros alimentos.
No caminho da roça, eu vou seguindo na frente da minha mãe. Ela pede que eu
vá observando bem, para não pisar nas cobras que por acaso possam ter. Mas
como o nosso cachorro está na frente ele vai alertando o que ele achar pela
frente. Ele vai latindo quando encontra algo estranho no caminho. Às vezes minha
mãe briga com ele, pois fica latindo por qualquer coisa.
Há momentos que eu ando devagar e minha insiste para eu apressar os meus
passos. Só que sou criança. Os meus passos são pequenos. Os passos da minha
mãe são grandes. As nossas roças ficam distantes a um ou mais horas. Se for
acompanhado por uma criança como eu, demora mais.
11 É um dos nomes que naquela época davam ao cão. Não existe a tradução.

7.2 Page 62

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62
NA ROÇA
Depois de uma longa caminhada chegamos à roça. Eu estou cansado. Chego e
sento para descansar.
Chegando à roça, minha mãe dá de mamar para minha irmãzinha. E, pede para
que eu comece a fazer o fogo. Só que eu não sei muito bem fazer o fogo. Ela
sentada no chão junto com minha irmãzinha e vai me dando instruções como fazer
o fogo, passo por passo. Depois minha mãe fará outros fogos para ir queimando o
capim que ela vai arrancando na limpeza da roça. A fumaça, também, serve para
afugentar os mosquitos que possam perturbar a tranqüilidade da minha irmãzinha
e a minha.
Terminando de dar de mamar à minha irmãzinha, minha mãe me chama e pede
para que eu sente no chão. Ela quer que eu carregue a minha irmãzinha.
Enquanto eu a carrego, a minha mãe vai cortar dois pedaços de paus para fincar e
armar a rede para a minha irmãzinha deitar. Depois procura alguma palmeira para
fazer sombra para minha irmãzinha e para mim.
Às vezes o nosso cachorro, também, fica perto para assustar algum bicho que
possa aparecer. Muitas vezes, ele mais dorme do que vigia. E, eu aproveito para
meter o fio de capim na ponta da orelha dele. De vez em quando ele fica bravo
comigo. Fica querendo me morder.
Assim que ela termina de armar a rede, ela pega a minha irmãzinha e coloca-a na
rede. E, eu fico brincando por ali perto, mas sempre atento com a minha
irmãzinha. Tenho que balançar a rede e espantar os mosquitos e outros bichos
que aproximam dela. Assim a minha mãe vai trabalhando com mais tranqüilidade.
De vez em quando eu, também, choro, pois alguns mosquitos entram nos meus
olhos. Aí a minha mãe me chama e abre o meu olho e com um sopro ela tira o
mosquito que entrou no meu olho.
Eu, também, canso com isso e às vezes me dá fome. Quando a minha mãe
percebe que estou cansado ela pára de trabalhar e senta. Nesse momento ela dá
o alimento que ela trouxe para mim. E, depois de comer, pede para eu tomar o
chibé (farinha com água). Nesse momento, também, aproveita para dar de mamar
para minha irmãzinha.
Acabado isso ela vai trabalhar mais uma parte. Enquanto isso eu continuo
cuidando da minha irmãzinha.
Depois minha mãe começa a arrancar a mandioca. Junta a mandioca e senta para
limpar. Quando ela começa a fazer isso, dá para perceber que está quase
chegando a hora de voltar para casa. Porém, vai demorar um pouco, pois ela vai
limpar a mandioca.
Hoje, ela diz que vai limpar em casa, pois também está cansada. Mesmo falando
isso, ela começa a limpar algumas mandiocas. Ela me chama para que a ajude.

7.3 Page 63

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63
Eu não sei limpar bem, mas a minha mãe vai dizendo como é para fazer. Assim eu
vou aprendendo. Ela não quer que eu faça no mesmo ritmo dela, mas quer que eu
aprenda. Limpamos somente a metade. Ela coloca todas as mandiocas no aturá
até encher.
Feito isso minha mãe pede para que eu me sente um pouco e carregue a minha
irmãzinha enquanto minha mãe desamarra a rede, pois já estamos para começar
a caminhar para ir para casa. Nesse momento fico mais animado e mais alegre.
Eu estou cansado, suado, e com vontade de tomar banho.
O nosso cachorro que estava dormindo ou andando por algum lugar da roça
percebendo a conversa da minha mãe que estamos já voltando para casa, se
aproxima. Minha mãe briga com ele: só ficou dormindo, não caçou nada! Ele só
balança o rabo, e, com isso parece entender tudo o que a minha mãe está
falando.
VOLTANDO PARA CASA
Na volta seguimos a mesma ordem. O cachorro vai à frente, logo depois dele sou
eu e por último a minha mãe. Minha mãe carrega o aturá cheio de mandioca e
carrega a minha irmãzinha.
Agora o sol está muito quente. O chão que é de areia fica quente e queima os
nossos pés. Os pés de minha mãe já estão acostumados, mas os meus não.
Também, o cachorro sofre com o calor e vai caminhando com a língua para fora.
Chegamos à metade do caminho onde tem um igarapé. Quando eu vou
aproximando do igarapé já vou correndo direto para dentro da água. No mergulho
já vou tomando muita água. E fico de molho bastante tempo dentro da água.
Minha mãe chega depois de mim no igarapé. Chegando ao igarapé ela joga o
aturá de mandioca na água e limpa a mandioca pisando com os pés. Depois dá
banho na minha irmãzinha. Eu fico correndo pelo igarapé. E, minha mãe diz para
eu ter cuidado com os galhos e não me ferir. Mas eu sou criança, não consigo ver
onde está o perigo. Mas ao ouvir a sua fala, a obedeço.
O nosso cachorro bebe água, passando a sua língua na água, não sei como ele
consegue beber, mas parece que só molha a língua. Ele fica distante de mim com
medo que o jogue dentro da água. Enquanto estamos tomando banho, ele fica
deitado, esperando o momento de prosseguirmos a caminhada.
Depois de passar algum tempo tomando banho começamos a caminhar de novo.
Já está quase perto de casa. Também, já não é tão quente porque agora
passaremos dentro da mata virgem, por isso, há sombra.

7.4 Page 64

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64
CHEGANDO DE VOLTA EM CASA
Mas quando estamos chegando em casa, as portas de nossa casa, já estão
abertas. Parece que papai já voltou cedo.
Quando entro em casa vejo o meu pai sentado na entrada da porta principal. Ele
pergunta para mim: já está chegando, meu filho?! E, a mamãe? Eu digo para ele:
já estamos voltando. Mamãe já está chegando. Nesse momento ele levanta e vem
para outra porta para esperar a minha mãe que vem carregando um aturá cheio
de mandioca e carregando a minha irmãzinha.
Quando ela chega, ele pega o aturá e coloca-o no chão.
Meu pai sabe o que é que a minha precisa. Por isso, antes de nossa volta, ele já
havia buscado água, preparado o fogo e ter cozido peixe.
Minha mãe pergunta para ele: e a pescaria, como foi? Meu pai responde dizendo
que o dia estava bom para a pesca. O rio está secando e os peixes aparecem
mais. Por isso, na subida ao rio ele já foi flechando vários peixes. E, não precisou
ir muito longe.
O meu pai fala para a minha mãe: o peixe que sobrou da manhã eu já esquentei.
E, também cozinhei aqueles que eu pesquei agora.
Minha mãe fica alegre e eu mais, ainda. Eu estou com muita fome e já quero
comer. Minha mãe pede para que eu tenha calma. Não posso ser apressado. Meu
pai reforça o que a minha mãe diz.
Minha mãe coloca a minha irmãzinha na rede. E, ela fica remexendo, mas acaba
dormindo.
Meu pai fica conversando comigo. Ele vai perguntando como foi a ida na roça. Eu
digo para ele que foi muito bom. Ele me diz que é assim que a pessoa vai
aprendendo como funciona o trabalho.
Enquanto o meu pai conversa comigo, mamãe tira a panela de peixe que estava
em cima do girau (tipo de mesa preparada com muitas varas). Coloca a panela no
chão e depois enche o prato de peixe cozido. Convida o meu para que venha
comer. Ele que me convida. Minha mãe, também, come no mesmo prato. O beiju
sempre acompanha a comida.
E, o nosso cachorro fica olhando de longe, para ver se ganha algum pedaço. Com
certeza, algum pedaço sobrará.
Após a comida minha mãe oferece o chibé12 e todos o tomamos. O nosso almoço
está completo.
12 É farinha com água.

7.5 Page 65

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65
Depois de comer, a minha mãe retoma o trabalho de ralar mandioca. Meu pai
continua limpando aquelas mandiocas que não conseguimos limpar na roça.
Nesse momento uma jovem de outra família chega para ajudar a mamãe. Minha
mãe pede para que ela continue ralando a mandioca. E, a mamãe começa a
espremer a massa de mandioca. Como a outra jovem é forte, termina rápido e
ajuda a minha mãe.
Meu pai terminando de limpar a mandioca vai para roça, carregar lenha. Assim
minha mãe não precisa ir. Assim que terminar ela irá cuidar da minha irmãzinha.
Outra jovem continua com a minha mãe tarde toda, ajudando nos serviços.
Como a jovem no final do serviço precisará de uma retribuição, a minha mãe pede
para que ela faça um beiju. Um quarto do beiju ficará para a moça. Ela receberá,
também, algum peixe que meu pai pescou.
Como a minha mãe não precisa que eu fique com ela, ela me pede para que eu vá
brincar com os meus colegas. E, recomenda para que eu não brigue com os
colegas. Eu saio correndo e me ajunto aos meus colegas. Assim vamos
inventando as várias brincadeiras, para suar e depois tomar banho. Mas o banho
já será no final do dia. Quando está começando a escurecer.
Enquanto eu estou brincando com os meus colegas vejo que o meu pai chegou da
roça, carregando várias toras de lenha. Ele racha a lenha e fica todo suado.
Depois o meu pai e a minha mãe vão ao banho. Minha mãe carrega a minha
irmãzinha.
E, a jovem que chegou para ajudar continua fazendo os trabalhos. Ela coloca o
líquido de mandioca na panela para cozinhar. É uma bebida muito gostosa
chamada manicoera. Depois que fica bem cozida e ter saído todo veneno, ela tira
do fogo e vai esfriar no rio. Ela traz a manicoera já esfriada e entrega para a minha
mãe. A minha mãe agradece pela ajuda. E, dá para ela um quarto de beiju e
alguns peixes que o meu pai pescou. Aí a jovem vai para casa comer junto com os
seus familiares.
MAIS UM DIA QUE TERMINA
Já o dia começa a escurecer. E, os pais falam para os seus filhos que estão
brincando para irem ao banho, pois já está chegando hora de deitar. Aí nós
saímos correndo para o rio. E, voltamos rápido, pois, está escurecendo rápido.
Quando eu chego em casa a minha mãe pergunta se eu quero comer alguma
coisa antes de dormir. Eu falo para ela que vou tomar somente a manicoera.
Minha mãe mostra para mim onde está a manicoera. Eu vou até à panela e tomo
algumas cuias de manicoera. Minha mãe recomenda para que não tome muita
manicoera, pois pode dar muita vontade urinar, durante a noite.

7.6 Page 66

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66
Minha mãe já está deitada com minha irmãzinha na rede. Minha mãe está
cansada das atividades do dia. O meu pai, também, já está na rede. Mas estão
conversando, ainda.
Eu deito na rede e fico conversando com eles. Os meus pais vão contando
algumas histórias, lendas, fatos para mim.
O meu pai é aquele que fala mais. A minha mãe dorme rapidamente. Depois de
algum tempo, meu pai me convida para ir urinar lá fora para podermos dormir.
Até agora a porta principal da casa está aberta. Depois que voltarmos da nossa
saída para urinar, antes de começar a dormir, meu pai fecha a porta.
Deita-se na rede e diz: vamos dormir!
É assim que vai terminando mais um dia de minha infância!

7.7 Page 67

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67
FIGURA: Pe. JUSTINO NUMA MISSA EM CAMPO GRANDE/MS
ARQUIVO: REZENDE, Justino, 2006
AVENTURAS DE UM ÍNDIO

7.8 Page 68

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68
Iniciando a Conversa
São oitos fatos elaborados no dia 18/04/2006 (Campo Grande/MS). Estes trabalhos
fazem releituras de alguns fatos acontecidos comigo, em diferentes contextos, com
diferentes pessoas, com diferentes reações. A partir de cada aventura há discussão sobre
alguns conceitos antropológicos que circulavam no momento de meus estudos. As
narrativas não querem ser apenas simples narrativas, mas querem mostrar como os “outros”
olham o indígena. Também, como os indígenas olham outros indígenas. Por isso, as
narrativas possuem diversas intencionalidades. Algumas delas: mostrar os estereótipos,
discriminações, ignorância, preconceitos, medos, desconfianças, superioridade e
inferioridade, compreensão das identidades e diferenças, relações de poder, dominação
(relação dominador X dominado), etnocentrismo etc.
Este trabalho foi publicado com o mesmo título Aventuras de um índio pela
Revista TELLUS, ano 6, n. 11, p. 155-169, out. 2006, Campo Grande – MS.
Posteriormente o mesmo trabalho foi utilizado por Oscar Calavia Sáez, professor do
Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina com o título
Autobiografia e liderança indígena no Brasil, artigo publicado pela Revista TELLUS, ano
7, n.12, p. 11-32, out. 2007, Campo Grande – MS.
“ANTIGAMENTE OS BRANCOS É QUE IAM EVANGELIZAR OS ÍNDIOS E
AGORA, OS ÍNDIOS VÊM EVANGELIZAR OS BRANCOS!”
Em agosto de 1997, eu cheguei à cidade de São Paulo. Os meus
superiores proporcionaram-me um tempo para os estudos, Curso de Missiologia,
com duração de dois anos, na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção.
Como eu sou salesiano fiquei morando na comunidade salesiana, no bairro
da Mooca.
O diretor da comunidade aos sábados celebrava a missa para a
comunidade das irmãs (freiras) num Hospital bem conhecido da Cidade. Um dia
ele não podia celebrar missa para as irmãs. Então ele pediu que eu fosse em seu
lugar.
Como eu sei que um hóspede precisa ajudar naquilo que o dono da casa
pede, acabei me dispondo.

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69
Outro padre da comunidade ouvindo o convite do diretor e minha
disposição disse para eu ir e disse que eu iria gostar.
O diretor disse: alguém virá buscá-lo, no sábado por volta das 17:30h.
Eu não conhecia o hospital nem as irmãs. Fiquei na expectativa do que iria
acontecer. Eu estava com curiosidades, mas ao mesmo tempo, como medo. Lugar
desconhecido sempre me causa medo, pois eu não consigo imaginar quem irei
encontrar. Daquela vez não foi diferente. Ainda mais que eu tinha trabalhado meus
três anos de padre só entre os indígenas, isso me causava certa insegurança.
Chegou o dia de missa. Um funcionário do hospital foi me buscar no
Colégio onde eu morava. Eu fui com receio, mas cheio de zelo pela missão. Eu fui
pensando comigo: eu chego lá, celebro a missa e pronto!
Chegando ao Hospital entramos até encontrar a irmã responsável pela
sacristia. Ela me cumprimentou e conduziu-me para a sacristia. Acontece que para
chegar à sacristia tinha que passar por dentro da capela. Quando eu passei pela
capela eu vi muitas irmãs e alguns funcionários do hospital. Nesta passagem ouvi
alguns barulhos e comentários, dizendo: “ele é índio!”, “é índio!”. Ao ouvir estes
comentários eu perguntei para a irmã sacristã, disfarçadamente: “será que as
irmãs não vão ficar chateadas, porque outro padre não veio?” Ela me respondeu:
“Não se preocupe, padre. O pessoal vai gostar!” Mas fiquei com receio de celebrar
a missa, mas como já estava ali eu tive celebrar.
Quando eu saí da sacristia e me dirigi ao altar os comentários continuavam.
Uma das irmãs não conseguiu controlar o seu espanto, admiração... Ela falou bem
alto para outra irmã: “ele é índio, irmã!” A outra irmã afirmou: “É verdade, é índio!
Está vendo? Antigamente os brancos é que iam evangelizar os índios e agora, os
índios vêm evangelizar os brancos!” Ao ouvir isso, antes de iniciar o rito de missa,
eu me apresentei. Eu disse que eu estava chegando do Amazonas e que eu era
indígena Tuyuka. Pedi que não se escandalizassem com isso, pois eu iria celebrar
somente aquela missa. Eu estava ali por motivo da viagem do diretor. A minha
preocupação quando se espantam com a minha presença é com a possibilidade
do pessoal perder a fé em Jesus Cristo por causa de mim, isto é, se, o meu ser
índio e ser padre não ajuda na fé do povo não-índio, eu me sinto culpado.

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Por outro lado, acredito que todo terreno desconhecido causa medo,
suspeita, reação... O meu ser índio é um terreno estranho e que amedronta o não-
índio. O meu ser padre parece despertar certo respeito... Porém, depois que se
conhece surge uma nova relação entre as pessoas. A partir daí, o índio não é tão
ruim e não é tão assustador, é bom ou como dizem alguns: ‘ele é índio, mas é
bom!’. As reações são tão numerosas quantas são as pessoas.
Assim como para estas irmãs o fato de um índio ser padre mexe com a
mentalidade já estruturada sobre o índio e o padre. Difícil é conjugar índio padre.
Historicamente foi assim e muito pior! Conhecendo um pouco a história da
colonização e evangelização dos povos destas terras eu venho mantendo contato
com as diversas visões que os povos colonizadores têm com relação aos povos
indígenas. Por muito tempo, os índios eram vistos como animais irracionais e, por
isso mesmo, sem alma. Ainda estas idéias estão presentes nas representações de
povos ditos “brancos”, independente de ser um leigo, padre, irmã.
Diante de um fato como este, eu fico pensando comigo mesmo: a história
que foi ensinada para eles é esta! Esta mesma história foi ensinada aos indígenas.
O fato de eu ser indígena padre não vai modificar toda a história de séculos
passados. Eu posso contribuir para que, a partir de mim, a partir do lugar onde
atuo, a partir das pessoas com as quais eu convivo gerar uma convivência
diferente do que eles criaram em suas mentalidades e mostrar como um indígena
pode contribuir para que uma comunidade se enriqueça com os valores indígenas.
Este fato me fez refletir a respeito dos avanços na compreensão do que
sejam os povos indígenas. Em nível interno da Igreja Católica, por exemplo, no
momento em que o índio era visto como ser sem alma (não-gente) e admitir ao
sacerdócio a um indígena há uma grande distância, um avanço considerável.
As confrontações ideológicas político-religiosas vão continuar existindo
enquanto existirem os povos indígenas e não-indígenas. Acredito que o trabalho
de desestabilizar essas ideologias é um trabalho que deve ser assumido pelos
próprios indígenas pelas formas diferentes de interpretar e criar suas histórias e
histórias de outros povos.

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As visões estereotipadas dos indígenas estarão presentes na sociedade e
também, entre os povos indígenas sobre eles próprios. A desconstrução destes
estereótipos é um trabalho diário. Se antes, o indígena só poderia ser
evangelizado, hoje ele pode ser evangelizador. O não-índio e o índio podem ser
evangelizados e serem evangelizadores. O trabalho de evangelizar não é
específico de um povo não-indígena.
“EU NÃO CONFIO NOS ÍNDIOS!”
Em 1999 eu estava em São Paulo. Neste ano aconteceu o Congresso
Missionário Latino Americano na cidade do Paraná, na Argentina. E, a pedido dos
meus superiores de Manaus eu fui participar deste Congresso.
Na data marcada para embarcar para a Argentina, eu estava no aeroporto
internacional de Guarulhos. Enquanto eu andava na sala de espera, chegou outro
colega padre que cursava o mesmo curso comigo. Este padre é negro. Era muito
amigo meu. Ele também estava indo para o Congresso. Assim que ele me viu, ele
me perguntou: “Justino, você também vai ao Congresso?” Eu disse: “estou
viajando, sim!”. Ele disse: “Que bom!” E, logo pediu licença e saiu dizendo que
estava acompanhando o seu Bispo.
Quando ele disse isso eu brinquei com ele: “você anda com esse pessoal?”
Mas ele achou graça e foi embora.
Eu continuei andando por lá e vi que muitos padres, bispos, freiras e leigos
chegavam. Era fácil de conhecer quem eram padres, bispos e freiras. Nestes
momentos, todos eles se enfeitam com os seus adornos. Uns por convicção e
outros para serem/terem destaques e privilégios. Os leigos que iam ao Congresso,
também, andavam em grupos vestindo blusas com o símbolo do Congresso, com
os distintivos brasileiros. Neste momento fazem de tudo para serem diferentes. E,
muitos deles perguntavam: “você, também está indo? Onde está o seu distintivo?”
Eu ficava na minha. Ao ouvir suas preocupações e provocações, eu só fazia sorrir.

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Eu ficava andando sozinho. Como é o meu jeito. Mas ficava olhando todas
aquelas manifestações eclesiais. Como eu estava imbuído de temas de história da
evangelização que eram oferecidas no curso de Missiologia, eu ficava pensando
mal deles: vocês prejudicaram os povos indígenas, destruíram suas culturas, e
agora ficam fazendo essas festas... Estes tipos de pensamentos andavam comigo.
Enquanto eu olhava com o meu olhar de índio todo aquele movimento, o
meu colega padre (negro) vinha voltando e veio em minha direção. Ele me disse:
“Justino, vamos comigo que eu quero apresentar o meu bispo!” Eu, geralmente
não gosto de ficar muito perto deste pessoal, pois eu sei que alguns deles são
muito orgulhosos. Porém, aceitei o convite do meu colega, fui com ele. Chegamos
perto do bispo. O padre disse: “Dom [...], este é padre Justino. Ele é do
Amazonas. Ele é índio!” Quando ele falou isso, o bispo olhou para mim e disse:
“Ele é padre? Eu não confio nos índios!” Ao ouvir isso, fiquei sem jeito. Não sabia
se o cumprimentava ou fazia alguma coisa diferente. Esta atitude marcou-me
profundamente na minha vida. Aumentaram mais, ainda, motivos para não ficar
perto deles.
Diversos pensamentos vinham na minha cabeça. Vontade de desistir da
viagem. Não acreditar nas atitudes dos bispos. Não acreditar em suas
pregações... Tais atitudes me afastam cada vez mais da pessoa do bispo e suas
celebrações. Mesmo aqueles bispos que são considerados muito bons, para mim
não são bons. Penso que são bons para com aqueles que eles gostam.
Fato como este me deixou muita desconfiança. A Igreja que prega,
respeito, inclusão, reconhecimento de diversos povos, prega que somos todos
irmãos... E, os seus representantes assumem tais atitudes.
Embora pensasse em tudo isso, pensava em mim, todo o processo
histórico dos povos indígenas, a evangelização que aconteceu e a minha
presença neste processo de evangelização. Pensava comigo: eu posso contribuir
com alguma coisa para que algo mude.
Ao longo dos anos eu fui pensando que o bispo antes de ser padre/bispo é
um ser humano. Aquele bispo que me falou daquela forma era um homem

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“branco”. Ele carrega consigo todas as visões sobre os povos indígenas. A sua
família, a sua formação construiu nele aquela forma de ver o índio.
O fato de ele ser bispo não lhe modificou a visão estereotipada do índio.
Embora ele pregue, respeito pelos “irmãos índios”, não lhe dá condição de estar
na frente de um índio, um ser diferente. A expressão que ele usou foi coerente
com aquilo que pensa sobre o índio. Ele não estava errado ao dizer que não
acreditava no índio.
Naquele momento, eu não era visto como padre, irmão no sacerdócio, mas
fui visto como índio. Da mesma forma como eu disse dele, eu, antes de ser padre,
eu sou índio. As pessoas sempre me verão como índio e em alguns momentos
como padre. O meu “ser índio” traz consigo muitos estereótipos criados e
recriados.
Hoje eu sei que todas estas visões estereotipadas são construções
históricas, de relações de poder... A história da Igreja é construção histórica,
relações de poder, de domínio... Ela, também construiu e reforçou a visão histórica
da figura do índio: preguiçoso, irresponsável, não confiável... Quando um índio se
torna padre leva consigo todos estes pré-conceitos para dentro da instituição. A
instituição eclesial como só era formada por “brancos” quando aparece um índio
padre, fica assustada, se desestabiliza, desconfia...
O fato dos índios se tornarem padres, aqui no Brasil é um acontecimento
muito recente. Os primeiros padres indígenas estão buscando se situar como
podem. Aprendendo a dialogar, negociar, criando novas atitudes... O olhar de
desconfiança de padres “brancos”, principalmente, dos mais velhos é muito
presente. Às vezes, dá sensação que nós índios estamos invadindo a propriedade
privada, o espaço que era só deles, ‘brancos’.
Esta sensação se confirma se olharmos para a história indígena. Este tipo
de sacerdócio da igreja não existe nas culturas indígenas. Está existindo agora
com a evangelização. Com certeza deve criar ciúmes para os herdeiros históricos
deste sacerdócio.
Imaginemos que um “branco” queira tornar um pajé, xamã, mestre de
danças, nós não veríamos com os bons olhos. Mesmo que ele aprendesse tudo e

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fizesse tudo como é para fazer, ainda, assim funcionaria certa rejeição pelo fato de
ele não ser membro do grupo herdeiro de tais práticas!
“MAMÃE, ELE É PADRE? POR QUE FALA EM TUKANO?”
O nome Iauareté é o nome de uma localidade, também o nome de um
Distrito do Município de São Gabriel da Cachoeira – AM. Nesta localidade vivem
vários povos indígenas: Tariano, Wanano, Desano, Piratapuia, Tuyuka, Arapaso,
Hupda, Tukano e outros. Também, moram alguns não-indígenas, militares,
agentes de saúde, correio... Atualmente habitam aproximadamente cinco mil
habitantes, organizados em dez vilas (comunidades).
Nos meus primeiros anos de padre eu trabalhei naquela missão salesiana
(1994-1996).
Eu sou indígena Tuyuka. Como a língua mais falada em Iauaretê é Tukano
eu a usava direto. Eu coloquei na minha cabeça que para fazer o povo
compreender a mensagem eu tinha que falar em tukano. Assim eu tenho feito nas
conversas com os indígenas que vivem naquele distrito.
Também, na missa eu uso a língua tukano. O fato de eu usar esta língua
facilita a compreensão da mensagem transmitida. Os mais idosos gostam muito.
Também muitos jovens gostam. Há grupos que não gostam muito.
Aqueles que não gostam que fale em tukano nas missas acham que o bom
padre tem fazer a pregação na língua portuguesa. A história missionária levou a
criar esta imagem/mentalidade. Maioria dos missionários como não aprenderam
língua tukano falavam somente a língua portuguesa. Talvez, por isso, muitos
indígenas entenderam que o português fazia parte do ritual da missa. Por muito
tempo foi assim. E, continua assim até hoje.
Há poucos anos atrás começaram a aparecer os índios padres, desta
região, a partir de 1992. Eu sou um deles. Nós começamos a falar a língua tukano
nas missas.
Olhando para as reações do povo surgem alguns questionamentos: será
que a língua tukano usada nas missas diminui a fé do povo indígena? Será que a

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língua portuguesa ajuda mais a fé do povo indígena? Muitas vezes dá impressão
que sim. Uma autêntica pregação tem que ser feita em português. São realidades
que estão presentes no meio do povo indígena.
É nesse contexto que surge esta dúvida existencial de uma criança. Penso
que esta dúvida e questionamento desta criança são reflexos daquilo que muitas
outras crianças pensam. Não somente as crianças, mas jovens e os adultos.
A mãe da criança contava para mim sobre o diálogo que seu filhinho de
quatro anos fez com ela durante a missa que eu estava presidindo no dia de
domingo.
A mãe da criança disse que na hora que eu comecei a missa, a criança
ficou observando atentamente e por muito tempo. A mãe disse mais: a criança
olhava para mim (padre), olhava para as pessoas e olhava para a mãe. Esta
atitude era como se ela dissesse: será que eles estão vendo o que eu estou
vendo? Ou eles não estão vendo?
A mãe da criança disse que na hora em que todos se sentaram para ouvir a
minha homilia, a criança continuou olhando para mim (padre) e depois perguntou
para a mãe: mamãe, ele é padre? A mãe respondeu: Sim, meu filho. Ele é padre!
A criança perguntou para a mãe: Por que ele está falando em tukano? A mãe
respondeu: Porque ele é nosso parente. Por isso, ele fala em tukano!
A presença missionária foi criando no imaginário do povo um estilo de ser
padre. Quando surge índio padre, parente deles, falando a mesma língua que eles
falam desestrutura o imaginário construído há várias décadas. A língua tukano
falada nas missas diminui aquele mistério que existia. Fazia parte do mistério da
missa, não entender tudo, só o padre entendia tudo. A língua tukano falada na
missa acaba revelando o que estava escondido.
Penso que para os povos indígenas que estão acostumados com rituais,
danças... que usam línguas muito antigas e, por isso, incompreensíveis, uma
missa com linguagens incompreensíveis não há grandes diferenças. O importante
é que os agentes dos rituais saibam falar aquelas línguas, pouco se importam se
os restantes dos participantes estão entendendo ou não. São ritos e suas
linguagens não precisam ser entendidas, mas repetidas.

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Para muitas pessoas o espaço para falar a língua tukano é fora da igreja,
fora da celebração... Digamos que não é língua ‘religiosa’. A língua para falar com
Deus é língua portuguesa. Deus entende e atende na língua portuguesa. Deus
não atende pela língua indígena. Dentro deste contexto que a Igreja, hoje, está
procurando trabalhar a questão da inculturação do evangelho: falar de Deus na
sua própria língua, louvar a Deus na sua própria língua e usar os símbolos
indígenas nas celebrações litúrgicas etc. Mas isso não avança, pois a outra forma
de celebrar influenciou demais na vida dos indígenas da região.
A resistência ao surgimento de outro estilo de evangelizar só pode ser
compreendida a partir da compreensão da construção histórica deste povo. Por
um longo tempo os povos indígenas foram ensinados assim.
“NÓS ESTAMOS SEMPRE COMBATENDO OS MISSIONÁRIOS E VOCÊS SE
TORNAM PADRES?”
No ano de 2002 eu estava vivendo em Manaus. Naquele ano a Fundação
Estadual de Política Indigenista (FEPI – AM) organizou um evento chamado I
Conferência dos Pajés do Amazonas. Como no grupo da organização havia
alguns colegas, convidaram-me para participar do evento e eu aceitei.
Realmente o nome da Conferência chamava-me muita atenção. No tempo
de minha infância eu havia conhecido e convivido com os pajés, avôs meus. Nesta
convivência eu vi e ouvi muitas coisas de pajé e sobre o pajé. Pensei comigo: já
que os meus avôs não existem mais, eu não tenho possibilidade de conhecer
depois de adulto, eu vou conhecer os pajés e conversar com alguns deles.
Eu fui participar, mas fui com medo. Os meus avôs haviam me ensinado
que quando têm muitos pajés, principalmente, quando são de diferentes etnias,
teria que ter medo ou pelo menos estar protegido das forças negativas que
possam sair deles. Diziam mais, o pior que sempre sobra para quem é mais fraco.
O mais fraco neste caso é aquele que não é pajé.
Como até hoje eu uso o benzimento de meus parentes para a proteção da
minha vida, eu usei e fui.

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No dia da abertura fiz questão de chegar atrasado por opção, pois eu
calculei que alguns sábios no início já deveriam ter feito o benzimento para
apaziguar os males que daí pudesse sair.
Quando eu cheguei já estavam presentes indígenas de várias etnias. Vi
alguns indígenas conversando no meio de seus grupos. No meio encontrei um
pajé Tuyuka, da minha etnia. Entre os pajés reconhecidos, havia, também, pajés
de ‘nome’, oportunistas.
Estes últimos andam pelas cidades enganando a boa fé do povo “branco”.
Como eu já os conheço, quando me viram ficaram se disfarçando. Mas como
andavam cheios de enfeites as atenções das câmeras voltavam-se mais para eles
do que para aqueles que eram realmente pajés.
Além de vários indígenas, homens e mulheres, havia muitos representantes
de instituições governamentais, das ONGs e representantes de organizações
indígenas. Eles ocupavam mais espaços e apareciam mais que os próprios pajés.
Não duvido muito que eles que tenham aproveitado do nome da Conferência para
aparecerem e propagarem as suas idéias. Quem sabe se eles se consideram
pajés?
Foi no meio deste movimento todo que eu encontrei alguns conhecidos
indígenas. Num certo momento um deles me chamou e disse: “Padre, eu vou
apresentar uma pessoa para você. Ela é mulher. É indígena e é advogada! Ela é
bonita e não vai ficar doido por ela!” Ele falava assim, pois sempre foi bagunceiro.
Eu fui com ele e chegamos perto de uma moça elegante e alta, ele disse:
“[...], eu vou te apresentar um índio Tuyuka, ele é nosso parente. Ele é padre!” Ao
ouvir isso ela ficou enfurecida e esqueceu de me cumprimentar e eu, também
fiquei parado sem saber o que fazer. Ela disse assim: “Nós estamos sempre
combatendo os missionários e vocês se tornam padres? Não sabem que eles que
destruíram as nossas culturas?”
Eu, realmente fiquei sem saber o que dizer e fiquei achando graça. Mas
logo depois, eu também já fiquei sério e bravo. Eu respondi para ela: “Ainda, bem
que eu sou padre. Se eu não fosse padre você não teria com quem brigar!”

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Ouvindo isto ela ficou sem saber o que me dizer. Somente depois, ela me
cumprimentou.
Eu não fiquei com raiva dela, pois ela como indígena militante dentro do
Movimento Indígena possui a sua visão sobre a história dos missionários no Brasil
e como eles trataram os povos indígenas. Eu não quis discutir com ela sobre isso.
Mas o que eu pensei comigo foi o fato de não me conhecer nada e me
considerar como inimigo dos povos indígenas. Também tenho engajamento no
Movimento Indígena de forma semelhante do dela. Talvez mais do que ela. Eu
também sou índio e sou padre.
Mas ao longo do Congresso ficamos nos conhecendo melhor. Com certeza
as nossas visões já são diferentes do que daquele primeiro momento.
O que fica claro por este fato é o lugar de onde você está falando para a
outra pessoa. Naquele momento ela, indígena, não me viu como índio, mas viu
como padre, membro de uma instituição que ao longo de cinco séculos foi
estabelecendo diversos tipos de relações com os povos indígenas. Eu conheço as
mesmas histórias que ela estudou. Também fico com raiva quando estudo tais
situações.
A desconstrução desta história é a nova maneira de ver esta história e a
pessoa do índio. O fato de eu ser índio padre e estar engajado no Movimento
Indígena para ela não contava. Ela mostrou a visão estereotipada historicamente
construída na mentalidade indígena: todo padre é contra os índios, é destruidor
das culturas... Se eu fosse olhá-la somente como advogada, não a veria como
defensora dos povos indígenas, pois muitos advogados advogam em favor dos
“brancos” e contra os povos indígenas.
A construção de novas visões com relação a muitas realidades que eram
dos “brancos”, e, assumidas pelos índios, hoje, passará por um grande
repensamento, ressignificação...
“VOCÊ NÃO PODE FAZER O POVO DAR RISADAS NA MISSA”

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Eu sou índio Tuyuka. Os Tuyuka, geralmente são muito brincalhões. Se
você chegar numa aldeia indígena e se estiver reunido em grupo, você ouve de
longe as gargalhadas. O Tuyuka é um povo muito alegre. Gostam de brincar com
as pessoas. Gostam de colocar apelidos para as pessoas. Qualquer coisa, a sua
fala, o seu jeito, a sua boca, o seu nariz..., torna-se motivo de brincadeiras.
Eu me tornei padre em 1994. Só que estas características culturais tuyuka
continuam na minha pessoa. O sacerdócio que eu recebi não lavou a minha
cultura presente dentro de mim. A cultura cristã foi acrescentada na cultura tuyuka,
a cultura sacerdotal foi acrescentada na cultura tuyuka. Assim sendo eu acabo
sendo muitas culturas, ao mesmo tempo.
Quando celebro missas com os povos indígenas, principalmente, falando
na língua tukano eu conto muitas situações, fatos, histórias interessantes que
ajudam o povo a compreender a mensagem que está sendo transmitida. Como as
pessoas estão entendo bem entram dentro das histórias, e, alguns momentos dão
risadas e muitas risadas.
Dentro da própria homilia fazendo a aplicação da Palavra de Deus na vida
indígena eu conto vários fatos da vida indígena que levam o povo levar a palavra
dentro das vidas indígenas. E, dão risadas, pois estão entendendo o que está
sendo dito. Segundo a filosofia indígena (Tuyuka) se estão dando risadas ou
conversando na hora que eu estou falando, é sinal que estão entendendo o que
eu estou dizendo. O silêncio nem sempre é sinal da compreensão.
Na missão salesiana de Iauaretê, onde eu trabalhei nos primeiros anos de
sacerdócio quando eu presidia a missa sempre havia outro padre concelebrando
comigo. Eu percebia que quando o povo dava risadas ele olhava para mim, olhava
para o povo e olhava para os coroinhas. E todos eles estavam dando risadas. Ele
não entendia o que estava sendo falado porque não aprendeu a língua indígena.
Talvez por isso, ficava desconfiado de tudo isso. Pode ser que algumas vezes ele
achava que estivéssemos falando dele. Mas, às vezes eu falava dele, mas o dizia
o nome.
O índio padre tem seu estilo próprio de presidir as missas. Mesmo que as
normas litúrgicas sejam rígidas sempre se criam brechas para sinais culturais.

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Acredito que assim enriquece a liturgia celebrada com os indígenas. Também, é
um desafio para o padre não-índio aprender a língua local, para que possa
entender pelo menos o que se está falando. O certo seria aprender a falar, mas
muitos acham que não precisam. Cada um pensa da forma que quer.
Algumas vezes eu via que depois da missa, o padre perguntava para os
coroinhas sobre aquilo que eu estava falando e porque o povo dava risadas. Na
maioria das vezes os coroinhas indígenas só achavam graça e não explicavam.
Outras vezes explicavam para ele o motivo. O padre parecia não acreditar muito.
Quando não entende uma língua tudo fica complicado.
Até que um dia ele me chamou e disse: “Padre Justino, as suas missas são
bem animadas. O povo gosta muito. O povo entende bem o que você fala”. O que
eu quero dizer para você é: “Você não pode fazer o povo dar risadas na missa! A
missa não é para isso!”
Eu ouvi com muita atenção a observação dele, mas não consegui seguir o
seu conselho. O sacerdócio e as celebrações precisam ser enriquecidos pelos
valores culturais.
Nos meus primeiros três anos de sacerdócio fui levado muito na
empolgação. Muitas questões que foram surgindo ao longo da prática ficam sem
respostas. Eu sabia que a partir de um índio padre a prática da Igreja teria que
assumir um novo rosto. Diante desta empolgação estavam padres de longos anos
e os povos de longos anos.
Por isso, que o Curso de Missiologia, com atenção especial para a
evangelização inculturada (inculturação) foi uma ajuda para compreender que a
evangelização entre as culturas indígenas, precisa partir das culturas. Precisa
passar pela descolonização das práticas evangelizadoras.
Eu vejo que também nas celebrações de missas que já realizei nas cidades
o povo gosta e dão risadas. Eu penso que estas risadas, também fazem bem para
algumas pessoas.
A celebração é momento de relações humanas, não de anti-humanismo. O
sorriso, a risada ajuda o povo a se sentir bem. Fala-se que Deus é Deus da vida,
porque ele é contra a risada? Deus é Deus da alegria! A Igreja precisa mostrar o

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seu rosto alegre. Um sorriso bem dado, uma risada dentro de uma celebração
evangeliza mais do que muitos sermões sérios.
Seja como for, a cultura da Igreja, a cultura litúrgica precisa encontrar-se
com a cultura local (indígena).
“PADRE JUSTINO, VOCÊ ESTÁ NA PROFISSÃO ERRADA!”
Nos anos de 2001-2003 eu estava trabalhando numa paróquia na cidade de
Manaus. Como uma paróquia era grande e nos bairros populares funcionava
grande número de pastorais, movimentos...
Ao longo destes anos eu priorizei para o trabalho com a catequese. Talvez
por causa disso, algumas paróquias de Manaus convidavam-me para assessorar
em suas assembléias de catequese.
No ano de 2003, como aquele que deveria assessorar não podia estar a
coordenação arquidiocesana correu em busca de outros padres e como não
encontraram nenhum padre disponível, recorreram a mim. Sempre sobrava para
mim, quando os melhores não queriam assumir. Diante disso, eu chegava até
dizer para mim e para as pessoas mais próximas: “outra vez, eu não irei!” Mas
sempre acabava aceitando. Eu não sabia dizer não. Assim mais uma vez eu
aceitei em assessorar a assembléia da catequese arquidiocesana. Estavam
presentes representantes de muitas paróquias e áreas missionárias de Manaus.
Pediram para eu trabalhar sobre a Catequese na Cidade e Deus ecológico. Eu me
esforcei para preparar.
No dia da assembléia escolheram num lugar afastado da cidade e no meio
de uma floresta. Eu gostei. Índio que não gostasse do mato não seria bom índio!
Só o ambiente já era um grande recurso metodológico, pedagógico, catequético,
ecológico. Só bastava colocar Deus no meio de tudo isso, pois o índio já estava lá
(eu).
Estavam presentes aproximadamente trezentas pessoas. Para conseguir
fazer com que eles ficassem ligados à exposição eu misturava os conteúdos dos
temas propostos, histórias indígenas e fatos da vida das paróquias, principalmente

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82
na catequese. Os participantes ficavam ligados. Achavam risadas, e achavam
graças em muitos momentos. Assim ficava menos cansativo. Eles gostaram muito.
Batiam palmas!
Chegamos ao final da primeira parte e fomos para o intervalo. Durante este
tempo a assessora arquidiocesana me chamou e disse: “Padre Justino, você está
na profissão errada, você era para ser palhaço! Fala com mais seriedade para os
catequistas, pois nós não viemos aqui para brincar!”. Eu aceitei a ordem da
assessora. Voltando aos trabalhos eu falei para os catequistas que não iria mais
adotar a metodologia da primeira parte, a pedido da assessora. Fui falando sério
com eles. Depois de dez minutos um catequista levantou a mão e pediu a palavra.
Eu dei a vez para ele. Ele disse: “Padre Justino dá para o sr. usar a metodologia
da primeira parte?” Quando ele disse isso todos os catequistas gritaram: “é isso
mesmo, é isso mesmo!” Tive que desobedecer a assessora!
Mas no mesmo momento a assessora arquidiocesana saiu. Eu não sei o
que ela achou sobre isso, mas eu sei que não ficou.
“VOCÊ PODE SER MUITO BOM NA SUA LÍNGUA, MAS EM INGLÊS VOCÊ É
PÉSSIMO!”
Em 1980 eu chegava a Manaus. Antes de chegar a Manaus todo tempo eu
estudei na missão salesiana de Pari-Cachoeira, na região do alto Rio Negro,
Município de São Gabriel da Cachoeira - AM.
Sair daquele lugar e ir para a cidade de Manaus para mim aconteceu em
meio às grandes angústias. Eu estava saindo pela primeira vez de junto de meus
pais e da minha região. Estava indo para um lugar desconhecido, sem saber quem
eu iria encontrar naquele novo lugar.
Viajar de avião já foi o primeiro choque. Chegando a Manaus encontrei
outros jovens que vinham de outros lugares, e, entre eles alguns indígenas. Os
meus colegas indígenas me animaram um pouco nos primeiros dias. Mas logo
acostumei a conviver com os outros. Eu sabia falar muito pouco o português. Nos

9.3 Page 83

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83
primeiros dias de aula, principalmente quando tinha que fazer alguma exposição
de trabalho o pouquinho de português que eu sabia, desaparecia.
Os seminaristas não-índios bagunçavam comigo. Em alguns momentos
dava vontade de chorar e ir embora para casa. Como é que eu podia ir embora se
não conseguia nem sair para as ruas da cidade? O jeito era ficar e aprender a
nova língua.
Neste ano eu estava começando o 2° Grau como se diz ia naqueles anos,
hoje, ensino médio. Comecei a ter muitas matérias novas que eu nunca imaginava
que existia: biologia, física, química, latim, inglês, italiano... Eu ficava só olhando e
não sabia como reagir. Eu estava perdido.
Chegou o dia que eu não queria que chegasse: dia de começar a aula de
inglês. Eu me lembro muito bem como aconteceu. O professor era um padre
norte-americano. Falava muito mal o português, mas era bom em inglês. Era a sua
língua!
Depois de apresentar-se e fazer a chamada de alunos, começou a
perguntar quantos alunos já haviam tido aula de inglês no 1o Grau. Muitos alunos
levantaram. Somente os alunos indígenas não levantaram as mãos. Eu não
levantei, nunca tinha ouvido falar que existia inglês numa sala de aula. Depois o
professor propôs um trabalho individual na sala de aula. A maioria aceitou e assim
foi feito. Ele disse: “peguem uma folha de papel e escrevam alguma história em
inglês”.
A maioria dos alunos começou a escrever. Também, os índios que estavam
lá estavam escrevendo. Eu não sei o que escreveram, mas escreviam. Eu apenas
observava os alunos escrevendo, olhava para o professor, olhava para as
paredes, pensava na minha aldeia, na minha família. Eu, simplesmente fiquei
parado e olhando.
Depois de um tempo eu pensei comigo: “eu vou pegar zero, pois eu não sei
escrever em inglês!” Neste momento caiu uma idéia: escrever a história de cutia
(animal) em língua tukano. Eu pensava comigo: eu não sei escrever em inglês,
vou escrever na língua que eu falo e quero ver se ele vai entender. Assim eu fiz e
entreguei.

9.4 Page 84

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84
Na aula seguinte, o professor chamava cada aluno e dizia a nota do
trabalho. Muitos alunos foram elogiados. Eu ficava olhando para ver o que iria
acontecer quando chegasse a minha vez. Depois que havia chamado todos os
outros alunos, o professor parou e ficou olhando para os alunos e perguntou:
“quem é o Justino aqui?” Eu estava sentado bem atrás. Eu levantei a mão e fui
receber o trabalho. Ele me disse assim: “você pode ser muito bom na sua língua,
mas em inglês você é péssimo! Como eu não entendi nada a sua língua, eu te dei
nota sete (7)!”
Desta vez eu tive sorte. Esta cena me faz entender a dificuldade que temos
em alguns espaços quando não entendemos ou falamos uma língua. As nossas
seguranças lingüísticas, culturais se tornam frágeis.
“EU SOU RUIM PARA FLECHAR?”
Na época em que eu era criança (na década de 1960), na aldeia Onça-
Igarapé havia muitos meninos de minha idade. Como meninos Tuyuka a nossa
brincadeira baseava-se naquelas brincadeiras que mais tarde transformariam em
instrumentos de trabalho: pescaria, pesca...
Nós brincávamos de pescar com cipós. A brincadeira funcionava assim: um
ou mais meninos pegavam numa ponta e ficavam fora d’água. Outro grupo ficava
numa outra ponta, mas dentro do rio. Quem ficava fora d’água puxava até à beira
os que estavam dentro d’água. Quem ficava fora d’água representava os
pescadores e quem estava na água representavam os peixes. Mas ninguém
cozinha!
Outra brincadeira era feita com arco e flecha. As nossas vítimas eram os
sapinhos que ficam no fundo do rio e outros bichos que a gente encontrasse.
Porém, a vítima preferida era o calango.
A nossa brincadeira era sempre em grupo. Em todas essas brincadeiras
nós queríamos sempre disputar para ver quem era o melhor: melhor pescador,
melhor flechador... Entre nós sempre havia meninos que eram bons em tudo.
Havia outro grupo que sempre perdia. Eu era um deles.

9.5 Page 85

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85
Estávamos vivendo mais um dia de brincadeiras. Fomos tomar banho nas
cachoeiras. Nós tomávamos banho por muitas horas, até o nosso corpo começar
a tremer e os nossos olhos ficarem vermelhos. Saindo do banho já saíamos
correndo para outras brincadeiras, por exemplo, quem chegava primeiro na aldeia.
Depois íamos cercar os calangos. Na nossa aldeia havia bastante. Cercávamos o
calango e ele se escondia entre as árvores, capinzal. Mas alguém sempre o
enxergava. Aí começava a flechada. Mas eu quase sempre não acertava. Não é
que não acertava, pois havia outros meninos que eram mais rápidos do que eu.
Mais uma vez eu não acertei.
Foi quando um menino disse para mim: você é muito ruim na flecha!
Eu sabia que eu era ruim no arco e flecha e o outro sempre me levaria
vantagem. Mas eu fiquei com raiva naquele dia. Aí eu disse: Deixa-me ver se eu
sou ruim na flecha. Dizendo isso, eu flechei na batata da perna.
Naquele momento ele quebrou a flecha e puxou para fora. Mas não me fez
nada. Se ele quisesse poderia me acertar qualquer outra parte do meu corpo. Mas
eu fiquei com muito medo. Por alguns dias eu deixei de andar com eles, por
vergonha e medo. Mas depois de alguns dias eles me chamaram. O nosso grupo
estava novamente completo. Eu me arrependi de ter flechado o meu colega.

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86
FIGURA: ESCOLA TUYUKA – PROFESSOR HIGINO TENÓRIO E ALUNOS TRABALHANDO NA ROCA.
FONTE: CABALZAR, Aloisio, 2003.
EDUCAÇÃO INDÍGENA13
13 Este artigo foi produzido para uma palestra realizada num dos grupos de estudo durante II
Seminário Internacional: fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão – práticas educativas
num contexto intercultural, 18-21/09/2006, na Universidade Católica Dom Bosco – UCDB, Campo
Grande – MS.

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87
INTRODUÇÃO
Os diversos deslocamentos14 (geográficos, sociológicos, antropológicos,
teológicos, filosóficos...) suscitam diversas respostas de acordo com saberes
acumulados, individual e comunitariamente. No atual contexto histórico esforçamo-
nos para estabelecer novas compreensões sobre as culturas, identidades e
diferenças15. Construímos e desconstruímos16, ressignificamos, elaboramos/re-
elaboramos, criamos/recriamos diversos saberes e práticas. Fazemos experiência
do entrelugar17, da fronteira18 entre as culturas diferentes (FLEURI, 2003, p. 53).
14 Ernesto Laclau com o termo deslocamento argumenta que as sociedades modernas não têm
qualquer núcleo ou centro determinado que produza identidades fixas, mas existe uma pluralidade
de centros. Houve um deslocamento de centros. Não existe mais uma única força, determinante e
totalizante. Ele diz que há muitos e diferentes lugares a partir dos quais novas identidades podem
emergir e a partir dos quais novos sujeitos podem se expressar (LACLAU, apud SILVA, 2005, p.
29).
15 A identidade, tal como diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição –
discursiva e lingüística – está sujeita a vetores de força, a relação de poder. Elas não são
simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em
um campo sem hierarquias; elas são disputadas (SILVA, 2005, p. 81).
16 O filósofo francês Jacques Derrida introduziu o termo desconstrução para mostrar a necessidade
de comportamentos críticos nos confrontos das formas totalizantes e absolutizantes de cada
tradição cultural. A desconstrução é um processo de historicidade e de relativização dos saberes,
e, incide sobre os níveis de compreensão, da autocompreensão, em particular, da pré-
compreensão. Disponibilidade para o descentramento, sair-fora das próprias certezas (FLEURI,
2003, p. 53).
17 No espaço de hibridismo acontecem processos simbólicos de negociação ou tradução,
possibilita a ultrapassagem das bases de oposição, é um entrelugar que contestaria os termos e o
território de ambas as categorias, possibilita ir além e despertar o desejo de outro lugar e de outra
coisa, que poderia ser identificado como novas possibilidades de relações pessoais e sociais entre
sujeitos marcados por uma política de diferenças (BHABHA, apud FLEURI, 2003, p. 62)
18 Barth utiliza a teoria fronteiras (fronteiras sociais, sua criação e manutenção) para mostrar que
as culturas e sociedades não configuram unidades fechadas, autocontidas, limitadas; permite lidar
com o fluxo entre as fronteiras (fluxo de pessoal e de conhecimentos) (TASSINARI, apud SILVA,
2001, P. 65).

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88
Em nossos discursos dizemos viver nas fronteiras culturais19, porém, em
outros momentos preferimos permanecer fechados dentro de ‘nossas culturas’,
criamos/fortalecemos as barreiras. Em outros momentos almejamos desconstruir
as barreiras dos pré-conceitos, estereótipos etc. Sonhamos em participar do
terceiro espaço, espaço de interculturalidade etc.
Com relação ao tema educação indígena os estudos/escritos nos mostram
a complexidade do tema. É uma realidade inesgotável, lisa, e, escapa sempre de
nossos olhares. As práticas educativas indígenas são dinâmicas, rápidas, sutis,
criativas etc. Enquanto os pesquisadores pensam já ter estabelecido uma certeza,
algo importante e relevante de acordo com os seus referenciais teóricos
(dissertações/teses), as práticas educativas indígenas, desconstroem tal certeza,
coloca-a sob suspeita. As práticas educativas indígenas através de suas línguas,
símbolos, códigos, segredos, silêncios20, risos, sempre escapam dos olhares de
um pesquisador, também, de um indígena.
Neste texto focalizo o meu olhar sobre alguns aspectos/dimensões da
educação indígena, baseando-me, primeiramente, nos estudos realizados pelos
professores mestres/doutores das universidades e pelos próprios indígenas, e,
também nas minhas próprias identidades e reflexões.
Deste modo eu sei que algumas idéias serão compartilhadas entre nós, no
campo teórico/acadêmico e outras não, porque as práticas educativas indígenas
são todas diferentes e cada indígena poderia descrever o processo educativo de
seu povo como disse Melià (1979, p. 18): descrever a educação indígena no Brasil
seria quase descrever o dia-a-dia de todas as aldeias (...), que simplesmente
19 Fronteira cultural (“borda deslizante e intervalar”): é o que estimula “o desejo de reconhecimento
do ‘outro lugar’ e de outra coisa”, para além de uma simples divisão e classificação binária da
existência humana. Este espaço intervalar da cultura configura-se como um “espaço da
intervenção (tensão-negociação-tradução) que introduz a ‘reinvenção criativa da existência’”, seria
a busca do encontro (BHABHA, apud FLEURI, 2003, p.63).
7 O “terceiro espaço” (Bhabha, 1996) que resulta da hibridação não é determinado, nunca,
unilateralmente, pela identidade hegemônica: ele introduz uma diferença que constitui a
possibilidade de seu questionamento (SILVA, 2005, p. 87).
20 O silenciamento é uma tentativa, assim, de apagar uma história, uma ideologia, que possa servir
de ameaça às relações de poder de um determinado grupo social. O silenciamento é uma forma de
garantir a estabilização da simetria das relações sociais, pois Foucault (1979) define as relações
simétricas como aquelas nas quais as relações de poder em determinado grupo não estão
ameaçadas. O silenciamento é uma certeza de que a história, a ideologia desejada por aqueles
que detêm o poder entrem em cena na cadeia discursiva (BOLOGNINI, 2003, p. 189).

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89
vivendo, estão se educando. Digo, também, que cada pesquisador, assessor,
professor não-índio poderia falar sobre as práticas educativas dos povos
indígenas com os quais está comprometido.
EDUCAÇÃO INDÍGENA
O conceito/categoria educação indígena, à primeira vista parece trazer para
nós a impressão de que existe um só povo e uma só educação indígena21.
Sabemos que atrás deste conceito existem muitas realidades que conhecemos e,
ainda, não conhecemos. Optei tratar a educação indígena a partir de duas
realidades22, mostrando dentro delas, alguns sentidos.
1. Educação Tuyuka23
A educação indígena existe no nosso imaginário, a partir da categoria
“índio”, historicamente criada (atribuída) pelos colonizadores. A educação indígena
é uma classificação homogeneizante que engloba numa só categoria culturas
muito diferentes.
Dentro desta perspectiva, tratar da educação de um determinado povo
(Tuyuka, Tukano, Guarani, Sateré-Maué, Baniwa, Terena, Xavante...) é mostrar
que não existem índios24, mas sim Tuyuka, Tukano, Terena, Desano, Baré etc.,
com seus modos próprios de educar.
Neste momento, a educação tuyuka25 serve-me como uma referência para
falar dos modos próprios de educação do homem e da mulher. São modos
criados, reinventados, ressignificados por cada povo, de geração para geração.
21 No Brasil são cerca de 220 povos indígenas e falando mais de 180 línguas diferentes.
Site: < http://www.socioambiental.org.br > Acesso: 7 JUN 2006.
22 Estas realidades selecionei do texto de Paula Caleffi: “O QUE É SER ÍNDIO HOJE?”: a questão
indígena na América Latina/Brasil no início do século XXI. Ela traça uma análise comparativa entre
as realidades indígenas na América Latina e no Brasil neste início do século (2003. p.176-177).
23 Neste artigo, entenda-se a educação tuyuka como educação indígena e a educação escolar
tuyuka como educação escolar indígena.
24 Na minha história já participei de muitas assembléias indígenas, tanto nas cidades como nas
comunidades (aldeias). Nas últimas décadas as lideranças fazem discursos para os seus parentes
dizendo: “nós não somos índios, somos Tukano, Piratapuia, Wanano etc”.
25 O nome mitológico dos Tuyuka é ¢tãpinopona que significa Filhos-da-Cobra-de-Pedra. Os
Tuyuka localizam-se no alto Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira – AM.

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Para Melià26, através da educação os povos indígenas se sustentaram com o
próprio modo de ser e com a formação de identidades diferenciadas. A educação
tuyuka acompanha a dinâmica das exigências de diferentes contextos (social,
histórico, geográfico, filosófico, econômica...).
A colocação de algumas características da educação tuyuka deixa em
aberto para outras compreensões. Entre os povos da região do alto Rio Negro -
AM, algumas práticas educativas se assemelham e se diferenciam noutras. As
influências culturais de um povo para outro é grande, devido proximidades de
localização geográfica, proximidade e semelhança de origem mitológica27,
relações de parentesco, casamentos, viagens, escolarização etc.
A educação tuyuka28 é processo de ensino, aprendizagem e vivência. O ser
humano é educado para viver bem a sua vida. Por isso, o educador é alguém que
possui a compreensão da vida e pela transmissão de saberes para a criança,
jovem e adulto mostra modos de proceder para construir a vida com os recursos
disponíveis no entorno. Cada educador utiliza métodos, pedagogias, conteúdos
herdados de seus antepassados, adquiridos com outros povos e criados/recriados
por ele mesmo.
A educação tuyuka é o processo de recuperação, revitalização,
fortalecimento, construção, reinvenção etc., do seu patrimônio cultural. Este
processo gera conflitos entre as diversas gerações. Segundo Barth (2000, p. 34),
se um grupo mantém sua identidade quando seus membros interagem com
outros, disso decorre a existência de critérios para a determinação do
pertencimento. A cultura constrói-se constantemente como constitutiva da vida
social e, por ela, os homens e as mulheres atribuem sentidos ao mundo, às
identidades, às diferenças, e, ela é uma prática de significação (HALL, apud
BACKES, 2005, p. 26).
A educação tuyuka é o processo de construção social numa relação de
poder, estabelecendo diferenças ao longo de todo processo de construção da vida
26 Anotações feitas durante a aula (dia 20 de Junho/2006) do Dr. Bartomeu Melià – CEPAG,
Assunção, Paraguai, durante o Curso de Extensão promovido pela Universidade Católica Dom
Bosco (UCDB): Interculturalidade, Educação Escolar Indígena e Sustentabilidade (19-23/06/2006).
27 Os Tukano, Tuyuka, Desano... têm a mesma origem mitológica, Canoa de Transformação.
28 Entenda-se a educação tuyuka para referir a educação indígena.

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humana: família, família étnica e nas relações interétnicas. Não existe identidade
sem significação. Não existe significação sem poder (SILVA, apud BACKES, 2005,
30). Os ensinamentos compartilhados com os filhos, netos, parentes, cunhados,
primos, avôs, etc, são resultados de práticas positivas e negativas29.
A educação tuyuka é o processo de enfrentamento com diversas
realidades. Os meus avôs tuyuka aprenderam a conviver diferentemente com as
novas exigências de seres humanos, da natureza, dos rios, das cachoeiras, das
florestas, dos perigos etc. Desde a origem e surgimento (ventre da Canoa de
Transformação), até hoje constroem práticas que favorecem a continuidade da
vida. Os conflitos internos provocaram dispersão de alguns grupos (sibs) para
outras regiões geográficas e reagrupamento de outros. Segundo Laraia (2004, p.
45): o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado, é um herdeiro
de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência
adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam.
A educação tuyuka é o processo de construção/descontrução da cultura. O
significado da cultura (FORQUIN, apud MEYER, 2003, p. 75), utilizado aqui é no
sentido de patrimônio de conhecimentos e competências, de instituições, de
valores, de símbolos, constituído ao longo das gerações e característica de uma
comunidade particular. Tassinari (2004, p. 448-450) mostra que a cultura permeia
todos os momentos da vida social e, por isso, cada parte da vida social não pode
ser entendida isoladamente, mas somente em relação à totalidade cultural da qual
faz parte. Enquanto dinâmica, se transforma através da história e não existe uma
história única a ser trilhada por todos os povos. O mesmo povo vive de forma
diferente do que as gerações anteriores, pois, cada geração vive em contextos
históricos diferentes. Melià (1999, p. 11) lembra: ainda subsiste uma variedade de
povos indígenas com suas línguas e culturas; às vezes, sem suas línguas, mas
sim com suas culturas.
29 Faço referência sobre as coisas positivas e negativas, pois, quem é tuyuka sabe que existem
muitas práticas e atitudes que foram construídas pelo povo ao longo de sua história, de seus
conflitos interétnicos: vigança, humilhações entre os irmãos maiores (superiores/chefes/primeiros)
e menores (inferiores/servos/últimos) etc.

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A educação tuyuka é o processo de amadurecimento. Cada indivíduo,
família e geração procuram entender, interpretar, ressignificar e viver os saberes
de outros povos. Segundo Melià (1999, p. 12), a ação pedagógica dos povos
indígenas: permite que o modo de ser e a cultura venham a se reproduzir nas
novas gerações, mas também que essas sociedades encarem com relativo
sucesso situações novas. Os Tuyuka fazem seleção dos saberes externos que
servem para suas vidas. Assim disse um professor Tuyuka:
(...) Nós mesmos precisamos criar nossas escolas, para
ensinar com a nossa língua, ensinar a ser aquilo que os
nossos avôs eram, também, aprender os conhecimentos
dos brancos e saber o que destes ensinamentos nos
podem ajudar, precisamos aprender a selecionar os
conhecimentos dos brancos, mas a nossa cultura não
devemos perder, por isso, devemos estudar em nossa
língua, escrever em nossa língua (Poani, Higino Pimentel
Tenório, etnia Tuyuka, entrevistas, 2006, p. 8)30.
A educação tuyuka é o processo que transita pelas diversas dimensões da
vida humana, fortalecendo-as mais e menos, dependendo de cada espaço. Os
Tuyuka dão atenção muito especial para especificação de atividades do homem e
mulher. Fleuri (2003, p. 27), diz que a construção da identidade é determinada
pelas relações geracionais, étnicas e, de modo determinante, pelas relações de
gênero. A educação é um processo de identificação no qual buscamos criar
alguma compreensão sobre nós próprios por meio de sistemas simbólicos e nos
identificar com as formas pelas quais somos vistos por outros (LACAN, apud
SILVA, 2005, p. 64). A identidade é relacional, onde a diferença é estabelecida por
uma marcação simbólica relativamente a outras identidades (IGNATIEFF, apud
30 Higino Pimentel Tenório tem 51 anos de idade. Ele e outros começaram a pensar e realizar a
Escola Tuyuka. Por isso, ele é uma referência para todos os moradores da aldeia, para os Tuyuka
e outros povos. Na comunidade Mõpoea (São Pedro), mesmo tendo outro líder comunitário, quase
sempre tem de consultá-lo. Os membros da família dele, na organização social tuyuka, são
considerados irmãos maiores de outros Tuyuka que estão na comunidade. Assim sendo, ele
continua exercendo a liderança, mesmo não sendo um líder eleito pela política atual de escolha de
um líder. Por outra parte, por uma pessoa que começou a Escola Tuyuka, ser diretor da Escola e
pessoa de referência diante dos assessores e entidades financiadoras, exerce uma grande
liderança sobre as comunidades e Escola Tuyuka. Nas conversas ele procura falar dos trabalhos
da escola, preocupação com a vida do povo Tuyuka, com as aldeias tuyuka etc. Sempre está em
contato com os assessores da Escola (ISA - Instituto Socioambiental e FOIRN). É uma pessoa
alegre, assim como todos os Tuyuka, mas sério e duro com relação aos assuntos que não vão de
acordo com o projeto de vida da comunidade e da Escola.

10.3 Page 93

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93
SILVA, 2005, p. 14). Sobre este ponto entre os Tuyuka, a educação procura definir
e diferenciar a identidade masculina e feminina. A educação tuyuka gira em torno
da construção da diferença. Fleuri lembra as palavras de Scott a respeito de
gênero: “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos. O gênero é um primeiro modo de dar
significado às relações de poder” (JOAN SCOTT, apud FLEURI, 2003, p. 27).
A educação tuyuka acontece de modo contínuo e gradual. Cada
ensinamento tem momento próprio e são apropriados para cada fase de
crescimento da pessoa. Existem conhecimentos próprios para homens e para as
mulheres. Acompanha os diversos momentos da vida humana e do tempo: a sua
língua, língua dos outros, costumes, tradições, sonhos, perspectivas;
compreensão do bem/mal; sentido do trabalho e festas; seleção de
conhecimentos; sentidos da vida/morte; interpretação da vida, temor, felicidade,
tristeza; veneração ao tempo, natureza, rios, lagos; compreensão das divindades,
seres criadores; criação e práticas de benzimentos, discursos mitológicos, ritos,
músicas, danças...
A educação tuyuka acompanha durante todo o ciclo da vida. O educador é
alguém que conhece a vida, a natureza, o trabalho, a festa, a música, a dança, o
banho, a confecção de beiju, quinhapira, farinha, caxiri, arco, flecha, caça, pesca,
benze, cura, viaja, interpreta os sonhos etc; possui conhecimentos sobre: dor,
perigo, alegria, satisfação, preocupação, brigas, quem já foi curado, passou pela
doença, já fugiu, já teve medo, sentiu fome, que obteve bom resultado nas ações
e quem fracassou etc; que pensa sobre a vida, reflete, reinterpreta, interage com
as diversas realidades. A partilha de experiências de vida gera outros
conhecimentos. As ações cotidianas de indivíduos e comunidades passam pelo
processo de contar e recontar aos outros. Após ouvir as experiências, cada
indivíduo e família, procuram levar para suas ações.
A educação tuyuka é o processo de construção de alianças, pois, os
homens tuyuka casam-se com as mulheres de outras etnias e as mulheres Tuyuka
com os homens de outras etnias. Cabalzar (2000, p. 61), mostra que os Tuyuka

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94
mantêm relações mais estreitas (matrimoniais, rituais e comerciais) com os
Tukano, Bará, Makuna e Desana.
A educação tuyuka se faz mostrando-vivendo-falando e se aprende vendo-
praticando-ouvindo. É um processo familiar e comunitário. Segundo Melià (1979,
p. 10), a cultura indígena é ensinada e aprendida em termos de socialização
integrante. Um Tuyuka, sendo um indivíduo e coletividade, constrói o seu próprio
jeito de viver a partir daquilo que aprende. Constrói a sua individualidade e sua
pertença étnica. Por outros povos, ele não é visto apenas como um indivíduo, mas
como Tuyuka. Silva (2003, p. 101) fala que educar significa introduzir a cunha da
diferença em mundo que sem ela se limitaria a reproduzir o mesmo e o idêntico,
um mundo parado, um mundo morto. No processo educativo tuyuka é importante
a presença e a ação dos b¡toa31 como guardiões dos saberes e conhecimentos
étnicos. Eles selecionam a transmissão de saberes de acordo com a fase de
crescimento da pessoa. Sua presença na educação tuyuka cria segurança,
equilíbrio e harmonia. Eles com os seus sensos apurados prevêem aquilo que
poderá ajudar a vida dos membros da etnia e aquilo que pode prejudicar a vida da
comunidade e das pessoas. Prevêem os tipos de males que aproximam e donde
provêm. Através de suas sabedorias e benzimentos apaziguam as forças dos
males. Para quem deles se aproximam favorecem conhecimentos da própria etnia
e de outros povos.
A educação tuyuka acontece no cotidiano e nas festas. A casa (família) é
um dos primeiros espaços onde o Tuyuka recebe a educação. Muitas explicações
sobre a vida, trabalho, casamento, convivência com as pessoas são transmitidas
dentro de casa aos cuidados diários dos pais, irmãos, tias, tios, avós. Os
ensinamentos são aprofundados de acordo com o crescimento. A educação
acontece na vida comunitária e favorece a participação de todos para o bom
andamento da vida das pessoas. Cada pessoa, à sua maneira, é responsável pela
educação da pessoa, como indivíduo e coletivo. Barth (2000, p. 33) diz: quando as
31 B¡toa é uma palavra tuyuka para indicar os anciãos, anciãs ou pessoas que já possuem uma
longa experiência de vida; b¡k¡: ancião, velho; b¡k¡o: anciã, velha.

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unidades étnicas são definidas como um grupo atributivo e exclusivo, a sua
continuidade é clara: ela depende da manutenção de uma fronteira.
Estas e outras características da educação tuyuka são dinâmicas. Cada
povo através de contatos com outros povos adquire conhecimentos, práticas
culturais, modos de educar os filhos, netos. Os diversos modos de educação não
respondem todas as realidades humanas.
As práticas negativas ofuscam os projetos de vida de um povo. Por isso,
desde o surgimento humano (referência mitológica) havia irmão maior que devia
cuidar do bem-estar de seus membros, mas nem sempre conseguiu. Nos tempos
atuais muitas práticas contradizem aos valores transmitidos: homens batem em
mulheres32; casais educam os seus filhos na base da violência/castigos33; há
brigas entre os moradores durante as festas34; ciúmes, fofocas, agressões verbais;
desobediência de filhos para com os pais; engravidam as suas próprias
parentas35; roubos nas roças dos outros; roubo de instrumentos de trabalho;
roubos de material de pesca; menosprezo por parte de irmãos maiores;
enfraquecimento da partilha de alimentos; não valorização dos momentos de
trabalhos comunitários; envenenamento de outras pessoas; agressões físicas,
morais. Estas realidades desafiam a prática educativa, por isso, diariamente os
modos de educação passam pela revisão, reflexão e tomadas de decisões. As
32 Na educação de filhos e filhas os pais insistem muito ao casar tem que tratar bem ao marido, a
esposa. Em várias aléias do alto Rio Negro – AM eu vi várias mulheres serem agredidas, e,
algumas vezes até matam. E, com estes agressores não acontece nada. Os parentes do homem
dizem: é mulher dele, ele sabe o que faz! Quando se denuncia para as autoridades (FUNAI), elas
também não fazem nada. A prova disso é no alto Rio Negro, indígenas que mataram seus
parentes e esposas continuam vivendo normalmente em suas aldeias e/ou outras aldeias.
33 Alguns modos indígenas de educar são muito duros. Eu e meus irmãos muitas vezes quando
chorávamos de noite fomos deixados fora de casa, no escuro e gritando. Os pais não abriam
enquanto não parávamos de chorar. Depois que cresci, andando em outras regiões, vi que, ainda
este modo de educar existe.
34 Algumas aldeias sofrem em todas as festas, pois, existe alguém que sempre provoca brigas,
geralmente são pessoas que se consideram fortes fisicamente.
35 A meu ver este problema é sério e vai contra o espírito da etnia. Para um homem tuyuka é sua
irmã. O Tuyuka quando engravida uma Tuyuka não a assume como esposa, pois ela é sua irmã
(casamento proibido). Quem sofre com isso é a jovem, os pais etc.

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realidades negativas geram desconfianças entre os moradores. E, muitas vezes,
algumas famílias têm de abandonar as suas comunidades de origem36.
As atuais lideranças junto com as comunidades buscam solucionar estes
problemas. Para evitar essas realidades colocam mais disciplinas, regras
estabelecidas e negociadas entre os moradores das comunidades.
2. Educação Escolar Tuyuka37
A categoria educação indígena, também, aponta para a educação escolar.
A categoria ‘índio’ uma entidade atribuída pelos colonizadores, ao longo da
história, gerou: perseguição, assassinato, discriminação, dominação, exclusão...;
fugas, resistências, vergonhas, suicídios, medos etc. Os ocidentais e seus
descendentes têm dificuldades para respeitar as diferenças. Também, nós
indígenas, sentimos tais dificuldades. Lopes da Silva (2004, p. 322-323), falando
destas dificuldades diz:
as diferenças são entendidas como desigualdades, reduzindo os
outros a si mesmo, o ocidente dilui e nega as diferenças enquanto
tais, transformando-as em momentos de uma única escala
evolutiva, que vai dos “selvagens” ao “civilizados” (....),
hierarquizando e qualificando segundo seus próprios critérios as
diferenças que lhes chamam mais atenção. (...) Declaram que há
povos com ciência e há povos que ainda não desenvolveram
satisfatoriamente sua racionalidade a ponto de se tornarem
capazes de produção de História, de Ciência, de Filosofia.
A categoria “índio” refere-se a pessoas integrantes de diferentes grupos
étnicos com um longo processo histórico de luta contra a marginalização imposta
pelas políticas coloniais e nacionais. Já no final do século XX e início do século
XXI, a categoria “índio” adquiriu sentido de status jurídico com uma série de
direitos, tornando-se uma categoria de luta e uma identidade, e, politicamente
operante, justamente por somar sob uma única classificação grupos étnicos
diferenciados, que tiveram nesta soma sua força aumentada. Não significa que os
indígenas estejam abrindo mão de suas identidades específicas. É a partir da
36 Nas escolas indígenas faz-se o discurso de que a escola deve ajudar os moradores para não
abandonem as suas terras, suas comunidades. O abandono de alguns muitas vezes não acontece
porque são mandados embora.
37 A Escola Tuyuka é sinônimo de ¢tãpinopona Bueriwi. A Escola localiza-se no alto Rio Tiquiê,
município de São Gabriel da Cachoeira – AM, na área de fronteira do Brasil com a Colômbia.

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97
união de diferentes povos indígenas e suas lutas pelos direitos, atingem maiores
êxitos e estes lhes permitem conseguir viver cada vez melhor de acordo com suas
pautas culturais (CALEFFI, 2003, p. 176-189).
Dentro deste último contexto que vemos o surgimento de escolas
indígenas. Também a escola de modelo ocidental não soube respeitar as
diferenças existentes entre os povos indígenas. Nas últimas décadas (1970...) os
diversos movimentos contribuíram para o surgimento de novas propostas
educacionais. Ferreira (2001, p. 71), fala que para os índios, a educação é
essencialmente distinta daquela praticada desde os tempos coloniais, por
missionários e representantes do governo. Os índios recorrem à educação
escolar, hoje em dia, como instrumento conceituado de luta.
Nos discursos de indígenas e não-indígenas sobre a educação escolar se
pode perceber que existem discursos e escritos que reconhecem a ausência de
respeito para as diversidades de povos indígenas, e, por isso, repudiam as
práticas educativas do modelo ocidental. Ainda, dentro desta realidade ficam bem
evidente que estas pessoas são aquelas que se formaram dentro destes modelos,
adquirindo instrumentais teóricos (filosóficos, antropológicos, religiosos,
psicológicos etc.) para os discursos e práticas como defensores de suas culturas
indígenas, reivindicando, negociando o reconhecimento de seus direitos perante a
sociedade não-índia38. Cabalzar (2005, p. 25), tratando da diferença entre alunos
(atuais) da escola tuyuka e os que estudaram na escola de modelo ocidental (pais
e professores) diz: afinal as lideranças que hoje tomam frente nesse processo
falam muito bem o português, são verdadeiros diplomatas, enquanto os jovens e
crianças atualmente estão dominando bem menos o português. A mesma autora
faz alguma avaliação sobre as lideranças indígenas, particularmente, do Higino:
Penso nos momentos em que Higino afirma não pretender se
envolver em outros âmbitos de ‘política indígena’ para se dedicar
à ‘escola’; e sua relação com os vários outros em que sai como
‘embaixador’ (inúmeros a cada ano, discutindo as iniciativas de
suas comunidades, apresentando as propostas da ‘escola’,
38 O conhecimento que tenho da maioria de lideranças do alto Rio Negro, são todas as pessoas
que se formaram nas escolas salesianas. Várias pessoas possuem cursos superiores. São estas
pessoas que conseguem desconstruir, ressignificar os significados das escolas de modelo
ocidental.

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‘fazendo políticas públicas’, visitando outros ‘povos e projetos’,
participando de ‘redes’ de educação ou manejo ambiental
indígena, ajudando a revisar ou finalizar versões de publicações
ou outros ‘produtos’ de suas pesquisas). Nos momentos em que
recebe propostas para mandar sua filha adolescente para
trabalhar em Manaus com uma tia que lá vive e trabalha na
Associação das Mulheres do Alto Rio Negro, decide positivamente
e depois revê sua decisão. Ou que decide iniciar um ensino
superior à distância que lhe toma 3 meses do ano (quando deve
ficar na cidade participando dias inteiros dos módulos de ensino)
e, após duas etapas, desiste sob novas perspectivas de
continuidade de estudos... O envio da filha a Manaus e a
participação no ensino superior à distância parecem contraditórios
a vários assessores e parentes indígenas que o vêem fazendo
discursos acalorados a favor da escola tuyuka, da autonomia das
comunidades no ensino/aprendizado, do uso exclusivo do tuyuka
como língua de instrução em todo o ensino fundamental, da
necessidade de estender o ensino na ‘escola’ para o ensino
médio, garantindo a permanência dos jovens nas comunidades...
(CABALZAR, 2005, p.21).
Existem muitas situações como essas, pois neste momento histórico, maior
parte de lideranças e professores indígenas são pessoas freqüentaram a escola
de modelo ocidental. Por isso, sabem fazer comparações entre dois modelos
educacionais, ocidental e indígena. A educação recebida pelos indígenas nas
escolas de modelo ocidental provocou um pensar diferente sobre suas próprias
culturas e as culturas ocidentais, tornando-se um instrumental para reconstruir,
ressignificar tais práticas através da construção da chamada escola indígena.
Cavalcante (2003, p.22), através do depoimento o professor baniwa,
Gersem dos Santos Luciano39, mostra a visão e os sentimento indígena sobre a
escola no alto Rio Negro: a escola foi o principal instrumento de destruição cultural
dos povos, mas também pode ser o principal instrumento de reconstrução e
afirmação de uma nova era. [...] O caminho da educação escolar indígena é a
nossa grande esperança de conquista definitiva dos nossos direitos e da nossa
terra.
39 Gersem Baniwa como ficou conhecido dentro de sua história política, estou nas escolas da
missão salesiana no Alto Rio Negro e, também, seguir o caminho para ser padre. Só depois disso
engajou-se no trabalho como professor, liderança indígena. Por um tempo foi Secretário Municipal
de Educação no município de São Gabriel da Cachoeira – AM (1997-2000), mas não ficou até o
fim.

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Tassinari (2001, p. 58), trata deste modo de ver a escola como agência
indígena e das suas formas de reordenar a experiência escolar e de reinterpretar
os conhecimentos advindos com a escola.
Brand (2004, p. 9), falando da educação escolar indígena, diz:
a educação que buscam não é mais aquela que lhes foi,
historicamente, imposta, com objetivos integracionistas, mas a
decorrente do texto constitucional de 1988, uma educação
diferenciada e de qualidade, construída e planejada a partir das
demandas de cada comunidade indígena. Seu objetivo não é
mais preparar as crianças para viverem num mundo estranho,
onde seus conhecimentos e valores não tinham lugar, mas
contribuir para que essas mesmas crianças, adquiram os
conhecimentos necessários para uma maior autonomia e inserção
em igualdade de condições, no entorno regional. Neste sentido, a
escola que buscam deve constituir-se em um espaço privilegiado
de construção de alternativas frente aos novos desafios postos
para a sua autonomia, exatamente a partir da interação (e não
substituição), entre os conhecimentos tradicionais e os
conhecimentos universais.
As escolas indígenas no alto Rio Negro constituem uma nova etapa da
escolarização. Weigel (2003, p. 22), em suas análises sobre a escola Baniwa, diz:
a escola representa tanto a luta pela sobrevivência Baniwa,
contribuindo para a construção de uma nova identidade, quanto a
esperança de felicidade no futuro. Os Baniwa buscam na escola
meios – linguagens, conhecimentos e códigos – que contribuam
para a produção de um ajustamento e uma organização social
modificada, para melhor se adaptarem às novas condições
históricas.
As escolas indígenas situadas em cada região possuem diferentes histórias
e os processos de construção de escolas variam. Cavalcante (2003, p. 17), assim
trata destas escolas:
construídas em meio a inúmeras contradições, as chamadas
“escolas indígenas” enfrentam o desafio de descobrirem caminhos
próprios, desafio este que se agrava por terem como “modelo”
uma instituição que lhes é estranha, que não faz parte de sua
tradição. Percebe-se, então, o quanto se faz necessária a luta
pela educação escolar indígena, mas, ao mesmo tempo, o muito
se tem a aprender nesse processo. O que não se pode perder é a
clareza que contribua para uma autonomia desses povos.

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Os discursos sobre a política de educação escolar indígena passam
processo de desconstrução, tradução40, ressignificação das próprias mentalidades
indígenas formadas dentro da escola de modelo ocidental. A categoria ‘educação
escolar’ deriva da sociedade ocidental. O professor indígena que passou pela
escola de modelo ocidental é o que transita por dois mundos, indígena e ocidental.
Sobre essa realidade num sujeito, Hoff (2003, p. 271), diz:
O deslocamento desse sujeito dá-se justamente, porque, na
perspectiva da pós-modernidade ou do pós-estruturalismo, ele
não é visto como centrado e controlador. É visto como um sujeito
descentrado, que se constitui de pequenos fragmentos,
fragmentos esses que formam um aparente tecido homogêneo
que, na verdade, é constituído de pequenas unidades fraturadas,
esfaceladas, fragmentadas, o que evidencia a heterogeneidade
que o constitui. E, por ser heterogêneo, a autonomia do sujeito é
ilusão, pois ele não é dono absoluto de seu dizer, assim como lhe
escapa o controle dos efeitos de sentido que seu dizer causa, já
que as palavras são sempre, e inevitavelmente, as palavras do
outro.
Os estudos sobre as escolas indígenas trazem várias realidades que
precisam fazer parte de todas as pessoas que estão trabalhando para que
aconteçam as escolas. Cavalcante (2003, p. 23) diz:
a escola pode se tornar (e, em alguns casos, já se revela) um
instrumental decisivo na re-construção e afirmação das
identidades sociais, políticas e culturais dos povos indígenas.
Para tal, entretanto, urge que cada escola tenha clareza de seu
projeto político-pedagógico, forjado como construção permanente
e coletiva, que expressa as tensões e a dinâmica do cotidiano dos
professores indígenas. Nesse processo, é imprescindível que o
educador indígena tenha clareza do seu papel como agente
político-cultural, como alguém capaz de transformar a realidade à
sua volta, respeitando-a sempre. Para isso, esse educador
necessita ter como prioridade a criticidade e a conscientização da
responsabilidade social inerente à sua prática.
Retomando ao tema da Escola Tuyuka, Cabalzar (2005, p. 5-6), diz:
‘escola’ Tuyuka tal como hoje se movimenta, tem características
que fogem do nosso modelo de escola. (...) A ‘escola’ Tuyuka é
40 Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as
fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal.
Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a
ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas sem que
vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas
identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias
particulares pelas quais foram marcadas (HALL, 2003, p. 88-89).

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101
um movimento de situações e contextos que envolvem relações
entre línguas, hierarquias, conhecimentos especializados,
temporalidades, por onde também passa a teoria do
conhecimento Tuyuka, não apenas a dos Kumu ou benzedores,
dos baya ou cantores/dançadores rituais, mas daqueles que estão
com grande poder de liderança – como Higino Tenório Poani,
‘tradutor’, ‘embaixador’, ‘moralizador’ deste processo,
‘coordenador político-pedagógico’ da ‘escola’ (AEIT¢ -
Associação Escola Indígena ¢tapinopona Tuyuka), e muitos
outros professores, pais, mães, velhos, lideranças, crianças no
seu cotidiano. A ‘escola’ Tuyuka também é um projeto de uma
organização indígena (Depois de ‘criar’ uma organização
indígena, para que funcione, é preciso ‘ter um projeto’. ‘Projeto’ é
um termo muito utilizado atualmente pelos índios do alto Rio
Negro e de semântica complexa. ‘Ter um projeto’ significa estar
numa posição especial, de prestígio, de atualidade; manter
relações valorizadas, internas e externas; ter recursos; viajar entre
comunidade e cidade, entre o local e o global’ (Cabalzar, 2005)).
Assim falamos da ‘escola’ como ‘projeto’ tuyuka, que permite criar
e filtrar novas situações e relações. Movimentos de organizações
indígenas, que podem ser tomadas como um meio necessário,
mas não exclusivo, de acessar relações, recursos e
conhecimentos de alguma forma valorizados. Também são mais
um meio para transformar ou atualizar relações próximas e
distantes.
No alto Rio Negro – AM, no final da década passada iniciaram escolas
indígenas. Quem organiza é a FOIRN41 e organizações locais, em parceria com
Instituto Socioambiental – ISA, assessores de outras ONGs e apoio
governamentais. Contam ainda, desde 1999, com o apoio da Rainforest
Foundation da Noruega e, a partir de 2006, da Unicef, devido a um termo de
cooperação entre o ISA e o Instituto de Investigação e Desenvolvimento em
Políticas Lingüísticas (IPOL)42.
Considerações finais
A educação tuyuka, a educação escolar de modelo ocidental e educação
escolar tuyuka estabelecem entre si fortes influências. A presença de escola
41 Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.
42 Estas informações foram concedidas por Flora Dias Cabalzar, doutoranda em Antropologia –
USP, através de um artigo: Novidades nas Escolas Indígenas do Alto Rio Negro (Junho/2006). Ela
trabalhou vários anos diretamente com os Tuyuka e continuou assessorando a Escola Tuyuka,
juntamente, o seu esposo Aloísio Cabalzar.

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102
tuyuka nas aldeias fortalece, motiva e questiona a educação tuyuka e o sentido da
escola tuyuka. A escola é terceiro espaço, no sentido de que os Tuyuka já trazem
em si a sua educação, aprendizados adquiridos com a escola de modelo ocidental
e aquilo que constroem com a escola tuyuka. Moreira (2003, p. 160), diz que a
escola é uma instituição cultural. As relações entre escola e cultura não podem ser
concebidas como entre dois pólos independentes, mas sim como universos
entrelaçados, como uma teia no cotidiano e com fios e nós profundamente
articulados.
Os contatos com as realidades não-indígenas algumas práticas tuyuka
são desconstruídas: ida para cidades, sonho pelo emprego, dinheiro etc. Barth
(2000, p. 60) mostra que nos contatos e nos processos de mudanças culturais
aparecem novos agentes (indivíduos), novas elites que são pessoas que têm
maior contato com os bens e as organizações das sociedades industrializadas.
O espaço escolar é um dos espaços que favorece as pessoas ocuparem
posições sociais que dentro da organização étnica não poderiam ocupar:
professor, líder etc. Através da escola se pode estabelecer processos de
construção de relações interétnicas. No contexto do mundo atual, a educação
Tuyuka é desafiada a interagir com as novas e velhas realidades. Frente a estas,
ela se reconstrói, questiona, negocia com os membros da própria etnia e com
povos não-indígenas. Assim, a identidade, como diz Fleuri (2003, p. 56) é formada
e transformada em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.
Na construção da Escola Tuyuka se sentiu que há coisas que precisam ser
compreendidas a partir de outros contextos culturais. Fazer uma escola indígena é
um aprendizado com outras culturas, com os outros modelos de educação
escolar, inclusive, com o modelo ocidental. A Escola Tuyuka, mais do que antes,
interage, política e economicamente com as sociedades não-indígenas.
Nascimento (2004, p.175), diz:
As questões indígenas, a vida do homem indígena na América
Latina e particularmente no Brasil, têm que ser vinculada ao
contexto global, seja ele nacional, seja internacional. A
problemática indígena é hoje veementemente impulsionada por
questões de ordem sócio-política, cultural e ideológica ancoradas,

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103
implícita ou explícitamente, em questões econômicas e de
sobrevivência da própria humanidade.
A educação Tuyuka passa por outra construção de seus sentidos. O
contato com as realidades não-indígenas cria um descentramento na cultura
tuyuka, isto é, uma experiência de olhar a si mesmo, a própria cultura, com o olhar
de uma outra cultura, enriquecendo a própria identidade com outros pontos de
vista, outras características, outras memórias, outras fontes, sistemas de
expectativas e imaginação (FLEURI, 2003, p. 61).
O desafio para os Tuyuka, hoje, é como conviver política e
economicamente com o mundo envolvente. Ao mesmo tempo preocupando-se
com os valores tradicionalmente considerados tuyuka: gratuidade, hospitalidade,
alegria, comunitariedade etc.
Tassinari (2001, p. 67-68) utiliza o conceito de “fronteiras” como uma
abordagem teórica para tratar da escola indígena, por acreditar que tal conceito
engloba tanto o reconhecimento das possibilidades de troca e intercâmbio de
conhecimentos e fluxo de pessoal quanto o entendimento de situações de
interdição dessa troca. Ela utiliza o conceito de “fronteira” no sentido de
compreender a escola como um espaço de contato e intercâmbio entre as
populações, como espaço transitável, transponível, como situação criativa na qual
conhecimentos e tradições são repensados, reforçados, rechaçados, espaço onde
emergem e se constroem as diferenças étnicas.
A sociedade tuyuka, hoje, não tem um núcleo/centro determinado que
produza identidade tuyuka fixa. Existem muitos deslocamentos de centros que
produzem diferentes identidades tuyuka. Alguns Tuyuka ficam assustados pelos
diversos deslocamentos e sentem-se ameaçados, isto é, aquilo que é considerado
‘tradicional’ é ameaçado pelo ‘novo’. Nessa tensão acontece a negociação entre
aquilo que pode ser negociado e o que não se quer, ainda.
O povo tuyuka é herdeiro da história de seus antepassados, dos valores,
conhecimentos, conflitos, riquezas etc; a cultura tuyuka, embora herdeira da
cultura do passado, não é a mesma; a cultura tuyuka traz dentro de si inúmeras
marcas de outras culturas não-tuyuka; educação tuyuka é uma força interna que

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104
determina e diferencia de todas outras formas de educar; a educação tuyuka é
diferente em cada momento histórico; a revitalização de valores tuyuka marca sua
fronteira étnica; as identidades tuyuka transitam por vários espaços culturais; a
Escola Tuyuka é ‘outro’ espaço de representações das identidades tuyuka.
Estas realidades e outras tantas poderiam ser postas para o conhecimento
da complexidade da cultura tuyuka. Muitas questões permanecem em aberto, pois
não há conclusão prévia de conhecimentos. A cultura e a educação tuyuka numa
perspectiva intercultural desafia para a compreensão diferente e aberta para
novas realidades culturais. A partir desta perspectiva se pode tecer e articular
outras formas de vivenciar a cultura tuyuka.
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[citado 30 Maio 2006], p. 11-17. Disponível na Word Wide Web:
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WEIGEL, Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros. Os Baniwa e a escola: sentidos e
repercussões. Revista Brasileira.

11.6 Page 106

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106
FIGURA: COMUNIDADE SANTA MARIA – IAUARETÉ
ARQUIVO: REZENDE, Justino, 2007
REPENSAR A “CIVILIZAÇÃO”

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107
Iniciando a conversa
Elaborei este trabalho no dia 22/09/2006 (Campo Grande/MS). É uma etnografia sobre o
espaço AUDITÓRIO e seus PARTICIPANTES. Nela trabalho os contrastes existentes
entre a educação indígena e educação acadêmica (universitária). A etnografia coloca no
centro a pessoa para mostrar como os indígenas demonstram o respeito e a consideração
pela pessoa e, por outro lado, discute sobre a situação de indiferença existente no espaço
onde estão presentes os acadêmicos (universitários) que não correspondem às saudações
dos cerimoniais, dos palestrantes etc. Algumas questões que ficam: quanto mais o ser
humano estuda menos humano se torna? Esta situação de indiferença e desvalorização da
pessoa é que se chama “civilização”?
Eu nasci numa aldeia chamada Onça-Igarapé43 (Yai-ñiriya). Nesta aldeia eu
fui educado pelo pai Tuyuka e mãe Tukana. Até aos oito anos de idade eu vivi
direto nesta aldeia. A partir dos nove anos (1970) os meus pais me colocaram no
internato salesiano de Pari-Cachoeira44.
Na minha família o meu pai e minha mãe uma das primeiras coisas que
ensinaram foi o de cumprimentar as pessoas. O cumprimento são perguntas:
wakãi m¡ - você acordou? – para dizer bom dia! Kaniko – vamos dormir! – para
dizer boa noite! Na aldeia tuyuka as pessoas vivem fazendo perguntas: kusar• -
tomaste banho? Wesep¡ hear• - foste na roça? Kamesag£ti – estás passeando?
Padeg¡ti – estás trabalhando? Duihãi – estás sentado? Yosahãi – estás deitado?
Wag¡ti – estás viajando? Heag¡ti – estás chegando? Yag¡ti – estás comendo?
O Tuyuka vive perguntando [cumprimentando]. Cada vez que encontra a
pessoa faz a pergunta [cumprimenta]. O Tuyuka é educado a responder as
perguntas de seus irmãos, parentes, primos...
Os meus pais e avôs me educaram dizendo que quando nós não
perguntamos [cumprimentamos] ao outro é sinal de que nós não respeitamos ao
outro. Da mesma forma quando não respondemos à pergunta [cumprimento] do
outro. Este modo de educar [perguntar e responder] gera relacionamentos
43 Onça-Igarapé é afluente do Rio Tiquié que é afluente do Rio Uaupés e, este, afluente do Rio
Negro – AM.
44 O internato em Pari-Cachoeira acabou em 1987. Os salesianos ficaram nesta missão até o final
de 1998.

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profundos entre as pessoas. Como eles eram sábios! Eles entendiam muito bem o
valor da pergunta e resposta! Eles entendiam bem esta pergunta e resposta que
sai do interior da pessoa. Não é simplesmente fazer a pergunta, mas valorizar a
vida do outro, seu fazer, ser, sentir... A resposta, da mesma forma, manifesta o
respeito pelo outro, seu fazer, ser, sentir...
Em outra etapa de minha vida eu fui educado no internato da missão
salesiana de Pari-Cachoeira e, posteriormente, em outros espaços. No internato
da missão salesiana nos ensinaram a cumprimentar as pessoas. Por isso, nos
ensinaram a dizer: bom dia! Boa tarde! Boa noite! Também, no internato
ensinaram que quando alguém nos cumprimenta temos que cumprimentá-lo!
Vendo esta realidade eu fui percebendo que cada cultura possui jeito próprio de
valorizar o outro.
Também, foi neste espaço de internato que comecei a perceber que o que
os salesianos (as) e os professores nos ensinavam, não era posto em prática nos
relacionamentos entre as pessoas.
Após vários anos (2006) posso interpretar algumas situações que eu via no
internato. Um fato que eu presenciei muitas vezes era de que os salesianos/as,
muitas vezes, não respondiam quando nós os cumprimentávamos. Porém,
exigiam que nós [indígenas] fôssemos bem educados. Para eles, ‘bem educados’
significava cumprimentá-los. Por que, então, não nos respondiam? Hoje, interpreto
que nós [indígenas] para eles não significávamos nada. Não éramos pessoas que
merecêssemos a correspondência em nossos cumprimentos. Um exemplo bem
típico desta realidade aconteceu na missão salesiana de Iauaretê (AM): um
professor indígena vinha chegando ao colégio e encontrou uma freira salesiana;
este professor disse: bom dia, irmã! A freira não o respondeu. O professor correu
atrás dela, segurou-a e disse: irmã, a senhora comungou, hoje? Ela disse: claro,
eu sou irmã! O professor disse: a sua comunhão não valeu! A freira perguntou: por
quê? O professor disse: porque a senhora não respondeu o meu bom dia
[cumprimento]!
Mas na sala de aula nos ensinaram que devíamos cumprimentar ao
professor (a). Ensinaram que quando entra um professor (a) na sala de aula

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tínhamos que recebê-lo em pé, dizendo juntos: bom dia, professor (a)! Só
podíamos sentar depois disso. Todo final de tempo de aula, dizer: muito obrigado,
professor (a)!
Muitas vezes os nossos cumprimentos [indígenas] não eram
correspondidos. Diante disso, andando em grupo e encontrando com os
salesianos/as e professores, nós [alunos internos] não cumprimentávamos mais.
Aí eles diziam que nós éramos mal-educados. Penso que fomos mal-educados
porque os nossos professores (as) eram mal-educadores!
É de reconhecer que existiram alguns salesianos/as muito humanos que
foram verdadeiros amigos nossos!
Em 1980 eu fui para Manaus. Uma terra estrangeira para mim. Eu vi muitas
pessoas, multidões... Eu estava entrando na cidade e para este espaço eu fui
preparado durante o internato. Viver na ‘civilização’! Só que a cidade não era mais
a minha aldeia! Na cidade ninguém pergunta e nem responde como fazia na
minha aldeia! Também, não se cumprimenta dizendo: bom dia! Boa tarde! Boa
noite! O que me ensinaram no internato da missão salesiana, também, não estava
servindo!
A cidade dos ‘civilizados’ deseduca! Eu devo ter sentido assim por ser
índio! Mas eu fui aprendendo estas indiferenças que são passadas. O que eu
aprendi antes continua presente na minha vida. O que aconteceu foi o acréscimo
de outras realidades.
Passaram-se anos e anos nas cidades. Comecei estudar em vários graus
acadêmicos. Fiz faculdades. Já nestes espaços não ensinavam mais as coisas
simples do dia-a-dia. Aprendem-se outros saberes.
Pelas exigências dos próprios estudos comecei a participar de palestras,
pequenas e grandes, de professores famosos e menos famosos. Nestes espaços
onde estão presentes, geralmente, pessoas que entendem dos assuntos que
serão tratados, é visível o orgulho!
Aquilo que me leva a escrever este texto é o espaço-auditório de palestras,
conferências, colóquios... Toda vez que estou em algum auditório me dá vontade

11.10 Page 110

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110
de escrever. Para escrever sobre este espaço coloco alguns elementos que eu
enxergo:
1. Divulgação: na divulgação de uma palestra e conferência
indicam vários títulos da pessoa para atrair maior público. Indicam por quais
universidades estudou. Para ser mais procurado/respeitado/ouvido tem que
ser de Universidades estrangeiras (EEUU, França, Alemanha...) ou no
mínimo de uma universidade famosa do país. Indicam os livros publicados
etc.
2. Palestrante/conferencista: toda vez que ouvimos dizer que
haverá uma conferência logo perguntamos de onde é a pessoa. Se o
palestrante é famoso ou não. A impressão que eu tenho é de que as
pessoas estão mais interessadas nos títulos da pessoa do que no próprio
assunto a ser tratado. Deve ser assim, porque é uma sociedade dos
‘civilizados’! Se o palestrante é de fora tem mais possibilidade de atrair
maior número de pessoas.
3. Motivações: quem vai a uma conferência é motivado por algo.
Nem sempre aquele que vai, está disposto a aprender. Muitos vão para
saber se o que ele vai falar está de acordo com o seu saber (do ouvinte).
Outros vão para ver como é a pessoa. Outros vão porque são obrigados a
ir. Outros vão dispostos a acrescentar aos seus conhecimentos. Outros vão
sem nenhuma base teórica e experiência dentro do que será tratado.
4. Resultados: cada pessoa sai com resultados. Algumas saem
satisfeitas por conseguirem novos conhecimentos e novas perspectivas
para o campo de atuação e seu saber. Outros saem dizendo que não houve
nenhuma novidade. Outros dizem que poderia ter sido melhor. Outros
dizem que sabem melhor do conferencista e que poderiam falar melhor que
o palestrante, conferencista...
A sociedade ‘civilizada’ funciona desta maneira. Mas o que me levou a
escrever estas páginas não é exatamente sobre isso, mas sobre aquilo que eu

12 Pages 111-120

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12.1 Page 111

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111
comecei falando: cumprimento às pessoas! É exatamente isso que me chama
mais atenção nestes eventos.
Os cerimoniais começam cumprimentando o público. A resposta é
interessante: silêncio! Parece que as pessoas não estão dispostas a cumprimentar
as pessoas. Mais interessante é que todas as pessoas são bem formadas
academicamente.
Depois é formada a mesa e para isso são chamadas várias pessoas. Para
cada componente é lido o seu currículo! Nem isso favorece que o público presente
no auditório corresponda ao seu cumprimento. Os componentes da mesa ao
pronunciarem as suas palavras cumprimentam os outros componentes da mesa e
ao público. Geralmente, o público não responde. Talvez seja por isso que quem
cumprimenta não espera o público responder e acredito que já sabem que não iria
responder.
Por que será que acontecesse assim? Eu carrego comigo, uma
mentalidade tuyuka [indígena]. Fico me perguntando: quanto mais se estuda fica
menos educado? Na aldeia tuyuka não é assim. Quando alguém cumprimenta
dizendo: dui m¡a? [vocês estão sentados?] Todos os presentes respondem:
duia¡¡¡! [estamos sentados!] Quando todos respondem ao cumprimento desperta
um sentido profundo de pertença comunitária, unidade, sensibilidade, respeito,
valorização.
Se quem está na mesa como convidado, componente, debatedor,
conferencista, coordenador são autoridades, por que, não respondem aos seus
cumprimentos? A educação escolar não está educando as pessoas para estes
valores? E, nem precisaria ser importante para ser correspondido no cumprimento.
Se alguém nos cumprimenta temos que correspondê-lo.
Quando eu era menino na minha aldeia os meus pais diziam que eu tinha
que aprender a cumprimentar as pessoas porque isso me faria uma boa pessoa
que respeita outras pessoas e ser respeitada por elas. Estudando as coisas dos
‘brancos’ [não-indígenas] eu sempre imaginei que quanto mais se estudam as
pessoas ficariam mais educadas com as pessoas. Muitas realidades me mostram

12.2 Page 112

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112
que quem mais estuda parece ser mais indiferente, menos atencioso, menos
solidário, menos sociável, mais isolado, mais esquisito... Nem todas!
Estou escrevendo isso com relação aos ‘brancos’ [não-índios], mas penso
nos povos indígenas. Estou escrevendo estas páginas depois de um grande
Seminário Internacional45, onde estavam presentes muitos acadêmicos indígenas.
Nos últimos anos muitos indígenas estão entrando neste espaço da sociedade
‘civilizada’. Sei que os indígenas querem recuperar e revitalizar as práticas
culturais de seus povos e fortalecer as suas identidades. Por outro lado, sonham
em contribuir com a academia para gerar uma nova convivência [nas
universidades], porém, ainda sofrem discriminações das instituições e
professores/alunos universitários.
Depois de passarmos pelas universidades nós indígenas seremos capazes
de revitalizar e praticar os ensinamentos de nossos pais e mães? Os nossos avôs,
sábios, sábias, benzedores, mestres de rituais, cerimônias... o que nos diriam se
perdêssemos aquilo que sustentou as suas identidades durante séculos?
Ser um acadêmico indígena é, também, começar a pensar mais no nosso
passado, para as nossas raízes, nossas tradições. São esses conhecimentos que
sustentarão o indígena na universidade. Nestes espaços universitários, nós
indígenas temos que irmos benzidos pelos nossos sábios! Pois nas universidades
estão presentes vários perigos e podem nos prejudicar!
45 Foi realizado na cidade de Campo Grande – MS (18-21/09/2006), na Universidade Católica Dom
Bosco – UCDB, o II Seminário Internacional: fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão –
práticas educativas num contexto intercultural.

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113
FIGURA: ENCONTRO DE CATEQUISTAS EM TARACUÁ
ARQUIVO: REZENDE, Justino, 2007
ESPIRITUALIDADE INDÍGENA:
a noite como construção da vida!

12.4 Page 114

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114
Iniciando a conversa
Esta etnografia foi elaborada no dia 05/08/2008, em Manaus. Descreve alguns
simbolismos da vida que a noite revela aos seres humanos: as águas noturnas, os
pássaros noturnos, seus cantos e suas mensagens; leituras que o homem e
mulher fazem sobre as diversas realidades que aparecem durante a noite: as
estrelas, isoladas e em conjunto; o silêncio e a escuridão como fontes facilitadores
da pesca e caça; para repouso e meditação dos velhos sábios; cantares de sapos,
macacos, corujas que anunciam o tempo bom; cantar dos galos que anuncia o
novo dia; a preocupação das mulheres com seus maridos que vão para pescaria
etc. É um trabalho valioso, porque contrasta com o campo religioso, teológico que
apresenta a escuridão como ausência da vida, presença da tristeza etc. Aqui
recupero as figuras de velhos que meditam durante a noite. Eles são filósofos e
teólogos que voltam para o passado, retornando para o presente, preveem o dia
seguinte (o futuro) e redirecionam os projetos de vida.
Amigo/a vem comigo! Vamos passear na aldeia onde moram os meus
irmãos e meus parentes Tuyuka! Quero que você me acompanhe! A aldeia fica
bem distante daqui, mas é muito importante para mim, o retorno ao lugar de minha
origem para eu conhecer/aprender aquilo que é próprio da cultura tuyuka. Ela é
como se fosse minha mãe e meu pai.
Esta nossa viagem acontecerá no nível imaterial/espiritual. Viajaremos pela
força de nossa mente e o pensamento. É uma viagem sem gastos. Nós não
vamos gastar dinheiro com as compras de passagens de avião nem gasolina para
o motor de popa. Não gastaremos dias e noites para subirmos o rio Negro,
Uaupés, Tiquié, pegando o sol e a chuva.
O nosso criador, ser superior, Deus e/ou do jeito como você queira chamá-
lo, nos deu a capacidade de deslocarmos de um lugar para outros com muita
facilidade e rapidez. Merecemos tudo isso? Não sei! Só sei dizer que temos essa
capacidade!
Amigo/a, nós chegaremos à aldeia em poucos segundos. Os meus irmãos
e parentes nem sabem que nós chegaremos! Então embarque comigo nesta
viagem! Vai ser uma surpresa para eles e para nós!
Amigo/a observe tudo o que você consegue ver e enxergar; ouça tudo o
que você consegue ouvir; sinta tudo o que você consegue sentir. Aqui existem

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115
muitas realidades diferentes. Na sua cultura não existe o que existe aqui. Muitas
realidades você não vai conseguir enxergar e nem sentir porque você não é
Tuyuka. Nem eu que sou Tuyuka não entendo tudo. A cultura é maior que a nossa
compreensão! Quando estamos dentro de outras culturas muitas realidades nos
escapam e ficamos confusos, vemos o que não era para ser visto, etc. Outras
vezes desejamos ver o que não existe. Nem tudo cabe na nossa cabeça e no
nosso coração. Por isso, posso lhe dizer que a cultura revela muitos aspectos para
uns e esconde muitos aspectos para outros.
Amigo/a, nós já estamos na aldeia! Aqui moram os meus irmãos e
parentes. Faz muito tempo que eles moram aqui. Já antes do meu nascimento
estavam aqui. Os meus avôs construíram esta aldeia e todos os simbolismos que
a envolve. A natureza sustenta, protege, circunda, circula por baixo e por cima da
aldeia. A natureza já existe antes da existência de meus avôs. Por isso, os meus
avôs diziam que em cada parte da natureza estava presente a divindade que a
criou. Diante da crença da existência da divindade os meus avôs demonstravam
temor imenso! Este temor levava-os à veneração, respeito, cerimônias, ritos,
danças, cantos, benzimentos.
Esta aldeia guarda nossas histórias de vida, de luta, de conquista, derrota,
trabalho, felicidade, etc. Ao redor da aldeia e dentro das casas estão enterrados
os nossos avôs, irmãos, parentes. Para quem sabe ler a realidade da aldeia é uma
enciclopédia que oferece vários ensinamentos, significados, sentidos e diversas
práticas de vida. Os nossos antepassados servem de suportes para a vida
presente e futura. Eles se tornaram novamente terra que faz germinar a semente
da vida, vida humana, vida vegetal...
Como já lhe disse os meus irmãos e parentes estão descansando! É de
noite! De noite a maioria dorme. Quem dorme, também está trabalhando. Todo ser
vivo dorme, descansa... Fazem bem em dormir, pois, assim amanhã despertarão
para um novo dia e dispostos a viver melhor! Com a ação de despertar e levantar
eles estarão acordando para novos projetos de vida! Criando novos projetos para
suas vidas!

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116
Amigo/a, algumas realidades eu vou tentar explicar para você! Mais do que
entender as minhas explicações faça sua experiência desta realidade! Você
precisa mergulhar na realidade como na hora do banho, deixar que a água
envolva o seu ser. Deixa a cultura tuyuka molhar a vida, os seus projetos, os seus
sonhos, os seus problemas... Cada pessoa que toma banho no rio adquire uma
experiência diferente. Quando você entra no rio e mergulha, sente a água
envolvendo o seu ser e gerando nova sensação, externa e internamente. Assim,
também, é entrar numa cultura. Você entra de um modo e sai com outros!
Observe e entenda a realidade que está na sua frente, ao seu redor, em
cima e embaixo de você. Nem tudo é possível explicar. É necessário que cada
pessoa faça a sua experiência! A própria realidade lhe dará algumas respostas
para suas perguntas.
Aqui agora é de noite! A escuridão nos assusta, não é mesmo? Porém, a
escuridão proporciona e facilita para muitas atividades humanas. Quando a noite
vem traz junto de si a saudade da luz que vivenciamos ao longo do dia. Quando
estamos na luz não sentimos medo! A luz do dia nos dá segurança! A escuridão
nos traz medos, inseguranças, etc. Isso, até quando a pessoa não consegue
conviver com ela. A nossa vida, também, tem suas luzes e suas trevas. As duas
realidades co-existem no ser humano. Se não houvesse trevas como daríamos
valor às luzes de nossas vidas? Na ausência de uma das realidades outro entra
em cena na nossa história e nossa vida.
Aqui na aldeia você vê outro sentido da noite. Veja como é a noite vista de
uma aldeia indígena! É impressionante a beleza da noite vista de uma aldeia! Se
não houvesse a noite nós não teríamos o prazer de admirar as estrelas, ouvir as
cantorias de pássaros noturnos, grilos, sapos, macacos noturnos, etc. A noite não
significa apenas a ausência da luz. Ela é a reveladora da vida, sentido da
existência de muitos seres vivos!
Amigo/a, nós estudamos sobre muitas coisas nas escolas, mas uma aldeia
mostra que nós não sabemos tudo sobre a vida! Não conhecemos bem a nossa
vida e a de outros seres vivos! Veja que estamos na escuridão e estamos sem
lanterna para iluminar. Nem você nem eu nos preocupamos em comprar uma

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117
lanterna na cidade. Muito bem acostumados nas cidades pensamos que aqui na
aldeia seria da mesma maneira! Mas, não! Aqui é outro mundo! Esta aldeia por si
só desconstrói o nosso imaginário da cidade e os nossos
pensamentos/conhecimentos acadêmicos! Uma aldeia é uma academia! Ela forma
seus acadêmicos!
Amigo/a lembre-se que aqui nós estamos em outro ambiente, no meio de
outro povo que possui suas próprias categorias de pensamentos, discursos e
práticas. Os teóricos e pensadores não-indígenas [filósofos gregos, alemães...]
nunca passaram por aqui. Eles nem sabem que esta aldeia existe! Porém, para
nós, as suas idéias podem ajudar a ver/entender as diferenças que existem entre
as culturas, entender que esses espaços são outros espaços, espaços dos outros,
aqui vivem outros, com suas identidades. Aqui existem outras crenças e outras
espiritualidades, outras maneiras de relacionamento com o mundo e com os seres
vivos!
Amigo/a não fique assustado/a! Procure aprender algo comigo. Eu,
também, sou filho desta aldeia, porém muitas coisas mudaram por aqui. Eu não
sei de tudo. Vou lhe dizer uma coisa: há elementos daqui que, quem vem de fora
[como você], enxerga melhor do que quem está muito mergulhado na sua própria
cultura. Por isso, lhe digo que muitas coisas escapam em minha percepção. Você
é privilegiado/a porque poderá enxergar melhor alguns detalhes que eu acabo
esquecendo pelo fato de ser alguém desta cultura. Tanto eu e você somos
aprendizes!
Você e eu somos estranhos e aprendizes! Não nos assustemos, pois você
vai ficar pouco tempo comigo, nem vamos ter contato direto com o povo, pois você
está passeando comigo no nível espiritual, imaterial!
O nosso passeio vai durar apenas algumas horas, pois você não tem muito
tempo para ficar comigo, pois eu sei que você tem muita coisa para fazer. Por que
digo isso? Eu constantemente escuto estas expressões: estou ocupado; tenho
muita coisa para fazer; agora não vai dar; deixa para depois, etc. Parece-me que a
preocupação maior de muitas pessoas é ‘fazer’. Esta preocupação de ‘fazer, fazer
e fazer’ nos impede de ‘ser, ser e ser’ com os outros. Será que somente o que

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‘fazemos’ para nós e para os outros que nos dá sentido em nossa existência? Nós
temos dificuldades de ficar sem fazer nada! Sentimos desejo enorme em fazer as
coisas!
Vamos continuar no nível espiritual. Continuemos caminhando pela aldeia!
Você está vendo a noite como ela é vista de uma aldeia? Olhe para cima! Quantas
estrelas! De tamanhos diversos! De distâncias diferentes! Os meus avôs sabiam
os nomes de muitas estrelas e isto para eles era muito importante. A posição de
cada uma delas determinava o tempo, o tempo de fazer roça, de pescaria, de
caçada, anunciava o tempo de verão, tempo de chuva. O firmamento e as estrelas
situadas em diferentes distâncias, diferentes tamanhos e seus movimentos é um
livro aberto com muitas mensagens para quem sabe ler! Neste sentido eu sou
analfabeto, pois não fui educado na academia da aldeia! Os meus avôs, os meus
pais e meus parentes são mais conhecedores do que eu, neste campo! Uma
explicação interessante de meus pais era essa: quando aparece a lua nova, às
vezes, uma estrela está bem próxima da lua. A explicação que os meus pais me
davam era a de que duas pessoas humanas estavam para casar, logo, logo; outra
vez a estrela aparece um pouco afastada da lua. Neste caso, diziam que havia
pessoas que se amavam, mas não intensamente e que demoraria a sair o
casamento. A partir destas explicações dava para entender que o ser humano e
as constelações se comunicam. O cosmo possui suas linguagens com as quais se
comunicam com os seres humanos e seres vivos. Os humanos e as estrelas
interagem!
Olhe para cima e tente entender! Os meus avôs eram sábios e
conhecedores! Eram cientistas! Ninguém pode dizer que os índios não conhecem
nada. Conhecem e conhecem bem muitas coisas! Eles conheciam o mundo muito
melhor do que as novas gerações. É impossível entender tudo! Entendemos bem
pouco destas constelações e suas linguagens.
Eu vou dizer uma coisa para você e lembre-se disso: eu comparo as
culturas dos povos do mundo como constelações! Assim como quando olhamos
para cima e não conseguimos saber o que elas são, o que elas querem dizer para
si mesmas e para nós, assim acontece conosco diante das culturas. As culturas

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119
possuem seus próprios códigos, linguagens, símbolos, palavras, gestos,
movimentos... Todas as culturas têm algo a nos ensinar, porém nem sempre
entendemos o que elas querem nos ensinar. Muitos de nós não fomos
alfabetizados para entendê-las. Sentimos dificuldades para decodificar os códigos
culturais. Olhe para as estrelas e tente decodificar o que está dizendo para você.
Uma estrela sozinha diz uma coisa, a constelação tem outras mensagens. Os
meus avôs sabiam bem sobre isso. Só que muitos já morreram e levaram consigo
todas as sabedorias. Ma os meus parentes, ainda sabem bastante. Mas agora eu
não vou acordá-los. Eles estão descansando!
Está vendo que as estrelas estão distantes de nós? Assim são as culturas
humanas. São distantes de nós. Elas são brilhantes, não são? Acredito que assim
são as culturas. Elas brilham! Por que, queremos tirar/diminuir o seu brilho?
Acontece assim porque achamos que somente a nossa cultura é boa e tem brilho!
Vamos continuar o nosso passeio! Vamos parar novamente para ouvir a
harmonia sonora da noite. Escute! Escute! A aldeia descansa silenciosa. Está
vendo aqueles caminhos? Por eles as pessoas caminham durante o dia para
visitar os seus parentes, para ir tomar banho, etc. Mas agora o pessoal está
descansando. Eu conheço o ritmo daqui, pois já morei aqui. Dormir e descansar
são elementos importantes na vida de um ser humano.
Aqui na aldeia cada família tem o cachorro. Muitas vezes ele fica dentro da
casa, outras vezes fora. Quando está dentro de casa, gosta de ficar próximo ao
fogo para se esquentar. Muitos donos não gostam que ele fique dentro de casa,
por isso, o cachorro fica na entrada da porta principal. Por que fica ali? O cachorro
cuida da casa e de seus moradores. Ouvindo os passos de alguma pessoa ou
outro ser, o cachorro late para avisar ao seu dono que há gente passando ou outro
ser. É seu trabalho. Tendo um cachorro assim, ninguém vai dizer que o cachorro
não trabalha. Ele tem seu modo de colaborar com a vida humana. Os homens
dizem que o cachorro é o melhor amigo do homem! Realmente, o cachorro é
amigo do homem e da mulher. O homem e a mulher que nem sempre são amigos
dele!

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Ao falar desta amizade mal correspondida, dá-nos a impressão que
estamos tratando da relação entre Deus e o homem. Como? Eu quero dizer
assim: que Deus [de Jesus] é o melhor amigo do homem, mas o homem e mulher
é que, por vezes, não são bons amigos de Deus. O melhor amigo do homem, o
cachorro, não abandona o seu dono, mesmo apanhando de seu dono, mesmo
levando surras... A paciência, a persistência, a fidelidade do cachorro, parecem
atitudes de Deus da vida cristã: paciente, misericordioso, etc.
Amigo/a, vá observando e sentindo como é a minha aldeia! Como é de
noite não dá para ver mais coisas, mas dá para sentir. As energias vêm de todos
os lados, das florestas, das águas, do chão, o ar, dos sons... Estas energias que
sustentam a vida humana aqui na aldeia. Deixar-se tocar por estas energias, para
os Tuyuka, significa entrar numa relação de filhos com os seres divinos, avôs, pais
do mundo!
Aqui nós devemos aprender a viver acompanhando o ritmo de tudo o que
nos envolve. Não adianta ter pressa querendo que a noite passe logo. A noite tem
seu próprio ritmo. E, o dia chega quando tem que chegar, trazendo para a aldeia
todas forças novas.
Falando da importância de uma aldeia Tuyuka quero falar para você sobre
a importância dos anciãos e eles de noite meditam, pois para eles a noite é fonte
de inspiração, de previsão do dia seguinte, é o melhor momento para avaliar o que
se passou durante um dia. As coisas que já aconteceram, talvez nunca mais
voltem! Se voltarem, serão com formas e intensidades diferentes. Os
acontecimentos passados deixam muitas lições para as nossas vidas, lições que
podem servir para o dia de hoje e para os dias futuros. Eu acredito muito mesmo
que cada um de nós é aquilo que é e que tem por causa do passado. Os nossos
avôs construíram muitas riquezas e nós somos herdeiros delas.
Os anciãos ficam sentados no escuro. Na boca da noite eles se juntam na
casa de um dos anciãos para conversar. Enquanto conversam mascam o ipadu e
fumam o cigarro. São elementos que os leva para os outros níveis de
pensamentos sobre a vida humana. Eles conversam sobre funcionamento da
casa, os trabalhos das roças, a procriação, o andamento da aldeia, os

13 Pages 121-130

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13.1 Page 121

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121
relacionamentos com as pessoas de outras culturas, indígenas e não-indígenas.
Assim é que eles vão aprofundando o sentido da existência humana. As ações
tuyuka resultam de reflexões realizadas pelos anciãos.
Os anciãos com os seus sensos apurados refletem sobre o futuro de todos
os homens e as mulheres da aldeia. Os nossos anciãos são os nossos protetores,
seres divinos. A força divina atua através da presença de anciãos: fortes, às vezes
enfraquecidos, desgastados, encurvados pelo peso do trabalho, adoentados,
deitados na rede ou sentadinhos ao lado do fogo, meio sujos, olhando para baixo,
como se estivesse dizendo: estou para voltar à terra para tornar-me terra
novamente! Tornar-se terra para fazer frutificar os trabalhos dos filhos e netos!
Os anciãos com as sabedorias adquiridas pelas experiências ao longo de
vários anos transitam pelos diversos mundos que circundam o ser humano. Eles
sobem no patamar de cima, descem no patamar de baixo, percorrem pelos quatro
cantos do universo, do sol nascente ao poente, do leste ao oeste. Os quatro
cantos simbolizam quatro portas. Por uma dessas portas entramos para
nascermos nesta vida e por uma delas sairemos para ir para outro mundo, essa
saída será a nossa morte. A vida é algo que veio trazida de fora e entregue ao
homem e a mulher. Por isso, durante a vida os anciãos com seus benzimentos
criam uma estabilidade humana dentro deste espaço a que eu me referia acima.
Quantas sabedorias carregam nossos anciãos! Cada ancião é uma
biblioteca, impossível de ser lida. De uma biblioteca só conseguimos ler algumas
obras, de preferência do nosso gosto. Assim são os nossos anciãos, deles só
conhecemos algumas coisas. Muitas coisas vão embora com eles quando eles
deixam de viver neste mundo. Quantas coisas nós já perdemos. Estas sabedorias
não são coisas que cavando os túmulos podemos trazê-las de volta para os
nossos dias. Todas estas sabedorias são bens imateriais, invisíveis. Por isso que
são importantes os rituais, as cerimônias de cantos e danças, pois através deles,
algumas pessoas recebem, por revelações, os saberes de nossos antepassados
[cantos, discursos, danças, ritmos, benzimentos...]. Mais do que isso, algumas
crianças, principalmente netas de sábios desde o momento do nascimento já são
preparadas. Também, os pais devem se cuidar bem de suas próprias vidas e da

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122
de criança, pois assim a criança, através dos sonhos receberá conhecimentos de
seus antepassados. Quando se tornar adulto será um pajé, benzedor, mestre de
canto e danças, etc. Desta maneira é muito importante a responsabilidade dos
pais sobre os seus filhos.
Você está compreendendo qual é o sentido do ancião na cultura tuyuka?
Um dia nós, também, tornaremos anciãos. Será que estamos nos preparando para
sermos anciãos sábios? Aqui na aldeia tornar-se ancião é tornar-se sábio,
conhecedor do mundo, da vida, do além-vida, etc. Tornar-se ancião é tornar-se
apaziguador, pessoa de equilíbrio, pessoa que benze para defender a vida. O
ancião-sábio-benzedor é salvador da vida, curador, mestre da vida. As práticas de
sua vida testemunham o valor de sua vida, vida das pessoas, vida de diferentes
povos. O ancião sábio não provoca brigas, mas é aquele promove a paciência,
paz, harmonia, equilíbrio, reconciliação.
Na cidade nós encontramos muitas pessoas novas querendo ensinar, mas
com pouca experiência de vida. Elas possuem muitos conhecimentos, teorias,
mas não a vivência! Seus ensinamentos, muitas vezes, não correspondem com
aquilo que ensinam e com aquilo que acreditam. Ensinam e transmitem conteúdos
que nem eles mesmos acreditam. Tais atitudes nos dão a impressão de que falar
e viver/praticar são realidades diferentes, que não se casam. Falando dessa
realidade lembro-me de quando Jesus chama atenção do povo frente aos
ensinamentos dos fariseus: “façam o que eles dizem, mas não façam o que eles
fazem”. Com isto Jesus queria dizer que as pregações eram boas, mas as práticas
eram contrárias às pregações.
Vamos continuar olhando a aldeia! Esta vendo essas casas? Enquanto os
nossos avôs transitam pelos mundos materiais e espirituais os mais novos
dormem, as mães dormem com os seus filhinhos, numa mesma rede. Outros
filhos dormem em suas redes armadas próximo dos pais. Os pais dão segurança
para os seus filhos. Perto dos pais, as crianças mesmo que durmam em outras
redes sentem-se seguras. Quantas importâncias têm os pais para a vida de seus
filhos! Eles dão segurança para os filhos. Talvez, precisaríamos continuar sendo
como crianças para sentirmos a importância de nossos pais, para sentirmos

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123
seguros com eles. Só que nós crescemos para tornarmos outros pais, dar
seguranças para outras gerações. O mundo precisa de adultos que dêem
segurança, equilíbrio, harmonia.
Amigo/a não pense que todos estão dormindo dentro destas casas. Os
anciãos dormem quando o dia já está amanhecendo. Eles sabem que para
alguém dormir bem, alguém precisa acompanhar e dar segurança. Quando falta
um ancião numa família, já existe um vazio, insegurança, medo, etc.
As nossas avós, deitadas em suas redes perto do fogo, não deixam o fogo
apagar, elas colocam a lenha. Assim, o fogo fica aceso noite inteira. O fogo
acalenta quem está ao seu redor e ilumina a casa. Na nossa vida nós precisamos
de pessoas que cuidem do fogo da nossa vida, a nossa vida precisa estar sempre
acesa e para isso precisa de lenha. A lenha simbolizaria as qualidades que
devemos estar cultivando para que a nossa vida continue animada, equilibrada e
harmoniosa. Os nossos amigos, parentes e tantos outros que estão ligados à
nossa pessoa são pessoas que acendem o fogo que está querendo se apagar.
Veja que para elas, o dormir não é tão importante neste estágio de vida. O
importante é servir, cuidar, não deixar que o fogo se apague. Por causa do
trabalho da avó os filhos e netos dormem tranqüilos.
Se entrássemos nas casas veríamos que muitos homens não estão nas
suas redes, eles não dormem de noite. Lembra que eu falei anteriormente que a
escuridão, também, proporciona e facilita para muitas atividades humanas? De
noite os homens saem para pesca e a caça. Os homens que vão pescar carregam
no seu íntimo o bem-estar da família, da comunidade, da vida. Enquanto suas
esposas e filhos dormem, eles estão nos rios, pescando. Os anciãos acompanham
o ritmo religioso da noite. Pois para eles e elas, novos saberes, inspirações,
revelações acontecem durante a noite. Os grandes sábios aproveitam destes
momentos para adquirirem conhecimentos. Eu aprendi que Jesus ia rezar de
noite, de madrugada. Para ele, era o melhor momento para entrar contato com o
Pai, com o projeto de vida, com a vida do povo... Assim, os homens que vão
pescar de noite relacionam-se profundamente com os seres protetores, divinos,
criadores de peixes e da caça, etc. Os pescadores fazem seus rituais, fumam e

13.4 Page 124

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124
espalham a fumaça para pedir para o ser divino dê uma boa pescaria. Cada
pescador pratica rituais que ele aprendeu de seus avôs que lhe proporcionam
bons êxitos em suas atividades. A sabedoria humana é dar continuidade aos
saberes de nossos antepassados.
Como está o passeio? Você vá olhando este mundo indígena! Ele é
diferente do seu mundo. Pode ser que você esteja assustado/a. Tudo o que é
diferente nos assusta. Por isso, alguns homens e mulheres no encontro com
culturas diferentes querem eliminá-las para impor as suas culturas. Mas, nós
queremos adquirir novos conhecimentos, sabedorias. Os meus avôs adquiriam
tais riquezas através da meditação. É isso mesmo, meditação! A realidade está aí
para ensinar, para questionar, para colocar em dúvidas a própria existência
humana. Não foram somente os gregos que explicaram sobre os sentidos da vida.
Cada cultura possui seus sábios que explicam os sentidos que o mundo apresenta
para os homens e as mulheres. Em todas as culturas existiram homens e
mulheres que sabiam responder aos questionamentos da vida!
Vamos continuando o nosso passeio! Fora de casa o mundo, o universo
cobre as aldeias. As estrelas, cada uma delas mais bonitas, mais próximas e mais
distantes, iluminam com suas luzes.
Vamos sair um pouco da aldeia e vamos para floresta. Ouça bem os sons
florestais. Os pássaros noturnos cantam, os macacos noturnos pulam e fazem
barulhos, os cantares dos grilos complementam a grande harmonia melódica da
natureza. Os sapos com os barulhos, finos e grossos, anunciam como está o
tempo. Todos eles, partes da natureza, querem informar para o ser humano como
anda a vida. Querem informar como será o dia de amanhã, se será dia de alegria
e tristeza, se será dia de saúde ou de doença... Mas para aprender estas lições só
andando de noite. Os mais velhos ensinam para os seus filhos e netos o que cada
barulho, cada cantar quer dizer para o homem.
Mas você não vai entender muita coisa desse mundo indígena, pois ele é
outro mundo. Este aprendizado é um processo que dura vida toda. Nós indígenas,
muito cedo, recebemos as explicações de nossos pais, sobre cada cantar dos
pássaros, sons de grilos, de macacos, de sapos... Apesar de começarmos cedo

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esta aprendizagem não sabemos quase nada. Precisamos estar sempre
aprendendo a conviver com o mundo. Se soubermos decodificar os cantos, sons,
barulhos, assobios eles nos ajudam muito a viver melhor a nossa vida pessoal e
comunitária. O nosso ser indígena baseia-se nestas realidades, nesses contatos,
nesse ouvir e interpretar a natureza. Nós somos irmãos desta natureza. Os nossos
avôs através do benzimento nós tornaram irmãos dos pássaros, das florestas, dos
insetos, dos peixes... De modo especial, pelo benzimento, que eles pediram que a
natureza nos respeitasse, não causasse mal, pois nós, também, somos da
natureza.
Continue ouvindo os barulhos noturnos. Tem muitos sons que nos
agradam, mas outros nos assustam. É a vida da natureza! Quem sabe se nós,
também, não causamos medo para ela? Acredito que nós somos mais
destruidores da natureza do que ela contra nós. Para os meus avôs a natureza é
fonte de vida.
Mas vamos continuar com o nosso passeio! Está vendo aquelas nuvens?
Elas anunciam o tempo para que o homem se previna. Está vendo que as nuvens
estão muito escuras? Com certeza vai chover. Os homens que estão pescando se
não quiserem pegar a chuva irão procurar folhas de sororoca para cobrir. Muitos
não se cobrem, pois dizem que é melhor pescar durante a chuva. Está
percebendo que aquilo que assusta a um, para outro é bem-vindo? Meu pai,
também gostava de pescar de noite, debaixo da chuva.
Diante da natureza que preanuncia certos tempos, o homem vai tomando
suas próprias decisões diante da natureza. O barulho do trovão, barulho forte ou
fraco, próximo ou distante, anuncia o andamento do tempo. O homem que
conhece, sabe o que ele deve fazer. Ele é responsável pelas suas decisões. Por
que o homem passa a noite inteira na pescaria? Para dar a comida para a família
e para os seus irmãos. É isso que dá sentido a sua vida!
Você quer saber mais alguma coisa? Todos estes cantares, barulhos, são
acompanhados por aqueles que ficaram em casa. A mulher se preocupa com o
marido que está no rio pescando. Muitas vezes, durante a noite ela acorda os
seus filhos e lhes diz: vai chover! O vosso pai vai pegar chuva! O coração da

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esposa está em casa, acompanhando os seus filhos, mas está, também,
acompanhando o marido que está na pescaria. Também o coração de marido,
voltado para a pescaria, está presente em casa, com a sua esposa e seus filhos.
Ele está lá porque quer o bem da família. Quer trazer comida para eles.
A noite é uma passagem. Passa rápido. Para quem está pescando, mal
começa pescar os sapos, os grilos, os pássaros cantam em novas tonalidades
anunciando que já está chegando a madrugada. As mulheres que ficaram em
casa, também, já distinguem estas novas tonalidades. A natureza transmite para o
ser humano a sua sabedoria, mas nem sempre sabemos aproveitá-la.
Também o galo das aldeias, como parte da natureza, já sente que é hora
de anunciar que a madrugada chegou. Os galos mais exagerados começam a
cantar às duas horas da madrugada, daí para frente canta a cada hora e depois
cada meia hora e depois todo momento. O cantar do galo é responsável para dar
início aos trabalhos das pessoas. A noite já vai passando e vai chegando o dia,
novo dia! A nossa vida é assim mesmo! Cada dia nós recomeçamos as mesmas
coisas, mas podemos fazer de modo diferente. Algumas escuridões que
passamos durante um dia, elas ficam para trás. Cada dia deve ser vivido
intensamente! Pois existe um único dia na nossa vida, isto é, um único dia por vez!
Pouco a pouco as pessoas vão acordando, levantando de suas redes, vão
tomar banho. Segundo os ensinamentos de nossos avôs o banho é fonte da
força/energia! A água fortalece o físico humano. Os jovens e as jovens devem
tomar banho cedo, pois eles estão na fase de aquisição das forças.
A água dá vida a todos os seres vivos. Os peixes que comemos dependem
d’água para viverem e darem vida para nós. Existem outros seres vivos visíveis e
invisíveis que andam dentro d’água.
O nosso contato com a água nos transforma, dá nova sensação.
Geralmente, nós nos mergulhamos na água, somos envolvidos pela água. A água
que nos envolve e o frio que penetra em nosso ser criam novas energias.
O banho da madrugada é diferente de outros banhos, possui outra energia.
Em cada hora do dia água que banhamos, nos dá novo sentido. Cada pessoa
experimenta estes sentidos.

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Assim, nas aldeias tuyuka, muito cedo, ainda, de madrugada se ouve vozes
e barulhos de homens e mulheres que começam a trabalhar.
A escuridão, ainda nos envolve. Somente os fogos e suas labaredas
iluminam algumas partes da casa. Em algumas casas, hoje, já existem as
lamparinas que alumiam a casa.
Mas a escuridão mostra para nós que na ausência da luz é ela que manda.
Mas a escuridão sabe que sua força é passageira, logo virá a luz do dia que
dominará as trevas.
Mesmo sendo passageira, a escuridão, causa medo para as pessoas. A
escuridão causa insegurança. Na escuridão nós tememos até dos pequenos
barulhos dentro e fora de casa. Na escuridão até ficamos com medo de andar
sozinhos.
Mas na medida em que o homem e a mulher vão compreendendo os
diversos sentidos que a noite e a escuridão nos proporcionam, eles deixam de
temer.
É durante a noite que muitos vão para pescaria e retornando da pescaria
trazendo algo para a comida do dia seguinte. Em algumas noites, eles também
não pegam nada.
A natureza oferece muitas coisas para o ser humano, mas em outros
momentos ela própria priva daquilo que o homem busca. O pescador não se
revolta com a natureza só porque naquela noite ou naquele não pegou nada. Ele
sabe que cada dia é diferente. Há noite ou dia que ele pega bastante peixe e outra
noite ou dia, não pega nada, mas aceita como algo normal de sua vida. Ele sabe e
a sua família, também, sabe do esforço feito.
As mulheres começam a fazer fogo, descem para o porto para o banho,
buscando água para preparar o mingau, cozinhar a quinhapira, cozinhar peixe,
fazer beiju.
As crianças choram, pois descobrem que os seus pais não estão mais com
elas nas redes.

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Estes movimentos, feitos cotidianamente expressam o sentido permanente
e renovado de dar sentido à vida humana. Buscam responder às necessidades
vitais do ser humano.
O homem que deixa de dormir de noite e passa a noite inteira pescando,
facheando em busca de peixe e caça, está indo além de suas próprias
necessidades, vai ao encontro das necessidades de sua família, de sua
comunidade, de seus parentes. O sacrifício de não dormir uma noite é
recompensada pela alegria de sua família do dia seguinte, alegria dos membros
da comunidade ao comer o peixe que o homem pescou.
O peixe pescado pelo homem se complementa com o beiju, o mingau, a
farinha e a quinhapira que a mulher prepara.
O sacrifício, a alegria, a esperança que perpassam em vários momentos da
vida constituem os fundamentos da existência humana.
A busca contínua do bem para a vida humana é o desejo do ser humano.
Amigo/a já chegou o dia! Vamos voltar para o nosso lugar porque para nós,
também, está começando novo dia. Espero que tenha gostado deste rápido
passeio. Teremos oportunidades para voltarmos mais vezes para a aldeia! Aí,
continuaremos visitando os outros aspectos da vida da minha aldeia!

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FIGURA: COMUNIDADE JUTICA – ALTO UAUPÉS
ARQUIVO: REZENDE, Justino, 2008
PESCARIA

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Iniciando a conversa
Esta etnografia foi produzida em Janeiro-Fevereiro/2008 quando eu morava em
Iauareté/AM. Ela mostra que as memórias presentes na minha vida são
importantes para mim porque fortalecem a minha vida e as minhas identidades
que são continuamente construídas, reconstruídas. Esta etnografia apresenta
inúmeros ensinamentos de uma prática cultural, a pescaria: a preparação do
espírito pessoal para pescaria, preparação de instrumentos da pesca; viagens,
alimentação, busca de iscas, colocação de armadilhas (distâncias e efeitos); como
o pai trata seu filho (criança) na canoa; como proteger o filho para não pegar a
chuva; assar peixe para alimentar; espera por parte de quem ficou em casa;
partilha da comida entre os moradores da comunidade; utilização das ervas para
uma boa pescaria; conhecimentos das florestas, igarapés; conhecimentos de
lugares de pesca, profundidade etc.
Amigo! Amiga! Vocês são meus convidados especiais para conhecer mais
algumas realidades muito importantes para mim e para os povos indígenas da
região do alto Rio Negro – AM. Tenho certeza que vocês vão gostar! E, quem
sabe? Vão amar! E, contarão para outros que, ainda não tiveram possibilidades de
entrar em contato com outros povos.
Aquilo que nós aprendemos devemos procurar passar adiante. Digo assim,
porque o que aprendemos junto com outros se torna algo que contribui para o bem
de todos. Arrisco-me em afirmar: é patrimônio da comunidade, da sociedade, da
humanidade! Fazendo assim estaremos contribuindo para que mais pessoas
conheçam as riquezas existentes em nós e nas comunidades! Muitas realidades
são desconhecidas por outros porque temos dificuldades de contar nossos
saberes.
Neste momento em que estou começando contar algumas realidades do
povo do qual faço parte (Tuyuka) os meus avôs Tuyuka devem estar sorrindo de
alegria! Devem estar olhando para mim porque eu vou lhes contar o que eles
construíram em suas vidas, nos espaços e nos tempos de suas existências, como
seres humanos.
O que eu lhes contar é sobre a PESCARIA! Antes de começar contar sobre
esta atividade eu quero lhes dizer que uma vez eu escrevi texto intitulado: um dia

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de minha infância! Nele, eu mostrava como era um dia de vida durante a minha
infância e que agora está na minha memória. Eu gostei muito de ter escrito aquele
texto. As memórias presentes na minha vida são importantes para mim porque
fortalecem a minha vida e as minhas identidades que são continuamente
construídas, reconstruídas, rasuradas...
Por diversos lugares e espaços pelos quais andei as minhas memórias
andaram, correram, alegravam, entristeceram, lutaram, resistiram, se defenderam
e conquistaram comigo!
As minhas memórias são vidas que correm nas minhas veias! São forças
que me conduzem a outros tempos, ultrapassando os limites da minha
corporeidade, materialidade... Elas são espiritualidades! Elas me dizem: por que
você não nos mostra aos outros? Nós somos suas riquezas! Quando você não
nos espalha pelo mundo, os outros sempre vão dizer que os povos indígenas são
pobres!
Por muito tempo não as obedeci! Fiz de conta que eu não estava nem aí
para elas! Elas se calavam e voltavam a falar! Os silêncios delas são mais fortes
do que vozes faladas. Andam gritando em meu ser, na minha mente, coração,
pensamentos, inteligência, saberes...! Em cada batida do coração as memórias
das histórias de meus pais e avôs emergem, submergem, desaparecem e
aparecem novamente! Dizem dentro de mim: nós queremos ser ouvidas,
valorizadas, utilizadas, pensadas, relidas, revisitadas, revividas por você e por seu
meio pelos outros!
A partir destas escutas e saudades que estou agora interagindo com elas!
Elas são presenças vivas e atuantes de meus pais, avôs e parentes dentro de
mim! Com eles eu me sinto forte!
Durante os quarenta e alguns anos após a minha infância estas memórias
já percorreram por inúmeros caminhos, desde aldeia até as grandes metrópoles
deste país [Brasil]! Sou um ser andarilho (nômade) pelo mundo e eu vi, ouvi,
aprendi, desaprendi, rejeitei, acolhi, dispensei, muitas realidades! O filtro da minha
história, da cultura tuyuka seleciona aquilo que mais me convém, de acordo com a
situação, região, momento histórico vivenciado.

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As memórias daqueles primeiros anos de vida acompanham em todos os
lugares! O alimento que fortalece as minhas identidades uma parte vem da cultura
tuyuka e outra parte vem de “outras” culturas. É assim que as minhas identidades
se deslizam por diversos espaços e tempos, espaços e tempos meus e dos
outros!
Quando os outros me reconhecem como índio tais memórias me dizem:
você é Tuyuka, diga para eles! As identidades são forças revitalizantes do ser
humano tuyuka, sou um terreno cultivável para eles! Em mim elas continuam
assumindo a corporeidade, materialidade e, neles eu me transformo num ser
imaterial, espiritual e imortal. Deste modo, elas são vozes que animam e
encorajam a continuidade/descontinuidade das minhas identidades.
Agora estou sentado na frente de um computador, mas me flagro
passeando na aldeia, no tempo chamado “muito tempo atrás”. Movimentando-me
entre o “muito tempo atrás” e o “tempo hoje” sou ciente de que sou um ser
humano construído e sendo reconstruído na história. Sou um ser em construção.
Sou, ao mesmo tempo, ser completo e incompleto, a cada momento. A cada
minuto a completude se torna a incompletude. O ser humano é um ser que
continuamente busca o melhor, mesmo que o dia de amanhã lhe mostre o
resultado contrário àquilo que ele esperava. Em meio a esses movimentos
constantes que, neste momento, a minha memória me conduz para a realidade
que eu quero partilhar com vocês!
Amigo! Amiga! As minhas histórias me chamam! Por favor, venham
caminhar dentro de minha história e ouça o que as memórias nos dizem. Ouçam o
que elas estão dizendo: olhe para nós! Olhe para suas histórias! Vamos reviver as
nossas histórias! Vocês ouviram? Penso que vocês ouviram, mas não
entenderam! Elas estão utilizando a língua tuyuka. Mas não se preocupem, pois
eu vou traduzir para que vocês entendam.
Amigo! Amiga! Venham passear comigo e com minhas memórias, agora!
Agora mesmo estarei entrando noutra época de minha vida! Vocês virão comigo
para ver como eu vivia!

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Vamos para a pescaria! Andando no mundo da pescaria vamos construir
uma vida! A minha infância foi uma etapa de vida cheia de práticas que me
ajudaram a construir um ser humano tuyuka. Dentre muitas ações que meu pai me
mostrou foi sobre a pescaria. Aqui eu vou contar apenas alguns momentos da
pescaria.
Vocês vêm comigo, andem comigo e conheçam a vida tuyuka! Hoje é
sexta-feira! Com certeza meu pai vai me dizer: meu filho, amanhã (sábado) nós
vamos pescar! Eu sei disso porque já conheço o meu pai. O dia de sábado é dia
da pescaria. Meu pai não pesca somente no dia de sábado, mas várias vezes por
semana. Porém, a pescaria no dia de sábado tem um sentido especial, pois é
preparação para o dia de domingo.
Amigo! Amiga! Toda vez que meu me fala: vamos pescar! Eu me encho de
alegria! A minha vontade é sempre acompanhá-lo. Ele que nem sempre me leva.
Eu vou lhes dizer o porquê!
Escute só! Quando eu era mais novo, quatro e cinco anos, meu pai não
queria me levar na pescaria noturna. Segundo ele, eu dormia muito cedo na
pescaria. Bastava chegar no porto e entrar na canoa que já estava cochilando. Os
meus cochilos balançavam a canoa. O meu pai dizia: você vai alagar a gente!
Deita aí e durma! Eu deitava na canoa e dormia! Não me interessava o frio da
canoa, mas o estar com o meu pai me dava um sentido de segurança. Eu me
sentia um filho e ele foi para mim um pai.
De fato, quando eu era criança eu fui muito chato! Quando ouvia o meu pai
dizer para minha mãe: hoje vou passear [significava sair para a pescaria]! Eu
ficava preocupado, ansioso e não dormia direito. Ficava vigiando e esperando a
hora que o meu pai iria levantar da rede para sair para pescaria. Eu via que o meu
pai levantava bem devagar para não fazer barulho e para que eu não o
percebesse se preparando para pescaria. Mas eu via! Esperava que ele juntasse o
material de pesca! E, quando ele seguia rumo a porta, eu chorava querendo ir com
o meu pai para a pescaria.
Ao ouvir o meu choro, minha mãe dizia: pare de chorar! Vou chamar o
duende [‘diabo’] para lhe levar! Ouvindo tal história eu ficava com medo e

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choravam bem baixinho, mas não parava de chorar. Assim o meu pai saía para a
pescaria. Mesmo parando de chorar, vendo que não havia mais jeito, eu ficava
esperando o meu pai voltar da pescaria.
Em algumas noites a minha mãe dizia para o meu pai: leva o seu filho para
a pescaria para que ele o acompanhe, aprenda a pescar, pois um dia ele vai se
casar e precisará sustentar a sua família! Minha mãe estava preocupada com o
meu futuro. Ela sabia que muitas coisas se aprendem vendo o que os pais fazem.
A melhor maneira de aprender é vendo, sentindo, amando, chorando, alegrando,
passando frio... aprende-se com a prática e não teorizando as práticas.
Algumas vezes o meu choro fazia o meu pai perder a sua paciência. Vendo
eu chorar durante sua saída para a pescaria, dizia: vá você, então, para a pescaria
e eu vou dormir! Depois eu soube o porquê do meu pai dizer isso. Os Tuyuka
acreditam que quando alguém chora na hora de sair para a pescaria está
estragando a pescaria! Segundo a crença tuyuka o choro de alguém acompanha o
pescador. Por isso, os reflexos do choro espantam os peixes.
Contudo, o meu pai era muito compreensivo comigo. Outras vezes, vendo-
me chorar ele dizia: vamos, pegue o seu remo! Eu pulava rapidamente da minha
rede e pegava o meu remo. Esfregava os meus olhos e estava pronto. E, seguia o
meu pai para o porto. Chegando ao porto meu pai dizia: não vá dormir, você quis
vir, tem que agüentar o sono e o frio! Mas ele sabia que eu não iria agüentar o
sono!
Depois de pouco tempo eu já ficava com sono. O sono sempre me atacava
com muita força. Eu ficava no banco de trás e cochilava, balançando a canoa.
Meu pai sempre dizia e repetia: não vai me alagar! Quando ele via que eu estava
balançando demais, ele parava a canoa para procurar a folha de sororoca
(bananeira do mato) na beira do rio. Às vezes entrava no mato, iluminando com a
lasca de turi acesa, para procurar a folha. Chegando de volta na canoa, ele forrava
com a folha e pedia para que eu deitasse e dormisse. Eu passava dormindo todo o
tempo da pescaria, era de noite! Eu não sabia pescar!
Enquanto eu dormia meu pai pescava! Agüentava o sono e o frio. Quando
chovia, pegava chuva. Mas ele me cobria bem. Pensando hoje, digo comigo:

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quanta coisa o meu pai fez para cuidar de mim e da família! Só meu pai fez isso
comigo! Eu era um filho para ele. Mesmo quando brigava comigo pedindo para
que eu não chorasse, ele estava querendo o meu bem: queria que eu ficasse em
casa, dormindo na rede! Eu não entendia isso! Naqueles momentos o que me
interessava mais era estar com o meu pai, independente de ser dia e noite.
Quando eu queria ir com ele para a pescaria, eu não ia para pescar, mas eu
queria ver o meu pai pescar, pegar peixes e colocar os peixes na canoa. Eu queria
ver os peixes que o meu pai pegava. O peixe na canoa era garantia de que
haveria comida no dia seguinte! Assim eu era! Só meu pai para me agüentar!
Vamos voltar para sexta-feira! Esqueci que estava contando outra história!
Eu já tenho seis anos de idade e já sei alguma coisa sobre a pescaria, mas tenho
que aprender muitas práticas, segredos... Meu pai já disse que amanhã, sábado,
sairemos para a pescaria! Agora já estamos vivendo a tarde de sexta-feira! Meu
pai está preparando materiais que ele usará na pescaria de amanhã [sábado]:
afiando anzóis, preparando caniço com linha de pesca, consertando o arco e
flecha. Meu pai, também tem uma espingarda, por isso, prepara os cartuchos com
chumbo e pólvora. Com a espingarda pode matar mutum, macaco, paca, cutia, se
eles aparecerem!
Durante a preparação dos materiais para a pescaria, meu pai me pede para
que eu fique perto dele para ajudá-lo e ver como se prepara o material de pesca.
Já estou aprendendo alguma coisa! É vendo e fazendo que vou aprendendo! Para
o meu pai um modo melhor para me ensinar é pedindo para que eu continue o seu
trabalho: afiar um anzol, passar breu na flecha etc. Eu digo para ele: eu não sei
fazer! Mas ele insiste para que eu faça e ele vai me orientar. Eu faço como ele vai
me orientando. No final o meu pai fala: o trabalho ficou bom! Mas depois é ele que
dá retoque final. O meu pai sabe que eu não domino o trabalho. Mas ele está me
iniciando! Depois de pronto ele me mostra o trabalho final e fala que assim que eu
devo fazer. Eu olho e digo: ficou bem feito! Como é que você fez? Eu não consigo
fazer isso? Quando digo isso o meu pai diz: você é criança, ainda! Um dia você vai
fazer melhor do que eu! Quando ele fala isso, fico muito feliz! Aí digo para o meu

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pai: outra vez vou ajudar de novo! O meu pai me responde: você sempre deve ver
como eu faço até aprender bem. Depois eu não farei mais. É você que vai fazer!
A prática educativa de meu pai é interessante! Enquanto estou continuando
o seu trabalho ele vai comer pedaço de beiju e tomar o mingau. Conversa com o
pessoal que chega em casa. Fala para eles que estou aprendendo. Volta e meia
aproxima-se de mim e pergunta: está ficando bom? Eu fico rindo, pois eu sei que
só ele pode dizer se está ficando bom ou não. Quando não acerto bem, ele pega
em minhas mãos e me mostra o jeito mais adequado de segurar os instrumentos
de trabalho. Depois de várias horas os instrumentos da pescaria estão prontos.
Hoje vou dormir [sexta-feira], mas já pensando no dia de amanhã [sábado].
O dia de sábado já amanheceu! Vou ao banho e quando volto do banho,
minha mãe me oferece uma cuia de mingau. Minha mãe me fala: toma bastante
mingau para não sentir fome cedo, pois hoje você e seu pai vão para a pescaria!
O meu pai é catequista da comunidade! Ele, todo dia pela manhã, toca o
sino da capela para dirigir as orações da comunidade. Eu, também vou para a
oração! Na capela, junto com os moradores, o meu pai canta, reza, lê a Bíblia e
faz explicações! É costume do meu pai e da comunidade. Meu pai é muito alegre
e mexe com todos. Os moradores o estimam muito.
O momento da oração já terminou. Agora vamos para casa do líder, pois lá
se reunirão os moradores para comer a quinhapira [comida...] e tomar mingau!
Saindo da capela todos vão para suas casas para buscar o material que será
colocado durante o momento da quinhapira: peixe, frutas, bebidas... Pouco a
pouco vão chegando à casa do líder e colocam os alimentos. Todos eles estão
alegres! Contam histórias e dão gargalhadas! É costume daqui! Geralmente, os
Tuyuka são bastante animados!
Os homens comem por primeiro e depois as mulheres. Enquanto os
homens estão se alimentando algumas mulheres ficam sentadas e outras
permanecem em pé, contam histórias e mexem com os homens. Cada gesto e
jeito da pessoa são motivos para achar graça! Da mesma forma agem os homens,
enquanto as mulheres estão se alimentando.

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Eu estou bem próximo da casa do líder, brincando com os colegas de
idade. De vez em quando corremos para dentro para ver qual o motivo de tantas
gargalhadas. Eu, ainda não participo do momento da quinhapira comunitária, pois
eu sou criança, ainda. Existe uma regra comum entre os Tuyuka que diz que uma
criança não pode participar da quinhapira comunitária, pois ao participar desse
momento a pessoa deve assumir o compromisso social com a comunidade.
Participando deste momento eu teria que estar participando com os membros da
comunidade em diversos momentos: trabalho comunitário, festas etc. O meu pai e
minha mãe já me disseram que eu, ainda não devo estar participando da
quinhapira com os adultos. Pela própria educação recebida eu me considero
criança e sou considerado criança, pelos meus pais e pela comunidade.
Agora já está chegando o final da quinhapira. Os homens combinam sobre
a pescaria do dia [sábado]. Todos os homens irão à pescaria. Cada um informa
em que parte do rio estará ocupando para a pescaria. Vejo que o líder começa a
despedir das pessoas, significa que a quinhapira está encerrada! E, cada família
volta para sua casa.
Meu pai e minha mãe já estão recolhendo o material que levaram para
quinhapria: panela de mingau, quinhapira, beiju. Eu, também vou ajudá-los! Meu
pai me chama e diz: pare de jogar, vamos para casa, pois daqui a pouco
estaremos saindo para pescaria! Ouvindo isso eu fico todo feliz! Vou voando para
dentro de casa!
Minha mãe, como sempre, chegando dentro da nossa casa já se prepara
para ir para roça. Minha mãe é bem apressada para ir para roça! Muda de roupa,
chama o seu cachorro e dá pedaços de beiju para que ele se alimente, pois terá
que ir com ela. O cachorro está um pouco sonolento! Ficou dormindo perto do
fogo! O cachorro gosta mais de sair com meu pai. Por isso, ele está com dúvidas.
Ele fica olhando para o meu pai! Com certeza ele já sabe que o meu pai não irá
para a roça. E, meu pai já viu que o cachorro está olhando para ele, por isso, diz:
você vai para roça! Ele parece que entendeu bem, pois balançou o rabo! E, deu
um sorriso! Mas a alegria maior dele é acompanhar o meu pai. Infelizmente, hoje,
o meu pai não vai levá-lo! Se fosse conosco ele atrapalharia a nossa pescaria,

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pois ele é bom caçador. Ao invés de pescar, se ele encontrasse a caça, o meu
teria que ficar correndo atrás dele para acompanhá-lo!
Minha mãe sabendo que eu vou com o meu pai para a pescaria, me chama
e recomenda para que eu não esqueça do beiju, farinha, sal, pimenta... Ela não
quer que eu passe fome. Vendo que eu não sei preparar, ainda, ela mesma acaba
preparando tudo. Enquanto isso meu pai junta o material da pesca. Meu pai é
demorado para preparar as coisas!
A minha mãe já está saindo para roça! E, o cachorro decidiu. Já saiu
correndo na frente dela. É bom que ele vá para a roça para espantar as cutias que
estão comendo a mandioca na roça.
Tendo arrumado tudo o meu pai me chama e diz: venha tomar mingau, pois
já vamos sair! Eu vou tomar mingau e já vamos para o porto. Chegando ao porto o
meu pai arruma as coisas na canoa e vamos embora! Estamos subindo o rio. Pela
frente encontraremos um trecho do rio encachoeirado. Temos que ir remando com
cuidado, com força e com jeito para evitar o alagamento. Em algumas cachoeiras
temos que sair para arrastar a canoa. Mas o meu pai já conhece todos os canais.
E, eu vou aprendendo com ele.
Na primeira cachoeira nós temos que arrastar a canoa fora d’água. Nesta
cachoeira está localizada uma pedra [dona do peixe]. Meu pai sempre que passa
pela pedra, me pede para colocar um pedaço de beiju em cima. Ele disse que se
colocarmos o beiju, ela nos dará peixes! Acredito que o meu avô já ensinava para
ele esta prática! São saberes de nossos ancestrais! Logo em seguida há outra
cachoeira. Nesta vamos sair e arrastar na beira do rio, mas na água.
O meu pai vai mostrando os canais perigosos e os canais pelos quais se
deve passar na cachoeira. Ao mesmo tempo ele olha para a beira do rio, mostra
os pássaros e diz os nomes. De vez em quando ouve um tipo de cantar de algum
pássaro e diz: o pássaro está dizendo que a nossa pescaria seria boa. Outras
vezes, ouvindo outro pássaro, diz: parece que alguém vai nos trazer alguma
notícia triste. O cantar da cigarra, hoje, indica que mais tarde deverá chegar em
nosso povoado um sábio. Depois de algum tempo o meu pai ouve o cantar do
tucano e diz: o tucano está dizendo que vai chover mais tarde!

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Toda essa sabedoria adquiriu com seus avôs. Sabendo interpretar as
diversas vozes presentes na natureza é mais fácil estabelecer algumas metas
para a nossa pescaria. As águas que correm, as florestas, os cantares de
pássaros, grilos, cigarras eram para o papai uma realidade que dialogava com ele.
Meu pai entendia a língua da natureza, por isso, ela se comunicava com o meu
pai!
Já passamos por todas as cachoeiras. Agora vamos remando com
tranqüilidade nestas águas bem transparentes. Meu pai pede para eu ficar atento
para enxergar o peixe em longa distância e profundidade. Meu pai não enxerga
bem, mas de perto ele enxerga melhor. E, ele é bom para flechar os peixes que se
encontram. Ele, também erra de vez em quando. Quando erra, ele ficando
achando graça, olhando para mim! Nessa hora eu fico sério, pois eu queria que
meu pai acertasse no peixe! Quando ele vê que eu fico bravo ele diz: agora é sua
vez de flechar! Eu digo: eu não sei flechar! Você que é bom!
Já estamos viajando durante uma hora. Meu pai matou apenas três jacundá
(tipo de peixe) com a flecha. Já o sol está chegando ao meio-dia. Por isso, o meu
pai diz: vamos parar e procurar minhocas. Com elas, o meu pai vai pescar o acará
(tipo de peixe). Agora estou sentindo que meu pai vai pegar mais peixes, pois ele
é bom pescador.
Vamos parar na beira do rio e vamos cavar as minhocas. Conseguimos as
minhocas! Meu pai conhece o terreno onde as minhocas existem e sabe em que
profundidade elas ficam. As minhocas pequenas ele deixa para que cresçam, pois
noutro momento servirão como nossas iscas. Meu pai possui muita agilidade para
pegar as minhocas, pois as minhocas debaixo da terra são rápidas e elas têm o
seu próprio caminho por onde elas se movimentam. Essas atividades fazem parte
da nossa educação tuyuka, são atividades que nos ajudam a viver.
Amigo! Amiga! Já conseguimos as minhocas. Vamos continuar subindo o
rio. Meu pai já está pegando o caniço e as minhocas. Pede para eu remar devagar
e sem barulho, pois ele vai pescar os peixes que nós iremos assar para almoçar.
Essas recomendações me ensinam que para pescar é preciso remar diferente e
favorecer um clima de pesca. Se remar com força e com barulho o peixe vai

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desconfiar que há alguém querendo matá-lo. O peixe é inteligente e conhece
quem está fora d’água e que ameaça a sua vida. Por isso, é necessário ter uma
espiritualidade de pesca: silêncio, equilíbrio, atenção, concentração, paciência e
busca de um lugar adequado etc.
Eu já estou começando ficar com forme. Mas o meu pai não tem pressa,
pois ele está pescando e já pegou alguns peixes. Desde que o conheço ele é
assim! Ele não contraria o tempo, o tempo parece ser dele. Na hora certa ele vai
parar e atender as nossas necessidades. Eu estou aprendendo com ele. Tem
coisas que eu percebo, mas não posso ficar perguntando toda hora. O que eu
preciso aprender é observar suas atitudes, seus gestos, seus movimentos, sua
concentração, sua alegria e sua realização. A educação-silenciosa é muito
importante, pois as falas muitas vezes não dizem o que se vê e o que se faz. Esse
é o modo de educar tuyuka.
Depois de algumas horas estamos chegando ao lugar que será o nosso
acampamento para esta noite. Eu já estou um pouco cansado de tanto sentar no
banco da canoa. Mas logo as dores passarão, pois agora vamos parar e deixar
alguns materiais nossos na nossa barraquinha. Vocês viram que numa canoa
pequena não dá para ficar levantando, pois podemos nos alagar. Nela nós
aprendemos a sentar, equilibrar, sentar e pescar. São diversos movimentos
humanos interagindo ao mesmo tempo. A educação tuyuka leva para a
capacidade de interação e coordenação de diferentes movimentos.
Chegamos e encostamos a canoa. Meu pai sobe logo para ver se a
barraquinha está em boas condições para o nosso abrigo. Mas nós não vamos
ficar dormindo na barraquinha tempo todo, pois a noite vai ser de pescaria. Este
ponto é apenas para deixar alguns materiais.
Meu pai está dizendo para eu limpar os peixes enquanto ele leva o material
para a barraquinha e vai fazer o fogo, ele é bom e rápido para fazer o fogo. Ele já
é prático e já fez isso muitas vezes. Às vezes ele me pede para fazer o fogo, mas
eu demoro bastante. Vendo isso, o meu pai diz: você nunca deve urinar no rio,
pois se faz isso, o fogo demora em acender.

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Agora já limpei os peixes, enfiei nos espetos que tirei de alguns galhos. Vou
colocar os espetos com os peixes na beira do fogo, mas não no fogo, porque o
meu pai sempre me diz que não se pode comer peixe queimado, isso tira algumas
sabedorias que aprendemos. Outro motivo é que quem come peixe ‘queimado’
fica falando de noite, tem pesadelos. Os meus pais que ensinaram isso!
Os peixes já estão ficando no ponto para serem comidos. O meu pai já está
trazendo beiju, pimenta verde, sal. Meu pai diz para colocar o peixe em cima do
remo. Vamos comendo os peixes e devemos alimentar bem, pois temos muitas
atividades pela parte da tarde. Acabando de comer vamos tomar chibé (farinha
com água). Feito isso estamos prontos para outra etapa importante da pescaria.
Agora vamos caminhar uma hora pela floresta. O meu pai disse que
naquele igarapé tem um tipo de peixe chamado sarapó e nós vamos precisar dele
para servir de isca. Chegando lá o meu pai começa bater no cipó venenoso
chamado timbó. Ao mesmo tempo em que ele joga timbó eu tenho que estar
pisando no barro para que o igarapé fique com água barrenta. Depois nós dois
vamos pegando os peixes que morrem sob o efeito do timbó. O líquido venenoso
do timbó passa com a velocidade da água do igarapé. Na medida em que
aumenta a distância perde sua força.
Agora vamos recolhendo os peixes que o timbó conseguiu matar. Alguns
tipos de peixes não morrem. Mas o sarapó que nós estamos buscando é fraco,
morre logo. No pedaço que jogamos timbó não havia muitos sarapós, mas
pegamos alguns e serão suficientes para as nossas iscas desta noite.
Vamos voltando para o nosso acampamento. Pois já são cinco horas da
tarde, é hora de começar arrumar as armadilhas para pegar peixes: traira, jandiá...
Meu pai sabe fazer isso muito bem. Na volta do igarapé onde fomos jogar timbó
para o acampamento o meu pai já cortou as varas que ele utilizará para
aremadilhas. Vejo que ele sabe escolher bem os tipos de varas que serão
importantes para fisgar o peixe. As varas não devem ser nem muito fortes nem
fracos demais. Só uma pessoa experiente sabe distinguir isso. Ele conhece a
importância do comprimento da vara e o efeito que ele produzirá.

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Chegamos no acampamento. Vamos tomar um pouco do chibé e vamos
embora. Vamos subindo o rio e colocando as armadilhas e anzóis. Na descida,
quando o sol se pôr começaremos colocar as iscas.
São sete horas da noite. Chegamos ao acampamento. Meu pai pede para
que eu asse alguns peixes para comer. Meu pai, geralmente, nessa hora não quer
mais jantar. Só prepara o cigarro e fica fumando, pensando no que vai acontecer
durante a noite de pescaria. Enquanto isso, eu asso dois peixes para me
alimentar.
Por volta das oito horas da noite meu pai me diz: vamos ver as armadilhas;
os anzóis já devem ter fisgado alguns peixes e em outros os peixes já devem ter
comido as iscas.
Vamos subindo e conferindo anzol por anzol. Alguns anzóis estão sem isca.
Meu pai vai comentando: com certeza foi camarão que comeu; ele é esperto para
comer só isca. Algumas armadilhas mostram sinais que movimentaram, mas não
fisgaram. Somente quatro armadilhas conseguiram fisgar traíras. Meu pai já está
satisfeito. Ele disse que se minha mãe fizer mujeca renderá bastante. Eu, também
concordo com ele!
Agora vamos esperar mais uma hora no final do ponto onde nós colocamos
as armadilhas. Meu pai vai facheando os peixes e vai matando alguns acarás.
Com eles vai aumentando o número de peixes.
Meu pai me diz: agora vamos parar um pouco; se você quiser deitar na
canoa, deite e durma! Neste momento ele começa pescar com caniço para pegar
peixe jandiá. Sabendo que ele vai demorar eu deito e durmo.
De repente meu pai diz: acorda! Vamos descer o rio novamente para
conferir os anzóis. Quando nós vamos conferindo os anzóis eu fico bem desperto,
pois cada anzol é esperança de encontrar mais um peixe. Quando o meu pai me
diz: este anzol não fisgou nada eu fico triste, mas a culpa não é do papai. Nesta
baixada vimos que foram fisgados mais cinco traíras.
Desta vez chegamos ao acampamento. São aproximadamente meia noite.
Pois assim diz meu olhando para as estrelas. Por isso iremos dormir um pouco
mais. Por volta das duas horas da manhã meu pai levanta e diz: vamos conferir de

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novo os anzóis! Eu continuo com sono, mas levanto e desço para o porto. Vamos
subindo e conferindo. Somente dois jandiás foram fisgados.
Chegamos no final e meu pai agora me diz que o tempo de espera vai ser
menor. Após vinte minutos aproximadamente meu pai diz: vamos descendo e
tirando as armadilhas, pois os peixes que conseguimos são suficientes. Outros
ficarão para outra vez. Já são suficientes para amanhã (domingo). Para nossa
sorte mais duas traíras foram fisgadas. Eu estou feliz com a pescaria! Só pelo fato
de estar com meu pai, acompanhando e vendo todas as suas técnicas eu fico
realizado.
Vamos parar um instante no nosso acampamento para pegar nossos
materiais. A madrugada vai surgindo. Já são por volta das quatro horas da manhã.
Assim me informa o meu pai. Ele diz isso pelo cantar dos pássaros noturnos. Nem
ele nem eu temos relógio. Os cantares dos sapos, grilos, macacos noturnos,
corujas, mutuns informam as horas.
Meu pai vai remando com força para chegarmos o mais cedo possível. Só
que aproximando da nossa comunidade teremos que passar pelas cachoeiras. Por
isso, temos que estar nas cachoeiras quando o dia estiver clareando. Mesmo se
estiver escuro, ainda, meu pai conhece os canais pelos quais passaremos sem
dificuldades. Passamos! Meu pai diz: agora não temos mais perigos é só remar.
Passando as cachoeiras o meu pai pede para eu limpar os peixes. Pelo
menos esta atividade já sei fazer. Quase chegando ao porto termino de limpar os
peixes. Meu pai me diz: agora enfie os peixes num cipó. Assim eu faço com muito
gosto!
Chegamos no porto. As minhas irmãzinhas estão no porto tomando banho.
Com certeza elas estavam esperando por nós. Elas vêm gritando até a canoa para
ver se pegamos alguns peixes. Meu pai pergunta pela mãe. Elas informam:
mamãe já tomou banho, fez mingau e o beiju. Está lá em casa esperando para
cozinhar os peixes.
Então meu pai pede para subir depressa levando os peixes para mamãe.
Meu pai observa: ela já deve estar impaciente conosco. Quando ele diz isso eu
digo ao papai: outros pescadores nem voltaram, ainda! Depois de entregar os

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peixes para mamãe volte logo para tomarmos banho; já que suas irmãzinhas
estão com o pedaço de sabão aproveitaremos para banharmos.
Hoje é domingo! Meu pai diz: não vá dormir antes do culto dominical!
Primeiro vamos rezar e comer quinhapira com os outros. Eu respondo: eu não vou
dormir o dia inteiro! Você sabe que eu já dormi durante a pescaria. Eu estou feliz
porque vejo que meu pai se preocupa comigo.
Tomamos um bom banho, tiramos o sono e subimos para casa. As minhas
irmãzinhas vão na frente correndo para chegar logo com mamãe. Minha mãe fica
muito feliz com a nossa volta. Depois que trocamos de roupa ela oferece cuia de
mingau para o papai e ele passa para mim. Minha mãe diz: por enquanto tomem o
mingau. Daqui a pouco vamos comer os peixes! Meu pai como sempre fica
sentado perto do fogo, de costa para o fogo.
Agora minha mãe já está experimentando se o peixe cozido está bom.
Significa que os peixes estão cozidos. Ela experimenta para ver se o sal e pimenta
estão no ponto. Lodo depois passa o caldo de peixe para meu pai e ele
experimenta e aprova. Ele diz: está muito gostoso!
Como conseguimos bastantes peixes ela não vai fazer mujeca (sopa de
peixe). Tira do fogo e coloca no chão. Minhas irmãzinhas querem avançar na
panela. Mamãe diz: fiquem distantes, pois está quente! Eu vou dar de comer, não
tenham pressa!
Agora sim, minha mãe vai colocar um prato de comida para o meu pai e ele
convida minha mãe e eu para comer do mesmo prato. Só as minhas irmãzinhas
vão receber outro prato. Minha mãe várias vezes enche o nosso prato. Quando ela
percebe que já estamos saciados oferece mingau para completar. Tomamos o
mingau e já estamos alimentados.
Meu pai é catequista da comunidade. Após a alimentação ele lava as mãos
e vai se arrumar colocando roupas melhores que ele tem. Ele sempre diz para
nós: aos domingos devemos procurar usar as melhores roupas que temos.
Quando a gente não se arruma ele costuma perguntar: vai para roça? Com isso
está dizendo para mudar de roupa.

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A capela já está arrumada. Alguns jovens que não foram na pescaria já
varreram e ornamentaram.
Meu pai indo à capela toca o primeiro sinal com o sino, depois o segundo e
o terceiro. O início da oração é por volta das nove horas da manhã. O meu pai
dirige as orações, o povo canta, meu pai lê a Palavra de Deus, faz explicações,
fazem preces e concluem. A duração é aproximadamente uma hora.
Terminada a oração todos os moradores dirigem-se à casa do líder da
comunidade. Lá cada família leva a comida, principalmente, os peixes que
pescaram. Todos os homens e mulheres se alimentam num clima de muita alegria
e descontração! Foi para este dia e para este momento que todos foram pescar. O
momento de refeição demora bastante, pois eles contam histórias, fatos
acontecidos na pescaria, sustos etc.
Após o término da alimentação ficam conversando, alguns fumam, uns
mexem com outros e só depois vão para suas casas. Neste momento é importante
acompanhar o ritmo da comunidade, pois nele se aprende muitas coisas.
Em seguida os jovens organizam algumas atividades esportivas. Muitos
moradores assistem e participam. Quem passou noite inteira pescando aproveita
para dormir. As mães dos jovens acompanham os jogos de seus filhos, acham
graça por qualquer movimento: queda, caretas, jeito de correr, jeito de falar... Para
que não passem sede elas colocam panelas de chibé. Os jovens quando cansam
tomam chibé voltam aos jogos. Alguns senhores e senhoras, também participam
dos jogos. Fazem isso só para provocar gargalhadas de quem está assistindo.
Vejam que a pescaria não tem finalidade em si mesma. Ela é um
componente comunitário importante que favorece a unidade do parentesco. Esse
sentido e outros que a PESCARIA promove entre os Tuyuka.
Amigo e amiga a prática de pescaria foi uma pequena amostra da vida
tuyuka. O pouquinho que você viu aqui socialize com outros seus amigos, amigas,
parentes!

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CRIANÇAS46 INDÍGENAS DE IAUARETÉ47: Fortalecimento das
identidades e diferenças!
Iniciando a conversa
Esta etnografia foi produzida nos dias 20-21/10/2008 para descrever sobre as
realidades das crianças, meninos e meninas, adolescentes e jovens de Iauareté.
Não trabalho com categoria cronológica, mas com simbologias, imaginários. Estas
crianças possuem nomes étnicos, nomes de benzimentos, sagrados, mitológicos.
Durante ou depois de algum tempo conforme as normas de cada etnia o benzedor
e os pais escolhem um nome para a criança. O próprio nome significa a sua vida,
projeto de vida, fundamentada numa das Casas de Transformação, no mito de
origem da humanidade e do mundo. Estas crianças possuem, também, nomes
ocidentais, nomes registrados nos cartórios, nas secretarias paroquiais. São
nomes de santos, nomes de artistas e atores de cinemas, novelas, etc. Hoje
fazem partes das culturas indígenas. São crianças de diferentes etnias, nasceram
em diferentes povoados e muitas delas hoje moram em Iauareté.
Esta etnografia mostra a complexidade de interpretações sobre as identidades
indígenas: indígenas que falam suas línguas étnicas e outras que não falam; só
falam a língua portuguesa; professores (as) que não falam a língua indígena no
espaço escolar; os pais que com os filhos só falam a língua portuguesa; fazer
afirmações dizendo que os jovens e as crianças não gostam de práticas culturais
indígenas etc. Elas não gostam porque não aprenderam a gostar de suas práticas.
46 O termo Crianças aqui está incluindo: crianças, adolescentes e jovens.
47 Iauareté é chamado de Cachoeira da Onça; outros escrevem: Cachoeiras das Onças. Iauareté é um distrito
do município de São Gabriel da Cachoeira/AM. Localiza-se na fronteira Brasil-Colômbia. Antropólogo
Geraldo Andrello chama Iauareté de Cidade do índio (cf. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro:
NUTI, 2006)

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Muitas noites e muitos dias se passaram desde que eu comecei a viver neste mundo. São
tempos, dias e noites que me proporcionam conhecimentos, aprendizagens, vivências,
dúvidas, medos, esperanças, perspectivas, alegrias, tristezas, criatividades, resistências,
lutas, silêncios, sonhos, imaginações, descobertas, decepções, reflexões, crescimentos...
A construção histórica da minha vida conduziu-me para Iauareté48 e me proporcionou a
convivência com os povos Tukano, Tuyuka, Desano, Piratapuia, Arapaso, Wanano,
Kubeu, Carapanã, Tariano, Miriti-tapuia, Hupda, Baré, Baniwa... Cada nome mencionado
esconde outro nome cheio de significados para os membros de cada etnia e aqui não me
arrisco em dizê-los.
Em outros tempos convivi com os povos não-indígenas49 em diferentes cidades e com
eles adquiri conhecimentos e saberes que me ajudam na construção de minha história e,
também, contribuí com os meus saberes para a construção de suas histórias.
Sobre muitas realidades culturais e humanas aprendi a olhar com os olhares não-
indígenas, para as outras com os olhares indígenas e para outras com os dois olhares.
No tempo atual estou novamente convivendo com os povos indígenas do rio Uaupés50 e
seus afluentes. Eu, também sou um deles, sou filho, neto, avô, sobrinho, tio etc, conforme
as considerações de parentesco construídas pelos nossos avôs. Assim, nós nos
consideramos! Continuamos construindo nossas identidades, semelhanças e diferenças.
Este é o pano de fundo para escrever sobre as crianças indígenas. Estas crianças são
meninos e meninas, adolescentes e jovens. Não trabalho com categoria cronológica, mas
com simbologias, imaginários.
Estas crianças possuem nomes étnicos, nomes de benzimentos, sagrados, mitológicos.
Durante ou depois de algum tempo conforme as normas de cada etnia o benzedor e os
pais escolhem um nome para a criança. O próprio nome significa a sua vida, projeto de
vida, fundamentada numa das Casas de Transformação, no mito de origem da
humanidade e do mundo. Estas crianças possuem, também, nomes ocidentais, nomes
registrados nos cartórios, nas secretarias paroquiais. São nomes de santos, nomes de
artistas e atores de cinemas, novelas, etc. Hoje fazem partes das culturas indígenas. São
crianças de diferentes etnias, nasceram em diferentes povoados e muitas delas hoje
moram em Iauareté.
As terras sobre as quais nos apoiamos, pisamos, andamos, deitamos, descansamos e
trabalhamos são cultivadas pelos corpos de nossos avôs e avós, pais e mães, irmãos e
irmãs, primos e primas, etc. Os adubos de nossas terras são os seus saberes, tradições,
músicas, ritmos, ornamentos, sonhos, discursos...
As chuvas que caem carregam as culturas indígenas de um lado para outro e penetram
em outras culturas sem que os membros de uma determinada etnia as percebam. Os
saberes de nossos antepassados evaporam e chovem sobre nós, continuamente,
48 Trabalhei em Iauareté nos seguintes anos: 1994-1996; 2004; 2007-2008.
49 Manaus/AM: 1980-1982; 1984-1986; 1990-1992; 2000-2003; São Paulo/SP: 1983; 1989; 1997-
1999; Campo Grande/MS: 2005-fev/2007).
50 Rio Uaupés é afluente do rio Negro/AM.

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periodicamente. Nós banhamos nas águas de conhecimentos criados pelos nossos avôs e
recriados por nós todos os dias, em cada situação da nossa vida.
Os perfumes das árvores, folhas, flores e frutos abrem nossas visões, audições,
melhoram nossas inteligências, sabedorias. Todos estes diferentes perfumes foram
aspirados e respirados por todas as pessoas que viveram nos tempos anteriores a nós.
Eles e elas explicavam e interpretavam os sentidos de cada perfume. Cada perfume e
cheiro anunciavam a existência de outros seres vivos, anunciavam o andamento daquele
dia. Os perfumes que são carregados pelos ventos de um lado para o outro levam consigo
as explicações humanas. Assim as culturas humanas circulam nos povoados de outros
povos, nas roças dos outros, nas caçadas, pescarias... Se não conseguimos senti-las de
olhos abertos, acordados, nós as sentimos em sonhos (cochilos) diurnos, vespertinos e
noturnos.
Os igarapés e rios que encontramos e vemos suas águas sempre em movimento,
também, são movimentos das culturas humanas. Nas águas estão presentes as
sabedorias humanas. As águas são carregadas dos benzimentos que os nossos avôs
fazem ao dar o banho pela primeira vez à criança recém-nascida, ao preparar o banho da
adolescente em sua primeira menstruação, benzimentos do banho preparado para os pais
após o nascimento da criança, ao preparar os banhos rituais, abluções (vômitos) para
purificação antes e depois das cerimônias, benzimentos para que não acabem os peixes,
para apaziguamentos dos seres aquáticos, etc. As águas que passam próximas às
comunidades indígenas são bentas pelas fórmulas milenares criados pelos nossos avôs
com inspirações divinas e mitológicas.
Os igarapés e rios são diversos caminhos pelos quais devemos percorrer continuamente.
Como a água vai seguindo, depressa e/ou às vezes, vagarosamente, também nós
devemos seguir o ritmo de nossas vidas conforme a situação que se nos apresenta
cotidianamente. Em alguns momentos podemos correr mais, outras vezes menos e outras
vezes, devemos ficar tranqüilos num mesmo lugar, até aparecer uma oportunidade de
seguirmos para frente. A água por onde passa contribui para a existência das vidas: ser
humano, peixes, insetos, pássaros, minhocas... A água encontra diversas brechas, furos,
paranás, igapós para cumprir com sua tarefa de regar a terra. A água também cria medo
para os seres vivos e para os humanos. Quem sabe se relacionar com ela faz um bom
aproveitamento.
As cachoeiras com suas pedras coloridas, com seus desenhos, contornos, lisuras,
durezas representam as histórias da humanidade, da cosmovisão construída por ser
humano. Cada cachoeira e pedra têm seus significados. Para quem sabe ler é um livro
que ensina, instrui, orienta a vida humana. As pedras dentro dos rios geram cachoeiras,
gera fumaça, espuma, correntezas, perigos, beleza, maravilhas... Elas são por si mesmas
histórias, mitologias, conteúdos dos discursos rituais, são casas das divindades, moradias
das cobras, dos peixes, caminhos dos seres vivos, guardiãs de vidas, etc.
As riquezas culturais estão espalhadas em cada pedaço da terra, na copa das árvores,
nos galhos, folhas, flores e raízes; nas correntezas das águas e nas pedras; os pássaros
que voam entre as árvores, que cantam, que comem dos frutos da natureza estão
ensinando algo importante para o ser humano. Mas é importante que os indígenas
descubram os seus ensinamentos e lhas dêem vidas, formas, cores, ritmos, danças,
músicas, discursos...

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As crianças que eu estou descrevendo neste escrito, vistas desta ótica, não são órfãs.
Elas têm seus pais, mães, avós, avôs, tios, tias, primos, primas... Assim não há como
dizer que a crianças indígenas são pobres. Elas são herdeiras de muitos saberes
construídos pelos nossos antepassados. Eles deixaram todas essas heranças para as
crianças, adolescentes, jovens e adultos de hoje. Eles não estudaram numa escola
ocidental, mas eles tiveram seus próprios educadores, sábios, sonhadores, criadores,
pensadores... Não devemos nos enganar pensando que a escola é que vai ensinar a viver
a uma pessoa frente às diversas realidades que a circunda. Ela colabora sim, mas a
escola não é tudo e nem responde tudo sobre a vida e necessidades humanas.
A sala de aula chamada de floresta, rio, cachoeira, caça, pesca, plantio, canoa, caminho
da roça, é aquela que apresenta outros conteúdos, outras didáticas, metodologias,
educadores, avaliações, conceitos. Conforme como nós nos relacionamos com diversas
realidades elas nos aprovam e outras vezes nos exigem que reaprendamos para conviver
de forma mais equilibrada e harmoniosa com elas.
Mais recentemente, muitos pais e mães estudaram por alguns anos na escola ocidental,
por isso, assimilaram diferentes ideais do que dos de seus antepassados. Com eles
repensaram os ideais indígenas, ressignificaram muitos conteúdos... Embora não
conseguissem alcançar os objetivos propostos pela escola, tais como, ser médicos; bons
empregos e dinheiro; deixar de ser indígenas; puderam traduzir/transmitir suas histórias e
histórias dos outros para seus filhos e filhas.
Um dia estes pais tiveram uma criança. Não sabiam se era menino ou menina, mas
sabiam que uma nova vida estava para nascer para este mundo. O avô da criança cuidou
bem da saúde de sua nora. Durante o tempo da gravidez pediram-lhe para que ele
benzesse a mãe e a criança. Os benzimentos da gravidez visam arrumar a posição do
bebê no ventre materno, proteger a vida da mãe, criança e do pai. Os benzimentos
protegem o útero materno e as forças da natureza e forças maléficas dos seres humanos
não impedirão a boa gestação da criança. O útero materno é uma Casa de
Transformação, é banco da vida, rio de leite, lago de leite, lugar sem males, espaço de
vida.
A criança foi crescendo, crescendo e crescendo. A vida da mãe foi a conduzindo pelos
diversos lugares e momentos da vida. Ela já começou a viver neste mundo através da
mãe. A mãe e a criança eram uma única pessoa, embora sendo duas pessoas distintas.
Um dia saiu do ventre de sua mãe. Momento antes do parto alguém da família pede ao
benzedor que faça os benzimentos para o lugar do parto, dentro ou fora de casa. Ele
benze protegendo a vida da criança e da mãe; apazigua as forças da natureza que podem
estranhar o nascimento de um novo ser, assustar-se e provocar doenças no pai, na mãe e
na criança. Durante o nascimento o ser humano é um ser estranho no mundo, causa
medo para os seres já viventes na natureza. A mãe que gera a criança produz um cheiro
estranho para os seres viventes, eles se sentem ameaçados e podem atacar a vida da
mãe e da criança. O benzedor por força dos benzimentos estabelece um diálogo entre o
ser humano e a natureza. Explica para a natureza que esta criança que está nascendo é
irmã dela, por isso, não pode fazer-lhes nenhum mal.
Todas as nossas etapas formativas são provisórias, temporárias, passageiras. Podemos
continuar crescendo em outros espaços, não no ventre de outras pessoas, mas na
interação com outras pessoas e sociedades.

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A criança recém-nascida precisa de um bom cuidado, carinho, paciência, amor... Ela
precisa de pessoas que tenham jeito para tomar conta dela. Ela é frágil, seus ossos são
ossos de crianças. Os ossos de um adulto precisam sustentar apoiar, carregar... Cada dia
que passa a criança começa criar forças, começa a se sentar, engatinhar, levantar, andar.
Aí não pára mais. Começa a seguir seus próprios passos e passos dos outros.
O olhar da criança cada dia adquire capacidades de distinção e reconhecimento de outras
realidades e pessoas. Tais capacidades geram nela as alegrias e tristezas, medos e
seguranças, choros e risos, desconfianças e aproximações. Começa a selecionar pessoas
que ela gosta e das que não gosta.
A criança que só mamava no peito da mãe, com o passar do tempo começa a tomar
mingau, comer peixe e carne. Os seus avôs-sábios benzem os alimentos para que
nenhum alimento prejudique o crescimento da criança, sua saúde, sua emoção,
sentimentos... À medida que cresce a criança conhece outros alimentos que vêm de
outras culturas: refrigerante, biscoitos, bolachas, pão, milhitos, pipocas, dindim, picolé,
bombons... Também para estes alimentos os parentes sábios benzem apaziguando as
forças maléficas presentes nestes alimentos.
A criança que não sabia dizer uma só palavra, mas só chorava para expressar seus
sentimentos pouco a pouco começa a emitir sons, palavras, frases... Em Iauareté a
maioria das pessoas fala a língua portuguesa. Muitos pais e mães, irmãos, parentes falam
só a língua portuguesa com as crianças.
O pai e a mãe pouco lhe ensinaram a língua indígena, mas somente a língua portuguesa.
Ela foi aprendendo tal língua. Também a televisão que ela ligava ensinava a língua
portuguesa, os DVDs, os filmes, as músicas todos falassem em língua portuguesa. Deste
modo a criança percebeu que a melhor língua era a língua portuguesa e pensava que o
seu pai e mãe falavam somente a língua portuguesa. Mas como toda criança é esperta ela
percebia que com outras pessoas os seus pais falavam outra língua. Ela ficava olhando o
seu pai e sua mãe falar.
A criança foi criando consciência de que ela não era indígena. Os seus brinquedos eram
objetos fabricados nas cidades e nada tinham a ver com as realidades indígenas. Estas e
outras realidades reforçaram mais e mais o sentimento de que ela não era indígena.
A criança foi crescendo e convivendo com outras crianças. Ela percebeu que também
outras crianças de sua idade brincavam dos mesmos brinquedos e falavam a mesma
língua portuguesa.
A criança crescia e um dia os pais lhe matricularam numa escola infantil. No primeiro dia
do ano letivo, sua mãe a acordou bem cedo para levá-la para o banho matutino no rio.
Voltando do banho vestiu-a com roupas, colocou o talco, perfume e um sapatinho. Depois
chamou a criança para tomar café com leite e pão. Terminado o café, pegou a mochila
que havia comprado para este momento importante para a vida da criança: começar a
estudar. Na mochila colocou um caderninho, um lápis, borracha, um pedaço de pão, uma
lata de coca-cola... Lá se foi criança indígena para o primeiro dia de aula, chorava para
ficar em casa, mas a irmã mais velha dela foi conduzindo pegando em suas mãos.
Na sala de aula encontrou uma professora indígena que falava apenas a língua
portuguesa. Assim mais uma realidade fortalecia a sua identidade não-indígena. Na sala
de aula a criança olhava para a professora e para si mesma. E, pensava consigo:

16 Pages 151-160

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professora e eu somos indígenas, por que não falamos a língua indígena? Ela mesma
tirou a conclusão: a nossa língua indígena não deve ser importante para a vida. Assim ela
foi construindo várias perguntas que ela não respondeu.
Ela continuou aprendendo o que a professora ensinava, cantava os cantos que a
professora ensinava, ouvia as histórias que a professora narrava. Os conteúdos da
aprendizagem, os cantos e histórias nada tinham a ver com as realidades indígenas.
A criança imaginava que os povos indígenas não tivessem cantos, histórias... Pensava
que não narrassem suas histórias, histórias de seus avôs, histórias de suas florestas, rios,
cachoeiras, lagos, igarapés, dos curupiras, onças, macacos, papagaios, araras, cutias,
antas... E, pensava até mesmo que não tivessem histórias, pensava que não possuíssem
conteúdos próprios para ensinar para os alunos, pois ela via que quando a professora
queria ensinar pegava o livro e lia os conteúdos de livros vindos de fora da sua cultura
indígena.
Nesse ritmo ela crescia, foi passando de uma série para outra na sua escola. Cada ano
ela crescia e tornava-se adolescente, menina e menino. Nesse tempo já aprendeu a falar
algo em sua língua indígena. Mas ela, também percebia que os jovens de sua idade
falavam mais a língua portuguesa do que a indígena.
De algum tempo para cá a escola onde estes meninos e meninas estudam simpatizou-se
pela idéia de construir uma escola indígena, escola diferenciada, etc. Tal idéia mexeu
muito com a mentalidade estudantil. Todas às vezes que falavam da escola indígena
entendia-se como retorno ao passado, voltar a andar só de tanga, não usar roupas,
sapatos, perfumes, não comer arroz, macarrão, etc. Estes jovens perceberam que não
somente eles pensavam assim, mas os pais, mães, professores, professoras, também
pensavam assim.
Entre as diversas discordâncias e concordâncias entre os pais e professores crescia
gradualmente a tendência para o fortalecimento e promoção da escola indígena como
espaço para a aprendizagem das línguas indígenas (falar e escrever), artesanatos como
expressões das riquezas culturais, instrumentos musicais como símbolos da alegria,
veneração, reverência ao mundo, etc.
Os indígenas mais velhos quase sempre afirmavam que os jovens não queriam saber de
valorizar as práticas culturais de suas etnias. Mas como se pode avaliar da negação das
práticas culturais indígenas por parte dos jovens se os mais velhos não lhes ensinam? Os
jovens se questionavam: como é que os nossos pais nos tratam assim? Como é que nós
podemos praticar o que nós não aprendemos?
Os jovens mesmo mantendo seus silêncios diante das provocações dos mais velhos,
sentiam que eles possuíam capacidades e potencialidades para aprenderem o que lhes
ensinassem.
O ano de 2008 foi um ano especial. Na semana dos povos indígenas, em abril, a escola
onde estes meninos e meninas estudam construiu uma programação para a
aprendizagem de algumas práticas culturais, mas de forma festiva, cerimonial, ritual. A
escola envolveu os pais, as lideranças, os sábios, cantantes, dançarinos, ritmistas,
narradores de histórias, professores e alunos.

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152
Na semana que antecedia muitos meninos e meninas, rapazes e moças, senhores e
senhoras já movimentavam o ambiente escolar, no auditório, no ginásio poliesportivo e no
ambiente onde seriam as apresentações oficiais. Os velhos (as), mestres de danças e
cantos, ensinavam aos jovens os cantos, ritmos, a utilização dos instrumentos, as pinturas
corporais, os modos de cumprimentar as pessoas, modos de preparar e oferecer o caxiri
(bebida fermentada).
Os preparativos eram feitos por etnias. Os mais velhos sentiam-se valorizados diante dos
jovens interessados para aprender seus ensinamentos. Os estudantes queriam aprender
bem, pois as apresentações seriam feitos diante do público formado de diferentes etnias.
Nenhuma etnia imaginava fazer uma apresentação superficial, que demonstrasse que os
membros de sua etnia não eram capazes apresentar bem os seus cantos, danças, uso de
instrumentos musicais, tipos de pinturas, ornamentos, ritmos, discursos, etc. Cada detalhe
tinha que ser cuidadosamente bem preparado.
Algumas apresentações foram feitas por grupos (séries) de estudos, não por etnias.
Todas estas variedades de apresentações motivavam para que tudo saísse perfeito.
Muitos grupos apresentaram as histórias e lendas indígenas em forma de teatros,
dramatização... Cada professor e professora procuraram trabalhar as riquezas das
culturas indígenas locais. Nessas apresentações muitos recontaram histórias e lendas que
há décadas não se ouvia mais nesta região. Esta realidade mostra que muitas histórias,
lendas, práticas culturais mantêm-se silenciadas, mas continuam vivas, dinâmicas,
resistentes e, reaparecem para fortalecer as identidades indígenas.
Nesse palco de afirmação das identidades étnicas apareceu uma nova realidade, também,
de afirmação das identidades: filhos de pais não-indígenas. Em Iauareté, existem muitas
mulheres que têm filhos de homens não-indígenas. Por isso, nesse tipo de espaço
cultural, de afirmação de identidades e diferenças étnicas, tais jovens são vistos como
não-indígenas, pois aqui nesta região quem determina a pertença étnica é o pai. Alguns
jovens superando tal critério de pertencimento entravam nas etnias das mães, e
participavam ativamente com os outros. Outros que não conseguiam, também
participaram do evento, apresentavam suas coreografias com músicas ocidentais, com
seus ritmos, letras...
O público era grande. Adultos, jovens, adolescentes, crianças, crianças de colo, mães
grávidas, a partir das cinco horas da tarde esperavam ansiosos para ver as entradas das
pessoas na quadra poliesportiva. Os artistas de cada noite não decepcionavam ao
público. Apareciam todos bem ornamentados, com cocares, pinturas corporais [corpo,
rosto], saias feitas com fibras de buriti; surgiam tocando instrumentos: cariço, chocalhos,
buzina, cabeça de veado, mawaco, flautinhas, cumprimentavam ao público com fórmulas
étnicas, rituais, cerimoniais, etc.
Os jovens nestes momentos contrariando aos discursos de adultos de que os jovens não
gostavam das culturas indígenas, se mostravam mais animados, envolvidos com o
movimento e momento que estavam vivendo. Cada jovem desde cedo já circulava
próximo ao lugar de apresentações. Muitos tocavam algum instrumento musical.
Pela tarde já apareciam pintados. Alguns corriam em grupos. As meninas andavam felizes
com seus ornamentos para serem as damas nas danças rituais e outras para serem
acolhedoras e, para oferecer o caxiri. As professoras e os professores, também se
empenhavam para mostrar para os jovens como valorizar as suas práticas culturais. Os
pais e mães se enchiam de orgulho, pois viam que seus filhos e filhas amavam as danças

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indígenas. Eram visíveis rostos alegres e sorridentes, sinais de aprovação de tudo o que
estava sendo realizado.
Cada uma ou duas etnias haviam ficado como responsáveis para preparar e oferecer o
caxiri para os dançarinos e para o público. Para que a festa, danças, ritmos, vozes,
inspirações saíssem bem era importante ter a bebida caxiri. Os jovens estudantes eram
protagonistas de tudo isso. Vinham chegando com panelas de caxiri na cabeça. Para
algumas jovens as suas mães acompanhavam, instruindo sobre como se deve oferecer o
caxiri, como se deve comportar perante os membros de outras etnias, ensinando as
considerações de parentesco, etc. Recebidas as instruções as jovens e as professoras
ofereciam o caxiri com alegria e com orgulho.
A festa é um espaço educativo importante para os indígenas. Na festa é que os valores
aprendidos no cotidiano aparecem melhor. Cada família procura fazer o melhor para
mostrar a qualidade de sua aprendizagem étnica. Na festa se aprende a acolher as
pessoas de outras comunidades, praticam o uso de considerações de parentesco e
étnicos. Aprende-se a fazer pinturas corporais, cantos, danças, rituais, cerimônias,
discursos. Na festa se aprende a diferenciar as diversas práticas e diversas
personalidades.
Alguns adultos davam apoio para os cantos, ritmos e danças. Houve uma interação de
pessoas com uma finalidade principal: mostrar danças, ritmos, cantos étnicos aos seus
parentes. Os cantores e dançarinos apresentavam muito bem, animados, felizes e se
sentiam orgulhosos em fazer o que faziam.
O público assistia boquiaberto frente às maravilhas que seus filhos e filhas apresentavam.
Muitas senhoras e senhores diziam: assim que se fazia no passado; havia muita alegria;
muito respeito. As saudades batiam fortes em seus peitos, corações e mentalidades.
Algumas pessoas pareciam chorar de tantas emoções e saudades. Foram os momentos
para reviver o passado e projetar um futuro diferente com mais amor para com as suas
próprias culturas, seus povos...
As crianças e os jovens estudantes assim demonstraram para a sociedade que quem não
gostava das práticas culturais não eram eles e elas. Eles e elas eram indiferentes às
práticas culturais porque não sabiam, pois ninguém lhes havia ensinado.
Muitos pais e mães, adultos de cada etnia se admirava da capacidade de aprendizagem
de seus filhos. Diziam que era necessário um compromisso maior para ensinar as práticas
culturais que, ainda restam para seus filhos e netos. Diziam que as riquezas culturais
precisam continuar existindo e sendo praticadas pelos seus filhos e netos.
As crianças, adolescentes e jovens perguntados como se sentiam neste momento de
danças, cantos, ritmos, vozes, diziam: as nossas culturas indígenas são muito ricas;
precisamos aprender mais; eu vou me esforçar para aprender com os meus pais. Outros
diziam: este ano não saiu tão bem como pensávamos, mas vamos melhorar; erramos em
muitas partes de canto, ritmos, mas outro ano faremos melhor. Outros: é primeira vez que
eu participo diretamente disso; eu gostei muito; estou muito feliz, etc.
Os professores e professoras, também se admiravam sobre as atitudes de seus jovens
estudantes. Também, muitos professores e professoras estavam fazendo tais danças pela
primeira vez; uns diziam: agora já velho eu vou aprender estas riquezas de nossas

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154
culturas; outros diziam: precisamos criar mais espaços e eventos para que estas práticas
continuem existindo entre os nossos jovens e nas nossas comunidades.
Assim as crianças, adolescentes e jovens sobre quem se dizia que não gostavam das
culturas indígenas, dessa vez mostraram para os habitantes de Iauareté que quando eles
conhecem suas práticas culturais eles as amam. Nesse evento aprenderam algumas
riquezas de suas culturas e se fortaleceram como indígenas. Há necessidade de criar
oportunidades e espaços para que eles e elas assumam cada vez mais e melhor as suas
culturas; há necessidade de pessoas que lhes ensinem; precisa de programas de
incentivo à revitalização das riquezas culturais.
Tal demonstração provocou um novo repensar sobre jovens e suas culturas. Quando os
(as) jovens conhecem e sabem as suas práticas culturais eles amam as suas culturas!

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Mitos, Memórias e Resistência
Pe. Justino Sarmento Rezende51
Iniciando a conversa
Os temas Mitos, Memórias e Resistência provocam pensar e repensar as nossas
próprias histórias, histórias minhas e de tantas outras pessoas, de diversas culturas.
Desde o dia em que comecei a viver os meus pais, quando vivos, me conduziram por
diversos tempos e espaços, ensinaram-me alguns conhecimentos que eles adquiriram nos
tempos e espaços anteriores aos meus. De seus ensinamentos eu guardei alguns. Depois
passando por diversos espaços e tempos meus e dos outros adquiri outros
conhecimentos, obtive diferentes visões sobre as realidades diversas.
Os Mitos, Memórias e Resistência são raízes que dão sustentabilidade à vida
tuyuka52. Visto e escrito por um tuyuka é um modo diferente de fazer uma etnografia,
etnologia e antropologia53. Exige uma vivência da cultura e distanciamento dela,
fazendo com que eu descubra que o que eu considerava como cultural (natural; próprio)
é problemático no contanto com outras culturas.
Este trabalho é memória daquilo que eu escutei de meus pais, parentes e amigos.
Para mim, escrever significa assumir os valores culturais tuyuka e trazê-los para a
atualidade. Também, mostrar para os outros algumas realidades da cultura tuyuka.
O artigo é descritivo (etnográfico). Entendo o mito como origem da humanidade
e do mundo que é a base para o discurso epistemológico e pedagógico tuyuka. Digo isso
porque, com seus ensinamentos o meu avô queria que eu entendesse a origem da nossa
vida humana e origem do mundo. Ele dizia que as músicas, danças rituais, cerimônias
contêm significados sagrados para nós e para todos nossos irmãos. Todos os valores são
formas materiais e imateriais (espirituais). São formas de narração e de veneração. São
práticas humanas e ações das divindades na ação humana. Por isso, na preparação, na
realização e pós-cerimônias se deve passar pelos ritos de purificação (abluções), jejuns e
abstinências.
51 O autor é indígena da etnia Tuyuka. É membro da Congregação Salesiana desde o ano de 1984. Sacerdote
desde o ano de 1994. É mestre em Educação (Linha de Pesquisa: Diversidade Cultural e Educação Indígena)
desde o ano de 2007, pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande/MS. Períodos de
trabalho em Iauareté: 1994-1996; 2004; 2007-2008. Atualmente atua como diretor da Missão Salesiana e
pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo.
52 O Tuyuka autodenominam: Utãpinopona = Filhos-da-Cobra-de Pedra
53 Etnografia: coleta direta minuciosa dos fenômenos que observamos: tomando notas, gravações sonoras,
fotografia… Etnologia: primeiro nível de abstração: análise dos materiais recolhidos, fazer aparecer a lógica
específica da sociedade que se estuda. Antropologia: segundo nível de inteligibilidade: construir modelos que
permitam comparar as sociedades entre si.

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A retomada, re-leitura, re-significação, re-elaboração, re-construção do mito
mantém viva a identidade tuyuka, originada em um mesmo pai ancestral UTÃPINO,
Cobra-de-Pedra.
Falar de mito tuyuka num Seminário de Antropologia Indígena significa dar os
passos tímidos em meio à complexidade teórica indígena e ocidental; é exercício de
construção/desconstrução dos discursos indígenas e sobre as categorias antropológicas
ocidentais. Neste tipo de estudo o resultado é discurso ocidental tuyukanizado e discurso
tuyuka ocidentalizado, com forte marcação de diferenças [semelhanças] culturais,
identitárias, de fronteiras, memórias e resistências.
As memórias nem sempre são manifestas. Elas têm suas vidas na consciência,
interioridade, espiritualidade, no silêncio, na clandestinidade, etc. As resistências têm
suas vidas no mito, nas divindades, fontes de vida, no benzimento, nos cantos. Os
silenciamentos54 impostos pelos “outros” [missionários...] aos mitos indígenas
fortalecem as clandestinidade, as abreviaturas, traduções, os resumos, criação de
símbolos, códigos, linguagens; promove o silêncio; hibridez, etc.
As minhas memórias são vidas que correm nas minhas veias! São forças que me
conduzem a outros tempos, ultrapassando os limites da minha corporeidade,
materialidade... Elas são espiritualidades! Elas me dizem: por que você não nos mostra
aos outros? Nós somos suas riquezas! Quando você não nos espalha pelo mundo, os
outros sempre vão dizer que os povos indígenas são pobres! Por muito tempo não as
obedeci! Fiz de conta que eu não estava nem aí para elas! Elas se calavam e voltavam a
falar! Os silêncios delas são mais fortes do que vozes faladas. Andam gritando em meu
ser, na minha mente, coração, pensamentos, inteligência, saberes... Em cada batida do
coração as memórias das histórias de meus pais e avôs emergem, submergem,
desaparecem, aparecem novamente! Dizem dentro de mim: nós queremos ser ouvidas,
valorizadas, utilizadas, pensadas, relidas, revisitadas, revividas por você e por seu meio
pelos outros! A partir destas escutas e saudades que eu estou agora interagindo com elas.
Elas são presenças vivas e atuantes de meus pais, avôs e parentes dentro de mim.
As memórias dos primeiros anos de vida acompanham em todos os lugares. (...)
Quando os outros me reconhecem como índio tais memórias me dizem: você é tuyuka,
diga para eles. (...) Sempre me flagro movimentando-me entre o “muito tempo atrás” e o
“tempo hoje”. Sou um ser humano construído e reconstruído em cada momento da
história.
1. Conhecendo a história recente tuyuka
Mitos, Memórias e Resistência são anteriores aos contatos com não-indígenas,
pois as culturas são construídas numa relação de poderes. Nesta parte ressalto algumas
54 Silenciamento é uma tentativa de apagar uma história, uma ideologia, que possa servir de ameaça às
relações de poder de um determinado grupo social.

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memórias pós-contatos com os não-indígenas no alto rio Negro-AM. Cabalzar (1998, p.
91) diz:
Quando os salesianos chegaram no alto rio Negro, as populações indígenas
desta região estavam à mercê dos comerciantes. O antropólogo Curt
Nimuendajú, ao percorrer os rios Içana, Aiari e Uaupés em 1927, relata o clima
de terror em que viviam os índios, vítimas de abusos dos comerciantes
colombianos e brasileiros, que mantinham os índios no sistema de patronagem,
sendo forçados a pagar dívidas que nunca expiravam e obrigando-os ainda a
suportar humilhações e abusos contra as mulheres (1950).
Esta realidade provocava desconfiança e medo por parte dos índios em relação à
pessoa estranha, comenta Koch-Grünberg (2005, p. 8):
O indígena livre, inicialmente, sempre desconfia do branco. E não é sem razão,
pois em muitos casos encontra-se com aventureiros, suspeitos, dos mais
variados países, o lixo da humanidade. Assim era na época primeiros
conquistadores e assim é, infelizmente, ainda hoje, em muitas partes da
América do Sul.
Entre os não-índios estavam os missionários como observa padre João Balzola,
primeiro salesiano no rio Negro (1916, p. 91):
Extinctas as Missões dos Carmelitas, não há noticias de outros sacerdotes que
tenham transitado por aquellas paragens até 1832, em que se encontra o nome
do Missionario brasileiro P. José dos Santos Inocentes. De 1851 a 1854 foi
tambem lá um Missionario Capuchinho, o P. Gregorio M. de Benevagienna,
italiano. Este zeloso Missionario chegou a formar nucleos catechisados, mas
depois teve de retirar-se e esses nucleos ficaram abandonados até o anno 1888,
quando ahi tornaram os franciscanos, sob a direcção do P. Jesualdo Marchetti,
muito conhecido em Manaus. Os seus companheiros fôram o P. Samuel
Mancini, P. Venancio Zilocchi, P. Matheus Camioni, Fr. Illuminado e Fr.
Estanislau, quasi todos italianos. Volvidos oito annos tambem elles tiveram de
retirar e aquellas Missões ficaram de novo abandonadas.
A chegada dos salesianos dá início à outra etapa histórica: constroem colégios,
oficinas e hospitais; promovem evangelização e catequese; causam vários impactos,
desrespeitando e ignorando as tradições indígenas. Cabalzar (1998, p. 93) diz:
A congregação de Dom Bosco se mostrou bem organizada, com objetivos e
estratégias claras e pessoal bem disposto, bem preparados para as dificuldades
desta missão apostólica. Gradativamente, foi se instalando em pontos cruciais
para o controle deste território. (...) Nimuendajú, no entanto, embora
reconhecesse que, “das quatro calamidades que pesam sobre os índios:
colombianos, negociantes brasileiros, delegados egoístas e missionários
intolerantes, estes últimos sejam ainda mais facilmente suportáveis”, criticou a
intolerância dos salesianos em relação aos índios e à cultura indígena.
As suas práticas educativas e evangelizadoras provocam mudanças nas práticas
culturais, diminuição e/ou abandono de algumas práticas culturais e
imposição/assimilação de outros valores não-índios.
Vários pesquisadores “brancos” escreveram sobre estas realidades. Porém nem
pesquisadores “brancos” nem indígenas explicarão todos os significados históricos para

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os povos indígenas que essas realidades tiveram. As fontes históricas escritas nem
sempre representam a visão dos indígenas. Koch-Grünberg55 (2005, p. 7) diz:
O leigo, freqüentemente, está inclinado a olhar com desprezo esses
“selvagens”, porque andam nus e têm outra cor de pele, especialmente quando
os “conhecimentos etnográficos” limitam-se às lembranças juvenis das leituras
de “Estórias de índios”, de valor duvidoso. Com as minhas descrições, espero
contribuir para acabar com esses preconceitos e fazer com que um círculo cada
vez maior de leitores conheça melhor esses povos naturais tão mal
compreendidos.
Nas últimas décadas [1980s.], os indígenas escrevem as suas histórias, mostrando
a historicidade de suas culturas, como eles são e como pensam e, algumas vezes como são
vistos pelos ‘outros’. As responsabilidades dos pesquisadores sobre os povos indígenas
devem ser a desconstrução56 das visões historicamente construídas sobre os povos
indígenas. Koch-Grünberg (2005, p. 6) explica:
Mas para mim, o objetivo principal da minha viagem não era o de um
colecionador. Freqüentemente demorando-me semanas, até meses em cada
tribo, e em cada aldeia, participando intimamente da vida dos indígenas, eu
pretendia especialmente conviver e aprofundar mais a visão de suas
concepções, pois o viajante que passa rapidamente pela região de suas
pesquisas consegue apenas impressões passageiras e freqüentemente falsas.
No Brasil passaram-se muitos séculos de contatos indígenas e não-indígenas
(1500–2008). Porém para muitas pessoas as lutas, resistências, conquistas dos povos
indígenas não possibilitam mudanças de suas visões negativas, estereotipadas, pré-
conceituosas que foram construídas historicamente. No processo da construção histórica
do povo tuyuka, muitos valores e práticas culturais desapareceram com a morte de
nossos avôs57. As memórias de suas tradições não eram registradas por escritas. O
método educativo de transmissão oral não possibilitou ao ouvinte guardar todos os
conteúdos transmitidos.
Os Tuyuka através da escola e igreja aprenderam e desaprenderam muitos
conhecimentos e práticas culturais. Continuam construindo modos de vida, baseados em
conhecimentos tuyuka e saberes adquiridos com a cultura ocidental. Criam e recriam
valores e práticas culturais diferentes. É espaço de hibridismo, onde acontecem os
processos de criação, negociação, tradução de simbólicos. Constroem suas histórias entre
o querer viver plenamente os valores historicamente construídos pelos seus avôs e viver
plenamente os valores adquiridos nos contatos com outros povos [São Gabriel da
Cachoeira (1914 (1916), Taracuá (1923 (1924), Iauareté (1929) e Pari-Cachoeira (1940)].
55 Nasceu no seio de família protestante, no dia 09 de abril de 1872 em Hesse, na pequena localidade de
Grünberg. (...) E. como pesquisador, empreende em 1903-1905 sua primeira expedição ao noroeste
amazônico (KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 15-17).
56 Filósofo francês Jacques Derrida: quis mostrar a necessidade de comportamentos críticos nos confrontos
das formas totalizantes e absolutizantes de cada tradição cultural. É um processo de historicidade e de
relativização dos saberes. Disponibilidade para o descentramento, sair-fora das próprias certezas.
57 Utilizo o termo avôs, em tuyuka: ñekisumua. Em língua portuguesa corresponderia aos antepassados.

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O deslocamento58 físico-cultural (aldeia-internato-cidade) de crianças e jovens
Tuyuka impedia o processo educativo étnico. Eu ouvi o meu avô falando com outros
velhos: os nossos valores (cantos, danças, rituais, cerimônias...) um dia vão acabar, pois
os nossos netos se tornarão como ‘brancos’. Talvez a visão que ele tinha era de que os
não-indígenas não gostavam das culturas indígenas.
No auge destes processos educativos salesianos que alguns salesianos como Pe.
Casimiro, Eduardo Lagório e outros pesquisando as culturas indígenas reivindicam a
recuperação, revitalização e fortalecimento das práticas culturais indígenas. Porém,
algumas lideranças indígenas diziam que a finalidade da escola deve ser o de ensinar os
conhecimentos das sociedades ‘civilizadas’.
Na década de 1980 com o fortalecimento do movimento indígena e outras visões
históricas se começou a trabalhar para a conscientização e valorização das culturas
indígenas. Hoje, estamos passando pelos delicados processos de negociação entre
inúmeras perspectivas de vida dos povos indígenas.
2. Mito Tuyuka
Os Tuyuka constroem modos próprios de entender, interpretar, viver a vida e o
mundo. As palavras, falas, silêncio, pinturas, cores, cantos e danças manifestam o
respeito ao todo envolvente [divindade]. A leitura/interpretação da história, ritos,
cerimônias, benzimentos, mitos, define as identidades próprias e as de seus ancestrais.
Quem vem de outra cultura, com a sua bagagem cultural faz uma leitura diferente [pré-
conceito e superioridade]. Meu irmão salesiano Brüzzi (1977, p. 287) expressa este tipo
de visão:
Praticamente as tribos do Uaupés não apresentam religião alguma. E
consequentemente estão sob o peso asfixiante de crenças e mágicas. Dispensa
provas a vantagem de uma convivência longa, por anos, ou por uma vida
inteira, com pessoas de alta cultura e elevada religiosidade e moralidade como
os missionários.
Os pré-conceitos e etnocentrismo existem em todos os povos e fazem pensar que
as ‘suas práticas culturais’ são melhores e a tendência é normatizar as nossas práticas
culturais para todos os povos que consideramos inferiores. Brüzzi (1977, p. 240),
tratando de uma figura importante para as culturas indígenas que é o pajé, diz:
O pajé ou Yaí é, portanto, o médico e ao mesmo tempo Xamã i.e. um mago ou
feiticeiro. (...) Seus poderes são muitos. Em primeiro lugar, neutralizar o
malefício lançado sobre um doente, e assim curá-lo. Pode mesmo tornar os
indivíduos invulneráveis à doenças. Reversivamente, êle lançará malefício e
causará enfermidade nos outros e até a morte. (...) Na realidade o pajé
intervem na vida dos indivíduos desde o nascimento até a morte. Donde se
deduz tôda a importância social do pajé e o respeito e temor que o envolve da
parte de todos os índios, não só da própria tribo, como das outras tribos
58 Ernesto Laclau: as sociedades modernas não têm qualquer núcleo ou centro determinado que produza
identidades fixas, mas existe uma pluralidade de centros.

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também. É talvez o maior sacrifício que a catequese católica impõe aos
indígenas cristãos, a renúncia à crença no poder do pajé. Em alguns casos só se
consegue parcialmente.
Os Tuyuka conhecem os prejuízos causados pela prática evangelizadora e escolar.
Apesar de muitos medos muitas práticas culturais continuaram na clandestinidade e
funcionando. Hoje alguns indígenas (1980s.) escrevem conhecimentos que resistem e
existem nas memórias, histórias, mitos, cerimônias, etc. A escrita possibilita um
conhecimento diferente. Eles escrevem seus modos de entender e interpretar as histórias
étnicas, mas não são exatamente como seus avôs discursavam. São versões reduzidas,
simples, re-significadas, com recortes exigidos pela própria história.
2.1. Mito da origem da humanidade e do universo
O mito da origem da humanidade e do universo dá sustentabilidade à cultura
tuyuka. A vida humana tem sua origem na divindade. O ser humano re-cria o mito para
estabelecer relações humanas entre indivíduos, grupos e as divindades
(criadores/protetores). Tenório descreve a visão tuyuka:
Deus da Origem viu a terra cheia de maldades e tristezas; teria que limpá-la
primeiro. Assim, fez todas as Casas de Transformação como coisas boas, Casas
de Leite, de Frutas Doces. Transformou-as em Casas de coisas boas onde
pudesse benzer a alma de todas as crianças. (...) A transformação do nosso
povo, com todas as suas divisões, começou no Lago de Leite (Opekõtaro),
lugar de origem dos Filhos-da-Cobra-de-Pedra (Utapinopona). A Humanidade
teria que surgir através do Lago de Leite, um lugar limpo como o ventre
materno, o útero, uma Casa de Leite (Opekõwi). Casa de Leite Materno,
suporte de vida dos Filhos-da-Cobra-de-Pedra. Para se transformar precisava
de um assento, o Banco de Leite (Opekõ Kumuro). Para ter sabedoria,
precisava de Cuia de Ipadu59, do Suporte Cuia (Yuiro) e do Cigarro (Muno).
(...) O Lago de Leite, chamado porta de leite, é por onde os Filhos-da-Cobra-
de-Pedra saíram emergindo (kamepea emuatiri) como Gente de Transformação.
(...) Deus da Transformação arrumou tudo o que levaria consigo: cerimônias de
benzimentos, danças (basamori) e entoações (wederige hire). Através de
benzimentos arrumou tudo, disse o que surgiria. Já possuindo o ipadu, fumo,
cera de abelha, adornos, lança-chocalho, porta-cigarro e caapi60, através deles
pensava em ter filhos e irmãos que se reuniriam para entoar cerimônias
(wedereti). Através dos benzimentos, procuraram a vida ou alma das crianças
na Casa de Leite (Ukoriwire) e benzeram todas as crianças. Do Lago de Leite,
origem da alma e da vida, a Gente da Transformação veio na Canoa de Cobra,
como é a Canoa da Transformação (AEITU; FOIRN; ISA, 2005, p. 123-124).
O mito mostra o processo de humanização: gestação no divino, passa pelas Casas
de Transformação, até emergir para superfície da terra:
59 Ipadú (em Nheengatú) ou Patu (em Tukano). (...) O Ipadú é o produto de coca, arbusto da família das
Eritroxikáceas (Erithróxilon coca, Lin.), que pega facilmente de galho (BRÜZZI, 1977, p. 207).
60 Caápi (em Nheengatú) ou Kaxpí (em Tukano). É uma bebida de sabor amargo, que se obtém de algumas
trepadeiras especialmente do gênero banistéria (BRÜZZI, 1977, p. 205).

17 Pages 161-170

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Deus da Transformação emergiu no Lago de Leite e veio chamando cada Casa
de Transformação, aonde os Filhos-da-Cobra-de-Pedra vinham se
transformando. (...) Nessas Casas que primeiro o homem conheceu, aprendeu
comportamentos, benzimentos, rumos a seguir. Viajaram na Canoa de
Transformação (Pamuri yokosoro), deslocando-se numa grande viagem, como é
lembrado nas cerimônias e nos benzimentos de proteção ou cura durante as
festas e outros momentos (AEITU; FOIRN; ISA, 2005, p. 123-124).
A seguinte narração mostra outro aspecto da criação da humanidade:
No começo, o mundo foi criado em camadas, era o tempo da Gente do
Aparecimento. Depois, a Gente da Transformação origina-se na água do Lago
de Leite e sobe rio acima no bojo da Cobra de Transformação. Essa Cobra sobe
do Lago de Leite através do Rio de Leite. Nessa trajetória, vai parando nas
Casas de Transformação, onde a Gente de Transformação realiza cerimônias e
vai adquirindo pouco a pouco a condição para surgir nesse mundo, nessa
camada. (...) A emergência da Humanidade e a ocupação do Uaupés e
adjacências se dá por etapas, em diferentes lugares. Nós, os Filhos-da-Cobra-
de-Pedra, emergimos em Sunapoea ou Cachoeira de Caju (Cachoeira Jurupari,
Alto Uaupés). A partir daí passamos a cantar nesse mundo. A partir da
Cachoeira de Caju, (...) começaram a se dispersar, construindo muitas malocas
em diferentes lugares. Por isso nós vivemos hoje em vários lugares, espalhados
(AEITU; FOIRN; ISA, 2005, p. 146).
Existem variações nas narrativas mitológicas. Carvalho (1979, p. 44), diz:
(...) no Alto rio Negro, (...) o Uaupés passa a ser o lugar de emergência das
tribos que vão adotando a cultura tukano. Não se trata, contudo, de um só
ponto de emergência. Em um lugar que o mito não determina, o Sol faz um
homem de cada tribo (Desâna, Pira-Tapúya, Wanâna, Tuyuka, etc.). Envia
um personagem, Pamuri-maxsë, que é como uma grande canoa e, no seu
interior, vinham as gentes. A serpente-canoa subiu os rios até as cabeceiras. Ao
chegar a Ipanoré, tropeçou com uma grande rocha. Então as pessoas saíram
por um buraco. Cada tribo tem assim o seu ponto de emergência, pois a
tradição de Pamuri-maxsë tornou-se de todas as tribos do Uaupés.
Cabalzar (1995, p. 108-110) diz:
Os Tuyuka, juntamente com os outros povos Tukano, consideram que tiveram
origem comum no Opekõtaro, o “Lago de Leite”. (...) Saindo do “Lago de
Leite”, todos os Pamuribasuki (nome que designa todos os povos,
indistintamente, neste estágio do mito de origem) subiram o “Rio de Leite”
(Opekõdia) na “Canoa de Transformação” (Pamuriyukisoro). (...) Então os
Pamuribasoka chegam a Ipanoré (Petakope), primeira cachoeira do rio
Uaupés. (...) Depois reiniciaram a subida do Uaupés, agora dentro da “Cobra
de Pedra” (Utãpino). (...) Os Tuyuka continuaram subindo o Uaupés, até
alcançarem a Cachoeira de Jurupari (Sunapoea), onde saíram da água
(pamuwitia dokapuara). Quando emergiram neste lugar, ainda não eram
completamente humanos, eram como os espíritos sobrenaturais
(pamurikõapona). Logo que o primeiro grupo de irmão saiu da “Cobra de
Pedra”, ainda viveram uma fase de transição entre o mundo dos espíritos
(Waímasi) e o dos homens.
Nesse contexto de aprofundamento do mito uma das realidades que não deve ser
esquecida é a presença do catolicismo [ou protestantismo]. Os valores indígenas e

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cristãos interagem continuamente nas práticas culturais indígenas. Muitas vezes o
cristianismo, ainda intimida as práticas culturais indígenas. Bessa Freire (2006, p. 11-
13), narra:
Eu fui para São José (Escola Yupuri/Tiquié – AM) com os Tukano, e o bispo
(Dom José Song – Diocese de São Gabriel da Cachoeira – AM) vinha crismar
logo depois de uma oficina que nós fizemos e que terminou num grande caxiri
(bebida fermentada). O pessoal (Tukano) estava um pouco preocupado. Eu vi
que tinha catequista lá. Vendo a preocupação dele, eu disse: Rapaz, você não é
bilíngüe? Ele disse: Sou! Eu disse: Você não fala Tukano aqui quando estão
entre vocês? E, quando vocês estão com a gente não falam português? Ele
disse: É! Eu disse: Pois, então! Quando você vai para lá você é católico, você já
foi batizado, catequizado. Você é católico. Viva plenamente a tua religião
católica. E, quando voltar aqui (maloca/tradição tukana) viva isso aqui
porque uma coisa não é incompatível com a outra. Porque senão, imagina a
imagem de Deus que diz assim: vocês aqui estão excluídos! Eu acho que não
pode! Da mesma forma que existe um bilingüismo, duas línguas podendo
conviver uma com a outra, existe a possibilidade de bi-religiosidade. Entre os
Tuyuka: aquela cerimônia é linda! (cantos/danças na maloca). Não tem maior
espiritualidade, comunhão com Deus do que você entrar na maloca e viver
aquela coisa. Eu fui seminarista, em certo sentido nunca deixei de ser padre.
Eu sai dos 10 a 14 anos. Eu fiquei com raiva de Deus, fiquei com ódio dessa
coisa de Deus porque essa coisa da Igreja bancando tanta injustiça, e quem me
aproximou de Deus foram os índios. Os Guarani. Rapaz, eles têm uma
profunda religiosidade. Como, também os Tuyuka e qualquer outro grupo
indígena são de profunda religiosidade. Aí eu vou com eles! Eu sinto a
possibilidade de me comunicar e eu acho que a religiosidade é outra coisa! Nós
estamos falando da pedagogia, de resgatar os conhecimentos que os índios têm
de ensinar e aprender. Eu acho que outro campo do saber é o campo teológico,
que é o teu campo, teologia indígena. Eu acho que o reconhecimento dos etno-
saberes passa por um reconhecimento do saber teológico dos índios. Eu acho
que, da mesma forma como nós temos que dizer que existe a pedagogia
tuyuka, temos que dizer que existe a teologia tuyuka, teologia dos índios do
alto rio Negro. Eu gostei muito da sua colocação ontem, quando você (Justino)
falou: sou salesiano, sou Tuyuka. É isso mesmo! Quando precisa assumir a
identidade salesiana, eu assumo. Quando tenho que assumir a identidade do
meu povo, eu assumo, quando é possível e quando é necessário, também, não
é? Eu gostei porque você revelou uma sabedoria que eu acho que essas
sabedorias que permitiram a sobrevivência dos grupos que sobreviveram. Essa
capacidade de fazer avaliação de correlação de forças, de saber quando recuar
para poder avançar, sem fundamentalismo.
2.2. Mito e Basariwi [Maloca]
Quando se trata do Mito são importantes outros elementos: ritos, cantos, danças,
discursos, espaço físico (casa ritual). Os Tuyuka denominam o espaço onde acontecem os
ritos, danças, discursos de Basariwi [em português se acostumou em dizer Maloca]:
Nós – Filhos-da-Cobra-de-Pedra – chegamos à Cachoeira de Caju como um só
grupo. A partir de nossa origem, aqui fizemos uma maloca e os velhos fizeram
iniciação de todos os seus filhos. Nós nos originamos e emergimos na Cachoeira
de Caju com todos estes instrumentos cerimoniais, Flautas Sagradas, adornos

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de cabeça ou faixas emplumadas, benzimentos, orações, cantos, caapi, tudo
através do que os velhos se tornaram grandes conhecedores e começaram a nos
proteger de todas as doenças. A estrutura da Casa Ritual e de Moradia
representa os ossos que sustentam o corpo da pessoa, por isso ela é incorporada
ao espírito do recém-nascido, na cerimônia de escolha do seu nome de
benzimento. O mesmo acontece nas cerimônias de iniciação masculina ou
feminina, de dar de comer às crianças ou em outros momentos de abstenção, de
proteção de doenças, de danças de Casas de Flautas Sagradas ou danças de
Casas de Tõko. Por isso essa Casa Ritual e de Moradia é muito importante,
reflete a ligação entre o contexto cultural e cerimonial de um povo (AEITU;
FOIRN; ISA, 2005, p. 142-143).
Basariwi é presença visível do UTÃPINO, COBRA-DE-PEDRA no meio de seus
filhos ¢tãpinopona, Tuyuka. É o espaço de unidade do povo, onde se vivenciam o
sagrado, o passado e os antepassados. É o centro da vida, símbolo da criação e proteção
sobre os Tuyuka Os rituais são modos de relacionamentos entre PAI e FILHOS:
Os Tuyuka precisam das Casas Rituais para cantar, dançar e fazer festa. (...)
As malocas tuyuka são importantes para receber visitantes que passam
temporadas entre eles, e para fazer cerimônias com Flautas Sagradas que
precisam acontecer em lugares fechados, para as mulheres e crianças não
verem. (...) Essa Casa Ritual marca a continuidade do povo de hoje com seus
ancestrais, com o Universo e as Casas de Transformação do tempo original
(AEITU; FOIRN; ISA, 2005, p. 121).
Os Tuyuka sabem dos pré-conceitos que a ação missionária teve com Basariwi:
(...) O deus dos brancos chegou ao nosso meio através dos missionários
europeus que vieram de uma terra muito distante. Esse deus condenou todos
os nossos conhecimentos. Eram brasileiros, italianos, espanhóis, alemães e
poloneses. Ensinavam que no mundo havia um só chefe, Jesus. Tudo que eles
falassem ou que ensinassem para nós era a única verdade. Todos os nossos
conhecimentos eram obras do Diabo. O chefe Tuyuka foi alvo de perseguição
porque a civilização imposta pelos missionários queria tirar sua autoridade de
chefe. Por medo da perseguição dos missionários, os nossos pais, conhecedores
da nossa sabedoria, haviam perdido espaço para transmitir-nos seus
conhecimentos, razão pela qual perdemos a nossa identidade. Porém, hoje,
depois de muito resistir a essa ideologia religiosa, conseguimos nos reafirmar
como povo, com nossa história, costumes, tradições, crenças e festas
(UTÃPINOPONA BASAMORI, 2003, p. 10).
Basariwi exige outros elementos importantes: Rituais, Ornamentos, Bebidas e
Sábios. Tenório explica:
Os sentidos da Casa Ritual se adensam na medida em que bons bayaroa –
mestres de cerimônias – estejam atuantes, ao lado de outros cantores-
dançadores que os acompanham, de bons benzedores – kumua ou basera – e
bons recitadores da narrativa de origem – yuamua. Seus sentidos se ampliam
ainda mais quando o povo tem seus ornamentos, já que a Caixa de Adorno é a
alma da maloca. Seus instrumentos musicais e todos os outros instrumentos
cerimoniais como bancos, lança-chocalho, suporte de cuias e cuias, forquilha
de cigarro, além do ipadu, caapi, cera de abelha e a bebida fermentada, o caxiri
fazem parte também da alma da maloca. (AEITU; FOIRN; ISA, 2005, p. 121)

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Béksta (1984) após muitos anos convivendo com os povos indígenas do alto rio
Negro, escreveu um trabalho sobre a maloca tukano-dessana e seu simbolismo, nele o
autor mostra a importância da maloca para os povos indígenas e para outros. Entre
muitas informações mostra como a maloca é construída, seu funcionamento e os
símbolos. Ainda, mostra que a destruição da maloca fazia parte do programa de
evangelização:
Dom João Marchesi, apelidado “o Anchieta” do rio Uaupés, que trabalhou 41
anos como padre e 5 anos como Bispo Coadjutor da Prelazia do Rio Negro,
descrevendo os 4 pontos programáticos do Mons. Giordano, menciona o quinto
propósito: “Transformar gradativamente as malocas”. A grande maloca é
perigosa demais, tanto do lado moral, quanto do sanitário. Comece-se
retirando dela os mais jovens para instruí-los no internato gratuito: é o
primeiro passo para influir sobre os pais (BÉKSTA, 1988, p.12)
A destruição da maloca dá aos missionários a sensação do dever cumprido.
Béksta (1988, p. 13-14), diz:
A maloca é, também, como costumava dizer zeloso Dom Balzola, a “casa do
diabo”, pois que ali se fazem as orgias infernais, maquinam-se as mais atrozes
vinganças contra os brancos e contra os outros índios, na maloca transmitem-
se os vícios de pais e filhos. Ora bem: esse mundo do índio, essa casa do diabo
não existe mais em Taracuá: nós a desencantamos e substituímos por um
discreto número de casinhas, cobertas de folhas de palmeira e com paredes de
barro. Não se mostraram descontentes os índios por causa do arrasamento da
maloca: antes ficaram satisfeitos reconhecendo a grande utilidade de cada
família ter sua casinha, seu lar, especialmente para evitar o contágio. Foi-se,
pois, a maloca dos Tukano!
Os indígenas possuem compreensão diferente sobre a maloca. O próprio Béksta
(1988, p. 42) mostra depoimento de um indígena (Antônio Vaz, Dessana, 3.6.1976):
A maloca por si é o esqueleto da Cobra. A cumeeira é espinha dorsal. Os
caibros da maloca são as costelas da Cobra. Também o corpo humano está
interpretado através do mesmo modelo da estrutura simbólica: a nossa coluna
vertebral é como a cumeeira da maloca, e os caibros do teto correspondem as
nossas costelas. A caixa torácica é como a sala da maloca, onde se realizam as
cerimônias da vida. A boca e a garganta correspondem à porta principal da
maloca, e o ventre é como a abside da maloca, onde está a cozinha.
Para os Tuyuka basariwi é símbolo da origem e continuidade da vida e não foi
isso que os missionários entenderam. O próprio Béksta (1988) lembra que, destruindo a
maloca, destruiu-se a comunidade, os pajés foram expulsos e desterrados. Em 1927,
Nimuendajú assim observou:
Na maloca condensa-se a cultura própria do índio; ali tudo respira tradição e
independência e é por isso que eles têm de cair. (...) O índio antes de provar os
benefícios da civilização moderna possuía estes sentimentos (de consciência
individual e racial); eles caíram com os esteios de sua maloca. Para lhes
restituir o que lhes foi roubado seria preciso colocá-lo novamente sobre a base
da sua cultura própria e deixá-lo evoluir em paz durante algumas gerações.
(BEKSTA, 1988, p. 86)
Bessa Freire (2006, p. 7-8) numa visão mais recente sobre basariwi, diz:

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Uma Maloca Tuyuka é uma contribuição enorme de civilização! Aquilo lá é
uma coisa emocionante! O pé direito [da Maloca] altíssimo. O material que
trabalha palha e madeira. O chão de barro batido. É uma sabedoria! Não é
qualquer indivíduo, não é qualquer cultura que chega a conceber essa forma de
construção! Nós não tivemos no Amazonas aquelas construções, aqueles
monumentos que teve no Machu Picchu [Peru], de pedra e aquelas pirâmides
do México, mas nós tivemos uma coisa que o tempo pode acabar com a palha e
madeira, mas não acaba com a forma de construir. Como é possível os Tuyuka,
eles estão aí há séculos e séculos, olhando e observando o que é melhor. A
Maloca Tuyuka é uma catedral. Você entra e vê aquela coisa magnífica! Você
entra numa Maloca Tuyuka, dá, também, aquela sensação de que você está na
frente de uma civilização! Eu acho que essas coisas são importantes. É
importante o Tuyuka ter consciência disso para começar a educar e informar à
sociedade regional e nacional de que esses conhecimentos são conhecimentos
que não se podem perder, pois são contribuições da civilização.
2.3. Mito e Benzimentos
Os Benzimentos expressam a força do Mito. Para uma pessoa os benzimentos
começam antes do nascimento, durante o nascimento, no processo de crescimento até a
morte [ciclo vital]. Os benzimentos têm suas raízes nos lugares mitológicos, Casas de
Transformação, origem da alma humana. Os benzimentos criam harmonia e equilíbrio
dos seres humanos entre si e com as vidas da natureza. Tenório explica:
O mundo é permeado de hostilidades entre seres, por isso é preciso a
observação e controle da relação das pessoas com outras Gentes. As camadas
do Universo são separadas, mas possuem passagens entre elas. Em seus
benzimentos ou rezas, o benzedor ou rezador ‘estende esteiras de proteção
sobre o chão’, para impedir agressões dos seres de outras camadas, para
esconder e defender a alma de um recém-nascido no local do parto ou os
participantes de uma cerimônia na maloca. Ele acompanha de perto as
passagens importantes na vida das pessoas, preparando-as e protegendo-as,
interpretando a origem e curando doenças. Ele descontamina e transforma
alimentos e espaços, neutraliza agressões através de proteções como a recitação
de rezas ou benzimentos. (AEITU; FOIRN; ISA, 2005, p. 147-148)
Os benzimentos são preventivos e curativos. São necessários em todos os
contextos históricos dos povos indígenas do alto rio Negro e sendo propriedade
intelectual [imaterial] é indestrutível numa pessoa.
2.4. Mito e Músicas/Danças
Os Tuyuka denominam os cantos e danças de Basamo. Eles estão intimamente
ligados ao mito de origem, ao ciclo da vida humana e da natureza. Cada canto e dança
corresponde a um acontecimento da vida, relembra o passado, celebra o presente e
prepara futuro. As cerimônias de cantos e danças exigem intensa preparação espiritual e

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166
material das pessoas, pois eles são sagrados e os indivíduos que participam precisam
estar bem preparados.
Antes, durante e depois de cantos e danças cerimoniais os benzedores protegem
as pessoas e os ambientes para que tudo ocorra bem. Os cerimoniais devem ser vividos
com muita intensidade. Tenório assim descreve sobre cantos/danças:
Dasia Basa (Dança do Camarão): (...) é cantada e dançada nas seguintes
cerimônias: quando dá primeira menstruação das moças, quando se quer dar
nome a um filho ou filha de um chefe e quando vão dar de comer peixe pela
primeira vez a essa criança. Hiã Basa (Dança da Largata): esse canto, (...) é
executado durante a cerimônia de dar nome a uma criança, na primeira
menstruação da moça e de dar de comer peixe. É cantado antes da estação
chamada Hiarõ, que se traduz como “tempo de aparecimento de largatas que
comem folhas de cunurizeiro”. Na verdade, referem-se a espíritos de pajés do
universo que recebem esse mesmo nome e provocam trovoadas e doenças nas
pessoas. Essa dança se faz também para proteger a comunidade desses
espíritos, apaziguando-os através de benzimentos. Ikiga (Dança Inajá): é uma
cerimônia de oferecimento de comida (dabucuri, na língua geral), como peixe,
produtos de mandioca e carne de caça. A origem da cerimônia e do canto vem
dos seres divinos Diroa-masã, quando eles fizeram a primeira cerimônia de
oferecimento de comida, peixe e caça para seus avôs. Umua Basa (Dança do
Japu): (...) é cantada nas cerimônias de nominação e de proteção da casa e, por
extensão, de toda a comunidade. Wai Basa (Dança do Peixe): é cantada antes
da época das enchentes, quando os peixes se juntam e fazem sua desova. É
uma época importante no calendário Tuyuka. Essa festa consiste em
apaziguar os espíritos dos peixes (Wai masã), para não provocarem doenças na
humanidade. Wasõ Basa (Dança de Wasõ): essa dança é realizada quando se
faz oferecimento de frutas, como açaí, buriti, ingá, ucuqui, cunuri, jatobá,
japurá, uacu, tucumã, sorva, sorvinha, uará, cucura, etc. Ñasa Basa (Dança do
Maracá): dançada na festa de confraternização durante a qual se protegem as
pessoas e suas casas contra doenças do universo e as enviadas pelos pajés e os
espíritos da floresta. Yua Basa (Dança do Calanguinho Azul): quando
terminam de fazer o roçado, fazem essa dança para que haja um bom verão e
para que consigam queimar as roças. Outro motivo é para que não apareçam
doenças nas mulheres, protegendo-as através de benzimentos. Yuki Basa
(Dança dos Paus): quando termina Yua Basa, completa-se a festa com Yuki
Basa. Kamõka Basa (Dança do Kamõka): (chocalho em fieira). É dançada nas
grandes festas tradicionais, junto com os membros da maloca e os demais
irmãos. Durante essas festas os rezadores fazem os encantamentos para
proteção de seus moradores contra doenças, picadas de cobra e acidentes de
trabalho (UTÃPINOPONA BASAMORI, 2003).
2.5. Mito e funções cerimoniais
Os agentes que expressam os sentidos do Mito fazem através de discursos, cantos,
danças, benzimentos, pinturas, ornamentos, caxirí, instrumentos musicais são: baya
(cantador/dançador), basegi (benzedor, rezador) e wederige higu (especialista em
entoações) (AEITU; FOIRN; ISA, 2005, p. 149); mulheres, jovens, moças, idosos...

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Concluindo a conversa
Finalizando a minha conversa digo que nas culturas existem muitas realidades. A
cultura tuyuka é assim, também. Eu sou Tuyuka, mas não entendo tudo. A cultura é
maior que a nossa compreensão. Quando estamos dentro de nossas culturas e das dos
outros, muitas realidades nos escapam e ficamos confusos, vemos o que não era para ser
visto, etc. Outras vezes desejamos ver o que não existe. Nem tudo cabe na nossa cabeça
e no nosso coração. Por isso digo que a cultura revela muitos aspectos para uns e
esconde muitos aspectos para outros.
Os meus avôs construíram a cultura tuyuka e os Tuyuka de hoje dão
continuidade. Meus avôs diziam: a natureza sustenta, protege, circunda, circula por
baixo e por cima da cultura tuyuka. A natureza é anterior aos meus avôs. Por isso eles
diziam que em cada parte da natureza estava presente a divindade que a criou. Diante
dessa crença os meus avôs demonstravam temor imenso. Este temor levava-os à
veneração, respeito, cerimônias, ritos, danças, cantos, benzimentos.
Os meus avôs morreram, enterrados, tornaram-se novamente terra que faz
germinar as sementes da vida. Para entender um pouco mais de uma cultura precisamos
mergulhar na realidade da cultura como num banho. Cada pessoa que toma banho no
rio adquire uma experiência diferente. Quando alguém entra no rio e mergulha, sente a
água envolvendo o seu ser e gerando nova sensação, externa e internamente. Assim, é
entrar numa cultura. Entra de um modo e sai com outros.
Os meus avôs Tuyuka possuem suas próprias categorias de pensamentos,
discursos e práticas. Os teóricos e pensadores não-indígenas (filósofos gregos, alemães...)
nunca passaram entre os Tuyuka. As suas idéias ajudam a ver e entender as diferenças
que existem entre as culturas, entender que esses espaços são outros espaços, espaços dos
outros. Os Tuyuka são outros, com suas identidades, com outras crenças e outras
espiritualidades, com outros modos de relacionamentos com o mundo e com os seres
vivos, visíveis e invisíveis.
Muitas realidades tuyuka, não as conheço, eu sou um analfabeto, pois eu não fui
educado na academia da aldeia. Os meus avôs, meus pais e meus parentes são mais
conhecedores do que eu. Os meus avôs eram sábios e conhecedores. Eram cientistas.
Ninguém pode dizer que os Tuyuka não conhecem nada. Conhecem e conhecem bem
muitas coisas. Eles conheciam o mundo muito melhor do que as novas gerações.
A cultura tuyuka possui seus próprios códigos, linguagens, símbolos, palavras,
gestos, movimentos. A cultura tuyuka e outras culturas precisam entendê-las
continuamente. Por isso, os meus avôs Tuyuka no final do dia e ao anoitecer ficavam
sentados. Na boca da noite eles se juntavam na casa de um dos anciãos para conversar.
Enquanto conversam mascam o ipadu e fumam o cigarro. São elementos que os leva
para outros níveis de pensamentos sobre a vida humana. Eles conversam sobre
funcionamento da casa, os trabalhos das roças, a procriação, o andamento da aldeia,
relacionamentos com as pessoas de outras culturas... Assim eles aprofundavam os

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sentidos da existência humana. As ações tuyuka resultam de reflexões realizadas pelos
anciãos.
Os anciãos com seus sensos apurados refletem sobre o futuro de todos os homens
e as mulheres da aldeia. Os nossos anciãos são os nossos protetores, seres divinos. A força
divina atua através da presença de anciãos.
Os anciãos com suas sabedorias adquiridas pelas experiências ao longo de vários
anos transitam pelos diversos mundos que circundam o ser humano. Eles sobem no
patamar de cima, descem no patamar de baixo, percorrem pelos quatro cantos do
universo, do sol nascente ao poente, do leste ao oeste. Os quatro cantos simbolizam
quatro portas. Por uma dessas portas entramos para nascermos nesta vida e por uma
delas sairemos, dia da morte. A vida é algo que veio trazida de fora e entregue ao
homem e a mulher. Por isso, durante a vida os anciãos com seus benzimentos criam uma
estabilidade humana dentro desse espaço.
Quantas sabedorias carregam nossos anciãos! Cada ancião é uma biblioteca,
impossível de ser lida. De uma biblioteca só conseguimos ler algumas obras, de
preferência do nosso gosto. Muitas coisas vão embora com eles quando eles deixam de
viver neste mundo. Quantas coisas nós já perdemos. Estas sabedorias não são coisas que
cavando os túmulos podemos trazê-las de volta para os nossos dias. Todas estas
sabedorias são bens imateriais, invisíveis. Por isso que são importantes os rituais, as
cerimônias de cantos e danças, pois através deles, algumas pessoas recebem, por
revelações, os saberes de nossos antepassados [cantos, discursos, danças, ritmos,
benzimentos...]. Tornar-se ancião é tornar-se apaziguador, pessoa de equilíbrio, pessoa
que benze para defender a vida. O ancião-sábio-benzedor é salvador da vida, curador,
mestre da vida.
Referências
UTÃPINOPONA BASAMORI. [São Gabriel da Cachoeira]: AEITU; FOIRN, 2003. 3
CD’s (80min). (Cantos Dançados Tuyuka).
AEITU; FOIRN; ISA. Wiseri Makañe Niromakañe – (Casa de Transformação:
origem da vida ritual Utãpinopona Tuyuka). Histórias contadas por membros da
AEITU, Associação Escola Indígena Utãpinopona Tuyuka. São Gabriel da Cachoeira,
AM; São Paulo, SP; 2005.
BALZOZA, João. A Prefeitura Apostólica do Rio Negro. Boletim Salesiano, N. 4 –
Julho-Agosto – 1916 (Anno XV – Vol. VII), Torino/Itália.
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro,
Contra Capa Livraria, 2000.
BÉKSTA, Kazys Jurgis (Pe. Casimiro, sdb). A maloca Tukano-dessana e seu
simbolismo. Manaus: SEDUC/AM, 1988.

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familiar e comunitária. Texto produzido em 1999 [Coletânea olhares de um tuyuka sobre
as diversas realidades indígenas e ocidentais – 1].
REZENDE, Justino Sarmento. Escutando os meus pais. Texto produzido em 2005
[Coletânea olhares de um tuyuka sobre as diversas realidades indígenas e ocidentais – 2].
REZENDE, Justino Sarmento. Um dia de minha infância. Texto produzido em 2005
[Coletânea olhares de um tuyuka sobre as diversas realidades indígenas e ocidentais – 3].
REZENDE, Justino Sarmento. Aventuras de um índio. Texto produzido em 2006
[Coletânea olhares de um tuyuka sobre as diversas realidades indígenas e ocidentais – 4].
REZENDE, Justino Sarmento. Educação indígena. Texto produzido em 2005
[Coletânea olhares de um tuyuka sobre as diversas realidades indígenas e ocidentais – 5].
REZENDE, Justino Sarmento. Repensar a “civilização”. Texto produzido em 2006
[Coletânea olhares de um tuyuka sobre as diversas realidades indígenas e ocidentais – 6].

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170
REZENDE, Justino Sarmento. Espiritualidade indígena: a noite como construção da
vida. Texto produzido em 2007 [Coletânea olhares de um tuyuka sobre as diversas
realidades indígenas e ocidentais – 7].
REZENDE, Justino Sarmento. Pescaria. Texto produzido em 2008 [Coletânea olhares
de um tuyuka sobre as diversas realidades indígenas e ocidentais – 8].

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RELEITURAS DAS DIRETRIZES PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E
ESCOLAS DA BACIA DO RIO UAUPÉS61
Justino Sarmento Rezende62
INICIANDO A CONVERSA
Este artigo apresenta algumas releituras sobre a construção de diferentes práticas
educativas.
1. AS PRÁTICAS EDUCATIVAS INDÍGENAS são fundamentadas nas
filosofias, teorias do conhecimento, pedagogias, metodologias de ensino-
aprendizagem-vivência e correntes políticas próprias. São elas que dão
sustentabilidade à história de cada povo, desde as suas origens. Muitos
povos indígenas têm suas origens no Lago de Leite (vida na água)
passando pelas diversas Casas de Transformação até a sua emergência
para o patamar da terra (o chão de nossa vida). Para outros povos
indígenas as suas origens encontram-se no patamar de cima. Eles saem do
patamar de cima para pousar e pisar sobre a terra [nosso patamar]. Tanto
os povos que têm suas origens no Lago de Leite e do Patamar de cima
pisando no chão – patamar onde vivemos, seguem seus processos
históricos de construção de suas identidades e diferenças, em diversos
caminhos e espaços.
2. A EDUCAÇÃO ESCOLAR, na bacia do rio Uaupés, começa a partir da
década de 1920. Utilizando uma metáfora com linguagem mitológica digo
que a Escola torna-se outra Casa de Transformação para os povos
indígenas desta região. Desde aquela década, a Escola constitui parte
importante da construção histórica das culturas indígenas desta região.
Através da Escola os “brancos” impuseram outras filosofias, políticas,
teorias de conhecimento, pedagogias, metodologias de ensino-
aprendizagem. Utilizaram metodologias próprias para ignorar os
conhecimentos indígenas e seus pensadores: velhos, mestres de danças,
entoadores de mitos, benzedores, ritos, casas rituais…
61 O rio Uaupés é afluente do rio Negro/AM. Ao tratar da bacia do rio Uaupés, refiro-me às regiões dos
distritos de Pari-Cachoeira, Taracuá e Iauareté, do Município de São Gabriel da Cachoeira.
62 O autor é indígena da etnia Tuyuka, nascido (1961) na aldeia Onça-Igarapé, na região do alto rio Negro –
Amazonas. É sacerdote da Sociedade de São Francisco de Sales (Salesianos), desde o ano de 1994. É Mestre
em Educação [2007] pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande – MS [Linha 3:
Diversidade Cultural e Educação Indígena]. Atualmente atua como diretor da Missão Salesiana e pároco da
Paróquia São Miguel Arcanjo – Iauareté, município de São Gabriel da Cachoeira/AM. Este artigo foi
produzido nos dias 1-5/12/2008. Havia sido preparado para participar de uma mesa durante a I Conferência de
Educação Escolar Indígena em São Gabriel da Cachoeira em meados de dezembro/2008, mas alguns dias
antes a minha participação foi cancelada e não foi possível socializar com os participantes as idéias contidas
neste artigo. É apresentado em forma de esquema e seria bem mais interessante se eu fosse comentando estas
idéias.

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3. AS ESCOLAS INDÍGENAS hoje, assumidas pelos indígenas de diferentes
etnias constituem o compromisso político de reinventar e criar outras Casas
de Transformação. Elas são espaços indígenas ocidentalizados e
ocidentais indianizados; espaços interétnicos e interculturais que permitem
refletir, recriar, fortalecer as identidades e diferenças; espaços de
negociação de valores e práticas culturais; espaços de construção de novas
relações humanas, produção de novos conhecimentos e acesso a outros
recursos.
4. AS MINHAS LEITURAS baseiam-se em diversos aspectos da minha vida:
4.1. MEMBRO DAS CULTURAS INDÍGENAS: minha participação na
história das culturas indígenas, como filho e neto, avô, primo, irmão etc,
conforme nossos critérios de parentesco nos permitem afirmar entre nós,
habitantes da bacia do rio Uaupés.
4.2. A IDENTIDADE INDÍGENA: a condição de ser indígena desta região
me permite perceber, sentir e pensar melhor algumas realidades; também,
outras realidades escapam da minha compreensão.
4.3. CONVIVÊNCIA COM OUTRAS REALIDADES: convivência com as
realidades do campo da educação indígena e educação escolar, no rio
Uaupés: de Urubuquara a Querari; no rio Papuri, da Aracapá a Santa Cruz
de Inambu; no Japú e afluentes: as escolas entre os Hupda; no centro-
Iauareté as escolas que atendem mais de dez etnias em seus espaços
escolares, mais os caboclos, algumas vezes, alunos não-índios.
4.4. CONVIVÊNCIA COM POVOS NÃO-INDÍGENAS me permite realizar
leituras das realidades indígenas com os olhares dos outros.
5.5. MESTRADO EM EDUCAÇÃO INDÍGENA: baseio-me na dissertação
de mestrado, realizada por mim, com o tema Escola Indígena Municipal
¢tãpinopona – Tuyuka e a Construção da Identidade Tuyuka, defendida no
dia 16 de fevereiro de 2007, através da qual elaboro pesquisas que
ajudaram para compreensão das relevâncias das práticas educativas
escolares tuyuka, dos processos históricos de construção, fortalecimento e
redefinições das identidades, dos impactos da interação pais, professores,
alunos no processo educativo escolar e dos impactos sociais [para as suas
comunidades e entorno regional] provocados pela Escola Tuyuka.
ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DOS POVOS DA BACIA DO RIO UAUPÉS
1. ORGANIZAÇÃO SOCIAL: cada povo possui organização social própria. De
modo geral, as organizações sociais dos povos desta região se
assemelham e diferenciam: do irmão maior ao menor; dos chefes aos
servos. Figuras marcantes são: mestres de danças, benzedores, mestres
de discursos mitológicos, pajé. Até hoje, os filhos e netos se identificam e
são identificados por aquilo que representam os seus avôs para etnia:
filho/neto de mestres de danças, etc.
2. A CONSTITUIÇÃO FAMILIAR: tradicionalmente, acontece entre duas
pessoas de diferentes etnias, respeitando e fortalecendo os critérios de

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pertencimento étnico [etnia do pai determina a etnia dos filhos] e as regras
do parentesco [pessoas da mesma etnia são membros de uma mesma
família]. Desta maneira os filhos já nascem no espaço bi-étnico, bi-cultural,
bilíngüe, possuindo pelo menos duas identidades.
3. RECENTE CONSTITUIÇÃO FAMILIAR: na recente construção histórica
familiar algumas pessoas decidem constituir família entre duas pessoas da
mesma etnia [casamento de irmãos], rompendo as estruturas/barreiras da
pertença étnica e do parentesco. Inclui aqui outro critério historicamente
criado, influenciado pela educação escolar: casamento de duas pessoas
que se amam.
4. MULHERES INDÍGENAS E HOMENS NÃO-INDÍGENAS: muitas mulheres
indígenas no convívio com homens não-indígenas fazem surgir novas
identidades. Se esta mulher continua casada com o homem não-indígena a
identidade dos filhos apresenta menos problemático. Quando as mulheres
que tiveram filhos com os homens não-indígenas, mas não ficaram com
eles, casando-se com o homem indígena surgem as seguintes
características a respeito da pertença étnica: 1) o filho (a) se identifica com
a etnia do padrasto; 2) opta em pertencer à etnia com a qual se identifica,
mesmo que outros não lhe aceite como tal.
5. PASSAGEM PELAS ESCOLAS: quase todos indígenas têm passagem
pelas escolas e mantêm contatos com os povos não-indígenas. Aqueles
que iniciaram as escolas indígenas estudaram na escola de modelo
ocidental.
ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DAS ESCOLAS
1. MODELO OCIDENTAL: nas escolas de modelo ocidental em processo de
construção de escolas indígenas o corpo docente, gestores e os alunos são
indígenas. É espaço de reflexão sobre a importância de ser escola indígena
que valorize as riquezas culturais, que elabore conteúdos escolares
próprios, porém, poucas vezes parte para prática. Existem intenções para
um dia tornarem-se escolas indígenas. Quem está neste tipo de espaço
pensa que para se tornar escolas indígenas tem que ter tudo pronto: projeto
político-pedagógico, regimento interno da escola, currículo já elaborado,
espaços próprios; os pais e os professores têm que aprovar. É espaço de
muitas dúvidas, medos, apostas, propostas, disputas. As regalias de
modelo ocidental lhes deixam acomodados: livros didáticos prontos,
metodologias, perguntas, respostas, etc. As mesmas instituições
governamentais que incentivam a criação de escolas indígenas, fornecendo
tais recursos impedem outras iniciativas. Neste tipo de escola, algumas
vezes se promove algum evento onde aparecem os símbolos indígenas:

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174
pinturas, colares, danças, artesanatos, instrumentos musicais. Outras vezes
colocam alguma matéria [língua indígena, arte indígena] sobre as questões
indígenas. Os discursos sobre as escolas indígenas são ideologicamente
afinados com a educação escolar indígena.
2. AS ESCOLAS INDÍGENAS: são aquelas que politicamente decidiram ser
diferentes das escolas de modelo ocidental. Continuam refletindo,
negociando com os pais, alunos, assessores sobre as diretrizes para
educação escolar indígena. As diretrizes que vêm do governo federal,
estadual, municipal, ainda passam pelo processo de releitura,
compreensão, reinterpretação. As mudanças não são automáticas, não é
que surgindo uma nova lei sobre a educação escolar indígena que
acontecem as mudanças nas escolas das bases. Geralmente, as escolas
indígenas são escolas pequenas, afastadas das antigas escolas dos
missionários [salesianos/salesianas]. As estruturas físicas, modos de
pensar, discursar, sonhar, ensinar, mostram que elas são diferentes, são
outras escolas. Maioria das escolas recebe diversas assessorias
qualificadas, das ONGs e das secretarias de educação, para a elaboração
de seus projetos políticos pedagógicos; na maioria das vezes é processo
demorado, pois o assessor não pode passar por cima das decisões das
pessoas envolvidas naquele projeto, senão as escolas se tornariam escolas
de assessores. Juntos indígenas e assessores elaboram metodologias de
ensino, aprendizagem, vivência, avaliação etc. São escolas que dão
prioridade para o conhecimento, aprendizagem das riquezas culturais
próprias. As barreiras que estas escolas enfrentam para o reconhecimento
de tais práticas educativas escolares são: a burocracia das secretarias de
educação e as incompreensões de pessoas que ocupam tais cargos;
diversas interpretações sobre a educação escolar indígena.
ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DE INDÍGENAS PROFESSORES
1. NO MODELO OCIDENTAL: maioria dos professores já exerce docência há
vários anos; são formados na escola de modelo ocidental; possuem
técnicas, conteúdos, metodologias, disciplinas que foram organizando ao
longo de sua atuação; possuem cursos superiores [também, cursos de
capacitação, qualificação...]; uns são simpatizantes à construção de escola
indígena; outros são indiferentes; outros resistem e têm grande poder de
argumentação contra. Muitos deles são daqueles que acreditam que tornar-
se professor é alcançar um estágio de vida de não-índio [não fazer
trabalhos pesados, não falar língua indígena, não ser índio...]; identificado
com o progresso e civilização: nova língua, rigor, disciplina no ensino;
melhor representante da instituição escolar e sua cultura; fiel reprodutor de
conteúdos vindos de fora.
2. NAS ESCOLAS INDÍGENAS: os atuais professores receberam a educação
e formação escolar nas escolas de modelo ocidental. Seguem aos projetos
que as comunidades, pais, líderes e alunos se propõem a realizar no

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175
espaço escolar. Passam pelo processo de desconstrução de saberes,
identidades, de compreensão de escola. As assembléias, estudos,
assessorias especializadas e curso de magistério indígena lhes ajudam a
criar novas mentalidades; outros participaram dos cursos universitários.
Existem professores que sentem saudades do professor de outro modelo
escolar [ocidental], onde tinha quase tudo em mãos para lecionar. Os
professores mais jovens sentem muitas dificuldades quando se trata de
transmitir as riquezas culturais dos povos indígenas para seus alunos. Eles
são necessitados de uma aprendizagem de conteúdos indígenas. Algumas
escolas indígenas colocam como critério para escolha de professor que
seja de sua etnia, Tuyuka para Escola Tuyuka, por exemplo. Não basta ser
indígena para ser professor indígena numa escola indígena. Além dos
chamados professores existem outros agentes que exercem maior
influência na transmissão de conhecimentos étnicos: anciãos, senhoras,
pais, líderes, conhecedores e narradores de histórias, de músicas, de
técnicas de trabalho. Estes, sim, dão mais forças para que as escolas
indígenas sejam assim vistas. No entanto eles não possuem o mesmo
reconhecimento que o professor frente às instituições públicas sobre
educação, não recebem remuneração; estas realidades conflitam, criam
desânimo, indiferença, etc.
ALGUMAS PERSPECTIVAS QUE AS ESCOLAS INDÍGENAS APONTAM
1. As escolas indígenas assumidas pelos indígenas caminham em meio à
complexidade de teorias ocidentais e indígenas. Os indígenas exercitam,
redescobrem e constroem discursos indígenas com categorias ocidentais.
Vejo que é importante zelar para não deturpar os conteúdos da educação
indígena no espaço escolar: danças, ritmos, benzimentos, língua, discursos
mitológicos etc. Seguir as diretrizes da educação escolar indígena que vêm
das leis oficiais do país, também, deve despertar em nós indígenas muitas
dúvidas: será que é isso mesmo que nós queremos? Esse é o caminho
mais adequado? Como ficam as diretrizes para uma educação étnica
construídas pelos nossos avôs? Muitas diretrizes não são pensadas pelos
indígenas, mas pelos indigenistas ou teóricos sobre as realidades
indígenas. Muitas vezes projetam seus ideais nas pessoas indígenas.
2. As escolas indígenas pensam e repensam os processos educativos
escolares presentes nas comunidades indígenas. As escolas indígenas
tentam consertar os estragos feitos pela escola de modelo ocidental, pelos
“brancos” e pelos “indígenas embranquecidos” [mentalidade]. Os indígenas
nas escolas indígenas diante da desvalorização das línguas revitalizam as
línguas étnicas. Diante da exclusão dos velhos no processo escolar os
incluem para a transmissão de saberes e conhecimentos étnicos. Diante da
demonização da casa ritual (casa de dança; maloca) algumas escolas
indígenas a transforma em um espaço educativo e revitalizador das práticas
culturais e, assim retoma seu significado como símbolo de uma civilização
indígena. Os indígenas tomam emprestada a instituição escolar, fazem

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outro tipo de escola, quando a devolvem para os não-indígenas
responsáveis pela educação escolar [Secretarias de Educação], se
assustam. Não esqueçamos que hoje em muitos setores burocráticos de
educação escolar indígena estão presentes alguns indígenas de diferentes
povos. Menos mal! Porém, muitas vezes deixam transparecer seus ares de
burocratas. Eles se assustam mais do que os não-indígenas afinados com
os desejos indígenas de construir um novo e diferente modelo escolar. Meu
sonho é os indígenas que trabalham nas secretarias e setores de educação
escolar indígena deveriam ter mais afinidade aos novos desafios da
educação escolar indígena presentes em meio a diferentes povos
indígenas.
3. As escolas indígenas administram, negociam os conceitos de cultura e
educação indígena, educação de modelo ocidental e escola indígena.
Escolas indígenas são portas abertas por onde diversos valores passam,
alguns são assumidos e recebem novos contornos. Elas, também são filtros
que devem filtrar as impurezas que vêm de fora e de dentro. Os conteúdos
da educação indígena tornam-se conteúdos escolares. Será que a escola é
a forma adequada, mais eficiente e segura para garantir a continuidade das
formas de transmissão de conhecimentos? Os professores [jovens], irmãos
menores, servos, não-mestres de cerimônias, são pessoas adequadas para
ensinar determinados conteúdos étnicos no espaço escolar? Como são
tratadas as pedagogias indígenas que são centradas na oralidade? A
oralidade é o modo de pensar, modo de ser, modo de guardar a memória e
veicular esta memória. Os velhos são livros vivos e que precisam ser lidos,
consultados. Nem indígenas e nem não-indígenas podem desprestigiar a
figura do velho (a). Ele (a) deve ser o interlocutor principal ao se tratar da
educação indígena e escolar.
4. As escolas indígenas possuem valores e práticas culturais que se
assemelham e apresentam diversas variações. Nas minhas viagens eu vi
que algumas escolas indígenas do rio Papuri realizam as pesquisas sobre
os mesmos objetos que fazem as escolas indígenas do rio Tiquié. Há
necessidade de aumentar o intercâmbio dos resultados das pesquisas para
as leituras e realização de eventuais complementos de acordo com a
cultura local. Para que isso aconteça se devem publicar os conteúdos
pesquisados em forma de livros didáticos. Se o Governo brasileiro todo o
ano publica milhões de livros didáticos para escolas por que não publica
livros elaborados pelos indígenas para as escolas indígenas e também
distribuir para as escolas onde estudam os não-indígenas? O descaso é
grande por parte do Estado Nacional, governantes e universidades com
relação aos saberes indígenas. Os conhecimentos indígenas deveriam ser
reverenciados, respeitados e promovidos não somente pelos indígenas,
mas por todo Estado Nacional.
5. As escolas indígenas são construções históricas de um ou mais povos para
preparar pessoas que saibam construir a vida [cultura local]. Educar

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pessoas que sejam capazes de relacionar com o entorno regional
[nacional...]. Em minhas viagens vejo que os alunos e pais indígenas se
sentem angustiados quando se trata de escolas indígenas. Perguntam: as
escolas indígenas saberão qualificar os estudantes para seguirem seus
estudos para além da comunidade [aldeia]: cidade, cursos superiores? As
escolas indígenas são desafiadas a serem melhores do que a escola de
modelo ocidental por dois motivos: 1) visa preparar os indígenas para que
vivam bem as suas culturas indígenas; 2) visa preparar os indígenas para o
convívio com as sociedades não-indígenas. Neste caso terão que incluir
mais disciplinas [matérias escolares] mais universais; ampliar dias letivos
em seus currículos escolares. Só assim será desfeita a visão negativa que
está surgindo das práticas educativas escolares de muitas escolas
indígenas da bacia do rio Uaupés: escola indígena como sinônimo de falta
de seriedade (professores que com muita facilidade faltam às aulas;
enquanto os alunos fazem pesquisas os professores ficam em seus
povoados, tomando o caxiri; só algum professor tenta substituir professores
que faltam às aulas, etc); talvez é isso que leva muitas pais procurar outro
tipo de escola para seus filhos.
6. As escolas indígenas são alternativas das escolas de modelo ocidental.
Dentro desta realidade levanto duas questões: 1) todos os indígenas têm
que estudar em escolas indígenas? 2) Não existiriam outras opções?
Muitas vezes escuto os pais dos alunos falando: quero que o meu filho seja
médico, professor, enfermeiro, advogado, etc. É difícil ouvir dizer: quero
que o meu filho seja mestre de danças, entoador de mitos, benzedor,
mestre de rituais, etc. Existem algumas explicações para tais situações: 1)
para ser médico, professor, advogado, etc., basta ter condições para
estudar, independente da pertença étnica; 2) para se tornar mestres de
danças, de mitos, de rituais etc, existem critérios étnicos para admissão e
impedimento para tais serviços; as escolas indígenas vão romper algumas
estruturas da pertença étnica?
7. As escolas indígenas priorizam no ensino-aprendizagem, a língua, os
valores e práticas culturais. A língua ocupa o primeiro lugar. Ariyon disse
certa vez que enquanto a língua está sendo falada existe como língua; as
línguas faladas são como peças de quebra-cabeça; quando desaparece
uma língua é como se desaparecesse uma peça desse quebra-cabeça e
dificultam a recomposição dos termos de conhecimento humano. As línguas
da região do rio Negro não são somente importantes para os membros de
uma etnia falante, mas para toda a humanidade. Quando uma língua
desaparece, desaparece um pedacinho da humanidade.
8. Dentro das práticas de escolas indígenas as comunidades são salas de
aula. Espaços de muitas reflexões, discussões, debates, disputas e
decisões. Os professores são membros das comunidades e muitas vezes o
critério para escolher quem será professor de uma escola indígena é que
seja membro da mesma etnia. Os moradores tornam-se professores,

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administradores, avaliadores, acompanhantes; coordenam seus processos
educativos.
9. As escolas indígenas, com seus trabalhos e projetos exercem uma política
pública. Suas iniciativas que ultrapassam as suas comunidades. Envolvem
diversas etnias, recursos e estabelecem diversas relações sociais. Aqui é
importante reconhecer o compromisso de muitos assessores qualificados
que dá incentivo aos indígenas a assumirem seus projetos e executá-los. O
compromisso melhor dos assessores deverá ser a preparação dos
indígenas e torná-los assessores para assuntos internos e saibam se
relacionar com as diversas instituições. Como já percebemos os
assessores não-índios ficam pouco tempo na região, por isso, Bessa Freire
me disse numa vez: nós “brancos” podemos ser solidários, mas o exercício
de nossa solidariedade é limitado porque nós não conhecemos a língua e
não conhecendo a língua 99% da cultura dançou! A contribuição de
assessores externos não deve ser prepotente nem arrogante: eu vou
ensinar e vocês aprendem! Também não deve ser demagógica: eu tenho
que só aprender com vocês! O que deve existir entre assessores externos e
indígenas é mútua assessoria. Porém, em muitos lugares onde os povos
indígenas não compreendem bem a língua portuguesa a presença de
assessores que não entendem a língua indígena os trabalhos de assessoria
tornam-se uma doutrinação dos saberes externos. Também, pode
acontecer entre indígenas, pois nós não falamos e nem compreendemos
todas as línguas indígenas. Assim, a língua portuguesa se torna um meio
de comunicação mais utilizado por nós indígenas.
10.As escolas indígenas propõem e apostam nas capacidades indígenas na
condução de trabalhos, agregação de outros povos e projetos. Fazer do
seu jeito o que era feito pelos ‘brancos’: calendários escolares próprios;
currículos próprios, etc. Ainda muitos etno-saberes estão fora do espaço
escolar: teologias indígenas expressas nos benzimentos, danças, músicas
etc, que são concepções e narrativas das divindades que conduzem os
povos, protegendo as vidas humanas e curando as doenças; outro etno-
saber que precisa ocupar um espaço de destaque é a educação ambiental
que fundamenta a harmonia da vida dos povos indígenas.
11. As escolas indígenas surgem da produção cultural indígena e ocidental. As
duas culturas não são pólos independentes, mas são universos
entrelaçados. Permitem a existência de novas elites e organizações. Os
indígenas transitam por diversos espaços culturais e suas identidades
formam e se transformam continuamente.
12.As escolas indígenas são espaços interétnicos e interculturais na medida
em que criam territórios onde se dão certas trocas de conhecimentos,
saberes, criam um clima de respeito e valorização das diferenças.

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13.As escolas indígenas são espaços de negociação que começa quando uma
ou mais comunidades planejam construir uma escola própria. Aí acontecem
as discussões, decisões, escolhas e organização de conteúdos escolares,
construção de projeto político-pedagógico com a participação das
comunidades, lideranças, professores, secretaria municipal de educação,
as hierarquias, diferentes etnias, os anseios dos velhos e jovens etc.
As negociações são estratégias que garantem a continuidade e
fortalecimento de uma escola indígena e, ajudam a filtrar as novidades e
incluir outros elementos importantes.
14 As escolas indígenas sentem algumas ausências e uma delas mais
preocupante é a falta de conhecimento de cerimônias, cantos/danças
rituais. Os mais velhos que eram conhecedores já não vivem mais e
dificulta o trabalho de recuperação de práticas culturais e bens imateriais
[discursos rituais, mestres de danças...]. As escolas indígenas não são
espaços completos, sempre estão em buscas, construções,
reformulações... Alguns expressam o desejo de conhecer mais em
profundidade algumas ciências: antropologia, pedagogia, sociologia...
15.As escolas indígenas da bacia do rio Uaupés por se identificarem com
etnias, muitas vezes parecem deixar de lado participação mais direta das
mulheres-mães em seus espaços escolares. Há necessidade de efetivar
mais os saberes e os conhecimentos das mulheres, uma vez escolas
indígenas são espaços interétnicos e interculturais. As mulheres detêm
papéis importantes na educação de seus filhos e filhas.
FECHANDO A CONVERSA
As escolas indígenas têm muito a ver com as nossas histórias pessoais e
nossas identidades indígenas. Inúmeras vezes nós nos consideramos
membros de uma etnia, ocupando um lugar na hierarquia da organização
social de nossa etnia. Afirmamos ser filhos/netos dos chefes e /ou servos.
Apesar disso conhecemos pouco das práticas culturais e valores de nossos
avôs e pais. Afirmamos ser filhos/netos de mestres de danças [baya] e
sábio de benzimento e mitos, mas nem conhecemos. Muitas vezes,
entendemos a nossa língua, mas não falamos. Falamos as línguas de
outros povos. A passagem pela escola de modelo ocidental nos facilitou
para entrarmos em outras culturas, também nas culturas indígenas.
Tornamos profissionais em diversos campos [professores, enfermeiros...].
Sabemos lidar as filosofias, pedagogias, teorias dos conhecimentos não-
indígenas [gregas, alemãs...], mas não lidamos com as nossas filosofias,
pedagogias, teorias dos conhecimentos: os discursos mitológicos, rituais,
cantos, danças… Tais conhecimentos e filosofias nos conduzem nos
trabalhos de construção de escolas indígenas. As filosofias indígenas
poucas vezes aparecem nos modos de construir a escola indígena. Nos

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nós flagramos colocando-nos como índios puros [sem mistura], estáticos,
imutáveis, as nossas atitudes nos levam a perceber que nós nos
deslizamos pelas nossas múltiplas identidades, múltiplas realidades. Muitos
indígenas da região do alto rio Negro podem estar vivendo estas mesmas
situações. Para nós hoje, ser índio e ser ocidental é uma realidade que
interage continuamente. Um convive com outro, dependendo dos
momentos um deles se sobressai. As escolas indígenas, também, podem
estar se tornando as representações destas identidades e podem se tornar
espaços de reflexões destas múltiplas realidades e identidades que nós
estamos suscitando nas nossas comunidades, pais, alunos indígenas, no
contexto do mundo de hoje.

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19.1 Page 181

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EM CACHOEIRA DA ONÇA63:
Crianças, Adolescentes e Jovens
dão novos contornos às línguas indígenas e à língua portuguesa!
Justino Sarmento Rezende64
Este artigo visa partilhar com o leitor as histórias recentes de minha vida. É um
artigo etnográfico e ensaia algumas interpretações sobre as descrições das realidades. O
artigo é complexo, pois apresenta diversas realidades que no ‘hoje’ dos povos indígenas do
alto rio Negro (município de São Gabriel da Cachoeira/AM) estão acontecendo, ou melhor,
os povos indígenas estão construindo (desconstruindo). No contexto atual, quando
fervilham os discursos e práticas sobre educação escolar indígena (uns dizem: escola
indígena diferenciada; escola indígena; escola diferenciada) este artigo é mais um
instrumento para ajudar na reflexão, elaboração de projetos políticos pedagógicos,
metodologias de ensino e até mesmo suscitar algumas dúvidas. Bessa Freire65 disse uma
vez (2006): “Nós, eu sempre digo, eu que trabalho com a educação indígena todo dia que
eu vou para uma ação educativa com os índios, eu paro e medito: será que isso é o
correto? Eu acho que a gente tem que duvidar todo dia.” No caso específico entre
educadores (professores, gestores) indígenas das escolas indígenas do alto rio Negro, eu
acrescentaria estas dúvidas: será que é este modelo de educação escolar que os meus
parentes querem? Será que é isso que eu quero para os meus filhos?
O artigo surge a partir da convivência: um padre indígena Tuyuka convivendo com
diversos povos indígenas. Fiquei dois anos [2007-2008] entre os povos indígenas num lugar
interessantíssimo chamado Cachoeira da Onça Iauareté e, também conhecido como
Cidade do índio66. Não foi a primeira vez que eu estive ali, pois em outros tempos já havia
convivido com os povos que vivem neste lugar (1994-1996 e 2004). Estes convívios me
proporcionam perceber os processos de construção (desconstrução) de sistemas de valores e
práticas culturais. Estes povos buscam cotidianamente serem diferentes de seus avôs e, ao
mesmo tempo tentam recuperar e fortalecer alguns saberes e práticas culturais que os
63 Cachoeira da Onça [em língua tukano: Yawa poea] é conhecida como Iauareté, palavra que deriva do
nheengatu. É um distrito que possui aproximadamente 7.000 pessoas, dos quais 4.000 pessoas vivem em
Iauareté-centro, durante o ano letivo. Localiza-se na fronteira do Brasil com a Colômbia, no município de São
Gabriel da Cachoeira – AM.
64 O autor é indígena da etnia Tuyuka, nascido (1961) na aldeia Onça-Igarapé, na região do alto rio Negro –
Amazonas. É sacerdote da Sociedade de São Francisco de Sales (Salesianos), desde o ano de 1994. É Mestre
em Educação [2007] pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande – MS [Linha 3:
Diversidade cultural e educação indígena]. Atualmente mora em Manaus após dois anos trabalhando entre os
povos indígenas do distrito de Iauareté, município de São Gabriel da Cachoeira. Este artigo foi produzido nos
dias 6-19/02/2009.
65 Fiz uma entrevista ao Professor José Ribamar Bessa Freire, no dia 21 de setembro de 2006 sobre a sua
visão sobre a Escola Tuyuka. Esta entrevista está anexada na minha dissertação de mestrado na página 366.
66 Antropólogo Geraldo Andrello chama Iauareté de Cidade do índio (cf. São Paulo: Editora UNESP: ISA;
Rio de Janeiro: NUTI, 2006)

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tornem semelhantes aos seus avôs67, mesmo que sejam apenas nos discursos que os prende
numa comunidade imaginada [comunidade que fala a sua língua, mas inexistente na
realidade...]. As pessoas tornam-se aprendizes de novos (velhos) saberes e de novas
(velhas) práticas de vida.
A Cachoeira da Onça é um espaço interetnico porque aqui convivem pessoas de
diferentes povos indígenas: Tariano, Tukano, Desano, Piratapuia, Wanano, Kubeu, Tuyuka,
Hupda, Arapaso, Carapanã, Mirititapuia, etc. Maioria destes povos fala suas línguas e
outros não. Interessante é que tanto uns quanto outros afirmam as suas identidades e
diferenças étnicas. Esta realidade nos ajuda a entender que a identidade étnica de alguns
povos indígenas está baseada no seu mundo imaginário, por exemplo, língua imaginária.
Em palavras simples significa dizer que a língua falada não é o critério único para definir
[afirmar] a pertença étnica. Porém, para muitos povos indígenas da região, principalmente
para aqueles que falam sua língua étnica, a língua é que define a identidade étnica, isto é, se
alguém não fala a sua língua não é identificado como tal. Hoje, devido a um convívio de
pessoas de diversas etnias num espaço social, a língua mais falada entre todos é língua
tukana [Yepâ-masa] e língua portuguesa. Assim diminui a disputa pela originalidade
[autenticidade] étnica.
A Cachoeira da Onça é também um lugar intercultural porque abriga pessoas não-
indígenas [familiares de militares; missionários e outros profissionais] e todas as
influências das culturas não-indígenas. Os saberes e práticas culturais indígenas e não-
indígenas interagem cotidianamente, dando novos contornos e diferentes significados para
suas vidas.
A população indígena que compõe a Cachoeira da Onça vem do rio Papuri
[afluente do rio Uaupés], do alto rio Uaupés, médio rio Uaupés68 e outros afluentes [Japú,
Turi, Urucum]. As pessoas pertencem às seguintes etnias: Tariano, Tukano, Desano,
Piratapuia, Wanano, Kubeu, Tuyuka, Hupda, Arapaso, Carapanã, Mirititapuia, etc.
Os Taliáseri ou Tariano afirmam ser originários da Cachoeira da Onça. A descrição
que estou fazendo aqui está em conformidade com as minhas escutas. Sobre isso, muitas
vezes falam diretamente (discursos) e indiretamente (atitudes, comportamentos). Para
entrar nessa dinâmica tem que pelo menos entender e falar a língua tukana. Para o leitor
que quiser aprofundar mesmo sobre os Taliáseri existem diversos estudos feitos pelos
pesquisadores não-indígenas. Ainda sobre esta questão relacionada aos Taliáseri eu
ouvindo as narrativas mitológicas de outras etnias entendi que Cachoeira da Onça é
também uma das Casas de Transformação de outros povos indígenas. É espaço originário
de vida de muitos povos indígenas que hoje se espalham em diversas regiões do rio Uaupés,
Papuri e outras. Numa linguagem mitológica pode-se afirmar que Cachoeira da Onça é
Casa/Mãe de muitos povos indígenas.
67 Utilizo o termo avôs, no sentido masculino, pois entre os povos indígenas do alto rio Negro o critério de
pertença étnica é determinado pelo homem. A palavra correspondente em língua portuguesa é
antepassados.
68 O lugar Cachoeira da Onça ou Iauareté é considerado Iauareté-centro. A partir deste lugar que se
denomina médio e alto rio Uaupés.

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A Cachoeira da Onça é um lugar muito especial e empolgante! Para os mais velhos
e os novos que conhecem estas cachoeiras é como se fosse um livro de história. Cada pedra
possui uma história; cada paraná possui o seu sentido para as pessoas.
Como diz o próprio nome Cachoeira da Onça aqui estão muitas cachoeiras:
pequenas, médias e maiores; são atraentes e assustadoras. Quando o rio está seco aparecem
muitas pedras, ilhas de pedras. Quando o rio está cheio formam-se muitas cachoeiras,
correntezas.
Na margem direita de quem desce o rio Uaupés estão localizadas três comunidades:
Santa Maria, São Pedro e Fátima. Nesse lado, também existem escolas que atendem os
moradores desde ensino infantil ao ensino fundamental (8ª série). Na margem esquerda
estão localizadas as instituições de serviços públicos: Manaus Energia (antiga CEAM),
Hospital Unidade Mista de Iauareté, Missão Salesiana, Escolas, Correio, Comércio,
Infraero e 1º Pelotão Especial de Fronteira (quartel do exército). As comunidades
localizadas neste lado são: Dom Bosco, Aparecida, São Miguel, Cruzeiro, Dom Pedro
Massa, São José e São Domingos Sávio69.
Pessoas morando numa e noutra margem do rio movimentam-se de uma margem
para outra. Pessoas que atravessam remando de um lado para outro; pessoas que descem e
sobem remando o rio para ir/voltar para/das pescarias, roças, passeios etc. Atualmente há
movimento de canoas com motores de popa, aumentando mais ainda os banzeiros e
correntezas.
De manhã cedo até o fim do dia à beirada do rio fica cheia de pessoas para se
banharem; outras pessoas ficam sentadas nas pedras; meninos, meninas, rapazes pulam das
pedras para as águas. De tarde as crianças e jovens brincam nas correntezas. As crianças,
adolescentes e jovens vão para o meio do rio, nas correntezas. Aventuram procurando
vencer as forças das águas. Os mais velhos não se atrevem mais a brincar com a força das
águas, são mais prudentes. O tempo de sua vida já lhes ensinou que não se deve brincar
com a natureza.
Nestas cachoeiras já morreram muitas pessoas, indígenas e não-indígenas. A água
quando quer matar alguém não quer saber se a pessoa é indígena ou não. Digo isso porque
durante o tempo em que eu estive lá vi a morte de pessoas nestas cachoeiras. Não apenas vi,
mas como eu sou padre já enterrei muitas pessoas que morreram afogadas nestas águas.
Outra realidade interessante e bem presente em Cachoeira da Onça é a diversidade
cultural. Talvez esta realidade para aquele que vem de fora (não-indígena) seja difícil de
perceber logo, pois os indígenas apresentam as mesmas características físicas, mas não em
69 Alguns pesquisadores quando vão à Cachoeira da Onça querem saber dos moradores: “por que colocaram
estes nomes de santos da Igreja Católica?“ Sabe-se pela história da Igreja, que aonde a Igreja chegou acabou
tendo muita influência. Querer saber se Igreja impôs contra a vontade da população local ou povo
evangelizado que quis colocar estes nomes é assunto que pode ser pesquisado. Não somente lá aconteceu isso,
mas em todos os lugares aonde a Igreja chegou. O que eu quero dizer para o leitor é que os lugares sobre os
quais foram construídas as comunidades (povoados, aldeias) são lugares mitológicos, só os mais velhos
sabem e usam tais nomes nas ocasiões especiais: ritos, danças, benzimentos... Eu não me arrisco denominá-
los para não trair a veracidade da história de cada povo indígena e dos nomes destes lugares.

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questões psicológicas, antropológicas (sociológicas), mitológicas (teológicas), organização
social (hierarquias) etc. O indígena desta região já sabe que entre todos há diferenças e
semelhanças, pois desde cedo os nossos pais nos educam [projeto político-pedagógico
étnico] para termos consciência das diferenças culturais, das identidades étnicas, das
hierarquias etc. E, nos ensinam também como nós devemos nos interagir e relacionar com
os outros [parentes, primos...]. Por isso, neste contexto pluri/multicultural o que torna
Cachoeira da Onça um lugar interessante culturalmente é a interação das pessoas
[interetnicidade e interculturalidade] de diferentes etnias e povos que a torna um espaço de
muita vitalidade, riquezas, perspectivas e dificuldades (problemas).
A Cachoeira da Onça como espaço físico para muitos povos indígenas é um espaço
neutro. Muitas pessoas que moram na Cachoeira da Onça deixaram suas comunidades de
origem no médio e alto rio Uaupés e no rio Papuri. Sendo assim as atuais comunidades
(vilas) onde se agrupam pessoas de diferentes etnias, são espaços novos e com novas elites
sociais. Estas comunidades não estão relacionadas a uma etnia que se considere como
proprietária daquele espaço. Acrescento uma questão que não aparece tanto, mas é muito
importante: as pessoas que formam uma comunidade atual têm algumas ligações de
parentesco [avô, tio, sobrinho, primos...] e as comunidades se tornam um grande círculo
familiar. Para mostrar melhor, ainda cito um exemplo, mas vale para todas as comunidades:
nem todos aqueles que vêm do rio Papuri estabelecem sua moradia numa mesma
comunidade, mas procura onde estão seus parentes mais próximos e ali fazem suas moradas
[em diferentes comunidades]. As alianças matrimoniais são muito importantes neste
contexto.
A Cachoeira da Onça é uma localidade onde existem muitas crianças, adolescentes
e muitos jovens. Acontece isso porque aqui se concentra o maior número de escolas que
atendem estudantes desde o ensino infantil até o ensino médio. Outro fator importante é o
crescimento populacional nas últimas décadas.
Outra característica da Cachoeira da Onça é o grande movimento de pessoas ou as
pessoas em movimento. Os moradores de povoados distantes vêm para fazer suas compras
e vender os produtos de seus trabalhos; receber o dinheiro [aposentaria; programas de
Governo Federal...]; visitar os seus filhos e parentes etc. Acontece mais: muitas pessoas vão
para São Gabriel da Cachoeira e voltam; quem foi para morar na Colômbia algumas
décadas atrás, ultimamente retorna ao Brasil.
A Cachoeira da Onça é lugar que abriga muitos serviços públicos: Manaus Energia
[antiga CEAM], Correio, Banco Postal [Bradesco], Infraero, Televisão, quartel do exército
[1º Pelotão Especial de Fronteira], Hospital Unidade Mista, Telefone, Polo Base [Funasa,
DSEI, etc.], Comércio, Missão Salesiana, Paróquia, Escolas, etc. Outros serviços
[municipais, estaduais e federais] chegam esporadicamente para prestar serviços à
sociedade indígena. Essas realidades atraem pessoas para que diversas vezes venham para
Cachoeira da Onça. E, outros acabam fixando a moradia aqui.
Os povos indígenas possuem modos próprios de compreender os valores dos
trabalhos e de desenvolvê-los. Alguns trabalhos são realizados por família e outros pela
comunidade. Os povos indígenas desta região não são preguiçosos como se acostumou

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ouvir na história passada, visões estereotipadas. Os ritmos de trabalhos são estabelecidos
pela própria pessoa, família e comunidade. O principal trabalho é a roça e dela se extrai os
alimentos importantes do cotidiano: farinha, beiju e quinhapira (panela de pimenta; quando
tiver peixe coloca-se). Outros alimentos se comem quando se consegue ou quando é tempo
próprio: peixe, carne, frutas. Hoje muitas pessoas têm dinheiro [professores, funcionários,
aposentados, crianças e mães [programas de governo federal], pescadores, agricultores...],
por isso compram os alimentos no comércio: enlatados, bolacha, biscoitos, pão,
refrigerantes, sucos; congelados: peixe, carne bovina e frango; compram farinha, frutas,
artesanatos...
Outra característica marcante da Cachoeira da Onça é a festa. Os povos indígenas
do alto rio Negro são bastante festeiros, principalmente em finais de semana. Não somente
os povos indígenas são assim, pois andando em outras cidades do Brasil eu vi que os não-
indígenas também fazem muitas festas. Sobre a descrição de festa em Cachoeira da Onça
quem andou pela região confirmará com as minhas observações: onde há festa tem bebida.
A principal bebida aqui é o caxiri, bebida fermentada com diversos tipos de frutas [cará,
batata, banana, milho, abacaxi, cana, jambo, laranja...]. Também aparecem outras bebidas
alcoólicas70. Acontecem muitas festas, em casas familiares e centros comunitários. Quando
acontecem festas familiares vão pessoas convidadas [levam presentes; levam caxiri], são
festas mais reservadas. Quando as festas acontecem nos centros comunitários vão os
convidados. Eles são acolhidos, recebem convites especiais e públicos para ocupar o lugar
na mesa ou servir a comida; devem levar o caxiri na festa e participar da festa dançante.
Quem não foi convidado, mas chega à festa é acolhido e participa da festa. Eu percebi que
quem não foi convidado evita chegar na hora do almoço. Chegam geralmente para festa
dançante [após o almoço], uns vão para dança e outros vão apenas para tomar o caxiri. No
decorrer da festa dançante as mulheres e homens vão oferecendo o caxiri para todas as
pessoas, principalmente para quem está sentado. As festas comunitárias geralmente
funcionam durante o dia no máximo até dez horas da noite. As músicas que tocam mais são
as chamadas: bregas, forró, música colombiana... Depois que termina a festa no centro
comunitário algumas famílias continuam em suas casas.
E, de vez em quando surgem brigas, assassinatos e suicídios (enforcamentos).
Nenhuma comunidade organiza a festa para promover brigas entre grupos, para que alguém
mate o outro e para que as pessoas morram se enforcando. No início de todas as festas as
lideranças recomendam que todas as pessoas se divirtam e evitem problemas, mas sempre
surgem alguns que gostam de criar confusões e estragar as festas. Algumas vezes acontece
dentro de centros comunitários e outras vezes acontecem fora. Tais problemas mostram que
os povos indígenas não são perfeitos, não são puros como alguns antropólogos andavam
dizendo no passado. Pode ser que tenham existidos povos indígenas puros, mas eu mesmo
não conheci nesta região. As coisas negativas repercutem mais do que acontecimentos
70 Desde o final da década de 1990 que nesta região se proibiu a entrada de bebidas alcoólicas. Apesar disso a
cachaça continua entrando nesta localidade, trazido pelos próprios indígenas. Nem os agentes de Fiscalização
da FUNAI que ficam em São Joaquim próximo à boca do rio Uaupés, conseguem fiscalizar a canoas, barcos e
voadeiras que transportam cachaça. E muitos os fiscais não ficam no posto de fiscalização alegando a falta de
verba para realizar tal trabalho. No caso específico da cachaça que chega em Iauareté nem a fiscalização feita
pelos soldados do 1º PEF, impede a sua entrada. Pois a cachaça que chega, chega de noite quando os soldados
não estão fiscalizando.

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positivos. Acontece assim porque as agressões físicas e mortes de pessoas desestruturam o
convívio social.
A Cachoeira da Onça é uma sociedade comprometida com o bem-estar das pessoas.
Frente às diversas problemáticas sociais acima citadas as lideranças procuram fazer
trabalhos de prevenção [conversas, aconselhamentos, palestras, reuniões, assembléias]; para
evitar brigas põem seguranças [são pessoas da comunidade, lá não tem Polícia Militar]
durantes as festas; quando surgem problemas punem os culpados e para casos mais graves
encaminham para a Delegacia de Polícia em São Gabriel da Cachoeira, sede do município.
Antes do encaminhamento destes para São Gabriel da Cachoeira, o Exército [do 1º PEF]
intervém, a pedido das lideranças. Eu vi que a Justiça não condena os culpados de
assassinatos: as pessoas que mataram estão convivendo normalmente em diversas
comunidades.
Dentre os problemas acima citados, nesta última década o que tem dado maior
preocupação é a morte de pessoas por enforcamento, de jovens e adultos. Em Cachoeira da
Onça várias pessoas morreram assim. É difícil fazer uma interpretação mais acertada das
causas. Alguns intérpretes dizem que é a falta de perspectivas de vida [falta de emprego...]
que leva os jovens ao enforcamento. Então a culpa, também é da escola atual que continua
levando os jovens para sonhos grandes demais e não são realizáveis? Os pais que
depositaram demasiada esperança no filho/a como a solução de problemas familiares? É o
excesso de bebidas nas festas que provoca tais mortes? É a insatisfação com a vida,
desespero, traição? Não foram apenas os jovens que se enforcaram, mas também senhoras
mães, líderes de comunidades. Muitos homens e mulheres tentaram se enforcar, mas
tiveram sorte de ter alguém que os impedisse de realizar.
Os intérpretes indígenas, benzedores, pajés chegaram até dizer que era a maldição
[veneno imaterial: sopro] feita por alguém que não gosta da sociedade de Cachoeira da
Onça [inveja das pessoas; inveja pelos trabalhos...]. A partir destas interpretações já
realizaram os benzimentos [benefício imaterial] para harmonizar a realidade e as pessoas.
Mas para dar efeito esperado a sociedade local teria que seguir certas disciplinas (não ouvir
as músicas com som alto, não soltar foguetes, não comer alimentos assados por um mês),
pois tais ações assustariam o efeito dos benzimentos. Mas para uma comunidade complexa
como a Cachoeira da Onça esta exigência disciplinar não é seguida pelos moradores, pois
muitos não acreditam nestas recomendações. Mesmo as dores/tristezas pelas mortes das
pessoas não atingem mais a todos nem à comunidade. Eu vi que só os familiares do
falecido choram, velam, enterram, entristecem e outros não se interessam.
A Cachoeira da Onça é uma sociedade organizada em Associações Indígenas.
Fazem assim para atender melhor as necessidades das comunidades, das pessoas. Existem
os Conselhos Comunitários e Conselho de Líderes. Hoje os indígenas entendem que o bom
líder é aquele que tem bons projetos, que encaminha o projeto para as instituições
governamentais e ONGs, consegue verbas e aplica bem o recurso nas ações prometidas.
São considerados bons líderes pessoas corajosas que resolvem problemas internos das
comunidades indígenas, que sabem defender os direitos indígenas. Estas Organizações
Indígenas contam com as assessorias especializadas [antropólogos e outros profissionais...]
que lhes dão apoio em suas discussões, elaboração de projetos, execução de projetos,

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prestação de contas. Entre os próprios indígenas há quem exerce o papel de assessoria, pois
vários indígenas possuem formação em diversas áreas de conhecimento acadêmico e alguns
possuem mestrado em diversas áreas: antropologia, educação...
Até aqui já tem muitas realidades descritas. À primeira vista é difícil notar tantas
movimentações. As semelhanças e as diferenças somente podem ser percebidas com um
tempo suficiente de convivência. Percebendo ou não tais realidades a pessoa contribui-se
para a construção das diferenças e fortalecimento das identidades.
Até [1994-96] 2004 eu conhecia mais a Cachoeira da Onça ou como se diz
Iauareté-centro. Este lugar é que eu estou descrevendo até aqui. Mas fora deste lugar
existem aproximadamente outras sessenta e cinco comunidades. Somente nestes últimos
dois anos eu pude conviver com a população toda do distrito de Iauareté: médio rio Uaupés,
alto rio Uaupés, rio Japú e rio Papuri. São regiões bonitas e extensas! Para conhecê-las são
necessárias várias horas de viagem pelos rios e longas caminhadas em meio à floresta. A
maioria da população que hoje mora em Cachoeira da Onça morava nestas comunidades
distantes. Atualmente em algumas comunidades moram poucas famílias; em outras
comunidades não há mais pessoas morando. É importante dizer, também que algumas
comunidades que têm escolas de ensino básico [fundamental] e ensino médio estão
aumentando de população.
As regiões do alto rio Uaupés e Papuri possuem belíssimas cachoeiras. Elas formam
espaços sagrados e mitológicos de nossas histórias indígenas. Do tamanho de suas belezas,
são os perigos que apresentam, tanto na época de rio seco e cheio. Nossos avôs passaram
inúmeras vezes por estas cachoeiras, passavam dias e horas remando para vencer as
correntezas, passavam horas arrastando nas beiradas das cachoeiras e arrastando canoas
pelas estradas. Quem nasce, cresce e vive nestas regiões conhece os perigos que estas
realidades apresentam. Mesmo com todos os conhecimentos e respeito que possuem com
relação a estas cachoeiras muitos alagam, pessoas morreram nestas cachoeiras, bens
materiais são perdidos. As cachoeiras mesmo que tenham contribuído para o surgimento
dos povos indígenas não perdoam para quem não tiver prudência com elas.
Hoje em dia existem outros recursos materiais quem nem se comparam com as
histórias de nossos avôs. Hoje maioria possui motores de popa, motor pessoal, motor da
comunidade, motor da escola, motor da equipe de saúde, motor do missionário etc. É mais
fácil superar algumas partes das cachoeiras, mas em outras partes a nossa prudência nos
leva a parar, arrastar nas beiradas e em outra carregar tudo pela estrada. Com cachoeiras
não dá para brincar a não ser que esteja cansado de viver e quer partir para outra; não
adianta dizer que é indígena nascido na região. Ajuda bastante ter um bom prático
(motorista), corajoso para enfrentar e superar os perigos que as diversas cachoeiras
apresentam diante do ser humano. Viajar com motores potentes (40 hp) não significa ficar
fora dos perigos. Para quem tem fé (cristã) passar por estes perigos significa rezar melhor e
com mais devoção.
Essas experiências levam-me a afirmar que para trabalhar nestas regiões há
necessidade de sermos pessoas sadias, pois nas cachoeiras temos que carregar os materiais
que levamos: motor, gasolina, rancho, medicamentos, etc. É necessário ter coragem e ter

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um coração forte, pois muitas cachoeiras são assustadoras. Para caminhar nas florestas
temos que ter saúde, ter objetivos a atingir, ter sonhos... Em algumas cachoeiras e alguns
caminhos a solidariedade dos moradores diminui os esforços que teríamos que fazer com
menos pessoas. Precisamos estar abertos para aprender outras culturas: comer comidas
regionais [quinhapira, mujeca, beiju, chibé (farinha com água), caxiri (bebida
fermentada)...].
Para visitar os Hupda (grupos indígenas) que vivem mais afastados dos rios é
necessário percorrer longas caminhadas pelas florestas, atravessar igarapés, equilibrar nas
pequenas pontas, lamaçais etc. Nessa caminhada temos que carregar nossos materiais
(mochilas, remédios, mantimentos...). Estas caminhadas pioram na época de rios enchentes
e nos obrigam a nadar. Não faltam insetos a nos picar e ferrar.
Todos estes esforços são recompensados pela alegria dos moradores ao receberem
diversos agentes: educadores, formadores, assessores, enfermeiros (as), médicos, dentistas,
missionários. Cada grupo que vai cumpre a sua tarefa de promoção da vida humana
indígena.
Os moradores de cada comunidade realizam suas atividades: trabalhos
comunitários, cultos dominicais, reúnem-se para comer quinhapira, os agentes de saúde
atendem os moradores (muitas vezes não tem remédios), os professores dão aulas, os
moradores fazem suas roças, fazem seus beijus, farinha, fazem suas festas. São pessoas que
constroem e expressam suas alegrias, dançando, fazendo seus dabucuris, tomando sua
bebida tradicional (caxiri). De vez em quando alguém cria problemas, mas as pessoas com
muita delicadeza e firmeza procuram avaliar as atitudes pessoais e comunitárias.
Após descrever algumas realidades que envolvem a Cachoeira da Onça começo a
escrever sobre o objeto principal deste artigo: as línguas faladas. A descrição ajudará na
reflexão sobre a importância da aprendizagem das línguas indígenas e língua portuguesa no
espaço familiar e no espaço escolar. Enfim, apontará para algumas perspectivas de futuro
para os indígenas e destas línguas faladas.
Alguns pontos históricos interessantes me provocaram escrever este artigo:
a) Na época das escolas salesianas, principalmente no período da existência de
internatos se falava que a educação escolar [de modelo ocidental] estava
acabando [matando] com as línguas indígenas. A história pós-internato prova
que aqueles jovens (adultos de hoje) que passaram pelos internatos não
perderam a sua língua, continuam falando. Será por que antes de entrar no
internato já falavam a sua língua indígena? Nesse tempo se obrigava a falar a
língua portuguesa usando algumas disciplinas: controle, castigos. Também esta
língua foi aprendida e, principalmente na convivência pós-internato. Os contatos
com o entorno regional e nacional levou-os a utilizar a língua portuguesa como
um instrumento necessário de comunicação.
b) A partir da metade da década de 1970 começou outra fase para os estudantes
indígenas. Muitos alunos e alunas já ficavam como alunos externos nas casas de
parentes e os próprios pais se deslocavam de seus povoados para estabelecerem

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moradias nos lugares onde estavam situadas as escolas: Pari-Cachoeira, Taracuá,
Iauareté... Uns poucos ficaram até aos últimos anos da existência dos internatos,
fim da década de 1980. Tanto para uns e para outros não existia a
obrigatoriedade de falar a língua portuguesa nem proibição para falar a língua
indígena. Os alunos falavam a língua indígena e aprendiam voluntariamente a
falar a língua portuguesa. Como os ex-alunos internos, também estes
aprenderam a utilizar a língua portuguesa como importante instrumento de
comunicação nos contatos com os povos que só falavam a língua portuguesa.
c) Há uma década e meia entramos numa outra etapa histórica da educação escolar.
A educação escolar de modelo ocidental que começou com os internatos
salesianos, que continuou na época pós-internato, com surgimento de
professores indígenas e ocupação dos mesmos em todas as salas de aula, é
colocada sob suspeita: os professores indígenas continuam com a mesma
metodologia de ensino escolar dos salesianos? O que pensávamos que mudaria
quando indígenas se tornassem professores e não mudou? O que reivindica a
educação escolar indígena hoje? Aquilo que os responsáveis pela educação
escolar indígena, indígenas e não-indígenas, reivindicam em favor de seus
parentes corresponde à reivindicação dos povos indígenas da região?
As diversas realidades que emergem em Cachoeira da Onça são terrenos férteis
para os pesquisadores. Não é à toa que neste lugar já passaram tantos pesquisadores para a
elaboração de suas dissertações de mestrados e teses de doutorado. Esta realidade, também
é verdadeira: muitos deles continuam engajados com a sociedade local [assessores...] e
outros nunca mais apareceram na região. Eu, também parto desta mesma realidade focando
o aspecto das línguas faladas num contexto da construção [fortalecimento,
aprimoramento...] da educação escolar indígena. É uma brevíssima reflexão não é uma tese
de doutorado, mas que precisa ser aprofundada pelos gestores, professores e encarregados
pela educação escolar indígena.
A Cachoeira da Onça como já disse anteriormente, é um lugar complexo. Aqui
existem muitas pessoas, de muitas etnias, muitos jovens, adolescentes e crianças71. A
Cachoeira da Onça possui um recurso que facilita o funcionamento de muitas atividades:
energia elétrica (Manaus Energia). Por causa da energia é possível ter: televisão, funcionar
aparelhos de som, geladeiras, DVD [filmes, música...].
A Cachoeira da Onça é um cenário humano interessante e rico. Aqui atualmente as
crianças desde cedo, quando começam a falar, fala a língua portuguesa. Os casais jovens
[pais e mães] já lhes ensinam as palavras portuguesas muito cedo e as crianças aprendem
rapidamente. Os adolescentes e jovens costumeiramente falam a língua portuguesa. É uma
geração que apresenta dificuldades para falar a língua tukana que é língua mais falada na
região denominada Triângulo Tukano [Pari-Cachoeira, Taracuá e Iauareté].
Neste contexto quando eu queria falar com crianças, adolescentes e jovens eu ficava
muito indeciso na escolha da língua a utilizar para conversar com eles/as. Eu pensava assim
71 REZENDE, J. S. CRIANÇAS INDÍGENAS DE IAUARETÉ: fortalecimento das identidades e diferenças!
Iauareté, 20-21/10/2008.

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comigo: vou falar com língua tukana para que eles/as entendam melhor. Mais interessante é
o que vou mostrar: se eu decido falar/explicar em língua tukana sobre um assunto e depois
pergunto: vocês compreenderam? Eles/as me dizem que não compreenderam! Mudo de
metodologia: deixo a língua tukana de lado e explico em língua portuguesa e pergunto:
vocês entenderam? Eles/as me respondem que não! Pelas atitudes deles/as vejo que não
entenderam mesmo! Diante desta realidade eu comentava com os pais: nós precisamos criar
uma terceira língua aqui, porque estas crianças, adolescentes e jovens estão passando por
um processo de mudança muito forte em questão da compreensão das línguas faladas.
Estas características apresentadas por eles/as não significa que não entendam. As
realidades vividas pelas crianças, adolescentes e jovens são bastante complexas. Veja estas
realidades: a) com algumas crianças pensando que elas só falam a língua tukana eu falo em
língua tukana e elas me respondem em língua portuguesa. Neste caso tenho que mudar
rapidamente para a língua portuguesa; b) com algumas crianças pensando que falam a
língua portuguesa eu falo em português e elas me respondem em língua tukana. Aqui tenho
que passar a falar a língua tukana. Como se pode perceber as crianças entendem as duas
línguas pelo menos. Tem aquelas crianças que falam somente a língua portuguesa, mas
entendem outras [não falam].
Estas realidades não são assustadoras. Aqui é que surgem novos contornos para as
duas línguas. As crianças, adolescentes e jovens vão falando a língua em retalhos, isto é, as
partes que conseguem falar em língua portuguesa falam. Quando não conseguem expressar
em língua portuguesa falam a língua tukana. Eles/as aceitam isso com muita naturalidade.
Tem facilidade de movimentação em dois mundos diferentes. É interessante porque estas
duas línguas possuem lógicas diferentes. Eu também faço assim mesmo, principalmente
quando têm indígenas e não-indígenas falo as duas línguas. Muitos adultos fazem assim e
isso nos mostra a nossa capacidade no campo lingüístico.
Outra realidade bem presente e interessante é esta: posso falar com eles/as em
língua tukana e eles/as me responderem em português; posso falar em português com
eles/as e eles/as me responderem em língua tukana. Aqui é necessário que saibamos as duas
línguas. É riquíssima esta realidade: nós podemos dialogar com duas línguas diferentes e
entendermos muito bem, pois assim já faziam os nossos avôs: o parentesco facilitava o
diálogo entre duas pessoas com línguas diferentes.
Todas estas realidades desestruturam as compreensões que os mais velhos possuem
sobre a importância das etnias e suas línguas etc. Estas crianças, adolescentes e jovens não
reivindicam mais a originalidade de suas línguas étnicas. Para eles/as suas línguas são
aquelas que estão falando.
Aqui surgem velhas questões que já existiam em época de internatos: indígena
tornar-se não-indígena [“branco”]. Para muitas crianças durante estes dois anos que eu
passei em Cachoeira da Onça eu perguntava: por que vocês só falam a língua portuguesa?
Elas me respondiam: o senhor ainda é índio? Pelas respostas delas dá para pensar que elas
falando a língua portuguesa não se sentem mais indígenas. Tal situação deve mexer muito
com as suas personalidades indígenas. Enquanto elas pensam e assumem essas novas

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identidades estão os pais preocupados com os filhos e filhas que não falam mais as línguas
indígenas.
E, neste cenário qual é o papel da educação escolar indígena? Principalmente para
estas crianças, adolescentes e jovens o primeiro desafio está relacionado ao ensino da
língua indígena. Eu constatei também que, geralmente os filhos e filhas de professores são
os que menos falam a língua indígena.
Onde estas crianças, adolescentes e jovens aprendem a língua portuguesa? Existem
muitos fatores que geram esta realidade: desde cedo assistem televisão; os pais compram
vídeos que eles assistem [desenhos animados, filmes, músicas...]. Na sala de aulas
encontram professores que só falam a língua portuguesa, escrevem a língua portuguesa etc.
Na convivência do dia-a-dia põem em prática o que aprendem.
Algumas perspectivas que se pode tirar da Cachoeira da Onça e seus habitantes:
1. Para ensinar a língua indígena com sucesso os gestores e professores terão que
fazer decisões politicamente corretas, isto é, valorizar todas as línguas sem
privilegiar alguma língua, visto que neste lugar os estudantes descendem de
várias etnias. A valorização das línguas exigirá a reformulação do currículo
escolar e remanejamento do quadro de professores.
2. A situação aponta para uma tendência: os indígenas se tornarão mais falantes da
língua portuguesa do que a própria língua indígena. As bases para a recuperação
e revitalização das línguas étnicas podem estar nas pequenas escolas indígenas
localizadas fora da Cachoeira da Onça que são mais étnicas, onde aprendem a
falar a língua étnica [Piratapuia, Wanano, Kubeu, Desano, Tuyuka, Tukano,
Tariano], procuram recuperar e fortalecer algumas práticas culturais.
3. Há necessidade de estabelecer discussões aprofundadas para projetar modelos de
escolas indígenas para grandes centros, como Cachoeira da Onça, que é um
espaço pluricultural e plurietnico. Se não houver isso continuará sendo uma
escola de modelo ocidental disfarçando-se de indígena.
4. Estas crianças, adolescentes e jovens da Cachoeira da Onça levam muita
vantagem sobre os alunos de outras escolas das cidades, pois pelo menos já
falam duas línguas [português e tukana] e entendem mais outras: Wanano,
Piratapuia, Desano, Kubeo... Já estão aprendendo a língua espanhola.
Conduzindo melhor os processos de aprendizagem das línguas os alunos
indígenas podem se tornar grandes poliglotas.
Fechando este pequeno artigo digo que os povos indígenas em toda região do rio
Negro/AM estão produzindo muitas mudanças culturais. Os projetos políticos pedagógicos
das escolas indígenas em construção e em consolidação precisam estar atentos para os
processos de construção [desconstrução, reconstrução] e ressignificação de sistemas de
valores e práticas culturais.

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O MÉTODO ETNOGRÁFICO72
E AS PESQUISAS COM OS POVOS INDÍGENAS73
Justino Sarmento Rezende74
Este IV SIMPÓSIO INTERDISCIPLINAR SOBRE OS POVOS INDÍGENAS
com o tema Pesquisa com os Povos Indígenas: Avanços, Desafios e Perspectivas,
proporcionam-me um espaço para falar dos povos indígenas da bacia do rio Uaupés75,
povos com os quais convivo há alguns anos: Arapaso, Bará, Carapanã, Desano, Piratapuia,
Wanano, Kubeu, Mirititapuia, Yeba-masa, Tariano, Tukano, Tuyuka e outros.
Quando se trata de Método Etnográfico realizada pelos próprios indígenas, nesta
região, é algo bastante recente, pois algumas pessoas começaram a organizar as narrativas
mitológicas e outros conhecimentos como trabalhos descritivos somente nas últimas
décadas, principalmente motivados pelo Movimento Indígena (1970ss.). Escreveram suas
histórias como compromisso de fortalecimento da identidade, defesa da cultura,
reivindicação de respeito e visualização das riquezas culturais, principalmente entre seus
aliados.
Maioria dos trabalhos descritivos começou pelas narrativas mitológicas sobre o
começo da humanidade por serem elementos fundadores das existências humanas. As
histórias, lendas e outras práticas culturais, também fazem parte das etnografias. Como são
narrativas de uma região de multi-étnica existem muitas semelhanças e diferenças de
conteúdos. Os temas sobre as concepções cosmológicas, filosóficas, políticas, éticas,
pedagogias, sobre as divindades e seres existenciais são transversais
Os processos de produção de semelhanças e diferenças começam pelos casamentos
interetnicos. São eles que fortalecem novos discursos e surgimentos de novas práticas
culturais. As diferenças aparecem mais no plano discursivo para reivindicar o que é próprio
da etnia, a originalidade. Mas também isso nos deixa sob suspeita.
Uma olhada pela história destes povos nos mostra que é pouco o que se escreve.
Aqueles que escrevem descrevem partes de suas histórias, mitologias, memórias, lendas.
Assim a ORALIDADE continua sendo o método e pedagogia mais eficiente para expressar
modos de pensar, ser, guardar e veicular a memória de uma geração para outra.
72 Lévi-Trauss: Etnografia é a coleta direta e mais minuciosa possível dos fenômenos que observamos, por
uma impregnação duradoura, contínua e é um processo que se realiza por aproximações sucessivas.
73 Artigo escrito para participação da mesa redonda durante o IV SIMPÓSIO INTERDISCIPLINAR SOBRE
OS POVOS INDÍGENAS, com o tema: Pesquisa com os Povos Indígenas: Avanços, Desafios e Perspectivas.
Evento organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Povos Indígenas (NIEPI) da Faculdade
Salesiana Dom Bosco (Manaus), no dia 16/04/2009.
74 O autor é indígena da etnia Tuyuka, nascido (1961) no distrito de Pari-Cachoeira, município de São Gabriel
da Cachoeira/AM. É membro da Sociedade de São Francisco de Sales (Salesianos). É sacerdote desde o ano
de 1994. É mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande/MS
(Fevereiro de 2007).
75 Refiro-me à bacia do rio Uaupés localizada no município de São Gabriel da Cachoeira/AM. Três distritos
são habitados por estes povos: Pari-Cachoeira (rio Tiquié), Taracuá e Iauareté (rio Uaupés). Estes distritos,
também são denominados de Triângulo Tukano pelo fato dos habitantes utilizarem a língua tukana como
língua na comunicação interétnica.

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Os narradores e escritores indígenas antes de escreverem as mitologias, histórias,
memórias, músicas, lendas passam pelos processos: 1) de contar-ouvir e re-contar-repetir
as narrativas do sábio; 2) de memorização meditativa: coletiva e individual. Maioria dos
escritos é trabalho coletivo: familiar, associação indígena (assembléias), escolas indígenas
(oficinas); outros trabalhos são individuais: autobiografias.
O conhecimento que eu tenho de alguns escritores indígenas me permite
apresentar algumas de suas características: a) são pertencentes às suas etnias; b) possuem
diversos graus de contato com outros povos que lhes permitem afastar-se de sua etnia,
passar por um processo de estranhamento; c) a etnografia produzida afirma sua identidade e
diferença étnica em contextos interetnicos e interculturais; d) escrevem saberes de alguns
indivíduos, geralmente de sua família, e, evitam escrever assuntos considerados étnicos (do
coletivo); e) as etnografias das escolas indígenas e das Associações indígenas, sim, são
produções interculturais (interétnicos).
A partir desta análise vejamos os seguintes escritos.
A) Produções das escolas e associações indígenas: ¢TÃPINOPONA BASAMOR–. [São
Gabriel da Cachoeira]: AEIT¢; FOIRN, 2003. 3 CD’s (80 min). (Cantos Dançados Tuyuka). AEIT¢. B¡toa
masirere mamara t¡geñare. ¢tapinopona Bueriwi saiña masi buere (Pensamento dos jovens a partir dos
conhecimentos dos velhos, ensino com pesquisa - conhecimento através de pesquisa). No prelo. AEIT¢;
FOIRN; ISA. ¢tapinopona keore, saiña hoa bauaneriputi (Guia para continuar pesquisando a matemática
tuyuka). São Gabriel da Cachoeira, 2004. AEIT¢; FOIRN; ISA. Histórias tuyuka de rir e de assustar.
[organização e tradução João Bosco Rezende e Flora Dias Cabalzar], São Gabriel da Cachoeira, 2004.
AEIT¢; FOIRN; ISA. Kiti wederira t¡ohoarira (Histórias tuyuka de rir e de assustar), São Gabriel da
Cachoeira, 2002. AEIT¢; FOIRN; ISA. Mariya dita iñan¡n¡se masire (Nossa Terra. Conhecimentos para o
manejo). Brasília: MEC/SEF, 2001. AEIT¢; FOIRN; ISA. Waik¡ra w¡ra (Bichos da terra e bichos do ar)
[autor Gustavo Barbosa], São Gabriel da Cachoeira, 2002. AEIT¢; FOIRN; ISA. Wiseri Makañe
Niromakañe – (Casa de Transformação: origem da vida ritual Utapinopona Tuyuka). Histórias contadas por
membros da AEIT¢, Associação Escola Indígena Utapinopona Tuyuka. São Gabriel da Cachoeira, AM; São
Paulo, SP: 2005. CARVALHO, Crispiniano (org.). Pa’mr-masa: a origem do nosso mundo: revitalizando as
culturas indígenas dos rios Uaupés e Papuri. São Paulo: Saúde Sem Limites, 2004. GARCIA, Pedro (org.).
Upíperi kalísi: histórias de antigamente – histórias dos antigos Taliaseri-Phukurana. UNIRVA/FOIRN, 2000
(Coleção: Narradores Indígenas do Rio Negro – Vol. 4). KHÍRI, Tõrãm£ (Luiz Gomes Lana). Antes o
mundo não existia: mitologia dos antigos Desana-Khíripõrã. 2a ed., São Gabriel da Cachoeira: UNIRT,
FOIRN, 1995 (Coleção: Narradores Indígenas do Rio Negro – Vol. 1). KISIBI (Dorvalino Moura Fernandes).
Mitologia sagrada dos antigos desana do grupo wari dihputiro põrã. São Gabriel da Cachoeira:
UNIRT/FOIRN, 1996 (Coleção: Narradores Indígenas do Rio Negro – Vol. 2). MAIA, Arlindo (org.). ˜
y†k™s™m™a masîke’: o conhecimento dos nossos antepassados: uma narrativa Oyé. São Gabriel da
Cachoeira: COIDI/FOIRN, 2004 (Coleção: Narradores Indígenas do Rio Negro – Vol. 6)
B) PRODUÇÃO INDIVIDUAL: GENTIL, Gabriel dos Santos. Mito Tukano: Quatro Tempos
de Antiguidades – histórias proibidas do Começo do Mundo e dos Primeiros Seres. Tomo I, Wadgut, 2000.
TARIANO, Ismael. Mitologia tariana. Manaus: Editora Valer, 2002.
Neste panorama de escritores indígenas eu, também ensaio algumas produções
etnográficas (não são publicadas porque Justino não tem patrocinadores! Sempre tem
promessas, também da FSDB!) que se movimentam entre dois eixos: 1) são produções
autobiográficas sobre aprendizagens, sentimentos, memórias, fatos etc. 2) São produções
interpretativas das realidades utilizando alguns conceitos étnicos, mitológicos,
antropológicos, filosóficos, sociológicos, pedagógicos, teológicos e religiosos.

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As minhas etnografias mostram diversos elementos que mostram os saberes
indígenas e precisariam estudar detalhadamente, uma por uma. Aqui não estamos para isso.
As etnografias são estas:
1. QUINHAPIRA76
Elaborei este trabalho em 1999, quando eu estava morando em São Paulo/SP,
vivendo longe dos meus parentes tuyuka e sem quinhapira, por isso, o título do trabalho foi
escrito em língua tuyuka: Biar¡ yara atiya! Venham comer quinhapira! Refeição
familiar e comunitária. Este trabalho descreve em detalhes muitas realidades que envolvem
a quinhapira: sua preparação e participação; tarefa da mulher, homem, família e
comunidade; vida de trabalho; diversos significados para a educação da pessoa;
significados para as convivências interétnicas.
Em 2008 quando eu estava em Iauareté, ambiente indígena, onde eu participava da
quinhapira, eu retomei e reelaborei porque percebi que havia aumentado as mudanças e
variedades da compreensão e prática da quinhapira. E, finalmente, em março/2009
transformei o trabalho num texto didático para aqueles que quiserem estudar algo sobre a
educação indígena dos povos da bacia do rio Uaupés.
2. ESCUTANDO OS MEUS PAIS!
Elaborado em 2005 quando eu estava em Campo Grande/MS. Seguindo o
Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação/UCDB (Linha de Pesquisa 3:
Diversidade Cultural e Educação Indígena), estudávamos muitos temas indígenas e
provocou-me a escrever algo que aprendi com os meus pais em Onça-Igarapé (1961-1979).
São ensinamentos simples organizados em forma de pequenos diálogos77, mas em
cada diálogo se faz presente uma filosofia de vida etc. Seguem pequenas explicações
complementares e interpretativas. Também, este trabalho, em março/2009 foi reorganizado
num texto didático com o nome: Ouvindo, Vendo e Fazendo. O trabalho está organizado
em três línguas: Tukano78, Tuyuka79 e Português. Assim quem estiver utilizando este texto
terá contato pelo menos com duas línguas indígenas.
3. UM DIA DE MINHA INFÂNCIA.
76 O termo quinhapira é uma palavra em nheengatú (língua geral) que significa Peixe na/com pimenta
(quinha: pimenta; pirá: peixe). Já nas línguas Tuyuka (biar¡) e Tukano (biat¡) significam recipiente de
pimenta.
77 Estes diálogos de forma mais ampliada foram publicados em 1990: Noa tho niati teré? “Quem foi que
disse isso?”: Leituras pré-escolares para Tukanos. Manaus: SEDUC/ART, 1990. Estes mesmos diálogos
receberam nova organização feita por mim em 2005. Titulo: ESCUTANDO OS MEUS PAIS. Neste trabalho
acrescentei pequeno vocabulário após cada diálogo e a mensagem de cada diálogo (enviado para os amigos
via e-mail).
78 Na bacia do rio Uaupés já existem várias maneiras de escrever a língua tukana. Nenhuma forma foi
assumida como oficial. Esta escrita é mais outra maneira. O nome mitológico do Tukano é Yepâ-masa.
79 O Tuyuka autodenomina-se ¢tãpinopona: ¢tã (Pedra), Pino (Cobra), Pona (Filhos): Filhos-da-Cobra-de-
Pedra.

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No dia 26/11/2005 (Campo Grande/MS) elaborei este trabalho. Os estudos que
fazíamos sobre as pedagogias indígenas me provocaram a entrar no meu interior, aldeia
imaginária e reviver um dia de minha infância vivido com muita intensidade com os pais,
com o estilo de vida, com o estilo da casa, atitudes de uma criança frente à vida adulta,
concepções sobre a presença de pais, sentido da noite, do tempo, do trabalho, dos jogos etc.
4. AVENTURAS DE UM ÍNDIO80.
São oitos fatos elaborados no dia 18/04/2006 (Campo Grande/MS). Estes trabalhos
fazem releituras de alguns fatos acontecidos comigo, em diferentes contextos, com
diferentes pessoas, com diferentes reações. A partir de cada aventura há discussão sobre
alguns conceitos antropológicos que circulavam no momento de meus estudos. As
narrativas não querem ser apenas simples narrativas, mas querem mostrar como os “outros”
olham o indígena. Também, como os indígenas olham outros indígenas. Por isso, as
narrativas possuem diversas intencionalidades. Algumas delas: mostrar os estereótipos,
discriminações, ignorância, preconceitos, medos, desconfianças, superioridade e
inferioridade, compreensão das identidades e diferenças, relações de poder, dominação
(relação dominador X dominado), etnocentrismo etc.
Este trabalho foi publicado com o mesmo título Aventuras de um índio pela
Revista TELLUS, ano 6, n. 11, p. 155-169, out. 2006, Campo Grande – MS.
Posteriormente o mesmo trabalho foi utilizado por Oscar Calavia Sáez, professor do
Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina com o título
Autobiografia e liderança indígena no Brasil, artigo publicado pela Revista TELLUS, ano
7, n.12, p. 11-32, out. 2007, Campo Grande – MS.
5. REPENSAR A “CIVILIZAÇÃO”.
Elaborei este trabalho no dia 22/09/2006 (Campo Grande/MS). É uma etnografia
sobre o espaço AUDITÓRIO e seus PARTICIPANTES. Nela trabalho os contrastes
existentes entre a educação indígena e educação acadêmica (universitária). A etnografia
coloca no centro a pessoa para mostrar como os indígenas demonstram o respeito e a
consideração pela pessoa e, por outro lado, discute sobre a situação de indiferença existente
no espaço onde estão presentes os acadêmicos (universitários) que não correspondem às
saudações dos cerimoniais, dos palestrantes etc. Algumas questões que ficam: quanto mais
o ser humano estuda menos humano se torna? Esta situação de indiferença e desvalorização
da pessoa é que se chama “civilização”?
6. ESPIRITUALIDADE INDÍGENA: a noite como construção da vida!
Esta etnografia foi elaborada no dia 05/08/2008, em Manaus. Descreve alguns
simbolismos da vida que a noite revela aos seres humanos: as águas noturnas, os pássaros
80 1) “Antigamente os brancos é que iam evangelizar os índios e agora, os índios que vêm evangelizar os
brancos”. 2) “Eu não confio nos índios.” 3) “Mamãe, ele é padre? Por que fala em Tukano?” 4) “Nós estamos
sempre combatendo os missionários e vocês se tornam padres?” 5) “Você não pode fazer o povo dar risadas
na missa.” 6) “Padre Justino, você está na profissão errada!” 7) Você pode ser muito bom na sua língua, mas
em inglês, você é péssimo!” 8). “Eu sou ruim para flechar?”

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noturnos, seus cantos e suas mensagens; leituras que o homem e mulher fazem sobre as
diversas realidades que aparecem durante a noite: as estrelas, isoladas e em conjunto; o
silêncio e a escuridão como fontes facilitadores da pesca e caça; para repouso e meditação
dos velhos sábios; cantares de sapos, macacos, corujas que anunciam o tempo bom; cantar
dos galos que anuncia o novo dia; a preocupação das mulheres com seus maridos que vão
para pescaria etc. É um trabalho valioso, porque contrasta com o campo religioso, teológico
que apresenta a escuridão como ausência da vida, presença da tristeza etc. Aqui recupero as
figuras de velhos que meditam durante a noite. Eles são filósofos e teólogos que voltam
para o passado, retornando para o presente, preveem o dia seguinte (o futuro) e
redirecionam os projetos de vida.
7. PESCARIA
Esta etnografia foi produzida em Janeiro-Fevereiro/2008 quando eu morava em
Iauareté/AM. Ela mostra que as memórias presentes na minha vida são importantes para
mim porque fortalecem a minha vida e as minhas identidades que são continuamente
construídas, reconstruídas. Esta etnografia apresenta inúmeros ensinamentos de uma prática
cultural, a pescaria: a preparação do espírito pessoal para pescaria, preparação de
instrumentos da pesca; viagens, alimentação, busca de iscas, colocação de armadilhas
(distâncias e efeitos); como o pai trata seu filho (criança) na canoa; como proteger o filho
para não pegar a chuva; assar peixe para alimentar; espera por parte de quem ficou em casa;
partilha da comida entre os moradores da comunidade; utilização das ervas para uma boa
pescaria; conhecimentos das florestas, igarapés; conhecimentos de lugares de pesca,
profundidade etc.
8. CRIANÇAS81 INDÍGENAS DE IAUARETÉ82: Fortalecimento das identidades e diferenças!
Esta etnografia foi produzida nos dias 20-21/10/2008 para descrever sobre as
realidades das crianças, meninos e meninas, adolescentes e jovens de Iauareté. Não trabalho
com categoria cronológica, mas com simbologias, imaginários. Estas crianças possuem
nomes étnicos, nomes de benzimentos, sagrados, mitológicos. Durante ou depois de algum
tempo conforme as normas de cada etnia o benzedor e os pais escolhem um nome para a
criança. O próprio nome significa a sua vida, projeto de vida, fundamentada numa das
Casas de Transformação, no mito de origem da humanidade e do mundo. Estas crianças
possuem, também, nomes ocidentais, nomes registrados nos cartórios, nas secretarias
paroquiais. São nomes de santos, nomes de artistas e atores de cinemas, novelas, etc. Hoje
fazem partes das culturas indígenas. São crianças de diferentes etnias, nasceram em
diferentes povoados e muitas delas hoje moram em Iauareté.
Esta etnografia mostra a complexidade de interpretações sobre as identidades
indígenas: indígenas que falam suas línguas étnicas e outras que não falam; só falam a
língua portuguesa; professores (as) que não falam a língua indígena no espaço escolar; os
81 O termo Crianças aqui está incluindo: crianças, adolescentes e jovens.
82 Iauareté é chamado de Cachoeira da Onça; outros escrevem: Cachoeiras das Onças. Iauareté é um distrito
do município de São Gabriel da Cachoeira/AM. Localiza-se na fronteira Brasil-Colômbia. Antropólogo
Geraldo Andrello chama Iauareté de Cidade do índio (cf. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro:
NUTI, 2006)

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pais que com os filhos só falam a língua portuguesa; fazer afirmações dizendo que os
jovens e as crianças não gostam de práticas culturais indígenas etc. Elas não gostam porque
não aprenderam a gostar de suas práticas.
9. EM CACHOEIRA DA ONÇA83: Crianças, Adolescentes e Jovens dão novos
contornos às línguas indígenas e à língua portuguesa!
Esta etnografia foi elaborada nos dias 6-9/02/2009 estando em Manaus. Ela é
bastante complexa; apresenta diversas realidades que no ‘hoje’ dos povos indígenas do alto
rio Negro (município de São Gabriel da Cachoeira/AM) estão acontecendo, ou melhor, os
povos indígenas estão construindo (desconstruindo). No contexto atual, quando fervilham
os discursos e práticas sobre educação escolar indígena (uns dizem: escola indígena
diferenciada; escola indígena; escola diferenciada) esta etnografia é mais um instrumento
para ajudar na reflexão, elaboração de projetos políticos pedagógicos, metodologias de
ensino e até mesmo suscitar algumas dúvidas.
Esta etnografia surge a partir da minha convivência como um indígena (Tuyuka)
padre com diversos povos indígenas num lugar interessantíssimo chamado Cachoeira da
Onça Iauareté e, também conhecido como Cidade do índio84. Não foi a primeira vez que
eu estive ali, pois em outros tempos já havia convivido com os povos que vivem neste lugar
(1994-1996 e 2004). Estes convívios me proporcionam perceber os processos contínuos de
construção (desconstrução) de sistemas de valores e práticas culturais. Estes povos buscam
cotidianamente serem diferentes de seus avôs e, ao mesmo tempo buscam recuperar e
fortalecer alguns saberes e práticas culturais que os tornem semelhantes aos seus avôs85,
mesmo que sejam apenas nos discursos que os mantêm numa comunidade imaginada
[comunidade que fala a sua língua, mas inexistente na realidade...]. As pessoas tornam-se
aprendizes de novos (velhos) saberes e de novas (velhas) práticas de vida.
Finalizo esta colocação dizendo que as etnografias indígenas apresentam: 1)
AVANÇOS: ajudam os indígenas a se olharem como eles são e como querem ser vistos por
outros povos. 2) DESAFIOS: nós estamos escrevendo sobre nós mesmos, nossas culturas
(etnias), nossas práticas de vida, nossas memórias. Nós somos pesquisadores de nós
mesmos! Somos psicólogos de nós mesmos, pois escrevemos o que está em nossa
interioridade! Transcrevemos os saberes acumulados em nossas memórias desde o dia em
que começamos a viver! Provocados pelas teorias acadêmicas ocidentais queremos
interpretá-los. 3) PERSPECTIVAS: cada vez mais os indígenas organizem seus saberes
escrevendo-os, para que estes saberes se tornem propriedades intelectuais indígenas para
novas gerações. Desafio maior é de passar de uma mentalidade étnica, para uma
mentalidade mais coletiva, global. Neste sentido as etnografias indígenas não devem ser
83 Cachoeira da Onça [em língua tukano: Yawa poea] é conhecida como Iauareté, palavra que deriva do
nheengatu. É um distrito que possui aproximadamente 7.000 pessoas, dos quais 4.000 pessoas vivem em
Iauareté-centro, durante o ano letivo. Localiza-se na fronteira do Brasil com a Colômbia, no município de São
Gabriel da Cachoeira – AM.
84 Antropólogo Geraldo Andrello chama Iauareté de Cidade do índio (cf. São Paulo: Editora UNESP: ISA;
Rio de Janeiro: NUTI, 2006)
85 Utilizo o termo avôs, no sentido masculino, pois entre os povos indígenas do alto rio Negro o critério de
pertença étnica é determinado pelo homem. A palavra correspondente em língua portuguesa é
antepassados.

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reverenciadas, respeitadas e promovidas somente pelos povos indígenas, mas por todo
Estado Nacional.

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PEDAGOGIA DA VISITAS
Breve descrição das visitas às comunidades indígenas
Pe. Justino Sarmento Rezende86
INICIANDO A CONVERSA
O artigo elabora uma breve descrição sobre a itinerância como um dos elementos
constitutivos da ação pastoral dos Salesianos de Dom Bosco (sdb) na região do alto rio
Negro/AM. Os salesianos estão nesta região desde a metade da década de 1910: São
Gabriel da Cachoeira: 1915; Taracuá: 1923/1924; Iauareté: 1927 (1929) e Pari-Cachoeira:
1940. Utilizo o título PEDAGOGIA DAS VISITAS por entender que a itinerância salesiana
possui modos próprios de trabalhar apesar de muitas variáveis e semelhanças nas
práticas. O artigo não discute sobre a origem de tal prática nem trata das diversidades de
práticas com esta ou aquela nomenclatura.
REVISITANDO AS MINHAS ORIGENS
Eu nasci na comunidade87 Nossa Senhora da Assunção, também, conhecida como Onça-
Igarapé88. Este igarapé possui águas transparentes e frias. É assim porque as imensas
árvores envolvem o pequeno igarapé com suas sombras. Algumas brechas existentes
permitem que os raios de luz do sol deem efeitos especiais para quem passa pelo rio. Nas
árvores não faltam os cantares dos pássaros e dos grilos.
Ao redor e acima da comunidade existem algumas cachoeiras. Nelas meus parentes e eu
banhávamos, brincávamos nadando de um canal para outro, pulando de uma pedra para
86 O autor é indígena da etnia Tuyuka. É sacerdote da Sociedade de São Francisco de Sales (Salesianos),
desde o ano de 1994. É Mestre em Educação [2007] pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo
Grande – MS [Linha 3: Diversidade cultural e educação indígena]. Como sacerdote já atuou nas Missões
Salesianas do Rio Negro, particularmente na Missão Salesiana de Iauareté nos anos: 1994-1996; 2004; 2007-
2008. Este artigo foi produzido nos dias 6/2-23/04/2009.
87 Neste artigo optei usar o conceito comunidade. Ao lado dela, o conceito povoado, aldeia e sítio são bem
utilizados pelos moradores da região do alto Rio Negro. A palavra comunidade expressa um cunho mais
religioso cristão. O uso de qualquer uma destas palavras está revestido de sentidos bem diferentes, políticos
e ideológicos.
88A palavra Onça-igarapé é tradução de palavras indígenas. Sua origem é interpretada assim: uns dizem que
o nome original seria Yâi-hiriya que significa Igarapé onde a onça uiva; outros dizem Yâi-ñiriya que significa
Igarapé da onça preta. Localiza-se no distrito de Pari-Cachoeira, município de São Gabriel da Cachoeira/
AM/BRASIL.

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outra, de uma pedra e para as águas. Mergulhávamos no fundo do rio, submergíamos das
águas, saíamos das águas, corríamos em terra e voltávamos a cair nas águas.
O nosso igarapé não possui fartura de peixes. Para quem nasceu ali e conhece os segredos
do igarapé nunca faltaram peixes para sustentar alimentação familiar e comunitária. As
imensas florestas e as terras possibilitam a coleta de diversas frutas, favorecem as caçadas
de animais, insetos, formigas e preparo das roças. A natureza e os trabalhos humanos
nunca deixaram que as pessoas passassem necessidades.
ITINERÂNCIA E MINHA INFÂNCIA
Os espaços primeiros de minha convivência social foram a nossa casa, nossa família e
nossa comunidade. Depois veio o espaço segundo: a vida de internato (1970-1979) da
Missão Salesiana de Pari-Cachoeira89. Convivendo nestes espaços eu compreendia que a
itinerância e itinerante eram assuntos que tratavam do padre que passava visitando as
diversas comunidades ao longo do ano. Viajava de motor, levando gasolina, alimentação...
Onde havia cachoeiras tinha muito trabalho: arrastar a canoa, carregar motor e outros
materiais. Para visitar as regiões onde não era possível chegar à comunidade pelo rio fazia
suas viagens pelos caminhos em meio às florestas, carregando sua mochila cheia de
materiais a serem utilizados durante a visita.
As viagens do padre itinerante são cheias de surpresas. O dia ensolarado faz com que o
padre pegue o sol e fique com o rosto moreno; quem é indígena como eu fico com rosto
escuro de tanto pegar o sol; em dias de chuva se pega a chuva, fica com frio; se vai pelo
caminho passa pelos lamaçais, atravessa os igarapés em cima de pontes improvisadas; na
época das enchentes atravessa alguns trechos do caminho com água até a cintura do
corpo; nos igarapés maiores atravessa nadando, leva picadas de insetos.
Muitos padres devem ter visitado nossa comunidade antes de eu existir neste mundo e
depois. Alguns padres estão bem presentes em minha memória: Pe. Antonio Scolaro
(falecido), Pe. Eduardo Lagório (falecido) e outros. Como se pode perceber o meu contato
e o conhecimento sobre a prática da itinerância salesiana começaram desde o seio
familiar. Nasci dentro de uma família cristã. Nela eu percebia que o meu pai estava muito
ligado à vida de oração em família e na comunidade. Quando eu nasci o meu pai já exercia
sua tarefa de ser catequista da comunidade e morreu como catequista [1996]. O meu pai
todos os dias tocava sino90 da capela, convocando as pessoas da comunidade para a
oração da manhã. Ao ouvir o sino as pessoas dirigiam-se para a capela. Após terceiro sinal,
o meu pai começava a oração intercalando com cantos e outras orações. No dia de
domingo lia a Bíblia e explicava. Dialogava com os participantes sobre o sentido da Palavra
89 A obra salesiana de Pari-Cachoeira começou no ano de 1940 e foi entregue ao Bispo da Diocese de São
Gabriel da Cachoeira no final do ano de 1998/1999.
90 Antes da aquisição do sino, batíamos com a enxada ou com pedaço de ferro.

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de Deus na vida da comunidade; conversavam sobre as realidades que impediam de
colocar em prática a Palavra de Deus.
Quando eu tinha cinco anos para frente, todos os dias o meu pai me convidava para ir ao
banho cedo, dizendo que após o banho nós iríamos à capela para rezar. Assim, eu fui
entendendo a prática de um catequista. Os padres salesianos haviam encarregado o meu
pai para que assumisse a animação espiritual da comunidade e ele possuía atitude
perseverante no exercício desta tarefa.
Meu pai desde cedo, começou a envolver-me no trabalho de ajudá-lo na animação das
orações comunitárias. Primeiro serviço que ele me pediu foi o de varrer a capela, depois
me ensinou a tocar o sino da capela. Quando eu era criança os meus pais me levavam
para a Missão Salesiana de Pari-Cachoeira para as festas religiosas [Natal, Páscoa, Nossa
Senhora Auxiliadora, Dom Bosco...] e, eventualmente para vender farinha para adquirir
alguns objetos [roupas, terçado, machado, sal, fósforo...].
Aos nove anos eu fui para a Missão Salesiana de Pari-Cachoeira para estudar como aluno
interno (1970). E, nas férias voltando para casa de meus pais, continuava ajudando o meu
pai. Limpava a capela e tocava o sino. Quando eu já havia concluído a 3a Série do 1o Grau
[1974], o meu pai começou a exigir que eu entoasse alguns cantos e fizesse alguma leitura
na capela. Ele havia estudado até a 3a série, por isso, ele acreditava que eu, também, já
poderia fazer algumas tarefas para animar a vida de oração na comunidade. A partir da 4a
Série o meu pai já pedia que o ajudasse na tradução para a língua tuyuka do que era lido
da Bíblia e dos folhetos do culto dominical preparado pelos padres para ajudar ao
catequista.
A animação da vida de oração comunitária tornava-se o cotidiano do meu pai. Ele a fazia
com muito gosto. A comunidade caminhava animada pela espiritualidade cristã. Não
discuto aqui se era uma espiritualidade profunda, superficial, alienada... Essas discussões
são de pessoas que estudaram muito e julgam saber mais que os outros. O meu pai e os
meus parentes possuíam poucos conhecimentos dos estudos escolares, porém possuíam
sabedorias de nossos antepassados. Poucos conhecimentos escolares não impediam a
vivência da vida de oração comunitária e as pessoas faziam com muito zelo, gosto, paixão.
E quem sabe? Faziam-se tudo isso pelo medo do padre, do castigo, inferno? Também
estes elementos são bem presentes nos cristãos e em qualquer comunidade cristã. As
pessoas de nossa comunidade respeitavam muito o meu pai. Ele possuía profunda
espiritualidade tuyuka91 e vivia intensamente as práticas de vida cristã. A minha mãe,
sendo esposa do catequista estava sempre atuante, ajudava a entoar os cantos e na
ausência de meu pai ela que dirigia as orações comunitárias.
“VAI CHEGAR O PADRE PARA NOS VISITAR”
91 O meu avô ensinou-lhe músicas, danças, discursos mitológicos, benzimentos da cultura tuyuka.

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Com esta expressão o meu pai anunciava aos nossos parentes a vinda do padre. Alguns
padres eram acompanhados: motorista (prático), marinheiro, irmã (freira) salesiana;
outros salesianos viajavam sozinhos.
Em nossa comunidade os padres itinerantes se hospedavam em nossa casa, casa do
catequista. A impressão que eu tive desde criança sobre esta realidade era de que o meu
pai era amigo deles. Ele tinha um respeito e consideração todo especial pelos salesianos
(padres e irmãs salesianas) e eles por ele.
Alguns dias antes à chegada do padre todos os moradores da comunidade faziam limpeza
da comunidade: limpavam as casas, capinavam o pátio da comunidade, roçavam ao redor
das casas, limpavam o caminho para o porto.
As mulheres preparavam farinha boa, preparam beiju, etc. Alguns homens iam para
pescaria, outros para caça e outros iam buscar frutas, etc. No dia marcado para a chegada
do padre todos os moradores eram convidados para ficar esperando para fazer uma
recepção ao padre.
O meu pai pedia para que as crianças, adolescentes e jovens ficassem atentas ao barulho
do motor. Assim nós fazíamos. Quando ouvíamos o motor subindo o igarapé já corríamos
ao porto para esperar o padre, ajudar a carregar os seus materiais. Se ele chegasse pelo
caminho ao ouvir o latido do cachorro já corríamos ao encontro do padre para recebê-lo.
Para nós tudo era motivo de alegria e disputa para ver quem carregava os materiais que o
padre trazia. Os adultos sempre chegavam depois de nós. Como muito de nós não
sabíamos falar a língua portuguesa a gente só achava graça daquilo que o padre falava.
Alguns padres haviam aprendido a falar a língua tukana como Pe. Antonio Scolaro e Pe.
Eduardo Lagório. Não falavam tão bem como os falantes da língua tukana, mas dava para
entender o que eles queriam comunicar.
Entre os adultos o meu pai era o primeiro a receber o padre. Ele dizia para nós:
cumprimentem o padre! Não tenham medo! Assim nós fazíamos. Meu pai mesmo falando
bem pouco a língua portuguesa, conversava com os padres. Traduzia para a língua tuyuka
a mensagem que o padre comunicava, principalmente para velhinhos e crianças.
O relacionamento de meu pai com o povo e os padres era de muita alegria. O respeito e a
amizade que ele mantinha com os padres e o povo ajudava-o na compreensão das
mensagens que os padres comunicavam. Meu pai traduzia tais mensagens utilizando os
ingredientes culturais tuyuka. Assim a Palavra de Deus e as mensagens do padre recebiam
outros sabores mais próximos da cultura tuyuka. A construção desta amizade era fruto de
uma longa caminhada e fortalecida pela mútua confiança. O meu pai via na figura do
padre a presença de Deus.
Tendo nascido e crescido nesse clima eu conheço os salesianos e seu empenho para o
bem-estar das comunidades. E, em cada Missão Salesiana até hoje, há um padre com esta
tarefa: visitar as pessoas em suas comunidades. Tal atividade é de suma importância

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porque na maior parte do ano os moradores das comunidades não vão à sede da Missão
Salesiana92. O padre itinerante é que vai às comunidades encontrar-se com o povo,
conviver com eles.
LUGAR ONDE MEUS PAIS E EU ESTUDAMOS
Em Pari-Cachoeira desde o ano de 1940, os salesianos construíram a sede da Missão
Salesiana, um grande complexo com oficinas de mecânica, alfaiataria, marcenaria;
despensa para compra e venda de produtos; um prédio grande para dois dormitórios
grandes um para maiores e outro menores; no andar térreo ficavam salas de aulas; outro
prédio para refeitórios; outro prédio para apresentações teatrais e eventos festivos.
Também no lado feminino seguiam grandes construções: um prédio para salas de aulas e
dormitórios; outro prédio para refeitórios, salas de corte-costura, artesanato; um prédio
para Santa Casa [hospital].
A grande igreja fica localizada entre dois estabelecimentos. Nesta igreja havia celebrações
diárias de missas e nós participávamos; aos domingos havia a missa solene; na quinta-feira
e domingo acontecia a adoração ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia; uma vez por
mês fazíamos exercício da boa morte (retiro mensal); existiam muitas outras atividades
que eu não tratar neste artigo.
Para as atividades esportivas dos estudantes havia quadra para futebol de salão, quadras
para voleibol, quadra para basquetebol; mais afastado havia dois campos de futebol de
campo para meninos maiores e um campinho para meninos menores. No lado feminino,
também havia quadras de voleibol e basquete. Nos corredores havia mesas para tênis de
mesa; espaços para jogos de damas, cartas etc.
A partir destas estruturas físicas a Missão Salesiana desenvolvia suas atividades
educativas, religiosas, profissionalizantes. Ela havia chegado à região do rio Negro com
muitas propostas de trabalho com os povos indígenas: escolarização, profissionalização,
evangelização, catequese... Quem passou como estudante nas Missões Salesianas [São
Gabriel, Taracuá, Iauareté...] conhece as inúmeras atividades que os salesianos realizavam
para atingir seus objetivos em todos os campos. A itinerância é uma das atividades
salesianas, principalmente, na região do alto Rio Negro93.
92 Hoje, várias missões já foram entregues ao bispo diocesano. Ele encarrega os seus padres [diocesanos]
como párocos: Pari-Cachoeira, Taracuá...
93 Em Pari-Cachoeira as atividades que os salesianos realizavam foram diminuindo na medida em quem iam
diminuindo o número de alunos internos e acabou quando acabaram os internatos. A minha última
constatação (janeiro/2009) é muitos espaços estão abandonados e com isso caem os simbolismos destas
estruturas, positivas para alguns e negativas para outros.

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COMO ACONTECE A ITINERÊNCIA
As visitas das comunidades ou itinerância acontecem uma, duas ou mais vezes num ano.
Alguns padres itinerantes organizam estas visitas como grupo: padre, leigos [catequista...]
e freira [irmã salesiana]. Outros padres preferem viajar apenas com o motorista [prático].
Outros, ainda viajam sozinhos. Cada itinerante tem seu modo de atuar.
Fazendo memória daquilo que meu pai falava ao povo sobre a visita do padre é possível
recuperar algumas expectativas e confirmadas pela minha prática como itinerante na
Paróquia São Miguel Arcanjo – Iauareté/AM (2007-2008):
a) O meu pai dizia que o padre iria chegar. Depois dizia que viriam com ele, alguma
salesiana e seus ajudantes. A presença do padre é muito importante para a vida do
povo cristão. Padre é alguém muito esperado, principalmente quando o padre é
bom, humano, paciente, amigo, alegre, decidido, que valoriza as pessoas. O povo
cria critérios próprios para dizer se o padre é bom, simpático, sério demais, bravo
etc. E, possui critérios até para dizer que não gosta dele e para dizer que não gosta
de algumas das atitudes do padre: apressado, bravo, impaciente, autoritário, que
não dialoga etc.
b) O padre itinerante é visto e esperado como conhecedor de várias questões:
sacramentos, questões morais, sociais, políticas, econômicas... O catequista da
comunidade ao longo do ano é que conduz a animação espiritual da comunidade,
em muitos momentos, sente dificuldades na explicação de certos assuntos. A visita
do padre é uma ocasião para tirar as dúvidas, perguntar sobre as diversas questões
que circulam dentro da comunidade, sobre práticas duvidosas [aborto, casais
amigados, traição, brigas...], sobre as questões que envolvem os povos indígenas,
etc. Por isso, o padre deve proporcionar momentos que favoreçam estudos,
esclarecimentos de diversas questões que envolvem a vida humana e cristã. Se o
padre é apressado demais não oferece essa possibilidade para o povo. O
catequista e o povo da comunidade continuam com suas dúvidas. O que impede
de fazer um trabalho melhor é o fato de o padre pensar que só ele tem assuntos
para falar ao povo. Estes assuntos muitas vezes não são interessantes para a vida
da comunidade. O que para o padre é tão importante e que ele quer transmitir
para o povo não passa de informações, sem incidência na vida prática indígena.
c) Dentro das comunidades surgem vários problemas [brigas entre os membros da
comunidade, gravidez das jovens, roubos...]. A comunidade por si mesma, em
muitas questões não consegue resolver. Entre os próprios indígenas existem
outras relações de poderes: irmão maior e menor; superior e inferior; chefe e
servo. Essas categorias dificultam para resolver certos problemas internos. O padre
é alguém de fora; é neutro; pode falar sem estar envolvidos nas categorias sociais
indígenas. Ele é esperado para ajudar a resolver os problemas comunitários. Não

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pode ignorar e nem largar para que a comunidade resolva sozinha. Alguns padres,
ao invés de ajudar a resolver os problemas, acabam por gerar mais problemas.
Outra realidade é quando somos indígenas padres. Dificulta um pouco porque
também nós pertencemos a alguma categoria social. E, o fato de sermos padres
nos torna neutros frente a alguns problemas. É a complexa relação de etnias e
ministérios eclesiásticos.
d) O padre é esperado como alguém que vem fortalecer a prática dos sacramentos:
eucaristia e reconciliação; batizados, casamentos. Muitos padres são
compreensíveis às diversidades de situações cristãs que os povos vivem. Outros
padres são mais guiados pelas leis canônicas, diretórios sacramentais do que pelas
atitudes do Jesus Bom Pastor. Outros são mais guiados pela prática pastoral de
Jesus. São assuntos complexos que precisariam ser aprofundados e não fazer uma
pincelada em uma ou duas páginas. De modo geral os padres reservam um tempo
para atendimento das confissões e celebração da eucaristia. Muitas vezes os
moradores querem que o padre dê a bênção da casa; alguns padres dizem que não
dá tempo; outros aceitam dar a bênção da família e da casa. O povo que mora nas
comunidades na maioria das vezes carrega consigo a consciência de que para
receber a comunhão eucarística tem que confessar; quando, não conseguem
confessar (porque o padre está com pressa) as pessoas não comungam.
e) Durante as visitas o padre procura estudar com as comunidades alguns temas
programados a partir de um plano de pastoral: prioridades da Igreja a nível
universal, prioridades da CNBB, da Diocese e da paróquia. Além destes temas são
importantes temas: organização da comunidade, trabalhos comunitários, questão
da escola, formação de lideranças, etc.
f) O padre itinerante é um ser humano, pertencente a uma cultura [espanhol,
italiano, brasileiro e indígena (nos últimos tempos)]. Por isso, as pessoas querem
conhecer a família dele, sua cultura, tradições, costumes. É alguém que está
aprendendo com as novas culturas. Alguns padres têm mais facilidade de
adaptação à cultura indígena e outros menos. O Padre é alguém que precisa ser
entendido, compreendido e ajudado pelos indígenas. O que dificulta um pouco
mais no anúncio da Boa Nova de Jesus é o fato de muitos padres não aprenderem
as línguas dos povos indígenas com os quais trabalham. A partir de minha
experiência digo que pelo menos a língua tukana se deveria aprender para
trabalhar com os povos indígenas da bacia do rio Uaupés. Mas muitos missionários
dizem que os povos indígenas já falam a língua portuguesa e não há necessidade
de aprender a língua indígena.
g) O povo indígena espera do padre sua animação, esperança e paciência. Não
gostam do padre que vá brigar com eles em suas comunidades, mas espera dele
palavras de animação, encorajamento. O padre deve cultivar a paciência com o
povo indígena. Algumas vezes algum padre chega quando o povo não está
esperando ou já esperaram e se dispersaram para os trabalhos. De modo geral o

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povo indígena tem muita paciência com os padres apressados e bravos. Mas pelo
que eu escutei, entendi e interpreto, eles respeitam porque nós somos padres, se
nós não fôssemos tomariam outras atitudes conosco [padres].
h) A chegada de um padre sempre é motivo de festa. Os moradores de comunidade
mudam o ritmo de vida. Eles ficam em casa. Eles estão organizados para
acompanhar o padre, participar da reunião, participar da confissão e missa; comer
quinhapira com o padre (partilha de comida), bebida etc. Contar piadas e ouvir
piadas e achar graça, ficar alegres, este é o dia com o padre. É um dia cheio de
atividades e de alegria, quando o padre é bom!
ITINERÂNCIA: ANIMAÇÃO ESPIRITUAL
A itinerância como uma prática pastoral visa animar espiritualmente as comunidades
cristãs. É um trabalho organizado, continuado e acompanhado. Não é um trabalho feito
de qualquer jeito. Ela é uma ação evangelizadora das comunidades. Ela é uma prática de
um projeto pastoral [inspetorial e paroquial]. Não é um trabalho que o padre itinerante
faz do gosto pessoal, não é um projeto de um indivíduo94. Porém, cada padre [ou equipe]
itinerante imprime o carisma próprio nesta prática pastoral, coloca os seus dons, sua
forma de trabalhar, seu modo de acompanhar o povo etc.
Na região do alto Rio Negro nós já tivemos padres itinerantes que aprenderam as línguas
indígenas [Pe. Antonio Scolaro, Pe. Eduardo Lagório, Pe. Afonso Casasnovas e oturos]. Eu
penso que por causa disso os indígenas se identificavam mais com os padres, pois ficava
mais fácil comunicar com eles.
O padre itinerante deve ser alguém que procura estudar e conhecer as culturas locais
indígenas, conhecer as espiritualidades étnicas, práticas religiosas étnicas. Não deve
esquecer a sua cultura. É uma pessoa que deve fazer uma mudança pessoal fundamental
de sua mentalidade. No encontro com cada padre o povo, também faz mudanças grandes
nas práticas e nas mentalidades. Nem padre nem povo podem normatizar a vivência das
culturas (do missionário e indígena) e vivência cristã. Tanto o padre como o povo são
conhecedores dos documentos de orientações pastorais, acompanham temas sobre a
evangelização, conhecem as questões indígenas (alguns missionários não conhecem),
acompanham as exigências da Congregação Salesiana (inspetoria) e ajudam na execução
das prioridades pastorais que são aprovadas pelas assembléias, paroquial e diocesana. É
importante dizer que o povo é aquele que possui diferentes visões sobre a teologia,
eclesiologia, mariologia, ética, liturgia etc. Cada padre que chega para trabalhar transmite
seus conhecimentos. O padre muitas vezes faz opção por uma linha pastoral, teológica
etc., mas o povo muda no ritmo que mudam os padres. Por isso, muitas vezes, algumas
questões ficam muito confusas em suas vidas, pois cada padre leva para dentro daquelas
94 Apesar do esforço comunitário-paroquial-inspetorial há quem insiste fazer de sua própria cabeça.

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culturas suas visões diferentes sobre as diversas realidades que os outros padres
anteriores a ele.
Cada padre itinerante é único, com o seu jeito próprio de ser, de fazer e relacionar-se com
as pessoas das comunidades. Por isso, encontramos padres bem atenciosos, pacientes,
calmos, alegres no relacionamento com o povo. Encontramos padres apressados,
impacientes, que fazem as atividades correndo e muitas vezes nem esperam o povo voltar
de seus trabalhos: roças, da caça e pescaria. Tudo isso as pessoas das comunidades
percebem e reagem. Quando um padre é bom com eles, acolhem com alegria, programam
diversas atividades, preparam celebrações, programam refeições, reuniões, etc. Até me
arrisco dizer que se sentem na liberdade de serem eles mesmos. Quando o padre é
apressado, impaciente, ‘grosseiro’ as pessoas das comunidades até evitam estar em sua
chegada, não preparam a chegada, não preparam as celebrações, não programam
refeições, pois sabem que o padre é apressado. Dizem: “deixa que ele faça o que ele
quiser e, se ele pedir que façamos algo, nós faremos”. Deste modo sentem medo do
padre. Por isso é possível afirmar que os elementos humanos [do padre], internos e
externos, influenciam em sua prática de itinerância. Não estou afirmando que existem
padres bons e ruins, mas estou tentando dizendo que algumas atitudes que nós padres
assumimos deixam muito a desejar.
A itinerância é um trabalho de acompanhamento espiritual das comunidades. Por que
digo acompanhamento? Digo isso, porque no dia a dia os catequistas das comunidades
animam espiritualmente suas comunidades; oração da manhã, reza do terço, celebrações
dominicais da Palavra de Deus, preparação para sacramentos (catequese), festa de
padroeiro (novena, tríduo). Cada comunidade caminha conforme a atuação do catequista
geral e sua equipe.
O mais próximo do ideal é que nós padres itinerantes dedicássemos mais tempo para
conversar com os catequistas, os adultos (famílias), os jovens, com as pessoas que vão
receber os sacramentos, etc. Este modo fortalece a unidade entre as comunidades da
paróquia. Para isso o padre tem um plano de visitas, temas de formação, de conteúdos
que ele segue em todas as comunidades. Temos feito isso, mas precisa melhorar.
Momento de atendimento às confissões, preparação para a celebração eucarística e
celebrações de sacramentos (eucaristia, casamento, batismo) temos feio sempre. O
catequista geral e os ministros extraordinários da eucaristia (nas comunidades que
tiverem) explicam ao padre como eles têm trabalhado na comunidade, falam sobre suas
dificuldades, o que sonham em fazer etc. O padre dá propostas para que as pessoas
continuem caminhando bem em sua comunidade.
A itinerância é uma ação pastoral que dá vida e esperanças às pessoas e às culturas.
Porém, há diversos modos de trabalhar e nem sempre todos estão de acordo com um
determinado jeito de trabalhar.

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Outras pessoas que esporadicamente na região através de suas pesquisas de campo, ou
com uma missão específica vendo a presença histórica dos povos indígenas criticam sobre
determinadas ações, dos padres, presença salesiana, conteúdos, etc.
A Congregação salesiana através da presença a atuação de seus salesianos é conhecedora
das realidades que envolvem os povos indígenas do alto Rio Negro. Conhece as
capacidades de trabalho, de resistência, de superação, de criatividade, de busca, de luta
dos povos indígenas; as fraquezas, desânimos, acomodações, seu indiferentismo tanto dos
padres como dos povos indígenas.
Os salesianos da Inspetoria Salesiana Missionária da Amazônia [ISMA] sabem que, em
muitos momentos da história do alto Rio Negro se não fossem os salesianos os povos
indígenas não teriam tido o apoio de outros setores da sociedade. Com todas as críticas
negativas que os salesianos receberam de “outros” eles são aqueles que desde
1914[1915] estão presentes no meio destes povos.
ITINERÂNCIA: ANIMAÇÃO E PROMOÇÃO SOCIAL
A itinerância é um trabalho de promoção humano-social. Durante as viagens de
itinerância todos os padres tiveram sensibilidades para a questão social, preocupando-se
com a saúde do povo, dos trabalhos comunitários [cooperativas, organizações...].
Promovem formações sobre a questão da saúde. Eles mesmos procuram entender sobre
os medicamentos, principalmente, os remédios que lhes ajudam nos atendimentos mais
simples, remédio para dor de cabeça, para verminoses, para diarréia etc. E, quando
encontram casos mais graves levavam para Santa Casa [hospital] da missão. Ultimamente
estas Santas Casas estão fechadas.
Atualmente existem outros postos de atendimento da saúde assumidos pelos próprios
agentes de saúde [indígenas e não-indígenas]. Apesar disso, o padre itinerante é aquele
que, ainda soluciona os problemas de medicamentos nas comunidades. Muitas vezes os
postos de atendimentos à saúde do governo ficam sem medicamentos e sem agentes.
O que eu vi no distrito de Iauareté/AM, durante dois anos de minha itinerância é de que
em quase todas as comunidades há um agente indígena de saúde; ele, geralmente possui
medicamentos dos primeiros socorros; algumas vezes nem isso tem; os agentes externos
(não indígenas) de saúde só atendem ao povo quando estão sendo pagos, quando o
governo não libera os recursos para pagamento de salários deixam a área.
O itinerante de Iauareté até 2008 possuía medicamentos porque existia um projeto e com
este se comprova remédios. Estes medicamentos seriam para atendimento aos que
moram longe do centro-Iauareté, mas quando faltavam medicamentos na Unidade Mista
de Iauareté (Hospital) e pólo-base (FUNASA) vinham buscar medicamentos na paróquia.

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A realidade dos povos indígenas apresenta características próprias. Hoje muitos
enfermeiros e agentes de saúde que atuam as comunidades são indígenas. Claro que
quando acabam os recursos do vindos do governo eles ficam impedidos de atender as
necessidades dos pacientes. Graças a Deus a Federação das Organizações Indígenas do Rio
Negro (FOIRN), há algumas décadas instalou as Rádios Fonias que facilitam o atendimento
e resgate de pacientes mais em perigo.
Viajando pelas diversas regiões com freqüência encontramos com equipes médicas
atendendo as comunidades. Com todos estes agentes devemos interagir e procurar
diminuir os sofrimentos das pessoas.
A ação pastoral salesiana contribuiu muito com o surgimento das escolinhas rurais e hoje
se formam escolas indígenas. As primeiras Associações e Organizações Indígenas na região
surgiram com o incentivo dos próprios salesianos e salesianas.
Os itinerantes começaram prestar o serviço de acompanhamento e isso fazia com que eles
estudassem para conhecer a legislação da educação escolar, direitos dos povos indígenas,
etc. Muitos salesianos promoveram e participavam das reuniões, assembléias indígenas.
Divulgavam pelas diversas comunidades as conclusões de assembléias indígenas. Assim a
itinerância tornou-se um poderoso veículo de transmissão de conhecimentos,
esclarecimentos das dúvidas, fortalecimento da consciência sobre a política indígena,
política partidária, sobre a administração pública municipal, estadual e federal, etc.
Dentro deste contexto, a voz do itinerante, tornava-se uma voz mais confiável. Assim fala
o povo das comunidades! Depois de escutar tudo das lideranças indígenas e políticos não-
indígenas, o povo, ainda quer escutar a visão do padre para legitimação ou não das
informações anteriores.
São questões sócio-políticas presentes na ação pastoral do itinerante. Assim, muitos
padres itinerantes ficam sabendo da real situação de cada povo e comunidade, de cada
escola, professor e alunos na comunidade, tornam-se denunciadores das más
administrações municipais, atraem para si e para a comunidade salesiana, perseguições,
xingamentos etc. Nestes contextos o itinerante é obrigado a ficar do lado do povo. Nesta
região, assim tem sido a prática pastoral [social, espiritual...] dos salesianos desde o início
de sua presença missionária no alto Rio Negro e assim continuará sendo, comprometida
com os povos.
JUSTINO ITINERANTE: 2007-2008
O Justino é um ser histórico em construção. Começou a viver nove meses antes de sair do
ventre materno. Foi educado pelos pais, aprendeu os saberes dos pais, avós e seus
parentes. Viveu e cresceu numa comunidade pequena com seus parentes e primos; é
alguém que estudou na escola de modelo ocidental, desde as séries iniciais até os cursos
superiores (universitários). Os estudos escolares e a vivência cristã são fatores que

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possibilitaram a se tornar um sacerdote da Igreja Católica. Toda essa dinâmica acontece
numa relação de poderes contínua.
Muitas realidades colocadas anteriormente são realidades que eu conheço como já
descrevi. Eu digo que conheço aquelas realidades porque ouvi, vi, fiz! Mas também são
realidades que eu tentei superar, ser diferente dos outros, procurei dar uma modalidade
própria para tal atividade e muitas coisas não consegui. Alguns motivos que me
impediram: eu era diretor da Missão de Iauareté, pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo
e itinerante. O desejo de fazer a itinerância com mais calma e com mais tempo era
pressionada pelo desejo de estar na comunidade salesiana.
Eu não consegui visitar todas as comunidades. Mas estas eu visitei: 1) No baixo Uaupés:
Urubuquara, São Brás, Nova Esperança, São Francisco, Marabitana, São José, Jibari, São
Luis, Loiro, Paraná-Jucá, Juquira, Aracu e Ilha de São João. 2) Japu e afluentes: Jacaré
Banco, Jacaré Banquinho, Piracema, Boca do Traira, Santo Atanásio. 3) Rio Papuri: Sabia e
Aracapá, Pari-Ponta, Santa Luzia, Santa Cruz de Turi, São Gabriel, Patos, Santa Marta
(Urucum), Uirapixuna, Anchieta, Jandiá, São Miguel, Santa Cruz de Inambu e Melo Franco.
4) Alto Uaupés: Itaiaçú, Miriti, Umari Cachoeira, Santa Rosa, Cuiubi, Periquito, Arara, Ilha
de Inambu, Poraquê Ponta, Caruru, Jacaré, Jutica, Taracuá, Iauareté-Ponta, Açai e Querari.
Iauareté-centro: Vila Dom Bosco, Aparecida, São Miguel, Cruzeiro, Dom Pedro Massa, São
José Operário, São Domingos Sávio, São Pedro, Nossa Senhora de Fátima e Santa Maria.
Hoje digo que, também não consegui o que eu imaginava atingir e nem consegui ser o que
pensava ser. Durante a minha itinerância eu tinha consciência das expectativas do povo,
mas é difícil vivenciar tudo aquilo. Diversos defeitos de caráter e imperfeições me
impediram de ser e fazer o que desejava atingir.
Num dos escritos meus [EM CACHOEIRA DA ONÇA: Crianças, Adolescentes e Jovens
dão novos contornos às línguas indígenas e à língua portuguesa!95] eu apresentei alguns
desafios para visitar as comunidades:
“Até [1994-96] 2004 eu conhecia mais a Cachoeira da Onça ou como se diz
Iauareté-centro. Este lugar é que eu estou descrevendo até aqui. Mas fora deste
lugar existem aproximadamente outras sessenta e cinco comunidades. Somente
nestes últimos dois anos eu pude conviver com a população toda do distrito de
Iauareté: médio rio Uaupés, alto rio Uaupés, rio Japú e rio Papuri. São regiões
bonitas e extensas! Para conhecê-las são necessárias várias horas de viagem pelos
rios e longas caminhadas em meio à floresta. A maioria da população que hoje
mora em Cachoeira da Onça morava nestas comunidades distantes. Atualmente
em algumas comunidades moram poucas famílias; em outras comunidades não há
mais pessoas morando. É importante dizer, também que algumas comunidades
que têm escolas de ensino básico [fundamental] e ensino médio estão
aumentando de população.
95 Artigo produzido em 6-9/02/2009.

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As regiões do alto rio Uaupés e Papuri possuem belíssimas cachoeiras. Elas
formam espaços sagrados e mitológicos de nossas histórias indígenas. Do tamanho
de suas belezas, são os perigos que apresentam, tanto na época de rio seco e
cheio. Nossos avôs passaram inúmeras vezes por estas cachoeiras, passavam dias
e horas remando para vencer as correntezas, passavam horas arrastando nas
beiradas das cachoeiras e arrastando canoas pelas estradas. Quem nasce, cresce e
vive nestas regiões conhece os perigos que estas realidades apresentam. Mesmo
com todos os conhecimentos e respeito que possuem com relação a estas
cachoeiras muitos alagam, pessoas morreram nestas cachoeiras, bens materiais
são perdidos. As cachoeiras mesmo que tenham contribuído para o surgimento
dos povos indígenas não perdoam para quem não tiver prudência com elas.
Hoje em dia existem outros recursos materiais quem nem se comparam com as
histórias de nossos avôs. Hoje maioria possui motores de popa, motor pessoal,
motor da comunidade, motor da escola, motor da equipe de saúde, motor do
missionário etc. É mais fácil superar algumas partes das cachoeiras, mas em outras
partes a nossa prudência nos leva a parar, arrastar nas beiradas e em outra
carregar tudo pela estrada. Com cachoeiras não dá para brincar a não ser que
esteja cansado de viver e quer partir para outra; não adianta dizer que é indígena
nascido na região. Ajuda bastante ter um bom prático (motorista), corajoso para
enfrentar e superar os perigos que as diversas cachoeiras apresentam diante do
ser humano. Viajar com motores potentes (40 hp) não significa ficar fora dos
perigos. Para quem tem fé (cristã) passar por estes perigos significa rezar melhor e
com mais devoção.
Essas experiências levam-me a afirmar que para trabalhar nestas regiões há
necessidade de sermos pessoas sadias, pois nas cachoeiras temos que carregar os
materiais que levamos: motor, gasolina, rancho, medicamentos, etc. É necessário
ter coragem e ter um coração forte, pois muitas cachoeiras são assustadoras. Para
caminhar nas florestas temos que ter saúde, ter objetivos a atingir, ter sonhos...
Em algumas cachoeiras e alguns caminhos a solidariedade dos moradores diminui
os esforços que teríamos que fazer com menos pessoas. Precisamos estar abertos
para aprender outras culturas: comer comidas regionais [quinhapira, mujeca,
beiju, chibé (farinha com água), caxiri (bebida fermentada)...].
Para visitar os Hupda (grupos indígenas) que vivem mais afastados dos rios é
necessário percorrer longas caminhadas pelas florestas, atravessar igarapés,
equilibrar nas pequenas pontas, lamaçais etc. Nessa caminhada temos que
carregar nossos materiais (mochilas, remédios, mantimentos...). Estas caminhadas
pioram na época de rios enchentes e nos obrigam a nadar. Não faltam insetos a
nos picar e ferrar.
Todos estes esforços são recompensados pela alegria dos moradores ao
receberem diversos agentes: educadores, formadores, assessores, enfermeiros
(as), médicos, dentistas, missionários. Cada grupo que vai cumpre a sua tarefa de
promoção da vida humana indígena.

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Os moradores de cada comunidade realizam suas atividades: trabalhos
comunitários, cultos dominicais, reúnem-se para comer quinhapira, os agentes de
saúde atendem os moradores (muitas vezes não tem remédios), os professores
dão aulas, os moradores fazem suas roças, fazem seus beijus, farinha, fazem suas
festas. São pessoas que constroem e expressam suas alegrias, dançando, fazendo
seus dabucuris, tomando sua bebida tradicional (caxiri). De vez em quando alguém
cria problemas, mas as pessoas com muita delicadeza e firmeza procuram avaliar
as atitudes pessoais e comunitárias.”
Eu olho esta prática salesiana e a minha ação pastoral a partir de novos referenciais
teóricos sobre a cultura, evangelização, escolarização. Os olhares de outros antropólogos,
sociólogos, políticos sempre questionam os sentidos de tais práticas e seus sentidos para
as culturas indígenas. Eu, também estou refletindo e reinterpretando tais práticas
salesianas apropriando-me de novas concepções sobre a evangelização que o magistério
da Igreja Católica me proporciona e novos conceitos para interpretar as culturas.
Nas últimas duas décadas as organizações governamentais e não-governamentais que
chegam implantando alguns serviços [muitas vezes não continuados] pensam que eles são
os primeiros a colaborar com as comunidades indígenas da região. Pensam que somente
as práticas que eles estão implantando que são corretas. Diante disso, percebo que a visão
histórica destes agentes é muito reduzida.
Apesar destas visões que herdamos e construímos os diversos agentes sociais
[missionários, políticos, militares, médicos, enfermeiros, antropólogos, pesquisadores,
lideranças indígenas...] que atuamos nesta região devemos construir um grande
movimento de cooperação e interação. Muitas vezes temos dificuldades de fazer isso
porque nós queremos assumir a paternidade de uma ação social sozinhos.
Se olharmos bem, ao longo de pouco mais de noventa [90] anos de presença no alto Rio
Negro os salesianos promoveram muitas ações entre as comunidades indígenas e com os
povos indígenas: escolas, assistência à saúde [Santa Casa], oficinas para profissionalizar os
indígenas [carpintaria, mecânica...], aeroportos, etc. Quem chega nestas últimas décadas
nesta região, encontrando muitas coisas já construídas, pensa que sempre foi fácil assim.
Interpretando estas realidades com os recentes instrumentos de análise da realidade
somos levados a dizer que a ação missionária salesiana estava destruindo as culturas
locais. Muitas atividades foram feitas motivadas pela dinâmica da Igreja da época.
Ninguém nega que a origem representava as ideologias sociais e nacionais da época:
“civilizar” o indígena etc.
Também, há pelo menos três décadas que a própria Igreja Católica vem buscando e
construindo novos métodos de evangelização. Os salesianos que atuam no alto Rio Negro
buscam entender nova proposta evangelizadora e criar práticas mais respeitosas com
relação às culturas indígenas hoje. Lembremo-nos, porém, que a mudanças de
mentalidades das pessoas levam tempo e não é que surgindo uma ideia nova hoje e
amanhã as nossas práticas serão totalmente novas. Haverá resistências, lutas etc.

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No atual contexto social nós os salesianos e outros [políticos, agentes de saúde indígena e
não-indígena, antropólogos, lingüistas...] atuamos com os mesmos povos. Acredito que
devemos atentar-nos na hora de criar práticas com os povos indígenas para que tais
práticas não nos levem, um dia, sermos acusados de destruidores de culturas indígenas. A
história é traiçoeira, pois aquilo que numa época parece prática benéfica, em outra, é
vista como destrutiva.
Os padres itinerantes são pessoas humanas, nascidas dentro de suas culturas, formadas a
partir das culturas paternas (maternas), a partir das culturas do país de origem e dentro
de uma determinada formação religiosa, pastoral, teológica, antropológica... Eles
carregam uma bagagem cultural enorme e muito diferente que a bagagem cultural dos
povos indígenas do Rio Negro.
Como acontecia o deslocamento de uma cultura para a outra? A prática de itinerância era
encontro de pessoas com culturas diferentes, com objetivos diferentes, metas e
estratégias diferentes. Assim como também as organizações governamentais e não-
governamentais têm suas metas e estratégias. Com certeza houve e há a desconstrução
da cultura de origem, tanto da parte do padre como dos povos indígenas. Olhando o
cotidiano de alguns itinerantes nas comunidades eu observo a respeito das dificuldades
que podem surgir na mentalidade de um padre: ter que comer a quinhapira (pimenta
forte), mujeca no mesmo prato com os indígenas; molhar o pedaço de beiju no mesmo
prato; tomar mingau com a mesma cuia que todos usam e da mesma panela; falar uma
língua diferente que a maioria não compreende; sentir-se inseguro frente às reações das
pessoas; incerteza diante do tradutor, etc. São estas e tantas outras realidades que
desconstroem a vida de um padre e exigem a criação de novas mentalidades. E, quando
não querem mudar pedem aos superiores para mudar de lugar, missão! As diferenças de
línguas, costumes, tradições entre padre e os indígenas, faziam e fazem com que alguns
padres pensassem que eles não estavam gostando deles. Por isso, alguns padres
começaram a impor certas regras nas suas visitas. Acredito que essas reações, choques
culturais, conflitos são inevitáveis. Também, na mentalidade de um indígena padre
surgem tais sentimentos.
O Concílio Ecumênico Vaticano II, a partir da década de 1960 trouxe novas propostas para
a prática da evangelização dos povos. E, aqui na América Latina e no Brasil as Conferências
Episcopais procuram fazer as grandes adaptações, mais próximas das culturas latino-
americanas, brasileiras. Também, os salesianos seguiram a mesma dinâmica, assumiram
novas atitudes e práticas pastorais. Se, ainda não conseguimos atingir as metas se deve
aos limites humanos e de recursos. Os padres itinerantes deram outro direcionamento
para as suas ações, valorizando mais as culturas locais, incentivando à valorização dos
valores culturais.
A itinerância salesiana não é uma atividade momentânea, movida por entusiasmo
passageiro. É um elemento fundamental da ação pastoral salesiana, principalmente, na
região do alto Rio Negro. Em todas as missões salesianas sempre tivemos um padre
responsável pela itinerância. Mesmo quando numa missão [paróquia] não havia um

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número suficiente de salesianos, o itinerante de outra missão supria a necessidade de
outra missão. Algumas vezes, o próprio diretor da comunidade salesiana [pároco],
assumia a tarefa de visitas às comunidades.
Nestes últimos anos a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) tem demonstrado
sua preocupação com a Ação Evangelizadora na Amazônia. Esta preocupação parece
passar para os habitantes das grandes cidades a visão de que na Amazônia falta a prática
evangelizadora dos povos: ribeirinhos, caboclos, indígenas...
É interessantíssimo lembrar que muitos missionários deram suas vidas pelos povos da
Amazônia e estão enterrados em diversos cemitérios junto aos povos que eles amaram,
deitados em meio as ribeirinhos, caboclos e indígenas, povos que eles amaram, brigaram,
conquistaram etc. Eles estão regando a terra. Muitos missionários que trabalharam nestas
regiões quiseram morrer entre os povos com os quais trabalharam, mas por obediência
aos seus superiores faleceram em outros lugares.
Muitos continuam trabalhando em meio às florestas, rios, cachoeiras e outras
dificuldades. Existem equipes missionárias de diversas congregações religiosas masculinas
e femininas evangelizando há séculos. Leigos e leigas cortam as águas de diversos rios que
formam a bacia amazônica para prestar serviços sociais, pastorais e espirituais nesta
Amazônia. Caminham pelas florestas para levar a Boa Nova de Jesus. Lá aonde eles
chegaram existem comunidades cristãs, com seus catequistas, líderes e animadores
comunitários. Assim é possível dizer que muitos leigos trabalham com formação
catequética, litúrgica, pastoral com os seus próprios irmãos.
Andando pela Amazônia num lugar mais afastados das grandes cidades, lá está uma
capela, um crucifixo, uma Bíblia, um catequista, uma comunidade cristã. Quem não
conhece a Amazônia pensa que mandando uma equipe missionária do Sul, do Sudeste
brasileiro para passar alguns meses na Amazônia, vai solucionar o problema da
evangelização na Amazônia. São ideias salvacionistas que desconhecem os trabalhos que
estão sendo feitos há séculos na Amazônia. A melhor evangelização dos povos da
Amazônia é feita pelos próprios povos da Amazônia, pois eles conhecem suas culturas,
dificuldades, limitações, desafios. Não é alguém que vem de fora rapidamente que vai
conseguir evangelizar profundamente, mas poderá contribuir.
A própria Igreja do Brasil parece ter essa visão e cria mutirões na Amazônia. Mais do que
enviar expedições é necessário criar condições locais para a formação de pessoas do lugar.
Pois muitos daqueles que vêm pelas expedições voltando para suas dioceses não
retornam mais para Amazônia. As pessoas do lugar, sim, ficam. É nesse sentido que os
salesianos têm fortalecido desde o início de sua presença entre os povos indígenas, a
formação de catequistas indígenas. Eles que conduzem as comunidades no maior período
do ano. O padre itinerante vai no máximo três vezes ao ano nas comunidades ribeirinhas e
nas florestas. Daí a importância de preocupar-se com a formação do leigo. Hoje o plano
de formação de leigos deverá ser feito levando em conta todas as contribuições que as
ciências oferecem. É neste sentido que o itinerante é animador das comunidades e dos

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animadores das comunidades. O itinerante é um, dentro do conjunto da pastoral da
missão salesiana.
Outra realidade é escassez de sacerdotes, mas isso não é só na Amazônia. Eu conheço
muitas capitais do Brasil e as necessidades de sacerdotes são iguais.
Para que a prática da itinerância continue funcionando é importante que existam recursos
financeiros. Eu tenho visto que a itinerância no alto Rio Negro funciona porque existe a
ajuda de alguns projetos [ajuda das entidades estrangeiras] que nos deixa comprar o
motor de popa, voadeira [barco de alumínio], gasolina, remédios, etc. Muitas vezes
surgem dificuldades, também neste campo. Alguns salesianos conseguem mais ajuda e
outros menos. Por isso, é importante que o trabalho de itinerância seja inspetorial.
Uma vez um padre disse para mim: você é indígena e não precisa de motor, vai remando!
A itinerância pode ser feita, também remando e passando pelas comunidades, mas o
ritmo de vida seria outro. Também pode ir visitando as comunidades e ir pegando carona
de comunidade para a comunidade, mas o ritmo de vida teria que ser outro. A
comunidade salesiana [inspetoria e comunidade local] compreenderia tal situação?
Em todas as comunidades do Rio Negro têm pessoas que animam a vida espiritual da
comunidade, animam a vida social, a vida política da comunidade. Os próprios indígenas
levam para frente toda a pastoral das comunidades. Para isso, em todos estes anos se tem
feito a formação para os catequistas, animadores e lideranças. Também isso, em alguns
momentos históricos foi interpretado, por alguns que vinham de fora, como forma de
dominação religiosa. Hoje, é possível entender que qualquer projeto de trabalho se quiser
alcançar os seus objetivos terá que divulgar as propostas de trabalho, formar as pessoas
para que obtenham de uma mentalidade global do projeto de evangelização. Com os
salesianos não foi e não é diferente, pois o projeto de evangelização desenvolvida pelos
salesianos é projeto histórico. Tem um alcance mundial e particular em cada cultura. É um
projeto que possui várias frentes de trabalhos. Se até hoje este projeto tem perdurado é
porque existem salesianos dedicados com este projeto. Se o povo tem aceitado até hoje,
um dos elementos que podemos apontar como importante é a compreensão dos
indígenas sobre a importância de tal projeto.
As críticas que surgiram em diferentes contextos históricos à ação dos salesianos, também
foram importantes para que os salesianos repensassem suas práticas, mantendo sua
identidade carismática e seus ideais.
Em todas as comunidades da Missão Salesiana de Iauareté têm catequistas preparados
para animar as orações, o culto dominical, catequistas de primeira eucaristia, crisma,
preparadores de batismo, casamento. Em algumas comunidades temos ministros
extraordinários da eucaristia. Estes ministros não apenas atendem suas comunidades, mas
visitam e levam a eucaristia para as comunidades vizinhas.

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Nesse meio podemos perceber outra dimensão importante desta ação pastoral: a
dimensão vocacional. Muitos jovens se sentiram chamados para a vocação sacerdotal e
religiosa. Também nisso, temos uma realidade que nos questiona: por que há surgimento
de muitas vocações e pouca perseverança? Acredito que temos muita coisa para
descobrir, repensar e recriar o trabalho neste campo. Mas essa região possui: padres,
seminaristas, estudantes de filosofia, teologia; religiosas e religiosos de votos temporários
e perpétuos.
Hoje, os próprios indígenas padres [diocesanos e salesianos] fazem o trabalho de
itinerância. Eu entendo que o trabalho de itinerância assumida pelos indígenas padres deu
um passo a mais, para melhor e pelo menos mais próximo das diversas línguas étnicas.
Falando pelo menos em alguma língua indígena compreensível pelos indígenas já facilita a
compreensão melhor das diversas mensagens que levam às diversas comunidades. É uma
herança que os salesianos deixaram para os indígenas padres. O fato de indígenas padres
assumirem a itinerância não significa que está tudo perfeito, pelo contrário, o trabalho de
itinerância é um campo aberto para a criatividade, desconstrução e construção. Como
toda a mudança, essa realidade traz consigo questionamentos, comparações e saudades.
Não poderia ser diferente!
FECHANDO A CONVERSA
Concluo esta minha conversa sobre a itinerância falando do surgimento da minha vocação
ou vocação que Deus me fez. Uma vez eu vi a presença de um itinerante na minha
comunidade. Ele fazia uma reunião com os velhinhos, falava em português, mas os
velhinhos não compreendiam nada. Eu pensei: eu poderia ser padre para ficar no lugar
deste padre e assim eu poderia falar na língua que eles entendessem! Assim começou a
brotar a vocação para o sacerdócio. E, neste ano (2/6/2009) completo quinze anos de
sacerdócio, sou um adolescente ainda!