Solenidade da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria


Solenidade da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria



Reconciliou-nos consigo e confiou-nos o ministério da Reconciliação1




1.Graça e misericórdia envolvem a nossa vida – “Por meio de Cristo”- Amor gratuito e práxis salesiana. 2. O amor leva ao juízo – Deus misericordioso e justo – O sentido do pecado – A formação da consciência – Juízo e vida salesiana. 3. Conversão e vida nova no Espírito – O retorno a Deus – A salvação nas raízes do mal – Aspectos salesianos. 4. O sacramento da Reconciliação – Um caminho de revalorização – Sacramento e espiritualidade salesiana – Reconciliados e ministros da Reconciliação. Conclusão: atravessar os umbrais.




Roma, 15 de agosto de 1999

1 Queridos Irmãos,

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2 2000 apresenta-se não só como prazo de calendário, embora singular, mas como passagem cultural com consequências imprevisíveis sobre as pessoas e o gênero humano. Estimula à leitura e valorização do conjunto daquilo que vivemos no século que se encerra e reacende esperanças que parecem hoje ao alcance do esforço humano e além dele.

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Para nós, é um convite, quase uma provocação, a repensar-nos como discípulos de Cristo, numa complexa transformação que tem algo de frenético, mas na qual se descobre um sentido e uma direção. Sentimo-nos solidários e parte viva dessa evolução: não só críticos, mas responsáveis daquilo que aconteceu e do que virá.

Queremos, por isso, acolher e realizar comunitariamente a principal instrução do Jubileu, repetidamente expressa pelo Santo Padre na Bula de convocação: “O Ano Santo é, por sua natureza, um tempo de chamada à conversão”2. “A ocorrência bimilenária do mistério central da fé cristã seja vivida como caminho de reconciliação e como sinal de genuína esperança para todos os que olham para Cristo e para a sua Igreja”3.

Dá-se, também a nós, uma oportunidade extraordinária de reviver a experiência da Reconciliação segundo a nossa condição de consagrados salesianos, compreendendo com a sua dimensão teologal, também a humana e educativa. Torna-se urgente, hoje, conseguir ver o modo com que a salvação realizada por Deus em Cristo torna-se relevante para o homem que vive a experiência de divisão e sofrimento, de conflito e culpa. Com efeito, a Revelação cristã deve ser capaz de instruir o homem sobre o modo de estar no mundo, humana e divinamente bem.

Devemos, pois, retomar e relacionar, articulando-os de acordo com as situações, os diversos aspectos da Reconciliação: retorno a Deus e aproximação aos irmãos, unificação interior e reconstrução das relações sociais, harmonia do próprio ser e compromisso com a justiça, alegria íntima e construção da paz no mundo, verdade e caridade, desmascaramento do mal dissimulado e “renovação” no Espírito, dom sacramental e estilo de vida e ação.


2.1 1. GRAÇA E MISERICÓRDIA ENVOLVEM A NOSSA VIDA

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Poderíamos fazer uma resenha das dilacerações pessoais e sociais produzidas pelo pecado, evidenciando a extrema urgência de reconciliação sentida pelo mundo, sem conseguir chegar a ela. Diversos documentos eclesiais tomam este caminho e vós mesmos o haveis percorrido com os jovens.

Nesta ocasião, porém, coroando o caminho que nos levou até 2000, prefiro, como primeiro passo, ir às fontes que tornam a reconciliação possível e real. Ela está na Trindade, em Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, isto é, amor total que se comunica: nele dá-se o dom e a acolhida incondicional do outro. Isso permite pensar a Reconciliação como algo de originário, não determinado pela nossa culpa ou apenas dependente dela; mas como uma realidade que tem a sua raiz em Deus e estende-se à nossa experiência humana integral.

É verdade que a “reconciliação” se refere imediatamente a alguma “separação”, divisão ou culpa anterior; mas é mais verdade ainda que a possibilidade originária de todo perdão é o fato que Deus é em si mesmo Amor, Gratuidade, Misericórdia, Vísceras de ternura, Altruísmo, Dom ou algo que o valha.

A forma trinitária de Deus, que é comunhão, dá à um sentido incondicionalmente positivo à “reconciliação”. O outro, pessoa ou coisa, é válido para Ele segundo a sua forma atual de ser. A “misericórdia” é aquele radical “deixar ser”, pelo qual todas as coisas são abençoadas no próprio vir à luz, respeitadas em sua existência, esperadas em vista de sua realização plena.

Se existem no próprio Deus várias Pessoas, que têm origem no amor e no amor convivem, então Deus é capaz de assumir para si a honra de todos os seres, também do homem pecador, e criar as condições possíveis para que a criação seja encaminhada à participação real em sua própria vida.

O pecado não chega, então, a romper a unidade do plano de Deus e a enfraquecer a responsabilidade paterna, assumida por Deus ao colocar outras liberdades no mundo. Deus mostra-se capaz de assumir, desde o início, a responsabilidade da possível recusa da sua criatura. A Escritura, por isso, refere-se ao “Cordeiro imolado” desde a fundação do mundo4: o amor incondicional de Deus, que oferece o seu Filho, tinha previsto e aceito o risco da liberdade.

Em poucas palavras, a Criação é ordenada à Aliança, a nossa existência à comunhão com Deus: ela é primeira na intenção, é a finalidade. A reconciliação é a predisposição pela qual Deus não se arrepende da sua criação, mas em qualquer situação a recria internamente para atraí-la novamente a si.

Este pensamento funda em bases realmente sólidas o amor autêntico e a gratuidade: dar não é perder, mas viver mais plenamente; perdoar e ser perdoado não é recoser ou remendar, mas recriar e ser recriados no Espírito por virtude da “paixão” que levou Deus a participar-nos a sua vida e a participar da nossa existência.

O primeiro esforço da nossa reflexão pessoal e do anúncio evangélico, será compreender a Revelação de Deus, como nos é manifestada em Cristo, o único capaz de representar a plenitude de Deus e a sua universal vontade salvífica5.

Uma linguagem que fuja das simplificações ou ambiguidades e que se deixe instruir pela luminosidade evangélica, mantendo algumas tensões sem ampliá-las ou diminui-las, deveria ser a atitude de cada educador da fé, para poder garantir a todos o encontro confiante com um Deus que dá segurança, capaz de realizar toda reconciliação, capaz, depois de todas as nossas tentativas e do reconhecimento da nossa impotência, de “consolar-nos em qualquer tribulação”6, de realizar todo bem a que nos tivermos tenazmente afeiçoado7 e, enfim, capaz de “enxugar toda lágrima”8.


Por meio de Cristo”9


Esta atitude de Deus para com o homem revela-se na existência de Jesus, que o reproduz em seus gestos e ilumina com suas palavras. Ele reconcilia em si o humano e o divino: assume o homem e enche-o de Deus; faz de todos nós “uma só criatura”, abate o muro de toda divisão10 e reúne a humanidade que se dirige à realização definitiva numa história com vicissitudes alternadas. Ele instaura a possibilidade do homem e da humanidade nova, propõe-na com seus ensinamentos, inicia-a no Espírito com a sua mote e Ressurreição.

Anuncia, por isso, a misericórdia, pede a conversão, atua a reconciliação e entrega-a à sua Igreja como dom e missão: “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos deu o ministério da Reconciliação”11.

Há no Evangelho muitas cenas de reconciliação e de perdão das quais uma lectio cuidadosa pode tirar tesouros infinitos. Estas cenas atingem particularmente a nós, que temos predileção pela contemplação de Jesus Bom Pastor, e de bom grado nos detemos a ressaltar as suas características.

A reconciliação nas narrações do Evangelho é sempre iniciativa de Jesus: não é a pessoa, homem ou mulher, que por primeiro pede ou deseja o perdão, mas é Jesus que o oferece. A pessoa, quando muito, sente-se sob a opressão do sentimento de culpa ou da condenação social. Muitas vezes é movida pelo interesse da própria saúde, pela curiosidade ou por um interrogativo espontâneo ou imediato.

É Jesus quem se dirige a Levi12; é Jesus quem olha em direção de Zaqueu e se convida à sua casa13. É Jesus quem vem em defesa da mulher pecadora14 e da adúltera15. É Jesus quem pronuncia o perdão ao paralítico descido do teto em busca de saúde16. É Jesus quem olha para Pedro, já esquecido da sua infidelidade17.

O caminho de reconciliação – essa é uma outra constante – não tem início com a acusação das culpas, mas com o sentir-se “pessoas” reconhecidas, em nova e inesperada relação, oferecida gratuitamente, que ilumina a vida e faz ver dela ao mesmo tempo a deformidade e as possibilidades. À origem do desejo de reconciliação há sempre o impacto da palavra ou da pessoa que desperta a nossa letargia numa existência depauperada e nos chama a ser.

É preciso, pois, ir além da mentalidade que se fixa nas infrações ou na realização dos propósitos como elemento principal que leva à reconciliação. É necessário, porém, colocar-se diante das próprias relações com Deus e ver se Ele conta para nós, se percebemos a sua presença e ação em nossa vida, se esperamos muito dele, se interessa-nos muito não perde-lo.

A coisa mais importante para nós e para a nossa atividade pastoral é reconhecer, apreciar e proclamar a misericórdia de Deus, e concentrar a atenção sobre Ele, Pai de Jesus e nosso. A misericórdia de Deus recompõe a história que diversamente se desfaz, e restabelece continuamente a aliança descuidada pela nossa fraqueza ou esquecimento.

A experiência da reconciliação no Evangelho é, por isso, sempre uma experiência de superabundância de graça, além do racional, de alegria e plenitude. Há grande festa para quem se converte, com escândalo das “pessoas de bem”. Há derramamento de perfumes custosos, com queixas dos poupadores. Há um banquete e convites estendidos a todos, com murmurações da gente de bem. Há liberação de culpas, injustificadas aos olhos do homem, sem garantia, e uma amorável compreensão do humano que aproxima-se da ingenuidade.

O contexto da reconciliação é sempre de louvor e ação de graças, reproduzindo o que repetidamente cantam os salmos: “Celebrai ao Senhor porque é bom; porque perene é a sua misericórdia”18. “Bendiz ao Senhor, minha alma... Ele perdoou todas as tuas culpas e sarou todas as tuas enfermidades”19.

A sinfonia de motivos com que se apela à reconciliação como acontecimento de relações e de vida, mais do que como fato religioso, comunica o que acontece na pessoa quando descobre que tem valor para Deus e é por Ele amada.


2.2 Amor gratuito e práxis salesiana

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A grande mediação e instrumento de reconciliação foi e continua sendo a humanidade de Cristo. Ela abateu todos os muros e distâncias entre Deus e os homens. Com ela, a comunicação de Deus conosco chegou aos máximos níveis possíveis.

Trata-se de uma afirmação que tem implicações extremamente concretas em nossa vida e práxis pastoral. Chega-se dificilmente ao desejo de reconciliação sem a experiência humana da acolhida. A práxis pastoral do Bom Pastor sugere, pois, que se saiba aceitar com gratidão o afeto que nos é oferecido e demonstrar consideração, estima e escuta das pessoas. Essa é a via que leva a reexaminar a própria vida e ao desejo de mudança.

Justamente isso faz perceber que os aspectos mais luminosos do nosso carisma já são “reconciliação”. A característica “preventiva” da nossa pedagogia é um reflexo imediato do coração misericordioso de Deus20 e, portanto, autêntica atuação humana da reconciliação que ele é e oferece: a revelação cristã afirma, de fato, que Deus previne não só enquanto Criador, mas também como Redentor, porque só pela sua iniciativa é possível ao homem desejar realisticamente os dons que dela provêm.

A “gratidão ao Pai pelo dom da vocação divina a todos os homens”21, de que falam as nossas Constituições, é a comoção com que nos aproximamos de qualquer jovem, porquanto pobre seja, seguros de que existe nele a nostalgia de uma dignidade maior, de um “paraíso” não tão perdido que Deus não o possa dar de novo.

A amabilidade que marca nossas relações é manifestação experimentável do projeto e do desejo de Deus, também e justamente pelo menino difícil que perdeu qualquer sinal de uma possível alegre comunhão com as pessoas e a vida.

O otimismo é o reconhecimento daquela intenção divina de felicidade, jamais negada, sempre presente em algum traço de bem, mesmo pequeno, pelo sinal talvez já debilíssimo, mas que deve e pode ser despertado, também com a simples oferta de simpatia humana, em que o divino e o humano se “con-cretizam” e crescem juntos: representação daquela “humanidade e benignidade do nosso Salvador”22 pela qual encontrar o Senhor era ver a Deus.

A consistência, o descortino e a laicidade do nosso estilo pastoral são, enfim, a forma mais radical da convicção de que a paternidade de Deus e a sua Soberania se manifestam e se tornam críveis nos sinais de libertação do mal e na oferta de vida digna para todos. Onde quer que haja o cuidado por um pequeno, ali Deus é bendito: por isso a realização lúcida da nossa missão de evangelização-promoção-educação tornar-se-á reconciliação também onde ela, por mil motivos, não é nem pedida nem querida nem sonhada nem tematizada como tal: reconciliação como graça antecedente, concedida “quando ainda éramos pecadores”23.

O Reino já se faz presente na acolhida da necessidade juvenil, do “sabes assobiar?” ao “catecismo”, sem solução de continuidade, sem barreiras, sem contraposições ou ciúmes.

Uma reflexão análoga pode ser levada também à vida de nossas comunidades, e espero que a façais. É um reflexo de Deus, e é uma sabedoria humana, o fato de que em nossas relações tudo passe preferencialmente através da lógica do coração, do espírito de família e de caridade, de estima e de confiança recíprocas24.

É realmente verdade que a reconciliação passa mais pela humildade e pela coragem de dar o primeiro passo e menos pela espera do outro, mais ou menos entrincheirada. E é sobretudo verdade que os caminhos de reconciliação são percorridos dentro de relações em que o outro se sente mais promovido do que julgado.

Aprofundar o espírito de família em vista dos caminhos de reconciliação significará dizer-nos com solidez o que é para nós, além do formal, comunicação fraterna, silêncio, iniciativa e paciência, pureza e correção fraterna. De modo mais radical, observando tantas situações comunitárias perguntemo-nos: o quanto será necessário imitar o amor antecedente de Deus e a bondade do Bom Pastor para erguer um irmão amargurado, desiludido, ferido pela vida, ressentido pelos muitos erros cometidos ou sofridos? Como se faz para dar vida nova a quem está tão “mortificado” a ponto de não mais achar em si recursos de resgate?


2. O AMOR LEVA AO JUÍZO


A gratuidade incondicional de Deus, o fato de que “Deus é luz e nele não há quaisquer trevas”25, barra a estrada à interpretação da bondade de Deus reduzida ao simples “não fazer caso”, à identificação do perdão com um “não dar importância”, ao perdão da culpa que não seja verdadeira destruição do mal, à compreensão da misericórdia desarticulada da justiça, ao pensamento da justificação que não comporte qualquer juízo sobre nossas orientações, atitudes e ações.

Esta é uma consideração que deve ser amadurecida gradualmente, mas deve ficar logo claro que se a misericórdia é algo de anterior, gratuito, absoluto e total, é justamente isso que torna o mal radicalmente inaceitável.

O mal, especialmente em sua forma mais extrema, que é o pecado, não pode integrar-se de modo algum no contexto de amor e de dom que emerge da nossa vida e que nós percebemos no pensamento de Deus. O mal é sempre desintegrador. A percepção da sua malignidade será tanto mais aguda quanto mais for suscitada pela experiência radical do bem.

A reconciliação, o fato de ser amados incondicionalmente, então, não exclui, mas fundamenta um juízo sobre nossas intenções e ações. O amor gratuito de Deus, ao mesmo tempo antecedente e misericordioso, não elimina nem diminui ou contradiz a exigência ética no agir do homem, mas dá-lhe um fundamento mais sólido e absoluto, torna-o lúcido e realiza-o. Não cancela a consideração das contradições humanas, mas ensina como desmascará-las, governá-las e superá-las.

O dom e o conhecimento da vida de Deus, justamente porque com Jesus se fizeram carne, devem tornar-se vida do homem. O nosso desejo de reconciliação e o apelo à misericórdia de Deus, portanto, não deverão ser interpretados confinando o ético no subjetivo, como se não existissem referências para distinguir o que é bem e o que é mal, nem segundo aquela invadente falta de energia, que torna impossível a determinação de qualquer bem que não seja apenas o reconhecimento da existência, liberdade e espaço do outro.

A gratuidade de Deus não é esquecimento ou suspensão de justiça (ausência de juízo). Para Ele “não existe bondade sem justiça”!


2.3 Deus misericordioso e justo

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Este aspecto deve ser ilustrado também à luz da Palavra numa passagem de milênio caracterizado por uma multiplicidade de imagens de Deus, muitas vezes confeccionado segundo a subjetividade. Quando Deus fala ao homem, fala a “este” homem, não fala nunca de forma abstrata. A Revelação é súbito pedagogia: iluminação da realidade, proposta de vida verdadeira, tempo de longa paciência, acolhida amorável da dureza do nosso coração por parte de Deus.

Por isso a Escritura fala quer do amor de Deus como da sua ira; por isso Javé é um Deus terno e ciumento, chamado de rico de graça mas também de lento à ira; por isso Jesus conta as parábolas do Reino, unilateralmente luminosas, mas também as da recusa, claramente tenebrosas; por isso Jesus é a novidade absoluta, mas como realização e, por isso, a superação da Lei Antiga é o Mandamento do Amor; por isso existe um Antigo e um Novo Testamento e, no Novo Testamento, uma tensão entre o pré e o pós pascal; por isso a Ressurreição é o resultado da Paixão.

Trata-se, para compreender os caminhos da reconciliação, de articular estas dialéticas, não de eliminá-las. A nossa meditação e a linguagem religiosa deverão ter igual cuidado em falar bem de Deus como em dirigir-se realisticamente ao homem, anunciar a incondicional acolhida divina e individualizar as situações da recusa humana, iluminar a confiabilidade de Deus e denunciar a incredulidade do homem.

Um anúncio ou uma catequese muito “otimista” (que minimize a responsabilidade do homem) pode ser tão danosa quanto à oposta versão “pessimista”. A oferta do perdão deve ser sempre coordenada com a necessidade do arrependimento, antecedente ou conseqüente, reconhecido ou suscitado que seja.

É preciso, nisso tudo, uma grande vigilância na reflexão e na palavra. O amor e a ira de Deus não estão no mesmo plano, assim como não o estão salvação e juízo, ligar e desligar, perdoar e reter, denunciar e perdoar, afagar e castigar. Uma reflexão pessoal madura e um bom anúncio articulará os termos dessas polaridades segundo os critérios da co-presença e da assimetria. Mostrará como a ira é uma modalidade do amor, como se liga para depois desligar, como os “não” estão em função de “sim” maiores. E fará ver que de aqui se originam qualquer sucesso, qualquer risco e qualquer falência em campo educativo, no céu e na terra.

A doutrina cristã é extremamente instrutiva no âmago da salvação e do juízo, na co-presença e assimetria: não mancha a imagem de Deus apresentando-o como juiz “objetivo e distante”, mas também não tira a responsabilidade do homem.

Qualquer afirmação cristã encontra o seu núcleo na Páscoa do Senhor, onde acontece que o nosso Juiz é o Redentor! Em decorrência, os cristãos afirmam a existência tanto do Paraíso como do Inferno. Sabem, porém, por declaração autorizada da Igreja, que no primeiro existem muitos irmãos e irmãs, enquanto não sabem com segurança se existe alguém no segundo. Ninguém deixa este mundo com sinais de condenação certa.

Vontade salvífica universal e possibilidades de uma recusa extrema são ambas afirmadas, mas como assimétricas: a primeira é a realidade mais estável que exista, a outra, uma possibilidade que Deus realmente não deseja; uma, é oferta positiva de Deus, a outra, apenas um êxito eventual sofrido por Ele.


2.3.1 O sentido do pecado

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O que vimos dizendo tem uma incidência evidente em nossa vida. Nada é mais imperioso do que o amor! O mais grave, nos fatos como na consciência, é ter ferido um verdadeiro e grande amor. E assim por diante, ter feito mal a uma pessoa boa, ter desprezado algo de indefesamente belo, é o que provoca os sentimentos de culpa mais violentos. “É o mesmo amor que queima no paraíso e no inferno: o fogo do amor de Deus”(Urs Von Balthasar), amor acolhido, num caso, recusado no outro.

Um discurso sobre o amor de Deus é necessário, mas não suficiente. Quando se deseja falar responsavelmente de reconciliação, deve-se assumir as contradições do mal e da culpa humana. Se o amor é o horizonte último da vida de Deus e do homem, quais as consequências de viver carregando um amor recusado ou ignorado, e que libertação pode existir para tal situação?

A situação de recusa renova-se desde sempre e é dominante em todos. São muitas as divisões que se produzem no coração e na vida dos homens. Podemos enunciar uma longa lista deles em medida macro, media e pequena, presentes no contexto histórico ou em nossas comunidades.

Os últimos documentos da Igreja acrescentam as macro consequências do mal: a violação da dignidade humana, a discriminação racial, social, religiosa, a prepotência do poder político e econômico, a violência e as agressões bélicas, a exploração do pobres, a distribuição injusta da riqueza, a corrupção na administração dos bens comuns. A divisão, a contraposição e até mesmo o ódio puseram raízes na consciência depois de acontecimentos históricos impensáveis, mas que aconteceram.

Uma vez que o horizonte educativo nos é conatural, limito-me ao panorama juvenil, detendo-me não tanto nos fenômenos mais vistosos freqüentemente comentados, como as formas extremas de fuga, o conflito social não resolvido ou a libertinagem, cujo potencial destrutivo é visto a olhos nus.

Vou de preferência às divisões mais interiores, que, segundo a instrução de Jesus, constituem a raiz das outras que aparecem mais. O panorama juvenil apresenta-se rico de encruzilhadas entre possibilidades e carências. Encontramo-nos, de fato, com gerações dilaceradas entre impulsos e retrocessos, contraditórios e não conciliados: os jovens de hoje são individualistas e solidários, consumistas e espiritualistas, racionalistas e casual, divididos entre afetos e efeitos, emoções e responsabilidades, estética e ética; mais de perto, são sensíveis aos temas da paz, mas empenham-se menos no fronte da justiça; são submersos de informações, mas fracos na reflexão; têm um sentido aguçado de liberdade, mas são sempre incapazes de decisão; despertam-se ao discurso sobre os valores, mas são reativos ao apelo de suas exigências incondicionais; são abertos e aparentemente desinibidos nas relações, mas devem fazer muito esforço para administrar os conflitos em termos não regressivos; reconhecem a importância do corpo, mas fazem dele terreno de experimentação indiscriminada, subtraída à responsabilidade ética; não têm problema em admitir que Deus exista, mas não suportam que Ele tenha um rosto: querem-no “à mão” e na medida de si.

Mais formalmente, sofrem ainda dos resíduos modernos do dissídio entre liberdade e lei, espontaneidade e regra, intuição e procedimento, corpo e alma, identidade pessoal e pertença cultural.

Pode-se fazer uma descrição análoga do que acontece conosco como consagrados, individualmente e como comunidade. Contradições, divisões entre o expresso e o praticado, incoerências entre o exigido e o dado estão na ordem do dia. O descuido da vigilância na avaliação não estará por acaso obscurecendo a mesma experiência do amor de Deus tão lucidamente confessada e professada?

Eis porque a preocupação em unir e distinguir acolhida e responsabilidade, dom e dívida, é uma indicação cultural e pastoral realmente urgente: reconciliação, neste sentido, significa elaborar em nós e oferecer aos jovens uma experiência capaz de unificar as polaridades de que a vida é constituída e de medicar as tensões negativas que deixam o espírito dividido.

Creio que não é necessário comentar longamente o quanto isso está relacionado com o “sentido de pecado” cujo abrandamento até ao desaparecimento é lamentado hoje em vastos setores, não sem razão. “Restabelecer o justo sentido de pecado é a primeira forma de enfrentar a grave crise espiritual que paira como ameaça sobre o homem do nosso tempo”26.

A maturidade de juízo à qual o amor faz chegar, consiste justamente em perceber as possibilidades oferecidas pela vida e os riscos correspondentes que a ameaçam. Perceber apenas uma dessas dimensões é distorção visual e no fundo infantilismo. Todo bem tem o seu contrário que se lhe opõe no mais profundo de nós mesmos e no mundo que está ao nosso redor: amor e ódio, compromisso e indiferença, retidão e deslealdade... no fundo, luz e trevas, vida e morte.

Restabelecer o sentido do pecado em nós e naqueles aos quais se dirige o nosso ministério comporta perceber a referência que as nossas atitudes e ações têm com o amor de Deus e a incidência que a nossa relação com Deus tem sobre os irmãos e o mundo; compreender, consequentemente, o potencial destrutivo que o mal tem também quando lhe damos espaço na ações hoje consideradas “privadas” e assumir a responsabilidade dos seus efeitos sobre nós e sobre a história pequena e grande.


2.4 A formação da consciência

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O ambiente em que estamos imersos leva-nos, quase sem percebermos, a uma certa indiferença diante do mal moral, a um nivelamento de avaliação e, portanto, a diminuir a culpabilidade e a vigilância. Vêem-se de todas as cores e não se faz grande caso. Estamos como habituados ao fato de que cada um escolha a própria forma de vida, desde que não viole as normas da convivência e os direitos dos outros.

O juízo corrente a respeito de tendências e comportamentos é fundamentado freqüentemente em razões imediatas: estatísticas, vantagens pessoais, situações de dificuldade. A análise das culturas permite ver o quanto dependam delas normativas que se tornam absolutas. Foram relativizados, julgando-os mutáveis e não perenemente obrigantes, o sentido do pudor, o respeito da autoridade, um certa forma de matrimônio, a expressão da sexualidade.

O sentido de Deus tornou-se fraco. A sua imagem obscureceu-se na consciência pessoal e social de muitos. Isso torna difícil pensar que as ações humanas tenham algo a ver com a vontade de Deus. Preocupamo-nos em não nos desencontrarmos com os vizinhos e não ofendermos aqueles que estão ao nosso redor.

O estudo dos comportamentos humanos atribui “os sentimentos de culpa” ao tipo de personalidade, à educação familiar, ao ambiente social. Sublinham-se os seus condicionamentos e a urgência de libertar-se deles, mais do que o apelo à responsabilidade que possam conter.

Criou-se um divórcio entre moral “privada” e moral “pública”, pelo que muitas coisas, até de relevância social já são deixadas às opções individuais: aborto, eutanásia, divórcio, homossexualidade, fecundação. Existe uma sensibilização sobre isso tudo, em âmbito social e também educativo, mas com freqüência faz-se referência apenas aos riscos e precauções a serem tomadas; não se oferece uma sólida fundamentação ética, muito menos com relação ao transcendente.

Tudo isso influi sobre os jovens como uma nuvem tóxica. Não se deve estranhar que surja neles um conjunto de sintomas e reflexos da cultura que respiram. A sua formação moral é fragmentária. Tomam, de fato, critérios e normas de fontes diversas: da família e da escola, das revistas e da televisão, dos amigos, da reflexão pessoal. A opção é ditada por preferências subjetivas.

O ambiente, no mesmo sentido, influi sobre os adultos, religiosos e educadores, se não os mantiver vigilantes a leitura atenta da Palavra de Deus e o discernimento. Pode-se amortecer a sensibilidade. Passamos, dessa forma, como que seguindo a lei do pêndulo, de uma mentalidade anterior severa e de culpa a uma outra de sentido oposto, descompromissada e jocosa; do ter visto o pecado em tudo a não vê-lo mais em nada e em ninguém; da insistência sobre os castigos que o pecado merece à apresentação do amor de Deus sem responsabilidade por parte do homem: a sua sorte seria “a mesma”, qualquer que fosse a resposta dada ao seu Senhor; da severidade em corrigir a consciência errônea ao respeito que não se preocupa nem sequer em formá-la; dos dez mandamentos aprendidos de cor a não mais ensinar uma vida cristã coerente.

Ser “cristãos adultos”, “verdadeiros educadores da fé”, evangelizadores realistas significa não desconhecer ou dissimular a presença do mal, na vida privada e social e estar conscientes de suas capacidades destrutivas; saber que Cristo venceu todo o mal e nos oferece todo o bem; saber individualizar o mal em suas raízes e manifestações, iluminados pela Palavra de Deus; estar conscientes de que, com a sua incarnação, paixão, morte e ressurreição, Jesus nos indica o caminho para superá-lo: entrega confiante a Deus, resistência, vigilância, luta intelectual, moral, espiritual.


2.4.1 Juízo e vida salesiana

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Limito-me a sublinhar, do ponto de vista do nosso carisma, como era esplêndido o equilíbrio pessoal, pastoral e pedagógico de Dom Bosco, que somos chamados a continuar e atualizar. Ele educava com a palavra ao ouvido e com o cuidado do ambiente, com o afeto pessoal e um regulamento preciso; era um padre de quem todos sentiam-se preferidos e mestre capaz de propor, fazer entender e assimilar as exigências da vida comunitária e da missão, atento em avaliar com sabedoria e prodígio de energia empresarial.

Em relação à reconciliação, aparecem em Dom Bosco tanto a intuição da qualidade que promove, possuidora do bem por sua natureza, quanto a percepção aguda do desastre produzido pelo pecado, até à somatização! É notável, na linha daquela dúplice atenção que chamamos de co-presença e assimetria entre graça e juízo, o fato de Dom Bosco, em seu código narrativo, falar sempre in recto do bem, mas exprimir-se sempre in figura (sonhos, elefantes, monstros, imagens, acenos...) a propósito do mal, afirmando assim a justiça de toda obra boa e a injustificabilidade de qualquer obra má. Por outro lado, ele fez desse seu modo de exprimir-se uma indicação pedagógica precisa para os seus seguidores.

A lógica do coração não anula o dever da responsabilidade, e o espírito de família não elimina o serviço da autoridade. Pelo contrário, sustenta-a: de um lado porque é fruto do mesmo espírito de família, e de outro, porque a abdicação ao serviço da autoridade leva as tensões a níveis insuportáveis tornando com freqüência praticamente impossível conter o mal de tipo individualista, derrotista e regressivo.

O serviço da autoridade como capacidade de orientação, apelo e correção é um sacrifício, mas em favor do bem comum, dirigido por uma visão realista das coisas, indispensável nas situações em que os caminhos da persuasão devem ser utilizados ou, tendo sido percorridos, foram frustrados.

Este pensamento provém da consideração das tensões vividas em nossas comunidades, por motivos de geração, de compatibilidade ou de colaboração difícil; o que, às vezes, parece ver são obediências límpidas, às quais não corresponde um reconhecimento afetivo, e claras desobediências, às quais não segue uma providência efetiva. Em outras palavras: muitas vezes, não se sabe como manter unidas justiça e bondade.

Ora, a clareza da própria posição vocacional/comunitária e a retidão no exercício do próprio papel são a premissa para um maior discernimento espiritual e, portanto, para caminhos de reconciliação ao mesmo tempo mais justos e melhores.


3. CONVERSÃO E VIDA NOVA NO ESPÍRITO


Unimos neste terceiro passo os dois pontos anteriores, antecipando também desta vez aquilo que queremos sugerir: a reconciliação comporta o discernimento em duas direções: uma “escavação no passado”, para nele descobrir os sinais do amor de Deus e do bem que ele depositou em nós, e para renegar tudo o que tenha sido, de nossa parte, incredulidade, ingratidão, dureza, temor, violência; e um “colocar-se no futuro” como entrega confiante à força renovadora do Espírito, reconhecimento e aceitação daquele mais de amor, comunhão e perdão, que a vida nos pede, como apelo à nossa liberdade, como responsabilidade do nosso ser precedidos, envolvidos, acompanhados e esperados pelo amor divino.

Quando digo “discernimento” não penso em algo apenas “intelectual”, mas no “coração” bíblico, no centro da alma no momento em que se decide, se resolve, se determina no bem diante de si e dos irmãos, ultimamente diante de Deus.

“Reconciliação” é uma palavra de total significado positivo, mas que denota a superação de algo negativo. O homem é, desde sempre, destruidor da aliança de amor e, por isso, o amor humano é sempre acompanhado de reconciliação. Os cristãos não são nem pessimistas nem otimistas em relação ao homem: olham simplesmente para a história imediata e ampla, também porque é nela que Deus se revelou; pensam portanto numa bondade originária do homem em termos reais, isto é, limitada e perdida; pensam no pecado original como continuamente reativado pelo pecado pessoal, embora tenha sido derramado o sangue de Cristo.

As vantagens desta compreensão são notáveis, porque há grande diferença entre estar no mundo pensando que todos são bons e que tudo deva funcionar, fazendo com que a vida se torne espaço de mil desilusões, e estar no mundo sabendo que ele caminha como pode, mas procurando fazer acontecer o mais possível o milagre do amor, tornando a vida espaço de alegres surpresas!

Insistamos, pois, com razão, na educação ao amor. Educar ao amor, porém, é ensinar a considerar o perdão, a recomposição, a reaproximação e a reconciliação como modalidades em que o amor se torna possível e concreto.

Correlativamente, educar e educar-se à fé não é tanto adquirir ou comunicar o conhecimento de que Deus é nosso Pai, mas um retornar a Ele. O ato de fé é a superação da incredulidade, qualquer forma teórica ou existencial que tenha tomado. Já existe aí uma distância a ser superada, para poder acolher a vinda de Deus. Não por acaso o dispor-se à acolhida da alegre mensagem é marcado por Jesus de uma maneira que, vendo bem, é surpreendente: “Completou-se o tempo e está próximo o Reino de Deus: convertei-vos e crede no Evangelho”27. A conversão abre a porta da fé.

O anúncio da terna paternidade de Deus não pode ser feito senão na forma de convite ao retorno. Pode parecer duro, mas é animador e sobretudo evangélico, porque significa que ninguém é jamais subtraído à oferta da paternidade divina: todos são esperados e ainda podem chegar até ela e gozar dela sem medida.


O retorno a Deus

A ocasião extraordinária do Jubileu para o início do milênio convida-nos a ir a fundo mais do que a navegar na superfície dos fenômenos. São Paulo, na seqüência do título desta carta, suplica: “Deixai-vos reconciliar”28, indicando assim que a reconciliação é resposta à iniciativa de Deus.

Perguntemo-nos: porque a Reconciliação é algo que o homem não pode encontrar por si, mas é, antes de tudo, ação de Deus? Porque ao homem toca o esforço da fé, entrar num perdão oferecido, corresponder a uma iniciativa de Deus? O que fizemos, o que arruinamos, a ponto de tornar tão difícil, ou melhor, impossível, a comunhão com Deus e entre nós homens contando apenas com as nossas forças? Qual a razão pela qual a história da salvação é o desejo de Deus de fazer aliança com o homem e, portanto, chegar à reciprocidade do amor, e entretanto ela deve ser sempre novamente proposta pela obstinação unilateral do amor de Deus? Em termos mais radicais: porque a nova e eterna aliança é selada na solidão de Jesus crucificado? O que se produz no dinamismo da liberdade humana após o pecado? Porque se produziu desde sempre algo como o pecado, isto é, suspeita, recusa, orgulho, auto-suficiência, incredulidade, também em relação a Deus?

Um primeiro elemento de resposta é este: a vertigem que faz precipitar no mal é o desejo do nosso bem! A reconciliação é algo delicado porque toda divisão insurge sobre uma certa percepção e expectativa do bem. Não por acaso Jesus ensinou-nos a rezar colocando em nossos lábios a invocação “não nos deixeis cair em tentação”29, ou seja, não permitas que o apreço de teus dons nos faça esquecer a ligação contigo que és o Doador.

Esta vertigem é indicada pela Escritura no estímulo do tentador: “Ser como Deus”30: é uma tentação sutil porque se insere na intenção de Deus de criar-nos como seus filhos, colocar-nos no mundo como verdadeiras liberdades. Que o homem, de fato, deseje de certo modo “tudo”, é o que o próprio Deus colocou em seu coração; mas fácil interpretá-lo mais como “ter tudo” do que como “receber tudo”; e é fácil pensar a liberdade como pura autonomia e não como dom; no primeiro caso produz-se uma desvinculação, no segundo caso um agradecimento; no primeiro caso a vida é solidão, no segundo é gratidão. A árvore do bem e mal sugere justamente este querer ter sem receber, este ser sem pertencer, este avaliar sem referências.

Há um segundo elemento de resposta à questão sobre a dificuldade do homem em reconciliar-se: a interdição do fruto da árvore na mente de Deus é a sugestão da diferença entre Criador e criatura. Trata-se de uma sugestão positiva porque garante e conserva a consistência original da criatura, chamada a estabelecer uma relação, a entrar num diálogo com Alguém que a quer tanto a ponto de faze-la nascer. A serpente sugere, porém, que isso é subtração de uma importante quota de liberdade e felicidade, o que consegue obscurecer todo o “bem de Deus” que o homem tem também à sua disposição: suspeita, desconfiança, incredulidade em relação a Deus, a sua imagem obscurecida.

Contra isso tudo, qualquer religião, cristianismo compreendido, deve lutar continuamente. Entretanto, enquanto cada religião é marcada objetivamente por essa realidade, o cristianismo exclui-se dela: Jesus é o homem sem incredulidade, o Filho, a síntese de liberdade e pertença. O que já é indicado em Gênesis 3, onde é entrevista a futura vitória que vem da descendência da mulher31, chamado justamente de “Proto-evangelho” porque prenuncia o coração da salvação, “a obra que devemos fazer” para salvar-nos: ter fé, reproduzir a mesma “fé de Jesus”32 em nossa humana entrega confiante a Deus e proporcionalmente nas relações humanas de confiança.

A parábola do pai misericordioso descreve as duas possíveis reconciliações a partir das duas macro-patologias da fé: a auto-suficiência ingrata e a insatisfação ressentida, a fuga e a escravidão, a distância e a aridez do coração, em todo caso uma paternidade mal entendida. Quem poderia dizer que não nos dizem respeito?

O filho menor sente a cupidez de ter a própria parte; o filho maior trabalha honestamente na casa do pai. Por qual razão, então, o menor deveria interpretar que estar em casa era subtração da felicidade, e o maior, subtração da liberdade? Porque o menor não pensou que a herança estava ao seguro exatamente no coração e na casa do pai; e porque o segundo não pensou que o cabrito podia ser pego por ele quando quisesse (“tudo o que é meu é teu”33)? Quanto custará, quanto será fácil ou difícil a reconciliação para um coração desconfiado e para um coração ressentido? Jesus sugere que é tão pouco fácil que o Pai deve colocar em jogo ainda uma vez a sua iniciativa, o seu amor antecedente: ao menor “correu ao encontro e abraçou-o”34; quanto ao maior, “o pai saiu para suplicar-lhe”35.

Jesus, porém, sugere da mesma forma, que tudo é também muito fácil: se a iniciativa é do Pai, então a nossa tarefa é apenas a de “deixar-nos reconciliar”, de entrar no perdão de Deus!

Somos, de qualquer modo, advertidos para sempre de um dúplice aspecto dramático que vez por vez devemos atravessar: a incapacidade do filho menor de por si fazer a passagem do remorso ao arrependimento, e o êxito em suspenso da atitude do filho maior que se dará, infelizmente, fora da narração, e será a condenação à morte de Jesus.


2.5 A salvação nas raízes do mal

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As dinâmicas que inserem toda divisão na vida das pessoas são as mesmas descritas por Gênesis 3 e Lucas 15. A incredulidade e as más relações que dela seguem, a convicção de que a felicidade deve ser mais conquistada do que recebida, que mais do que entregar-se é melhor arranjar-se sozinho, que as razões do amor, enfim, não são tão ingênuas como pareciam, mas são consequências do mal que vão configurando os nossos corações e as nossas relações.

As crianças, num determinado momento, após terem recebido tudo, fazem a experiência de ouvir dizer algum “não”. Para elas, aqueles “não” são uma crise de adaptação, para os pais uma simples modalidade do “sim”, modalidade acertada aqui e agora. Para os pais, contudo, é um risco, e para os pequenos uma encruzilhada dramática: é questão de instantes tornar ambígua e não confiável a figura do pai ou confirmá-la como luminosa e confiável; é questão de instantes dizer: “fá-lo para o meu bem” ou: “tira-me uma parcela de felicidade”.

Todas as crianças fazem, igualmente, a dolorosa descoberta de não serem o centro exclusivo e solitário de atenção e afeto. Entretanto, porque essa descoberta é vivida sob o signo do ciúme e da insatisfação mais do que da alegria? Porque num instante, é tão difícil ser receptivos e generosos? Porque os psicólogos registram que a oblatividade, mesmo tendo desde o início algum débil sinal, na realidade, é mais um objetivo?

É claro que isso tudo já é esforço de reconciliação: trata-se de aprender a viver no mundo na lógica do amor mais do que na do egoísmo, mais no estilo da circulação de dons do que no estilo do monopólio. Quantas experiências, porém, deve fazer e quantas decisões interiores deve tomar um menino, um jovem, um adulto para convencer-se de que o amor se multiplica, não se divide, que o amor dá espaço ao outro sem que ninguém perca o próprio, que no amor não existe temor porque no amor verdadeiro ninguém é muito pobre e ninguém é muito rico!

Se é esta a tentação, a prova radical da vida já em nós mesmos, ela torna-se forte e difícil de superar pelas formas mais evidentes e mais difusas do mal: existem pais objetivamente não confiáveis, famílias desfeitas, amigos que atraiçoam; existem liames tecidos por interesse, erros cometidos em boa fé, a experiência do entender-se mal, do não compreender-se, coisas que causam realmente medo neste mundo; existe o provérbio “confiar é bom, desconfiar é melhor”; existem sentimentos e gestos maus; existem o ódio e a vingança, existe o monopólio dos bens e o abuso dos fracos, existem os homicídios e os genocídios.

A reconciliação, aqui no sentido mais largo do termo, torna-se difícil, porque não pode ser desejo regressivo do útero materno, retirar-se num oásis tranqüilo, mas deve unir-se realisticamente com os compromissos de justiça, com as reivindicações justas, com a denúncia do mal, com a defesa do pobre e do inocente, com a neutralização do prepotente, com o paciente trabalho de construir a paz e a solidariedade.


2.6 Aspectos salesianos

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Entre os possíveis aspectos salesianos, parece-me de capital importância ler, à luz das reflexões sobre o difícil esforço de reconciliação, a profunda sabedoria do “não basta amar” de Dom Bosco: o surplus expressivo, exigido pelo amor em nosso carisma, é justamente motivado pelo fato que, para um coração ferido, como pode ser o de um menino pobre ou de um irmão provado, não é fácil voltar a nutrir em si mesmo aquela confiança que está na origem de uma resposta; o amor do educador ou do irmão procura vencer, então, toda suspeita com a estratégia tranquilizadora da oferta de afeto tão gratuito e manifesto a ponto de vencer qualquer reserva.

O surpreendente é que todas as vezes em que acontece um contato de simpatia, como o que Dom Bosco descreve na relação com seus meninos, os corações soltam-se muito depressa também. Surgem daí dois ensinamentos: o primeiro é que a reconciliação é tão esperada, que, quando oferecida e favorecida mais do que exigida e pretendida, ela acontece logo! E o segundo, é que o educador que usasse o poder dos afetos de maneira instrumental ou sedutora, produziria desencanto, cinismo, violência que pode não ter iguais. Não há, de fato, experiência pior da traição, porque a desmentida da confiança acontece lá onde alguém tinha feito o máximo investimento afetivo, quem sabe já com esforço e trepidação.

É até mesmo fácil intuir o esforço pedagógico exigido hoje dos educadores, para fazer frente ao consumismo afetivo, que atrai os corações com a sedução da amizade, do calor, da compreensão, do diálogo, ou mesmo somente como jogo lúdico, como estímulo emocional, mas sem responsabilidade e compromisso de vida.

Quanto ao que se refere às comunidade, precisamos visualizar melhor os grandes temas da nossa espiritualidade. O esforço deveria ser trabalhar muito mais e de maneira muito mais comunhonal sobre o que está pela metade do caminho entre a indicação geral de um projeto e o detalhe particular de um itinerário, ou seja, sobre experiências desabrochadas da vida e já possíveis de propor de maneira mais extensa.

A melhor premissa a qualquer reconciliação é o anúncio e a experiência da gratuidade: a coragem do perdão pode nascer somente na redescoberta que o mundo não é fundado no cálculo mas no dom! E não há catequese, lição escolar ou evento lúdico que não se preste para tornar os jovens atentos àquilo que existe de puro dom no mundo.

Dom Bosco dizia nessa linha, que a mais bela flor que possa desabrochar no coração de um menino é a gratidão: ajudar os jovens (e os irmãos!) a tomar consciência dos dons, experimentar a gratidão, agradecer com a palavra, retribuir com a vida, é o melhor modo de colocar a educação em seus dinamismos originários.

Uma segunda indicação para que a reconciliação se torne possível é a acolhida, a ser pensada de maneira correlativa à gratuidade, por ser a atitude que permite o dom de não se frustrar, de não se deter na fonte, de não se retirar prematura e mortificadamente, de ter uma história “humana”.

A acolhida funciona preventivamente e funciona retrospectivamente: faz o primeiro gesto e é capaz também de recoser eventuais rupturas, pedindo desculpas e perdão. A acolhida mostra que o amor dá espaço ao outro, enche o “não basta amar” de conteúdo tornando-se simpático e acolhedor, escutando de maneira envolvente, fazendo com que o outro se sinta importante, digno de consideração, não pré-julgando e nem sequer julgando, simpatizando com o ponto de vista do outro e suas boas razões, permitindo que o outro exista, que também erre, sem sentir-se muito embaraçado ou julgado mais do que isso acontece por si.

Hoje é pedagógica e espiritualmente qualificante elaborar uma sabedoria concreta que articule o grande mandamento do amor num código concreto, quotidiano, praticável, compreensível. A título de exemplo, muitas reconciliações não acontecem, e muito amor fica disperso, porque os nossos desfoques espirituais, a nossa “educação”, a nossa história de pecado tornaram difícil distinguir bem entre reserva e fechamento, sinceridade e indelicadeza, solicitude e pressa, amor pela verdade e dogmatismo, doçura da caridade e fraqueza.

Estes exemplos referem-se sobretudo à área da relação pessoal, mas com um suplemento de reflexão não seria difícil desenhar um mapa de atenções para a reconciliação em nível comunitário, eclesial e também macro eclesial.

A orientação das nossas questões deveria ser mais ou menos esta: no que os homens, e particularmente os meus irmãos, se sentem felizes e promovidos no dom de si? No que se sentem mortificados? O que é inevitável por razões de justiça, de ordem institucional, de organização racional? O que, ao contrário, é evitável e, eliminado, o que concorre para diminuir as taxas de indiferença, marginalização, desmotivação, conflitualidade, facciosidade...? O que favorece ou desfavorece a instituição e a conservação do outro na forma de adversário, concorrente, estranho?

Uma terceira sugestão em vista da reconciliação é a paciência, entendida como esquecimento de si e realista acolhida do outro, como disposição prévia à compreensão e ao perdão, como “capacidade” de operar o bem, como comum e humilde reconhecimento de que somos todos fracos, falíveis e pecadores.

Dar início ao caminho pedagógico no qual o perdão é demostrado como condição normal mais do que como ato ocasional e extremo, como honra mais do que como peso, como vantagem mais do que como perda levaria irmãos e jovens a compreender melhor o coração de Deus e ter mais coração para com os irmãos.

Neste sentido, quem quer que esteja empenhado na guia das almas, primeiramente da própria, bem sabe o quanto é difícil, mas também quantos frutos produz uma educação à lógica humilde e divina do primeiro passo, à capacidade de pôr fim no entrelaçar de erros cometidos e padecidos e olhar longe, oferecendo novamente amor de maneira incondicional.

Parece-me ser importante, para nossa alegria e – como educadores da fé – para não pregar o que não vivemos, experimentar ativamente a reconciliação em todas as formas mais espontâneas, e ao mesmo tempo encontrar caminhos de reconciliação e de penitência mais expressas, reguladas, celebradas. A questão que desejo trazer à baila é a seguinte: será possível, na fidelidade à nossa tradição, que na questão da reconciliação se apoia muito na figura do Diretor, favorecer formas mais participadas, menos reservadas mas mais comunitárias, presumivelmente menos delicadas mas mais genuínas, de reconciliação? Será possível entrar mais lucidamente na onda comunhonal que marca hoje a vida e a consciência da Igreja? Será possível subtrair também a Reconciliação sacramental da deriva individualista do só “colocar a própria consciência em ordem”?

Muitas vezes, no contexto de retiros espirituais foram oferecidos momentos explícitos de verdade e de reconciliação (breves intercâmbios a dois nos quais pedir desculpas, enfrentar um esclarecimento, agradecer, corrigir-se e pedir correção...), sempre com grande apreço por parte dos participantes, particularmente dos jovens. Esses momentos representam, para uma boa parte, um chance importante. De fato, alguém pode conviver com alguma frieza ou desilusão – não são o fim do mundo – mas sendo oferecidos um clima e uma situação apropriadas, acontece então a abertura humilde, o esclarecimento sincero, a acolhida da correção, a coragem da verdade. Pensava-se mal de alguém e, após quatro palavras, tudo é desdramatizado. A idéia é que, talvez, não baste apelar para a boa vontade e o ditado constitucional ao redor do espírito de família: alguns valores devem ser “ritualizados”.

Diga-se o mesmo dos caminhos penitenciais: um compromisso comunitário para produzir sinais um pouco mais corajosos far-nos-ia bem, sem esconder-se logo atrás dos álibis das diferenças, da saúde, dos anciãos, do bom senso, sem objetar logo que se trata de radicalismos de elite, mas enfrentando as coisas com sinceridade mais direta! Por exemplo: o que poderia fazer uma comunidade que se reconhece aburguesada em seu estilo de vida para pedir perdão aos pobres no ano jubilar? O que poderia fazer para que essa reconciliação fosse visível?

Desejou-se apresentar em Apêndice às nossas Constituições, o escrito de Dom Bosco sobre os “cinco defeitos a serem evitados”36. Há um patrimônio de sabedoria concreta, verdadeiramente não genérico mas carismaticamente marcado, que talvez tenhamos acolhido de forma moralista e esquecido em seguida. Examina-se em todos os pontos, nessa pequena página de Dom Bosco, a ótica de Congregação, com que como Salesianos deveríamos raciocinar imediatamente: reconciliação significará então, antes de tudo, revisão do próprio egoísmo, já na consideração das coisas e problemas que encontramos na vida quotidiana da comunidade, da pertença à Inspetoria e à Congregação, da realização da missão.

Podem-se considerar hoje na mesma pauta algumas linhas da reorganização indispensável da vida no contexto atual, entendida como retorno ao Evangelho e às raízes da nossa vocação, considerando os elementos específicos da experiência religiosa salesiana em que nos sentimos em falta: quanto está vivo e expresso o amor a Cristo que esteve na origem e deve estar no centro da nossa vida consagrada? O que dizer do nosso desejo e esforço de atualizar o sistema preventivo para os jovens e as situações do nosso tempo? A missão salesiana não foi muitas vezes pensada e desenvolvida sob o signo do individualismo, da timidez, das visões estreitas? A comunhão fraterna visível, sinal da presença do Senhor e elemento de reconciliação no ambiente foi suficientemente real e expressiva? A comunicação aos leigos do nosso carisma e espiritualidade foi levada adiante sob o signo da esperança, da urgência, da graça que representa?


4. O SACRAMENTO DA RECONCILIAÇÃO


Aquilo que dissemos expressa-se e realiza-se para nós, indivíduos, comunidade cristã, mundo, no sacramento. Ele é o evento de salvação que Deus torna disponível hoje com infinito amor por todos. Jorrado do coração de Cristo na plenitude da Páscoa, faz desejar e atua a reconciliação, o perdão, a possibilidade de ser recriados como filhos de Deus pela força do Espírito.

É um dos poderes, mandatos, serviços ou missão que Jesus entregou à Igreja de forma clara e solene: “A paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, também eu envio a vós. Dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados, ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficar-lhes-ão retidos”37

Estamos no dia da Ressurreição, no cenáculo, onde os discípulos estão reunidos, e Jesus mostra-lhes os sinais da sua morte e Ressurreição.

O Apóstolo iluminará, numa seqüência que não precisa ser comentada a ligação Deus-Cristo-nós-vós: “Portanto, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. As coisas antigas passaram; ei-las que novas surgiram! Tudo isso, porém, vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação. Efetivamente, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens os seus pecados e depondo em nossos lábios as palavras da reconciliação”38.

A reconciliação, na missão da Igreja e em nossa experiência cristã pessoal, é substancial enquanto possibilidade de uma nova humanidade. A Igreja assume-a, propõe-na, atua-a em toda a sua extensão: na pessoa, na comunidade dos crentes, no mundo; com Deus, entre os homens, com a realidade, com a história e os acontecimentos, para que o Espírito faça nova todas as coisas. Propõe-na através de diversos caminhos: a Palavra, a oração, a caridade, o sofrimento aceito, a penitência, a Eucaristia.

Realiza-a segundo a sua natureza sacramental, mediante um sinal visível e humano que, pela fé, coloca em contato com a graça salvadora. Esclareceu, ao longo dos séculos, as suas condições para que leve ao verdadeiro encontro com Deus e a graça atinja as dobras recônditas da pessoa e da comunidade.

O sinal é, de fato, eficaz, também porque pedagógico, pois implica e educa a liberdade do homem. Esta nota é importante porque dá a idéia do sacramento não como rito purificador, mas como acontecimento: um encontro “humano” entre Deus e a pessoa na comunidade; encontro em que tanto Deus como a pessoa e a comunidade estão total e seriamente empenhados: Deus, com o oferecimento do perdão, a pessoa com o seu arrependimento sincero, a comunidade com a acolhida.

Pensar diversamente, isto é, que Deus perdoa sem necessidade de que o homem se torne consciente e se arrependa, seria aceitar que o sacramento funciona com distribuição automática (quando precisas dele apertas o botão!), sem participação da consciência humana, reduzido praticamente a rito mágico; dessa forma, se o sacramento fosse apenas representação do arrependimento humano, mas não gesto e intervenção de Deus, estaria reduzido a cerimônia, negado em sua eficácia segura.

No primeiro caso, Deus é negado em sua onipotência, porque instrumentalizado, dobrado às nossas finalidades e ao nosso horário; no segundo caso, é reduzido a alguém que, no fundo, não ama, porque não se envolve em nossa vicissitude efetiva. Nos dois casos, a Igreja, que deve ser mediadora, continuação e atualização do mistério e do ministério de Cristo, seria reduzida a “agência de serviços religiosos”.

A catequese, mas antes ainda, a nossa compreensão adulta da Reconciliação sacramental, deve aceitar e realizar os gestos que reconhecem a disposição de Deus e exprimem as disposições do homem. No sacramento, com efeito, é elaborada e resolvida, à luz da Palavra de Deus, a trágica experiência do batizado que é o pecado e a culpa.


2.7 Um caminho de revalorização

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Não me detenho na apresentação do esforço da Igreja para manter genuína e integralmente os componentes do “sinal” sacramental, para não deseducar o homem com uma facilitação “distributiva” e para tornar claras as dimensões teologais, históricas e antropológicas subentendidas na reconciliação.

O sinal sacramental foi melhor colocado no contexto comunitário da Família de Deus, a dor reconduzida à relação filial com Deus, o exame de consciência à tomada de responsabilidade à luz da Palavra de Deus em relação aos males que germinam em nós e àqueles que, com a nossa colaboração “barata”, acabam por ser enormes no mundo; o propósito, relacionado ao esforço de “converter-se” ao Evangelho e trabalhar por uma humanidade segundo o coração do Pai nos espaços possíveis de alcançar com a nossa existência e o nosso espírito; a “penitência”, vista como uma atitude e uma prática que passa do sacramento à vida e vice-versa, como vontade de repetir os gestos quotidianos do amor, como vigilância evangélica e participação na comunhão dos santos.

Não me detenho nem mesmo em analisar as causas gerais de um certo esconjurado distanciamento do sacramento: não vos será difícil individualizá-las. Pensai no enfraquecimento da nossa relação com Deus, no ofuscamento do sentido do pecado e na dificuldade de reconhecer a mediação da Igreja; na vida espiritual descuidada a partir da oração e do individualismo da consciência, pelo que se gostaria de gerir a sós avaliações, culpas e remorsos; numa catequese carente e na desistência do ministério de muitos sacerdotes.

Não entro nem sequer no mérito do raciocínio, apresentado muitas vezes também por religiosos e gente empenhada na pastoral, sobre a inadequação para o homem de hoje da confissão pessoal, não genérica dos próprios pecados. Estou certo de que como educadores e pastores vos dais razões teológicas e pedagógicas dos componentes do sinal sacramental e estais também preparados para propor com eficácia essas motivações a jovens e adultos.

Ofereço, porém, algumas reflexões com uma visão ampla de conjunto.

Se a Páscoa é o resultado da Paixão, é preciso reconhecer que o nosso coração não é só belo, isto é, sede de aspirações e possibilidades, ou apenas frágil e limitado, mas é também pecado, e que “salvá-lo”, torná-lo novo39 não é empresa pequena.

A fé cristã não fala de um Deus genericamente benévolo e de um homem genericamente instável ou limitado. Fala de um Deus que nos amou tanto a ponto de dessangrar-se por nós e fala de um homem cuja culpa é tão grave que a salvação resulta realmente onerosa.

Uma experiência espiritual madura e uma boa evangelização não deverão dissolver o mistério pascal numa “vontade” salvífica universal e abstrata, mas recordarão que se trata de uma vontade “salvífica” atuada de modo “crucificado”. Há no acontecimento de Cristo uma ligação intrínseca entre encarnação e paixão, entre o “fez-se homem” e o “padeceu, morreu e foi sepultado”; assim como no caminho do homem há uma ligação intrínseca entre redenção e divinização, entre ser recuperado e liberto e tornar-se filho de Deus.

A superação de uma mentalidade e de uma catequese excessivamente fixadas no pecado não deve eliminar a “memória” de que foi preciso a morte de Jesus para que o perdão se tornasse uma possibilidade real40. O sacramento leva-nos também ao coração dessa realidade e liberta-nos da leviandade e do consumismo religioso.

Acrescento uma segunda reflexão. A história das culturas testemunha a consciência de que não se sai sozinho do mal e do pecado. O desgosto de si mesmos, o reconhecer-se culpados, o senso de culpa equilibrado ou excessivo, sozinhos, não constituem caminhos de saída do mal. Denunciam apenas a existência de um trauma.

Mais problemática ainda é a questão de se poder reconhecer verdadeiramente pecadores, sem por isso chegar à condenação de si mesmos. Uma resposta a essa questão não pode ser encontrada pelo homem com as próprias forças. A santidade de Deus e a maldade humana representam dois abismos dificilmente compenetráveis. Se alguém radicaliza a própria auto-condenação, chega ao ceticismo ou ao desespero; mas se acusa ou ignora a Deus, perde então o único interlocutor de uma possível salvação. Há toda uma literatura moderna que exprime esse dilema.

Por outro lado, se um verdadeiro perdão está garantido, o homem, com as próprias forças, jamais o entendeu: é o maior problema de todas as culturas e de todas as religiões. O motivo é simples: assim como o homem é ao mesmo tempo culpado e juiz na culpa, ele, por si só, não se pode dar o perdão.

O perdão deve “acontecer”, deve ser um evento, não uma dedução de princípios, um retorno arrependido sobre si ou um postulado do nosso desejo. Portanto, ou acontece ou não existe; ou é regulado (é justamente “per-dom”!) ou não pode ser pretendido.

Duas consequências. A primeira, por colocar o perdão “cristão”, e o sacramento que o significa, em seu ponto de luminosidade na experiência religiosa universal, num momento histórico caracterizado pela pluri-religiosidade. A suspensão de juízo sobre o perdão das culpas caracteriza as religiões, que nisso demonstram honestidade intelectual e moral. A mais lúcida é a hebraica. Sente-se nos salmos o suspiro de quem sabe que é culpado diante de Deus, está arrependido e se confia à sua misericórdia. A resposta que explicita o perdão garantido, porém, não é sentido a não ser em casos especiais pela boca de um profeta41.

É justamente aí que o cristianismo resulta universalmente interessante, porque anuncia uma possibilidade de libertação oferecida por Deus e ao mesmo tempo digna do homem. De fato, a salvação cristã, longe de ser “decreto” de anistia é evento do Filho de Deus que, na cruz, é ao mesmo tempo Inocente (sinal de quanto mal faz o mal) e Culpado (Ele agora é o “Maldito”, o objeto da reprovação de Deus42), Juiz (com a sua morte o Espírito “convence o mundo de pecado”43) e Juiz na surpreendente forma de Redentor: o juízo de condenação atinge-o em nosso lugar, Ele foi “feito pecado”44 em nosso lugar! Dessa forma, Ele não quita, mas “tira”, “desenraíza” o pecado do mundo.

A segunda conseqüência refere-se ao apelo pessoal que o sacramento comporta e a sua inserção num estilo, caminho ou esforço de vida em Cristo. A libertação, o desenraizamento do mal não pode ser simplesmente um decreto de Deus. Se Deus não conseguisse persuadir-nos interiormente do bem, a ordem do mundo poderia ser estabelecida apenas como ordem policial, mas não seria mais um mundo de amor. E Deus só quer esse mundo!

O sinal sacramental, por isso, leva o evento da reconciliação ao recôndito último e personalíssimo do homem. Entre as tantas formas de mal que há no mundo, é ao mesmo tempo compreensível e estranho que a nossa atenção vá logo àquelas inevitáveis (doenças, terremotos, guerras ou flagelos nos quais não temos responsabilidade direta...). É sintomático que essa atenção, para não poucos, se transforme enfim em suspeitas e processos sobre a efetiva bondade e poder de Deus. Porque não nos escandalizamos mais com o mal que provém da liberdade, evitabilíssimo e contudo não evitado? Será realmente digno levantar acusações antes de reconhecer o mal que nós mesmos contribuímos para produzir e multiplicar? Porque, por honestidade humana e cristã, não nos tornamos conscientes do drama que há em nós, do fato de sermos atravessados por desejos bons e também maus, pela contradição de fazer o mal que não queremos e de não fazer o bem embora queiramo-lo, em lugar de procurar a sua “justificação” ?

Ou porque, sempre como cristãos, em vez de formular questões abstratas, não contemplamos com maior atenção a Revelação de Jesus, que em nome do Pai e na força do Espírito realizou gestos de libertação do mal, e somente eles? E porque a nossa preocupação não é a de evitar o mal e de mitigá-lo nos irmãos?


2.8 Sacramento e espiritualidade salesiana

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A ligação salesiana com este tema é inexaurível. Compreende a experiência espiritual de Dom Bosco, o lugar central que ele deu ao sacramento da penitência em sua pedagogia para os jovens, o universo sacramental em que se desenvolve toda a espiritualidade salesiana e, não por último, a singular “história” de Dom Bosco como confessor de jovens que nós somos chamados a atualizar.

A experiência ininterrupta de Dom Bosco desde os primeiros anos da adolescência, no período do seminário, como jovem sacerdote e como homem famoso é apresentada sinteticamente pelo P. Eugênio Ceria com estas pinceladas: “Dom Bosco afeiçoou-se à confissão desde a mais tenra idade, nem qualquer mudança de vida serviu para diminuir nele a propensão amorosa de aproximar-se dela com frequência... Estudante em Chieri e libérrimo de si mesmo, pensou logo em buscar um confessor estável... Padre em Turim, confessava-se a cada oito dias com o bem-aventurado Cafasso. Falecido o servo de Deus, recorreu ao ministério de um piedoso sacerdote já seu condiscípulo, que ia receber a sua confissão todas as segundas-feiras na sacristia de Maria Auxiliadora, confessando-se em seguida com o próprio Dom Bosco.

Durante as viagens, na ausência do próprio confessor ordinário, mantinha-se fiel à sua estimada prática, dirigindo-se a algum salesiano ou outro, segundo o caso: por exemplo, durante uma permanência de dois meses em Roma em ’67, confessava-se semanalmente como o Padre Vasco, jesuíta por ele conhecido em Turim.

Seus filhos, de início, hesitavam, mas ele: – Vamos, vamos, dizia, faz esta caridade a Dom Bosco e deixa que se confesse”45.

É certo que ocorrem diferenças na organização da vida espiritual e da práxis sacramental entre o tempo de Dom Bosco e o nosso. Seria, porém, superficialidade histórica pensar que Ele seguisse apenas um hábito devocional. Qualquer palavra ou ensinamento dele (e são tantos!) manifesta o sentido do encontro vivificante com Deus que a Reconciliação comporta, a convicção da necessidade e riqueza da mediação da Igreja, a função do sacramento num caminho de santidade serena, alegre, em crescimento constante.

Temos hoje, sobre a incidência atribuída por Dom Bosco à Reconciliação sacramental na educação dos jovens, estudos documentados que colocam o sacramento organicamente no programa global de crescimento humano e cristão46. Foi freqüentemente sublinhada a catequese constante de Dom Bosco sobre a Reconciliação-confissão, desenvolvida com palavras, mas também de forma prática, predispondo as oportunidades e condições para que os jovens fossem despertados para o desejo de aproximar-se dela uma primeira vez e, em seguida, assumi-la como prática constante.

Escreve o P. Lemoyne: “Cada frase de Dom Bosco foi um estímulo à confissão”47. Percebe-se imediatamente o caráter hiperbólico da expressão. Assim como resulta evidente a todos a frequência, a insistência e a variedade com que Dom Bosco expõe este ponto nas pregações e boas-noites, nos textos biográficos e narrações, nos livros de “orações”48 e na narração dos sonhos.

Em cada uma das três biografias exemplares (Domingos Sávio, Miguel Magone e Francisco Besucco) há um capítulo sobre a confissão. Na de Domingos Sávio, que é a primeira em ordem de tempo (1859), estão unidos os dois sacramentos: a penitência e a eucaristia49. Na de Miguel Magone, porém, são dois capítulos, o quarto e o quinto, um narrativo e o outro didático, voltados diretamente aos jovens e educadores, dedicados só à confissão.

Sob a forma biográfica, Dom Bosco propõem uma pedagogia para ajudar o jovem a superar as próprias tendências deterioradas, crescer em humanidade e orientar-se para Deus mediante a penitência.

Um estudioso, o P. Alberto Caviglia, crê que o capítulo quinto da biografia de Miguel Magone seja um dos escritos mais importantes e preciosos da literatura e da pedagogia de Dom Bosco, um documento insigne da sua orientação espiritual50.

Mais original do que a insistência da sua catequese sobre a penitência-reconciliação-confissão é a valorização da incidência educativa da penitência, que não substitui mas se enraíza na sua natureza “sacramental”, de sinal eficaz da graça, oferecida através do ministério da Igreja e acolhida na fé. É congenial com a idéia do crescimento do menino como filho de Deus, crescimento “humano” no melhor sentido da palavra, necessitado de um intercâmbio contínuo com o mistério que ressoa na consciência.

A penitência desperta a consciência de si e do próprio estado, introduz num ambiente de santidade e de graça, move energias interiores de construção da pessoa. As três célebres biografias parecem dizer que a penitência faz crescer a partir de dentro aquilo que se vê na vida: o honesto cidadão e o bom cristão.

A visão “educativa” determinava justamente uma práxis pastoral sui generis: a penitência não era reduzida ou isolada no momento ritual; tinha como sua antecâmara o ambiente que predispunha e a relação de amizade e confiança com os educadores, particularmente com o principal deles, o Diretor. Havia uma continuidade entre reconciliação na vida e momento sacramental. O jovem, no oratório, sentia-se acolhido e estimado, num clima de família e confiança, estimulado à comunicação e incentivado a progredir, com relações que o convidavam e provocavam a examinar-se. É esta a história exemplificada na biografia de Miguel Magone. Não poucas vezes os jovens passavam da conversação amigável com Dom Bosco no pátio ao ato penitencial.

A reconciliação, especialmente a extraordinária, era envolvida num clima festivo, segundo o estilo evangélico: a celebração eucarística, a manifestação musical e artística acompanhavam e envolviam o perdão obtido. Os jovens podiam contar com todas as condições favoráveis: tempo, lugar, pessoas, convites.

Hoje, talvez, mais do que repetir literalmente a afirmação que a penitência e a eucaristia são os pilares da educação, é urgente meditar e recuperar a sua tradução pedagógica original.

A experiência educativa levou justamente Dom Bosco a ser um confessor extraordinário de jovens: extraordinário pela quantidade de penitentes, pelo tempo dedicado e pela prática que adquiriu e expressou em observações cheias de sentido pastoral; extraordinário pelo prazer que sentia em reconciliar os jovens com Deus e com a vida; extraordinário também pelo efeito que a sua ação delicadamente sacerdotal provocava em tantos jovens que quiseram deixar a própria recordação.

Há uma fotografia de Dom Bosco que fez o giro do mundo. Nela, Dom Bosco posa enquanto confessa os jovens. O garoto Paulo Albera apoia a sua cabeça na de Dom Bosco, como para fazer a confissão dos pecados, enquanto alguns clérigos e muitos jovens esperam a sua vez ao redor do genuflexório51.

A fotografia não é casual. É uma das primeiras (1861), querida por Dom Bosco com a intenção de manifestar o seu pensamento, “quase um testamento moral para a sua Família. Agradava-lhe, desejou ampliado o desenho que a reproduzia52. É um poster, um manifesto, um anúncio “quase publicitário” antes do tempo. Para faze-la foi preciso preparar a encenação porque, com o fotógrafo debaixo do pano, o tempo de exposição era muito longo. Chamaram-se e dispuseram-se os garotos, e recorda-se a frase que Dom Bosco disse ao pequeno Albera escolhido como penitente.

A imagem com que desejava ser reconhecido era aquela entre os jovens e confessando.

Praticava assim o que tinha dito e escrito: “Está provado pela experiência que os mais válidos apoios da juventude são os sacramentos da confissão e da comunhão. Dai-me um jovenzinho que freqüente estes sacramentos, e vós o vereis crescer na idade juvenil, chegar à viril, e atingir, se assim agradar a Deus, à mais tarda velhice com uma conduta que é exemplo de todos que o conhecem. Compreendam-na, esta máxima, os jovenzinhos para praticá-la; compreendam-na também os que se ocupam da sua educação para insinuá-la”53.

A fotografia transmite, ainda, um particular interessante: parece ser num espaço aberto com os meninos como em cacho. A concepção educativa e filial da penitência libertava Dom Bosco de qualquer rigidez quanto ao lugar e à seqüência do rito. Confessava no pátio, confessava no parlatório; confessou em carruagens e em trens. Sublinham-se hoje os sinais comunitários e rituais do sacramento para uma celebração que chegue ao sentimento, à imaginação, à consciência; não pode escapar essa sua capacidade de atingir a substância do ato com o esforço de iniciar nele, colocando-o num contexto juvenil e educativo.

Justamente nesse contexto multiplicaram-se os Salesianos confessores de jovens que tiveram tanto influxo nos resultados vocacionais masculinos e femininos.


2.9 Reconciliados e ministros da Reconciliação

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Apresentei acima, intencionalmente unidas, a experiência pessoal de reconciliação de Dom Bosco e a sua práxis educativa pastoral. Como seria possível imaginar o que significa para o menino a repacificação interior, se o próprio Dom Bosco jamais advertisse a sua necessidade? E como teria podido reproduzir a acolhida paterna de Deus, se não a tivesse sentido e saboreado? E como teria podido conceber tanta confiança no sacramento para a caminhada de crescimento e santidade se não tivesse sido seu testemunho direto? Onde teria buscado compreensão, capacidade de espera, estímulo e promoção, de comunhão para sua Família e seus colaboradores?

O próprio Apóstolo parece unir os dois aspectos ao repetir: “Deus reconciliou-nos consigo por meio de Cristo e confiou a nós o ministério da reconciliação”54.

Graça pessoal e ministério! A Reconciliação, mais do que “uma prática de piedade” ocasional ou um serviço sacerdotal, é um novo espaço em que se coloca a totalidade da vida, aquilo que Jesus propunha quando dizia “Convertei-vos”. Tem no sacramento o seu ponto eficaz e expressivo porque, como o batismo, ele insere-nos na morte e Ressurreição de Cristo e disso toda a Igreja participa.

O que é verdade também para nós. Pela graça de unidade, a experiência pessoal de Reconciliação e a práxis pedagógica e pastoral reforçam-se reciprocamente. Reconciliados tornamo-nos artífices e mediadores de reconciliação.

O nosso projeto de espiritualidade, que são as Constituições, quando tratam da nossa missão afirmam, por isso, que “junto com eles celebramos o encontro com Cristo na escuta da palavra, na oração e nos sacramentos”55. “Com” refere-se certamente às circunstâncias materiais de tempo e de lugar, mas muito mais às da organização da vida vivida à luz do Evangelho e da nossa consagração.

Nesse sentido, a vida toda é vista como um caminho de “contínua conversão”56 que reúne muitos aspectos, tais como a re-entrega quotidiana sempre mais generosa à nossa missão, a vigilância, o perdão recíproco, a “aceitação da cruz de cada dia”57, a oração e os momentos de revisão58, e tem no sacramento o seu ponto de força e realização: “recebido com frequência, segundo as orientações da Igreja, ele nos dá a alegria do perdão do Pai, reconstrói a comunhão fraterna e purifica as intenções apostólicas”59.

Jorram, desta nossa experiência madura e contínua, desejos e energias para criar ambientes educativos reconciliadores e para guiar os jovens ao encontro do ponto de unidade e consistência de que sua vida sente necessidade. Dela brota também a capacidade de individualizar e assumir caminhos de reconciliação na multíplice conflitualidade do nosso contexto e do nosso mundo.

Quanto ao sacramento da penitência em campo juvenil e na comunidade cristã, assistimos hoje a um tríplice fenômeno: o primeiro é o abandono do sacramento por parte de muitos, o segundo é o uso rápido por parte de um certo número, o terceiro, positivo, é o pedido até de direção espiritual por parte de um grupo, pequeno em número, mas em busca de qualidade espiritual.

A resposta a esta disposição diversificada consiste em percorrer com a maioria o caminho educativo que vai da acolhida ao anúncio da bondade paterna de Deus e do seu desejo de ter-nos como filhos; em assistir o segundo grupo, com propostas educativas proporcionadas e capazes de apoiar o seu esforço ainda imperfeito; enfim, em ser ministros da reconciliação, disponíveis e capazes, para aqueles que empreenderam conscientemente um caminho de vida espiritual.

Sempre e em todos os casos será nosso compromisso colocar os jovens em contato com um circuito de graça – feito de motivações, celebrações, experiências – que tem como horizonte o Mistério Eucarístico. Ele é memória eficaz e fonte viva da Reconciliação perene, atuada pela Cruz. Leva à Reconciliação e, ao mesmo tempo, é o seu remate supremo e expressão máxima porque, unindo-nos a Cristo, insere-nos na comunhão trinitária de Deus e na unidade eclesial dos irmãos.


2.10 Conclusão: atravessar os umbrais60

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À noite entre 24 e 25 de dezembro do próximo Natal, seremos convidados a atravessar a porta santa: o Papa “atravessando seus umbrais mostrará à Igreja e ao mundo o Santo Evangelho, fonte de vida e de esperança para o terceiro milênio”61. É o sinal da entrada de Cristo na humanidade. É, para nós, o convite para entrar num espaço novo e recolocar a nossa vida num âmbito mais claramente iluminado pelo amor de Deus Pai, Filho e Espírito Santo, marcado pela fraternidade incondicional e enriquecedora entre as pessoas, caracterizado pela abertura da mente e do coração às aspirações e expectativas da humanidade tornadas possíveis pela presença de Cristo no tempo, por uma maior sensibilidade para ouvir as vozes dos jovens e uma coragem maior para ir ao encontro de suas necessidades.

“Passar aquela porta significa confessar que Jesus Cristo é o Senhor, revigorando a fé nele para viver a vida nova que Ele nos doou. É uma decisão que supõe a liberdade de escolher e, ao mesmo tempo, a coragem de deixar alguma coisa...”62.

Com a esperança de nos encontrarmos todos juntos, unidos espiritualmente, na passagem da “porta” que nos introduz na plenitude do tempo que é Cristo, saúdo-vos cordialmente e vos dou a bênção de Maria Auxiliadora.


Juan E. Vecchi

Reitor-Mor


1 cf. 2Cor 5,18

2 Incarnationis Mysterium, 11

3 Incarnationis Mysterium 4

4 cf. Ap 13,8

5 cf. Col 2,9

6 “cf. 2Cor 1,4

7 cf. Mt 25

8 Ap 21,4

9 cf. 2 Cor. 5, 18

10 cf. Ef 2,14

11 2Cor 5,18

12 cf. Lc 5,27

13 cf. Lc 19,5

14 cf. Lc 7,48

15 cf. Jo 8,10

16 cf. Lc 5,20

17 cf. Lc 22, 61

18 Sl 106 (107)

19 Sl 102 (103)


20 cf. C 20

21 C 11

22 Tt 3,4 (Vulg)

23 Rm 5,8

24 cf. C 65

25 1 Gv 1, 5

26 Reconciliatio et Poenitentia, 18

27 Mc 1,15

28 2 Cor 5, 20

29 Mt 6,13

30 Gn 3,5

31 cf. Gn 3,15

32 Jo 6,28-38

33 Lc 15,31

34 Lc 15,20

35 Lc 15, 28

36 Constituições, Apêndice, p. 228-229

37 Jo 20,20-23

38 2 Cor 5, 17-19

39 cf. Sl 50 (51)

40 cf. 1 Pt 2, 24-25

41 cf. 2Sm 12,13

42 cf. Is 52-53

43 cf. Gv 16, 8

44 cf. 2Cor 5, 21

45 ceria e., Don Bosco con Dio, Roma 1988, pag. 162-163

46 cf. braido p., Il Sistema preventivo di Don Bosco, PAS Verlag 1964, parte III, cap. III, pp. 274-285; schepens j., Pénitence et Eucharistie dans la méthode educative et pastorale de Don Bosco, Roma 1986

47 Il testo è riportato da ceria e., Don Bosco con Dio, pag. 164

48 cf. Il Giovane Provveduto

49 cf. bosco g., Vita del giovinetto Savio Domenico, cap. XIV

50 cf. caviglia a., Magone Michele, p. 461

51 cf. soldà g., Don Bosco nella fotografia dell'800, p. 84-89

52 cf. ib.

53 bosco g., Vita del giovinetto Savio Domenico, cap. XIV

54 2 Cor 5, 18

55 C 36

56 C 90

57 cf. ib.

58 cf. C 91

59 C 90

60 cf. Incarnationis Mysterium 8

61 Ib.

62 Ib.

29