301-350|pt|303 - Reprojetemos juntos a Santidade


Egídio Viganò



Reprojetemos Juntos a Santidade



Atos do Conselho Superior



Ano LXIII – janeiro-março, 1982



N. 303



Diálogo com as Inspetorias. — Uma verificação positiva. — Constatações de limites e carências. — O problema de fundo. — O dom mais precioso para os jovens: a nossa santidade. — Encontro quotidiano com Cristo. — Empenho ascético. — O estilo de Dom Bosco.




Roma, 12 de dezembro de 1981.



Queridos irmãos,



hoje, festa de Nossa Senhora de Guadalupe, o Capítulo Geral das Filhas de Maria Auxilia­dora, que está chegando ao fim de suas impor­tantes tarefas, foi recebido em audiência pelo Santo Padre. O encontro foi precedido de uma solene celebração da Eucaristia, na Basílica de São Pedro, e assumiu um grande significado eclesial. Rezamos pelo novo Conselho Superior das Filhas de Maria Auxiliadora, pelo cresci­mento da mútua comunhão na Família Salesia­na e por uma sempre mais corajosa e atual capacidade de evangelização da juventude.

Enquanto nossas irmãs estão a intensificar os trabalhos para a redação final das Constitui­ções, pensamos no nosso próximo Capítulo Geral 22, que terá o mesmo tema de trabalho. Para garantir uma preparação adequada de um Capítulo tão importante, nomeei desde já, segundo o art. 100 dos Regulamentos, seu “Re­gulador”: P. JOÃO VECCHI, o atual Conselheiro para a Pastoral Juvenil. Ajudemo-lo com as nossas orações e com a nossa colaboração.



Diálogo com as Inspetorias



Com a última visita às Inspetorias do Extremo Oriente, em Hong Kong, terminamos, em outubro passado, as chamadas “Visitas de conjunto”.

Detenho-me um pouco neste argumento, para que a ninguém escape a importância dessa nova forma de “presença do Conselho Superior” nas várias partes da Congregação, que agora se tornou praxe obrigatória dos Institutos religio­sos no contexto atual de unidade na descentra­lização e vice-versa. Será uma reflexão prática, oferecida a todos, para que nos abramos à visão universal da nossa Congregação, hoje, e lhe tomemos, de alguma maneira, o pulso no lado positivo e no lado negativo. A reflexão oferecer-nos-á uma plataforma realista para ulteriores reflexões sobre a urgência da san­tidade.

Toda “Visita de conjunto” tem sido um diálo­go de revisão e planejamento da nossa vida salesiana, centrado nas orientações do último Capítulo Geral 21. O diálogo desenvolveu-se entre um grupo de Inspetores com os seus Conselheiros inspetoriais, de um lado, e o Reitor-Mor com os Conselheiros de dicastério e o correspondente Regional de outro. O material para o encontro foi preparado por cada Inspetoria e, depois, organizado e sintetizado nos vários grupos, de acordo com o Conselheiro Regional.

Fizemos dez “Visitas de conjunto”.

Duas na Ásia, a primeira e a última:

  • em Calcutá, para as Inspetorias india­nas (outubro de 1979);

  • e em Hong Kong, para as Inspetorias e Delegações do Extremo Oriente (outubro de 1981).



Seis na Europa:

  • para as três Inspetorias de língua alemã, em Benediktbeuern, na Alemanha (janeiro de 1980);

  • para as duas Inspetorias de língua neerlandesa, em Bruxelas, Bélgica (fevereiro de 1980);

  • para as várias Inspetorias do Leste europeu, em Lódz, Polônia (abril de 1980);

  • para as três Inspetorias de língua fran­cesa, em Farnières, Bélgica (agosto de 1980);

  • para as Inspetorias da Itália e do Orien­te Médio, em Pacognano, Nápoles (janeiro de 1980);

  • para as Inspetorias da região ibérica, em Barcelona, Espanha (julho de 1981).



Duas nas Américas:

  • para as Inspetorias da região ocidental de língua inglesa, em Malibu, na Califórnia, E.U.A. (setembro de 1980);

  • para as numerosas Inspetorias da Amé­rica Latina, em San Miguel, Buenos Aires (abril de 1981).



Os temas centrais em torno dos quais girou o diálogo eram os fundamentais do Capítulo Geral 21:

  • a comunidade salesiana evangelizada, em alguns dos aspectos fundamentais da nossa Vida religiosa;

  • a formação de todos os irmãos;

  • o projeto educativo e a fecundidade vocacional;

  • as Missões, sobretudo na África;

  • a Família Salesiana, com a preocupação especial de um maior envolvimento de leigos comprometidos.



Foi preciso multiplicar esses encontros, dividindo-os por grupos de certa homogeneidade cultural e eclesial. As Inspetorias estão objetivamente inseridas em variadas e diversas situações-tipo. Assim, as da Europa ocidental respiram mais intensamente o clima de um processo de secularização que, na sociedade, se traduz de fato em atitudes de perigoso secula­rismo.

As Inspetorias do Leste europeu, ao invés, estão inseridas em sociedades de estruturação marxista, com uma problemática marcada por forte mutilação apostólica, sobretudo na pasto­ral juvenil.

As Inspetorias do mundo anglo-saxão atual devem trabalhar em sociedades caracterizadas por um realismo pragmático que nem sempre ajuda a procurar as profundas motivações das mudanças conciliares.

As Inspetorias da América Latina movem-se com uma forte dinâmica de adequação pastoral querida pelos Pastores em Medellín e em Pue­bla; aqui e ali, em diferentes países, percebem--se possibilidades de influências ambíguas, com acentos temporais na direção de um ou de outro extremo.

As Inspetorias da Ásia percebem com par­ticular agudeza os delicados problemas da inculturação.

Na África, a Congregação vive uma hora de semeadura, com exigências e dificuldades próprias.

Consequentemente, houve, no diálogo, di­versos estilos e acentuações diferentes.



Uma verificação positiva



No sexênio anterior, o Capítulo Geral Espe­cial havia programado um diálogo de revisão por continentes: quatro grandes reuniões. A nova modalidade, embora exija maiores sacri­fícios pelo número dos encontros, mostrou-se mais ágil e mais concreta. O juízo global sobre os seus resultados é substancialmente positivo. Constataram-se também defeitos e carências. De toda a maneira, o próprio fato da realização de tais encontros foi construtivo e portador de maior comunhão, de mais clara consciência e melhores propósitos de empenho.

Entre os aspectos mais positivos, queria sublinhar alguns que podem servir para forta­lecer nossa crescente esperança.

Primeiro, a consciência de unidade forte­mente sentida em todas as Visitas de conjunto: o amor a Dom Bosco, a convergência sobre os valores de identidade, a adesão aos últimos Capítulos Gerais, a solidariedade e viva comu­nhão com o Reitor-Mor e com o Conselho Supe­rior, o ambiente de verdadeira e intensa frater­nidade, a liberdade, a clareza, o respeito com que foi possível enfrentar os problemas. Criou-se um mais sensível e imediato relacionamento religioso de amizade e corresponsabilidade, ao passo que os Inspetores e seus Conselheiros puderam perceber melhor as dimensões da Congregação e sua responsabilidade salesiana no exercício do seu papel local. Cada bloco de conteúdos e o conjunto deles pôs em destaque aspectos importantes da nossa vocação. Afirmaram-se, em poucos dias, grandes pontos de com­promisso e de síntese.

Depois, um renovado sentido inspetorial, ainda que em alguns casos um tanto incipiente.

O clima geral de esperança e a vontade de empenho concretizada em conclusões práticas.

A visão panorâmica e realista, por parte do Reitor-Mor com o seu Conselho, da vida e da missão salesiana no mundo.

A oportunidade para melhor programação de animação adequada à realidade mais bem conhecida.

Uma acrescida sensibilidade perante as exigências evangélicas da vida religiosa e peran­te o patrimônio pastoral-pedagógico do Sistema Preventivo.

Mostrou-se mais sentida a inserção na Igreja local, como comunhão de convergência concreta de todas as forças que trabalham na evangelização dos jovens de hoje, recuperando assim também o sentido da nossa colocação pastoral específica: percebeu-se melhor a ideia do Projeto Salesiano, como síntese de diversos aspectos da nossa vida e da nossa ação, como afirmação da finalidade pastoral da totalidade, e como ponto de fusão entre inspiração-tradição e novas exigências dos tempos.

Houve também algumas propostas signifi­cativas de um ulterior compromisso, como o aprofundamento de uma espiritualidade peculiar para os nossos jovens; pois o surgir de grupos e movimentos exige uma comum inspiração de fundo no espírito de Dom Bosco.

O tema da Família Salesiana fez-nos entrar decididamente num novo esquema de ação, no qual a comunidade salesiana quer apresentar-se como centro de animação e maior comunhão, e como quadro vivo de referência para nume­rosas forças leigas.

No tema de fundo da Vida religiosa, aprofundou-se o importante significado da nossa vida comunitária e o aspecto de animação nos serviços da autoridade, insistindo particular­mente na recuperação da verdadeira figura sale­siana do Diretor e também do Inspetor com o seu Conselho.

O urgente e delicado aspecto da formação fez exigir e depois (nos encontros que se segui­ram à promulgação da “Ratio”) assumir os grandes princípios, orientações e normas do documento sobre a “Formação dos Salesianos de Dom Bosco”, solicitado pelo Capítulo Geral 21.

O tema das Missões e a informação sobre o Projeto-África despertou e robusteceu o com­promisso salesiano nesta nossa indispensável fronteira, esclarecendo e confirmando não pou­cas iniciativas, generosas e concretas, de muitas Inspetorias.

Formularam-se, também, em cada Visita, conclusões práticas, que se acham em curso de realização, melhorando o impulso de crescimen­to nas Inspetorias.

De coração agradecemos ao Senhor todo esse bem.



Constatações de limites e carências



Encontramos defeitos também.

Algumas “Visitas de conjunto” estavam menos preparadas que outras. Em alguns casos houve mais receptividade que participação ativa; em outros, mais capacidade de análise e de agudo enfoque de problemas do que de busca de solu­ções, pelo menos iniciais, e de conclusões prá­ticas. Sem dúvida é preciso levar em conside­ração que era a primeira vez que se realizava este gênero de diálogo, faltando, por isso, os enriquecimentos da experiência.

Numa revisão global dessas Visitas feita pelo Conselho Superior, considera-se importan­te rever o modo de elaborar mais cuidadosa­mente (e os vários Conselheiros “juntos”) os objetivos e os pontos a serem aprofundados, harmonizando melhor a participação dos diver­sos dicastérios. Percebeu-se também a necessi­dade de estabelecer melhor a função, no caso, dos respectivos Conselheiros Regionais, sobretudo na preparação dos encontros e na especifi­cação das conclusões práticas. Deseja-se que o Conselho Superior esclareça melhor, e em tempo, o alcance e a finalidade específica de cada um dos encontros, para depois concentrar a aten­ção e o trabalho sobre poucos pontos estratégicos de compromisso, deixando outros aspectos que mais interessam a uma informação do que a um diálogo de revisão.

A variedade das situações e a diferente con­formação das Regiões nem sempre permitiram uma participação homogênea: em alguns encon­tros intervieram todos os Conselheiros inspetoriais (como era desejável), em outros somente um ou dois Delegados, empobrecendo, de alguma maneira, o diálogo e a possibilidade de comunicação e, posteriormente, de atuação.

Nas Inspetorias trabalha-se muito, mas percebe-se, aqui e ali, uma divisão não racional dos compromissos, sinal por vezes de um resí­duo de individualismo apostólico e, em geral, de uma programação carente por parte dos Conselhos inspetoriais e das comunidades locais.

A certo pragmatismo no trabalho e à falta de programação comunitária, deve atribuir-se também um perigoso descuido da vida espiri­tual, da atualização pastoral, da formação per­manente, que em algumas Inspetorias não são como deveriam ser. Creio ser este um dos mo­tivos pelo qual tem sido um tanto lenta a assi­milação dos documentos e das orientações eclesiais e salesianas. A falta de aprofundamen­to da nossa Profissão religiosa encontra-se na base de um grave perigo, que não é imaginário, de superficialidade.



O problema de fundo



Sim, queridos irmãos, numa hora de mu­dança cultural, o nosso inimigo mais temível é a “superficialidade espiritual”!

Corremos o risco de fazer consistir toda a renovação mais em iniciativas “para uso exter­no” e de organização. A reestruturação da Inspetoria e das Obras é, sem dúvida, impor­tante e indispensável. É urgente rever a nossa dimensão comunitária, relançar a figura do diretor, assumir e aplicar a “Ratio”, reformular o nosso Projeto educativo-pastoral, ampliar os grandes horizontes da Família Salesiana, pro­gramar com magnanimidade o compromisso missionário. Mas na base disso, como fonte e alma de tudo, deve-se reprojetar juntos a nossa santidade, tanto pessoal como comunitária: reconsiderar e reviver o significado existencial da nossa Profissão religiosa e a energia vitalizante da sua Consagração!

Se quisermos que o nosso vasto e trabalhoso processo de renovação não seja apenas para “uso externo”, devemos relançar vitalmen­te quanto nos propõem as Constituições no art. 2º: “Sermos, em estilo salesiano, sinais e por­tadores do amor de Deus aos jovens, especial­mente aos mais pobres. Ao cumprir essa missão no seguimento de Cristo, encontramos o cami­nho de nossa santidade”.

Não somos apenas “catequistas”; somos “educadores”: evangelizamos educando. Não só “educadores”, mas, além disso, “guias” ou “mistagogos”, palavra grata aos Padres para indicar a iniciação ao mistério de Cristo; ou seja, preocupamo-nos em conduzir pedagogicamente à inserção vital dos jovens nas realidades da fé: educamos evangelizando, no sentido que toda a nossa atividade de promoção educativa é anima­da e concretamente orientada pela preocupação de introduzir os jovens no mistério de Cristo e fazê-los viver na sua Páscoa. A alma do Sistema Preventivo é, sempre e em toda a parte, o “Da mihi animas”, que brota de uma espiritualidade centrada na “caridade pastoral”, concebida e vivida segundo o estilo de Dom Bosco.1 “Imi­tando a paciência de Deus — dizem-nos as Constituições —, encontramos os jovens no ponto em que se encontra sua liberdade e sua fé. Fraternalmente presentes para que o mal não lhes domine a fragilidade, ajudamo-los, através do diálogo, a libertar-se de qualquer servidão. Multiplicamos os esforços para iluminá-los e estimulá-los, respeitando o delicado processo da fé”.2

Mas para fazer isso com paciente constân­cia, ou seja, para viver quotidianamente o pro­pósito de guiar e conduzir à iniciação do Mistério, faz-se absolutamente indispensável a “santidade”: eis o primeiro objetivo da nossa verdadeira renovação!

O dom mais precioso para os jovens: a nossa santidade



Uma visão global da vida da Congregação, deduzida de um longo contato (quase três anos) com as Inspetorias, nas Visitas de conjunto, leva-me a formular a seguinte afirmação substancial: o maior problema que hoje perma­nece aberto, para nós, é o da recuperação da santidade.

Sim: os jovens de hoje têm necessidade urgente da nossa santidade. Cristo e Maria chamaram-nos justamente para isto: a nossa santidade é o presente mais belo e mais útil que podemos dar à juventude.

A palavra “santidade”, porém, pode ser mal compreendida por uma mentalidade defasada, muito comum e fruto de um ambiente que opõe um como bloqueio cultural ao genuíno conteú­do do seu significado. Poderia ser identificada com um espiritualismo de evasão do concreto, com um ascetismo para heróis excepcionais, com um sentimento de fuga do real que desestima a vida ativa, com uma consciência antiquada em relação aos valores da atual virada antropoló­gica. Semelhante caricatura é profundamente lamentável.

Nós, porém, acreditamos na santidade e na sua atualidade. Mais que o conceito abstra­to de santidade, olhamos o testemunho vivo de Dom Bosco “santo”.

Quando afirmamos que a nossa santidade é o dom mais precioso para os jovens, quere­mos dizer que eles precisam encontrar em cada um de nós outro Dom Bosco com o seu coração oratoriano.

É nesse sentido que se mostra fundamental e urgente relançar a santidade, fazendo com que o próprio termo recupere atualidade e atração, um tanto esvaziado que está pelas caricaturas ambientais. A santidade de Dom Bosco é simples e simpática, é robusta e pro­fética.

Só Deus é santo. A santidade humana é comunhão e participação no amor divino; ela nos confirma que o Espírito do Senhor se inse­riu vitalmente no coração e na história dos homens; sem ela a humanidade não atinge as próprias metas.

Fermento de integridade humana no desíg­nio do Pai, Dom Bosco é, entre os muitos san­tos, uma testemunha exímia e um comunicador dos valores indispensáveis da santidade aos jovens.

Domingos Savio no-lo poderia repetir com entusiasmo e esperança.

Uma santidade, dizia eu, simples e simpá­tica, que tem estilo e comunicabilidade próprios, que inspira confiança e constrói amizade, mas muito exigente no seu conteúdo evangélico. Não se pode atingir sem um chamado particular do Espírito; e nela não se pode perseverar sem fidelidade e contínuo recurso às suas inspira­ções. É uma santidade simples e simpática, mas não é fácil nem cômoda!

Para nós “não basta amar”. Dom Bosco ensinou-nos como ideal de santidade salesiana o “fazer-se amar”; e o “caramanchão das rosas” lembra-nos claramente que isso é muito exigente. Seu estilo de santidade é pedagógico. Perderia, em nós, a sua originalidade, caso introduzisse barreiras que distanciassem dos jovens ou se lhes tornasse antipático.

As presentes situações inspetoriais fazem-me pensar em dois elementos fundamentais da santidade salesiana que se devem privilegiar em nossas preocupações, para juntos projetarmos novamente a sua viva atualidade.

O primeiro é a intimidade com Cristo, para garantir a fonte quotidiana da caridade pastoral nas nossas atividades educativas.

O segundo é o empenho ascético, para viver uma constante bondade pedagógica.

Sem uma clara amizade com Cristo, sentida pessoalmente e vivida em comunidade, e sem a seriedade de uma ascese, nenhum esforço de renovação nos levará de verdade a sermos sinais e portadores do amor de Deus aos jovens.

Permiti-me algumas breves observações sobre estes dois pontos, que são como as duas grandes molas do nosso relançamento.



Encontro quotidiano com Cristo



Consideremos, em primeiro lugar, com especial atenção, quanto escreveu Dom Bosco no seu testamento: “Morreu o vosso primeiro Reitor. Mas o nosso verdadeiro Superior, Jesus Cristo, não morrerá. Será ele sempre o nosso Mestre, nosso Guia, nosso Modelo”.3 Lembremos ainda o que proclama a nossa tradição espiritual: “O centro do espírito salesiano é a caridade pastoral, caracterizada pelo dinamismo juvenil que se revelava tão forte em nosso Fundador e nas origens da nossa Sociedade. É um ardor apostólico que nos faz buscar as almas e servir tão-somente a Deus”.4

A santidade, vive-se e manifesta-se naquele amor que é a caridade de Deus (o “ágape” do evangelista São João). A santidade salesiana contempla com uma ótica peculiar a caridade do Pai, que muito ama o homem, a ponto de enviar o seu Filho e o seu Espírito para salvá-lo. Sublinha, nesse amor, o dom de si nas iniciativas de salvação, sobretudo para os jovens.5 Não se contenta com palavras; constrói fatos: a caridade pastoral traduz-se em ação.

O agir dá ao ser um vigor especial e manifesta-o com uma atração de autenticidade e de fecundidade. A Sagrada Escritura não cessa de proclamar a exigência do fazer: “Não é o que diz: ‘Senhor, Senhor!’ que entrará no reino de Deus. Nele entrará somente quem faz a vontade do meu Pai que está no céu”.6

Trata-se, pois, de uma caridade pastoral assaz concreta e ativa, que vive em nós com relações de amizade constante para com dois tipos de pessoas: as pessoas infinitas de Deus e as pessoas dos homens, sobretudo dos “peque­nos e dos pobres”.

Percebe-se, assim, uma dinâmica intrínseca à caridade que produz certa tensão nas nossas relações de amizade com Deus e com os jovens.

Que relações vêm antes: a amizade com o homem necessitado ou a amizade com Deus? Há alguma dependência entre elas? Flui uma da outra? Ou são paralelamente coexistentes? Pode subsistir uma sem a outra? São pergun­tas interessantes; na resposta que lhes damos, chegamos a tocar o ponto nevrálgico do relan­çamento da nossa santidade.

As perguntas que nos propusemos não são artificiais nem supérfluas, como se fossem pleonásticas; enfrentam diretamente, em profundi­dade, algumas sugestões em moda, apresenta­das por uma mentalidade secularista muito difundida. Com efeito, as atuais mudanças culturais, que provocaram uma das maiores crises da história da vida religiosa, caracterizam-se por um acentuado antropocentrismo, com uma “concepção do mundo, segundo a qual ele se explicaria por si mesmo, sem ser neces­sário recorrer a Deus”.7 Tal mentalidade infiltrou-se também de maneira sutil, camuflando-se com roupagens religiosas, nos ambien­tes da fé. Da perspectiva bíblica e patrística do homem “imagem de Deus”, pela qual não se conhece verdadeiramente o homem se não se conhece a Cristo que é Deus feito homem,8 passou-se à perspectiva oposta, pela qual o homem conhece o mistério de Deus (se existe!) conhecendo a si mesmo.

Desta atitude pode derivar uma resposta nociva para as perguntas acima formuladas; sem afirmar explicitamente o primado do amor ao homem, insiste-se quase exclusivamente sobre ele, sobre suas necessidades, sobre suas situações de injustiça social, de onde dever-se-ia partir para repensar o próprio significado do amor de Deus e, pois, da consagração religiosa.

Tal interpretação condescende a uma atitude eivada de perigos de antropocentrismo, que chegam com facilidade ao ofus­camento da caridade pastoral e, portanto, à progressiva adulteração da nossa santi­dade. É verdade que o apóstolo São João afir­ma a indispensabilidade do amor ao próximo: “Quem não ama o próximo a quem vê, não pode amar a Deus a quem não vê”.9 Mas São João coloca-se aqui no plano de verificação da ver­dade concreta da nossa caridade. Com efeito, pouco antes havia escrito: “O amor vem de Deus...; o amor verdadeiro é este: não o amor que tivemos para com Deus, mas o amor que Deus teve por nós...; se Deus nos amou assim, também nós devemos amar uns aos outros; nós amamos a Deus porque Ele nos amou primeiro”.10

Já o Antigo Testamento havia falado do amor de Deus e do próximo em termos de pri­mado absoluto; mas é propriamente no Novo Testamento que muda a medida e a dinâmica interna desse amor, assumindo dimensões inauditas.

O mandamento de Jesus Cristo é muito claro: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.11 Esse “como” é a resposta mais precisa e radical às perguntas acima mencionadas. Na nossa caridade pastoral o amor aos jovens deriva, intimamente, por sua natureza, do amor a Deus; as nossas relações de amizade com os jovens são o fruto precioso e natural das nossas relações de amizade para com Deus. Sem o amor para com Deus não há caridade pastoral para com os jovens!

No discurso inaugural da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (realiza­do em Medellín, em 1968), o Papa Paulo VI quis chamar a atenção dos Pastores latino-americanos para um ponto doutrinal referente à caridade pastoral. Trata-se da “dependência da caridade para com o próximo, da caridade para com Deus. Conheceis — disse — os assaltos que essa doutrina de claríssima e inexpugnável derivação evangélica sofre em nossos dias: quer-se secularizar o cristianismo, deixando para trás sua referência essencial à verdade reli­giosa, à comunhão sobrenatural com a inefável e inundante caridade de Deus com os homens, sua referência ao dever da resposta humana, convi­dada a ousar amá-lo e chamá-lo ‘Pai’ e por con­sequência a chamar com plena verdade ‘irmãos’ aos homens, para libertar o cristianismo de ‘aquela forma de neurose — como afirma Cox — que é a religião’, para evitar toda preocupa­ção teologal e para oferecer ao cristianismo uma nova eficácia, inteiramente pragmática, a única que o tornaria aceitável e operante na moderna civilização profana e tecnológica”.12

Portanto: as nossas relações de amizade com Deus são a verdadeira fonte e a linfa ali­mentadora da nossa predileção pastoral pelos jovens.

Chegamos então ao ponto: como cuidar e intensificar continuamente o nosso amor para com Deus?

A resposta é uma só: o encontro quotidia­no com Cristo!

São João, que além de ser chamado “o teólogo da caridade” é também a sua mais ilustre testemunha, deixou-nos uma definição his­tórica da santidade substancial, afirmando que “Deus é amor”.13 Essa expressão não é uma afirmação de Jesus nem um enunciado dogmá­tico abstrato; é, ao invés, a conclusão das pro­longadas reflexões de João sobre a vida e sobre a Páscoa do seu amigo Jesus e sobre as relações pessoais d’Ele com o Pai. Quanto mais contem­pla os fatos, as palavras e a psicologia de Jesus, tanto mais ele descobre com intensa evidência que a caridade (o amor, o “ágape”) é a síntese do significado histórico da encarnação do Ver­bo, e a explicação exaustiva de todo o mistério de Deus feito homem.

Para João, o que distingue os crentes da Nova Aliança dos outros é precisamente esta maneira de contemplar a Cristo. Não basta reconhecê-lo como Messias e Senhor da histó­ria; é preciso aderir vitalmente ao Seu modo de amar, participando ativamente da sua eficácia.

O realismo da caridade de Deus encontra-se todo no Cristo que vive historicamente a sua originalidade e a sua potência.

Deus, puro espírito,14 ninguém jamais o viu;15 Ele se faz presente em Cristo “como imagem perfeita do Pai”,16 e n’Ele concentra toda a originalidade divina do amor.

Conhecer e amar a Deus, no cristianismo, não é simplesmente refletir e admirar a Sua onipotência, a Sua sabedoria, a Sua justiça, mas é sentir-se envolvido existencialmente com Cristo para compartilhar ativamente a sua caridade.

O “santo” é justamente aquele que se abre plenamente a este amor e dele se torna portador para os outros.

Relançar, pois, a nossa santidade salesiana significa cultivar primeiro que tudo as relações de amizade com Ele, cada um pessoalmente e juntos comunitariamente.

Eis porque o encontro quotidiano com Cristo é, de fato, o alfa e o ômega da caridade pastoral.

O “encontro” exige uma amizade perma­nente; mas eu me refiro, aqui, também a um espaço concreto de tempo inserido em cada dia, que se chama meditação e oração pessoal, horas litúrgicas, Eucaristia.

O sacramento do memorial da sua Páscoa, que encerra o maior amor de toda a história, deve voltar a ser vitalmente o centro propul­sor do nosso coração e da nossa casa.

Desses aspectos essenciais e irrenunciáveis do nosso encontro pessoal e comunitário com Cristo, o Capítulo Geral Especial trata difusa­mente e com objetiva conformação à realidade da nossa vida. Convido-vos a meditar atenta­mente o documento 9, “A comunidade orante”.17



Empenho ascético



A segunda coluna que sustenta todo o edifício da nossa santidade é uma pedagogia ascética, concreta e diária, para a nossa conduta pessoal e para o estilo da nossa vida comuni­tária.

Um dos fenômenos perigosos que pudemos verificar nestes anos de crise da vida religiosa é uma quase desintegração da ascese, que vem a ser a perda do esforço metódico feito para eliminar, com a ajuda da graça, quanto se opõe ao crescimento da vida em Cristo e para enfren­tar virilmente os sacrifícios que ela impõe: a abnegação e a renúncia,18 a aceitação do sofri­mento,19 a luta e o combate espiritual,20 etc., não por si mesmos, mas como participação no mistério pascal de Cristo, como consentimento nos impulsos do Espírito.

Essa perda revelou-se muito grave; ela tira à vida religiosa a sua característica de “sinal” no mundo. Sem um empenho ascético visível, não se testemunham com nitidez os grandes valores dos votos, que são, por si mesmos, uma formidável contestação evangélica da sociedade permissiva de hoje. Antes, sem ascese não pode existir a própria verdade objetiva dos Votos, ou seja, a santidade religiosa específica desfaz-se no nada!

O Papa Paulo VI, falando aos religiosos, dizia com realismo e angústia: “A cilada mais perigosa armada aos vossos Institutos é a do laxismo moderno, no qual estamos imersos. Resisti-lhe a todo custo! Hoje mais do que nunca a vida religiosa deve ser vivida na sua plenitude e de conformidade com suas altas e severas exigências de oração, humildade, espírito de sacrifício, prática austera dos votos. Numa palavra: a vida religiosa deve ser santa, ou não tem mais razão de ser”.21

Historicamente, no Cristianismo, no contato com visões antropológicas diferentes, o modo da ascese e a sua expressão em práticas concre­tas foram-se exprimindo em experiências sem­pre novas. Uma sã pedagogia ascética sempre tem uma referência cultural e uma adapta­ção ao tipo peculiar da vocação que se escolheu.

Assim, num ambiente de mentalidade pla­tônica, era fácil revestir a ascese de certo dualismo, caracterizado por um conceito pejorativo dos valores somáticos.

Por outra parte, o exercício ascético de um “contemplativo” não pode servir de medida para o de um “ativo”, e vice-versa.

O homem é a um só tempo espírito e carne, que vive a própria vocação numa determinada cultura, marcada por uma visão antropológica, própria. Uma ascese correta deve levar em consideração as exigências do projeto-homem querido por Deus no espírito e na carne, segun­do uma penetração cada vez mais madura da verdade do homem. A atual virada antropoló­gica exige também uma inculturação e uma aculturação ou uma sã adequação da ascese cristã em geral e da nossa ascese salesiana em particular aos novos valores humanos que sur­giram e às exigências dos sinais dos tempos. Mas deve permanecer claramente “ascese”, e ainda mais claramente “cristã” e, para nós, “salesiana”, como crescimento homogêneo na linha da Páscoa e da nossa tradição espiritual.

Com efeito, a ascese implica a oblação-de si a Deus na radicalidade do seguimento de Cristo: e, para nós, implica também a doação plena das nossas energias na ação pastoral: o aposto­lado é também uma espécie de exercício atléti­co da caridade, pelo qual “eu — como diz São Paulo — me submeto a dura disciplina, e pro­curo dominar-me para não ser desclassificado”.22

Hoje a nossa ascese deve ter em conta os progressos feitos pelas ciências do homem, mas deve iluminá-los sempre com a luz pascal. “Cristo, que é o novo Adão — diz-nos o Concílio na “Gaudium et Spes” —, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação... Por Cristo e em Cristo ilumina-se o enigma da dor e da morte, que fora do seu Evangelho nos esmaga».23

A atual virada antropológica ressaltou jus­tamente os valores da liberdade, do corpo, do desenvolvimento da pessoa e da importância de uma autorrealização; mas tudo isso permanece pagão e pode deteriorar-se em egocentrismo, se não se lavar na água batismal da Páscoa de Cristo.

Os novos aspectos culturais não podem mudar o conteúdo evangélico da vida consagrada: assim, por exemplo, “a obediência religiosa, longe de diminuir a dignidade da pessoa humana, leva-a, pela liberdade ampliada dos filhos de Deus, para a maturidade”.24

Vivemos numa civilização que marginalizou o primado de Deus e perdeu, por isso, o sentido do pecado: o nosso pecado e o dos outros e em particular, para nós, o dos jovens.

Nas sociedades de hoje, aplaude-se o triunfo das concupiscências (poder, bem-estar, carne e soberba da vida). Por outra parte, cada um de nós sente no seu coração a tirania e prepotência das paixões,25 alimentadas por tantas atrações e publicamente exibidas.

É uma triste realidade a abundância das nossas fraquezas e dos nossos pecados e dos outros, particularmente dos jovens. Dom Bosco foi, como sabemos, inimigo implacável do pe­cado: sabia que ele rompe com Deus, com a sua amizade, e, por consequência, desfigura o homem e a sociedade.

Urge relançar em nós a capacidade de con­versão, de expiação e de prevenção, ou seja, de um amor de contrição que se traduza numa atitude habitual de compunção, que reserva um lugar privilegiado à humanidade e a um aniqui­lamento cristão de si.26 Nada disso se opõe à autorrealização, mas é dela uma indis­pensável dimensão evangélica.

O mistério da cruz, com efeito, proclama, de forma paradoxalmente original e perene, a importância da “obediência da fé”. Olhemos para o Horto das Oliveiras: “Meu Pai, tu podes tudo. Afasta de mim este cálice de dor! Mas seja feita a tua vontade, não a minha”.27

A autorrealização do Cristo vê o horizonte do seu próprio desenvolvimento não num projeto subjetivo, simplesmente de acordo com as próprias inclinações e desejos, mas num projeto mais amplo, em que Deus intervém como Pai: é um vasto projeto de amor e de vitória, que, todavia, passa pelo caminho do Calvário.

Não bastam as ciências do homem para compreender e viver tal projeto do Pai; exige-se a sabedoria da fé: “Nós — diz São Paulo — não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus... e falamos dele com pala­vras que não são ensinadas pela ciência humana, mas sugeridas pelo Espírito de Deus”;28 “Ouvi-me: deixai-vos guiar pelo Espírito (de Deus) e assim não satisfareis os desejos do vosso egoís­mo. O egoísmo tem desejos contrários ao Espí­rito, e o Espírito tem desejos contrários ao egoísmo. Há oposição entre essas duas forças... Conhecemos muito bem as obras do egoísmo humano: imoralidade, corrupção e vício, idola­tria, magia, ódio, contenda, ciúmes, iras, rixas, discórdias, invejas, embriaguez, orgias e outras coisas deste gênero... O Espírito, ao invés, produz amor, alegria, paz, compreensão, cordia­lidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio de si”;29 “Irmãos, nós não estaremos empenha­dos em seguir a voz do nosso egoísmo, mas a do Espírito. Se seguirdes a voz do egoísmo, morrereis; se, ao contrário, pelo Espírito, a sufocardes, vós vivereis”.30 “Eu penso — conclui São Paulo — que os sofrimentos do tempo pre­sente não têm proporção com a glória futura que em Deus nos deve ser revelada”.31

Há, portanto, uma forte disciplina que deve acompanhar e defender em nós as riquezas da caridade. É gravíssima ilusão pensar que hoje o empenho ascético seja um elemento antiquado e superado. Deve-se afirmar justamente o con­trário: numa sociedade permissiva como a nossa, há, mais do que nunca, necessidade de conversão e domínio de si, numa pedagogia concreta de penitência e de prevenção.

Para assegurar, vivificar e tornar constante nosso empenho ascético, faz-se necessária uma disciplina pessoal e comunitária.32 Para isso Cristo nos oferece um encontro especial com a sua Páscoa no sacramento da Penitência.

A sinceridade e a frequência pessoal da celebração desse sacramento são elementos in­dispensáveis à nossa santidade. Do sacramento da Penitência, de fato, brotam abundantes e especiais luzes e energias do Cristo para a con­versão, para a expiação e para a prevenção.

E assim também o empenho ascético se torna parte viva do nosso encontro com Cristo, para viver seu mistério e comunicá-lo aos jo­vens.





O estilo de Dom Bosco



Com o correr dos anos, vamos constatando — escrevia, meses atrás, às Filhas de Maria Auxiliadora, falando de Dom Bosco — encontramo-nos diante de um Santo excepcional, do qual se originou (hoje podemos afirmar o que ontem apenas se intuía) uma ‘grande corrente espiritual’ na Igreja, e, com a tradição viva e a reflexão em curso, vai-se delineando uma ‘verdadeira e original escola’ de santificação e de apostolado”.33

Pode parecer ainda hoje uma afirmação atrevida; mas a experiência nos diz que é ver­dadeira. Devemos sentir-nos particularmente responsáveis por ela, porque colocados, como Congregação, no coração da Família Salesiana, para sua animação espiritual.

O cuidado e a intensificação do encontro com Cristo e do empenho ascético têm, pois, excepcional importância para nós, e devemos conhecer e aprofundar constantemente sua mo­dalidade peculiar, que constitui o estilo de santidade de nossa índole própria.34



Assim, no tocante ao nosso “encontro quo­tidiano com Cristo” já procurei insistir salesianamente na lembrança deste ano (1981) sobre a “vida interior”. E a lembrança do ano novo (1982) concentra a atenção de todos sobre um característico empenho ascético de trabalho e temperança. Dom Bosco queria que o binômio “trabalho e temperança” fosse o lema da nossa Congregação; apresentou-o na forma de dois diamantes justamente sobre os ombros do per­sonagem do famoso sonho, como a indicar que são eles que sustentam e traduzem na prática os valores e as exigências dos outros diamantes.



Por outra parte, dedicamo-nos, depois do Capítulo Geral 21, a aprofundar o Sistema Pre­ventivo nas suas várias dimensões; interessam-nos, aqui, as suas características de peculiar espiritualidade. As duas colunas de que Dom Bosco nos fala, a Eucaristia e a Penitência, aparecem de novo à luz do Concílio, do magistério papal35 e da nossa experiência destes anos, como os dois centros fundamentais da renova­ção espiritual. Ambos ressaltam de forma com­plementar seja o nosso “encontro quotidiano com Cristo”, seja o nosso “empenho ascético”.



Além disso, a “opção comunitária” do nosso projeto evangélico de seguimento do Cristo36 oferece-nos novos elementos para a vida espiri­tual. Tais elementos envolvem num clima de comunhão fraterna o nosso encontro com Cris­to: o “espírito de família” deve ser revisto e vivido nas Casas à luz de Cristo, para além da carne e do sangue ou das simpatias. Tais elementos comportam também uma coloração especial do nosso empenho ascético, enquanto a obediência (que tem para nós forte dimensão comunitária) é colocada por Dom Bosco na própria raiz da missão salesiana. À luz deste estilo de obediência salesiana, quantos individualismos e quantas iniciativas independentes necessitam de revisão e correção!



Enfim, apenas para sugerir algumas deixas, a sã tradição vivida de forma espartana pelas pri­meiras gerações e no testemunho dos melhores entre os que nos precederam, juntamente com as diretrizes das Constituições e dos Regula­mentos, indica-nos expressões práticas e exigen­tes de união com Deus e de ascese.



Assim:

Para aprimorar nosso “encontro quoti­diano com Cristo” convirá reler o capítulo 8º das Constituições:37 escuta de Deus, oração, Eucaristia, Penitência, devoção mariana, e uma liturgia da vida na qual nos oferecemos a nós mesmos no trabalho quotidiano “como hóstias vivas, santas e agradáveis a Deus”.

E para o “empenho ascético”, permiti-me apresentar-vos alguns artigos muito concretos:

Const. 42: O trabalho e a temperança em oposição às comodidades e confortos, a pronti­dão em “suportar o calor e o frio, a sede e a fome, as fadigas e o desprezo, toda vez que se tratar da glória de Deus e da salvação das almas!”;

Const. 79: para conservar a castidade, o uso da mortificação e da guarda dos sentidos;

Const. 83, 85, 87: para viver a pobreza, aceitar os incômodos e assumir um teor de vida simples e frugal, no espírito de sacrifício;

Const. 91, 93, 94: para viver a obediência, fazer a oferta da nossa vontade a Deus na Con­gregação; ser sempre disponíveis; considerar os Superiores e a Comunidade como mediações qualificadas para conhecer a vontade do Pai; ser acessíveis ao diálogo; colocar, por parte de cada um, capacidades e carismas a serviço da missão comunitária. Com razão nos ensina Dom Bosco: em vez de fazer obras de penitência, façamos as da obediência;

Reg. 36: despertar o sentido crítico e a cons­ciência dos próprios deveres morais na escolha das leituras, das projeções cinematográficas e das transmissões radiofônicas e espetáculos televisionados, pensando na austeridade exigida pela vida religiosa e nos compromissos da vida comunitária e de trabalho;

Reg. 50: a penitência especial, pessoal e comunitária, da sexta-feira e do tempo de Qua­resma;

Reg. 55: fugir das comodidades e das atrações mundanas;

Reg. 61: a sobriedade no alimento e nas bebidas, a simplicidade das roupas, o uso moderado das férias e dos divertimentos e a abstenção de fumo como forma de temperança salesiana e de testemunho no próprio trabalho educativo.

Dom Bosco, os grandes Fundadores e os Santos são tipos de homem e de mulher que honram a humanidade. Irradiaram amor e ale­gria porque foram verdadeiros discípulos de Cristo, fixando atentamente o olhar também no aniquilamento (a kênosi!) a que se submeteu. Ensinam-nos, antes de tudo, a encher o coração de caridade, mas a nutri-la também e defendê-la com coragem ascética, lembrando que uma ascese pedagógica se vale também de coisas que podem parecer pequenas, mas se revestem de um significado característico e sustêm, de ma­neira vital e contínua, o robustecimento evangélico da vontade.



Eis, queridos irmãos, algumas reflexões úteis, pensadas após uma revisão global da vida da Congregação realizada mediante as Visitas de conjunto.

Temos urgente necessidade de reprojetar juntos a santidade e de testemunhá-la com um estilo de vida e de apostolado mais crível. É uma interpelação, esta, que nos vem das neces­sidades do povo e sobretudo dos jovens.

Verificou-se nestes últimos anos uma mu­dança considerável nas nossas formas de vida, para melhor nos adequarmos às mudanças culturais e estarmos mais concretamente presentes no mundo. Lamentavelmente, nem sempre nos demos conta de que certas atitudes e maneiras seculares vão, pouco a pouco, pondo em questão a própria essência da vida consa­grada.

Devemos estar no mundo como “santos”. Somos os sinais e portadores do amor de Deus aos jovens: não podemos, pois, ser estranhos a eles; mas fomos chamados para viver entre eles como verdadeiros discípulos de Cristo, segundo o estilo de Dom Bosco.

A superficialidade espiritual leva-nos a adaptar-nos ingênua e simplesmente ao mundo; a santidade, ao invés, exige de nós uma adapta­ção não propriamente ao mundo, mas sim às necessidades evangélicas do mundo!

Portanto: não mundanos, ainda que no mundo; não estranhos, mas com identidade própria; não antiquados, mas profetas atuais da realidade escatológica da Páscoa; não admiradores fáceis da moda, mas corajosos cultores de uma renovação exigente; não deser­tores das vicissitudes humanas, mas protagonis­tas de uma história de salvação.

O nosso seguimento de Cristo segundo o espí­rito de Dom Bosco serve-se de todas as circuns­tâncias, eventos e sinais dos tempos, mesmo das situações mais negativas e injustas, para crescer e fazer crescer na santidade.

Nesse empenho audacioso, que não é fácil, porque, afinal, é de contestação (devemos ser “sinais de contradição” como Jesus), os efeitos desejados não se alcançam, como se costuma dizer, “ex opere operato”, ou seja, por simples mudanças de estruturas ou de formas de vida e de apostolado mais adaptados às exigências dos tempos: tais mudanças também são indispensá­veis; devem, todavia, fundar-se sobre algo dife­rente, mais profundo e basilar.

Os valores da santidade dependem do cora­ção da pessoa; mais se alcançam e acrescem “ex opere operantis”, ou seja, pela atividade contemplativa da nossa inteligência, pelo empe­nho da nossa liberdade, pela iniciativa do nosso amor.

Não há como fugir; não nos evadimos com uma simples crítica às estruturas ou culpando os outros. Aqui estamos comprometidos perante a própria consciência na intimidade mais pro­funda da própria realidade pessoal.

A energia atómica que resolverá a crise situa-se aí: no santuário da nossa pessoa.

Esta é a grande verdade: reflitamos sobre ela!

O Papa João Paulo II nos diz que é a verdade que dá a coragem das grandes decisões, das opções heroicas, dos compromissos defini­tivos! É a verdade que dá a força para viver as virtudes difíceis, as bem-aventuranças evangéli­cas! ...E a verdade é Cristo, conhecido e segui­do... Da verdade nasce logicamente o desejo ardente da santidade”.38

Peçamos a Maria que nos alcance a luz para ver claro. Ela foi escolhida no projeto divino de redenção para trazer Cristo ao mundo: trouxe-o no Natal e o traz continuamente na história da Igreja, na fundação dos Institutos religiosos (lembremos Becchi e Valdocco) e na experiência viva de cada um.

A Auxiliadora nos acompanhe e guie.

Desejo a todos um novo ano de sério em­penho na santidade.

Fraternalmente em Dom Bosco,



P. Egídio Viganò

1 Const. 40.

2 Const. 25.

3 MB XVII, 258-273.

4 Const. 40.

5 ACS 290, 1978.

6 Mt 7,21.

7 EN, 55.

8 Cf.GS, 23.

9 1Jo 4,20.

10 1Jo 4,7.10.11.19.

11 Jo 15,12.

12 CELAM, La Iglesia en la actual transformación de América Latina a la luz del Concilio, Vol. I, p. 31, Bogotá 1968.

13 1Jo 4,8.

14 Jo 4,24.

15 1Jo 4,12.

16 Jo 14,9.

17 CGE, 517-555.

18 Cf. Mt 16,24.

19 Cf. Cl 1,24.

20 Cf. 1Cor 9,24-25.

21 PAULO VI, 27 de junho de 1965.

22 Cf. 1Cor 9,24-27.

23 GS, 22.

24 PC, 14.

25 Cf. Rm 7,21-25.

26 Cf. Fl 2,6-9.

27 Mc 14,36.

28 1Cor 2,12-13.

29 Gl 5,16-22.

30 Rm 8,11-13.

31 Rm 8,18.

32 Cf. ACS 293, 1979.

33 ACS 301, p. 23.

34 Cf. MR, 11.

35 Redemptor hominis e Dives in misericórdia.

36 Cf. Const. 50, 34.

37 Artigos 58-67.

38 L’Osservatore Romano, 19-20 de outubro de 1981.

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