2.1. Os antecedentes imediatos


2.1. Os antecedentes imediatos



ATA DE FUNDAÇÃO DA SOCIEDADE DE S. FRANCISCO DE SALES,

18 DE DEZEMBRO DE 1859


Jesús-Graciliano González




Introdução

Em 18 de dezembro de 1859 deu-se a reunião de fundação da Sociedade de São Francisco de Sales. Dom Bosco reuniu em seu escritório 17 de seus auxiliares e, com eles, deu origem oficial à Congregação que vinha projetando há algum tempo. Na reunião, foi eleito o primeiro Conselho diretivo e, desde esse momento, deu início à caminhada da Sociedade. Os participantes da reunião tiveram uma clara visão histórica da transcendência do acontecimento e determinaram que se fizesse uma ata precisa com tudo o que ali acontecia. A ata foi lida em público e aprovada por todos. Determinou-se também que o original da ata fosse conservado e que, para garantir sua autenticidade fosse assinado por Dom Bosco, recém designado Reitor-Mor, e pelo P. Alasonatti, nomeado primeiro Prefeito da Sociedade. Acreditamos que é justo fazer a edição dessa ata, que se conserva no Arquivo Central Salesiano, no ano em que se completa o 150º aniversário da fundação da Congregação.



1. Ambiente fundacional no Oratório nos anos 1855 a 1859



Desde 1855, ano em que a lei contra as Ordens religiosas foi aprovada em Turim, até 1865, quando os primeiros salesianos fizeram a profissão perpétua, viveu-se no Oratório um verdadeiro ambiente fundacional de grupos e associações. Dom Bosco estava num momento de plenitude vocacional e de iniciativa educacional, dedicado a obras de caridade e apostolado juvenil e popular. Suas atividades eram inúmeras, e ele logo percebeu que precisava de colaboradores para garantir seu funcionamento e continuidade, assim como a unidade de orientação, direção e métodos. Ninguém melhor do que os mesmos jovens que eram educados em seu Oratório, entre os quais havia muitos com vocação sacerdotal e muito ligados à sua pessoa.

Data desses anos a conhecida Introdução ao Plano de Regulamento, em que Dom Bosco traça o ideal que queria ver plasmado nos novos sacerdotes que se propunha a formar. Segundo ele, o sacerdote devia ser pai, irmão e amigo dos jovens.1 Era o tipo de sacerdote que ele mesmo praticava e que nos deixou literariamente descrito no colóquio após o episódio exemplar do encontro com Bartolomeu Garelli.2

Para tanto, começou a dar vida a uma série de associações ou grupos, que deviam ajudá-lo na tarefa de assistência e educação dos meninos que atendia em seus oratórios: associações de caráter religioso, de tipo caritativo, ou grupos comprometidos em atividades coletivas, como companhias, scola cantorum, banda de música, grupos de teatro etc.

Logo começou a funcionar no Oratório a Companhia de São Luís, que serviu de modelo para a criação das outras companhias, que foram surgindo nesses anos. A peste que assolou a cidade de Turim em 1854 deu ocasião à companhia de colaborar ativamente na assistência aos empestados. Passada a peste, organizaram-se nos Oratórios de S. Francisco de Sales, S. Luís e Santo Anjo da Guarda, as conferências juvenis de S. Vicente de Paulo, que faziam obras de caridade e assistência aos jovens dos oratórios.3

A companhia da Imaculada foi fundada em 1856, com a colaboração ativa de alguns alunos do Oratório aspirantes ao sacerdócio, entre outros Domingos Sávio, que foi um fervoroso animador; o dinâmico clérigo José Bongiovanni, que redigiu o regulamento; e José Rocchietti que, apesar da saúde frágil, estava sempre disposto a colaborar no Oratório. A companhia orientava-se especialmente a honrar a Virgem, colocando-se sob o seu patrocínio e entregando-se inteiramente a serviço dela. Inspirava-se naquela que mais tarde será definida como "espiritualidade juvenil salesiana", que comporta alguns elementos distintivos fundamentais: observância rigorosa das normas da casa; ajuda espiritual aos colegas, principalmente com o bom exemplo, mas também com outras obras de caridade; frequência dos sacramentos; alegria etc. Padre Braido, ao falar dessa companhia, assinala como princípio seguro de ascese prática, a união íntima entre caridade e o binômio obediência-castidade: "A caridade estabelece-nos na perfeição, mas só com a obediência e a castidade podemos adquirir esse estado que tanto nos aproxima de Deus".4 As práticas de piedade eram aquelas comuns a todos os alunos do Oratório, só que os sócios deviam fazê-las com maior perfeição. É também importante o fato de a coesão do grupo manter-se firme graças à subordinação de tudo ao juízo dos Superiores.

Não resta dúvida de que se tratava de um embrião de associação juvenil religiosa, com clara orientação para uma Congregação de vida consagrada. De fato, os primeiros salesianos surgiriam entre seus sócios.5

Em 1857, o clérigo José Bongiovanni, instituía a companhia do SS. Sacramento, com caráter essencialmente piedoso. O pequeno "clero", que se encarregará de manter o decoro e a solenidade das celebrações litúrgicas, surgirá mais tarde entre os mais velhos e mais fervorosos sócios dessa companhia.

Impulsionada pelo clérigo João Bonetti, surgiu em 1859 entre os aprendizes do Oratório a companhia de São José.

Essas companhias converteram-se em valiosíssimo instrumento educativo nas mãos de Dom Bosco, que se serviu de seus dirigentes e sócios para levar adiante a obra final que estava a criar ao seu redor.







2. Primeiros passos até a fundação da Sociedade de São Francisco de Sales



No ambiente de caridade ativa, piedade sincera e obediência às normas estabelecidas, vividos por esses grupos de seus colaboradores mais diretos, Dom Bosco sentia-se sempre mais animado a levar a cabo a ideia, acariciada a algum tempo, de fundar uma Sociedade que garantiria a continuidade das obras caritativas e educacionais do Oratório. Ali ele tinha fundamentalmente as bases e o elemento humano. Tratava-se de começar a dar os primeiros passos.

A experiência demonstrara a Dom Bosco que o pessoal voluntário não garantia a estabilidade, continuidade e homogeneidade da sua obra. Era preciso uma organização que proporcionasse o pessoal necessário para manter viva a ideia e o espírito original do Oratório. O melhor era uma congregação religiosa. Contudo, corriam tempos difíceis para as congregações desse tipo. As leis promovidas em Turim por Cavour e Rattazzi suprimiram muitas das ordens religiosas e confiscaram seus bens. Para fundar alguma associação, ela deveria ser uma das que foram permitidas pelas novas leis. Parece que foi numa conversa com Urbano Rattazzi, o ministro que mais propugnara e defendera as leis anticlericais, que este sugerira a Dom Bosco fundar uma sociedade contra a qual o Estado não tivesse nada a objetar. Para ele, era necessário que os membros conservassem seus direitos civis, se submetessem às leis e como livres cidadãos pagassem seus impostos ao Estado. Ninguém poderia fazer nada contra ela, porque se tratava de uma associação de livres cidadãos que se uniam e viviam em comum para uma finalidade benéfica, como outros o faziam para finalidades comerciais ou de auxílio mútuo. Dispôs-se que se esses sócios em seu foro interno aceitavam também a autoridade do Papa ou dos bispos, ou se uniam com votos privados, isso era uma questão pessoal, que não importava em nada ao Estado, desde que respeitassem suas leis.

Com essas ideias em ebulição na cabeça, Dom Bosco foi a Roma em 1858. A crônica da Viagem a Roma, que o padre Rua, companheiro de Dom Bosco, nos deixou,6 deixa-nos bastante bem informados da viagem de Dom Bosco, de suas andanças pela cidade nos passos dos primeiros papas e dos mártires, dos quais escrevia em sua História Eclesiástica, das visitas e contatos com personagens importantes do Estado e da Cúria papal. Fazem o mesmo as resenhas que encontramos nas Memórias Biográficas, nos estudos de Stella, Desramaut e Braido e em outras biografias de Dom Bosco.

Segundo Braido, sem dúvida, "Não é de todo aceitável o que se refere à finalidade principal que levara Dom Bosco a Roma, ou seja, o início da caminhada que levaria à fundação da Sociedade de S. Francisco de Sales. Podem-se avançar conjecturas, mais do que certezas, sobre os aspectos essenciais".7 Segundo essas conjecturas que tomamos de Braido, Stella e Desramaut, parece bastante claro que Dom Bosco foi a Roma para conhecer e fazer-se conhecido. Era muito importante que se tomasse conhecimento na Cúria romana daquilo que ele estava a fazer: oratórios, escolas, oficinas, internato, publicações catequéticas e apologéticas, as Leituras Católicas. A questão da consolidação e continuidade de todas essas obras seria solucionada por si mesma ao se chegar a compreender a sua extraordinária importância.

Já eram muitos em Turim, de D. Fransoni ao ministro Rattazzi, que conhecendo o bem que Dom Bosco fazia se perguntassem sobre o futuro dos oratórios, cuja continuidade eles viam como necessária. Dom Bosco, muito sensível ao problema, esperava que ao tornar conhecidas as suas obras e as dificuldades encontradas surgisse espontaneamente também em Roma a pergunta sobre o futuro das mesmas, e que fosse inclusive instado a fundar uma instituição que garantisse a sua continuidade.

Para Dom Bosco, era evidente a necessidade de fazer alguma coisa que garantisse a consolidação e continuidade de suas obras, pois vivera as dificuldades surgidas nos anos anteriores, quando tentara conseguir entre seus colaboradores unidade de critérios, finalidades, ação, métodos etc.; estes, embora dotados de boa vontade e zelo apostólico, tinham mentalidade e estilo diferentes do seu; por outro lado, ocupados como estavam em outras atividades e cargos, não dispunham nem de tempo nem da estabilidade exigidos, sempre mais imperiosamente, pela crescente atividade das obras. Por isso, há algum tempo estava a pensar numa solução, mas queria ouvir a opinião das altas hierarquias da Igreja sobre as diversas possibilidades que se ofereciam: uma simples associação de eclesiásticos e leigos? uma sociedade de membros ligados ao superior com promessa ou votos simples? ou uma verdadeira congregação religiosa de caráter diocesano ou pontifício? Embora não por escrito,8 já desenhara em sua mente um esboço de regulamento sobre uma hipotética associação religiosa.

Uma vez em Roma, e atendendo às observações feitas pelo Card. Gaude, ele o completou, redigiu e submeteu ao exame do superior geral dos Rosminianos, padre João Batista Pagani.9

É muito provável que Dom Bosco tenha falado disso tudo com Pio IX e lhe tenha exposto a conversa tida com o ministro Rattazzi. O Papa não descartou a ideia, mas aconselhou-o que os sócios se ligassem entre si com verdadeiros votos religiosos.10 Havia outras associações que mais ou menos caminhavam dessa mesma forma: os Irmãos das Escolas Cristãs, os Rosminianos, os Oblatos de Maria etc.




Ao retornar a Turim, Dom Bosco começou a dar corpo a suas ideias, que não eram apenas ideias, mas fatos concretos realizados nos anos anteriores. Com efeito, há alguns anos ele orientava alguns de seus melhores alunos para o sacerdócio. Primeiramente, Bellia e Reviglio, que chegaram a ser sacerdotes, embora tenham se integrado depois em suas respectivas dioceses; mais tarde foram vestindo o hábito talar em diversos momentos: João Cagliero em 2 de novembro de 1851; João Batista Francesia em 22 de junho de 1852; Miguel Rua e José Rocchietti em 24 de setembro do mesmo ano; e outros ainda nos anos seguintes. Com estes clérigos Dom Bosco garantia a assistência nos diversos ambientes dos oratórios.

Em 5 de junho de 1852, de acordo com aquilo que o padre Rua deixou escrito, Dom Bosco reuniu Ângelo Guanti, Tiago Bellia, José Buzzetti, Francisco Bosco, João Cagliero, João Batista Francesia, Germano Giovanni, Gianinati, Luís Marchisio, Ângelo Savio, Estevão Savio, Miguel Rua e João Turchi; que se comprometeram a rezar todos os domingos, a sós, as sete alegrias de Maria.11 Excetuando-se o padre Ângelo Guanti, de 38 anos, a idade ia dos 20 anos de Buzzetti aos 12 de Marchisio; Rua tinha 15, Cagliero e Francesia, 14, e Ângelo Savio, 17. Em 23 de março de 1855, diante de Dom Bosco, Miguel Rua fazia de modo privado os votos de pobreza, castidade e obediência. Em 26 de janeiro de 1854, Dom Bosco propunha a Tiago Artiglia, João Cagliero, Miguel Rua e José Rocchietti fazerem um "exercício prático de caridade", que na linguagem do Oratório significava o trabalho de animação oratoriana. O compromisso poderia ser confirmado posteriormente com voto. "Desde aquele dia, escreve o padre Rua, foi dado o nome de salesianos aos que se propuseram e se propunham tal exercício".12 Rua, Rocchietti, José Bongiovanni, Pettiva e Momo foram com Dom Bosco, nos dias 14 a 23 de julho de 1856, para um curso de Exercícios Espirituais em Santo Início (Lanzo). Em 1857 outros jovens muito ligados a Dom Bosco vestiram a batina: João Bonetti e Celestino Durando.

Estes são alguns dos fatos pelos quais Dom Bosco foi preparando sabiamente o ambiente, para, dessa forma, poder plasmar mais segura e facilmente suas ideias de fundar uma Sociedade religiosa.



2.2. O momento decisivo: dezembro de 1859



1859 foi um ano muito importante para Dom Bosco. Durante o ano sucederam-se vários fatos de fundo diverso: publicação da vida de Domingos Sávio; nova edição da História da Itália, acolhida com duras críticas pela imprensa oficial e defendida pela imprensa católica; e, sobretudo, a segunda guerra da independência italiana (26 de abril de 1859 a 12 de julho de 1959) quando se enfrentaram o exército franco-piemontês e o do império austríaco, que terminou com a união da Lombardia ao Reino da Sardenha, pondo assim as bases para a criação do Reino da Itália. Dom Bosco tinha pressa de estabelecer solidamente o grupo de seus colaboradores para que não acontecessem os fatos de 1848. Desramaut suspeita que o ato de desobediência de um grupo de músicos do Oratório13 fez com que ele refletisse sobre possíveis atos de rebeldia em relação aos acontecimentos políticos que se aproximavam. Por isso, começou a fazer uma série de reuniões com seus colaboradores, alguns dos quais tinham feito voto de permanecer com Dom Bosco, outros uma simples promessa. Nessas reuniões passou a explicar-lhes e esclarecer-lhes sobre o era uma sociedade religiosa e a ideia que tinha de fundar uma nova. No dia da Imaculada, à tarde, anunciou publicamente que no dia seguinte, sexta-feira 9 de dezembro, faria uma reunião especial em seus aposentos, depois que os meninos tivessem ido repousar. Os que deviam participar entenderam perfeitamente a que se referia o convite e pressentiram a importância daquela reunião.

De fato, reuniram-se em 9 de dezembro e, depois de invocarem a luz do Espírito Santo e a assistência de Maria Santíssima, Dom Bosco fez uma breve alusão ao que dissera nas reuniões anteriores; descreveu o que era uma congregação religiosa, sua beleza, a honra imortal de quem se consagrava inteiramente a Deus, a facilidade de salvar a própria alma, o acúmulo inestimável de merecimentos que se pode adquirir com a obediência, a dupla coroa que espera o religioso no paraíso. E, com visível comoção, anunciou que chegara o momento de dar forma àquela congregação, na qual estava pensando há muito tempo. Esclareceu-lhes que, de certo modo, a congregação já existia, pois a maioria deles já lhe pertencia com o espírito ou mediante uma promessa ou voto, e com a observância das regras tradicionais, mas que, em consciência, não se podia declarar obrigatória. Acrescentou que seriam inscritos nessa congregação somente os que, depois de madura reflexão, tivessem a intenção de emitir, no devido tempo, os votos de castidade, pobreza e obediência.14

Chegara, portanto, o momento da decisão para todos os que quisessem fazer parte da Pia Sociedade de S. Francisco de Sales. Todos teriam uma semana para refletir e tratar do assunto com Deus. Dom Bosco pedia aos que não quisessem aderir à Sociedade, que não fossem mais às reuniões. Recordemos que nesse tempo de reflexão, segundo narra o P. Lemoyne, o clérigo Cagliero, que já se decidira anteriormente a ficar para sempre com Dom Bosco, depois de uma agitada e profunda reflexão respondeu a alguém que dizia "Dom Bosco quer-nos fazer frades": "Frade ou não frade, é a mesma coisa. Estou decidido como sempre estive a jamais me separar de Dom Bosco". E escreveu a Dom Bosco colocando-se inteiramente à sua disposição.15 Provavelmente, a maior parte do outros fez a mesma reflexão. Dom Bosco já se tinha encarregado anteriormente de mostrar-lhes as vantagens da vida religiosa sobre a vida dos que preferiam exercer o próprio sacerdócio em suas cidades ou perto de suas famílias.16



1 2.3. Primeira redação das Constituições da Sociedade de S. Francisco de Sales

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