Bakaru Rowatsu's (noticias misionarias)| 09


Missão Salesiana de Mato Grosso

ANIMAÇÃO MISSIONÁRIA INSPETORIAL

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO INDÍGENA (CDI)

Av. Tamandaré, 6000 - Jd. Seminário

Caixa Postal 100 - UCDB

79.117-900 Campo Grande MS

Fone (067) 312-3600 / 3731 Fax (067) 312-3301

E-mail: lachnitt@ucdb.br




"BAKARU-ROWATSU'U-Notícias Missionárias"

é de Circulação Interna




Coordenação: Delegado Inspetorial de Animação Missionária:

Pe. Georg Lachnitt SDB





Digitação e Diagramação: Georg Lachnitt





Impressão: Mariza Etelvina Rosa Irala

Centro de Documentação Indígena

UCDB - Campo Grande MS




Capa:

BAKARU, palavra Bororo, significa: o que se conta, notícia

ROWATSU'U, palavra Xavante, significa: o que se conta amplamente, notícia

Apresentação



Este número de BAKARU-ROWATSU'U- Notícias Missionárias relata os encontros de Pastoral Indigenistas, com suas preocupações, seus projetos e também a retomada de antigos projetos parados por algum tempo. Fica sempre o desafio de uma maior participação solidária de novos missionários, no sentido mais amplo que essa palavra possa ter.

Se no número anterior de NM foi publicada a situação precária dos Xavante em Marãiwatsédé, desta vez podemos noticiar a retomada e ocupação de seu território que de direito lhes compete. Como podemos verificar nas duas publicações, os direitos dos índios ainda não são adequadamente respeitados, até mesmo por políticos.

O Reitor-Mor dos salesianos, Pascual Chávez V., por ocasião de eles receber o título de "doutor honoris causa" na Universidade de Turim, mostra o esforço dos missionários pela saúde do povo ainda trabalham. Para isso não faltam esforços criativos originais.

No estudo sobre o Mito segue uma reflexão sobre as funções do mesmo. Creio que essa reflexão seja de grande importância para uma compreensão da história, da filosofia e da ritualidade de um povo.

Como muitos gostariam ver alguns vídeos sobre a questão missionária e indígena, faço uma alenco inicial de videos existentes nas locadoras. Penso que muitos irmãos podem sugerir outros tantos. Oportunamente podemos elencar também vídeos existentes apenas no CDI e que podem ser assistidos em nossas dependências.

Da Jornada Missionário Mundial dos salesianos repasso um estudo valioso sobre o tema da inculturação nos Santos Padres para termos consciência de que este tema sempre fez parte da vida das comunidades cristãs desde as origens do cristianismo.

Continuamos recebendo contribuições de reflexões para serem publicadas em NM nas próximas publicações. NM pretende ser, desde o início, uma publicação missionária NOSSA, e não de seu coordenador.


Muita Animação Missionária!

Pe. Georg Lachnitt SDB

1. Reunião da Pastoral Indigenista de Barra do Garças

No dia 08 de setembro reuniram-se nas dependências da Cúria Diocesana missionários e missionárias representantes das 04 paróquias missionárias. Dos párocos da cidade que constatam indígenas em suas paróquias, desta vez apenas compareceu o Pe. Giuglio Boffi. A contribuição dele foi muito valiosa, pois manifesta a complexidade do problema. Podemos citar da contribuição os seguintes elementos:

1. Em termos de Pastoral, não há descrição da realidade indígena com que os párocos e paroquianos da cidade se deparam.

2. Pode-se perguntar, se a problemática dos índios na cidade provêm da cidade ou dos indígenas.

3. Têm-se conhecimento de vários projetos que foram desenvolvidos em favor dos indígenas, porém se gostaria ver a continuidade dos mesmos, para que de verdade sejam benéficos a eles.

4. Há jovens indígenas que vêm estudar na cidade. Mas parecem estar abandonados na cidade, ninguém se importa com eles. Como cuidar deles na cidade, no sentido de acompanhá-los em seus estudos e como oferecer-lhes um ambiente mais indígenas, um lugar onde se sintam "em casa".

5. Quanto ao aproveitamento deles nos estudos na cidade, a situação é complexa em si como a situação de minorias em geral. Eles, por questão de diversidade de língua, encontram sérias dificuldades. Não é bom negócio, empurrar o índio por compaixão para se promover.

6. Nas escolas nas aldeias eles conseguem assimilar melhor os conteúdos, uma vez que lá se liciona na lingua materna. No entanto, alguns tantos deixam a escola da aldeia e procuram estudar na cidade. Os motivos para isso são diversos e para nós nem sempre são convincentes.

7. Certo é que eles procuram um conhecimento melhor da lingua nacional, cujo ensino nas aldeias também mereceria prioridade.

Além das contribuições do Pe. Giuglio foram observadas ainda outras questões:

- Foi comunicado que o Pe. Cícero de Campinápolis está disposto a oferecer maior ajuda no atendimento aos indígenas.

- Pe. Kian afirma poder constatar já uma reação dos indígenas contra o alcoolismo e o uso de drogas; mas o problema é um desafio tremendo;

- Pe. Giuglio considera que a questão da autonomia dos indígenas é uma prioridade e deve ser promovida decididamente;

- A diocese caracteriza-se pela presença de duas minorias étnicas, os Bororo e os Xavante. Como levar os párocos com os paroquianos que entram em contato com eles a um maior compromisso.


2. Reunião da Região III da Diocese de Barra do Garças

No dia 09 de setembro reuniram-se missionário e missionárias em Merúri, provindos das paróquias São José de Sangradouro, Sagrado Coração de Jesus de Merúri, Nossa Senhora Auxiliadora de São Marcos e São Domingos Sávio das aldeias das outras Áreas Xavante.

O tema principal da reflexão versou sobre o III Seminários sobre a Inculturação da Liturgia entre os Povos Indígenas, realizado em março passado, onde se retomou a reflexão sobre a inculturação da Iniciação Cristã entre os Bororo e os Xavante.

A Realidade:

BORORO:

No contexto eclesial da época, o funeral Bororo foi supresso e os ritos cristãos foram impostos. Assim se criou um cristianismo de face universal.

XAVANTE:

Embora a evangelização tenha começado antes do Concílio Vaticano II, facilmente se passou a uma nova visão dos métodos.

Em São Marcos, hoje se faz um discernimento: Os Xavante praticam seus rituais culturais, com ADABATSA, DANHONO e DARINI.

Pergunta-se como ser cristão, sendo e permancendo Xavante.

Há uma reflexão de como relacionar o batismo Xavante praticado no DARINI e o batismo cristão. Qual é a diferença entre os dois?

Em São Pedro e Santa Clara, os anciãos solicitam os sacramentos.

Eles realizam normalmente as celebrações distribuindo os ministérios entre eles.

A catequese da iniciação cristã é ministrada por catequistas escolhidos pela comunidade e os missionários prestam assessoria quando é solicitado ou quando estão presentes.

O matrimônio continua como processo prolongado, de acordo com a tradição indígenas.

Em Sangradouro, entre os Bororo, a catequese é ministrada por missionários e missionárias.

Entre os Xavante, a situação é muito complexa, pois além dos missionários, há muitas incluências pelo contacto com o mundo externo.

Refletiu-se ainda que não só no cristianismo, mas também na vida tribal há leis e normas que devem ser observadas. Como conciliar os preceitos cristãos com as normas tribais, e mais ainda com as influências externas?

Os Desafios

Em Merúri, a Imposição do Nome à Criança, como também o batismo cristão são realizados em estilo de festa, de solenidade. Os padrinhos de batismo são externos à comunidade. Os jovens não praticam muito sua cultura. O casamento é uma situação complicada.

Em São Marcos, constata-se um vazia: depois da celebração dos sacramentos, o que fazer? Apesar de critérios existentes, na prática ficou um vazio.

Em São Pedro, os jovens não assumem compromisso depois do batismo. A catequese não suscita muito interesse, eles faltam muito. Há interesse sim pelos ritos, mas não pela catequese. Diante dessa situação, quem toma decisão sobre a admissão aos sacramentos? Os catequistas não participam dos cursos de formação que são oferecidos.



Propostas

Em Merúri, urge promover uma catequese mais inculturada. Os esforços da Pastoral devem levar a maiores compromissos.

Em São Marcos, deseja-se investir na formação dos catequistas e para isso promover encontros paroquais. É preciso retomar o fervor por celebrações mais inculturadas. É preciso conferir mais responsabilidade a exercer e acompanhar essa prática.

Em São Pedro, é preciso oferecer formação específica aos catequistas através de encontros locais e regionais de pequena duração. É preciso também apoiar as iniciativas próprias nas comunidades. Ainda não há uma visão clara sobre o catecumenato de menores.

Em Sangradouro, o desafio é como anunciar Jesus Cristo na atual situação de influências pouco benéficas do mundo externo.

Informes

Foi lido e comentado no novo Estatuto do Conselho Indigenistas Missionário (CIMI). Foi frisada a presença da ação anunciadora de Jesus Cristo e a restrição para pertencer ao CIMI. Esta aliás é uma questão a ser aprofundada por juristas.

O IV Seminário Nacional sobre a Inculturação da Liturgia entre os Indígenas está planejado para 2006. No ano 2005 sejam promovidos encontros regionais sobre esse tema.

Programação 2005

MAIO 2005:

04: em Nova Xavantina: retiro para a Família Salesiana;

05: em Nova Xavantina: reunião da Pastoral Indigenista Diocesana;

06: em Santa Clara: Reunião da Região III.

SETEMBRO:

14: em Barra do Garças: Pastoral Indigenista Diocesanan;

15: em São Marcos: Reunião da Região III;

16: em São Marcos: Retiro da Família Salesiana.


3. Índios Xavante tomam posse de suas terras

Depois da triste notícia publicada no NM Nº 8 p. 5-7 sobre o ultimato trágico dos Xavante para retomarem suas terras, poucos dias depois, resultado da divulgação desta situação, o juiz do tribunal superior de Brasília autorizou os Xavante de Marãiwatsédé a entrar em seu território no dia 11/08/04. Tendo recebido esta comunicação, logo foi executada sem maiores problemas imediatos. Os problemas vieram mais tarde, como poderemos verificar no Relatório seguinte.


RELATÓRIO DA VISITA DE RELATORES VOLUNTÁRIOS DA ONU A MARÃIWATSÉDÉ

Confresa, 25 de agosto de 2004.

Luiz Gouvêa de Paula e Gilberto Vieira dos Santos

Aproximadamente às dez horas do dia 18 de agosto de 2004 chegamos à antiga sede da fazenda Karu, localizada dentro da Área Indígena Marãiwatsédé. Éramos três pessoas: Irmã Jeane Bellini, da CPT (Comissão Pastoral da Terra), Gilberto Vieira dos Santos e Luiz Gouvêa de Paula, do CIMI (Conselho Indigenista Missionário).

Como havíamos combinado anteriormente, ficamos aguardando neste local a chegada da missão dos Voluntários da ONU, coordenada pelo Relator Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente, Jean Pierre Leroy, nomeado pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DhESC Brasil). Enquanto aguardávamos, conversamos com um senhor que disse ser de uma fazenda vizinha e que estava colaborando com o pessoal da fazenda Karu para desocupar a sede da fazenda. Segundo ele, só existiam na sede uns poucos pertences que deveriam ser retirados neste mesmo dia. Este senhor também nos disse que o número de “posseiros” ou possíveis clientes da reforma agrária dentro da área indígena era mínimo, pois a maior parte das terras havia sido comprada por fazendeiros. Afirmou também que não concordava com a forma de luta empregada pelos “posseiros”, com o fechamento de estradas e outras formas violentas de pressão para impor seus interesses.

Pouco depois de nós, vieram de São Félix do Araguaia, Paulo Rogério, da Pastoral da Criança e Pe. Paulo Gabriel, ambos da Prelazia de São Félix do Araguaia e Cristiano Navarro, jornalista do “Porantim” (jornal do CIMI). Logo em seguida, chegou o Pe. Aquilino, indígena Xavante que se incorporou como sacerdote e religioso à Congregação Salesiana. Finalmente, chegou o Sr. Jean Pierre Leroy, acompanhado de seu assessor, Daniel, e de um casal de jornalistas franceses. Juntamente com eles vieram Elton, da Operação Amazônia Nativa – OPAN, representando o FORMAD – Fórum das Organizações para o Meio Ambiente e o Desenvolvi-mento e Flávio, fotógrafo ligado a este Fórum, além de Valderez Rodrigues, recém-aposentada auditora fiscal do Ministério do Trabalho, que já esteve várias vezes na região coordenando opera-ções do Grupo Móvel de Fiscalização contra Trabalho Escravo. Esta comitiva chegou acompanhada de Denivaldo, encarregado da Equipe da Funai em Marãiwatsédé e do cacique Xavante Damião, que tinha ido receber os visitantes no Posto Alô Brasil, localizado às margens da BR 158. Antes de chegar à ex-sede da fazenda Karu, o Sr. Jean Pierre e sua comitiva haviam parado no local onde os Xavante tinham acampado à beira da rodovia, suportando condições muito precárias durante nove meses, enquanto aguardavam o momento de entrarem nas terras que pertencem a eles. Lá puderam ver dos dois lados da BR 158, os restos carbonizados dos barracos anteriormente ocupados pelos Xavante e agora queimados por eles após a entrada em suas terras. O Sr. Jean Pierre visitou também os túmulos das três crianças Xavante, mortas em conseqüência de sub-nutrição e de doenças respiratórias provocadas pela poeira dos veículos que passavam na BR 158. Ele e sua comitiva puderam ouvir, emocionados, as palavras do cacique Damião, afirmando que os “três guerreiros” que ali haviam tombado eram os três primeiros Xavante a retomarem Marãiwatsédé, mas que este retorno era para sempre.

Após as apresentações iniciais, nos dirigimos todos ao acampamento onde será localizada a nova aldeia Xavante. No acampamento, cumprimentamos pessoas da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) e da equipe da Funai. Demos uma volta pelo acampamento para nos apresentar aos Xavante que ali se encontravam e ver as condições em que estão vivendo neste período de retomada de suas terras. Fomos recebidos com gestos amigáveis pelos Xavante e até com sorrisos e abraços de alegria da parte de muitos deles.

Depois deste primeiro contato, nos dirigimos ao barraco onde estão acampadas as equipes da Funai e da Funasa, onde almoçamos. Após o almoço, o Sr. Denivaldo pediu que os visitantes fizessem uma apresentação dizendo a que organização pertenciam e porque estavam ali presentes neste momento.

O Sr. Jean Pierre começou as apresentações dizendo que é membro da FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e que participa do Programa de Relatores Voluntários da ONU. Esclareceu que a ONU tem várias equipes relatoras que fornecem a esta organização informações in loco para receber denúncias e investigações de violações a direitos humanos. Apresentou seu assessor Daniel, jurista que o acompanha nas missões em áreas de conflito e na elaboração de relatórios. Apresentou também as outras pessoas que o estavam acompanhando, iniciando pelo casal de jornalistas franceses que vinha fazer um registro da situação dos Xavante e da visita a Marãiwatsédé. Pediu também licença para que fossem feitas fotografias e filmagem para o relatório e para outras ações em favor do povo Xavante. Depois, continuou as apresentações, seguindo pelo Elton, da Opan e o fotógrafo Flávio, representantes do Formad, esclarecendo que foi o Formad que articulou esta visita juntamente com o Cimi e CPT-Araguaia. Em seguida, fez a apresentação da Drª Valderez, destacando a importância de sua presença visto que estavam previstas no roteiro da missão entrevistas na cidade de Porto Alegre do Norte com pessoas que foram vítimas de trabalho escravo na região.

Em seguida, nós, membros do Cimi, CPT, Pastoral da Criança e Prelazia de São Félix do Araguaia fizemos a nossa apresentação, lembrando nossa vinda anterior para preparar esta visita (Cimi e CPT) e Pastoral da Criança para oferecer e prestar apoio médico-nutricional às crianças Xavante. Reafirmamos o compromisso do Cimi e da Prelazia de São Félix para com o povo Xavante em Marãiwatsédé e destacamos a importância desta visita e da participação nesta missão, acompanhando o sr. Jean Pierre. Cristiano, jornalista do Cimi, também se apresentou, falando da importância do jornal Porantim divulgar o evento.

Após estas apresentações, o Sr. Denivaldo informou que os guerreiros Xavante estavam em excursão pela área indígena e que só retornariam pelas dezesseis horas. Em vista disso, Jeane, Gilberto, Cristiano e Luiz, decidimos ir visitar e fotografar os túmulos das crianças Xavante que foram enterradas próximo ao acampamento da BR 158.

Às dezesseis horas nos dirigimos ao local onde seria realizada a reunião com os guerreiros e lideranças Xavante, à sombra das árvores que margeiam o ribeirão próximo ao qual a aldeia será construída. Aliás, quando havíamos chegado ao acampamento, vimos que uma motoniveladora estava fazendo trabalhos de terraplanagem no local da futura aldeia. O Sr. Denivaldo nos informou que a máquina foi cedida pela prefeitura de Bom Jesus do Araguaia e o óleo foi fornecido pela prefeitura de Serra Nova.

Com a presença de muitos anciãos e guerreiros, bem como de todos os visitantes, o cacique Damião deu início à reunião, falando em português. Saudou os presentes falando da alegria de receber esta missão e traçou um histórico da retirada dos Xavante de Marãiwatsédé na década de sessenta, fato que resultou na redução do grupo de trezentas para 150 pessoas num espaço muito curto de tempo por causa de várias epidemias de que foram vítimas. Lembrou a peregrinação dos Xavante de Marãiwatsédé, durante mais de trinta anos, por diversas áreas pertencentes a outros grupos de seu povo, na condição de exilados, expulsos de sua terra. Falou da luta do povo Xavante para retornar à sua área, reafirmando a decisão de nunca mais sair dela. Reclamou com veemência da decisão do Superior Tribunal que deixou ainda uma parte significativa das terras de Marãiwatsédé em poder dos invasores, em detrimento dos direitos do povo Xavante, afirmando que não vai aceitar nenhuma decisão que não respeite integralmente os seus territórios conforme está garantido por demarcação, homologação e registro em cartório.

Apresentou também o quadro dramático em que se encontra a comunidade de Marãiwatsédé, com mais de quatrocentas e vinte pessoas dependendo de cestas básicas, num ambiente completamente depredado que já não dispõe mais dos recursos da floresta e do cerrado e cuja vegetação predominante é o capim brachiara. O quadro apresentado por Damião é de necessidade urgente de ajuda emergencial, pois há toda a população da aldeia para ser alimentada, visto que as novas roças vão demorar para fornecer alimentos aos indígenas. A falta de matas para a implantação de roças de toco tradicionais dos Xavante vão exigir nova tecnologia para a implementação das atividades agrícolas. Devido a todas essas circunstâncias, a economia do grupo indígena se encontra desarticulada. Há necessidade de cobertores e agasalhos, pois nas madrugadas o frio é intenso.

Em relação ao território de Marãiwatsédé, Damião falou da necessidade de um veículo para fazer a vigilância, pois o caminhão de que dispõem está muito velho e em condições precárias e neste período que antecede a retirada dos invasores pode haver ainda maior depredação, com roubo de madeiras e de outros bens. Damião reivindicou ainda ajuda para a construção de prédios para escola e posto de saúde. As crianças de Marãiwatsédé já estão há nove meses sem freqüentar escola e é preciso recuperar este tempo, mas para isto é necessário que se crie a escola estadual de Marãiwatsédé e se construam as salas de aulas e outras dependências necessárias.

Damião fez ainda referência ao pessoal da Funai que esteve com eles durante todo o tempo do acampamento da estrada, inclusive sofrendo ameaças de vida e pediu mais recursos para este órgão a fim de que possa cumprir as funções para as quais foi criado.

Por fim, o cacique Damião pediu que os visitantes se apresentassem. O sr. Jean Pierre Leroy agradeceu as palavras de boas vindas, explicou a finalidade da missão e, além do relatório detalhado que apresentará às Nações Unidas em novembro, se comprometeu a apresentar as reivindicações e pedidos de ajuda dos Xavante aos órgãos do governo brasileiro, tratando destas questões diretamente com diversos ministérios e órgãos federais e solicitando ajuda a outras entidades que possam contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos Xavante de Marãiwatsédé.

Depois de Jean Pierre, tomou a palavra Agnelo Xavante, da Coiab (Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) relembrando a luta do povo Xavante de Marãiwatsédé e destacando, sobretudo, a questão do desmatamento desta área e a necessidade de se elaborar e buscar financiamento de projetos agroflorestais que permitam à comunidade Xavante ir, aos poucos, recompondo as áreas de floresta degradadas pelo plantio de pastagens.

Em relação a esta questão, Jeane fez um aparte falando dos trabalhos da CPT com agricultores familiares e da possibilidade de contribuir com o povo Xavante, principalmente no sentido de levar os indígenas que estejam interessados para conhecer estas experiências.

Após a sua fala em português, Agnelo se dirigiu em Xavante ao seu povo, traduzindo o que Jean Pierre havia falado anteriormente.

Depois de Agnelo, o Pe. Aquilino tomou a palavra, relembrando o período da retirada dos Xavante de Marãiwatsédé e destacando a contribuição dos padres salesianos, sobretudo do Pe. Pedro Sbardelotto e Mário Panziera, sem a ajuda dos quais a situação dos indígenas poderia ter sido bem pior. Afirmou, ainda que o Pe. Pedro Sbardelotto defendia a permanência dos Xavante no local da sede da fazenda Suiá-Missu, onde ficava sua aldeia original, sendo que a decisão de retirar os indígenas foi tomada por pressão do Sr. Ariosto da Riva, “proprietário” da fazenda. O Pe. Aquilino defendeu em seu pronunciamento que quem deve pagar indenização por todo o sofrimento de que foram vítimas os Xavante de Marãiwatsédé durante todo o tempo em que viveram fora de suas terras são os Srs. Ariosto da Riva e os Ometo, antigos “donos” da Suiá-Missu. Pe. Aquilino disse também que esperava encontrar Dom Pedro Casaldáliga nesta reunião e perguntou porque ele não se achava presente. O Pe. Paulo Gabriel esclareceu que devido à situação de ameaças relacionada ao retorno dos Xavante à sua terra, D. Pedro preferiu não marcar presença na área de conflito, mas ajudar o povo Xavante por outros meios e foi isto o que ele fez até o momento, dirigindo vários apelos às autoridades e fazendo denúncias nos jornais. Disse ainda que, provavelmente, em breve D. Pedro vai poder visitar Marãiwatsédé.

Após a fala do Pe. Aquilino, o Sr. Jean Pierre retomou a palavra confirmando a necessidade de os Xavante de Marãiwatsédé serem indenizados por todo o sofrimento destes anos de exílio.

Em seguida falou um velho guerreiro Xavante (Bobó) que iniciou sua fala perguntando porque apenas agora é que a missão estava vindo visitar o povo Xavante, sendo que o sofrimento vem de tanto tempo. Relembrou também a luta dos Xavante e a necessidade de ajuda emergencial e reforçou o pedido de recursos para a Funai para que este órgão possa atender as necessidades mais urgente do povo de Marãiwatsédé. Este velho guerreiro falou na sua língua e suas palavras foram traduzidas por Agnelo Xavante.

Depois foi a vez do chefe dos guerreiros, Matias Xavante que reforçou o pedido de ajuda urgente aos Xavante, destacando a necessidade de um caminhão para fazer a vigilância da área.

Finalmente, tomou a palavra o Sr. Denivaldo da Funai, falando de sua emoção ao se dirigir aos membros da missão ali presentes, sobretudo por causa da situação emergencial em que se encontra a comunidade Xavante de Marãiwatsédé, visto que a cada dia se enfrenta a angústia de não se saber se no dia seguinte haverá alimento para toda a população da aldeia. Falou da falta de ação de parte da presidência da Funai e pediu que o Sr. Jean Pierre interfira no sentido de se conseguir uma audiência com o Sr. Ministro do Interior. O Sr. Denivaldo agradeceu a presença de todos e o apoio que já vinha recebendo de algumas entidades ali representadas e convocando a todos a continuarem com este apoio.

Com a fala do Sr. Denivaldo a reunião foi encerrada e nos dirigimos ao acampamento para jantar. O Pe. Paulo Grabriel, o Gilberto, o Paulo Rogério e o Cristiano se dirigiram logo após a reunião em direção a São Félix do Araguaia.

Depois do jantar decidimos que alguns de nós iríamos dormir numa das casas da ex-sede da fazenda Karu, visto que no barraco do acampamento havia poucos paus para armar as redes. Estávamos nos preparando para sair, quando retornou o carro que havia saído para São Félix, com a informação de que os moradores do Posto da Mata ou Estrela do Araguaia haviam fechado a estrada e havia ameaças de violência. Entre as pessoas que lá se encontravam liderando o fechamento da BR 158, estavam o prefeito de Alto Boa Vista, Sr. Mário Cezar Barbosa, candidato à reeleição e o Sr. Dagmar de Oliveira Faleiros, candidato a prefeito daquele município. Máquinas da prefeitura de Alto Boa Vista foram usadas para abrir uma valeta no leito da estrada, impedindo a passagem de veículos.

Sabendo dessas notícias, algumas pessoas decidiram se dirigir ao Posto Alô Brasil para fazer alguns telefonemas informando sobre a situação e o Ministério Público de Cuiabá foi contatado e recebeu solicitação de que encaminhasse pedido à polícia federal no sentido de desbloquear a estrada. Por orientação da equipe da Funai presente na área, as pessoas que estavam dormindo na sede da fazenda retornaram ao acampamento dos Xavante. As pessoas que tentaram antes ir a São Félix do Araguaia via Posto da Mata, decidiram dar a volta por Bom Jesus do Araguaia, aumentando em muito o percurso normal.

No dia dezenove, após o café da manhã, aguardamos que os guerreiros Xavante se preparassem com suas pinturas e enfeites, pois eles queriam apresentar uma dança para nós. Por volta das nove horas nos dirigimos para um local do acampamento onde seria realizada a dança. Pouco depois da nossa chegada, todos estavam a postos formando uma grande roda e, destacando-se nela, o grupo de anciãos que iria liderar os cantos. A dança foi emocionante, pois era a primeira vez que dançavam na nova Marãiwatsédé e a primeira vez que dançavam após o luto pelas três crianças mortas no acampamento da beira da estrada. Ainda se podiam ver alguns guerreiros, mulheres e até crianças com o cabelo raspado em sinal de luto. Nessas danças da manhã as mulheres também participaram. Na reunião do dia anterior elas não haviam participado. Após algumas rodadas de dança, entre as quais uma só dos jovens, os não-indígenas foram sendo chamados um por um para o centro da roda, começando pelo Sr. Denivaldo e pelo Sr. Jean Pierre. O Cacique Damião fez novamente um discurso reiterando questões colocadas no dia anterior e reforçando a solicitação de ajuda ao seu povo. Houve ainda outras falas nesta solenidade todas no sentido de se urgir ações que contribuam para resolver a situação emergencial da população Xavante de Marãiwatsédé, de encaminhar soluções para o seu futuro e de garantir o domínio completo deste povo sobre seu território. Terminadas as falas, os Xavante pediram que permanecêssemos alinhados no centro da roda e, enquanto isso, homens, mulheres e crianças passavam pela nossa frente e iam nos cumprimentando e agradecendo a nossa visita.

Terminada esta solenidade, nos despedimos dos Xavante e das pessoas que nos acolheram no acampamento e nos dirigimos para o Posto Alô Brasil para almoçar, telefonar e tentar saber mais notícias sobre o fechamento da estrada. Nossa intenção era, após o almoço, tomar a BR 80 em direção a São José do Xingu, desviando-nos em seguida, para Porto Alegre do Norte por uma estrada que passa por Canabrava do Norte, pois a missão tinha visita marcada para o dia 20, com sem-terras acampados em Canabrava do Norte. Entre o Posto Trevão - localizado no entrocamento das rodovias BR 158 e BR 80 – e o Posto Alô Brasil, encontramos três ônibus que vinham de Cáceres para o II Festival das Águas que começaria em Luciara naquela noite. Estes ônibus haviam sido barrados no Posto da Mata. Elton, do Formad, ficou no Alô Brasil para seguir com o pessoal de Cáceres para Luciara. Eles deveriam passar por Bom Jesus do Araguaia. Logo após o almoço nos dirigimos para o entroncamento da BR 80 e seguimos por esta rodovia em direção ao norte. Antes de sair fomos informados de que uma ponte logo depois do entroncamento (Posto Trevão) havia sido queimada, mas soubemos também que os carros estavam conseguindo passar sobre pranchas. As informações eram desencontradas e havia até notícias de que a BR 158 no sentido de Barra do Garças também estava bloqueada. De fato, quando chegamos à ponte, havia lá várias carretas paradas, mas assim mesmo conseguimos passar sobre a ponte, que tinha sido queimada e alguns dos paus mais grossos serrados com moto-serra. Logo depois de nós, uma carreta carregada de calcário passou sobre a ponte, porém, quando terminou de passar, a ponte caiu, cortando o caminho de volta.

Seguimos viagem e no trajeto até o entroncamento de Niquelândia, que liga o Posto da Mata à BR 80 pudemos observar uma grande madeireira dentro da área indígena, muita pastagem e pouca mata. No entroncamento havia um senhor que nos informou que estava ali há um mês para construir um complexo com posto de gasolina, dormitório e restaurante, mas, segundo ele, com a “confusão dos índios” a construção estava temporariamente suspensa. Sob uma moita de bambu, no local onde iria ser construído o Posto, vimos um marco de demarcação das terras de Marãiwatsédé arrancado. Continuamos a viagem e mais adiante nos informaram que a ponte para Canabrava do Norte (rio Fontoura) estava queimada. Conforme nos disseram esta ponte teria sido queimada há uns quinze dias antes por causa de disputa entre madeireiros dos dois lados do rio Fontoura pela extração de madeira da margem direita deste rio. Teríamos, portanto, de dar uma volta de mais de trezentos quilômetros, passando próximo a São José do Xingu. Neste trajeto pudemos observar grandes áreas de pastagem com muito pouco gado, duas laminadoras de madeira, vastas áreas gradeadas para o plantio de grãos, uma grande área de construção com placa da Cargil, além de silos grandes e secadores. Devido à volta que tivemos que dar e por causa das várias paradas para buscar informações, chegamos a Porto Alegre do Norte às 21:30 horas. Durante o jantar foram planejadas as atividades da Comissão para o dia seguinte (20 de agosto), quando seria realizada a visita aos acampados do Projeto de Assentamento Liberdade, que haviam sido retirados da Área Indígena Urubu Branco há um ano atrás e que se encontram em situação muito precária na beira da estrada, impedidos por medida judicial de entrar na área que foi destinada a eles. Os representantes do Cimi da Prelazia de São Félix do Araguaia encerraram neste jantar a sua participação e não tomariam parte do último dia de trabalho da missão na região do Araguaia.


4. Pe. Pascual Chávez V. e a medicina alternativa

Ao receber o título de "Doctor Honoris Causa" da Universidade de Turim, o Pe. Pascual Chávez V., Reitor-Mor dos Salesianos de Dom Bosco, introduziu seu discurso da seguinte maneira:

Antes de mais nada, sinto-me honrado de dirigir uma saudação cordial ao Il.mo Reitor Magnífico da Universidade e a todas as autoridades acadêmicas; saúdo também as outras autoridades que vieram a todos os participantes, que me honram com a sua presença.

Tenho consciência que o reconhecimento da laurea "honoris causa", que o Senhor Reitor me quis conferir, é dirigida a minha pessoa enquanto nono sucessor de Dom Bosco; e que é, antes de mais nada, um reconhecimento da obra de evangelização, da promoção cultural, da educação e do desenvolvimento social que os Salesianos desenvolveram e desenvolvem nesta cidade e nesta região e nos 128 países onde se encontram para desenvolver suas atividades. Os Salesianos são beneméritos: a eles se dirige esta laurea, pelos méritos e a honra que alcançaram no campo de ação.

Quero manifestar por isso o reconhecimento da minha parte e da parte dos salesianos meus irmãos. É o reconhecimento de quem sabe receber um dom e por isso manifesta gratidão; mas é também o reconhecimento de quem, pelo fato de doar-se, sabe que recebeu muito. Da minha parte sinto-me particularmente honrado de ser acolhido, como membro honorário, pelo Corpo Docente desta Universidade.

Desejo, pois, que este gesto significativo da laurea "honoris causa" reforce os laços existentes entre a Universidade e os Salesianos e que seja sinal di comunhão e de colaboração.

O tema do discurso do Reitor Mor versou sobre: O EMPENHO DE DOM BOSCO E DOS SALESIANOS NO CUIDADO DA SAÚDE, NA PESQUISA NO CAMPO DA MEDICINA ALTERNATIVA E NA PRESERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE.

Falando mais adiante da Pesquisa no campo da medicina alternativa, ele comenta o trabalho amplo e diversificado do Pe. Szeliga no Peru, seja na cura de doenças da região com medicina natural como até da própria cura com os mesmos recursos.

A seguir fala do Empenho dos salesianos pela cura da saúde no Brasil: De menor alcance do que a precedente, mas nem por isso de menor importância, é a experiência que vive o salesiano Bartolomeu Giaccaria, um italiano de 69 anos naturalizado brasileiro, que trabalho 45 anos entre os Xavante. Ele é um antropólogo e escreveu numerosos livros sobre os Xavante. Ele também faz pesquisas com plantas medicinais e em Nova Xavanttina organizou um pequeno herbário. Ele prepara pomadas, xaropes e outros remédios naturais.

De início, se tratou para ele também de um modo para encontrar soluções alternativas aos problemas de carência farmacéutica nea região e nas aldeias.

Propriamente foi a necessidade, ver crianças com feridas que duravam por longo tempo, idosos com problemas de reumatismo sem possibilidade de remédios, que levaram o Pe. Giaccaria a começar informar-se sobre as propriedades de diversas espécies na natureza. Ele se pôs então a procurar e estudar as propriedades das plantas; começou a preparar pomadas para qualquer problema da pele utilizando cerca de 15 plantas. Deste modo ele cuida de 80 aldeias com mais de 12.000 Xavante.

"O maior absurdo, porém, diz Pe. Giaccaria, é que diversas destas plantas nativas que utilizo no meu trabalho foram patenteadas pelos americanos como sua propriedade. São palntas daqui, deste ambiente, utilizadas pelos indígenas por milhares de anos, entre as quais o urucum, sucupira e quebra-pedra. Desta agora eu me lembro, mas eles estão estudando outras sete mil plantas brasileira".

Até aqui do discurso do Pe. Pascual Chávez V.

Confira maiores imformações sobre o trabalho do Pe. Bartolomeu Giaccaria em: http://www.brasiloeste.com.br/xavantina/m1005.html


5. O que é Mito (II)

13. As Funções do Mito

Malinowski e, com ele, os antropólogos contemporâneos, corrigindo as distorções reducionistas sobre a mitologia tanto em voga até o século XIX, tenderam a tratar os mitos em termos de suas funções vitais, isto é, como um "contrato" sancionando os arranjos sócio-culturais.1 Esta conceituação ampla e genérica das funções do mito vem sendo pormenorizada por diversas funções específicas.

A rigor, o ítem precedente já pertence a este tema, pois falar do mito como fator fundante é falar de uma das funções principais do mito, isto é, a de ser razão motivadora e original dentro da sociedade. Tal função se concretiza, em relação aos primórdios da humanidade, "revelando" a história sagrada das origens, a verdade contida nesses mitos. Toda esta História Sagrada das Origens está envolta no "mistério", conceito estritamente pertinente à sacralidade do mito, sendo manifesto aos iniciados nesta História Sagrada e velada aos não-iniciados. Esta revelação não consiste apenas numa divulgação, mas ainda permite sua manipulação para fins vitais dentro da vida concreta da respectiva sociedade.2

Explanando esta função reveladora, afirma o mesmo autor Eliade, ela consiste em revelar modelos3 para a existência humana, orientadores da vida real. Neste sentido original, como se dá entre os povos nativos, a História Sagrada refere-se ao homem que se relaciona com o sagrado, enquanto deu origem ao homem e ao mundo, em que o homem vive, e entre os homens que entram em relação entre si.4

Paul Ricoeur aponta como função da linguagem do mito, juntamente com a linguagem simbólica em geral, a arte e a religião, de que o mito faz parte, função de revelar o homem a si mesmo, através do sentido da sua história.5 Continuando Constança M. César sintetiza que os mitos resumem, de modo simbólico, as possibilidades do acontecer individual e coletivo: "somos nossos deuses". Mais adiante explicita o significado desta última afirmação dizendo: nossa vida obedece a paradigmas transumanos, a intriga existencial é tecida por algo em nós que nos ultrapassa e que a consciência racional começa apenas a entrever. (...) somos possuídos, fascinados por qualidades, valores, expostos nos mitos e centramos nossa existência em torno do foco que expressam. Somos aquilo que amamos.6

Através da revelação desses modelos o mito fornece justificativas sobre o modo atual de ser do mundo e do homem nele, as normas que regem sua sociedade, a moralidade, os demais valores da mesma, os princípios orientadores para guiar a sua vida.7 Este aspecto será aprofundado melhor mais adiante.

Martinez ainda fala de uma função especificamente religiosa que é a de exaltar e codificar as crenças.8 Esta é igualmente uma das funções peculiares do mito, que é a de sistematizar organicamente esse conteúdo religioso, mas sempre de maneira mítica, não racional.

Dentro desta dimensão religiosa específica compreende-se aquela de o homem transcender os seus limites, com o que ele se obriga a situar-se ao lado dos deuses e dos heróis míticos, a fim de realizar os seus atos. Direta ou indiretamente, o mito provoca uma "elevação" do homem.9 Eliade expressa semelhantes idéias de uma maneira mais genérica: Os mitos são a forma mais geral e eficaz de perpetuar a consciência de um outro mundo, de um além, seja ele o mundo divino ou o mundo dos antepassados. Este "outro mundo" representa um plano sobre-humano, "transcendente", o mundo das realidades absolutas.10

Uma função vital refere-se à realização dos ritos, no sentido de justificar sua existência e a necessidade de participar deles. Isto, porém, não se deve entender como uma obrigação em si, mas, em decorrência, como uma consciência decidida sobre a eficiência dos mesmos ritos para a vida, pelo que todos sentem necessidade de participar deles.11

Com esses breves acenos sobre as funções do mito, pode-se sem mais constatar a importância do mito não só entre os nativos, mas igualmente nas sociedades contemporâneas a ponto de se poder afirmar que a sociedade vive totalmente envolta nos seus mitos, em base a seus mitos, e sobrevive graças a seus mitos. Se por um motivo qualquer lhe forem tirados os seus mitos, isto significa nada mais do que tirar-lhe a existência e a razão para isso.

14. O Mito como Modelo

Eliade fala freqüentemente do mito como modelo. Este termo, já estudado anteriormente quando da simbologia, é aplicado em diversos níveis. O mito fornece modelos de conduta humana, conferindo significação e valor à existência.12 Em outra citação, partindo da dimensão sagrada do mito, afirma que ele torna-se modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas.13 Mais adiante ele afirma que os comportamentos e as atividades profanas do homem encontram os seus modelos nos gestos dos Seres Sobrenaturais,14 que são expressos nos mitos. E mais adiante amplia a função do mito que é revelar os modelos exemplares do todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: tanto a alimentação como o casamento, o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria.15 Malinowski se expressa de modo semelhante quando fala do mito como padrão e base da vida primitiva.16

Geertz, já citado acima, falando dos padrões culturais como modelos, divide-os em modelos "de" e modelo "para".17 Aplicando estas distinções, por ele mais genericamente usadas para o simbolismo, podemos afirmar sem mais que, de um lado, os mitos refletem a realidade religiosa, sócio-política, econômica etc. da sociedade. De outro lado, os mitos modelam, formam e organizam estas mesmas realidades a partir de sua fundamentação primordial. Podemos então encontrar nos mitos os precedentes exemplares para agir e proceder de determinada maneira. O mito fornece a tática, as razões, os mecanismos, por exemplo, para uma desavença conflitiva, dentro e para fora da sociedade.

Recorrendo mais uma vez à psicologia de Jung, como ele situa os arquétipos a nível do inconsciente coletivo, podemos afirmar que os mitos que expressam esses mesmos arquétipos produzem os citados modelos exemplares, antes de uma maneira genérica para qualquer realidade e, derivado daí, para tantas outras realidades pormenori-zadas. Isto dá uma característica de unidade radical a toda a cultura.

Fique claro, porém, que tais modelos não existem abstratamente, a não ser na cabeça dos pesquisadores antropólogos, mas apenas enquanto aplicados a determinada realidade, através, sempre, de sua expressão simbólica e mítica. O nativo agirá normal e naturalmente, até inconscientemente, de acordo com esses modelos, mas quando indagado, pouco saberá explicar racional e verbalmente sobre tais realidades.

15. A Estrutura do Mito

Afirmou-se anteriormente que o mito é parte integrante da linguagem e, no caso mais específico, da linguagem simbólica. Falar de estruturas do mito é, então, falar da organização do mito em si e em relação ao mundo simbólico de que é parte integrante; é falar de sua sistematização em si e de sua função sistematizadora em relação ao mundo da linguagem simbólica.

Mair fala de um aspecto presente desde a época de Malinowski, a saber: a ênfase à relação entre mito e a ação social. Com isso chega a postular algum tipo de princípios unificadores sob a diversidade da experiência.18 Mais adiante recorrendo ao termo já conhecido de mito como "modelo", afirma que esse modelo deve ser um sistema, um conjunto de fenômenos numa relação ordenada.19 Só esta argumentação nos leva a deduzir a função modeladora, ou sistematizadora ou mesmo estruturadora do mito. Mas recordemos também que o próprio mito, por sua vez, é estruturado e sistematizado pela sociedade em que ele existe.

Bourdieu, argumentando com as declarações de diversos autores sobre as relações das estruturas sociais com o mito, leva a idêntica conclusão. Lévi-Strauss, segundo Bourdieu, afirma que a mitologia será considerada um reflexo da estrutura social e das relações sociais. Segundo Weber, que ele taxa de teoria reducionista, o discurso religioso é um reflexo direto das estruturas sociais. E, por fim, numa visão não menos limitadora ao campo material, Marx concede à religião e com ela ao mito uma função de conservação da ordem social.20 Ora, falar de estruturas sociais e de seus reflexos através do mito, exige admitir estruturas do próprio mito. Cautelosamente Freedman insinua de maneira semelhante, em base aos dados recolhidos em sociedades que ainda não atingiram o estágio da escrita, portanto, sociedades primitivas, que os mitos estavam muito bem adaptados às "necessidades" estruturais particulares dos sistemas sociais nos quais eram colhidos.21

Altuna, em sentido inverso do citado por Bourdieu, põe os mitos como base da estruturação afirmando: os mitos explicam os motivos básicos das estruturas sociais e das arraigadas crenças religiosas.22 Sobressai desta colocação a função estruturante do mito.

Destas citações aduzidas podemos constatar, sob o conceito de "estrutura do mito", duas dimensões do mito: de um lado, ele é reflexo e expressão das estruturas sociais, religiosas, econômicas etc. da sociedade em que ele é vivido, reproduzindo de maneira embasante e fundante aquelas estruturas e aqueles sistemas, em linguagem simbólica. De outro lado, o mito está na base da mesma estruturação das citadas realidades culturais, fornecendo os elementos e fundamentos para que a sociedade se estruture e organize, não de uma maneira arbitrária, mas alicerçada em bases indiscutíveis, inconsciente e simbolicamente presentes na mesma cultura.

Há ainda um outro aspecto da estrutura do mito a considerar, a saber, a estrutura do mito em si mesmo. Esta dimensão tem sido aprofundada de maneira original por Lévi-Strauss, embora seu extremismo estruturalista hoje seja um tanto questionável. Ele parte da visão de mito como linguagem. Piazza distingue na linguagem mítica entre "estrutura" (sintaxe) e "mensagem" (sentido). Dentro desta distinção, Lévi-Strauss aprofundou a questão da "sintaxe" da linguagem mítica23 e lhe tira duas conseqüências:

1) Como todo ser lingüístico, o mito é formado de unidades constitutivas;

2) Essas unidades constitutivas implicam a presença daquelas que intervêm normalmente na estrutura da língua, ou seja, os fonemas, os morfemas e os semantemas. Mas elas estão para os semantemas assim como os semantemas estão para os morfemas e assim como os morfemas estão para os fonemas. Cada forma difere da que a precede por um alto grau de complexidade.24

De fato, como na língua oral, há no mito uma mensagem, ou um conteúdo que se expressa através da linguagem mítica. Esse conteúdo dos mitos, em grande parte, está presente em todas as culturas, com suas variantes culturalmente condicionadas.

De fato, há em todo mito o precedente primordial, histórico, e sua atualidade simbólica, sempre relacionado com o momento histórico presente e sua projeção para o futuro. O mito não está confinado num passado estanque, cada vez mais incompreensível para os contemporâneos da mesma cultura, mas se expressa simbolicamente dentro dos códigos de linguagem simbólica do momento presente como resposta a postulados presentes.

De fato, os elementos isolados de determinado sistema simbólico só adquirem e conservam seus significados enquanto elementos articu-lados dos conjuntos a que pertencem radicalmente. Considerados em si mesmos, esses elementos simbólicos podem configurar-se com diversificados significados estabelecidos arbitrariamente por sua sociedade dentro da complexidade de cada sistema cultural. Com isso se amplia, de maneira dinâmica, o conceito de arbitrariedade, considerada como que absoluta quando da linguagem oral, verbal, e considerada de maneira relativa, uma vez que a linguagem simbólica assume não sons, descaracterizados em si, mas realidades físicas enquanto capazes de interpretar a partir de sua própria existência física e sua função dentro da globalidade da vida humana.

A manipulação e interpretação dos diversos elementos constitutivos do mito não podem dar-se, no entanto, com critérios exclusivamente lingüísticos, como o faz concluir Lévi-Strauss, mas com critérios míticos, que são distintos daqueles e originais, em si mesmos, dentro da linguagem mítica. Se grande parte dos mecanismos estruturais da língua são, de certa maneira, "mecânicos", ou, como diríamos hoje, de caráter "informático", os mecanismos estruturais dos mitos são míticos, portanto simbólicos e se regem por princípios sistematiza-dores próprios, distintos dos lingüísticos. Há, poderíamos afirmar, uma unidade radical dentro de cada cultura e uma diversidade específica original de uma em relação à outra.

Na linguagem oral, além do seu conjunto estrutural, constatamos a parte contextual e cultural que especifica o significado além de sua base estrutural, onde a simbologia exerce função significativa. A linguagem mítica é basicamente simbólica, portanto, contextual, embora tendo por base a sua estrutura que a sustenta.

16. A Interpretação do Mito

Sobre este tema sejam apenas algumas poucas linhas gerais, por se tratar de um tema cada vez mais amplo e mais pesquisado na atualidade por filósofos, letrados e etnólogos o que o torna muito complexo.

Piazza, um tanto categórico, apresenta um elenco de falsas interpretações do passado, para tanto mais ressaltar a objetividade dos processos atuais de interpretação dos mitos.25 Páginas antes ele havia afirmado que todos estes autores disseram algo de muito importante a respeito do mito, mas prejudicaram a sua correta compreensão por terem assumido uma posição demasiado unilateral.26 Com isso, como já afirmado no início deste estudo quando dos diversos conceitos de cultura, torna-se necessário afirmar a complementariedade dos diversos estudos e assumir como valores os diversos aspectos pesquisados na interpretação dos mitos.

A interpretação racionalista já foi acenada mais acima como equivocada, por usar um método inadequado à realidade do mito. Significativo, nesse sentido, é o fato da própria mitologia grega, que foi desvirtuada pelo racionalismo que surgiu entre os mesmos gregos.

A interpretação positivista, a partir de Durkheim, aprofundou a questão do mito em conexão com a organização social do grupo. Nisso ela apresenta uma contribuição valiosa, embora restrita.

A interpretação psicológica frisa vários aspectos significativos, culminando com os resultado de Jung que declara o mito como resposta do homem aos seus problemas existenciais mediante os arquétipos do inconsciente coletivo.27

A interpretação estruturalista tem promovido a visão do mito como sistematizado e sistematizador dentro da sociedade, sublinhando seu fator unificador. Tal fato é importante; mas quando levado ao extremo, dá uma visão demasiado mecanicista do mito e suas funções.28

Eliade sintetiza de maneira original as diversas contribuições através da história e formula, talvez, a melhor descrição do mito.29 Ele tem o mérito de ter posto o mito em íntima relação com a "experiência hierofânica",30 pelo que hoje é considerado uma autoridade no campo da pesquisa da religiosidade dos povos e, em especial, do mito. Veja-se a obra monumental dele do Tratado de História das Religiões.31

Entretanto, para demonstrar mais uma vez que a ciência nunca está com resultados definitivos em suas pesquisas, nestes últimos anos da nossa era, tem-se divulgado sempre mais uma nova contribuição original da ciência da hermenêutica, capitaneada por Paul Ricoeur que, longe de estar concluída, abre desde agora novas perspectivas para a interpretação do mito.

Pinkus, nesta linha, começa distinguindo entre duas modalidades cognitivas fundamentais:

1) O conhecimento científico, ligado à verificação empírica ou experimental. Continuando constata nesta modalidade um distancia-mento entre o observador e o objeto observado, sendo que aquele o denomina por termos de seu universo lingüístico próprio.

2) Existe ainda outra forma de conhecimento que podemos chamar de intuitivo. É um conhecimento que não é passível de verificação experimental, em que observador e objeto fazem parte de uma mesma relação e é vitalmente somente dentro desta relação que as informações podem ser atingidas e se tornam vitais para o ser humano. Continuando, mais adiante Pinkus postula recorrer a um tipo particular de linguagem (ou, se preferimos, a figuras lingüísti-cas particulares), ou seja, à "linguagem metafórica".32 Concluindo logo a seguir, ele afirma que este tipo de narração metafórica também é chamado "mito".33

Contextualizada desta maneira a nova visão do mito, Pinkus, claramente sintetizando as diversas contribuições anteriores, apresenta uma nova descrição do mito que transcrevo textualmente:

O mito é a "explicação" e como que a "tradução" de um sistema de símbolos (e, portanto, dos motivos arquetípicos subjacentes) assim como certo grupo os vive (ou os viveu), embora muitas vezes as trate de figurações que, como imagens diversas, relatam e/ou representam situações universais, que dão corpo a qualidades ideais. Esses mitos são como que um sinal-guia do cânone cultural coletivo, ou seja, da mentalidade de determinado tempo e âmbito histórico, como também das suas variações dinâmicas.34

Nesta descrição podemos constatar elementos das diversas aborda-gens anteriores, consideradas de parciais numa visão mais global.

Eça de Almeida, apoiando-se nas pesquisas de Ricoeur, postula uma raiz comum35 para o desenvolvimento do mito e da linguagem - repare-se esta nova visão original é diferente das anteriores! - pois ambos irradiam de um ponto comum, embora se diferenciem entre si segundo seus conteúdos; esse ponto comum é uma mesma forma de concepção mental que podemos chamar de metáfora, vínculo estreito e intrínseco que se estabelece entre linguagem e mito. "O homem, quisesse ou não, foi forçado a falar metaforicamente, e isto não porque lhe fosse possível frear sua fantasia poética, mas antes porque devia esforçar-se ao máximo para dar expressão adequada às necessidades sempre crescentes de seu espírito. Portanto, por metáfora não mais se deve entender simplesmente a atividade deliberada de um poeta, a transposição consciente de uma palavra que passa de um objeto a outro" (Cassirer, A Linguagem do Mito, p. 104). Metáfora não é aqui fruto da fantasia, ela é acima de tudo uma necessidade de transposição de uma palavra, retirada de um conceito e não mais criação ou determinação mais rigorosa de um novo conceito, por meio de um velho nome.36

Mais adiante, Ricoeur, em História e Verdade, reabilitando a linguagem poética e "metáfora viva" como expressão mais marcante da realidade mítica essencial, afirma que os mitos buscam uma compreensão da realidade humana na sua totalidade, através da linguagem simbólica, e tentam expressar o enigma da existência traduzido na discordância entre a realidade fundamental e a realidade atual do homem. O mito é, assim, uma narrativa e, com tal interpretação do vivido, reconstrução pela inteligência do nosso ser no mundo.37

Segundo Terrin que interpreta Langer amplamente, a linguagem surgiu como um grande fluxo de imagens, de metáforas e de símbolos aptos a exprimir as experiências primordiais do homem. Partindo da constatação de que a linguagem historicamente está conexa com o ritual, argumenta: ... se "o ritual é o berço da linguagem", a constatação da eficácia das metáforas, que ainda hoje se mantêm vivas, não obstante o processo de "significação unívoca", está aí para confirmar que não são as imagens que dependem dos conceitos, mas inversamente, os conceitos dependem das imagens.38

No próximo número da NM continua a reflexão sobre o MITO.


6. Videos Missionários

Os seguintes Videos de temas missionários podem ser encontrados nas Locadoras.

A Missão, Robert de Niro e Jeremy Irons, 2 horas

Hábito Negro. 1:35 horas

Romero - uma história verdadeira. John Duigan. 1:05 horas

Brincando nos Campos do Senhor. Hector Babenco. 3 horas.

A Floresta de Esmeraldas. John Boorman. 1:53 horas

O Curandeiro da Selva. Cinergi. 1:40 horas

Avaeté - semente de vingança. Zelito Viana. 1:10 horas

Gerônimo. Joseph Runningfox. 1:20 horas



7. Os Padres e as diferentes culturas

P. Enrico dal Covolo

1. Qual a atitude assumida pelos cristãos dos primeiros séculos diante da cultura do seu tempo?

Desde os primeiros tempos houve duas atitudes diversas no seio do cristianismo. Uma – de aparente, total recusa – tem a sua expressão mais evidente em alguns representantes do cristianismo africano e siríaco, isto é, nas duas áreas extremas do mundo helenizado.

Tomemos em consideração as célebres exclamações de Tertuliano: “O que há de semelhante”, prorrompe o africano indignado, “entre um filósofo e um cristão, entre um discípulo da Grécia e um discípulo do céu?” (Apologeticum 46,18).E ainda Tertuliano se pergunta: “O que há em comum entre Atenas e Jerusalém? O que de comum entre a Academia e a Igreja?” (De praescriptione haereticorum 7,9).Na realidade, o Apologeticum de Tertuliano, endereçado às supremas autoridades do império pelo ano 200, revela uma atitude muito complexa diante da cultura e das instituições de Roma.Com afirmações positivas e possibilistas, pelo que se falou de Tertuliano como de um precursor da aliança entre cristianismo e império, têm-se, também, expressões semelhantes às citadas – que professam a radical incompatibilidade entre “Atenas e Jerusalém”.

Em todo caso, a recusa não se refere apenas à filosofia, mas também aos clássicos da literatura, da arte, a maior das profissões e dos traba­lhos, compreendidos os dos mestres de escola: numa palavra, toda a cultua e civilização pagã.

A outra atitude, porém, foi de grande abertura, de diálogo crítico e construtivo com a cultura grega. É a atitude iniciada por Justino e desenvolvida pelos Alexandrinos, sobretudo por Clemente. Aqui, não só a cultura grega não é recusada, mas é vista como propedêutica à fé.

A verdadeira linha de demarcação entre o “sim” e o “não” à cultura é muito íntima e geral, e passa através de cada pensador cristão, porque em cada autor convivem como que duas almas: a cristã, cheia de reservas por uma cultura permeada de ideologia pagã, e a grega, que é por ela subjugada.

No conjunto, porém, a Igreja pré-nicena move-se em direção de um acordo entre cultura clássica e anúncio evan­gélico: “Os cristãos são os filósofos de hoje e os filósofos eram os cristãos de outros tempos”, chega a dizer Minucio Felix (Octavius 20,1).

Justamente por isso era urgente fundamentar e justificar o recurso à cultura pagã.

Recordemos a teoria do Logos spermatikós de Justino. O seu significado é bem conhecido: o Logos, que, na Lei, se manifestou profeticamente (em figura) aos Hebreus, também se manifestou aos Gregos parcialmente sob a forma de sementes de verdade. Ora, conclui Justino, já que o cristianismo é a manifestação histórica e pessoal do Logos em sua totalidade, segue-se daí que “tudo o que de belo (kalôs) foi dito por quem quer que seja, pertence a nós, cristãos” (2 Apologia 13,4).

Justino, como se vê, formula com muita antecipação a idéia do “cristianismo anônimo”, ou implícito, de que se fala em nossos dias. Sem integralismos radicais, deixando à cultura grega o seu caráter profano e contestando suas insuficiências e contradi­ções, ele encontrou a forma de orientar tudo para Cristo, fundando racionalmente a pretensão de universalidade da religião cristã.

Se o antigo testamento tende para Cristo como a figura tende para a própria realização, a verdade grega tende para Cristo e para o Evangelho, como a parte tende a unir-se ao todo.

Eis porque ela não pode se opor à verdade evangélica, e os cristãos podem beber nela com confiança, como num bem próprio.

2. O que a Igreja das origens pode ensinar aos cristãos de hoje quanto à sua relação com a cultura?

A questão é muito complexa e exige uma resposta articulada.

Para acolher a herança e o ensinamento da Igreja antiga é preciso, de fato, superar dois riscos extremos, opostos entre si. Há, de um lado, o risco de quem pretende buscar nas origens cristãs fórmulas idealizadas ou receitas imediatamente utilizáveis no hoje da Igreja.

O outro risco é o de quem não está disposto a aceitar o “carisma das origens”.

Quanto a nós, estamos convencidos de que o estudo dos antigos testemunhos cristãos é fonte de discernimento para a Igreja de todos os tempos.

Com efeito, o período das origens – do que Nicéia representa por muitos aspectos um horizonte objetivo – conserva o seu próprio carisma: é o momento em que o depósito da fé apostólica se consolida na tradição da Igreja. É preciso reconhecer, além disso, que a impostação do encontro entre cristianismo e cultura nos primeiros três séculos deu frutos decisivos – a ponto de amais se poderem esquecer – nos planos da linguagem, da recuperação das diversas culturas e de toda a história, da individualização de uma comum “alma cristã” no mundo e da formulação de novas propostas de convivência humana.

Por isso, o recurso atento e vigilante às origens da Igreja continua muito útil, e até mesmo imprescindível, para compreender e interpretar esta fase, tão rica de fermentos e estímulos sobre as relações entre o evangelho e as culturas do nosso tempo.

Alguns Documentos dos Padres da Igreja

Carta a Diogneto

V.1Os cristãos, de fato, não se diferenciam dos demais homens [...] 2Eles não habitam em cidades próprias nem falam uma linguagem i­nusitada; a vida que levam nada tem de estranho. 3Sua doutrina não é fruto de considerações e elucubrações de pessoas curiosas, nem se fazem promotores, como alguns, de qualquer teoria humana. 4Habitando nas cidades gregas e bárbaras, como coube a cada um, e uniformizando-se aos usos locais no que diz respeito ao vestuário, à alimentação e ao resto da vida quotidiana, mostram o caráter admirável e extraordinário do seu sistema de vida, como todos dizem. 5Habitam na própria pátria, mas ­como estrangeiros, participam de tudo como cidadãos e tudo suportam como forasteiros; ­toda terra estrangeira é sua pátria e toda pátria é terra estrangeira. 6Casam-se como todos, ­geram filhos, mas não expõem os recém-nascidos. 7Têm em comum a mesa, mas não o leito. 8Vivem na carne, mas não vivem segundo a carne. 9Moram na terra mas são cidadãos do céu. 10Obedecem às leis estabelecidas, e com sua vida superam as leis.

Justino, I Apologia

XLVI. 2Foi-nos ensinado que Cristo é o primogênito de Deus, e já demonstramos que Ele é o Logos do qual foi participante todo o gênero humano. 3E aqueles que viveram segundo o Logos são cristãos, mesmo tendo sido julgados como ateus, como, entre os gregos, Sócrates e Heráclito e outros como eles [...] 4Dessa forma, também aqueles que nasceram antes e viveram não segundo o Logos, foram malvados e inimigos de Cristo e assassinos de quantos viviam segundo o Logos. Aqueles, porém, que viveram e vivem segundo o Logos, são cristãos, e impávidos e imperturbáveis.

Justino, II Apologia

VIII. 1Sabemos que foram odiados e mortos também os seguidores da doutrina estóica – como, de alguma maneira, também os poetas [...] graças à semente do Logos que é inata em toda estirpe humana [...]

X. 1A nossa doutrina apresenta-se, portanto, como a mais esplêndida de qualquer doutrina humana, porque para nós se manifestou o Logos total, Cristo, que para nós apareceu em corpo, mente, alma. 2De fato, tudo o que filósofos e legisladores retamente enunciaram e encontraram aos poucos, é fruto de pesquisa e especulação, graças a uma parcela de Logos. 3Mas, uma vez que não conheceram o Logos em sua integridade, que é Cristo, muitas vezes também se contradisseram. 4Os que viveram antes de Cristo e se esforçaram por investigar e indagar sobre as coisas através da razão, segundo as possibilidades humanas, foram arrastados diante dos tribunais como ímpios e muito curiosos. Mais do que qualquer outro, Sócrates, foi acusado das mesmas culpas que se nos imputam [...] 6[...] De fato, em Sócrates ninguém acreditou [...] Em Cristo, ao contrário, conhecido, ao menos em parte, também por Sócrates (Cristo, com efeito, era e é o Logo que está em todas as coisas [...]) acreditaram [...].

XIII. 3Cada um, com efeito, percebendo em parte o que é congênito ao Logos divino espalhado em tudo, formulou teorias corretas 4[...] Portanto, aquilo que de bom foi expresso por quem quer que seja, pertence a nós cristãos. [...] 5Todos os escritores, através da semente inata do Logos, puderam obscuramente ver a realidade. Mas, uma coisa é a semente e a imitação, [...] outra é a coisa em si [...].



8. Agenda

- Dia 11 de cada mês, comemoração do envio da Primeira Expedição Missionária dos SDB e das FMA (11 de novembro de 1875);

- 08-10 de setembro: Reunião dos Missionários/as em Merúri:

*08 - Reunião da Pastoral Indigenista Diocesana de Barra do Garças, em Barra do Garças;

*09 - Reunião da Região III (Paróquias Indígenas) da Diocese, em Merúri;

*10 - Reunião de Missionários SDB e FMA em Merúri.

- 01-31 de outubro: Mês das Missões;

- 24 de outubro: Dia das Missões.

9. Publicações Diversas

Folders:

Índios, Xavante 1, Xavante 2, Xavante 3, Xavante 4, Bororo 1, Bororo 2, Nambiquara. - Aldeias Xavante 2004, Aldeias Kaiowá e Guarani, Aldeias Terena-Kinikinaua-Aticum-Guató-Kamba-Kadiwéu-Ofayè Xavante.

Livros recentes do CDI:

TSAWE, Jerônimo. A'uwe na Rowatsu'u 1. Campo Grande, MSMT-UCDB, 109 p. 2ª ed. 2004

TSAWE, Jerônimo. A'uwe na Rowatsu'u 2. Campo Grande, MSMT - UCDB, 114 p. 2ª ed. 2004

HITSÉ, Xavante Rafael e outros. O Meu Mundo - Wahöimanadzé - Livro de Leitura. Campo Grande, MSMT-UCDB, 2ª ed. 2002, 107 p.

LACHNITT, Georg e TSI'RUI'A, Aquilino Tsere'ubu'õ (Coord.s). Ihöiba prédu 'rãti'i na'ratadzé - Iniciação Cristã de Adultos. Campo Grande, MSMT-UCDB. 2004, 71 p.

VV.AA. (Coord.) Romhurinhihötö Nhoré Waihu'uprãdzé - Cartilha de Leitura I. 2ª ed. Campo Grande, MSMT, 2004, 47 p.; MSMT-UCDB, 2004, 47 p.

VV.AA. (Coord.) Rowatsu'u Nhorédzé-Cartilha de Leitura II. 2ª ed. Campo Grande, MSMT, 12004, 106 p.; 2ª ed. MSMT-UCDB, 2004, 106 p.

LACHNITT, Georg. O Símbolo "Água" na Iniciação Cristã. Ed. prov. Campo Grande, MSMT-UCDB, 2004, 126 p.

LACHNITT, Georg. Estudando o Símbolo. Ed. prov. Campo Grande, MSMT-UCDB, 2004, 151 p.

LACHNITT, Georg. Ritos de Passagem do Povo Xavante - um estudo sistemático Ed. prov. Campo Grande, MSMT-UCDB, 2004, 155 p.

OBS: Eventuais pedidos sejam dirigidos ao CDI, com o endereço acima.

1David KAPLAN e Robert A. MANNERS, Teoria da cultura, p. 255.

2Cf. Mircea ELIADE, Aspectos do mito. p. 23, 123; cf. ainda Lúcio PINKUS, O mito de Maria, uma abordagem simbólica, p. 40, 2).

3Cf. Mircea ELIADE, Aspectos do mito. p. 123.

4Cf. ibidem p. 123.

5Constança Marcondes CÉSAR, Implicações contemporâneas do mito, in: Régis de MORAIS (org.), As razões do mito, p. 40, interpretando Paul RICOEUR, O conflito das interpretações.

6Ibidem p. 40, apoiando-se em Schelling e Ferreira da Silva.

7Cf. Mircea ELIADE, Aspectos do mito. p. 119, 123; cf. ainda Luis Campos MARTINEZ, Utopia somos nosotros, antropologia, p. 237; Lúcio PINKUS, O mito de Maria, uma abordagem simbólica, p. 40, 3).

8Luis Campos MARTINEZ, Utopia somos nosotros,antropologia,p.237.

9Mircea ELIADE, Aspectos do mito. p. 123.

10Cf. ibidem p. 119.

11Luis Campos MARTINEZ, Utopia somos nosotros,antropologia,p.237.

12Maria da Piedade Eça de ALMEIDA, Mito: metáfora viva? in: Régis de MORAIS (org.), As razões do mito, p. 62, citando Mircea Eliade.

13Mircea ELIADE, Aspectos do mito. p. 13.

14Ibidem. p. 14.

15Ibidem; cf. também Waldomiro O. PIAZZA, Introdução à fenomenologia religiosa, 1983, p. 205, 207.

16Cf. Thomas F. O'DEA, Sociologia da religião, p. 63, citando Bronislaw Malinowski.

17Cf. Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 106 ss.

18Lucy MAIR, Introdução à antropologia social, p. 243.

19Ibidem. p. 243.

20Pierre BOURDIEU, A economia das trocas simbólicas, p. 32.

21Maurice FREEDMAN, Antropologia social e cultural. 1.o vol, p. 177.

22Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional Banto, p. 40.

23Cf. Waldomiro O. PIAZZA, Introdução à fenomenologia religiosa, 1983, p. 222.

24Claude LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, p. 242.

25Waldomiro O. PIAZZA, Introdução à fenomenologia religiosa, 1983, p. 220.

26Cf. ibidem p. 206.

27Ibidem p. 206, cf. 221-222.

28Cf. ibidem p. 222.

29Ibidem p. 206, cf. 223.

30Ibidem p. 223.

31Cf. ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Lisboa, Cosmos / Martins Fontes, 1977.

32Lúcio PINKUS, O mito de Maria, uma abordagem simbólica, p. 37-38; o grifo é meu.

33Ibidem p. 39.

34Ibidem p. 39.

35Maria da Piedade Eça de ALMEIDA, Mito: metáfora viva? in: Régis de MORAIS (org.), As Razões do mito, p. 64.

36Ibidem p. 64.

37Ibidem p. 65.

38Aldo Natale TERRIN, Leitourgia, dimensione fenomenologica e aspecti semiotici, p. 56.