EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
CAPÍTULO GERAL SDB
ASCESE DO CARISMA: COETERA TOLLE...
Ao continuar a reflexão anterior, consideremos a segunda parte do lema de Dom Bosco, "…coetera tolle" que, como diz o Reitor-Mor na carta de convocação do CG26, exprime "a ascética salesiana, como é expressa no 'sonho dos dez diamantes'" (ACG 394, p. 9). Um pouco mais adiante, ele explica: "O 'coetera tolle' motiva o consagrado Salesiano a tomar distância do "modelo liberal" de vida consagrada, descrito na carta És tu o meu Deus, fora de ti não tenho bem algum" (ACG 394, 34; referência aos ACG 382).
1.- A ascese cristã: expressão e consequência do Amor
Tentemos ampliar esta perspectiva, e iniciemos com o estabelecimento de uma base "humana" que nos permita entender qual a ascese necessária não só para o consagrado, e nem só para o cristão, mas para cada ser humano, na medida em que quer alcançar a verdadeira felicidade.
O Santo Padre Bento XVI, na primeira citação de sua encíclica Deus Caritas Est, menciona Frederico Nietzche, cuja crítica a certo tipo de ascetismo, que pode chegar a ser até mesmo masoquista, já é clássica: "Eles chamaram de 'Deus' ao que contradizia e fazia mal a si mesmos; e, na verdade, houve muito de heroísmo em sua adoração!".1 É necessário, sem dúvida, reconhecer com sinceridade e humildade o que há de verdade nessas críticas (freqüentemente, muito pouco); freqüentemente, o modelo e o ideal de perfeição cristã não era, no fundo, realmente cristã, mas bebia em outras fontes, até mesmo numa outra concepção do ser humano que não a do Evangelho. No projeto amoroso de um Deus que quer o bem de seus filhos, não podemos separar a dimensão objetiva ("perfeição") da subjetiva ("felicidade"). É preciso reconhecer que a acentuação da perfeição sem a felicidade, em tempos passados nem sempre distantes, levou, pendularmente, à situação atual, sobretudo na cultura juvenil, pós-moderna, isto é, uma busca de felicidade (ou, melhor, de prazer imediato), às vezes obsessiva, sem qualquer referência objetiva ("perfeição").
Ao falar do amor, que é o fundamento do "da mihi animas", dizíamos que, assim como só dele pode nascer a autêntica mística cristã (e salesiana), ele é igualmente a única raiz da verdadeira ascese. Mais ainda: não há ascese mais radical daquela que nasce do amor autêntico. Conseqüentemente, podemos afirmar que o amor é a fonte da mística e da ascese cristãs. Dito com palavras evangélicas, só podemos "ter a vida" e produzir muito fruto se, como o grão de trigo, aceitamos cair na terra e "morrer". E isso tudo não como algo "imposto" de fora, nem como "preço que se deve pagar", mas justamente porque deriva da mesma essência do amor.
Por outro lado, somente na experiência do amor, em qualquer de suas expressões autênticas, encontra-se a realização total da pessoa, através da integração plena dos dois aspectos, objetivo e subjetivo. Somente através do amar e do ser amado o homem encontra, inseparavelmente, a sua plenitude e a sua felicidade.
2.- Dialética fundamental do amor
O poeta argentino, Francisco Luis Bernárdez, numa belíssima poesia, diz que "ser enamorado" (título também da poesia) es ignorar en qué consiste la diferencia entre la pena y la alegría ("é ignorar em que consiste a diferença entre a dor e a alegria")
Santo Tomás já o dissera, com uma frase lapidar: Ex amore procedit et gaudium et tristitia (S. Th. IIa IIae, q. 28, a. 1): "do amor procede a alegria e a tristeza".
Nesse sentido, escreve Moltmann: "O homem pode sofrer, porque pode amar, e sofre na medida em que também ama. Se ele conseguisse sufocar todo movimento de amor, extinguiria também todo sofrimento, tornar-se-ia apático (...). O homem que experimenta a impotência, o homem que sofre porque ama, o homem que pode morrer, é, pois, um ente mais rico de um Deus onipotente, incapaz de sofrimento e de amor".2 Não se trata de uma novidade absoluta, nem uma falta de respeito diante de Deus; em Ricardo de São Vitor encontramos a mesma idéia, expressão, se possível, numa maneira ainda mais audaciosa: "se Deus preferisse reservar egoisticamente apenas para si a abundância da sua riqueza, embora podendo, se o quisesse, comunicá-la a um outro (...) teria razão ao subtrair-se à vista dos anjos e de quem quer que fosse, de envergonhar-se de ser visto e reconhecido, tendo em si mesmo uma tão grave falta de benevolência".3
Na realidade, jamais somos tão vulneráveis como quando amamos... Ao recordar a "lei do grão de trigo", se o amor pode ser descrito como "a felicidade-plenitude através do dom total de si", vemos logo porque não se podem separar, na experiência de todo amor autêntico, a mística e a ascese. Dito em "linguagem salesiana", de maneira muito concreta, o da mihi animas e o coetera tolle são as duas partes, inseparáveis, do manto do personagem do sonho dos dez diamantes...
Em outro belíssimo texto da nossa tradição salesiana é apresentada esta mesma dialética do amor: o sonho de Dom Bosco do caramanchão de rosas. Aqueles que seguem a Dom Bosco, fascinados pela possibilidade de caminhar sobre as rosas, descobrem, muito depressa, que existem espinhos pontiagudos, e se sentem enganados. Na realidade, tinham-se esquecido que não há rosas sem espinhos; que não há amor sem sofrimento ou, melhor, sem vulnerabilidade...
No segundo capítulo das nossas Constituições, ao falar da identidade do salesiano, encontramos ao menos duas vezes esta perspectiva da ascese, relacionada intimamente à experiência do amor. Lemos no artigo 14, "Predileção pelos jovens": "Esse amor, expressão da caridade pastoral, dá sentido a toda a nossa vida. Pelo bem deles oferecemos generosamente tempo, dotes pessoais e saúde: 'Por vós estudo, por vós trabalho, por vós eu vivo, por vós estou disposto ate a dar a vida'". Mais adiante, ao recordar o "segundo lema da Congregação", trabalho e temperança, diz a nossa Regra de Vida: "(O Salesiano) aceita as exigência diárias e as renúncias da vida apostólica: está pronto a suportar o calor e o frio, a sede e a fome, as fadigas e o desprezo, sempre que se trata de glória de Deus e da salvação das almas" (C 18).
3.- O "Deus-Amor", um Deus pobre
Analogamente ao que foi dito na reflexão anterior sobre o fundamento teológico da nossa paixão, no "da mihi animas", devemos também aqui ir ao fundo para encontrar, no Deus em que cremos, o Deus-Amor, fundamento da nossa pobreza evangélica e consagrada, da nossa ascese mais radical.
Buscamos este fundamento, habitualmente, na vida de Jesus, como dizem também as nossas Constituições, citando o nosso pai Dom Bosco: "Conhecemos a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que sendo rico se fez pobre para que nos enriquecêssemos com a sua pobreza. Chamados a uma vida intensamente evangélica, escolhemos seguir 'o Salvador que nasceu na pobreza, viveu desprovido de tudo e morreu despojado na cruz'" (C 72).
Não queremos pôr em discussão o exemplo normativo do Filho de Deus feito Homem; entretanto, ao partir de um conceito teológico central, devemos afirmar: neste Homem, Jesus de Nazaré, Deus revela-se de maneira definitiva (= escatologia).
Sem pretender desenvolver esta última afirmação, limitamo-nos a recordar as palavras de VC sobre o fundamento trinitário dos conselhos evangélicos: "A referência dos conselhos evangélicos à Trindade santa e santificadora revela o seu mais profundo sentido" (VC 21). Justamente porque Jesus Cristo é o Revelador de Deus, podemos, através dEle, chegar a este fundamento trinitário. (Não gostaria de passar esta ocasião sem indicar que esta idéia parece-me uma das novidades teológicas e espirituais mais importantes do Magistério sobre a vida consagrada; infelizmente ainda não desenvolvida).
Em referência a isso, quereria apresentar uma reflexão pessoal, que me interessa profundamente. Nos Evangelhos sinóticos – tomo o texto de Lc 21,1-4, encontramos o comovente exemplo da pobre viúva que, lançando duas moedinhas, deu, segundo o testemunho de Jesus, mais do que todos os outros: "todos eles, de fato, deram do seu supérfluo como esmola; esta, contudo, na sua miséria, deu tudo quanto tinha para viver". Eu sempre entendera esse texto como um ensinamento moral particularmente denso para motivar-nos à plena confiança em Deus; até que, um dia eu me perguntei: esta Palavra do Senhor não pode ser também e, sobretudo, uma extraordinária parábola teológica? O Deus de Jesus Cristo será como um daqueles grandes ricos que "dão muito", mas do próprio supérfluo, ou é mais semelhante a esta pobre viúva, que nos deu tudo por nós, até o que tinha de mais caro: o seu único Filho? Entendida assim, a Encarnação como kenosis é uma ação trinitária; antes: é a manifestação por excelência do Deus Trinitário.
Diante disso tudo, surge logo a questão: Mas, não é verdade que Deus "muda" tornando-se Homem? A Encarnação não deve ser contra a radical imutabilidade de Deus?
Sem entrar aqui em especulações teológicas, que não seria a nossa tarefa, a primeira coisa que devemos fazer é nos perguntarmos e colocar seriamente em discussão esta imutabilidade, e o sentido que pode ter, sendo um conceito mais filosófico que teológico. Em todo caso, o conteúdo positivo desta palavra, parece-me, é assumido e levado à sua plenitude personalista na fidelidade, que é uma característica típica do amor, sobretudo quando falamos de Deus.
Ao recordar a interpretação da parábola evangélica mencionada anteriormente, damos agora a palavra a Hans Urs von Balthasar, num texto extraordinário:
Trata-se aqui, ao menos no fundo, da reviravolta absolutamente decisiva no modo de ver Deus: Ele não é, em primeiro lugar, "poder absoluto", mas "Amor" absoluto, cuja soberania não se manifesta em manter para si o que lhe pertence, mas em abandoná-lo, de modo que essa soberania estende-se para além do que, aqui, no interior do mundo, se contrapõe como força e fragilidade. O externar-se de Deus (na encanação) tem a sua possibilidade ontológica na externabilidade eterna de Deus, na sua doação tripessoal (...). Os conceitos de "pobreza" e "riqueza" tornam-se dialéticos, o que, aqui, não está a significar que a essência de Deus seja em si (univocamente) "kenótica" e que, portanto, um só conceito possa compreender o fundamento divino da possibilidade de kenosi e a própria kenosi (...); mas que – como Hilário tentou dizer à sua maneira – o "poder" divino é de tal modo constituído que pode gerir em si mesmo a possibilidade do auto-aniquilamento, como o é o da encarnação e da cruz, e manter esse aniquilamento até o fim4 (o sublinhado é nosso).
Só um Deus assim é digno, não só do nosso reconhecimento e da nossa gratidão, mas também e, sobretudo, do nosso amor total, incondicionado, que leve também a nós ao "esvaziamento" radical, para sermos preenchidos plenamente do seu Amor, e tornar-nos assim seus portadores aos jovens.
Refletiremos mais adiante sobre a Encarnação do Filho de Deus como manifestação definitiva do Amor de Deus; mais ainda, do Deus que é Amor. Nesta perspectiva, mais positiva, procuraremos integrar o seu caráter de despojamento: a kenosis do Filho de Deus feito Homem.
4.- Amor e Pobreza na vida salesiana
Na mesma Carta do Reitor-Mor, antes de apresentar os dois últimos temas capitulares, afirma-se: "Para Dom Bosco, a segunda parte do lema, "cetera tolle", significa o desapego de quanto nos pode distanciar de Deus e dos jovens. Para nós, hoje, esse desapego se concretiza na pobreza evangélica e na opção de ir ao encontro dos jovens mais 'pobres, abandonados e em perigo', sendo sensíveis às novas pobrezas e colocando-nos nas novas fronteiras de suas necessidades (ACG 394, p. 39). Também aqui, tomar como ponto de partida o amor apostólico, à imagem do Deus de Jesus Cristo, haverá de nos permitir concretizá-lo na pobreza mais autêntica e radical.
Numa análise muito densa, mas de extraordinária riqueza, que Eberhard Jüngel faz do amor humano, ele exprime assim esta relação entre amor e pobreza:
O fato de eu amante querer possuir o tu amado e assim, mas só assim, querer possuir a si mesmo transforma a estrutura do possuir – e isso é de grande significado do ponto de vista ontológico e teológico –. De fato, o 'tu' amado è desejado pelo eu amante só como o tu ao qual ele pode entregar-se e que, por sua vez, se entregará ao eu amante como ao tu amado. O amor é dom recíproco (…). A troca do dom recíproco significa, porém, pelo momento de possuir, que o eu amante quer possuir a si mesmo somente no modo do ser possuído (...). No amor não há posse que não nasça do dom (...). O eu amante somente possui a si mesmo como se jamais o possuísse. Quer ser amado, e precisamente, pelo tu que mesmo quer possuir. Mas para ter este tu deve dar-se a ele, deixar, portanto, de ter-se a si mesmo. Este fato é decisivo para a compreensão do amor5 (o cursivo é original; o negrito é nosso).
Dito de outra forma: uma pobreza que não nasça do amor, não é uma pobreza desejável, que possa assemelhar-se ao próprio Deus. O esvaziamento do Filho de Deus (kenosis) é, no fundo, expressão suprema do amor, que o leva a fazer-se um de nós: amor, aut similes invenit, aut similes facit. A inserção, que nos leva a compartilhar a vida dos mais pobres e marginalizados é, no fundo, uma variante da Encarnação.
Sobre isso, podemos também recordar as palavras de Santo Agostinho em seu comentário à primeira carta de João:
Irmãos, como tem início a caridade? Prestai um pouco de atenção: ouvistes como se chega à sua perfeição; o Senhor apresentou-nos no Evangelho a sua finalidade e as suas maneiras: Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Ele mostrou, portanto, no Evangelho, a sua perfeição e também aqui nos é apresentada a sua perfeição; mas interrogai a vós mesmos e dizei-vos: Quando podemos ter esta caridade? Não queiras desesperar logo de ti mesmo: a caridade em ti talvez tenha apenas nascido, ainda não aperfeiçoada; nutre-a, para que não venha a faltar. Poderás, talvez, dizer-me: de onde tiro o conhecimento disso? Ouvimos com quais meios ela chega à perfeição; ouçamos aonde busca o seu início. João continua e diz: Quem tivesse bens deste mundo e visse o seu irmão com fome e lhe negasse a sua compaixão, como o amor de Deus poderia estar nele? Eis aonde tem início a caridade. Se ainda não estás disposto a morrer pelo irmão, torna-te disposto a dar ao irmão um pouco de teus bens (...). Se não consegues, de fato, dar o supérfluo ao irmão, como poderá dar por ele a tua vida?6
6.- A Pobreza como dimensão da vida consagrada salesiana
Depois do texto citado no início da nossa meditação, na mesma Carta, o Reitor-Mor concretiza: "A vida consagrada do futuro será realizada concentrando-se no seguimento radical de Cristo obediente, pobre e casto. Se os três conselhos evangélicos nos falam da nossa total oferta a Deus e dedicação aos jovens, a pobreza nos leva a nos doarmos sem reservas e sem demora, até o último suspiro da nossa vida, como fez Dom Bosco. A prática dos conselhos evangélicos libera em nós os recursos mais escondidos da disponibilidade" (ACG 394, 39).
Considero que, na teologia da vida consagrada, e concretamente para nós, como salesianos, mais além da inegável diversidade dos conselhos evangélicos, é necessário encontrar a unidade harmoniosa ao redor do amor, de onde recebem o seu sentido e valor, e é o que os leva à plenitude da santidade. Nessa perspectiva, a pobreza não é uma "parte" ou seção da nossa vida, mas uma dimensão transversal à vida inteira e, em particular, atravessa os conselhos evangélicos. Mais ainda: ousaria dizer, jogando um tanto com as palavras, que a pobreza que implica a castidade e a obediência é mais radical do que aquela que implica o voto de pobreza.
Lemos na exortação Vita Consecrata: "todo aquele que foi regenerado em Cristo é chamado a viver, pela força que lhe vem do dom do Espírito, a castidade própria do seu estado de vida, a obediência a Deus e à Igreja, e um razoável desapego dos bens materiais, porque todos são chamados à santidade, que consiste na perfeição da caridade" (VC 30).
Ao analisarmos esse texto fundamental, encontramos três afirmações intimamente unidas entre si:
todo cristão/ã é chamado/a à santidade
a santidade consiste na perfeição do amor, na caridade;
portanto, todo cristão é chamado a viver, segundo o próprio estado de vida, os conselhos evangélicos.
Também aqui encontramos, em relação à concepção habitual dos "conselhos" evangélicos, uma absoluta novidade teológica e espiritual (embora, de alguma maneira, esteja presente na Lumen Gentium). Podemos afirmar, então: a prática dos 'conselhos evangélicos' pertence essencialmente à única perfeição cristã, que é a do amor. A maneira mesma como são nomeados indica que não se trata de todos os batizados terem que "professar os votos"; e isso tem como primeira conseqüência a necessidade de encontrar uma maneira mais adequada de chamá-los, para não cair no erro de considerar os nossos irmãos e irmãs no mundo como de "segunda classe", ou procurar alargar tanto o conceito de "vida consagrada", que todos pertençam a ela. Em todo caso, não podemos esquecer que todo cristão/ã é consagrado/a no Batismo.
Se estes valores evangélicos (que não são "opcionais") são normativos para todo cristão/ã, devem ter a máxima amplitude possível, não se limitando a este ou àquele aspecto marginal da existência humana e cristã; como seria, por exemplo, se entendêssemos a castidade apenas em relação à sexualidade, ou a obediência apenas diante de uma ordem do legítimo superior "em força do voto".
Esta perspectiva pode ser entendida como o conjunto das dimensões fundamentais do ser humano diante de Deus:
em relação às "coisas": pobreza;
em relação às pessoas: castidade;
em relação a si mesmo: obediência.
Recordemos o primeiro e principal "mandamento", a primeira "palavra de vida", que Jesus indica ao doutor da lei: "O primeiro é: 'Ouve, Israel: o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor, e amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças'. O segundo é: 'Amarás o teu próximo como a ti mesmo'. Não existe nenhum mandamento maior do que estes" (Mc 12,19-31 et par.). À luz deste "mandamento", podemos compreender o que é a tríplice idolatria que ameaça a raiz da nossa vida cristã (e religiosa): absolutizar as coisas materiais, adorando o "deus-dinheiro"; pôr qualquer pessoa como sentido único e definitivo da nossa vida, afastando Deus do nosso centro; e enfim, como a tentação mais profunda e radical, colocar-nos a nós mesmos no lugar de Deus; antes, em lugar de servir a Deus, servir-nos de Deus.
Visto em chave positiva, tender à santidade cristã consiste em crescer todos os dias no amor autêntico, colocando Deus como Centro da nossa vida, Destinatário último e definitivo do nosso amor, e somente nEle e por Ele amar os nossos irmãos e irmãs ("castidade"), utilizando de modo solidário e fraterno os bens deste mundo ("pobreza"), encontrando assim a nossa plena realização em Cristo ("obediência") (cf. C 22). Dessa forma, a nossa vida consagrada torna-se exemplo humilde e "terapia espiritual" (VC 87ss), a serviço dos nossos irmãos e irmãs, assumindo a renúncia ao exercício desses valores, não para que os outros cristãos renunciem a eles, mas para que possam relativizá-los. Esse é o nosso serviço insubstituível, que nos permite falar de "excelência objetiva da vida consagrada" (cf. Carta do Reitor-Mor, És tu o meu Deus, fora de ti não tenho bem algum ACG 382, p. 15ss., citando VC 18 e 32).
Esclarecendo ainda mais: para o cristão, esta "centralidade de Deus", e a renúncia radical que implica, configura-se como seqüela e imitação de Jesus Cristo: "Se alguém vem a mim, mas não me prefere a seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo (...) qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo" (Lc 14,26-27.33). As nossas Constituições ao falarem da vida salesiana como experiência formativa, juntamente com a "mística" na vivência dos valores da vocação salesiana, convidam-nos a "aceitar a ascese que esse caminho implica" (C 98).
Estas reflexões levam-nos a um tema muito interessante, mas que só podemos agora enunciar: o sentido da renúncia e a formação à renúncia. É um tema da máxima atualidade, sobretudo (não só) no campo da formação inicial.
A respeito disso, gostaria de retomar um texto da conferência do Reitor-Mor aos Superiores Gerais:
Encontramos alguns elementos fundamentais que nos permitem delinear a "fenomenologia da renúncia" na pequena parábola evangélica do comerciante de pérolas preciosas (Mt 13,45-46):
a) – renuncia-se às pérolas preciosas ("o comerciante vai e vende as que possui") não porque sejam falsas: são autênticas, e foram até aquele momento o tesouro do comerciante. Aplicando-o à nossa realidade, não é certamente um método adequado o que tenta diminuir o valor daquilo a que se deve renunciar, para que fique mais fácil. No fundo, renunciar às "coisas ruins" não è a renúncia humana mais profunda e completa. Quantas vezes ouvimos perguntar, como resistência a uma renúncia necessária: "o que há de ruim naquilo que faço?" E tem toda a razão quem fala assim: deve apenas compreender que é justamente então, que se apresenta a oportunidade da renuncia no seu sentido mais autêntico.
b) – renuncia-se a pérolas autênticas, com dor e ao mesmo tempo com alegria, porque se encontrou "a" pérola definitiva, aquela que preencheu o olhar e o coração do comerciante; e ele compreende que não a pode adquirir se não vender as outras. Se a nossa vida consagrada, centrada no ensinamento e na imitação do Senhor Jesus, não resultar fascinante, a renúncia exigida torna-se injusta e desumanizadora... Como diz esplendidamente Potissimum Institutioni: "Só este amor de caráter nupcial e que implica toda a afetividade da pessoa, permitirá motivar e sustentar as renúncias e as cruzes encontradas necessariamente por quem quer 'perder a sua vida' por causa de Cristo e do seu Evangelho (cf. Mc. 8, 35)" (n. 9).
c) – a alegria pela posse da "pérola preciosa" jamais elimina totalmente o temor que não seja autêntica: caso fosse falsa, a minha decisão teria sido errada, e teria arruinado a minha vida. Este "risco" na vida cristã, e mais ainda, na vida consagrada, é conseqüência direta da fé: a nossa vida só tem sentido na fé; se não for verdade aquilo em que acreditamos, "somos os mais infelizes de todos os homens", parafraseando São Paulo (cf. 1Cor 15,19). O dia em que, em alguma vertente da vida consagrada, se puder dizer: a "minha vida é plenamente gratificante, mesmo que não seja verdadeiro aquilo no que creio", o nosso Instituto torna-se... uma ONG, com o agravante de implicar certas exigências inaceitáveis para os seus membros...
Concluo com a concretização da pobreza que o Reitor-Mor nos apresenta em sua Carta:
"Nós Salesianos testemunhamos a pobreza com o trabalho incansável e a temperança, mas também com a austeridade, a simplicidade e a essencialidade da vida, a partilha e a solidariedade, a gestão responsável dos recursos. A nossa pobreza pede-nos uma reorganização institucional do trabalho que nos ajude a superar o risco de sermos empresários da educação mais do que educadores, ou gestores de empresas educativas mais do que apóstolos através da educação. Quem escolheu seguir Jesus, escolheu fazer próprio o seu estilo de vida, de não se enriquecer, de viver a bem-aventurança da pobreza e da simplicidade de coração, de sempre ter familiaridade com os pobres".
Em definitivo, levar a sério, e viver até o fim, a bem-aventurança de Jesus: "Felizes os pobres no espírito", a fim de experimentar, desde agora, a participação no Reino dos Céus...
1 FRIEDRICH NIETZSCHE, Così parlò Zarathustra, Milano, Adelphi Edizioni, 27a. Ed., 2006, p. 102
2 JÜRGEN MOLTMANN, Il Dio Crocifisso, Brescia, Queriniana, 1977, p. 259.
3 RICARDO DE SAN VICTOR, De Trinitate, III, 4, Roma, Città Nuova Editrice, 1990, p. 130.
4 HANS URS VON BALTHASAR, Teologia dei Tre Giorni, Brescia, Queriniana, 1990, pp. 39-40.
5 EBERHARD JÜNGEL, Dio Mistero del Mondo, Brescia, Queriniana, 2004, 3ª ed., p. 416-417.
6 SANT’AGOSTINO, In Ioannis Epistolam Tractatus 5, 12, Roma, Città Nuova Editrice, 1985, p. 1743.