251-300|pt|295 - Dar força aos irmãos

Egídio Viganò


Dar força aos irmãos



Atos do Conselho Superior


Ano LXI – JANEIRO-MARÇO, 1980


N. 295



Introdução. – 1. Desafio angustiante. – 2. “Confirma fratres tuos”. – 3. Tentativa de leitura da crise. – Em nível pessoal. – Em nível cultural, social e eclesial. – 4. A nossa ótica de discernimento. – Enumeremos alguns sintomas positivos. 5. Alguns compromissos prioritários. – 6. Os eixos da força e da coragem. – A verdade, iluminada pela “Fé”. – A perspectiva, animada pela “Esperança”. – A bondade, amparada e impregnada pela caridade. – Conclusão.


Roma, 8 de dezembro de 1979




Caros Irmãos,

como acontece todos os anos, a festa da Imaculada levou-nos a recordar as nossas origens e a reavivar as razões da nossa esperança. Vivi o dia 8 de dezembro, data tão emblemática para a vocação salesiana, entre os queridos meninos da casa de Arese, com profunda emoção e um amontoado de inquietantes reflexões.

Quando estamos com os jovens mais necessitados, em Arese, como antes na índia, e também na América Latina, na África, na China, e em qualquer parte, percebemos com impressionante intuição a utilidade histórica e a urgência de ser plenamente salesianos: de ser mais genuínos, mais corajosos, mais inventivos e mais numerosos, sim, isso mesmo, muito mais numerosos também.



1. Desafio angustiante



Nossa vocação nasceu do afã e sofrimento de uma irrefreável maternidade: a de Maria e a da Igreja para o crescimento e a salvação da juventude cada dia mais numerosa e indigente. A Igreja, como Maria, traz em si as energias do amor materno, a sua intrepidez, a sua constância indefessa, os seus segredos de recuperação, o seu estilo de bondade, o seu sorriso de compreensão, a sua ousadia de espera, as suas riquezas de doação numa intimidade de alegria que, na expressão do poeta, “intendere non può chi non è madre” [“Não pode entender quem não é mãe”].

A maternidade da Igreja e de Maria comporta uma vitalidade objetiva que introduz toda vocação, especialmente a nossa de dimensão mariana tão intensa, nas vertigens de um amor apaixonado que chega a tocar até as fibras biológicas da nossa existência. Escrevendo aos sacerdotes e falando do aspecto característico de paternidade da vocação que lhes é própria, o Papa não hesita em falar “quase de uma maternidade, lembrando as palavras do Apóstolo sobre os filhos, que ele gera na dor (1Cor 4,15; Gl 4,19)” (Carta a todos os sacerdotes, 8).

Lançando um olhar sobre o mundo, e considerando nos vários continentes o aumento quantitativo sempre crescente dos nossos destinatários, e volvendo depois os olhos para a responsabilidade materna da Igreja e, nela, para a nossa missão específica, há motivos para sobressaltos.

Éramos 22.000 na Congregação. Agora, 17.000! Por que isso?

Verdade é que estamos a viver enorme desordem cultural, na qual se assiste a campanhas para o esfacelamento da fecundidade, favorecendo o divórcio, o controle da natali­dade, o aborto, ou seja, fomentando uma cultura que põe em crise o mistério essencial da maternidade. Felizmente, a Igreja possui uma natureza que vem do alto, vinculada à transcendência da ressurreição; vive culturalmente encar­nada, mas como portadora de luz e fecundidade para qualquer cultura e hora histórica, sem se deixar aprisionar nas modas que passam.

É, pois, urgente para nós que vocacionalmente partici­pamos na natureza materna da Igreja, refletir sobre o significado de tão desusado ataque à fecundidade e à fidelidade.

Por que tantas fugas da profissão perpétua? Por que tão numerosos sacerdotes laicizados? Por que está sempre a crescer o número de religiosos perturbados no equilíbrio psíquico e na vida de fé? Por que tão poucas vocações, mormente em muitas regiões do Ocidente? Como encontrar força e coragem para perseverar? Não nos sujeitamos ou não estamos ainda sujeitos a certas modas e concepções secularistas tão deletérias?

Eis aí um desafio que angustia a nossa fidelidade religiosa.



2. “Confirma fratres tuos



Na última reunião dos Superiores Gerais em Villa Cavalletti, em novembro passado, tratou-se precisamente desse argumento com estudos de especialistas e troca de experiências, reflexões e esperança, sobretudo nos enrique­cedores trabalhos de grupo. O tema foi estudado e discutido com vistas à responsabilidade que incumbe aos Superiores; cada um, todavia, deve estendê-lo a si próprio, porque o Senhor nos encarregou, a todos mesmo, sem exceções, de sermos servos e animadores dos próprios irmãos.

O significado desta tarefa foi resumido sinteti­camente na expressão de Cristo a Pedro: “confirma fratres tuos”, procura confirmar os teus irmãos! (Lc 22,32).

Somos fracos e volúveis, mas Deus é forte. E só Deus é a fonte da coragem e da segurança. Só Ele pode fortificar-nos (Rm 16,25), só Ele nos manterá firmes até o fim (1Cor 1,8); foi Ele que nos colocou sobre o fundamento sólido que é Cristo (2Cor 1,21), Ele é fiel, dar-nos-á força e nos protegerá do mal (2Ts 3,3), a Ele pertence a força para sempre (1Pd 5,10). Sabemos, porém, que Deus age na vida cotidiana por nosso intermédio; faz chegar a nós o vigor da sua presença e o dinamismo da sua graça mediante homens que Ele escolhe. Assim se explica a missão de Pedro, dos Apóstolos, dos guias de cada Comunidade, de cada um em relação ao seu próximo; são participação verdadeira e concreta na eficácia de reforço e revigoramento, própria do poder de Deus.

Paulo, por exemplo, diz aos Tessalonicenses que lhes enviou Timóteo precisamente para “fortalecê-los e encora­já-los na fé”, a fim de que ninguém se deixasse assustar pelas dificuldades que deve enfrentar (1Ts 3,2).

Há, então, em nós, por bondade e munificência do Senhor, verdadeira capacidade de fortalecer e animar os outros na vocação batismal e religiosa. É um dom que comporta empenho, discernimento, iniciativas e tribulações, mas que traz também a alegria própria de um ministério de amor fecundo. Ouçamos novamente a Pedro na sua primeira carta: “Aos presbíteros, que estão entre vós, exorto, eu, também presbítero como eles (...). Apascentai o rebanho de Deus que vos está confiado (...), de boa vontade (...), com entusiasmo. Não como dominadores das ovelhas entregues a vossos cuidados, mas tornando-vos modelos do rebanho. E quando aparecer o Pastor supremo, recebereis a coroa imarcescível da glória” (1Pd 5,1-4).

Queria, nesta carta, saber transmitir aos Inspetores, Diretores, Confessores, Formadores e, em definitivo, a todos os Irmãos, um suplemento de consciência e diligência acerca da responsabilidade de fortalecer os outros e um testemunho vivo da satisfação e alegria que isso proporciona. Revigorar os Irmãos é de certo modo participar da sua solidez de fundamento, é colaborar com Pedro na sua função de pedra, é experimentar o dinamismo fecundo da maternidade de Maria e da Igreja, é partilhar com Dom Bosco a certeza da validez sobrenatural da vocação salesiana.

Os tempos em que vivemos exigem atitudes novas, apro­priadas às dificuldades emergentes. A crise de fidelidade e fecundidade a que assistimos exige de nós a capacidade de dar força e coragem: capacidade que exige uma programação de virtudes novas a praticar. Será preciso pensar um pouco nisso e formular um bom propósito de vida.



3. Tentativa de leitura da crise



As numerosas saídas que a Congregação registrou nestes anos inscrevem-se num fenômeno mais vasto de crise e defecções religiosas e sacerdotais e de queda impressionante de vocações na Igreja do Ocidente. É uma baixa que provoca inquietantes perguntas quer sobre as possíveis causas, quer sobre o significado atual dos valores de fidelidade e perse­verança, como sobre as perspectivas do futuro.

Indagando dos que saíram e dos seus superiores as motivações aduzidas para justificar o passo dado, dialogando com os que atualmente se encontram num estado angustioso de dúvida e reexame, refletindo sobre as atitudes dos resignados ou dos indiferentes, observando os que reagem sem equilíbrio com manifestações comodamente conservado­ras ou superficialmente progressistas, mas sobretudo aprofundando o empenho dos muitos mais numerosos que perse­veram ativamente e se esforçam por enfrentar tantas dificuldades graves, percebe-se logo a necessidade de dis­tinguir um duplo nível de leitura do fenômeno de crise: o nível pessoal próprio de cada um, a ser considerado caso por caso no seu próprio ambiente, e o nível cultural, social e eclesial, a ser perscrutado numa visão de conjunto, em solidariedade com os Pastores e com os sábios do pensa­mento e da ciência.

Trata-se de dois aspectos que se sobrepõem e compe­netram de fato, mas cuja diferenciação facilita uma tentativa mais inteligente de leitura da crise.



Em nível pessoal



Referimo-nos aqui principalmente aos que saíram: a crise que os levou a decisões extremas pode servir para iluminar as outras. Sabemos que os casos de abandono foram muito numerosos. O fenômeno, tomado globalmente, oferece-nos dados concretos: fraqueza da liberdade humana, carên­cias de seleção e formação, desvios ideológicos, deficiências institucionais, anacronismo de alguns aspectos da forma de vida, moralismo na prática dos votos e da observância da regra etc.

Podemos acrescentar algumas considerações, aprovei­tando sobretudo algumas análises feitas pelo nosso querido conselheiro para a formação, P. Juvenal Dho, referentes aos pedidos de dispensa nestes últimos dez anos.

Há, nos motivos aduzidos para pedir dispensa, dois pontos de vista: o do sujeito interessado e o dos superiores e testemunhas: ambos se completam na descrição dos mo­tivos. O indivíduo interessado apresenta o seu estado de ânimo, considera a própria situação como experiência vivida; a testemunha, ao invés, descreve o comportamento exterior da maneira como foi observado por ele ou por outros na comunidade.

Não podemos deixar de lembrar antes o alto e grave significado do ato de liberdade com o qual se emite a pro­fissão perpétua, ou com o qual dela se pede dispensa. Trata-se de uma decisão livre, de opção global, que influi sobre todo um projeto de existência, atinge necessariamente o santuário íntimo da consciência, deixando ao seu redor uma zona impenetrável para o observador e também para o próprio interessado. Por conseguinte, apontar motivos pela opção do abandono não significa ainda estabelecer-lhe as causas: “falar de ‘motivos’ e falar de ‘causas’ não é exatamente a mesma coisa. O estudo das causas é necessa­riamente muito mais amplo e vai do exame das inumeráveis variáveis ambientais, atuais e históricas, às pessoais; ao passo que o estudo sobre os motivos se restringe aos elemen­tos que proximamente levam a pessoa a uma decisão e que ela vê como a ‘razão’ de tal decisão” (Juvenal Dho).

Partimos aqui do nível dos motivos apresentados tanto pelos sujeitos como pelas testemunhas.

Uma primeira avaliação simplesmente ‘quantitativa’ (e, portanto, a ser ainda aprofundada para não formular juízos superficiais e errôneos) apresenta-nos como primeira indicação, assaz superior numericamente às seguintes, a cas­tidade, a afetividade e a sexualidade. Mais em baixo apare­cem, em ordem decrescente, as dificuldades de personalidade, de caráter e de distúrbios psíquicos; depois, a imaturidade geral; o abandono da oração e o desinteresse pela vida espiritual; a perda do significado da vocação; o desacordo da contestação; as fixações ideológicas; a inadaptação à vida comum; a ruptura com os superiores, por fim, e é importante, também a constatação da não existência da vocação. Além desses motivos dão-se outrossim situações concretas irrever­síveis.

A alta frequência quantitativa dos motivos respeitantes à castidade, à afetividade e à sexualidade não se deve por certo julgar como uma “causa” do fenômeno atual de crise. Ela não pode ser vista isoladamente, porque recebe seu verdadeiro significado da inter-relação que tem com os outros motivos a que se acha ligada, e do contexto global da pessoa situada concretamente num tecido de vida e num clima cultural e espiritual.

Parece-nos mais objetiva e penetrante, ao invés, a tentativa de síntese geral dos vários motivos apresentados, que consiga descrever mais agudamente a crise das defec­ções. Uma leitura sintética do conjunto pode-se resumir com a descrição de um estado de alma bastante complexo. Trata-se, em geral, de um estado de alma que revela descon­tentamento e frustração pela vocação religiosa e sacerdotal, rejeição de normas, orientações, diretrizes, estruturas: tudo fortemente relacionado com três elementos significativos:

enfraquecimento do sentido sobrenatural e decadên­cia espiritual geral;

opções ideológicas que tendem a justificar o aban­dono;

necessidade imatura e compulsiva de afeto, com quedas mais ou menos frequentes no âmbito da castidade.



Ao considerar tal estado de alma em cada caso isolado, será preciso ter em conta a história que vai da infância ao ambiente familiar e social, à educação e aos estudos, à formação religiosa, ao trabalho feito, à situação de convivência em comunidade etc.; além disso deverá ser colocado perante o colossal fenômeno de transformação cultural em que vivemos, que tem, também ele, a sua história e desenvolvimento, mais ou menos acelerado e diversamente acentuado, conforme as regiões e países em que se vive; além disso, não se poderá deixar de considerar também o forte processo de renovação que surgiu no âmbito específico da Igreja após o Vaticano II, com exigências de mudanças delicadas e ritmo de dinamismo espiritual e apostólico com diferentes expressões concretas nas diversas regiões.

Da análise dos motivos resultam também duas categorias bem distintas de abandono: a primeira é a dos que mani­festam uma inautenticidade inicial da vocação religiosa, que permaneceu latente por longos anos e explodiu em circuns­tâncias bem diferentes; a segunda é dos que denotam um enfraquecimento progressivo da vocação até a ruptura da perseverança religiosa.

Ao analisar essas duas categorias de Irmãos, certamente nos sentimos todos postos em causa e chamados a juízo. São motivações comprometedoras: facilidade excessiva na admissão, superficialidade no discernimento das vocações, insensibilidade ante os perigos de certas ideologias desorientadoras, aburguesamento, ausência de entusiasmo espiritual e apostólico, situações comunitárias irregulares ou injustas e impróprias, incompreensões e contrastes, excesso de trabalho em quantidade e qualidade, condicionamento de suspeitas, mexericos, calúnias, instrumentalização dos dotes pessoais e ausência de espaço para o espírito de iniciativa, isolamento e frustração provocados pelo fato de não encontrar na comunidade a genuína comunhão e compreen­são da caridade.

Há, por conseguinte, muita responsabilidade pessoal, tanto por parte de quem abandonou como por parte dos muitos que ficaram. Isso é objetivo, mas não justifica de per si as defecções. A liberdade pessoal vive envolvida, como já dissemos, num manto de mistério; não podemos analisá-la de maneira exaustiva; ela nos convida a não condenar.

Entretanto, embora seja certo que a liberdade sofre o impacto do ambiente, não se pode aceitar uma explicação determinista das crises pessoais: a vocação é um fato dialogal, tecido de originalidade nas relações de cada um com Deus; implica relações pessoais livres e sinceras com Ele através das vicissitudes e acontecimentos da vida, e através da mediação de outras pessoas concretas. É absoluta a cer­teza da fidelidade por parte de Deus ao chamado que Ele faz e à intervenção da sua misericórdia para amparar a frágil capacidade de perseverança da liberdade. O peso do ambiente não tira a responsabilidade de ninguém, mesmo incluindo a liberdade de cada um num quadro de referência que não se deve descuidar.

Feito esse esclarecimento, é certo que devemos de qualquer maneira assumir toda a nossa responsabilidade, não só pelo influxo pessoal que pode ter havido na complexa objetividade de muitas motivações, mas sobretudo para aceitar o desafio que nos lança a crise, e enfrentar com conhecimento, constância e previsão a sua problemática.



Em nível cultural, social e eclesial



Registra-se no atual devir humano um processo intenso de mutações tanto na Cultura, como na Sociedade e na Igreja, em correspondência com os sinais dos tempos que emergiram neste século e explodiram sobretudo após a última guerra mundial.

A grande guinada antropológica, como se costuma chamar, com o sentido de ativa participação social, aprofundamento da dignidade da pessoa, emancipação dos mitos e das supers­tições, promoção humana da justiça social, crescimento enorme das ciências e da técnica, colocou-nos a todos à procura de um novo projeto-homem.

As vastas e rápidas mudanças estruturais sociopolíticas, voltadas para a construção de uma nova sociedade, pensada com a ajuda de variadas ideologias muitas vezes não cristãs e estranhas ao espírito do Evangelho, suscitam tensões e lutas e um pluralismo cultural que desorienta.

O conjunto desses fenômenos marca uma hora de crescimento da humanidade, e apresenta os sinais precur­sores de uma nova época histórica. “O gênero humano — diz-nos o Concílio — encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro. Elas são provocadas pela inteligência do homem e por sua atividade criado­ra e atingem o próprio homem, seus juízos, seus desejos individuais e coletivos, seu modo de pensar e agir tanto em relação às coisas quanto em relação aos homens. Já po­demos falar então de uma verdadeira transformação social e cultural, que repercute na própria vida religiosa. Como acontece em qualquer crise de crescimento, esta transfor­mação acarreta sérias dificuldades” (GS 4).

Por outro lado, a profunda renovação eclesial promovida pelo Vaticano II com o aprofundamento do mistério da Igre­ja na comunhão e na missão, a centralidade dada à Palavra revelada, o conceito complementar e de serviço de qualquer ministério e carisma, o relançamento da Igreja local com as suas exigências de descentralização e de multiformidade pas­toral, o apostolado dos leigos, a perspectiva ecuménica e o diálogo com as religiões não cristãs, a liberdade religiosa, o repensamento do ministério sacerdotal como tarefa de ‘pastor’ e de ‘guia’ da comunidade, a dimensão colegial da Ordem, a nova presença da Igreja no mundo como perita em humanidade, a sua natureza sacramental e a redescoberta do sentido eclesial da consagração religiosa, tocaram profun­damente todos os aspectos da realidade cristã, removendo certa tranquilidade de vida, mas também revolvendo os espíritos e prestando-se, por vezes, a interpretações de caráter subjetivo, a diferença de pareceres nas coisas mais santas e seguras, e até a abusos e desvios.

Eis, então, que por causa das numerosas e profundas mudanças em nível sociocultural e em nível eclesial surgem não poucas dificuldades, características de uma mudança histórica. Já o afirmou o Concílio: “nasce daí, imenso, um complexo novo de problemas que provoca novas análises e sínteses” (GS 5).



As incertezas causadas por mudanças profundas provo­caram delicada insegurança doutrinal no âmbito da Fé, com dúvidas, indeterminações e também equívocos ou aberrações, e uma crise de identidade na própria Igreja e, em geral, na Vida religiosa até atingir mais concretamente cada Insti­tuto.



A novidade de presença da Igreja no mundo provocou uma crise de espiritualidade e dos métodos apostólicos na interpretação das relações mútuas entre promoção humana e evangelho de salvação e, em particular, da visão ascética da “fuga mundi” e da moral cristã.



O processo de secularização pôs em crise os valores de qualquer consagração, ao passo que o sentido mais demo­crático da participação social fez explodir a contestação da autoridade, e a aceleração da história transtornou o campo das estruturas e das instituições.

Por isso tudo muitos Religiosos interrogam-se sobre o problema angustiante da possibilidade do futuro ou o inquietante de um futuro diferente. Discutem-se os próprios princípios da Vida religiosa: o verdadeiro valor da profissão perpétua, a essência permanente de cada voto, a relevância do projeto evangélico do Fundador, a importância da forma de vida comunitária, os critérios de admissão ao Instituto e a metodologia de formação.

Todo esse enorme complexo de valores emergentes, de problemas e dificuldades influem muito mais sobre cada indivíduo do que aquilo que é explicitado nos motivos apresentados em nível pessoal, em relação ao fenómeno de crise e de abandono.

O Concílio, porém, ainda que reconheça o aumento das contradições e desequilíbrios (GS 8), não nos fala de catás­trofe humana, mas sim da aurora “de um período novo da sua história” (GS 4) e do positivo empenho da Igreja e dos cristãos em ajudar com sempre maior generosidade e eficácia os homens do mundo contemporâneo a se esforçarem por construir uma nova sociedade e uma nova era. Disso se deduz que o Vaticano II nos leva a interpretar o fenô­meno global de forma substancialmente positiva, mesmo deixando espaço mais que suficiente para muitas angústias, inseguranças, desvios e influxos negativos que fazem reper­cutir seu peso e angústia sobre as vocações religiosas e sacerdotais.

Portanto: uma perspectiva de esperança. Ela, todavia, lança um grande desafio à Vida religiosa contemporânea na sua estabilidade e possibilidade de futuro.



4. A nossa ótica de discernimento



Para nós, a mudança cultural a que assistimos convida--nos à conversão e à retomada. Não é difícil descobrir nela as riquezas próprias do mistério da história, que traz viva em si a presença de Cristo, seu Senhor. A nossa leitura do conjunto dos fenómenos pode tornar-se, sem dificuldade, uma meditação dos planos secretos de Deus. Nas vicissitudes, prósperas ou adversas, podemos perceber como uma pas­sagem do Senhor que nos desperta, corrige, estimula, ajuda a crescer e convida-nos a perseverar e progredir.

Nenhum Instituto religioso poderá hoje permanecer fiel no imobilismo; nem poderá sê-lo em um mobilismo vazio fim em si mesmo, que fere ou transcura a vitalidade do carisma inicial. O Senhor que passa convida-nos a um “equilíbrio dinâmico”, que ponha em execução a fidelidade no movimen­to, com um ritmo de velocidade adequado às exigências das situações. Assim, o empenho para mudanças justas e urgentes passa a fazer parte viva da própria genuinidade religiosa.

Mas para saber ver e interpretar a passagem do Senhor, requer-se capacidade de oração, objetividade de análise, relação viva com as origens, atenção aos sinais dos tempos e à condição dos destinatários que influem profundamente na historicidade da própria missão, referência contínua e iluminada ao Vaticano II, às orientações do Magistério, às diretrizes dos últimos Capítulos Gerais e à animação con­creta dos principais responsáveis da Congregação.

É importante cultivar esse tipo de meditação com soli­dariedade comunitária, sem atitudes individualistas ou de autossuficiência, e sem pressões de grupos ideológicos.



Enumeremos alguns sintomas positivos



Com os superiores gerais, em Villa Cavalletti, puderam-se individuar alguns elementos positivos que iluminam o panorama e permitem conjeturar uma perspectiva séria de perseverança e fecundidade. Eis alguns:

a consciência e a constatação que esta nova estação de Deus nos está movendo realmente num caminho de reno­vação, e não de agonia e de sepultura;

o exercício já intensificado de perscrutar com inteligên­cia de fé os sinais dos tempos e de haver tomado suficiente consideração da guinada antropológica, abrindo-nos à vasta contribuição das ciências humanas, endereçou-nos a uma síntese superior, sem fazer consistir a fidelidade numa restauração;

o crescente esforço de aprofundar o depósito da fé, seja na estrutura pessoal como no seu contexto social, despertou-nos a iniciativas importantes para uma formação intelectual permanente;

a visão conciliar da Igreja como mistério está restituindo o primado da dimensão contemplativa à Vida religiosa;

a sensibilidade para com os pequenos e os pobres implica uma recuperação do testemunho dos votos e de maior sensibilidade de comunhão;

o desafio de tantas mudanças moveu os Capítulos Gerais a precisar e esclarecer a identidade vocacional de cada um dos Institutos;

a necessidade de programar o futuro com inteligente perspectiva estimulou a uma volta objetiva e penetrante ao carisma do Fundador;

a situação de instabilidade e de busca contribuiu para fazer rever, renovar e reafirmar o valor das Constitui­ções como projeto evangélico que enquadra a profissão religiosa;

a diminuição da quantidade numérica nos professos estimulou a busca e o cuidado da “qualidade” nos vários aspectos essenciais da vocação, na seleção, na admissão, na formação inicial;

a crise, em geral, despertou as responsabilidades e estimulou o estudo das prioridades espirituais e pastorais a serem cultivadas.



Certamente, com estes sinais de esperança, continua aberto, com diz o Papa na sua encíclica “Redemptor hominis”, um panorama “de inquietude, de medo consciente ou inconsciente, de ameaça, que de vários modos se comunica a toda a família humana contemporânea e se manifesta sob vários aspectos (...) em várias direções e graus de inten­sidade” (RH 15).

De aí a importância e urgência de encontrar a maneira de, num período de transição, dar força e infundir coragem a todos os Irmãos.



5. Alguns compromissos prioritários



Da análise feita numa ótica de esperança, resultam já concretamente várias tarefas irrenunciáveis e urgentes; de­vemos salientá-las para que se tornem o objeto privilegiado do nosso compromisso de programação da renovação. Trata­ -se de alguns pontos-chave para os quais os dados analisados nos levam a dirigir a nossa vontade de atuar.



  • Em primeiro lugar, o aprofundamento do significado da e do seu patrimônio doutrinal, centrado no mistério pascal de Cristo no contexto da problemática atual. Ele nos leva a uma especial atenção à reflexão teologal sobre a Vida religiosa e a uma consciência renovada dos seus valores fundamentais, sobretudo da profissão perpétua.



  • Em segundo lugar, a qualidade da formação tanto inicial como permanente, precedida de cuidadosa seleção dos candidatos. O processo formativo deve ser todo ele voltado para atingir “a pessoa no seu profundo, e não somente a sua inteligência e o comportamento exterior, para ajudá-la a uma livre percepção e reconversão das próprias moti­vações” (Juvenal Dho).



  • Além disso, a urgência de recuperar e dar relevo prático à direção espiritual é um ponto que emerge com muita fre­quência nas análises. Os Superiores Gerais consideraram-na como uma necessidade vital e pediram que se encontrasse a maneira de sensibilizar quanto ao problema todos os Insti­tutos religiosos. Nessa mesma linha insistiu-se sobre a figura e o papel do superior como mestre da “vida no Espírito”, tal como foi descrito no documento “Mutuae Relationes” (MR 13).



Depois, a importância da comunhão fraterna e das relações humanas dentro da vida consagrada e fora; reveste-se ela de especial urgência na comunidade religiosa para favorecer o equilíbrio da pessoa e estimular a fideli­dade, hoje particularmente difícil. Se é verdade que todo professo se empenhou com a comunidade, é ainda mais verdade que a comunidade é chamada a cuidar de cada Irmão (Const. 4, 50-53, 54). Urge salientar hoje as grandes possibilidades de prevenção e terapia que pode oferecer uma genuína comunhão de vida: cada comunidade deve chegar a ser “uma comunidade confirmadora”, que sabe dar força e infundir coragem aos seus membros.



  • Enfim, o cuidado de uma higiene psíquica e espiri­tual: a saúde psíquica tem necessidade, como a saúde física, de um conjunto de condições que a conservem e favoreçam. “Muitas defecções se acham claramente ligadas a uma série de tensões, conflitos, ansiedades, que revelam muitas vezes, na base, um modo de viver, tanto comunitário como pessoal, fora de toda norma de higiene psíquica, e também de bom senso” (Juvenal Dho). Convirá ter em conta, sobretudo em certos casos, os meios atuais de oportunos cuidados terapêuticos de inspiração cristã, exercidos, se necessário, em centros apropriados.

Por outra parte também a vocação tem necessidade de uma higiene espiritual: “Viver habitualmente com um estilo em desarmonia com os valores vocacionais autênticos não pode deixar de enfraquecê-los progressivamente” (Juvenal Dho).



6. Os eixos da força e da coragem



A tentativa de leitura da atual crise religiosa abriu-nos horizontes de esperança, mas confirmou também as preocu­pações e as angústias, apresentando-nos uma problemática enorme e ambivalente, absolutamente superior às nossas capacidades de atuação e que conserva, pois, também o seu peso e aspecto desencorajador. Não se trata, aqui, de passar por otimista ou pessimista, mas de ter fé.

A perseverança e a fidelidade são possíveis; antes, são a única atitude válida e construtiva do futuro.

Com efeito, permanecer fiéis e ter a capacidade de dar força aos outros, e de infundir-lhes coragem, não provém de um entusiasmo ingênuo de quem sequer vislumbra os pro­blemas nem percebe a grave corrosão de cedência e dos perigos complexos que se abatem sobre o futuro da Vida religiosa. Todavia, mesmo considerando inevitável a pertur­bação natural e o avanço insidioso de um sutil secularismo que penetra em todos os ambientes e desequilibra o signi­ficado evangélico de consagração, resta indiscutível uma certeza de perseverança. Sabemos pelo Evangelho que Cristo é o vencedor na história (Jo 16,33) e que a nossa fé é verda­deiramente uma vitória (1Jo 5,4).

A fonte de onde jorra a capacidade de confirmar os irmãos provém da presença salvadora de Deus em nós; e essa presença aprofunda raízes na graça que santifica o nosso ser e o faz agir mediante os dinamismos teologais da fé, da esperança e da caridade.

São justamente os três grandes eixos sobre os quais se move o serviço de confirmação dos Irmãos hoje: o da ver­dade, iluminado pela “fé”; o da perspectiva, animado pela “esperança”; e o da bondade, amparado e impregnado pela “caridade”. Queremos refletir brevemente sobre estas ener­gias que nos são oferecidas pelo alto.

Devemos supor aqui os grandes horizontes cristãos da fé, da esperança e da caridade: limitando-nos a alguns aspectos estratégicos que de tais horizontes refluem sobre a nossa Vida religiosa e exigem agora especial atenção e propósitos práticos de aplicação.

Da fé extraímos algumas orientações estratégicas de verdade; da esperança, alguns apelos para a missão; da caridade, algumas prioridades para a comunhão.



A verdade, iluminada pela “FÉ”



Primeiramente, para dar força e infundir coragem em casa, é preciso tornar límpida a verdade sobre a Vida reli­giosa.

O Concílio, o Magistério, os Capítulos Gerais e os Superiores responsáveis de toda a Congregação ofereceram a propósito, durante estes anos, material abundante de esclarecimentos. Também bons teólogos concorreram na Igreja, com oportunas reflexões, para individuar os centros nevrálgicos da consagração religiosa.

Lamentavelmente espalharam-se também ideologias pe­regrinas ou interpretações superficiais e infundadas, e modas secularistas, que desviam as pessoas frágeis ou pouco maduras. A propósito, não conviria esquecer que os Após­tolos usaram juízos severos sobre os falsos mestres que afastam os irmãos da verdade (Cf. 2Cor 11,1ss; 1Tm 6,3ss; Tt 1,10ss; 2Pd 2,10ss; 1Jo 2,18ss; Jt 1,3ss).

Urge assegurar a clareza de percepção e a convicção de consciência sobre os valores que acompanham algumas ver­dades basilares para a nossa vocação.

Concentremos a nossa estratégia sobre dois: a “Pro­fissão religiosa” e a “índole própria” da Congregação.



A redescoberta dos valores da “Profissão perpétua”, na sua qualidade de opção fundamental e definitiva, por parte do sujeito, e de consagração específica por parte de Deus e da Igreja. Com a profissão perpétua, o religioso lança toda a sua existência numa bem determinada órbita eclesial. A profissão perpétua é uma opção e consagração totalizante, que se torna medida de juízo e critério de discernimento de todas as opções posteriores; requer uma ótica original e um testemunho especial no projeto global da própria vida; nada foge ou escapa das perspectivas do seu ângulo. Ninguém é religioso a tempo intermitente: a oblação da profissão e a sua consagração íntima é o compromisso ra­dical que qualifica todos os aspectos da existência do reli­gioso.

Na fórmula com que emitimos a profissão perpétua (Const. 74) encontram-se as características da “aliança” bíblica: o encontro de duas fidelidades num compromisso de existência; uma amizade de sentido nupcial que envolve toda a vida e orienta todo o dinamismo da própria atividade; é a fusão de duas liberdades a tempo integral, por toda a existência.

S. Tomás falava precisamente de um “voto de profissão”, no singular (Cf. S. Th. II-II, p. 186), considerando o ato do professante não fragmentado, mas antes explicitado nos três votos, como um ato único e global do “voto de religião” (Cf. Tillard, “Devant Dieu et pour le monde”, ed. du Cerf. Paris 1974).

O motor interno da profissão perpétua, o segredo do seu dinamismo e toda a sua mística é a “sequela de Cristo”. O amor e o entusiasmo para com Ele constituem a fonte primeira e a meta da vida do religioso.

Na celebração da profissão perpétua devemos pôr em evidência a sua dimensão pública, que assegura e proclama autorizadamente a marca eclesial e o significado social e comunitário da consagração. Com efeito, a celebração da profissão perpétua manifesta uma intervenção particular do Senhor mediante o ministério da Igreja. Antigamente se dava a tal intervenção o nome de “consagração” (também o novo “Ordo professionis religiosae”, págs. 30, 49, 73, 92 usa o termo consecratio seu benedictio” para a profissão perpétua). E é precisamente neste sentido que o Concílio falou de “consa­gração” do religioso: (ele por Deus) é consagrado mais intimamente ao serviço divino” (LG 44, texto latino).

Se a intervenção de Deus é consagração e bênção que desce do alto, o ato do professante é oblação e holocausto que parte de baixo.

A vocação de cada um é um chamado divino particular ao qual a liberdade pessoal responde com a sua oblação defi­nitiva, marcada por uma consagração especial da parte de Deus, pela qual todo o ser do homem é introduzido, com um novo título, numa nova união de amizade com Ele, que abraça toda a sua vida e cada uma das suas atividades, e lhe confia um papel particular na sacramentalidade geral da Igreja.

Não é por nada que a profissão perpétua é emitida como parte integrante de uma celebração litúrgica e o seu significado mais profundo “nasce de um ato de culto e é inseparável da liturgia” (G. Philips, comentando a Lumen gentium). Mediante a profissão somos consagrados pelo Senhor no Seu Povo, enquanto Sacramento universal de salvação, para participar mais especificadamente na sua missão entre os homens. Assim a Vida religiosa adquire uma dimensão “sacramental” como participação na natureza da Igreja, para manifestar e comunicar à sociedade humana um aspecto do mistério de Cristo (LG 46), não simplesmente como projeto privado de um indivíduo ou de um grupo, mas como tarefa oficial, ou melhor como um carisma pú­blico e eclesial para o bem de todos. O religioso, assim, entra com a profissão a fazer parte de uma espécie de “corpo especializado” (de uma “ordem”) ou de uma “categoria tes­temunhal” no organismo vivo do Corpo de Cristo que é a Igreja.

Portanto, redescobrir e proclamar a verdade acerca dos valores da profissão perpétua, para preparar-se a ela e para vivê-la com coerência, é um primeiro elemento para infundir força e coragem nos irmãos, fazer conhecer a grandeza e a responsabilidade da vocação, ir contra a indiferença, a superficialidade, e certas interpretações ideológicas que desnaturam o valor da Vida religiosa ou que, mais frequen­temente, enfraquecem os fundamentos da perseverança.

Podemos citar aqui, porque de profundidade análoga, quanto o Santo Padre escreveu para os sacerdotes: “É pre­ciso pensar em tudo isto, principalmente nos momentos de crise, e não recorrer logo à petição de dispensa, entendida como ‘intervenção administrativa’, como se na realidade em tal caso não se tratasse, ao contrário, de uma profunda questão de consciência e de uma prova de ser homem. Deus tem direito em relação a cada um de nós a esta prova, se é verdade ser a vida terrena de todos e cada um dos homens um tempo de provação. Mas Deus quer igualmente que nós saiamos vitoriosos de tais provas, e para tanto nos dá o auxílio adequado” (Carta aos Sacerdotes 9).

O confirma frates tuos liga-se intimamente à comuni­cação da verdade acerca da natureza da profissão perpétua: é, de fato, a fé que sustenta as certezas da esperança e os bens da caridade.



Sincera adesão à “índole própria” da Congregação. Outro aspecto de verdade na Vida religiosa, sobre o qual urge insistir hoje com acurada clareza, é o da identidade carismática do próprio Instituto para assegurar e desenvol­ver concretamente um decidido sentido de pertença. A pro­fissão religiosa, com efeito, não se emite em abstrato, mas segundo um projeto evangélico concreto, concebido e vivido pelo Fundador e descrito com autoridade nas Constituições. Nas origens, os nossos primeiros irmãos exprimiam o seu projeto religioso de vida com uma frase simples, mas densa de riqueza existencial: “Quero ficar com Dom Bosco!”.

A identidade de um Instituto não se encontra numa ideia ou numa definição, mas numa experiência de “vida no Espírito”. A Congregação, à qual nos incorporamos com a profissão, é uma realidade histórica com nomes de pessoas, datas, com tradição, estilo de santidade e apostolado, objetivos particulares a serem atingidos e com adequados crité­rios de ação. A Vida religiosa na Igreja não é algo genérico, subsistente “em si”, mas é o conjunto de Institutos vários, bem definidos, que prolongam vitalmente o patrimônio espi­ritual de S. Bento, de S. Francisco, de S. Domingos, de S. Inácio, de S. Afonso, de Dom Bosco etc.

A índole própria de um Instituto nasce por iniciativa do Espírito Santo quando deu ao Fundador um determinado carisma. Não é inventada em cada geração, mas flui homogeneamente das origens; de fato o carisma do Fundador “revela-se como uma experiência no Espírito, transmitida aos próprios discípulos para ser por eles vivida, conservada, aprofundada e constantemente desenvolvida em sintonia com o Corpo de Cristo em perene crescimento. Por isso a Igreja defende e sustenta a índole própria dos vários Institutos religiosos (LG 44; cf. CD 33; 35,1; 35,2 etc.). Tal índole própria comporta também um estilo particular de santifica­ção e de apostolado, que estabelece uma determinada tradi­ção de tal modo que se podem colher seus componentes objetivos(MR 11).

Há, pois, na índole própria da Congregação, uma consistência histórica que não depende de interpretações ideológicas e que não pode ficar à mercê do arbítrio de cada um, ou de grupos de pressão, mas que ancora de ma­neira realista em dois dados de fato muito concretos: o Fundador, ou seja, uma pessoa bem definida, que recebeu e começou a viver na história um dom especial do Espírito Santo; e uma Comunidade de discípulos, enriquecida ininter­ruptamente com novas vocações pelo mesmo Espírito Santo e estruturada organicamente para cuidar e desenvolver no tempo a permanência do carisma do Fundador.

O desenvolvimento e a criatividade ao longo dos séculos têm necessidade de sintonia com tais realidades históricas, evitando distorções quer de sentido temporal no âmbito sociopolítico, quer de arbítrios espiritualistas ao apelar subjetivamente para o vento de Pentecostes. Os fatos nos dizem, infelizmente, que existem atualmente abusos nessas duas vertentes.

O serviço de dar força e infundir coragem exige, então, um conhecimento claro da “índole própria” da Congregação, como uma órbita bem definida, para nela lançar as energias novas e os projetos de desenvolvimento com vistas a um crescimento homogêneo e sadio do carisma do Fundador.



A perspectiva, animada pela “esperança



Para dar força e infundir coragem aos irmãos é preciso atender também a um segundo eixo: o de uma perspectiva que demonstre a atualidade e a importância da nossa missão entre os homens.

Hoje se olha para o futuro, para o novo Advento do ano 2000, no ritmo genuíno do Evangelho que implica sempre novidade. Em tal atitude, porém, devemos estar conscientes do futuro, mas sem nos deixar condicionar por certo aspecto mágico do futuro. Nós é que influímos sobre o futuro! Não estamos caminhando numa via férrea traçada com visão determinista, mas criativamente, com critérios válidos de discernimento, que olham simultaneamente para o carisma do Instituto e para os sinais dos tempos, a fim de construirmos, nós, com esforço, uma síntese vital su­perior.

Quando, depois de mais de um decênio de crise, se começa a falar de recuperação de certos valores ou de can­saço por um mobilismo exagerado, não se está a indicar uma simples volta ao passado com um projeto de restauração: seria negação do crescimento e adulte­ração estática da fidelidade. Nem mesmo se trata de um cansaço passageiro, como se fosse uma trégua operativa sem verdadeiras convergências superiores e contribuições posi­tivas de uma nova síntese.

Estamos agora assistindo claramente a uma reavaliação de vários valores; cresce uma crítica constante e sofrida da mudança pela mudança; não se trata de cansaço ou de pa­rada fugaz, mas de um passo à frente muito concreto.

A recuperação, de que se fala, é o sinal do início de uma síntese superior entre os grandes valores permanentes e os novos aspectos positivos que emergiram dos sinais dos tempos. Vislumbra-se maior equilíbrio entre os princípios sempre válidos, ontem e amanhã (porque transcendem a moda efêmera da hora que passa), e os valores emergentes no devir humano. Não é um equilíbrio estático para quem se instalou num pedestal, mas um verdadeiro equilíbrio no movimento, onde a própria velocidade intervém como um dos fatores que garantem a estabilidade na corrida para a frente.

A mudança cultural para uma nova época histórica apenas começou; a Igreja, os Pastores, os Institutos Reli­giosos devem pensar na sua missão dentro de uma sociedade humana em transição, convencidos de serem chamados a uma busca corajosa.

O equilíbrio em movimento exige a posse de algumas certezas, claras e robustas, que constituam como uma plata­forma de lançamento para muitas órbitas no espaço; exige saber viver “estavelmente” numa “situação instável”. O santo, por exemplo, com a sua obediência, com a sua casti­dade e com a sua pobreza, é um homem para todas as estações; é portador de valores que são para todos os tempos; representa um centro de interesse não só do pas­sado, mas também do futuro. Pois bem: quais são os princípios permanentes que o movem? Será necessário indi­viduá-los para fazê-los entrar em simbiose com os sinais dos tempos e atingir assim a síntese superior.

Eis em que direção é preciso encontrar os elementos de segurança numa situação de busca. A esperança é por si mesma lançada para o futuro, mas apoia-se em certezas irre­futáveis já existentes. Conta com a onipotente bondade e mi­sericórdia de Deus que nos ama e acompanha; conta com a presença viva e ativa de Cristo que nos guia na história; conta com a intercessão e intervenção materna de Maria que comparte, na ressurreição, o empenho do Senhor em cons­truir o Reino de Deus nos séculos.

Para ter uma perspectiva de coragem e entusiasmo em nossa missão urge assegurar os grandes pontos de apoio da esperança cristã que nos dão a capacidade de equilíbrio num ainda longo período de transição.

Aqui, porém, recordarei, para nós, somente dois aspectos derivados que considero estratégicos e urgentes: “a escuta operativa do apelo dos jovens” e a renovação da nossa “criteriologia apostólica”.



A escuta operativa do “apelo dos jovens” é indispen­sável para um empenho apostólico de futuro. Nós nos consideramos servidores do homem porque enviados pelo Pai a sermos missionários da juventude. A nossa perspectiva de futuro tem dois poios inseparáveis: a ajuda do alto que nos sus­tenta e nos lança e os meninos e jovens que nos chamam e provocam na sua concreta condição juvenil.

Estamos entre os jovens porque Deus a eles nos enviou, e lhes perscrutamos a condição juvenil em toda a sua pro­blemática, porque, através dela, é o próprio Cristo que nos interpela. A pátria da nossa missão é a juventude neces­sitada. A sua condição objetiva é o estímulo prático que mede os empenhos da nossa esperança, nos oferece elemen­tos de avaliação das nossas obras e nos põe em crise de revisão e reprogramação.

Sente-se hoje a imperiosa necessidade de uma “novidade de presença” apostólica; ela não condena as obras por si mesmas, mas exige delas um magnânimo repensamento junto com experiências inéditas, devidamente programadas e avaliadas. Os dois últimos Capítulos Gerais orientaram-nos precisamente nesse sentido.

Mover-se nessa direção não diminui os problemas, mais propriamente faz nascer outros novos; não favorece a como­didade nem a tranquilidade, mas desperta os sentimentos mais genuínos do apóstolo; não nos sentimos numa situação cômoda, mas chamados a colaborar com Cristo Redentor na libertação integral do jovem. A força e a coragem se afrou­xam quando se encerram numa situação de aburguesamento; seu clima mais adequado é ao invés o da problemática e das necessidades alheias, sobretudo dos destinatários prediletos. A nossa vocação nasceu em tempos difíceis e a coragem de vivê-la cresceu enfrentando as dificuldades reais e complexas do momento.



Renovação da nossa “criteriologia apostólica”, a fim de que seja válida para o futuro. Ela está contida, notou-o o CG21, no Sistema Preventivo. Estamos fortemente empe­nhados, depois do belo documento capitular, em reatualizar os seus grandes princípios fundamentais. É, esse, um tra­balho indispensável para a nossa perspectiva apostólica.

No Sistema Preventivo encontramos aquele particular “estilo de santificação e de apostolado” (RM 11) que o Espírito do Senhor despertou em Dom Bosco; ele constitui um elemento do alto, que fundamenta a nossa esperança.

Pois bem: numa situação de transição não nos servem as fórmulas feitas, mas sobretudo os grandes critérios de ação que suscitam e guiam muitas programações possíveis e diferenciadas. Temos necessidade de critérios que animem com nova vitalidade os empenhos pastorais, se bem que nos estejamos movendo, ou melhor, justamente porque nos estamos movendo numa incerteza sociocultural.

Cuidemos, pois, de uma perspectiva pedagógica de princípios de ação, sólidos e comprovados pela experiência, que acompanhe e torne operativa a nossa esperança (cf. a carta-circular sobre “O projeto educativo salesiano”, ACS 290, 1978).

Quanto mais se aprofundarem e traduzirem em orien­tações práticas os grandes critérios pedagógico-pastorais que Dom Bosco nos deixou no Sistema Preventivo, tanto mais se contribuirá, sem dúvida, para melhor confirmar os irmãos.



A bondade, amparada e impregnada pela “caridade



Enfim, o terceiro eixo da força e da coragem é o da bondade amparada e impregnada pela caridade.

A bondade é uma atitude que não condena, não agride, mas compreende, perdoa, intui, tem paciência, confia, espera, toma a peito, conforta, anima, estimula, louva, corrige com humil­dade e confiança. Faz pensar no hino da caridade da pri­meira carta aos Coríntios. “A caridade é paciente, a caridade é benigna. Não é invejosa. A caridade não se ostenta, não se enche de orgulho, nada faz de inconveniente, não procura o interesse próprio, não se irrita, não leva em conta o mal recebido; não se compraz com a injustiça, mas se rejubila com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13, 4-7).

Num clima impregnado dessa bondade, torna-se fácil a comunicação mútua e a eficácia de um diálogo animador. Lembremos o encontro do jovem pedreiro Bartolomeu Ga­relli com Dom Bosco na igreja de S. Francisco de Assis em Turim: a bondade do padre novo tornou possível uma amizade que inaugurou a nova missão histórica da Família Salesiana a favor da juventude.

Da importância da bondade estamos todos convencidos, e é muito fácil para todos nós lembrar com saudade o coração de Dom Bosco, que nem sempre encontramos no clima das nossas comunidades. É mais fácil criticar a sua ausência do que concorrer para aumentar-lhe a presença. Não há dúvida que quem é “bom” irradia calor e esperança nos outros. O problema, porém, está em conhecer e empregar os meios para cultivar a bondade.

Vou lembrar aqui apenas dois aspectos estratégicos que garantem, para quem quiser, o crescimento na bondade; derivam do dom da caridade, infundida em nós pelo Espírito do Senhor. São eles: a recuperação do “primado da dimen­são contemplativa” e o cuidado intenso da “comunhão fra­terna”.



A recuperação do primado da “dimensão contempla­tiva” implica o exercício e o desenvolvimento da caridade nas nossas relações com Deus: a escuta da sua palavra, a consideração do seu mistério de salvação, a meditação da sua misericórdia, o estupor pelo heroísmo do seu sacrifício, a admiração pela benignidade e firmeza do seu comporta­mento, a alegria pela generosidade dos seus dons, o entusias­mo pela gratuidade do seu amor.

A bondade que procede da caridade não é propriamente um dado temperamental ou uma bonomia de convivência, mas fruto consciente e exigente da profundidade do próprio amor para com Deus.

Quanto mais se difundir na Congregação certa atmos­fera embebida de ateísmo prático, tanto menor capacidade de verdadeira bondade existirá entre os Irmãos.

A fonte da bondade que está no centro do espírito sale­siano é Deus, numa consciência de profunda amizade com Ele; ela flui do exercício de uma caridade que contempla, com intuição de amor, o coração do Pai. Trata-se de uma contemplação em que a atividade da inteligência está a serviço do amor, e onde os propósitos da vontade se tra­duzem em testemunho de serviço como participação no mis­tério que se adora.

Para aumentar a capacidade de dar força e coragem aos irmãos através da bondade, é preciso aprofundar a capaci­dade de manter-se em contínua conversação com Deus, esco­lhido como o Amigo sumamente amado na profissão reli­giosa. De aí a importância e a urgência de cuidar dos tempos de oração pessoal e comunitária: a Eucaristia, a Penitência, a meditação da Palavra de Deus, a liturgia das horas, a devoção a Maria: são esses os meios indispensáveis para tornar cotidianamente possível a nossa bondade.

A capacidade de encorajamento dos outros apoia-se toda na consciência viva da amizade com Deus.



Preocupação intensa com a “comunhão fraterna”. Outro campo concreto para o cultivo da nossa bondade é o exer­cício da comunhão com os outros.

Falou-se tanto nestes anos de intercâmbios pessoais, de amizade, de comunhão fraterna, de comunidade ideal. É pre­ciso que sejamos realistas e não contribuamos para fazer da comunidade um mito. Não existe na história a co­munidade perfeita; ela vive em plenitude somente na Jeru­salém celeste. Aqui, entre nós peregrinos, a comunhão fra­terna é objeto de busca e esforço de construção; cresce com a contribuição da bondade de cada um. Uma bondade feliz em dar com o estilo da gratuidade aprendido no mis­tério de Deus.

O fenômeno das defecções e da crise profunda de não poucos irmãos lembrou-nos um aspecto particular, talvez um tanto descurado demais no afã do trabalho diário: há em todos alguns momentos ou graus de fraqueza e de pecado e também de perturbação psíquica; há um nível de patologia mais ou menos intenso também entre os religiosos ditos normais: a nossa vida não é somente lógica e ascese.

O realismo das constatações de fraqueza, de falha, de desequilíbrio e de doença, lembrou-nos que a bondade tem igualmente um aspecto de compreensão, de perdão e de te­rapia. Ao promover a formação permanente em cada co­munidade, dever-se-ia reservar um lugar não apenas secun­dário à sua “dimensão terapêutica”, que muitas vezes previne e também sana as quedas e os sintomas patológicos de algum de seus membros. Para dar força e coragem a não poucos irmãos é necessária uma inteligente aplicação ao cuidado desse aspecto. A reeducação de cada comunidade deve levar-nos a saber enfrentar as falhas e as crises pessoais com o estilo da bondade que é amor compreensivo e respeitoso, mesmo se apoiado na força e na lealdade de Deus e não no desinteresse, no permissivismo, na coni­vência ou no temor da correção.



7. Conclusão



Percorremos juntos, caros irmãos, de maneira um tanto rápida e numa apresentação muito sintética, alguns dados de leitura da crise atual, descobrindo sinais de espe­rança e individuando tarefas prioritárias de trabalho. Fize­mo-lo considerando o abandono de muitos, o desânimo de alguns, a dúvida de outros, a queda das vocações e os anseios de todos de ter uma perspectiva de futuro mais clara.

A época em que vivemos põe à prova a fecundidade e a fidelidade. Como reagir? Quem nos dará força e coragem para enfrentar tantos problemas?

O Senhor é a fonte da fidelidade; Maria e a Igreja nos proclamam o mistério cristão da maternidade fecunda; todos os consagrados foram encarregados de dar confiança e alegria aos seus irmãos. Os eixos sobre os quais se move tal ministério de encorajamento são a fé, a esperança e a caridade; elas nos convidam a concentrar o “serviço da confirmação” na verdade da nossa vida consagrada, nas pers­pectivas da nossa missão, e na bondade inerente ao nosso estilo de vida.

Se considerarmos os pontos concretos aos quais nos referimos ao falar dos três eixos, constataremos que se trata de um programa de renovação já aprofundado e estabelecido pelos nossos dois últimos Capítulos Gerais. Vê-se mesmo que o Espírito do Senhor nos assistiu nessas reuniões para construir uma estratégia válida de futuro, esclarecer os valores da nossa identidade, estimular os esforços da perseverança.

Concentremo-nos, pois, inteligente e generosamente, sobre esses pontos estratégicos a fim de revigorar entre nós a fidelidade e a fecundidade.

Dom Bosco testemunhou com toda a sua existência, tanto a fidelidade como a fecundidade e a capacidade de encorajamento. Viveu em tempos difíceis e neles encontrou uma razão ainda mais forte a favor da sua vocação. Talvez nos estivéssemos esquecendo que pertence à própria essência da nossa vocação existir para resolver problemas, pequenos e grandes. Também a Igreja existe para enfrentar as difi­culdades e vencer o mal.

Os pensadores de alguns séculos atrás perguntavam se Cristo se teria encarnado caso não existisse o pecado na história: nós sabemos que a encarnação é obra de redenção e libertação numa luta cerrada contra o mistério da iniquidade.

Também a dimensão mariana da nossa espiritualidade nos lembra o aspecto de patrocínio e ajuda por parte de Maria nos tempos difíceis, a fim de que saibamos lutar e ser constantes até o fim.

Despertemos, pois, com confiança e esperança, o entu­siasmo e a profundidade da nossa profissão religiosa, lem­brando quanto dizia o apóstolo Paulo aos cristãos de Corinto: “Deus vos dará perseverança até o fim, para que apare­çais irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo. É fiel o Deus pelo qual fostes chamados à comunhão do seu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor”! (1Cor 1,8-9).

Votos cordiais de força e coragem a todos!

Asseguro-vos o meu afeto e uma lembrança cotidiana na Eucaristia e no Terço.

Vosso no Senhor,



P. Egídio Viganò

Reitor-Mor





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