EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
CAPÍTULO GERAL XXVI SDB
A MISSÃO SALESIANA:
“OS JOVENS MAIS POBRES E ABANDONADOS”
"Devereis honrar João Bosco, que se preocupou com os jovens mais pobres, e criou escolas para eles"; diz-se que são palavras escritas pelo próprio Mao Tse Tung em seu famoso Livro vermelho. Verdade ou não, é fora de dúvida que São João Bosco é conhecido e amado, além das fronteiras da Congregação e da Família Salesiana, e mesmo da própria Igreja, pela sua predileção pelos meninos e jovens, sobretudo os mais pobres e abandonados.
Ao refletir sobre este tema, central para o Carisma Salesiano enquanto se refere aos destinatários prioritários da nossa Missão, e a nossa atitude para com eles, encontraremos nele um centro de convergência dos temas tratados anteriormente; por isso o colocamos pelo final dos nossos Exercícios.
1.- "... a sua predileção pelos pequenos e pobres..."
A Missão salesiana tem suas raízes na vida, nas palavras e no exemplo de Jesus Cristo. Como indica o Concílio Vaticano II, todo carisma contempla o Filho de Deus feito Homem a partir de diversas perspectivas (cf. LG 46). Ou, como dizem as nossas Constituições, "somos mais sensíveis a certos traços da figura do Senhor" (C 11). Não é preciso demonstrar que a sua "predileção pelos pequenos e pelos pobres" constitui um dos aspectos mais indubitáveis, seguros e humanos, por assim dizer, do Senhor Jesus. Seriam muitíssimos os textos evangélicos que no-lo demonstram. Creio, porém, que sejam necessários alguns esclarecimentos a respeito.
Primeiramente, é relevante a palavra usada pelas nossas Constituições. Falar de predileção é, antes de tudo, falar de amor; de um amor preferencial, "maior", mas não exclusivo, e menos ainda excludente. Considero que é uma palavra muito mais adequada do que "opção", termo que, de per si, não indica amor como também pode insinuar certa discriminação. Jamais encontramos em Jesus a recusa a alguém; mas, no interior de um amor universal, existem atitudes de predileção.
Conseqüentemente, podemos perguntar-nos: quem é objeto da predileção de Jesus? Nossas Constituições, fiéis ao Evangelho, falam dos "pequenos e dos pobres". Será uma identificação, dois tipos de destinatários no mesmo nível, ou uma hendíade, que unifica sem eliminar eventuais diferenças?
Podemos responder ao evocar as Bem-aventuranças: a primeira delas refere-se aos "pobres" (Lc 6,20), ou "pobres no espírito" (Mt 5,3). Nos dois textos, promete-se a eles "o Reino dos céus / de Deus".
Pode ser aqui o lugar para explicitar o conceito de "pobreza" de que fala Jesus. Sem ignorar ou procurar diminuir a complexidade da questão, e também a ambigüidade que a mesma palavra representa; o mesmo termo serve para designar uma situação negativa, expressão do pecado e do egoísmo humano, mas também um ideal humano e cristão, "sancionado" até mesmo com voto na vida consagrada.
Este esclarecimento pode ser expresso de maneira muito simples e concreta, ao contemplar o Senhor Jesus, e a sua situação concreta (Sitz im Leben). Mesmo com o risco de parecer tautológico, podemos dizer: pobre é aquele/a para quem o Evangelho é Boa Nova. Esta descrição não identifica automaticamente a pobreza com situação social e econômica, mas estabelece com ela uma relação muito estreita; e, simetricamente, não condena o ter de maneira automática, embora indicando o perigo real que implica em si mesma. Por outro lado, esta descrição recorda-nos que a pessoa de Jesus e a sua mensagem não foram para todos uma "boa nova"; e que os obstáculos para a sua aceitação são de gêneros diversos; sem dúvida, também sócio-econômicos (cf. o jovem rico, Mc 10,17-22 et par.), mas não são os únicos motivos, e talvez nem mesmo aqueles que, afinal, determinam essa recusa.
Com as palavras do cântico de Nossa Senhor, o Magnificat, podemos dizer que a atitude humana de auto-suficiência é o contrário desta "pobreza", que leva a recusar a Boa Nova do Evangelho e, no fundo, o próprio Jesus, e se manifesta em três direções: orgulho –poder –dinheiro. "Dispersou os que têm planos orgulhosos no coração – derrubou os poderosos de seus tronos – e mandou embora os ricos de mãos vazias" (Lc 1,51-53).
Recordemos o texto de Pr 30,8-9:
Não me dês indigência nem riqueza,
mas concede-me apenas minha porção de alimento.
Isto para que, estando farto,
eu não seja tentado a renegar-te
e comece a dizer: "Quem é o Senhor?"
Ou, tendo caído na indigência, me ponha a rouba
e profane o nome do meu Deus.
Quem tudo tem, é tentado a dizer (talvez não com as palavras, mas com a atitude): "Quem é Deus? Porque preciso dEle, se eu me basto a mim mesmo?". Por outro lado, porém, não podemos absolutamente ignorar a dificuldade de crer no Amor de Deus por aqueles que não têm nem mesmo o indispensável, para si e para os seus, em vista de uma vida digna de seres humanos, filhos/as de Deus.
Mudando um pouco a perspectiva, mas sempre em nossa sensibilidade carismática, podemos esclarecer este aspecto central na missão de Jesus. Conhecemos muito bem a valorização que o Senhor faz dos pequenos, até mesmo convidando-nos a assemelharmos/sermos como eles, caso contrário, não entraremos no Reino de Deus.
Infelizmente, nem sempre é fácil precisar qual aspecto da infância o Senhor deseja sublinhar: haveria muitos elementos típicos dessa idade, aos quais Jesus certamente não quer referir-se. Na realidade, Ele mesmo nos dá a resposta, embora devamos dizer que muitas vezes passa inobservada. No texto de Marcos, o mais antigo, é-nos dito claramente: "Quem não acolher/receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele" (Mc 10,15). A palavra chave é o verbo "acolher/receber" (no original grego). E isso nos leva à questão: Como recebem as crianças o que lhes é dado? A resposta é muito simples, e indiscutível: com alegria e sentido de reconhecimento, justamente porque não "merecem" o que recebem.
Infelizmente, como vimos em outra reflexão, à medida que caminhamos na vida, perdemos muito freqüentemente este sentido de gratuidade, e com ele também a alegria e o sentido da gratidão: "A simplicidade, aquela que o Novo Testamento chama de simplicitas, não é outra coisa que 'confiança no amor'".1
Neste sentido, é preciso levar a sério o caráter religioso da missão de Jesus; e isso deve levar-nos, como conseqüência, a definir o perfil da sua predileção radical, e também, sem qualquer dúvida, mais "escandalizadora", sem esquecer nem minimizar a sua ilimitada compaixão pelos mais pobres, doentes, marginalizados, com os quais estabelece total solidariedade; falamos da sua predileção pelos pecadores, por aqueles que estão mais distantes de Deus, justamente porque são os que mais precisam do seu Amor e do seu Perdão; e, além disso, são aqueles que mais estão dispostos a receber com alegria e sentido de reconhecimento típico da criança, o que lhes é oferecido como dom: a misericórdia de Deus e a salvação (recordemos o caso "exemplar" de Zaqueu, Lc 19,1-10).
Sem dúvida, numa sociedade teocrática como a de Israel, isso comportava também o desprezo "social", mas subtrair-se-ia o cerne da missão de Jesus mudando a categoria de "pecador" à categoria social de "marginalizado". Não é pela marginalização social que Jesus mostra a sua predileção pelos pecadores, mas porque eles estão em perigo de se perderem. Não levar isso a sério faz com que o Cristianismo se torne um movimento social que, sobretudo em nosso tempo, se converte numa ONG, freqüentemente irrelevante e obsoleta. Podemos afirmar algo semelhante quanto ao nosso trabalho salesiano, na medida em que não mire a realizar e manifestar esta maravilhosa síntese entre busca da salvação e promoção integral.
Tudo isso, talvez, seja aceito como princípio; nem sempre, porém, se torna critério de ação e estratégia, mesmo social; no fundo, deveria ser a modalidade com que a Igreja oferece um serviço insubstituível, pela sua identidade mais profunda, para a transformação da sociedade, sobretudo diante da injustiça e da idolatria do poder e do dinheiro, que parecem crescer sem medidas.
Tudo isso reflete a profunda convicção do cristão, ensinada pelo Mestre: o mal contra o qual queremos lutar não procede, no fundo, das estruturas sociais, políticas ou econômicas, mas do coração do homem (cf. Mc 7,20), convencidos de que "só o amor é capaz de transformar de modo radical as relações que os seres humanos tecem entre si" (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 4).
2.- "... com Dom Bosco reafirmamos a preferência pela juventude pobre..."
O que dissemos acima não elimina, de modo algum, a nossa preferência carismática, mas ilumina, e nos ajuda a insistir, novamente, na síntese tipicamente salesiana da nossa Missão: de um lado, compartilhando a Missão universal da Igreja (cf. C 3), que é fundamentalmente religiosa, e, de outro, enfrentando e oferecendo respostas concretas à problemática social e econômica do nosso Mundo. Devemos reafirmá-lo claramente: os nossos destinatários são "os jovens, especialmente os mais pobres" (C 26), "sobretudo os jovens que, por causa da pobreza econômica, social e cultural, às vezes extrema, não têm possibilidade de êxito" (R 1).
Esta fusão define a nossa identidade salesiana na realização da Missão: o nosso Carisma afirma claramente o tipo de pobreza à qual nos referimos; mas, ao mesmo tempo, sublinha também porquê nos dedicamos aos jovens que vivem nessa situação. A este segundo aspecto responde (além da frase de Regulamentos 1), o mesmo artigo constitucional: "os jovens vivem uma idade em que fazem opções fundamentais de vida que preparam o futuro da sociedade e da Igreja. Com Dom Bosco reafirmamos a preferência pela 'juventude pobre, abandonada, em perigo', que tem maior necessidade de se amada e evangelizada, e trabalhamos especialmente nos lugares de mais grave pobreza" (C 26; negrito nosso, cursivo original).
O Reitor-Mor, ao comentar este traço essencial do nosso Carisma, escreve-nos:
convém fazer notar que essa predileção de Dom Bosco não deriva somente da magnanimidade do seu coração paterno, “grande como a areia do mar”, nem da situação desastrosa da juventude do seu tempo – como também do nosso –, nem muito menos de uma estratégia sociopolítica. Há em sua origem uma missão de Deus: “O Senhor indicou a Dom Bosco os jovens, especialmente os mais pobres, como primeiros e principais destinatários da sua missão” (C 26). E é bom lembrar que isso aconteceu “com a maternal intervenção de Maria” (C 1); com efeito, Ela “indicou a Dom Bosco seu campo de ação entre os jovens e constantemente o guiou e sustentou” (C 8). Nesse sentido é “normativa”, e não simples episódio, a atitude que Dom Bosco assumiu num momento decisivo da sua existência sacerdotal, diante da marquesa Barolo e da oferta, certamente apostólica e santa, de colaborar em suas obras, abandonando os meninos esfarrapados e sós. “A senhora tem dinheiro; com facilidade encontrará quantos padres forem necessários para os seus institutos. Com os pobres meninos não é assim... (ACG 384, 19).
Dom Bosco acrescenta aqui uma motivação, que não é apenas afetiva ou pedagógica, mas teológica: "Os meus pobres jovens só têm a mim..." É a expressão, sobretudo simples da consciência de ser uma mediação, uma epifania do Amor de Deus para eles; sem ele, todos estes "últimos" estarão carentes da manifestação do Amor de Deus e, conseqüentemente, da experiência de Deus como Pai. Dito com uma expressão evangélica, sem ele, eles estariam como ovelhas sem pastor. "Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão por eles, porque eram como ovelhas sem pastor" (Mc 6,34; Mt 9,36 acrescenta: "cansadas e abatidas...").
3.- "pobres, abandonados e em perigo..."
Na mesma Carta, o P. Pascual acrescenta: "Seria muito interessante aprofundar as características típicas dos destinatários preferenciais da nossa missão: 'jovens pobres, abandonados e em perigo'. Mesmo que hoje se fale de “novas pobrezas” dos jovens, a pobreza refere-se diretamente à sua situação sócio-econômica. O abandono reporta-se à “qualificação teológica” de privação de sustento por falta de uma mediação adequada do Amor de Deus; o perigo remete a uma fase determinante da vida, a adolescência – juventude, que é o tempo da decisão, depois da qual muito dificilmente se podem mudar os hábitos e as atitudes adotadas. Tal aprofundamento serve como ponto de partida para determinar em cada inspetoria (cf. R 1) e comunidade, quais são os destinatários prioritários no hic et nunc concreto, tendo em conta, certamente, critérios há pouco assinalados" (ACG 384, 20).
Aqui, como também alhures, encontramos a extraordinária clarividência e capacidade de síntese de Dom Bosco, entre a problemática sócio-econômica realmente pungente, a visão pedagógica excepcional e a fé inabalável no Amor de Deus por todos, particularmente pelos mais necessitados. Fiquemos a contemplar esta "maravilha da Graça", que è o nosso Pai (a quem dedicaremos outra reflexão). Procuremos visualizar agora estas três expressões como dimensões de uma realidade global, que caracteriza os nossos destinatários prioritários, perspectiva que nos permite concretizar, em nosso trabalho educativo-pastoral com eles, a Missão que Deus nos confia.
É necessário, por outro lado, recordar que a Missão não depende dos destinatários, como se fosse opcional ou aleatório ou dependesse das circunstâncias, ser ou não ser sinais e portadores do Amor de Deus! A Missão não é "negociável". Estamos todos convencidos: a missão salesiana jamais será impossível, ou irrelevante; o que nos deve preocupar é se seremos sempre fiéis a ela e, através dela, a Deus e aos jovens...
O que acontece freqüentemente não é tanto esquecer que a situação dos nossos destinatários não precede a Missão, mas esquecer que esta situação deve preceder as atividades e as obras. Procurando esquematizar isso, podemos dizer que, às vezes, o nosso discernimento e as nossas decisões não são totalmente adequados, porque procedemos desta maneira:
Missão – atividades e obras - destinatários
quando, na fidelidade à Vontade do Senhor, deveria ser:
Missão – destinatários – atividades e obras.
Não se trata de ver quem pode freqüentar e usufruir de nossas atividades e obras (muitas vezes, infelizmente, não são os que deveriam!), mas quais as atividades e obras que devemos realizar, hic et nunc, em favor daqueles aos quais o Senhor nos quer enviar, de maneira prioritária.
Falamos anteriormente de uma "síntese vital" que pudesse englobar as três dimensões que caracterizam os nossos destinatários. Talvez possamos dizê-lo com estas poucas palavras: segundo o exemplo de Jesus, ao concretizar a sua missão universal, Dom Bosco se sente "carismaticamente sensibilizado" por um perigo que pode pôr obstáculos à felicidade temporal e eterna ("salvação") de seus jovens: o abandono em que se encontram diante de Deus e dos outros, provocado pela sua situação de pobreza, que freqüentemente é realmente dramática.
Se no início falamos da pobreza como um valor, a ponto de ser assumido na vida consagrada com voto, não podemos esquecer que, no interior da ambigüidade da palavra, há também uma situação sócio-econômica que vai contra o plano amoroso de Deus; que torna difícil e, muitas vezes, impossível, para quem vive nessa situação, sentir-se filho/a de Deus, amado/a pessoalmente por Ele. Como podemos falar do Amor de Deus a uma pessoa que não tem para si ou para os seus o indispensável para viver?
Parece-me interessante aprofundar ainda a resposta dada por Dom Bosco (ou melhor: o chamado que sentiu da parte de Deus) diante da situação juvenil do seu tempo, que se torna normativa também para nós. É óbvio que não foi ele o único a perceber a problemática dos jovens abandonados em Turim, e nas grandes cidades (situação, de algum modo, qualitativamente nova); muitas personalidades relevantes assumiram posição explícita diante dela, a partir de perspectivas também diversas. Há toda uma corrente da literatura, por exemplo, que denuncia essa situação; podemos recordar, entre tantos livros representativos dessa escola, a clássica obra de Charles Dickens, Oliver Twist. Karl Marx, por sua vez, procura transformar essa situação injusta a partir de uma posição atéia, e dá a sua solução pessoal. Dostoievski sentiu também de forma muito aguda o sofrimento dos inocentes, particularmente das crianças, que se tornou o motivo mais forte contra a fé em Deus. Dom Bosco, porém, em nada menos sensível que todos eles, não se deteve numa posição teórica ou de ateísmo, mas de teodicéia: em nome do Deus de Jesus Cristo e do seu Amor doou toda a sua vida pelo bem integral – temporal e eterno – do lumpemproletariado infantil e juvenil.
Para concluir esta seção, gostaria de acrescentar uma reflexão pessoal. Ou seja, referir-me a uma palavra para designar os nossos destinatários prioritários que, embora não literalmente evangélica, exprime em seu sentido etimológico uma grande riqueza. Refiro-me à palavra "in-significante". Na semântica habitual do termo, tende a identificar-se com algo "pequeno"; contudo, a origem etimológica não vai nessa direção. Demos um exemplo: uma obra salesiana significativa (pela presença dos salesianos, pela proximidade com os jovens que permite conhecê-los pessoalmente, pela qualidade da educação e da formação cristã etc.), pode correr o risco de crescer tanto, a ponto de se tornar insignificante, isto é, que já não significa nada, que não é mais sinal daquilo que deveria manifestar.
Ao tomá-lo nessa acepção etimológica, e jogando um pouco com as palavras, seremos sinal do Amor salvífico de Deus enquanto, do ponto de vista humano, os nossos destinatários forem os mais insignificantes. Como diz o Reitor-Mor em sua Carta sobre a Eucaristia, a respeito do convite ao banquete e da sua relação com a pobreza:
Não é o convite interessado aos amigos e parentes (cf. Lc 14,12-13; Mt 5, 46-47), o que não teria nada de mal, mas que não se torna 'sinal evangélico', nem produz o escândalo salutar de reconhecer que isso "também fazem os pagãos" (Mt 5,47), mas "a predileção evangélica pelos mais pobres e abandonados, pelos marginalizados, pelos pecadores, por todos os humanamente insignificantes" (ACG 398, p. 32).
4.- "A missão dá a toda anossa existência o seu tom concreto..." (C 3)
No CG22, o então Reitor-Mor, P. Egídio Viganò, esclareceu de maneira teologicamente definitiva, o sentido da consagração na vida religiosa (concretamente, salesiana), ao recordar que, no espírito do Concílio Vaticano II, esta consagração tem duas características fundamentais: é obra de Deus (só Ele consagrada: não somos nós que "nos consagramos" a Ele) e é omnicompreensiva: não se refere a um "setor" da nossa vida (como seria, por exemplo, se se referisse apenas aos conselhos evangélicos), mas abarca todas as suas dimensões. Neste sentido, consagração e missão não são duas "partes", mas, constituem por duas diversas perspectivas específicas, o "todo" da nossa vida. Em certo sentido, tudo é consagração e tudo é missão. Caso contrário, a frase que intitula este parágrafo seria desmentida pela realidade vivida.
Tentando concretizar isso, parece-me que convém estabelecer uma relação entre esta predileção pelos jovens mais pobres e os grandes temas que estamos procurando desenvolver nestes Exercícios.
1.- Em primeiro lugar, a gratuidade. Parece-me que está totalmente fora de discussão este traço fundamental do amor; em todo caso, pode estar em perigo na medida em que nos afastamos da nossa "predileção carismática". Por outro lado, convém sublinhar novamente: esta gratuidade não exclui de modo algum, ao contrário, cabe e "exige" (pela sua própria natureza) uma resposta que, no caso do jovem pobre e abandonado, torna-se plena, justamente porque ele não pode "dar" nada; a sua correspondência ao amor manifesta-se ao doar-se, por sua vez, de maneira total.
Entre muitíssimos fatos da vida do nosso Pai, gostaria de escolher apenas um deles, particularmente expressivo e, em sua simplicidade, comovente. Refere-se a um jovenzinho dos primeiros tempos do Oratório que
"vinha das compras. Tinha na mão, com outras provisões, uma caneca cheia de vinagre e uma garrafa de óleo. Ao ver Dom Bosco, pôs-se a saltar de alegria e a gritar: Viva Dom Bosco! – Dom Bosco rindo, disse-lhe: – És capaz de fazer como eu? – e ao dizer isso, batia as palmas das mãos uma contra a outra. O menino, fora de si pelo contentamento, coloca a garrafa debaixo do braço e grita de novo: – Viva Dom Bosco! E bate as mãos. Naturalmente, para fazer isso deixara cair a caneca, garrafa e tudo que tinha, e os vidros se romperam. Àquele rumor ele fica um instante como que assombrado e depois se põe a chorar dizendo que, ao voltar para casa sua mãe haveria de espancá-lo" (MB II,94-95).
Tudo foi resolvido, graças à generosidade da dona da mercearia...
2.- Também aqui sublinha-se ao máximo a importância da expressão-manifestação do amor. A Missão salesiana pressupõe que nossos destinatários prioritários, mesmo sendo objeto privilegiado do Amor de Deus, não fazem essa experiência; de aqui a necessidade, mais urgente do que qualquer outra, de propiciar esta percepção na maneira mais forte e concreta possível. Como disse o P. Pascual: procurar oferecer o mais possível àqueles aos quais, infelizmente, a vida deu o mínimo. E, sem dúvida, um elemento fundamental é a possibilidade efetiva da sua promoção integral, através da educação; caso contrário, ficam apenas como belas palavras ou piedosos desejos.
3.- Há, ainda um outro aspecto, que me parece particularmente importante e delicado, sobretudo em nossos tempos: a exigência que esta acolhida do Amor de Deus seja percebida através da manifestação (paterna-materna-fraterna) do nosso ágape-eros... como o fazia Dom Bosco. E isso, é preciso que o digamos logo, nada tem a ver com a sexualidade, e é totalmente contrário a qualquer desvio perigoso.
Há um trecho da Ratio 2000 – no fascículo sobre As Admissões – que sintetiza este traço, de maneira particularmente acertada. Significativamente, faz alusão ao perigo que este amor, que se manifesta em estilo salesiano, possa confundir-se com a sua falsificação radical: em concreto, a contra-indicação homossexual. Sabemos que, por razões psicológicas particularmente sutis, esta inclinação acentua-se, sobretudo no relacionamento com meninos frágeis e "indefesos", como deveria, por lado, ser o destinatário típico da nossa ação educativa e pastoral.
Diz o texto: "Pelas suas características peculiares, ela (a vocação consagrada salesiana) comporta exigências específicas em relação à homossexualidade. Trata-se, de fato, de uma vocação-missão que se vive em comunidades masculinas, que leva a agir em contato constante com a juventude pobre, de preferência masculina, carente de atenção e de afeto, com estilo de família e método educativo que se exprimem através da amorevolezza, a capacidade de fazer-se amar e de demonstrar amor" (As admissões, n. 77, pp. 56-57).
Devemos estar atentos, mais do que nunca, para evitar qualquer tipo de desvio neste campo (que, por outro lado, hoje é mais perigoso do que nunca); mas não podemos, por temor dessa falsificação, renunciar a um traço específico e essencial do nosso Carisma! A identidade autêntica da nossa castidade consagrada permite-nos ser "testemunhas da predileção de Cristo pelos jovens, permite-nos amá-los sinceramente de modo que 'saibam que são amados', e nos torna capazes de educá-los para o amor e a pureza" (C 81).
4.- Outro aspecto, muito importante e concreto, que o Reitor-Mor quis sublinhar em sua Estréia 2008, é:
"Promover os direitos humanos, particularmente dos menores, como via salesiana para a promoção da cultura da vida e a transformação das estruturas. O Sistema Preventivo de Dom Bosco tem uma grande projeção social (...). A educação aos direitos humanos, particularmente aos direitos dos menores, é a via privilegiada para realizar, nos diversos contextos, este empenho de prevenção, de desenvolvimento humano integral, de construção de um mundo mais équo, mais justo, mais saudável. A linguagem dos direitos humanos permite-nos também o diálogo e a inserção da nossa pedagogia nas diversas culturas do nosso mundo".
Gostaria de concluir recordando novamente a frase final na seção constitucional sobre a castidade: o salesiano "recorre com filial confiança a Maria Imaculada e Auxiliadora, que o ajuda a amar como Dom Bosco amava" (C 84).
1 JOSEF PIEPER, Sull’Amore, Brescia, Morcelliana, 1974, p. 58, ao citar Stanislaus Graf von Dunin-Borkowski SJ.