Roma, 25 de março de 1999


Roma, 25 de março de 1999





Enviados para anunciar aos pobres uma alegre mensagem1.


1. A nossa pobreza: Liberdade e desapego – Investir na Comunidade – Sinal da missão salesiana – Trabalho e temperança – Administrar com sabedoria. 2. Os desafios atuais: O mundo dividido – O dinheiro – A complexidade administrativa – A gestão individual. 3. Os três ícones da pobreza salesiana: Discípulo: aquele que segue Jesus – Uma alegre mensagem aos pobres – Os primeiros cristãos – A pobreza de Dom Bosco. 4. Algumas indicações para o momento atual – Responsabilidade atenta – Destinação apostólica dos bens – Solidariedade – Educar ao uso dos bens – Amar os pobres em Cristo. Conclusão.


1 Anunciação a Maria

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Queridos Irmãos,


chegue a cada um de vós os meus cumprimentos pascais: o Senhor vos encha novamente da alegria e da energia da sua Ressurreição.

Iniciamos em fevereiro as visitas de conjunto, que caracterizarão o último ano do milênio. Reuniram-se em Nairobi os Superiores e Conselhos das circunscrições de língua inglesa da África para verificar a realização do CG24 e, no contexto, também o caminho de evangelização que as nossas comunidades estão percorrendo.

Esta e as demais treze visitas de conjunto acontecem depois que o Reitor-Mor, com o Conselho Geral, pode perceber o esforço sistemático feito pelas Inspetorias em seus Capítulos Inspetoriais para reavivar o modelo pastoral, já conhecido e aceito como o que melhor corresponde à situação eclesial e ao estado das nossas forças.

Retorna, em cada revisão, a convicção expressa pelo CG24: «A profissão dos conselhos evangélicos, além de ser expressão da seqüela de Cristo, tem uma carga pedagógica de crescimento humano e é paradigma de nova humanidade»2.

Pareceu-me oportuno, então, continuar a reflexão sobre os conselhos, propondo-vos, depois da reflexão sobre a castidade, uma outra sobre a nossa pobreza. Leva-me a fazê-lo, também, a programação do sexênio, em que nos propusemos «promover o testemunho de consagração e comunhão das comunidades» e «fazer emergir e testemunhar na vida quotidiana o valor educativo da consagração religiosa»3.

Enquanto amadurecia os pontos a propor-vos, interrogava-me sobre os principais objetivos da reflexão e as exigência a serem sublinhadas, em vista do momento que todos vivemos e da diversidade de contextos nos quais as Inspetorias atuam. Concluí que as finalidades desta minha carta podiam ser: suscitar a atenção sobre este aspecto da nossa vida consagrada, ao redor do qual se movem hoje muitas sensibilidades eclesiais e seculares, e se apostam o testemunho e a fecundidade vocacional; recordar os principais traços da pobreza em conformidade com o nosso carisma; propor o discernimento diante das novidades que se vão apresentando em nosso costume e práxis; e, por último, oferecer algumas orientações para responder aos novos desafios.

Imagino que fareis, em comunidade, uma leitura criativa do texto, deixando-vos estimular por ele para o aprofundamento da vivência e a aceitação generosa das exigências evangélicas.


1.1 A nossa pobreza

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A pobreza tem a ver com as coisas e o dinheiro. E, em igual medida, com o coração e o espírito. Nela, a nossa relação com Deus e com os irmãos passa através do liame que estabelecemos com os bens, materiais e espirituais: o uso, as preferências, a orientação daquilo que nos pertence ou consideramos nosso.

Nada de estranho que num projeto de vida, vivido e longamente meditado, como aquele oferecido pelas nossas Constituições, sejam encontrados, ao lado de estimulantes inspirações evangélicas, também orientações precisas sobre o modo de praticar a pobreza conforme o que aprendemos de Dom Bosco.

Cada uma das orientações e o seu conjunto são indispensáveis para pensar novas expressões da nossa pobreza no contexto atual.

De fato, não só relacionam a pobreza à tradição espiritual desenvolvida no tempo, mas colocam-na harmoniosamente na unidade vital do carisma.

Fundamento do nosso empenho de pobreza é a seqüela e a conformação a Cristo, Bom Pastor. Horizontes para determinar suas expressões quotidianas são a missão e a comunidade. A essas referências reconduzem as inspirações evangélicas, referem-se as atitudes interiores sugeridas, buscam-se as orientações práticas.


2 Liberdade e desapego

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Desapego do coração4 vivido no dia a dia5, libertação da preocupação e do afã6, dizem-nos as Constituições; descobrimos, no encontro com Jesus e em sua pessoa, bens infinitamente superiores aos temporais, que também têm o seu valor. Esse é o sentido primeiro da nossa pobreza. Ela resulta um negócio vantajoso para nós, como a venda das próprias coisas para adquirir o tesouro desejado7, no sentido em que é expresso por São Paulo: «Considero tudo isso uma perda em comparação com a sublime vantagem de conhecer a Cristo Jesus, meu Senhor»8.

Não pareça, esta, uma meditação espiritual, que comporte só num segundo momento critérios práticos de avaliação e comportamentos. Ao contrário, é a primeira decisão, capaz de dar uma direção a toda a experiência pessoal: intuição, iluminação, desejo, apetência pelos bens aos quais o coração humano é atraído e a convicção de poder encontrá-los em Cristo: «Renunciei a estas coisas para ganhar a Cristo… a fim de conhecer a ele e o poder da sua ressurreição»9.

O desapego, porque os bens temporais estão abaixo do nosso desejo e porque descobrimos outros que lhes são superiores, aplica-se aos afetos, à saúde, à liberdade individual, ao poder, à própria preparação cultural, à suficiência da nossa inteligência, aos meios materiais, à nossa vontade e às nossas decisões. Nesse sentido, a pobreza converge e confunde-se com a obediência como necessidade de mediações para buscar a vontade de Deus, e com a castidade como necessidade de um amor sob medida do nosso vazio.

«A pobreza, é preciso tê-la no coração»10, dizia Dom Bosco. Muitas atitudes externas, discordantes em relação à profissão de pobreza, são manifestações da falta de liberdade interior, da ausência de um código para avaliar a qualidade dos bens, das ancoragens não confiáveis, também do ponto de vista humano. Compreendamos que o “pobre” na Escritura representa não só quem se limita no uso dos bens materiais, mas quem entrou no mistério da existência humana, necessitada do infinito de Deus. Essa é uma perspectiva que não deve ser descuidada no tempo de formação. É preciso avaliar a qualidade do coração a partir dos “tesouros” aos quais ele se apega11.


3 Investir na comunidade

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«Pomos em comum os bens materiais: os frutos do nosso trabalho, os presentes recebidos e o que percebemos por aposentadoria, subsídios e seguros. Oferecemos ainda os nossos talentos, nossas energias e experiências. Na comunidade o bem de cada um torna-se o bem de todos»12.

O desapego é condição para um investimento frutífero. Mais do que renunciar aos bens, nós os confiamos ao dinamismo multiplicador da comunhão.

Trata-se de uma comunhão em sentido pleno, que se refere primeiramente aos bens a serem compartilhados. A enumeração apresentada pelas Constituições é ampla; é, porém, apenas um exemplo do que a pessoa pode pôr à disposição dos outros.

O valor sem limites da comunhão refere-se também aos sujeitos: compreende, de fato, todos os homens. A pobreza torna-se visível no amor pessoal a cada um e a todos os irmãos da comunidade religiosa, a ponto de as duas realidades resultarem inseparáveis e interdependentes. São Francisco de Sales di-lo de forma direta e simples: «Ser pobre significa viver em comunidade»13. Dar e receber, conforme a gratuidade e o reconhecimento, compartilhar totalmente dons e recursos materiais, intelectuais e espirituais constitui a sua prática quotidiana.

A comunhão alarga-se além da comunidade religiosa imediata: às «necessidades de toda a Congregação, da Igreja e do mundo»14.

Essa atitude torna-se critério para a destinação dos bens que a Providência coloca à nossa disposição. Não entendemos ter satisfeito o compromisso de pobreza quando dispondo de recursos, provimos às nossas necessidades internas. A pobreza leva-nos «a ser solidários com os pobres e a amá-los em Cristo»15. Neles, vemos a imagem de Cristo que entrou, com a Encarnação, nas malhas da condição humana marcada pelo sofrimento, pela privação, pela miséria. Neles, portanto, esperamos a graça da presença e do encontro com o Senhor.

A solidariedade com os pobres gera atitudes de partilha: presença física antes de tudo lá onde pobreza significa degrado, insuficiência de condições essenciais, carências educativas, ausência de perspectivas. E com a presença, também partilha das condições de vida, participação no esforço para sair delas.

Um olhar global à Congregação conforta-nos na constatação de que em todos os continentes os Salesianos trabalham com coragem e determinação em vistas de contextos marcados pela miséria e procuram entrar em comunhão com os pobres.


4 Sinal da missão salesiana

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A presença entre os pobres e a partilha dos bens com eles já são um testemunho de pobreza evangélica. A nossa pobreza, contudo, tende a exprimir-se no serviço concreto. Colocamos em ação estratégias e iniciativas para evangelizar e ajudar as pessoas, especialmente os jovens, a superarem as condições de indigência econômica, afetiva ou espiritual.

Descobrimos na figura carismática de Dom Bosco, que a profissão de pobreza, além de ser condição para viver autenticamente em comunidades evangélicas, é um critério e uma modalidade privilegiada para realizar plenamente a nossa missão.

O “desapego do coração”16 orienta-se ao “generoso serviço aos irmãos”17; a renúncia a qualquer bem terreno18 garante “o espírito empreendedor na participação da missão da Igreja em seu esforço pela justiça e pela paz, especialmente com a educação dos necessitados”19.

Trata-se, como se vê, de dois elementos estritamente relacionados: todos os recursos de que dispomos, materiais e espirituais, pessoais e comunitários, são generosamente destinados à realização do mandato de alcançar o maior número de jovens e torná-los conscientes da própria condição de filhos de Deus em Cristo.

Por isso empenhamo-nos em muitas frentes, sempre com intenção educativa, dando vida a projetos de promoção humana para os quais utilizamos estruturas adequadas, aceitamos e buscamos meios, apoio e dinheiro. O espírito empreendedor de Dom Bosco nesse sentido passou aos seus filhos. Também hoje pedimos ajuda, orientando à caridade aqueles que têm a possibilidade de oferece-la; pomos em ligação fileiras de benfeitores para socorrer quem passa por necessidade; estendemos a mão aos pobres. Isso suscita consensos, muitas vezes colaborações inesperadas e, quem sabe, alguma crítica ou estereótipo nem sempre benévolo.

A caridade pastoral de Dom Bosco insta-nos a pedir e a agradecer com reconhecimento, conscientes de que «tudo que temos não é nosso, mas dos pobres»20. O seu testemunho límpido de pobreza pessoal deve ser unido à determinação, levada até à temeridade, de servir a juventude, principalmente pobre, com os instrumentos mais atualizados e eficazes.

A nossa pobreza, escolhida pelo Reino, condição para a missão tem, esperamo-lo, uma incidência social inerente à tarefa educativa. Formando os jovens e interagindo no contexto entendemos trabalhar por uma sociedade que leve o bem comum em maior consideração, respeite o valor de cada pessoa, seja construída sobre critérios de justiça e equidade e se preocupe com aqueles que são fracos ou prejudicados.

Este propósito determina a escolha dos lugares, conteúdos e formas de educação, e orienta o emprego de capitais e meios segundo os vários contextos socioculturais.


5 Trabalho e temperança

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Aquilo que procuramos esclarecer acima, leva a viver a pobreza cotidiana com o trabalho inteligente e assíduo, apoiado e feito possível pela temperança. «Na operosidade cotidiana associamo-nos aos pobres que vivem do próprio suor e testemunhamos o valor humano e cristão do trabalho»21.

A correlação entre pobreza e trabalho deve ser buscada na espiritualidade da ação apostólica, entendida como “trabalhar” incansavelmente pelo Reino. Dom Bosco viveu-a alegremente na fé. Cada salesiano é convidado a desenvolver e fazer frutificar os próprios talentos, a ocupar rigorosamente o tempo e a viver do próprio trabalho.

“Ganhando o próprio pão” compartilhamos, dessa forma, da sorte de quem pode confiar apenas no próprio trabalho para viver e manter os próprios caros, e exprimimos o valor social da nossa pobreza. Além disso, o apreço pelo trabalho, como expressão das capacidades do homem e instrumento privilegiado de realização humana, não exclusivamente finalizado ao lucro, torna-se testemunho e mensagem educativa.


Percebe-se facilmente a relevância que o trabalho tem em nossa fisionomia espiritual por um conjunto de fatos, reais e simbólicos: a raiz camponesa e as primeiras experiências de Dom Bosco, os protagonistas e o teor de vida nas origens, a camada trabalhadora à qual dedicamos os nossos cuidados preferenciais.

O trabalho é o principal conteúdo da formação dos jovens nas escolas profissionais e técnicas; é a característica, não exclusiva, mas certamente emergente do irmão coadjutor; é a nossa forma de inserção na sociedade e na cultura. Dá o traço fundamental do salesiano: o salesiano é um trabalhador. O P. Cagliero dizia com uma expressão forte. «Quem não sabe trabalhar, não é salesiano»22.

Dois dados servem como síntese: a colocação do trabalho no brasão da Congregação e as recomendações de Dom Bosco trazidas por Dom Cagliero, sublinhando que em dezembro de 1887 Dom Bosco «recomendou duas vezes o trabalho para os Salesianos, repetindo: trabalho, trabalho!»23.

Alguns esclarecimentos, porém, não são supérfluos. O trabalho, para Dom Bosco, não é qualquer atividade, quem sabe cansativa. Mas a dedicação à missão com todas as capacidades e em tempo integral. Não compreende apenas o trabalho manual, mas também o intelectual e apostólico. Trabalha quem escreve, quem confessa, quem prega, quem estuda, quem ordena a casa: trata-se de trabalhar pelas almas.

O nosso trabalho caracteriza-se pela obediência, pela caridade pastoral, pela reta intenção e pelo sentido comunitário. Não, portanto, puro movimento, mas finalidade, opção, ordenamento sábio das ações. É preciso acrescentar que na voz “trabalho” há uma referência à habilidade manual e pratica. O Salesiano aprende a trabalhar com as mãos, e encontra-se bem mesmo fazendo trabalhos “humildes”, domésticos, materiais.

A caridade pastoral, que orienta o trabalho, pode manifestar-se em impulsos espontâneos e generosos. Mais comum, porém, é que deva se empenhar longamente numa obra paciente e cotidiana para fazer com que as pessoas cresçam e as comunidades se animem. Mais do que uma simples atitude de bondade ou um gesto de simpatia, é uma práxis: uma forma constante de agir com competência em determinado âmbito, à semelhança da prática política, social, médica. Todas elas comportam uma ação coerente, constante, pensada, visada e melhorada. É esse o trabalho que acaba por modelar a fisionomia espiritual da pessoa.

Trabalho quer dizer, então, aquisição e desenvolvimento da preparação profissional específica, exigida pela caridade apostólica, pelo que aprendemos e nos aperfeiçoamos em motivar, instruir, animar, santificar. Somos capazes de entender um contexto, elaborar e realizar um projeto que responde às suas urgências, quando levamos também em conta o elemento imponderável que sempre existe no trabalho pastoral.

O trabalho compreende o esforço de criatividade educativa, aquela atitude mental e prática que leva a encontrar soluções originais para problemas e situações novas. Dom Bosco concebeu um projeto para os meninos de rua enquanto as paróquias continuavam com o catecismo “regular”. Logo depois, quando percebeu que os garotos não estavam preparados para o trabalho nem protegidos neles, pensou numa solução “pequena” e “caseira” que cresceu em seguida: os contratos, as oficinas, as escolas profissionais. E assim para outras necessidades, como a casa, a instrução. Essa é a imagem de Dom Bosco “no trabalho”.


O trabalho deve estar unido à temperança. Ele não é, com efeito, agitação. É profissionalismo, dedicação, ordem, sem perda de tempo ou energia, em vista dos objetivos da missão. Essa exigência não pode ser conjugada senão com um estilo de vida que se caracteriza pela sobriedade, dedicação, ousaria dizer austeridade. Os dois aspectos são complementares e sugerem-nos a atenção de fundi-los de acordo com a graça de unidade.

A temperança está ligada à dimensão penitencial, essencial à maturidade cristã. Sem ela é impossível tanto o início como o caminho ulterior de conversão: ela consiste em assumir alguma coisa e deixar muitas outras, optar e cortar, destruir coisas ou hábitos velhos ou inúteis e deixar-se reconstruir.

Cada Instituto possui uma tradição ascética coerente com o próprio estilo espiritual. No nosso, a fórmula que a resume é coetera tolle: deixa o resto, orienta o resto para o objetivo primário, isto é, ao da mihi animas, à possibilidade de viver interiormente e exprimir o amor aos jovens, tirando-os das situações que os impedem de viver. E é justamente o coetera tolle que tem sua expressão cotidiana na temperança salesiana.

Digo salesiana, porque em nossa história e em nossos textos ela carregou-se de algumas referências muito características.

A temperança é a virtude cardeal que modera os impulsos, as palavras e as ações de acordo com a razão e as exigências da vida cristã. Movem-se ao seu redor a continência, a humildade, a sobriedade, a simplicidade, a austeridade. No sistema preventivo, as mesmas realidades estão incluídas na racionalidade. Suas manifestações na vida cotidiana são: o equilíbrio ou a medida em tudo, uma conveniente disciplina, a capacidade de colaboração, a calma interior e exterior, o relacionamento com todos, mas especialmente com os jovens, sereno e influente.

Temperança é “estado atlético”, do ponto de vista espiritual e apostólico, pronto a qualquer solicitação em favor dos jovens; é tornar-se e manter-se livres de ligações muito condicionantes, do peso dos gostos e exigências pessoais que criam dependências: «Todo atleta priva-se de tudo para ter uma coroa que se acaba; e nós, para ter uma que dura para sempre»24.

A temperança é aplicada ao trabalho: ela é a ordem pela qual as ações têm uma motivação nas finalidades e uma hierarquia; dominam-se e tornam-se adequadas tanto as ambições pessoais como as ambições “apostólicas”; exige-se dos outros o que pode ser exigido e não o que é excessivo ou serviria apenas para a nossa comodidade; faz com que o trabalho não elimine a oração nem as relações fraternas. É preciso ser temperantes no movimento, nas saídas, na busca de dinheiro, na vontade de concluir alguma coisa para começar outra; na posse do próprio agir, para que não acabe por prender-nos como numa engrenagem.

A temperança aplica-se também à vida fraterna: sem ela não é possível uma boa relação comunitária25. O amor fraterno implica domínio de si, esforço de atenção, controle dos sentimentos espontâneos, superação de conflitos, compreensão dos sofrimentos alheios: é tudo um exercício para sair de si mesmos e mudar a própria orientação. Para nós, há também o esforço de demonstrá-lo de forma compreensível: um afeto que sabe provocar correspondência pelo bem do outro.

A temperança, enfim, aplica-se ao estilo de vida pessoal: relações comedidas à missão; posse e uso dos bens de consumo (máquinas, utensílios, aparelhos); tempo de distensão e férias; interioridade vigiada e purificada.

Isso tudo pode parecer muito ordinário, como dimensão ascética e como prática da pobreza evangélica, quase alegre diante da seriedade do apelo à radicalidade. Dom Bosco expressou essa aparente contradição com o sonho do caramanchão de rosas, que o CG24 quis nos recordar26 justamente como conclusão da proposta do nosso trabalho atual de animação e espiritualidade. Os Salesianos/as caminham sobre pétalas. Todos acreditam-nos “alegres”. Eles, de fato, são “felizes”. Espicaçados pelos espinhos, não perdem a alegria. Também isso é temperança: simplicidade, semblante alegre, sem cenas. Corresponde ao conselho evangélico: quando fizerdes jejum, não mostreis um semblante abatido, mas perfumai a cabeça e lavai o rosto27.


Este estilo de vida, feito de trabalho e temperança, refere-se à mesma comunidade, como bem sublinha o art. 77 das Constituições: «Cada comunidade permanece atenta às condições do ambiente em que vive e testemunha a sua pobreza com uma vida simples, frugal, em habitações modestas. As estruturas materiais inspirem-se em critérios de simplicidade e funcionalidade»28.

O delicado ponto das estruturas segue dois critérios correlativos: o do serviço generoso aos jovens mais necessitados e o da simplicidade. A atenção constante em conjugar os dois critérios, com discernimento equilibrado nas sedes oportunas, consente que as comunidades estejam livres de estreitezas mentais quanto aos projetos e, ao mesmo tempo, críveis no testemunho dos valores evangélicos que estão à base da vida consagrada e da própria evangelização.

Recordemos, porém, que a credibilidade da comunidade está relacionada com o testemunho de cada irmão em particular. A aceitação pessoal da pobreza, prometida solenemente com voto, não pode explicitar-se a não ser com um teor de vida que se refira a âmbitos e atitudes concretas como, por exemplo, alimentação, instrumentos de trabalho, mobiliário, férias, meios de transporte. Submeter-se ao discernimento da comunidade, também através da dependência de um superior, faz parte da opção evangélica, impede a prática da pobreza retalhada em critérios individuais e protege do inclinar-se sobre seguranças e garantias oferecidas pela instituição.

O programa para o indivíduo é indicado com estas palavras. «Cada salesiano pratica a sua pobreza com a sobriedade no alimento e na bebida, simplicidade da roupa, o uso moderado das férias e divertimentos. Arruma seu quarto modestamente, evitando fazer dele um refúgio que o mantém afastado da comunidade e dos jovens. Está atento a não se deixar prender por nenhum hábito contrário ao espírito de pobreza…»29.


6 Administrar com sabedoria

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Pelas características enunciadas acima, a nossa pobreza inclui a boa administração dos bens: exata, cautelosa no prever, sábia no dispor, transparente e comunitariamente co-responsável. A práxis salesiana tende a garantir uma gestão prudente e, ao mesmo tempo, um testemunho compreensível aos nossos contemporâneos.

A unidade de governo, a destinação apostólica e a solidariedade entre irmãos, casas, Inspetorias e Congregação são os princípios que presidem a nossa economia e a conseqüente administração dos bens.

A função da economia é instrumental, subalterna às finalidades da nossa consagração. É regulada, porém, por leis e instrumentos específicos que não podem ser descuidados sem dano para as mesmas finalidades apostólicas, e que entraram, por isso mesmo, nas normas da Igreja e dos Institutos de vida consagrada.

Sem adentrar-me em particulares técnicos, que requerem um tratado a sé, sublinho que a transparência administrativa através de uma cuidadosa prestação de contas das despesas, uma referência fraterna e confiante a quem tem a responsabilidade da administração e o pedido das autorizações previstas pelas Constituições e Regulamentos fazem parte do espírito de pobreza.


2. Os desafios atuais


Se confrontarmos o quadro traçado acima com as tendências do costume em que somos imersos hoje, percebemos quase uma ruptura, e sentimos então a urgência de verificar a nossa vivência e o nosso testemunho de pobreza.

O mundo é marcado e dividido pela posse dos bens. A opulência de uma porção restrita do globo contrapõe-se à maioria dos povos e pessoas que vivem na indigência e na miséria. Caminha-se com velocidades diversas na estrada do desenvolvimento. A distância vai-se alargando e não se entrevê a melhorias em base aos princípios que regulam a economia. Pelo contrário, algumas nações, depois de um período efêmero de relativo bem-estar, parecem recair em situações de indigência invencível e desesperada, sobrecarregadas por enormes dívidas em relação aos países ricos.

As sociedades do bem-estar tendem a criar sempre novas necessidades e podem gerar também em nós uma mentalidade consumista, tendente para o lado das comodidades e de um nível de vida burguesa e acomodada. Essa mentalidade pode chegar a um perigoso conformismo que esvazia gradualmente o voto de pobreza do seu valor espiritual, da sua visibilidade social e do seu impacto profético.

Nos contextos mais pobres, não faltam para nós Salesianos, uma casa, os meios de subsistência e os instrumentos para realizar adequadamente a nossa missão. Além de agradecer à Providência, impõe-se um discernimento corajoso para individuar formas adequadas de testemunho, partilha e serviço. De fato, uma excessiva disponibilidade de meios e estruturas, além de estar em contraste com os valores evangélicos, pode situar-nos num nível de vida muito mais opulento do que a situação sócio-econômica do contexto em que estamos inseridos e do teor de vida dos nossos destinatários.


Outro elemento que vai influenciado a nossa vida é a relevância do valor econômico na mentalidade coletiva e individual e, simultaneamente, a importância do dinheiro no sistema econômico e social. O trabalho perde valor como traço de identidade, como fonte de sustento e como sinal de dignidade pessoal. João Paulo II sublinhou-o freqüentemente em suas cartas sociais. O dinheiro torna-se sempre mais determinante para empreender, realizar e conservar. Converte-se, por sua vez, na principal fonte de lucro e de riqueza. Fala-se de uma “financiarização” não só da economia, mas do pensamento e da linguagem.

A maior abundância e circulação de dinheiro nos países ricos tem permitido uma ágil e crescente solidariedade por parte de indivíduos, grupos, instituições políticas e organizações humanitárias, expressa freqüentemente, e de forma generalizada, em favor de situações dramáticas como a fome, as epidemias, os refugiados. Através da universal simpatia pela figura de Dom Bosco e a vivacidade de muitas presenças salesianas junto aos jovens e ao povo, a Providência faz chegar os meios necessários para a nossa missão nos vários continentes. É comovente constatar quantos benfeitores acompanham com amor e com ofertas tangíveis as obras salesianas no mundo, as novas fronteiras juvenis e o grande impulso missionário dos últimos decênios. Muitas ofertas provêm de gente simples, nem sempre ricas, que regularmente, e às vezes também com sacrifício, dá generosamente a própria contribuição para nos encorajar e sustentar.


Sublinhe-se a complexidade que reveste a gestão e o apoio econômico das nossas obras. As estruturas em que trabalhamos e que, muitas vezes, construímos com o nosso esforço, com a ajuda de pessoas generosas e de instituições humanitárias, têm elevados custos de administração e manutenção, e encargos não leves diante das administrações regionais ou estatais. Muitas de nossas atividades educativas têm, às vezes, uma feição comercial e, como tais, são sujeitas às imposições fiscais das várias legislações. A presença sempre mais consistente de leigos, nos vários níveis, exige de nós em relação a eles, uma justa retribuição, normalmente regulada por contratos, segundo normativas muito precisas e vinculantes.

Todos esses aspectos, além de complicar notavelmente a tarefa dos responsáveis diretos e empenhar freqüentemente consultorias estáveis e qualificadas, exigem da nossa parte a possibilidade de dispor de quantidades ingentes de dinheiro, sem as quais estaríamos impedidos em nossa mesma missão.


Acrescentemos a tudo isso o impulso atual à gestão autônoma da própria vida, que leva a formas individualistas na organização da vida.

Apela-se sempre mais, num contexto de abundância e individualismo, ao respeito devido à pessoa, ao espaço de responsabilidades que é preciso reconhecer. Esse chamado não é, sem razão ou necessariamente, negativo. Se desembocasse, porém, numa disponibilidade indiscriminada de confortos pessoais, de instrumentos de trabalho e de dinheiro, sem um discernimento vigilante, desgastaria a carga carismática da nossa consagração e enfraqueceria a incidência da nossa missão entre os jovens.

É justo, pois, perguntar-se: como conciliar tudo isso com as exigências do voto de pobreza, como não dispor de fundos próprios, depender de avaliação alheia para nossas múltiplas necessidades pessoais e para as necessidades do trabalho e da missão? Como, por outro lado, evitar o risco de professar publicamente a pobreza evangélica segundo o carisma salesiano e, depois, na prática, com opções conscientes e atitudes induzidas, interpretar de maneira individual o conteúdo de um voto de objetivo significado comunitário?


3. Os ícones da pobreza salesiana


São muitos os caminhos através dos quais a Bíblia, desde o Antigo Testamento, relaciona a experiência de Deus e a felicidade humana a uma atitude realista, respeitosa da verdade consigo mesmo e com os bens. Essa atitude é personificada pelos “pobres” de Yahwè.

As nossas Constituições selecionaram algumas imagens para aprofundar no significado inexaurível da pobreza evangélica e orientar-nos a expressões renovadas.


7 Discípulo: aquele que segue Jesus

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Ao jovem que lhe pergunta sobre a vida eterna, Jesus responde: “Vai, vende o que tens, dá-lo aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me»30.

A narração, colocada como título inspirador do texto constitucional, desenvolve temáticas que interessam particularmente hoje: o caráter paradoxal da pobreza religiosa, a necessidade do dom do Espírito para assumi-la, a felicidade de quem nela embarca, a possibilidade de vivê-la, comprovada pela experiência daqueles que se entregaram a Jesus.

A sucessão premente dos verbos dá idéia da urgência com que se deve tomar a decisão e do que nela está envolvido: plenitude de vida (“se queres ser perfeito”); relação libertadora ou escravizadora com os bens materiais (“vende o que tens”); espaço ocupado pelo amor na existência (“dá-lo aos pobres”); os bens autênticos a serem buscados (“terás um tesouro”); a possibilidade de compartilhar a vida com Jesus (“vem e segue-me”).

“Vai…” e “vem”, no início e no final do conselho, exprimem o caminho que vai do viver centrado nas próprias coisas, do habitar a si mesmo quase fechado e distante, à intimidade com Cristo, o que comporta segui-lo.

À cena do jovem que não acolhe o convite, o art. 72 das Constituições contrapõe a imagem dos Apóstolos que declaram: «Deixamos tudo e te seguimos»31, e se colocam ao serviço do Evangelho. Identificamo-nos com eles e encontramos exemplo e inspiração em seu gesto.

A seqüela, à qual somos convidados, não é só adesão moral ao ensinamento de Jesus e participação ativa em suas empresas, mas enxerto no seu mistério, na sua doação total ao Pai e aos irmãos, na sua morte e ressurreição.

A pobreza radical de Jesus consiste em fazer-se homem limitado e real, como cada um de nós, mas aberto à divindade e, por ela, preenchido. Ele não se apega à sua prerrogativa divina, mas assume a condição humana de fraqueza e de morte para encontrar o seu sentido na entrega confiante nas mãos do Pai. Enquanto homem, não impõe a sua identidade superior; para muitos, ele é simplesmente o filho de Maria, do marceneiro, vive como um rabi itinerante, sem morada fixa, muitas vezes em situação de precariedade e sem as certezas humanas que derivam da riqueza, do status e do poder.

Pela pobreza, os consagrados fazem esta primeira e principal experiência: contemplam a “pobreza” de Cristo com uma claridade especial, sentem-se atraídos por ela, participam dela e a ela se conformam, pobreza do Servo de Yahwè, que se entrega ao Pai em tudo e nele encontra a sua felicidade e realização.

Vivem então em Jesus o esvaziamento de si para serem preenchidos de Deus, sentir-se felizes no receber e dar. São assim introduzidos no mistério trinitário, como sublinha Vita Consecrata: «A pobreza confessa que Deus é a única verdadeira riqueza do homem. Vivida segundo o exemplo de Cristo que “sendo rico se fez pobre” (2Cor 8,9), torna-se expressão do dom total de si que as três Pessoas divinas reciprocamente se fazem. É dom que transborda para a criação e se manifesta plenamente na Encarnação do Verbo e na sua morte redentora»32.

Esvaziar-se do que gera a convicção enganadora de poder realizar-se sozinhos, de ser auto-suficientes para alcançar a própria realização, sentir-se retribuído na dependência de Deus e dos irmãos para a própria felicidade e realização, comporta “ser humilde” no sentido cantado por Maria, ou seja, aceitar a verdade do nosso ser, da nossa criaturalidade, criados por um Outro, criado para um Outro, conscientes sermos incompletos, da nossa pobreza moral, dos nossos limites e fraquezas.

Compreende-se então, que a oração, a visão e o desejo de Deus, são a característica do pobre; nela encontram-se os vazios do homem, que invocam as riquezas de Deus, fundem-se os desígnios intuídos de Deus com os nossos pobres projetos de felicidade, somos diretamente interpelados a reconhecer que fomos amados e a encontrar o nosso repouso no amar aos outros.

Entende-se porque o “pobre”, que se confunde com o sábio, está disposto a dar todos os seus bens em troca da sabedoria, que é consciência do próprio ser e descoberta do caminho para levá-lo à plenitude.


8 Una alegre mensagem aos pobres

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O primeiro ícone identifica a pobreza evangélica com o mistério da Encarnação do Filho de Deus, que é a consagração de Jesus de Nazaré.

Uma segunda imagem entrevê na pobreza, o misterioso segredo da missão de Jesus e, portanto, a chave da fecundidade da Igreja33. A “pobreza” é o sinal revelador de ambas. Os homens não o percebem e nem conseguem aceitá-lo. Jesus, contudo, afirma-o publicamente quando manda dizer a João Batista, em busca de uma confirmação da sua identidade messiânica: «A boa nova é anunciada aos pobres»34. Acontece o mesmo hoje: lá onde é despertada a esperança dos pobres, lá onde eles retomam a própria dignidade, revela-se que o Reino está em ação.

Os pobres, por isso, são escolhidos explicitamente como destinatários primeiros, principais, significativos e fecundos da missão sob a inspiração do Espírito: «Enviou-me para levar a boa-nova aos pobres»35. Não são os únicos. A mensagem é também oferecida aos que possuem bens, mas como proposta de pobreza, a partir da experiência das privações, da partilha, do amor e da libertação.


A pobreza é conteúdo do anúncio: «Bem-aventurados os pobres»36. «Não junteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões penetram para roubar»37. «O que adianta ao homem ganhar o mundo e perder-se a si mesmo?»38. Com este discurso, o evangelho leva o homem aos interrogativos fundamentais da existência e, ao mesmo tempo, oferece-lhe o caminho para resolvê-los no tipo de vida e nos ensinamentos de Jesus.

A conclusão de Jesus, muito explícita, está sintetizada numa expressão lapidar: «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro»39. Ele denuncia como alienante para o homem a excessiva preocupação pela riqueza, que o condiciona e subjuga.

Não privilegia, de modo maniqueísta e indiscriminado, a condição econômica de indigência diante da opulenta. Desta, ele relativiza o valor, revelando suas insídias quanto à conversão do coração, à construção do reino, à realização do destino do homem e à qualidade das relações humanas. Sua recomendação é: «Com a riqueza, conquistai amigos que vos acolham nas moradas eternas»40. Por isso, não despreza o dinheiro. Louva o emprego dele na viúva que oferece o seu óbolo41, em Zaqueu, que promete dar a metade dos bens aos pobres e restituir quatro vezes mais aquilo que tinha fraudado42, no administrador astuto, que o coloca para render a fim de garantir para si amizade e acolhida43.

A pobreza da vida consagrada prolonga e atualiza o ensinamento de Jesus diante dos bens. Exprime-se na proposta de um relacionamento diferente com esses bens, na contestação da riqueza fim de si mesma, da cupidez e da incessante ambição de posse e, portanto, numa relação diversa entre as pessoas e povos. De fato, a avidez prepotente de dinheiro e a embriaguez da posse está na raiz de muitos dos graves males que afligem as sociedades de hoje: dispor orgulhosamente dos outros, injustiça protegida, miséria.

O desapego, tanto interior como exterior, a essencialidade, a renúncia à posse, não representam, por isso, empobrecimento e muito menos negação dos valores autenticamente humanos, mas a sua transfiguração; propõem uma “terapia espiritual” para a humanidade, visto repelirem a idolatria e suas conseqüências, e tornam, de algum modo visível o Deus vivo44.


A pobreza, além de ser espaço humano e conteúdo do anúncio, é característica irrenunciável do missionário evangelizador. Ele entrega-se à palavra, à força convincente da caridade, à promessa da vida. Para a viagem, não precisa «levar nem bordão, nem sacola, nem pão ou dinheiro, nem duas túnicas»45. Recebe, porém, de Jesus, o poder de expulsar os demônios, a alegria de anunciar a salvação e curar as feridas do homem. Está disposto a viver daquilo que lhe oferecem.

A pobreza relacionada diretamente à consagração e ao anúncio tem para o missionário consagrado, um valor ascético: permite-lhe purificar o coração, o relacionamento e a palavra, libertando-se do instinto de domínio e auto-afirmação, de posse e busca de prestígio, tão fortemente radicados quer nos indivíduos quer nas comunidades. «As pessoas consagradas serão missionárias, antes de tudo, aprofundando continuamente a consciência de terem sido chamadas e escolhidas por Deus… libertando-se dos impedimentos que poderiam retardar a totalidade da resposta de amor: poderão ser, assim, um verdadeiro sinal de Cristo no mundo»46.


9 Os primeiros cristãos

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«A exemplo dos primeiros cristãos pomos em comum os bens materiais», diz o art. 76 das Constituições.

A pobreza de Cristo exprimiu-se no dom de si até o gesto extremo da morte. A comunidade que nasce da sua Ressurreição, reforçada pelo dom do Espírito Santo, se sente chamada a realizar a unidade fraterna entre todos os homens através da partilha dos bens espirituais e materiais.

«A multidão dos crentes como que tinha um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que era propriedade sua nem um só de seus bens, pelo contrário, tudo lhes era comum»47. A “koinonia” inclui, então, muitos aspectos da existência, ou melhor, não deixa nenhum deles de fora: a união dos corações, o uso dos bens materiais, a participação na Eucaristia e na oração, a exposição da vida cotidiana, a convergência num único projeto de presença na sociedade.

A vontade e a realização de comunhão, elemento indispensável da pobreza evangélica, manifestou-se de formas diversas ao longo dos tempos, e continua a encontrar hoje novas e eloqüentes expressões: «Para as pessoas consagradas, feitas “um só coração e uma só alma” (At 4,32) por este amor derramado nos corações pelo Espírito Santo (cf. Rm 5,5) torna-se um exigência interior o colocar tudo em comum: bens materiais e experiências espirituais, talentos e inspirações, como também ideais apostólicos e serviço caritativo»48.

Resulta disso a multiplicação dos recursos: um capital também de bens materiais, que cresce a partir do interior até poder ser distribuído «segundo a necessidade de cada um»49, de modo que «ninguém passe necessidade»50, porque a cada um é dado segundo a própria necessidade51. É um fenômeno constante nos séculos: a pobreza orientada à comunhão produz abundância. A riqueza possuída de maneira individual reproduz e estende a miséria.

Esta pobreza, que coloca sua esperança na comunhão, tem um primeiro espaço de semeadura e colheita na comunidade religiosa, onde entrega-se sem cálculos, para desdizer o princípio do “cada um por si” e fazer experiência da construção de uma fraternidade alegre e que testemunha. Não se reduz ao uso das coisas, nem é sua principal intenção conservar um patrimônio econômico comunitário, mas oferecer a possibilidade de uma experiência espiritual que também tem valor temporal.

O desejo de partilha entre os primeiros cristãos supera os limites da comunidade restrita e se volta às Igrejas irmãs e àqueles que vivem na indigência e em necessidade. Paulo organiza uma coleta em favor da comunidade de Jerusalém pobre e os Apóstolos elegem alguns diáconos, como resposta à exigência do cuidado dos pobres e viúvas. Olhando para a nossa situação, assim exprime-se Vita Consecrata: «A opção pelos pobres inscreve-se na própria dinâmica do amor, vivido segundo Jeus Cristo. Assim estão obrigados a ela todos os seus discípulos; mas aqueles que querem seguir o Senhor mais de perto, imitando as suas atitudes, não podem deixar de se sentirem implicados de modo absolutamente particular em tal opção. A sinceridade da sua resposta ao amor de Cristo leva-os a viver como pobres e a abraçar a causa dos pobres»52.


A experiência da vida religiosa ao longo dos séculos demonstra que um dos aspectos que determinaram a decadência da vida comum foi a interpretação da relação entre pobreza coletiva e individual. Chegou-se ao paradoxo de existirem religiosos ricos em Institutos pobres e, vice-versa, religiosos que nada possuíam em Institutos, donos de imensas propriedades em contextos de pobreza generalizada. É necessário ir além da interpretação legalista e renovar tanto individual como comunitariamente a opção de seguir Jesus, entendida como audácia no amor, capacidade de compartilhar generosamente, ausência de preocupação pelo cotidiano, abandono aos misteriosos caminhos de Deus.

Essas tomadas de posição levam a gestos corajosos, também contracorrente, que permitem aos religiosos ser defensores críveis do valor humano da pobreza, denunciar com a vida as injustiças perpetradas contra tantos filhos de Deus e «empenhar-se na promoção da justiça no ambiente social em que trabalham»53.


10 A pobreza de Dom Bosco

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A pobreza evangélica, entre os três conselhos, é aquela que apresenta maiores diversidades quanto à prática, nos vários projetos de vida consagrada, a ponto de caracterizá-los profundamente: existe a pobreza dos anacoretas, das grandes instituições monásticas, dos mendicantes, dos contemplativos, dos institutos de vida ativa, dos consagrados seculares.

A releitura atenta de Vita Consecrata deve orientar a nossa reflexão e a nossa práxis para uma conversão que envolva a comunidade e os indivíduos. Creio indispensável, a propósito, para completar o quadro de referência, convidar-vos a dirigir o olhar por alguns momentos a Dom Bosco. Dele afirma plasticamente o comentário às nossas Constituições que «viveu a pobreza com um olhar em Cristo e outro nos jovens pobres»54.

O P. Rinaldi fornece-nos uma importante chave de leitura para entender o que Dom Bosco pensasse da pobreza. Falando aos irmãos de Valdocco em dezembro de 1930, por ocasião do exercício da boa morte, contou um episódio do qual ele mesmo fora testemunha. O nosso Pai demonstrara-se particularmente severo diante de alguns pedidos feitos pela comunidade de San Benigno (casacos novos para todos os clérigos e cortinas para as janelas dos quartos). Respondendo a um irmão, que depois da conferência relevava que não se devia separar o decoro da pobreza, ele insistiu que o “decoro de um religioso é a pobreza”. «Tinha falado de tal modo sobre a pobreza – sublinhava o P. Rinaldi – justamente quando preparava para suas escolas de tipografia os locais mais grandiosos que existissem em Turim para estabelecimentos congêneres, e construía um magnífico colégio ao lado da igreja de São João Evangelista»55. A aparente contradição sugeriu ao P. Rinaldi uma distinção entre a pobreza de cada salesiano e a das comunidades e as exigências da obra educativa com que Dom Bosco queria estar na vanguarda do progresso, segundo a expressão usada por ele com o futuro Pio XI56.

Ele empregou, de fato, boa parte do seu tempo na busca de meios para sustentar suas obras, fazendo-se esmoler pelo bem da juventude pobre. Gente de todas as camadas sociais na Itália, França e Espanha colocava à sua disposição também ingentes quantidades de dinheiro, atingidas pela santidade e simplicidade do nosso Pai. Por suas mãos passaram milhões, sem que nelas ficasse um centésimo. Seu estilo de vida no vestuário, na alimentação, nas viagens, na mobília do escritório, na concessão do sono e do repouso era rigoroso, graças às precoces experiências da alegre pobreza vivida em família, aos exemplos de sua mãe e à férrea vontade de gastar todos os instantes do seu tempo e toda migalha de suas posses pelos jovens.

É evidente a sua orientação ao ideal de Jesus em quem inspirava-se, e que indicava freqüentemente à atenção dos Salesianos: «Jesus Cristo nasceu, viveu, morou, nutriu-se e morreu pobre. Essa santa pobreza era assunto contínuo da Doutrina que pregava. Às multidões, anunciava a necessidade de desapegar o coração das coisas da terra, e impunha-o àqueles que convidava a serem seus discípulos; e daqueles que lhe pediam de serem aceitos como discípulos para formar sociedade com ele, exigia que renunciassem àquilo que possuíam, também às suas famílias»57.

Conhecemos a sua inquebrantável confiança na Providência, através de inúmeros fioretti que dele nos transmitiram a primeira geração de Salesianos e suas recomendações freqüentes. «A Divina Providência tem-nos ajudado até agora em todas as nossas necessidades e, podemos dize-lo, até de modo extraordinário. A ajuda, estamos certos, deverá continuar também no futuro pela intercessão de Maria Santíssima Auxiliadora, que tem sido sempre nossa Mãe. Isso, porém, não nos desobriga, da nossa parte, de usar toda a diligência para diminuir as despesas, onde se possa, como também em economizar nas provisões, viagens, construções e, em geral, em tudo que não for necessário. Creio ser isso um nosso dever particular diante da Divina Providência e diante dos nossos próprios benfeitores»58.

Dom Bosco relaciona, então, a generosidade da Providência ao espírito de pobreza, como se o que atrai sobre nós a abundância dos dons de Deus são o nosso ardor apostólico, o esquecimento cotidiano de nós mesmos, a nossa entrega pessoal pelo bem da juventude.

Por outro lado, conhecedor pelo estudo e identificação, da história da Igreja e das ordens religiosas, ele une a prosperidade e a capacidade vocacional delas à prosperidade ou decadência da pobreza em sua vida e missão. «Interessa-me, e muito, uma terceira coisa, ou seja, a observância perseverante do voto de pobreza. Recordemo-nos, meus queridos filhos, que dessa observância depende em máxima parte o bem-estar da nossa Pia Sociedade e a vantagem da nossa alma»59.

Hoje, a mensagem e a preocupação de Dom Bosco interpelam-nos a retornar às fontes regeneradoras da nossa história e consagração. Nos contextos de bem-estar e naqueles de indigência, a recuperação da força carismática, inserida na Igreja pelo Espírito para a salvação dos jovens através de Dom Bosco, não pode deixar de passar pelo testemunho humilde e límpido da nossa seqüela de Jesus. Dom Bosco impele-nos a tornar claro, a reformar, se necessário, o nosso modo de viver como pobres tanto individual como comunitariamente. Os jovens, vendo a generosa pobreza do nosso dom, não podem não ser capturados pela bem-aventurança que Deus nos concede.


4. Algumas indicações para o momento atual


Os motivos inspiradores da nossa práxis comunitária e vivência pessoal expostos acima devem ser referidos à situação concreta que estamos vivendo.

É indispensável saber discernir segundo o critério de significatividade carismática, concentrar-se no essencial e entregar-se à memória do Espírito Santo para encontrar expressões eloqüentes da nossa pobreza. Isso comporta esforço, incerteza e, às vezes, também tensões apaixonadas e fecundas.

A miséria impõe-se hoje à opinião pública do mundo todo com trágica evidência. A indigência é condição existencial, sofrida muitas vezes como conseqüência de injustiças, de bilhões de homens e mulheres em todos os ângulos do globo. A pobreza abraçada pelo Reino dos céus não goza da mesma evidência; é opção de poucos, parece quase submersa, e oferece freqüentemente os flancos a equívocos e interpretações tendenciosas. Há quem não creia em nossa profissão de pobreza, atribuindo-nos interesse e lucro e, tudo somado, uma existência garantida em todos os sentidos.

Como dar hoje visibilidade compreensível e, sobretudo, consistência evangélica à nossa opção pública de pobreza?


11 Responsabilidade atenta

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Recordo, antes de mais, a atitude de vigilância, de confronto exigente entre o ideal professado e as manifestações cotidianas da pobreza. É fácil escorregar em compromissos mesmo individualmente não graves, mas que no conjunto aviltam a expressividade da consagração.

Propusemos muitas vezes nestes anos o scrutinium paupertatis, contemplado nos Regulamentos: «A comunidade local e a inspetorial avaliem, com a freqüência que julgarem oportuna, o próprio estado de pobreza quanto ao testemunho comunitário e aos serviços prestados. Procurem os meios para contínua renovação».60

Podemos perguntar-nos: estamos realmente esforçando-nos, em nível comunitário, no exame do nosso teor de vida, dos nossos hábitos, das nossas opções? Ajudamo-nos a fazer o levantamento sincero de nossas infidelidades, de nossas acomodações? Encorajo cada irmão, as comunidades e aqueles que exercem o serviço da autoridade a viverem o scrutinium não só como exame de consciência, mas como experiência do Espírito, como entrega ao seu fogo purificador e à sua força regeneradora.

O escrutínio não pode fugir à verificação de algumas tendências talvez circunscritas, mas que, descuidadas, podem tornar-se explosivas, como a gestão individual de dinheiro e recursos, que chega aos limites de uma economia paralela, tende a escapar a qualquer controle, dá origem a claras desigualdades com prejuízo para o espírito fraterno e para a mesma qualidade da vida religiosa.

Existe, de fato, um dinamismo, inerente à ossatura da nossa consagração, que devemos ter a coragem de deixar livre, para que o Espírito, também através da nossa colaboração, possa atuar hoje a salvação dos jovens. É a opção da “austeridade profética” que conteste a posse como fim em si mesma e denuncie a tentação de sentir-se importantes e seguros por aquilo que se tem e se adquiriu. Demonstrar fraqueza ou condescendência diante dos abusos mais evidentes (contas pessoais, viagens custosas não concordadas, teor de vida burguês, disponibilidade dos confortos mais atualizados, meios de transporte exclusivamente pessoais…) significa esvaziar gradualmente de sentido e testemunho tanto a nossa consagração como a nossa missão.

Em algumas Inspetorias, as comunidades locais são ajudadas, através de subsídios especiais, a não perder de vista o conjunto das exigências atuais, que a pobreza comporta, conforme as Constituições e as indicações da Igreja: austeridade no estilo de vida, comunhão dos bens, trabalho, empenho pela justiça, atenção preferencial aos pobres.

O scrutinium, além de criar comunicação responsável e fraterna entre nós, será útil para o crescimento na compreensão e prática da pobreza. Também a respeito dela é preciso uma “formação permanente” que leve a aprofundar o seu sentido evangélico, supere a observância correta mas habitual e abra-nos a novas experiências.


12 Destinação apostólica dos bens

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Já sublinhamos que a Providência, de várias formas, coloca recursos financeiros à nossa disposição, devendo derivar disso algumas atenções.

A primeira refere-se à sua escrupulosa destinação à educação e evangelização dos jovens e do povo, à promoção dos mais pobres, à formação dos educadores, líderes, catequistas. Impressiona-me em minhas viagens a constatação de que em muitos lugares os Salesianos pensaram realmente nos jovens ao construírem novas estruturas. A residência dos Salesianos é muitas vezes modesta e essencial, enquanto a obra apostólica foi equipada com locais acolhedores e mobiliário adequado.

Hoje, talvez, deva-se especificar que é preciso investir sobretudo no crescimento das pessoas e grupos. As estruturas devem ser simples, dignas, suficientes para as finalidades atuais e de um futuro imediato, não custosas no que se refere à gestão e manutenção, decididas depois de um atento discernimento sobre as suas necessidades. Destinemos dinheiro, porém, para qualificar pessoas, promover movimentos, à educação dos jovens das classes mais pobres, a iniciativas de evangelização e promoção humana. O mesmo deve-se dizer do nosso tempo que também eqüivale ao dinheiro.

Hoje deve-se acrescentar à destinação “apostólica”, a “caritativa”, que tende a aliviar necessidades inadiáveis e primárias como a fome, a saúde, os serviços básicos, a acolhida de quem é prófugo ou sem teto. «Dá-lo aos pobres»61 é dito também a nós, sobretudo quanto aos bens não necessários, trate-se de estruturas ou de dinheiro. Grande parte da beneficência que nos chega foi motivada e é oferecida para aliviar essas necessidades. Não seria justo empenhá-las em despesas administrativas ou construções supérfluas.

Uma segunda atenção refere-se ao critério de conservação dos bens de que dispomos. Atualmente, um pouco em todos os lugares, são múltiplas as obrigações civis e sociais que devemos observar por lei, muito pesados os encargos financeiros ligados às estruturas e à sua manutenção, variadas as possibilidades de investir e capitalizar. Por outro lado, faz estrada entre nós o redimensionamento das presenças e a organização dos recursos. Não me detenho sobre os problemas concretos a respeito, que serão objeto de orientações específicas por parte do Dicastério competente.

Interessa-me, porém, evidenciar, no espírito da nossa pobreza, o princípio da pronta disponibilidade dos recursos para o apostolado; e, portanto, da não capitalização como fim a si mesma em edifícios, propriedades ou dinheiro. Podem insinuar-se também entre nós uma mentalidade e uma práxis orientadas ao acúmulo para garantir um lucro sutil ou longinquamente relacionado à missão.

Conjugar confiança na Providência e previdência sábia é uma tarefa árdua e nem sempre decifrável à primeira vista. A tensão contudo deve ser saudavelmente mantida, para não correr o risco de gerir de maneira desprevenida e, de outra parte, para evitar elaborações decididamente especulativas, em que se corre o risco de perder aquilo que com muita criatividade e coração podia ser imediatamente empregado em favor do povo. É o caso de recordar a afirmação de Dom Bosco: «Os nossos bens e dinheiro pertencem aos pobres»62.


13 Solidariedade

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Já acenamos à solidariedade como elemento determinante no quadro normativo da pobreza salesiana. Não se trata de algo opcional, mas de um dever constitucional, que diz respeito à nossa identidade comunitária de consagrados e filhos de Dom Bosco.

Não vos escondo que, justamente neste âmbito, ao lado de situações exemplares de comunicação de bens na Congregação, existem outras de evidentes desigualdades: existem na mesma Inspetoria obras que dispõem de meios financeiros notáveis e de reservas abundantes, enquanto outras sofrem escassez de recursos e vêem-se limitadas na possibilidade da missão.

Essas situações devem ser enfrentadas com serenidade, mas com determinação e resolvidas em breve tempo pelos organismos comunitários competentes: Conselho da casa, Conselho Inspetorial, Capítulo Inspetorial. O governo inspetorial, sobretudo, chegue a orientações precisas para a condução econômica das comunidades locais e da Inspetoria segundo o ditado do art. 97 dos Regulamentos: «O Inspetor com o consentimento do seu Conselho fixará as contribuições exigidas pelas necessidades da inspetoria, comunicá-las-á às casas e fará recolher o dinheiro excedente. Predisporá um plano periódico de solidariedade econômica entre todas as casas da inspetoria para ajudar as mais necessitadas…»63.

A solidariedade entre as comunidades é norma para a Inspetoria e é organizada em nível inspetorial, de onde tem-se uma visão mais ampla e objetiva da missão das várias comunidades locais.

Em alguns casos, reconheço, será preciso uma autêntica conversão, uma completa mudança tanto da mentalidade quanto da práxis. Entretanto, é preciso fazê-lo, com espírito de disponibilidade e desapego, seguros de que uma gestão mais solidária constrói fraternidade, oferece possibilidades inesperadas à missão, garante uma maior fidelidade e transparência no testemunho pessoal dos irmãos e consente destinar recursos também às necessidades urgentes da Igreja e do povo.


Educar ao uso dos bens.


Educar com o testemunho, os ensinamentos e experiências adequadas. Há um fascínio a ser destruído, quase uma idolatria, de que os jovens não estão livres. Também eles querem possuir para impor-se, gozar e aparecer: dinheiro, roupas, motos, computador, férias. Freqüentemente, com absoluta ignorância das necessidades de quem vive ao redor. Isso pode acontecer em nossos próprios ambientes, embora ultimamente tenha-se tornado visível o esforço de sensibilizar os jovens à solidariedade com uma boa resposta da parte deles.

Há uma forma de vida a ser sugerida, atenta às necessidades da pessoa, mas não fácil aos consumos e ao desperdício. Pode ser um exemplo disso a vida de famílias que se propõem a viver com o necessário, contendo as despesas supérfluas.

Há um respeito e um cuidado pelos bens comuns a ser sublinhado: o ambiente, a natureza, a vegetação, o espaço de vida.

Há, sobretudo, a ser oferecida, uma visão cristã da hierarquia e da destinação dos bens e da sua gestão particular ou social. A tendência dominante na sociedade de hoje não transmite essa visão. É preciso, portanto, um suplemento de experiências específicas e de iluminação para fazê-la entender e assimilar. Caminham nessa linha as diversas formas de voluntariado, as colaborações nas causas humanitárias, as informações sobre problemas gravíssimos como a fome, a exploração dos fracos, o desemprego endêmico, de que apenas ocasionalmente se ocupam os meios de comunicação. Aos convites à caridade e à organização de serviços voluntários, acrescente-se uma correta visão social das situações que faça emergir as causas que as geram e sugira as eventuais linhas de soluções também estruturais.

O CG23 sublinhava a urgência de formar os jovens à dimensão social da caridade no contexto da educação á fé64. De fato, esta não pode deixar de sentir-se envolvida segundo o que dizia João Paulo II na mensagem para a Quaresma: «Existem situações de miséria que perduram, e que não podem deixar de sacudir as consciências do cristão e apelam ao dever de enfrentá-las, tanto pessoalmente como de modo comunitário»65.


14 Amar os pobres em Cristo

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Amar a pobreza quer dizer sentir-se pobre entre os pobres. A nossa preparação cultural e a nossa profissão de sacerdotes e educadores colocam-nos quase naturalmente em condição de segurança, prestígio, suficiência, relações com uma determinada classe social. Isso pode ser, para alguns, busca e prazer. Desta posição, estendamos a nossa mão e o nosso olhar, com a beneficência e com iniciativas, àqueles que vivem na miséria.

Ficamos, porém, com freqüência, psicologicamente distantes, sem participar dos sofrimentos dos pobres, nem receber suas riquezas de humanidade. A exposição direta à pobreza só pode ser saudável para a comunidade. Remeto-vos, para uma nova meditação do peso da nossa opção preferencial pelos pobres, à carta Teve compaixão deles66.

Nem todas as obras podem assumir as mesmas modalidades de acolhida, ajuda e partilha. É interessante em todo caso que não falte, em nenhuma delas, a consciência das pobrezas que estão ao nosso derredor ou distantes, o conhecimento das suas raízes nas pessoas que as sofrem e em nossos comportamentos: é importante que se possa garantir que essas pobrezas encontram espaços no coração e nas iniciativas da comunidade. Uma Igreja capaz de compaixão é um dos pedidos prementes neste tempo em que os problemas de que falamos comovem a opinião pública.

Somos chamados a isso pelas Constituições: «O espírito de pobreza nos leva a ser solidários com os pobres e a amá-los em Cristo. Para isso esforçamo-nos em lhes estar ao lado, em aliviar-lhes a indigência, fazendo nossas as suas legítimas aspirações a uma sociedade mais humana»67.


14.1 Conclusão

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«Encheu de bens os famintos, despediu os ricos de mãos vazias»68. O cântico de Maria é o primeiro de uma pessoa humana que Lucas coloca no Evangelho. Ele introduz e interpreta a vicissitude de Jesus em chave de história da salvação, como seu paradigma e momento definitivo.

Maria fala não só da sua experiência pessoal de eleição e exultação, mas dá uma visão da história humana, e confessa as energias que a movem: Deus é o seu protagonista com o próprio amor manifestado no poder colocado a serviço da misericórdia. Os pobres da tradição bíblica são os seus primeiros destinatários, escolhidos como “lugar” da revelação desse poder e misericórdia e como que motor da história. A riqueza e o poder identificados com a soberba humana vão indefectivelmente em direção à consumação e, deixados a si mesmos, também ao degrado e à corrupção.

A história recomeça sempre a partir dos pobres, e abre-se ao futuro segundo a medida da sua esperança.

À vigília do Terceiro Milênio, os temas da pobreza e da riqueza, do poder e da dignidade humana tornaram-se prevalentes. A conversão do secularismo auto-suficiente ao Deus vivo, é colocada, neste momento, em relação estrita com a posse, a destinação, a hierarquia e o uso dos bens, materiais e culturais. O Magnificat parece ressoar como um programa para os nossos tempos.

Maria nos ajude a crer, a esperar e a amar segundo a visão do seu Cântico.


P. Juan E. Vecchi

15 Reitor-Mor

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1 Cf. Lc 4,18

2 CG24, 152

3 ACG 358 suplemento, pág. 16, n. 32 e 34

4 C 73

5 C 75

6 C 72

7 cf. Mt 13,44-45

8 Fl 3,8

9 Fl 3,8-10

10 MB V, 670

11 cf. Mt 6,21

12 C 76

13 Oeuvres de St. François de Sales, Ed. Annecy, vol. IX, pág. 229

14 C 76

15 C 79

16 C 73

17 ib.

18 cf. ib.

19 cf. ib.

20 C 79; cf. MB V, 682

21 C 78

22 MB XIX, 157. Palavras citadas pelo Papa Pio XI em 3 de junho de 1929. Em 1933, o Papa dizia ainda: «Não aparece bem nas fileiras salesianas quem não é trabalhador; o trabalho é o distintivo, a carteira de identidade deste exército providencial» (MB XIX, 235)

23 MB XVIII, 477

24 1Cor 9,25

25 cf. C 90

26 cf. CG24, 187-188

27 cf. Mt 6,16-17

28 C 77

29 R 55

30 Mt 19,16-22

31 Mt 19,27

32 VC 21 c

33 cf. VC 25 a

34 Lc 7,22

35 Lc 4,18

36 Mt 5,3

37 Mt 6,19

38 Mc 8,36

39 Lc 16,13

40 Lc 16,9

41 cf. Mc 12,42-44

42 cf. Lc 19,8

43 cf. Lc 16,1-13

44 cf. VC 87

45 Lc 9,1-6

46 VC 26 b

47 At 4,32

48 VC 42 b

49 At 2,44

50 At 4,32

51 cf. At 4,35

52 VC 82 b

53 VC 82 b

54 O projeto de vida dos salesianos de Do Bosco, pág. 537

55 MB XIV, pág. 549-50

56 cf. ib.

57 MB IX, pág. 699

58 MB XVIII, pág. 191

59 ib.

60 R 65

61 Mt 9,21

62 MB V, 682

63 R 197

64 cf. CG23, 209214

65 João Paulo II, Mensagem para a Quaresma 1999

66 ACG 359

67 C 79

68 Lc 1,53