251-300|pt|293 - Disciplina religiosa (renovado empenho)

Egídio Viganò


Renovado empenho na disciplina religiosa


Atos do Conselho Superior


Ano LX – JULHO-SETEMBRO, 1979


N. 293





Introdução. – “Despertar a aurora”. – Preocupar-se com uma estratégia de participação ativa. – Dom Bosco cultivava diligentemente a disciplina do espírito. – Novidade de empenho na disciplina religiosa. – Domos “Discípulos”. – Conclusão.



Roma, Vigília de Pentecostes de 1979.



Caríssimos,



Com os Apóstolos e Maria, na expectativa orante que caracteriza os dias que vão da Ascensão a Pentecostes, este ano o encerramento do mês de maio nos faz viver dias de contemplação na busca, dias de oração na esperança, dias de comunhão no mistério. É a Igreja dos inícios, pequena e sem experiência dos povos, mas com os seus melhores elementos e com o mais alto potencial de futuro.

Se é verdade que hoje somos todos chamados a viver um novo clima de Pentecostes, procuremos imitar a Maria e os Apóstolos na expectativa e na disponibilidade ao Espírito Santo.

Nos meus contatos, cada vez mais frequentes, com os Irmãos de tantas Inspetorias, convenço-me sempre mais de que a Congregação está a entrar em sintonia com esta hora privilegiada do Espírito do Senhor.

O nosso relançamento mariano e a lembrança sobre o Sistema Preventivo de Dom Bosco estão despertando um pouco por toda a parte iniciativas de recuperação em profundidade que abrem o coração à confiança.

O Santo Padre, na sua primeira encíclica “Redemptor Hominis”, nos diz que “estamos também nós, de alguma maneira, no tempo de um novo Advento, que é tempo de expectativa” (RH 1), e nos pergunta: “o que será necessário fazer, para que este novo advento da Igreja, conjugado com o já iminente fim do segundo Milênio, nos aproxime d’Aquele que a Sagrada Escritura chama “Pai perpétuo”, “Pater futuri saeculi?” (RH 7).



Despertar a Aurora”



Tantos acontecimentos eclesiais recentes (a eleição dos dois sucessores de Paulo VI, o ministério dinâmico de João Paulo II, a Conferência episcopal de Puebla, além de vários eventos anteriores ligados ao Concílio Ecumênico Vaticano II e, para nós, também os dois últimos Capítulos Gerais e outras iniciativas da Família Salesiana), vão manifestando um processo global assaz positivo de retomada da vocação cristã e religiosa.

Nasce, destarte, no ânimo do crente um sentido espon­tâneo de júbilo que o faz repetir com o salmista: “Desperta, meu coração, harpa e lira, despertai! Possa eu a aurora despertar!” (SI 56).

Há motivos para pensar que assistimos hoje na Igreja à aurora de uma nova época de genuinidade cristã e cresci­mento evangélico.

Mas a hora dos inícios, numa história da qual devemos participar como protagonistas, não se contenta simplesmente com uma atitude nossa de poetas a contemplar passivamente o que faz a natureza. Somos nós mesmos que, em sintonia com o Espírito do Senhor, somos chamados a “despertar a aurora”. Uma época nova na história não se reduz nunca a mera evolução, mas é fruto de empenho, ou seja, de vontade constante e decidida; cabe aos nossos esforços construí-la!

Para isso urge que, juntamente com a constatação das iniciativas de Deus e com a atração da novidade que envolve o nascimento de outra jornada original de vida eclesial, haja outrossim a consciência da nossa responsabilidade, a busca de uma metodologia de participação e uma programação realista e prática da nossa colaboração.



Preocupar-se com uma estratégia de participação ativa



Para bem construir um avião seguro e veloz requer-se uma técnica sofisticada e precisa; para preparar convenien­temente um astronauta exigem-se muitas qualidades pessoais, além de longo e rigoroso treinamento; para mudar as estruturas de uma sociedade é indispensável não só formular um projeto corajoso, mas ainda programar concretamente a sua realização e dedicar-se a ela com grandes sacrifícios; para renovar o mundo e salvar o homem, a sabedoria divina inventou o mistério pascal, no qual há um lugar central para a renúncia de si mesmo até a morte. Não há salvação nem verdadeiro amor sem sacrifício; não há renascimento eclesial sem livre aceitação da cruz. O verdadeiro discípulo de Cristo contempla a aurora de um novo dia, não de uma poltrona, mas do monte Calvário, preocupado, não em diminuir-lhe o encanto e a beleza, mas em assumir a responsabilidade que o leva a preencher com gestos de amor as subsequentes horas de luz; é esta uma faina diária que exige luta e sacrifício.

Numa hora de inícios e de esperanças, como a nossa, é pedagogicamente indispensável focalizar nossa atenção sobre um dado de fato sem o qual não poderemos ser protagonistas da novidade que nasce. Trata-se de uma metodologia, indis­pensável ao amor cristão: a disciplina do espírito.

O empenho ascético, que é exercício de amor na renúncia e no sacrifício como dom de si, faz parte do mistério cristão de modo essencial; ele, além disso, caracteriza com um acento todo peculiar a própria natureza da Vida religiosa; não existe um só Instituto que haja desenvolvido o carisma do Fundador prescindindo de uma disciplina concreta.

É necessária, pois, uma consciência clara de elemento tão prático, sobre o qual tanto insistiram os santos e do qual nos falou de maneira muito exigente também o nosso querido Fundador.



Dom Bosco cultivava diligentemente a disciplina do espírito



Queria Dom Bosco que os seus Salesianos vivessem uma disciplina concreta de vida religiosa. Além da sua caracte­rística pedagogia do “trabalho” e da “temperança”, insistia na adesão livre e simples, mas concreta, às Constitui­ções. “A observância das nossas regras custa fadigas” — escrevia ele próprio aos Irmãos numa circular de 1884 (...) “Meus caros, queremos então ir de carruagem para o céu? Não foi para gozar que nos fizemos religiosos, mas para sofrer e conquistar méritos para a outra vida; não foi para mandar que nos consagramos a Deus, mas para obedecer; não para apegar-nos às criaturas, mas para praticar a caridade para com o próximo, movidos só pelo amor de Deus; não para levar uma vida cômoda mas para ser pobres com Jesus Cristo, sofrer com Jesus Cristo na terra a fim de nos tornarmos dignos da sua glória no céu” (MB XVII 15-17).

E na sua primeira carta circular (que já lembramos em janeiro; cf. ACS n. 291), Dom Bosco insistia com muita clareza: “Primeiro objetivo da nossa Sociedade é a santifi­cação dos seus membros. Por isso cada um na sua entrada se despoje de qualquer outro pensamento, de qualquer outra solicitude. Quem entrasse para desfrutar uma vida tranquila, ter comodidades (...), visaria um fim distorcido que não seria mais o ‘sequere me’ do Salvador, uma vez que buscaria a própria utilidade temporal, não o bem da alma (...). Nós colocamos como base a palavra do Salvador, que diz: (...) “Quem quiser ser meu discípulo (...) siga-me com a oração, com a penitência e sobretudo renuncie a si mesmo, tome a cruz das tribulações cotidianas e siga-me” (...). Mas até quando o seguir? Até a morte e, se fosse preciso, também a uma morte de cruz” (MB VIII 828-829).

Aos próprios meninos do Oratório, que Dom Bosco com grande visão sabia guiar à santidade, recomendava como estrada real a alegria intimamente ligada ao pleno cumpri­mento dos próprios deveres (cf. p. ex. o cap. 18 da “Vida de Domingos Savio”).

E sabemos que na sua práxis educativa, “embora sempre tão manso, Dom Bosco não passava facilmente por cima das faltas de disciplina” (MB VI 306).

Podemos lembrar ainda a sua severa advertência sobre o futuro da nossa Família: “Enquanto os Salesianos e as Filhas de Maria Auxiliadora se consagrarem à oração e ao trabalho, praticarem a temperança e cultivarem o espírito de pobreza, as duas Congregações farão grande bem; mas se por desgraça diminuírem o fervor e fugirem da fadiga, e amarem as comodidades da vida, terão encerrado a carreira, começará para elas a parábola descendente, irão de encontro ao chão e se esfacelarão” (MB X 651-652).

E a forte expressão posta como fecho ao caderno das suas “Memórias”: “Quando começarem entre nós as como­didades e o luxo, a nossa Pia Sociedade terá chegado ao fim” (MB X 652, nota 1).

Quis citar palavras tão admonitórias não decerto para iniciar aqui uma elegia desconsolada que, além do mais, estaria em contraste com quanto vim exprimindo desde o começo. É verdade que sempre há faltas a corrigir, e é sempre necessário que nos lembremos do significado da cruz na vida de fé, como ainda o da ascese e da disciplina na vida religiosa.



Novidade de empenho na disciplina religiosa



Entendo, pois, convidar-vos a refletir sobre o importante aspecto da “disciplina religiosa”, não porque alarmado por uma constatação de relaxamento e decadência, mas porque estimulado pela urgência de saber assumir logo e com inteli­gência os valores indispensáveis de uma ascese renovada.

As grandes mudanças atuais, mais que a infidelidade, parece haverem contribuído para eclipsar momentaneamente entre os religiosos o sentido profundamente evangélico de uma disciplina concreta de vida, quase como reação a uma espécie de moralismo formalista, a uma falta de sensibili­dade do novo processo de personalização, a certa alienação dos grandes empenhos atuais de reforma da sociedade; e também como superestima do que há de positivo nos sinais dos tempos, sem se preocupar com perceber-lhe as ambigui­dades e sem dar relevo às graves desorientações provocadas por uma moda secularista, sobre cujo horizonte rasteiro já não aparece o perfil da cruz.

De semelhante reação pode facilmente derivar também o relaxamento, como triste consequência de uma mentalidade defasada que tem urgente necessidade de conversão. De fato, a história e a experiência nos ensinam que a Vida religiosa recobra vigor precisamente quando nela renasce a consciência e a prática, tanto pessoal quanto comunitária, do tipo de disciplina ascética querida pelo Fundador.

O Papa Paulo VI dizia aos membros de um Capítulo Geral: “O amor à disciplina, que um deformado conceito do termo quereria apresentar hoje como limitação, e não, ao invés, como garantia e sustentáculo do apostolado, ampare, como rocha que jamais esboroa, os ideais da oração, da vida religiosa e da atividade de ministério e de formação” (28 de agosto de 1974, ao CG dos Rogacionistas).

A união faz a força, mas a disciplina faz a união”! já havia dito Pio XI ao falar da importância da corresponsabilidade e da capacidade de colaboração (12 de junho de 1929, à Federação Nacional Católica Francesa).

Para que se possa recobrar cada vez mais na Congrega­ção o vigor da vocação e a intensidade da comunhão é preciso que nos dediquemos a verificar e renovar a prática da disciplina salesiana de Dom Bosco. Para uma ajuda de reflexão prática pedi ao “meu colaborador mais próximo”, o querido P. Scrivo, Vigário Geral, ao qual “está confiado o cuidado e a responsabilidade da vida e da disciplina religiosa” (Const. 138) que especificasse algumas exigências dessa nossa disciplina construtiva que mais substanciais se mostrem na hora presente.

Por isso mesmo que queremos contribuir para o êxito de um belo dia preanunciado pela aurora atual é que urge fazer com que recobrem peso e força entre nós certos valores ascéticos da nossa profissão religiosa.

Podemos trazer à memória, como testemunho profético de atualidade, o autorizado apelo à disciplina, na vida da Igreja, lançado pelos dois novos Pontífices.

João Paulo I dela falou explicitamente no seu primeiro discurso aos Cardeais e depois, outra vez, ao Clero romano. Não aludia ele a uma “pequena disciplina” de formalidades, mas sim à “grande disciplina”. Ela “existe somente quando a observância externa é fruto de convicções profundas e projeção livre e alegre de uma vida vivida intimamente com Deus. (... Esta) grande disciplina requer um clima adequa­do” (L’Osservatore Romano, 8.9.1978).

E João Paulo II, na sua radiomensagem inaugural, volta a inculcar o mesmo conceito. “Fidelidade significa, ainda, culto da grande disciplina da Igreja. (...) A disciplina, com efeito, não tende a mortificar, mas a garantir o reto ordena­mento próprio do Corpo místico, como para assegurar a articulação regular e fisiológica entre todos os membros que o compõem” (L’Osservatore Romano, 18.10.1978).



Somos “Discípulos”



Caríssimos, o significado profundo (não só etimológico) da disciplina está ligado afinal ao conceito de “discípulo”. A nossa disciplina religiosa pertence de uma parte ao propósito radical da sequela de Cristo e de outra, ao projeto histórico assumido livre e publicamente com o ato da pro­fissão, pelo qual escolhemos ficar com Dom Bosco, segundo as Constituições da Sociedade de S. Francisco de Sales (Cf. Const. 73 e 74).

Ser discípulo de Cristo, na Vida religiosa, comporta uma adesão iluminada ao mistério pascal da cruz, consoli­dada por um projeto concreto de existência elaborado pelo Fundador e testemunhado tanto por ele como pela tradição viva do próprio Instituto: implica, pois, também, para nós, sermos discípulos de Dom Bosco. Trata-se, aqui, de um tipo carismático de disciplina que nos faz ouvir e seguir o nosso Santo como Mestre e Guia não só nos vastos objetivos da sua missão, mas também nas exigências das diretrizes práti­cas do seu “estilo particular de santificação e de apostolado” (MR 11) que encarna na Igreja um Carisma específico do Espírito Santo.

Razões não faltam para valorizar essa maneira de ser discípulos.

Primeiramente a Sagrada Escritura, ao apresentar-nos o tema da Aliança — e a vocação religiosa deve ser interpretada no esquema da Aliança! –, apoia-o em duas colunas: a intimidade com Deus, que é a alma da aliança e ajuda a plasmar no homem um coração novo; e a prática dos mandamentos, como resposta existencial e medida concreta de adesão à aliança. O centro vital da aliança é constituído pela “amizade”, mas é acompanhado e defendido pela “lei” à maneira de pedagogo.

A disciplina aparece, então, como a pedagogia de uma liberdade historicamente empenhada num amor de aliança. Em tal esquema, é igualmente verdade que uma observância sem amor não tem vida; mas também que um amor sem observância é falso.

Recordemos as palavras de S. João: “Eis como sabemos que o conhecemos: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz conhecê-lo e não guarda os seus mandamen­tos, é mentiroso e a verdade não está nele. Aquele, porém, que guarda a sua palavra, nele o amor de Deus é verdadeira­mente perfeito” (1 Jo 2,3-4).

Encontramos uma segunda razão na encíclica “Redemptor Hominis”. Nela o Santo Padre insiste sobre a centralidade que têm na vida da Igreja a Eucaristia e a Penitência.

Pois bem: a Eucaristia exprime o ápice do mistério da aliança pascal nas palavras consecratórias que proclamam o sentido máximo do amor, “isto é o meu corpo e este é o meu sangue dado por vós”: portanto, o sacrifício de si mesmo aos outros.

A Penitência, por sua vez, é o sacramento da conversão a uma ascese que exige arrependimento e purificação do coração: convertei-vos e crede no Evangelho! “Sem esse constante e sempre renovado esforço pela conversão — diz o Papa —, a participação na Eucaristia ficaria privada da sua plena eficácia redentora” (RH 20). A Penitência com­porta, juntamente com a verificação humilde das próprias faltas, o propósito prático de uma conduta de discípulo.

Com razão, pois, o Papa afirma “que a Igreja do novo Advento, a Igreja que se prepara continuamente para a nova vinda do Senhor, tem de ser a Igreja da Eucaristia e da Penitência” (RH 20).

Outra razão, que não se deve subestimar, é que os próprios jovens, aos quais somos enviados, têm necessi­dade do nosso testemunho de disciplina religiosa, tanto pessoal como comunitária, como de um sinal evidente e tangível da nossa missão eclesial a serviço deles. Do nosso modo de viver possam induzir que o batismo é para nós um empenho radical de luta espiritual que nos encaminha, como discípulos de Cristo, para o martírio como expressão supre­ma do dom de si aos outros, e que a profissão religiosa nos incorporou a uma comunidade orgânica e apostólica que realiza na Igreja um projeto comprovado de serviço pedagó­gico. O olho atento e penetrante do educando descobre facilmente que a presença de uma sábia disciplina deve impregnar todo o processo educativo de tal modo que o “ser formado” comporta de per si “ser disciplinado”; a disciplina, com efeito, acompanha o homem maduro como uma qualidade definitiva que lhe assegura a harmonia e o domínio dos seus dotes e energias.

A necessidade de ver o testemunho de uma disciplina equilibrada e livre, que reforce a convivência na comunhão e multiplique a eficácia de um empenho de serviço, é particularmente sentida na sociedade atual, jogada de um extremo a outro do totalitarismo à anarquia.

Enfim, como motivação terapêutica, se se quiser evitar deveras o “mal obscuro do individualismo”, do qual falou o nosso benemérito P. Ricceri numa circular de 1977 (ACS 286, abril-junho de 1977). O individualismo vive estrei­tamente ligado à indisciplina e é um câncer que anula na raiz a possibilidade de renovação da Vida religiosa. Urge, pois, saber transfundir na conduta diária as riquezas con­cretas da obediência religiosa e recuperar o significado realista do voto correspondente; eles aportam logicamente nas exigências práticas da disciplina religiosa, imitando e seguindo concretamente aquele Cristo que “foi obediente a Deus até à morte, e à morte de Cruz” (Fl 2,8). O aburguesamento e a dissolução individualista da comunidade são fruto de uma carência de disciplina vinculada ao esqueci­mento do mistério pascal.



Queridos Irmãos, concluindo a sua primeira encí­clica, o Papa exprime caloroso e humilde convite à oração: “Suplico a Maria, celeste Mãe da Igreja, sobretudo, que nesta oração do novo Advento da humanidade, Ela se digne de perseverar conosco” (RH 22).

Pois bem: Ela que viveu com alegria a mais bela aurora da história da salvação, e abraçou com generosidade a difícil disciplina do seu ministério de mãe de Cristo até ao ponto de com ele subir o Calvário, demonstrou-nos também com o seu testemunho pessoal que o maior amor passa somente por esse caminho. Peçamos-lhe com confiança que nos acompanhe, qual Auxiliadora da nossa vocação de aliança, ajudando-nos a intensificar e renovar seja a intimidade da nossa amizade com Deus, seja a vontade prática de empenho da nossa disciplina religiosa.

Saúdo-vos a todos e peço-vos que completeis as minhas reflexões sobre a disciplina religiosa com o aprofundamento das particularizações práticas apresentadas pelo P. Scrivo. [Texto a seguir]

Dom Bosco nos obtenha luz e coragem! Fraternalmente.



P. Egídio Viganò

Reitor-Mor









Caetano Scrivo

Vigário do Reitor-Mor


OS CONTEÚDOS DA DISCIPLINA RELIGIOSA


Atos do Conselho Superior


Ano LX – JULHO-SETEMBRO, 1979


N. 293



Convidado pelo Reitor-Mor a “especificar na prática” algumas exigências da disciplina religiosa que parecem mais substanciais na hora atual, julgo oportuno apresentar os “conteúdos” mais significativos que dão consistência con­creta — tão apreciada por Dom Bosco — à nossa disciplina religiosa.



1. Fidelidade à Igreja. Como salesianos, vemos na Igreja, povo de Deus, a comunhão de todas as forças que trabalham para a salvação, seu centro de unidade e de animação. Em particular devemos ter veneração e adesão especial ao sucessor de Pedro, para com os Bispos, sincera caridade e obediência... Colaboramos sempre com a preo­cupação de que o Corpo de Cristo cresça; reconhecemos como supremo superior o Sumo Pontífice; acolhemos com docilidade seu magistério e ajudamos os jovens e os fiéis a aceitar-lhe os ensinamentos (cf. Const. 44 e 128).

Esses dois artigos constitucionais fixam de maneira inequívoca um primeiro conteúdo da nossa disciplina reli­giosa. O Reitor-Mor iluminou-o de maneira autorizada e incisiva, ao encerrar a discussão sobre o segundo documento do CG21: “Penso se deva recuperar um pressuposto vital e uma intuição global, digamos assim, de hermenêutica sale­siana, que precede e guia a capacidade crítica e a análise reflexiva; é uma atitude de virtude, uma inclinação conatu­ral do nosso espírito peculiar, que comporta uma emblemá­tica experiência de fé no mistério de Pedro; ela foi vivida fortemente por Dom Bosco, e vimo-la arraigada permanente­mente na nossa tradição como uma das colunas da tríade espiritual do Salesiano: a Eucaristia como centro da família, o aspecto mariano da nossa espiritualidade apostólica, e o realismo eclesial de adesão sobrenatural consciente e ope­rosa ao Papa” (CG21 228).

Aludo apenas a alguns setores nos quais o nosso empe­nho de fidelidade à Igreja é hoje particularmente significa­tivo, como resulta de recentes documentos do Magistério.

Na sua primeira Encíclica, “Redemptor hominis”, João Paulo II, após haver lembrado que “é uma verdade essencial, não só doutrinal mas também existencial, que a Eucaristia constrói a Igreja, e constrói-a como autêntica comunidade do Povo de Deus” acrescenta: “Se bem que seja verdade que a Eucaristia foi sempre e deve ser ainda agora a mais profunda revelação e celebração da fraternidade humana dos discípulos e confessores de Cristo, ela não pode ser conside­rada simplesmente como uma ocasião para se manifestar tal fraternidade. Ao celebrar o Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, é necessário respeitar a plena dimensão do mistério divino... De aqui deriva o dever de uma rigorosa observância das normas litúrgicas e de tudo aquilo que testemunha o culto comunitário rendido ao mesmo Deus, tanto mais que Ele, neste sinal sacramental, se nos entrega com confiança ilimitada, como se não tivesse em consideração a nossa fraqueza humana, a nossa indigni­dade, os nossos hábitos, a rotina ou até mesmo a possibili­dade de ultraje” (RH 20).

O convite do CG21 a renovar a nossa oração com “a abertura para uma equilibrada espontaneidade e criatividade, quer pessoal, quer comunitária, para superar o perigo da rotina e para satisfazer o desejo de maior autenticidade” (n. 45) não pode evidentemente justificar “improvisações, banalidades, leviandades, mas deve executar-se e estar de acordo com o dever da plena observância das normas litúr­gicas” a que nos incita o Papa.

Na mesma Encíclica lembra-se ainda outro aspecto fundamental da ascese cristã: “Na Igreja... deve estar viva a necessidade da penitência... Cristo, que convida ao ban­quete eucarístico, é sempre o mesmo Cristo que exorta à penitência, que repete o ‘convertei-vos’... Nos últimos anos muito se fez para pôr em evidência — em conformidade, aliás, com a mais antiga tradição da Igreja — o aspecto comunitário da penitência e, sobretudo, do sacramento da Penitência na prática da Igreja. Estas iniciativas são úteis e servirão certamente para enriquecer a práxis penitencial da Igreja contemporânea. Não podemos esquecer, no entan­to, que a conversão é um ato interior de uma profundidade particular, no qual o homem não pode ser substituído pelos outros, não pode fazer-se substituir pela comunidade...

A Igreja, pois, ao observar fielmente a plurissecular prática do Sacramento da Penitência — a prática da confissão indi­vidual, unida ao ato pessoal de arrependimento e ao propó­sito de satisfação e emenda — defende o direito parti­cular da alma humana. É o direito a um encontro mais pessoal do homem com Cristo crucificado que perdoa, com Cristo que diz, por meio do ministro do sacramento da Reconciliação: ‘São-te perdoados os teus pecados’; ‘Vai e doravante não tornes a pecar’. Como é evidente, isso é ao mesmo tempo o direito do próprio Cristo em relação a todos e a cada um dos homens por Ele remidos. É o direito de encontrar-se com cada um de nós naquele momento-chave da vida humana, que é o momento da conversão e do perdão.

A Igreja, ao manter o sacramento da Penitência, afirma expressamente a sua fé no mistério da Redenção, como reali­dade viva e vivificante, que corresponde à verdade interior do homem, à humana culpabilidade e também aos desejos da consciência humana. ‘Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados’. O sacramento da Penitência é o meio para saciar o homem com aquela justiça que provém do mesmo Redentor... É certo que a Igreja do novo Advento, a Igreja que se prepara continuamente para a nova vinda do Senhor, tem de ser a Igreja da Eucaristia e da Penitência. Somente com este perfil espiritual da sua vitalidade e atividade, ela é a Igreja da missão divina, a Igreja in statu missionis, conforme nos foi revelado o rosto dela pelo II Concílio do Vaticano” (RH 20).

Encontramos nessas palavras do Papa excepcional den­sidade de motivações para acolhermos a orientação prática do CG21: “Cada Salesiano renove o seu empenho de fideli­dade ao sacramento da Reconciliação” (n. 60) e para melhor colhermos o valor da pedagogia da Penitência característica de Dom Bosco, que garante “a continuidade entre o estilo de aproximar-se do jovem, no mesmo processo educativo, e o que consegue estabelecer no momento sacramental” (CG21 93).

Sobre o tema da nossa fidelidade à Igreja merece ainda particular atenção o documento comum da S. Congregação para os Religiosos e Institutos Seculares e da S. Congregação para os Bispos “Mutuae relationes”. Após uma primeira parte de breve síntese doutrinal, são dadas diretrizes e normas, voltadas sobretudo para a prática. Não podemos ignorá-las nem as desatender, dado que — como afirma o art. 33 das Constituições “nossa missão realiza-se dentro e a serviço das Igrejas locais. Inserimo-nos, com um trabalho especializado, na pastoral de conjunto, que tem no Bispo seu primeiro responsável e nas diretrizes das Conferências Episcopais sua organização em esfera mais ampla. Uma das principais leis de nossa ação é, pois, colaborar com os diversos organismos de apostolado e de educação”.

Transcrevo do “Mutuae relationes” duas normas que me parecem mais pertinentes no contexto do nosso tema. “Para que as relações entre os Bispos e os Superiores deem dia a dia frutos mais abundantes, devem transcorrer sempre num atencioso respeito das pessoas e dos Institutos, na convicção de que os Religiosos devem dar testemunho de docilidade ao Magistério e de obediência aos Superiores, e na vontade recí­proca de não invadir os respectivos limites de competência. Quanto aos Religiosos que exercem atividade apostólica fora das obras do próprio Instituto, é necessário resguardar a participação substancial na vida de comunidade e a fide­lidade às próprias Regras ou Constituições: os mesmos Bispos não omitam de urgir esta obrigação. Nenhum compromisso apostólico deve ser ocasião de defletir da própria vocação” (MR 45,46).



2. As Constituições. Rejeitando a acusação injustifi­cada de juridicismo e superando uma difundida alergia a quanto possa aparecer “normativo”, devemos convencer-nos de que o futuro da nossa existência religiosa está vinculado às Constituições, não como a um conjunto de receitas fáceis, mas como a um caminho que conduz ao Amor. Haveremos de adquirir um sentido vivo e autêntico das Constituições na medida em que as olharmos numa tríplice perspectiva, que nos faz perceber claramente o seu papel insubstituível.

Em perspectiva evangélica, as Constituições contêm uma “leitura salesiana do Evangelho” da qual deriva uma maneira salesiana e um caminho seguro para vivê-lo: “Dóceis ao Espírito Santo e atentos aos sinais que Ele nos dá através dos acontecimentos, tomamos o Evangelho como regra supre­ma de vida, as Constituições como caminho seguro” (Const. 91). Constituem elas um instrumento específico para nós, a fim de interpretarmos retamente a vontade de Deus nos múltiplos sinais em que se manifesta, sinais que não são sempre de fácil e clara leitura (cf. CGE 630).

Em perspectiva carismática, as Constituições derivam de um dom do Espírito Santo que quis enriquecer a Igreja com o carisma de Dom Bosco Fundador. São, pois, o parâmetro da nossa identidade, enquanto delineiam com autori­dade e certeza a fisionomia própria da nossa vocação.

O Reitor-Mor, no seu discurso de encerramento do CG21, assim se exprimiu: “(As Constituições) precedem em valor vocacional e julgam as nossas multiformidades; são uma Plataforma de unidade, que determina com precisão o espí­rito e os objetivos comuns e delimita o serviço tanto da autoridade como das iniciativas da criatividade. Somente a Santa Sé, o CG e o Reitor-Mor com o seu Conselho podem interpretar autenticamente as Constituições (cf. Const. 199); não seria, portanto, legítimo um pluralismo que se lhes ante­pusesse em valor vocacional ou quisesse manipulá-las neste ou naquele sentido, segundo a mentalidade mais em moda” (CG21 581).

Em perspectiva eclesial, as Constituições indicam e de­fendem os componentes essenciais da nossa missão na Igreja. O projeto apostólico de Dom Bosco nasceu por iniciativa divina. “A Igreja reconheceu a ação de Deus, sobretudo ao aprovar as nossas Constituições e ao canonizar o Fundador” (Const. 1). As Igrejas locais nas quais trabalhamos esperam que nos insiramos vitalmente nelas para nelas tornar presente o testemunho próprio dos filhos de Dom Bosco: “ser, em estilo salesiano, sinais e portadores do amor de Deus aos jovens, especialmente aos mais pobres” (Const. 2).

Uma inserção que viesse a perder essa orientação seria deformação da nossa identidade e ao mesmo tempo empo­brecimento para a própria Igreja local.

Nessa tríplice perspectiva, o CG21 afirma: “Viver as Constituições — para cada Salesiano — é um ato de fé em Jesus Cristo e no seu Evangelho, um empenho de fidelidade a uma vocação recebida como dom na Igreja...” (CG21 378).

Por ocasião do Centenário da aprovação das nossas Constituições, o P. Ricceri escreveu uma carta que é mais atual do que nunca: remeto a ela para uma síntese do pensa­mento de Dom Bosco e dos seus sucessores sobre a Regra (ACS 279, abril-junho de 1974).

Concluo aqui com as palavras de Dom Bosco: “Se me amastes no passado, continuai a amar-me no futuro com a exata observância das nossas Constituições” (MB XVII 258).



3. Os Regulamentos gerais. É evidente que as Consti­tuições não podem prever todas as situações e problemas que a vida, no seu dinamismo histórico, põe continuamente a um religioso e a uma comunidade. A esse dado de fato — dentro dos limites realistamente possíveis — costumam responder os Regulamentos gerais. Que eles entrem nos conteúdos da disciplina religiosa, deduz-se claramente do n. 381 do CG21: “Os Regulamentos Gerais representam o conjunto das disposições que traduzem em normas adaptadas às situações mutáveis os elementos gerais da Regra de vida. Eles contêm por isso as aplicações concre­tas e práticas de interesse universal das Constituições, válidas, portanto, para serem praticadas em toda a Congregação... Do ponto de vista jurídico os Regulamentos formam com as Constituições um único corpo vinculatório, enquanto parti­cipam da mesma característica de lei, embora pela matéria que contêm ou pela vontade explícita do legislador possam ter um caráter obrigatório diverso” (CG21 381).



4. As decisões dos Superiores nas respectivas esferas de competência. É o último conteúdo da disciplina religiosa a que desejo aludir. Dom Bosco quis uma Congregação na qual cada um estivesse “disposto a fazer grandes sacrifí­cios... não de saúde, nem de macerações e penitências, nem de abstinência extraordinárias na alimentação, mas de von­tade” (MB VII 47: discurso de Dom Bosco aos primeiros colaboradores).

Por outra parte escreve o P. Caviglia: “Sei que posso afirmar que Dom Bosco, embora exigisse uma disciplina amorosa de cristão e de religioso, respeitou — no máximo grau com ela compatível — a vontade dos seus e das suas ideias, deixando, diria, muito e muito espaço ao redor de cada pessoa” (Don Bosco, p. 169 e 25).

O CGE no documento 12 delineou a renovação da obe­diência salesiana hoje na base das indicações conciliares, em resposta aos sinais dos tempos e na linha do pensamento e maneira de fazer de Dom Bosco. Não faltaram, porém, interpretações tendenciosas, deduções arbitrárias, incerte­zas sobre algumas formulações daquele documento e de alguns relativos artigos constitucionais e outras deficiências de natureza prática.

No seu trabalho de verificação, o CG21, ao tratar da obediência, refere-se à Relação do Reitor-Mor, P. Ricceri: “Há nos Irmãos grande disponibilidade: a enorme maioria dos salesianos, mesmo em casos de obediências que por vezes se tornam heroicas..., demonstra uma disponibilidade edificante, feita de amor e de fé. Aproveito a ocasião para exprimir a esses generosos Irmãos toda a gratidão da Con­gregação. Enquanto houver homens assim nas nossas filei­ras, podemos olhar para o futuro com esperança e confiança” (RRM 122).

O Capítulo, todavia, reconhece que “há também deficiên­cias: falhas e desvios que se encontram mais no plano da prática do que no das ideias. Observa-se, de fato, certa insensibilidade para com a solidariedade operativa, a tendên­cia desorientadora de trabalhar sozinho e de acordo com linhas individualistas, a sensação de que o agir em comunida­de seja um freio e um empecilho. Releva-se também a incom­preensão da mesma natureza evangélica da autoridade e de seus encargos na comunhão fraterna. A credibilidade do testemunho requer que se viva a substância da fé como obediência a Deus e participação pessoal da morte e vida de Cristo, e se reconheça a urgência das mediações para se chegar até Ele: a mediação da Igreja, dos homens, da frater­nidade. E isto no espírito e nas formas renovadas do relacionamento da vida comunitária e de obediência, no diálogo, na corresponsabilidade e na colaboração em todos os níveis” (CG21 41).

Tendo em conta tal situação, o Capítulo Geral julgou oportuno repetir e esclarecer quanto já havia dito o CGE sobre a obediência religiosa hoje. Fê-lo em duas ocasiões. Primeiro no documento fundamental “Os Salesianos evan­gelizadores dos jovens”, quando especifica o papel do diretor na animação da comunidade para a evangelização, estabele­cendo também uma ordem de prioridades nas funções confiadas ao Diretor: servidor da unidade e guarda da iden­tidade salesiana; guia pastoral da missão salesiana, exercendo o tríplice ministério de mestre da Palavra, santificador através dos Sacramentos e coordenador da atividade apostó­lica; orientador dos empenhos de educação humana confia­dos à sua comunidade no setor pedagógico e escolar, cultural, social e associativo; primeiro responsável pela gestão global da obra (economia, estrutura, disciplina, relações públicas, construções) (cf. CG21 52). Para tais tarefas “possui sem dúvida verdadeira autoridade religiosa em rela­ção a todos os seus irmãos” (CG21 54).

Por sua parte, cada Irmão demonstrará concretamente o seu desejo de agir em comum, participando ativamente e de acordo com sua função nas iniciativas propostas para a animação comunitária, em espírito de corresponsabilidade, superando atitudes de absenteísmo e passividade. É a parti­cipação ativa e a corresponsabilidade de todos que assegu­ram uma animação orgânica à comunidade, para que possa maturar unida o projeto de vida professado. No caso em que, mesmo depois de um diálogo franco e paciente, persis­tissem contrastes entre pontos de vista pessoais e as decisões do Superior, o Irmão aceitará a obediência com a disposição de homem adulto na fé, recordando o exemplo de Cristo obediente por causa do Reino” (CG21 57).

Essas orientações levaram o Capítulo, em outra ocasião, a reformular o artigo 94 das Constituições (CG21 392), a fim de melhor salientar, tanto a importância da corresponsabili­dade, quanto o serviço da autoridade. “Isso — comentava o Reitor-Mor no discurso de encerramento — nos ajudará a lembrar que não fizemos o voto de obediência à Comunidade, mas ao Superior, ao qual nos submetemos em espírito de fé” (CG21 580).

O que aqui se diz do Diretor, parece-me óbvio se deva aplicar analogamente ao papel do Inspetor em relação à Comunidade Inspetorial.

A nível de toda a Congregação baste citar dois pensa­mentos fundamentais de Dom Bosco. No seu testamento espiritual lemos: “O vosso Reitor já não vive, mas será eleito outro que cuidará de vós e da vossa eterna salvação. Ouvi-o, amai-o, obedecei-lhe, rezai por ele, como fizestes para comigo”. Numa importante conferência aos Diretores, após a apresentação do primeiro texto das Constituições, assim se exprimia: Colaborem todos com o Reitor-Mor, apoiem-no, ajudem-no de todas as maneiras, reúnam-se todos ao seu redor como um centro único”, e logo acrescenta: “O Reitor--Mor tem as Regras; delas jamais se afaste, de outra sorte o centro não será mais único, mas dúplice, isto é, o centro das Regras e o da sua vontade. É preciso, ao contrário, que Regras e Reitor-Mor sejam como a mesma coisa” (MB XII 81).

Dom Bosco demonstra assim verdadeira “paixão” pela unidade: entre o seu carisma de Fundador, o Reitor-Mor e as Constituições ele estabelece uma identificação que garante um centro vital de unidade para toda a Família Salesiana.

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