Exercícios espirituais Meditação 7 Partir de Dom Bosco

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS

CAPÍTULO GERAL XXVI SDB

PARTIR DE DOM BOSCO”



Caminhando para o final dos nossos Exercícios Espirituais, queremos viver em chave de oração e de encontro com Deus aquilo que é a finalidade principal do nosso Capítulo: partir de Dom Bosco, para despertar o coração de cada salesiano e retornar aos jovens com uma identidade carismática renovada e uma paixão apostólica mais ardente (cf. Carta do Reitor-Mor, ACG 394).



1.- "O Senhor nos deu Dom Bosco como pai e mestre..." (C 21)

Este "partir de Dom Bosco" não consiste, evidentemente, num "retorno do filho pródigo à casa paterna"; na verdade, jamais fomos embora da nossa Casa, do nosso Carisma. Apesar disso, há elementos objetivos que nos levam a renovar e projetar a nossa fidelidade a Dom Bosco e ao Carisma Salesiano, diante dos novos desafios da história e dos jovens. Na carta de Convocação do CG, o Reitor-Mor nos diz: "hoje mais do que ontem e amanhã mais do que hoje, de cortar os laços vivos que nos mantêm unidos a Dom Bosco. Vivemos mais de um século depois da sua morte. Já morreram as gerações dos Salesianos que tiveram contato com ele e o tinham conhecido de perto. Aumenta a separação cronológica, geográfica e cultural em relação ao fundador. Vêm a faltar aquele clima espiritual e aquela proximidade psicológica que permitiam uma referência espontânea a Dom Bosco e ao seu espírito" (ACG 394, p. 10).

Por outro lado, não é necessário dizer que não é minha intenção fazer uma "síntese" de Dom Bosco; além da impossibilidade objetiva de fazê-lo, diante de uma figura tão grande e rica como a sua, eu seria o menos indicado para isso; todos nós conhecemos muito bem o nosso Pai, para pretender dizer coisas "novas".

Entretanto, gostaria de tomar como ponto de partida justamente esta grandeza extraordinária de Dom Bosco, que preenche o nosso coração com orgulho legítimo, mas que não é destituído de riscos. Um deles, concretamente, seria perder-nos na multiplicidade complexa de traços, que poderia até mesmo impedir-nos de ver o essencial da sua pessoa e do Carisma que, através dele, o Espírito Santo deu à Igreja e à humanidade. Como diz o provérbio, às vezes "as árvores impedem-nos de ver o bosque". Como exemplo muito simples, recordemos de quantas profissões e atividades humanas Dom Bosco é patrono, para sublinhar, também dessa forma, o caráter poliédrico da sua personalidade.

Ao falar de S. Francisco de Assis, o genial escritor inglês G. K. Chesterton diz que, às vezes, se desejou interpretar o seu perfil de santidade das mais diversas maneiras: de iconoclasta a patrono da ecologia, esquecendo o que é mais importante, e que dá sentido a todas as demais dimensões: o seu enamoramento de Cristo; aquilo que ele faz, somente o faz um louco... ou um enamorado. E acrescenta, com a sua ironia habitual, que esses intérpretes procedem como quem quisesse escrever a biografia de Amundsen, com uma só limitação: não poder falar, de jeito nenhum, dos pólos (norte e sul). Se quisermos fazer uma comparação mais atual, podemos dizer: escrever a biografia de Pelé ou de Maradona com uma só proibição: não fazer qualquer alusão... ao futebol!

Na mesma Carta, o P. Pascual recorda-nos com clareza: "À base de tudo, como fonte da fecundidade de sua ação e atualidade, há algo que freqüentemente nos foge: a sua profunda experiência espiritual, aquela que se poderia chamar de a sua "familiaridade" com Deus. Quem sabe, não será justamente isso o melhor que dele temos para invocá-lo, imitá-lo, colocar-nos à sua seqüela para encontrar Cristo e fazê-lo encontrar aos jovens!" (ACG 394, p. 13).

Um testemunho não muito conhecido encontrado nas Memórias Biográficas, ilustra estas palavras do Reitor-Mor.

Na visita que Dom Bosco fez ao Seminário de Grenoble, França,

"na hora da leitura espiritual que precedia imediatamente o jantar, uniu-se aos seminaristas para o piedoso exercício; naquela vez, porém, a leitura foi substituída por uma exortação do P. Rua. Ele passou a refletir sobre o tema do amor de Deus por nós. Escreve alguém que esteve presente: Suas ardentes palavras revelavam nele uma alma ardente. Mais do que meditação era contemplação, mas para o Santo tornou-se êxtase. Grossas lágrimas marcavam suas faces e o Superior ao perceber isso, com sua voz doce e simpática disse forte: – Dom Bosco está chorando. – É impossível exprimir a emoção produzida em nossas almas por aquela simples palavra. As lágrimas do Santo foram ainda mais poderosas que os inflamados suspiros do P. Rua. Nós nos sentimos profundamente sacudidos e reconhecemos a santidade pela marca do amor, nem precisávamos mais de milagre para manifestar ao Santo a nossa veneração, enquanto de lá ele caminhava para o refeitório" (MB XVIII, 131).

Neste sentido, "partir de Dom Bosco" não é outra coisa que crescer no que constitui a nossa identidade cristã: a centralidade de Deus em nossa vida, aquilo que o nosso santo Fundador escreveu no primeiro artigo das Constituições originais: "O fim da Sociedade Salesiana é que os sócios, enquanto se esforçam por adquirir a perfeição cristã, exerçam toda obra de caridade espiritual e corporal para com os jovens, especialmente os mais pobres". É buscar sempre aquela "medida elevada" da vida cristã e consagrada: a santidade, na experiência da tríplice atitude teologal que nos faça viver sempre mais, como ele a viveu, "como se visse o Invisível" (C 21).

A este respeito, a canonização de Dom Bosco enquanto Fundador, bem o sabemos, tem um sentido que vai além do simples exame da heroicidade de suas virtudes ou da prova de uma intervenção extraordinária de Deus através de milagres. É o que afirma Vita Consecrata com clareza: "Quando a Igreja reconhece uma forma de vida consagrada ou um Instituto, garante que em seu carisma espiritual e apostólico encontram-se todos os requisitos objetivos para alcançar a perfeição evangélica pessoal e comunitária" (VC, 93). Nessa mesma linha está a afirmação do artigo primeiro das nossas Constituições: "A Igreja reconheceu nisso a ação de Deus, sobretudo ao aprovar as Constituições e proclamar santo o Fundador" (C 1).

"Queridos Salesianos, sede santos", convidava-nos o Reitor-Mor em sua primeira Carta, ao elencar, também, as características da santidade salesiana (cf. ACG 379, pp. 8-10). A Carta toda é um convite a aceitar esse desafio: a nossa santificação; de fato, "a nossa santificação é 'a tarefa essencial' da nossa vida, segundo a expressão do Papa. Se alcançada, tudo estará alcançado; se fracassar, tudo estará perdido, como se afirma da caridade (cf.1Cor 13,1-8), essência mesma da santidade" (ibid., p. 11).

Dom Bosco convida-nos, antes de tudo, a sermos santos, de modo que a própria Missão seja sua expressão e conseqüência, enquanto se torna também um caminho para crescer nela. "O testemunho desta santidade, que se realiza na missão salesiana, revela o valor único das bem-aventuranças e é o dom mais precioso que podemos oferecer aos jovens" (C 25).

Permito-me fazer um segundo esclarecimento, inspirado no Prólogo do livro do Papa (ou, como ele mesmo diz, de Joseph Ratzinger), Jesus de Nazaré. Aquilo que vou dizer não pretende ser senão uma simples analogia.

Temos sem dúvida agora, mais do nunca, elementos nas diversas disciplinas da ciência (histórica, lingüística, psicológica, sociológica etc.), para conhecer Dom Bosco; devemos agradecê-lo a tantos irmãos salesianos, alguns dos quais também estão aqui presentes, que consagraram a própria vida a estudá-lo e a comunicar os resultados de sua pesquisa qualificada. Apesar disso, também aqui podemos correr o risco que o Santo Padre indica a respeito do método histórico-crítico. Dito com uma imagem muito simples (demais, talvez), mas expressiva: muitas vezes podemos nos contentar com uma radiografia de Dom Bosco ou privilegiá-la em detrimento do seu rosto vivo e atual. Se um cirurgião precisa intervir sobre sua mãe, de nada servem as fotografias maternas; ele precisa dos estudos mais especializados possíveis; apesar disso, em seu consultório ou em sua mesa de trabalho não coloca a radiografia, mas a sua mais fiel e "viva" fotografia.

Como Congregação, antes, como Família Salesiana, devemos buscar mais uma síntese que nos permita conhecer vitalmente o Dom Bosco autêntico, porque, como dizíamos no título deste parágrafo, nos foi dado por Deus como Pai e Mestre.



2.- "...o estudamos e imitamos, admirando nele a esplêndida harmonia de natureza e graça" (C 21)



Procuramos, nas várias reflexões anteriores, "pôr em prática" esta harmonia entre natureza e graça; retomarei alguns dos elementos meditados (entre muitos outros), mostrando como se encontram de maneira admirável na pessoa de Dom Bosco, que manifesta uma extraordinária integração e capacidade de síntese vital. De um lado, como dissemos antes, foi dotado de uma riqueza fora do comum: "profundamente homem, rico das virtudes do seu povo, era aberto às realidades terrenas; profundamente homem de Deus, cheio dos dons do Espírito Santo"; por outro lado, capaz não só de uma "esplêndida harmonia", mas também de uma fusão num "projeto de vida fortemente unitário: o serviço dos jovens". Também a partir desta perspectiva "formal", o salesiano, dotado igualmente (não na mesma medida, sem dúvida) de dons de natureza e graça, é chamado a ser um homem de síntese, de equilíbrio, de bom senso, que não busca hipertrofiar ou, ao contrário, atrofiar nenhuma de suas dimensões fundamentais. O salesiano deve ser, no melhor sentido da palavra, um homem normal – como foi descrito pelo Card. Pironio na inauguração do CG 22: não no sentido de "mediocridade", mas, completamente ao contrário, inflamado pela paixão do amor pelos jovens, buscando o seu maior bem: a salvação.

1.- Falamos da gratuidade como daquela atmosfera que, a partir da fé (entendida, portanto, como Graça) cremos que envolve todo homem, cristão ou não, como expressão da presença amorosa de Deus. Dom Bosco era extraordinariamente sensível a esse sentido da gratuidade. Sublinhamo-lo em diversos momentos, sobretudo ao falar da predileção carismática pelos mais "insignificantes".

Recordemos o que o Reitor-Mor escreve na Carta "Contemplar Cristo com o olhar de Dom Bosco", sobre a experiência vivida com os alunos dos Jesuítas, no tempo da sua formação seminarística: "Quando estudava filosofia, João Bosco acompanhou jovens de classe alta numa casa de veraneio dos jesuítas situada nas imediações de Turim, à qual eles tinham enviado seus internos durante uma epidemia. Se é verdade que ele não encontrou dificuldade no relacionamento com eles, antes encontrou nesses jovens amigos que lhe queriam bem e o respeitavam, convenceu-se de que o seu “método” não se adaptava a um sistema de 'compensação recíproca'. 'Em Montaldo [...] percebi a dificuldade de alcançar sobre aqueles jovens uma influência plena, necessária para fazer-lhes o bem'. Convenceu-se, então, de não ser chamado para ocupar-se de jovens de famílias abastadas" (ACG 384, p. 17).

Procurarei aprofundar ainda este tema, com aquilo que me parece o exemplo mais relevante. A vida, qualquer vida humana, já o meditamos, é o dom por excelência, pois todos a possuem, e também porque qualquer outro dom, "de natureza ou de graça", pressupõe-na. Seria óbvio dizer que também Dom Bosco estava convencido disso. Há muito mais: creio que, a esse respeito, há um dom extraordinário de Deus em sua vida.

Dizer que nós todos sabemos que a vida é um dom, não equivale a experimentá-lo; também aqui, é válido o provérbio espanhol: “nadie sabe el bien que tiene, hasta que lo ve perdido” (ninguém sabe avaliar o que tem, senão quando o perdeu... ou ao menos, está em perigo de perdê-lo). Neste sentido, quem viu a sua vida ameaçada pela morte, e sobreviveu, aprendeu a valorizá-la em medida infinitamente maior. Encontramos a descrição clássica desta experiência (é inevitável a referência) na vida de Dostoievski, na situação que Stefan Zweig chama "um dos momentos cruciais da humanidade"; o romancista russo descreve-o na "terceira pessoa":

"Restavam-lhe cinco minutos de vida, não mais. Dizia que aqueles cinco minutos pareciam-lhe um tempo infinito, uma riqueza imensa (...). Ele morria com vinte e sete anos, saudável e forte (...). Naquele momento, nada lhe era mais penoso do que este pensamento incessante: 'Se fosse possível não morrer! Se fosse possível fazer a vida retornar, qual eternidade! E tudo isso seria meu! Eu faria, então, de cada minuto um século inteiro, não perderia um só deles, de cada minuto manteria uma conta precisa, não dissiparia mais nada em vão!".1

Nós todos conhecemos o comovente texto das Memórias Biográficas que nos apresenta a doença mortal de Dom Bosco, mas não resisto em transcrever alguns de seus trechos.

Dom Bosco, ao acenar à sua doença, deixou escritas as seguintes palavras: "Parecia-me que naquele momento estivesse preparado para morrer; custava-me abandonar os meus jovenzinhos, mas estava contente porque terminava os meus dias seguro que o Oratório já tinha uma forma estável". Essa sua segurança vinha da certeza de que o Oratório era desejado e fundado por Deus e por Nossa Senhora (...). Desde o início da semana, como se espalhasse a notícia funesta da doença, aconteceu nos jovens do Oratório uma dor, uma angústia indescritível (...). Davam-se, então, cenas de muita ternura: 'Deixe-me apenas vê-lo', pedia um; 'não o farei falar', garantia um segundo (...); 'se Dom Bosco soubesse que eu estou aqui, ele me faria entrar', dizia outro (...). Dom Bosco ouvia os diálogos que se faziam com o doméstico e ficava comovido (...). Ao ver que os remédios humanos já não deixavam esperança alguma, eles recorreram aos do Céu, com fervor admirável (...). Era um sábado do mês de julho, dia consagrado à Augusta Mãe de Deus.

Conhecemos muito bem também a conclusão desse momento decisivo, um verdadeiro divisor de águas na vida de Dom Bosco. Convidado pelo teólogo Borel para fazer ao menos uma pequena oração pela própria saúde, com muita dificuldade Dom Bosco, enfim, pediu: "Sim, Senhor, se assim for do vosso agrado, fazei-me sarar". "Pela manhã, os dois doutores Botta e Cafasso, vindos para fazer-lhe uma visita, temerosos de encontrá-lo morto, depois de apalpado o pulso, disseram-lhe: – Caro Dom Bosco, vá agradecer a Nossa Senhora da Consolata, porque tem muito do que [agradecer]".

A cena na qual o querido pai retorna entre seus filhos foi "um espetáculo, uma festa tão cordial, que se pode imaginar, mas não descrever". "Dom Bosco dirigiu também umas poucas palavras. Entre outras coisas, disse: 'Agradeço-vos pelas provas de amor que me destes durante a doença; agradeço-vos pelas orações feitas pela minha cura. Estou persuadido de que Deus concedeu a minha vida às vossas orações; e, por isso, a gratidão quer que eu a gaste toda em vossa vantagem espiritual e temporal. Assim prometo fazer enquanto o Senhor me deixar nesta terra, e vós, do vosso lado, ajudai-me' (MB II, 492-499).

Acredito que o nosso Reitor-Mor viveu experiência semelhante e, curiosamente, com a mesma idade de Dom Bosco, pelos 31 anos. Talvez a maioria de nós jamais tenha esta experiência, o mais importante é estar convencidos de que, se Deus nos chamou à vida e a esta vida, como salesianos, é para dizer, como o nosso Pai: "Por vós estudo, por vós trabalho, por vós eu vivo, por vós estou disposto até a dar a vida" (C 14).

2.- Quando falávamos acima sobre a centralidade de Deus na vida de Dom Bosco como chave de sua compreensão, demos algo por suposto que, agora, gostaria de explicitar, isto é: a inseparabilidade da fé em Deus em relação à seqüela e imitação de Jesus Cristo. Por isso, para o nosso Pai, falar de "religião" era praticamente igual a falar de Cristianismo; isso é inegável em seu tempo e contexto sócio-cultural-religioso. Sem dúvida, Dom Bosco seria, nestes tempos, o primeiro a convidar-nos para participar ativamente do diálogo ecumênico e inter-religioso, justamente porque estava convencido de que Jesus Cristo é – com as palavras do Magistério e da teologia atual – "o único e universal Salvador da humanidade".

É Jesus Cristo que, desde os primeiros anos da sua vida, guia e orienta todas as suas ações. É Jesus Cristo que, desde o sonho dos nove anos, lhe indica uma missão fazendo-o compreender que toda a sua existência está marcada por esta vocação-missão, e que lhe dá a Mestra, "sem o que qualquer sabedoria torna-se loucura".2 É Jesus Cristo que ele descobre, ama e serve em cada pessoa que encontra pelo caminho, particularmente os jovens mais pobres e abandonados, levando totalmente a sério as palavras do Senhor em Mt 25,31ss. É Jesus Cristo que ele quer "modelar" nos seus meninos, através de um caminho no qual a pedagogia e a catequese integram-se reciprocamente, de maneira plena: "Como Dom Bosco, somos chamados todos e em qualquer ocasião, a ser educadores da fé. Nossa ciência mais eminente é, pois, conhecer Jesus Cristo; e a alegria mais profunda, revelar a todos as insondáveis riquezas do seu mistério. Caminhamos com os jovens para conduzi-los à pessoa do Senhor ressuscitado, a fim de que, descobrindo nEle e em seu Evangelho o sentido supremo da própria existência, cresçam como homens novos" (C 34).

Encontramos na centralidade do Senhor Jesus na vida de Dom Bosco uma sensibilidade carismática que leva a privilegiar alguns aspectos da sua figura inexaurível (cf. C 11); entre estes, como sublinhava o Reitor-Mor em sua Carta de alguns anos, os de Apóstolo do Pai e de Bom Pastor. Na contemplação de Jesus Cristo, Bom Pastor, Dom Bosco "aprende" o Sistema Preventivo – e todos nós, como salesianos somos chamados a fazer esse mesmo aprendizado –: a gratidão, a preocupação e predileção pelo mais afastado, o amor feito amorevolezza, o conhecimento pessoal ("o bom pastor conhece as suas ovelhas, e chama cada uma pelo nome"), e, sobretudo, a necessidade de doar-se inteiramente e entregar-se até "dar a vida por suas ovelhas" (Cf. ACG 384, 26-28).

3.- A figura do Bom Pastor, e a preocupação por todas as suas ovelhas, mas com desconcertante predileção pela ovelha dispersa, pode-nos servir como motivação para aprofundar, ao final dos nossos Exercícios, um tema particular que só mencionamos nos primeiros dias, a unidade de ágape e eros na vida e na atividade do nosso Pai.

Diante da semântica habitual da palavra eros, mal-entendida quase como sinônimo de "sexualidade" (e muitas vezes até mesmo de sexualidade "doentia") e também a respeito de uma concepção de um setor da teologia protestante do século XX (especialmente no norte da Europa) que contrapõe drasticamente eros e ágape, o Papa Bento XVI teve o mérito de repropor, da cátedra mais elevada da Igreja universal, o valor humano, cristão e – porque não dizê-lo? – também teológico do eros, levando ao seu ápice uma linha de pensamento e de reflexões humanistas nessa direção.

Podemos dizer, de modo simples, que "sabemos o que não é o eros"; mas "o que ele é?". Mesmo ao ler com atenção a Encíclica Deus Caritas Est e, em particular, a Mensagem para a Quaresma 2007 de Bento XVI, podemos ficar com a impressão que não é claro a esse respeito, e até mesmo encontrar talvez alguma contraposição. Por exemplo, se, à luz da Encíclia, n. 7, entendemos a ágape como "amor descendente" e o eros como "amor ascendente", como se poderia falar do eros de Deus pelo homem? A mesma coisa, e dita de modo paradoxal, qual outro tipo de amor poderia ter o homem por Deus, se não o "ascendente"; só o amor erótico, portanto? Segundo meu modo de entender, podem-se encontrar ao menos cinco ou seis descrições do eros nos documentos do Papa: como amor ascendente – como a correspondência no amor – como sentimento e emoção 'estáticas' – como posse daquilo que falta ao amante – como anseio de união...; estas descrições não são, no fundo, alternativas, mas são todas aproximações, a partir de diversas perspectivas, à sua essência, indefinível, enquanto que, como verdadeiro amor, está mais além da compreensão humana lógica; podemos aplicar a ele as palavras de S. Anselmo: “rationabiliter comprehendit… incomprehensibile esse”, compreendemos, com a razão, que o amor está além da própria razão. Contudo, essa incompreensibilidade não quer dizer que não possamos penetrar no seu conhecimento, mas significa que não podemos esgotá-la.

Ao aprofundar este tema, gostaria de iniciar a partir de dois elementos, já mencionados antes. De um lado, o Santo Padre sublinha que o eros é indispensável também para a plenitude da ágape (cf. outros três textos, Deus Caritas Est 7); por outro lado, sublinhamos a necessidade de contemplar o amor a partir de duas partes da experiência: o amor, mas também o ser amado. Descobrimos nos dois aspectos a presença de um fator essencial, tão evidente, que, paradoxalmente, corre o risco de passar inobservado; trata-se da singularidade da pessoa amada. Sem ela, a mesma ágape (e, estranhamente, do outro extremo, também a sexualidade!) pode ser impessoal; e sem esse fator, a pessoa não pode se sentir amada, no mais profundo do seu ser. Ao procurar exprimi-lo na maneira menos inadequada possível, a essência do eros deve estar ligada ao reconhecimento da pessoa amada enquanto única e não repetível; e isso em todas as expressões autênticas do amor, da sexualidade, que se torna verdadeiro amor humano quando se deixa personalizar dessa maneira, até a ágape, que também precisa deixar-se personalizar pelo eros;3 caso contrário, pode ser até mesmo egoísmo narcisista. Existe o perigo real que, por traz da máscara do dizer "eu amo a todos", na realidade, não amo verdadeiramente a ninguém.

A partir desta "chave de leitura" podemos entender muito bem o que chamávamos de "aproximações" do eros nos documentos de Bento XVI, incluindo as dimensões do sentimento e até mesmo da emoção que são, sem dúvida, essenciais não só na experiência do amor em geral, mas em particular como expressão do estupor diante da pessoa única e impossível de se repetida, que se exprime na simplicíssima frase: é uma maravilha que tu existas!

O Bom Pastor, que deixa as noventa e nove ovelhas no redil (ou pelos montes! Mt 18,12) para buscar a ovelha dispersa, compreende isso perfeitamente (cf. também ACG 384, p. 27). A aplicação ao nosso santo Pai Dom Bosco é evidente e também, diria, entusiasmante. Ao tentar esclarecer ainda mais o seu perfil, ousaria dizer: a estrutura e orientação ("destinatários") do seu amor é a ágape; e o conteúdo e a dinâmica do mesmo amor é o seu eros. Dom Bosco não busca, em sua própria realização através do amor, quem o fascine e "o leve à plenitude", mas quem mais precise do seu amor agápico; mas esse amor é totalmente pessoal e afetivo (evidentemente, também efetivo); todo menino sentia-se amado pessoalmente por Dom Bosco; antes, sentia-se como seu predileto, como se fosse o único. Como ressoam novamente em nossos ouvidos e em nosso coração, as palavras daqueles meninos de rua, diante da porta do caro moribundo: "Se Dom Bosco soubesse que eu estou aqui, me faria entrar logo!"

E, graça a este amor agápico, feito afeto erótico (“entrañable”, dizemos em espanhol com uma imagem psicossomática), os seus meninos sentiam-se amados por Deus, de tal maneira que, como testemunha o P. Giacomelli, "os jovens amavam-no tanto, e tinham tanta estima e respeito por ele, que bastava externar um desejo para ser logo acolhido. Abstinham-se de qualquer coisa que pudesse desagradar-lhe; em sua obediência não havia nenhum temor servil, mas afeto realmente filial. Alguns evitavam cair em certas faltas quase mais por respeito a ele do para evitar a ofensa a Deus; ele, porém, ao tomar consciência disso, rapidamente os reprovava com seriedade, dizendo: 'Deus é maior que Dom Bosco!" (MB III, 585). E, pelo final da sua vida, dizia-lhe o teólogo Piano: "O amor, que tínhamos então pelo senhor, nós ainda o mantemos (...). Não foi aqui no Oratório que a maioria de nós teve pão e roupas que não tínhamos? (...) Ah! Este coração deixará de bater antes que deixe de amá-lo. Amá-lo é, para nós, como um sinal do amor de Deus" (MB XVIII, 366).

Em outra ocasião, também nos últimos anos, disse a um grupo de ex-alunos sacerdotes e leigos: "Agora, cabe-me responder quem é o mais amado por mim. Digam vocês: esta è a minha mão; qual destes cinco dedos é mais amado por mim? Do qual eu me privaria dentre estes? De nenhum, certamente, porque os cinco me são caros e necessários igualmente. Pois bem, eu lhes direi que os amo a todos, e a todos sem grau e sem medida" (MB XVIII, 160).

A frase mais audaciosa, no meu modo de entender, de Bento XVI (é ele mesmo quem o faz entender assim), no final da sua Mensagem pode aplicar-se, analogamente, a Dom Bosco: "Poder-se-ia dizer até mesmo que a revelação do eros de Deus pelo homem é, na realidade, a expressão suprema da sua ágape". Nada de estranho que o grande Orígenes entendesse dessa maneira – contra uma grande parte da Tradição da Igreja – a belíssima expressão de S. Inácio de Antioquia: "O meu Eros está crucificado".

Tudo isso nos permite retomar toda a profundidade do convite de Dom Bosco, antes e ainda hoje: Procura fazer-te amar! À total gratuidade do amor não se opõe por nada o desejo; antes, o anseio da correspondência não é, em absoluto, expressão de egoísmo mascarado. Quando autêntico, o amor implica a kenosis mais radical: esvaziar-se assim totalmente de nós mesmos, de maneira que seja Jesus Cristo a viver em nós (cf. Gl 2,19-20), e assim seja Ele a amar e a ser amado, através do nosso amor pessoal. Ah! se pudéssemos ouvir também nós dos nossos jovens, como disseram a Dom Bosco: Amá-lo é, para nós, como um sinal do amor de Deus!

Gostaria de concluir este parágrafo, novamente, com a síntese que o próprio Bento XVI nos oferece: "Na verdade, somente o amor no qual se unem o dom gratuito de si e o desejo apaixonado de reciprocidade infunde um êxtase que torna leves os sacrifícios mais pesados".



3.- "...também nós encontramos nele o nosso modelo" (C 97)



Como conclusão, gostaria de esclarecer ainda mais a nossa relação com Dom Bosco, Pai, Mestre e Modelo. Ouvimos, sem dúvida, muitas vezes de pessoas que não pertencem à Família Salesiana, expressões de desapontamento, ou até mesmo de reprovação, pelo estilo com que o recordamos, veneramos e procuramos imitá-lo. Alguns até mesmo dizem que colocamos Dom Bosco no lugar de Jesus Cristo. Evidentemente, são juízos injustos; mas indicam algo sobre o quê convém refletir: a nossa relação com Dom Bosco fundador não é igual àquela que outras Ordens ou Congregações têm com seus Fundadores. Isso não deveria nos preocupar, e menos ainda, nos envergonhar. Por outro lado, é verdade que podemos cair no perigo de nos chamarmos "filhos de Dom Bosco", sem o sermos na realidade (cf. Lc 3,8; Jo 8,39.42), por diversos motivos; entre outros, por confundir a fidelidade com a imutabilidade nostálgica; mas também "inventando" um Dom Bosco para nós, procurando cada um responder, sem se preocupar com nada mais, à pergunta: O que Dom Bosco faria aqui, hoje?

Acredito que o artigo constitucional no qual está a frase que dá título a este parágrafo oferece uma resposta preciosa. De um lado, recorda-nos que no início (não só cronológico, mas também carismático) da nossa Congregação, "os primeiros Salesianos encontraram em Dom Bosco seu guia seguro. Perfeitamente inseridos na sua comunidade em ação, aprenderam a modelar pela dele a própria vida. Também nós encontramos nele o nosso modelo". Por outro lado, porém, "a natureza religiosa e apostólica da vocação salesiana determina a orientação específica da nossa formação, necessária à vida e à unidade da Congregação" (C 97).

Deixando de lado o tema específico da "formação", trata-se de buscar a síntese vital entre a figura concreta de Dom Bosco e a natureza do nosso Carisma. Descuidar do segundo aspecto levar-nos-ia a uma repetição nostálgica e anedótica de Dom Bosco, e ele mesmo seria o primeiro a reprovar-nos por isso; e levar-nos-ia a nos limitarmos a um conjunto de idéias e conceitos de tipo teológico, pedagógico ou espiritual, esquecendo que tudo isso faz parte de um Carisma, que Deus deu à Igreja e à humanidade, sobretudo aos jovens, numa pessoa concreta, chamada João Bosco.

Ousaria dizer que nós encontramos esta síntese no próprio Dom Bosco: "acolhemos as Constituições como testamento de Dom Bosco, como livro de vida para nós e penhor de esperança para os pequenos e para os pobres" (C 196).



4.- Conclusão



Quase ao fim dos nossos Exercícios, gostaria de fazer duas reflexões.

Se quiséssemos sintetizar em pouquíssimas palavras a personalidade de Dom Bosco, eu diria: centralizando toda a sua vida em Deus, na seqüela de Jesus Cristo, gastando toda a sua vida pelos jovens, dos quais é carismaticamente apaixonado, nosso Fundador e Pai se manifesta ao mesmo tempo e de maneira incindível um homem santo e feliz: integrou perfeitamente as duas dimensões da sua realização pessoal em Cristo: a dimensão "objetiva" = perfeição, santidade; e a dimensão "subjetiva" = felicidade. Não é só um jogo de palavras a expressão, tantas vezes citadas a respeito dele (e também de S. Francisco de Sales, seu e nosso patrono): "Um santo triste é um triste santo".

A segunda reflexão quer ser, de certa maneira, uma síntese final (antecipada). Nas diversas reflexões, procuramos "pôr em prática" a harmonia entre natureza e graça, que é característica de Dom Bosco (cf. C 21). Podemos dizer, em certo sentido, que, no fundo, não aprofundamos outra coisa que... o Sistema Preventivo. Assumimos como "tema" e conteúdo central a amorevolezza, enquanto expressão – manifestação do amor, entre os dois pólos da razão (experiência humana) e da religião (reflexão teológica). É a síntese mais breve e densa que podemos fazer...



1 F. M. DOSTOIEVSKI, I Demoni, Turim, Einaudi, 1994, 62-63.

2 JOÃO BOSCO, Memórias do Oratório, São Paulo, Editora Salesiana, 2005, 28.

3 Cf. o extraordinário texto (infelizmente posto numa nota perdida, ao fundo de uma página!) de EBERHARD JÜNGEL, Dio Mistero del Mondo, Brescia, Queriniana, 2004, p. 416, nota 15 (embora deva esclarecer que não estou totalmente de acordo com a linguagem utilizada).

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