351-400|pt|357 A Exortação Vita Consecrata

Juan Edmundo Vecchi



A Exortação Apostólica Vita Consecrata

Estímulos à nossa caminhada pós-capitular



Atos do Conselho Geral

Ano LXXVII – outubro-dezembro, 1996

N. 357





1. No movimento da Igreja 2. A nossa leitura 3. O dom da nossa Vida Consagrada 4. A espiritualidade: uma exigência prioritária 4.1. Programa e caminho – 4.2. Uma pastoral da espiritualidade 5. Os muitos âmbitos da comunhão – 6. Um areópago para nós: a educação – Conclusão.



Roma, 8 de setembro de 1996

Festa da Natividade de Maria





Queridos irmãos,



No momento em que vos escrevo o CG24 já foi comunicado a todas as Inspetorias. À primeira comunicação, feita durante a sua realização através de nossos órgãos de imprensa, seguiu-se a transmissão, enriquecida de um singular testemunho daqueles que dele participaram. Recentemente vos foi enviada a edição oficial dos Atos nas diversas línguas que traz, com os documentos promulgados de acordo com as Constituições,1 outros textos úteis para a plena compreensão do acontecimento e das orientações capitulares.

Imagino as Inspetorias e comunidades locais ocupadas em compreender e interiorizar as motivações oferecidas pelo documento sobre a participação dos leigos no espírito e na missão de Dom Bosco e a tentar suas possíveis aplicações nos relacionamentos, na estrutura, na organização do trabalho, nos programas de formação continuada.

Recordo-vos a urgência de traduzir na prática e na vida, de maneira orgânica e comunitária, as propostas do CG24 como eu dizia no discurso final: “Será preciso que as orientações capitulares sejam integradas num projeto unitário e traduzidas em processos que lhe favoreçam a assimilação vital (mentalidade, atitudes, habilidades, experiências). Trata-se de levar as visões amplas ao terreno da vida cotidiana. É um desafio: encontrar a mediação eficaz entre as inspirações e a prática, entre o documento e a aplicação concreta”.2

O CG24 interpela a cada um: trata-se de um convite a despertar e ativar recursos apostólicos ainda adormecidos em nós, em nosso carisma, na experiência cristã e educativa de numerosos leigos que colaboram em nossas iniciativas ou que o Senhor move interiormente para a missão juvenil.



1. No movimento da Igreja



O CG24 coloca-nos no coração do projeto pastoral da Igreja neste último momento de século, assumindo seus motivos, suas metas, seus conteúdos e suas modalidades de ação.

Esse projeto tem um nome: nova evangelização. Já escutamos e repetimos muitas vezes a expressão e já percebemos suas implicações e exigências gerais. Mas talvez ainda seja preciso aprofundar-lhe o sentido e as consequências práticas para nossa vida e nossa ação educativa.

Trata-se, com efeito, de tomar consciência da cultura atual em suas realizações e tendências, à luz do Evangelho e da vocação da pessoa humana. E isso, para voltar a compreender o significado de salvação que o acontecimento, a presença atual e a palavra de Cristo, possam ter nela, renovando consequentemente o testemunho cristão, o anúncio do Evangelho e a intervenção dos discípulos de Cristo na história.

Isso comporta uma nova meditação do mistério cristão, uma leitura atenta de muitos fenômenos e a avaliação vigilante de tantas opiniões que desafiam as nossas convicções e a nossa experiência de consagrados. A fé, com efeito, leva-nos a confessar que Cristo é salvação para todos os tempos: ontem, hoje e sempre.

A reflexão sobre a Igreja tomou particular relevo nesse movimento em vista da nova evangelização, sendo constantemente reproposta nos documentos do magistério e celebrada com acontecimentos significativos como as Assembleias sinodais em nível de Igreja Universal ou de Continente, produzindo uma nova consciência eclesial e uma renovação progressiva no modo de conceber a relação da Igreja com o mundo.

A Igreja tem consciência de ser o povo de Deus; proclama e exprime na história do homem o mistério da presença atuante de Deus; testemunha, ensina e ajuda a viver a filiação divina revelada em Jesus Cristo. Sua missão é convocar, orientar e reunir cada um e a humanidade para que vivam essa vocação assumindo todas as consequências, também temporais, que daí derivam. Sabe, pois, que deve exprimir no mundo e na história uma forma de vida, um anúncio e opções históricas que se refiram às pessoas enquanto imagens de Deus e seus filhos em Cristo.

Nesse contexto, ela quis aprofundar à luz da Palavra, de sua experiência plurissecular e do momento atual, as três condições fundamentais nas quais aqueles que são chamados à fé vivem em plenitude a própria vocação de discípulos de Cristo: a laical, a ministerial, a de consagração religiosa.

A Exortação Apostólica Vita Consecrata, que apresentou a reflexão sobre esta última, resultado do longo processo de preparação e realização da IX Assembleia do Sínodo dos Bispos e de uma cuidadosa elaboração posterior, foi publicada enquanto o nosso CG24 estava em pleno trabalho. Forneceu-lhe os princípios inspiradores, ofereceu-lhe o quadro de referência para compreender as relações entre as diversas realizações do carisma salesiano e influiu decisivamente nas orientações práticas. Encontrareis suas marcas ao longo de todo o texto nas abundantes citações e referências.

Seja vantajoso, portanto, neste momento de estudo e de aplicação do CG24, retomar a Exortação para uma leitura que vá além da primeira olhadela de legítima curiosidade. É o que me proponho nesta carta, depois de tê-la estudado com os membros do Conselho Geral para nosso proveito pessoal e para compartilhar convosco algumas de suas perspectivas.

Creio que isso terá dois efeitos salutares. Haverá de colocar-nos mais profundamente na comunhão da Igreja que, por toda parte, é chamada a refletir sobre a Vida Consagrada como um interesse geral. Os Padre sinodais serviram-se com razão de uma expressão, em seguida abundantemente retomada e sublinhada: De re nostra agitur.3 Trata-se de um argumento que interessa à Igreja inteira.

Será também de ajuda para esclarecer alguns pontos críticos muito sentidos no CG24, cuja adequada compreensão condicionará a qualidade da nossa vida e a eficácia da nossa praxe.



2. A nossa leitura



Não se trata de fazer uma apresentação sistemática dos conteúdos da Exortação. Estes são organizados em três capítulos ao redor da consagração, da comunhão e do serviço, e comunicados com uma linguagem não especializada, mas à mão, pelo menos aos consagrados.

Encontros, seminários e publicações, particularmente aqueles orientados por religiosos ocuparam-se abundantemente de diversos ângulos dos quais ler a Exortação: bíblico, teológico, histórico, jurídico, pastoral. Eles oferecem um material útil para a leitura pessoal e comunitária

Acena-se, também, na Exortação, a problemas doutrinais e práticos que ainda precisam ser esclarecidos, que são confiados a comissões de estudo. Entre eles interessam-nos particularmente aqueles que dizem respeito aos Institutos mistos e às novas formas de vida evangélica.4 Acompanhamo-los e esperamos ulteriores desenvolvimentos para decidir, quando for o caso, sobre uma orientação de acordo com a nossa identidade carismática. Assim indicou-o o CG24 numa deliberação sobre a forma da nossa Sociedade: “À luz da Exortação Apostólica Vida Consagrada (n. 61) e dos desenvolvimentos jurídicos em curso sobre a “forma” dos Institutos religiosos, o CG24 reputa importante um estudo sobre a possível forma “mista” da nossa Sociedade e um ulterior aprofundamento para ver se as novidades inerentes a tal forma respondem ao nosso carisma e ao projeto originário do Fundador”.5

Mais, porém, que nos determos agora nesses aspectos, quero percorrer o texto convosco para recolher e interiorizar alguns estímulos, colocando-os em confronto com a nossa experiência e contextualizando-os neste tempo que vivemos como Congregação.

Trata-se de uma leitura que comporta acolhida interior, atenção preferencial a alguns pontos substanciais e seguros, confronto com a nossa vida concreta e com a nossa mentalidade.

Houve quem indicasse alguns limites da Exortação. Recordam-nos que vivemos no tempo e que, depois do não indiferente esforço de reflexão, ainda existe diante de nós um caminho a percorrer. Tomar consciência dele com serenidade faz parte da corresponsabilidade que os religiosos têm em relação a toda a experiência da Vida Consagrada. Não seria, entretanto, generoso e útil deter-se sobre eles diante da riqueza oferecida pela Exortação. A sabedoria leva a dar a cada elemento o seu justo peso em função da vida.

Nessa mesma linha, será útil às comunidades uma leitura criativa, não limitada ao conhecimento dos conteúdos, mas procurando reformulá-los na própria medida, através do confronto do texto com a própria vida. O texto deve servir de estímulo à revisão, ao repensamento e à conversão.

Interessa-nos por último, uma leitura pastoral. Os consagrados acolheram com gratidão esta Exortação de João Paulo II. Consideram-na um instrumento de revisão e relançamento no interior do próprio Instituto, mas também uma oportunidade para tornar conhecido o dom da Vida Consagrada na comunidade eclesial e na história humana. Frequentemente ela é pouco conhecida em seu significado essencial, mesmo onde os consagrados estão em contato quotidiano com o povo. A questão colocada é se a nossa linguagem e os nossos sinais são adequados a torná-la compreendida ou se descuidamos de comunicar a nossa experiência.

Temos particular interesse em apresentá-la aos jovens na beleza de seu significado perene e em sua validade atual. Isso faz parte do itinerário de fé que procuramos explicitar no último sexênio, responde ao momento particular de definição de vida que os jovens atravessam e vem ao encontro de um profundo desejo de conhecer suas melhores realizações. Devemos, então, nos apropriar novamente da nossa experiência para fazer dela uma mensagem, e comunicá-la com eficácia.







3. O dom da nossa Vida Consagrada



Impressiona a repetição da palavra dom, em referência à totalidade da Vida Consagrada, a cada uma de suas manifestações históricas ou carismas, a muitas de suas componentes ou aspectos particulares: os votos, a comunidade, o serviço da caridade. Um dom recebido e um dom ofertado. A abundância de modulações com que essa referência é reproposta deixa a impressão, ao final da leitura, de que a categoria do dom seja uma das fundamentais para perceber a natureza da Vida Consagrada, em sua justa claridade. O dom leva à gratuidade, ao amor que está em sua origem, à alegria de sentir-se objeto de predileção, à excelência.

Com frequência detemo-nos em discussões que dizem respeito à nossa identidade de consagrados. Mais frequentemente ainda acontece-nos escutar ou colocar-nos na análise das dificuldades a serem superadas para sermos significativos. Provoca-nos o ambiente secular pouco inclinado a reconhecer o valor de opções e motivações que vão além do funcional, do temporal ou do prático. Desafia-nos também a aparente ineficácia de nossos esforços em vista dos grandes fenômenos do nosso tempo: a perda do senso religioso, a desorientação ética, as pobrezas que se expandem e se tornam sempre mais extremas, as discriminações, os conflitos que degeneram em violência continuada. Preocupa-nos ainda a escassa resposta vocacional, sobretudo lá onde parecem prevalecer a racionalidade, o bem-estar e o desenvolvimento. E, não por último, estamos conscientes dos nossos limites pessoais e institucionais na realização de um projeto que nos atrai em sua apresentação ideal.

Nós, salesianos, nos questionamos, particularmente, sobre o como viver e falar da nossa experiência aos jovens, abertos aos significados e disponíveis a experiências espirituais, mas distraídos por estímulos múltiplos e fugazes, levados a projetos mais imediatos, diversos de nós naquilo que diz respeito aos gostos, linguagem e estilo de vida. Eles com frequência nos questionam sobre o significado e as razões da nossa existência consagrada.

Este confronto com o mundo não é estranho à experiência do crente e do consagrado. Encontramos suas abundantes marcas na Bíblia. Os Salmos exprimem-no com insólita eficácia e em forma de invocação sofrida quando apresentam o desafio do céptico: “Onde está o teu Deus?”.6 Com efeito, a presença de Deus e a experiência que ela provoca no homem não é redutível a uma visão puramente temporal, e os seus sinais possuem uma certa estranheza à percepção humana: estão envolvidos no mistério e exigem a fé e a graça.

A Exortação não ignorou estes dados de uma análise que não é só sociológica e conjuntural, mas teológica. Eles são lidos em filigrana. Mas não quis fazer deles um capítulo importante. Não considerou sequer negativa a exigência de medir-se com um contexto secularizado em que somos chamados a testemunhar a opção do primado de Deus e da caridade. Como também não se abandonou a lamentos, justificados ou preconceituosos, de desvios da Vida Consagrada no complexo processo de renovação após o Concílio Vaticano II.

A sua visão é positiva e estimulante. Volta-se e como que fixa o olhar no valor da Vida Consagrada, iluminando-o com perspectivas novas.

Algumas delas apelam à experiência pessoal de quem se sentiu chamado a este gênero de vida: a particular clareza com que Cristo nos apareceu e o fascínio que exerceu sobre nós, a riqueza de perspectivas que se abrem à existência quando se concentra em Deus, a paz que se experimenta quando se ama com coração indiviso, as alegrias da doação na missão, o privilégio de gozar da intimidade de Cristo e participar conscientemente da vida trinitária. Isso tudo é significado no ícone da Transfiguração de Cristo diante dos discípulos, escolhidos por Ele, testemunhas da sua glória.

É um convite a revisitar os nossos momentos de Tabor, os aspectos melhores da nossa experiência pessoal, interpretando-os à luz da Palavra de Deus, assumindo-os como motivações para uma corajosa fidelidade.

O valor da Vida Consagrada manifesta-se também na e pela Igreja. Ela produz copiosos frutos de santidade e serviço em cada estação da Igreja.7 Rápidas passagens históricas fazem ver a persistência, a riqueza, a diversidade de expressões que caracterizaram o surgimento das diversas formas de Vida Consagrada aberta, ainda hoje, a novas expressões. Um Evangelho desdobrado no tempo! Ela repropõe a santidade, reflete o estilo de vida de Cristo, ajuda a descobrir os sinais do Reino e impele continuamente para a realização definitiva do homem. É indispensável, por isso, não tanto à organização operativa da Igreja, mas à sua experiência substancial: a do mistério, da relação com o seu Senhor.

A consideração do valor da nossa consagração, no intercâmbio com outras vocações eclesiais, em “harmonioso conjunto de dons”, é particularmente atinente ao tempo que estamos vivendo. O CG24 no-lo recorda quando descreve o papel da comunidade religiosa no interior da CEP: “Com sua própria vida, o salesiano SDB traduz o evangelho em linguagem acessível sobretudo aos jovens: pelos valores da consagração desperta interrogações e aponta possibilidades de sentido; pela sua doação anuncia que o segredo da felicidade está no perder a vida para reencontrá-la; pelo seu estilo torna atraente o espírito das bem-aventuranças e anuncia a alegria da Páscoa; pelo seu construir comunidade torna-se imagem da Igreja, sacramento do Reino”.8

Como educadores, empenhados na promoção humana e na cultura, somos estimulados também por aquelas perspectivas que falam da incidência da Vida Consagrada na história do homem, não só através do serviço, mas também por meio dos horizontes que abre, dos valores que estimula e das atitudes que cria.

A fixação do olhar no dom de Deus, descobrindo nele a profundidade da sabedoria, a luminosidade da vida, a beleza das experiências, a alegria dos encontros, a generosidade do amor, coloca-nos em clima de contemplação.

As leituras superficiais da realidade podem, com enfeito, deixar impressões de estranheza, ineficácia e insignificância. Indo às fontes da nossa vida, à grande presença que a provocou, à palavra que ilumina o seu sentido e o seu destino, reforça-se a consciência do mistério que age em nós e se percebem em profundidade os fatos que nos interpelam.

A ação de graças atravessa, então, todo o documento, desde suas primeiras palavras. Falou-se que o texto passa continuamente da teologia à doxologia, da reflexão ao louvor de Deus.

Da contemplação do dom de Deus brota a serena confiança no enfrentar as dificuldades presentes e as esperanças no futuro. Existem certamente questões de significatividade, de adequação pastoral, de estilo de vida, de diálogo cultural. Vivemos tempos de colheita e de semeadura. João Paulo II, porém, encoraja-nos: “Não tendes apenas uma história a recordar e narrar, mas uma grande história a construir. Olhai o futuro, para o qual vos projeta o Espírito a fim de realizar convosco ainda grandes coisas”.9 A nossa é “uma vida ‘tocada’ pela mão de Cristo, abrangida pela sua voz, sustentada pela sua graça”.10 Desenrola-se como um êxodo da luz da Transfiguração àquela definitiva da Ressurreição.11



4. A espiritualidade: uma exigência prioritária



A espiritualidade aparece como a dimensão fundamental da Vida Consagrada, o ponto de convergência unificador de todas as perspectivas a partir de onde ela é aprofundada: teológicas, históricas, bíblicas, pastorais. É, portanto, um elemento transversal e penetrante de toda a Exortação.

Concentra-se, porém, em alguns números que a apresentam de forma direta e prática. Os títulos desses números são uma síntese facilmente compreensível: existência transfigurada, chamado à santidade,12 empenho decidido pela vida espiritual,13 formação permanente,14 uma resposta de espiritualidade para a procura de sentido e a nostalgia de Deus.15 Não está nunca separada, e muito menos oposta, à reflexão teológica e à atividade apostólica, mas enraíza-se solidamente na primeira e dá sua forma característica à segunda.

Alguém que estudou a fundo a Exortação afirma com razão que, devendo-se sublinhar logo uma nota forte no documento, essa é a espiritualidade realista e encarnada, que aparece seja na quase “mística” da doutrina, seja na múltipla referência explícita à necessidade e ao empenho de espiritualidade.16 Do Espírito, como dom originário e germinal, tomam forma a particular configuração da consagração, o estilo da missão, a vida comunitária, a prática original dos votos.

A espiritualidade é, pois, como que o princípio de individuação, a partir do qual se desenvolve a identidade. A Vida Consagrada com efeito não nasce de um projeto geral, pensado por alguém na escrivaninha, mas de experiências singulares de vida no Espírito, de acordo com o que se acolhe, se sente e se exprime o amor a Deus e ao próximo, revelado em sua plenitude em Cristo. A Exortação reforça-o em não poucos pontos, mas nele se detém sobretudo na introdução quando traça o tipo espiritual das diversas formas de Vida Consagrada surgidas no tempo.17

Para a expressão completa de uma espiritualidade original convergem regra, projetos, ordenamentos. “Todos estes elementos, inseridos nas várias formas de Vida Consagrada, geram uma espiritualidade peculiar, isto é, um projeto concreto de relacionamento com Deus e com o meio circundante, caracterizado por modulações espirituais particulares e opções de ação que colocam em evidência e repropõem ora um aspecto ora outro do único mistério de Cristo. Quando a Igreja reconhece uma forma de Vida Consagrada ou um Instituto, garante que, no seu carisma espiritual e apostólico se encontram todos os requisitos para alcançar a perfeição evangélica pessoal e comunitária”.18

A vida espiritual é, portanto, “uma experiência prioritária, inscrita na mesma essência da Vida Consagrada, do momento que como qualquer outro batizado, antes, com motivos mais prementes, aquele que professa os conselhos evangélicos deve fazer questão de tender com todas as forças à perfeição da caridade”.19

Dela depende a fecundidade apostólica e o atrativo vocacional sobre as novas gerações. Surge como a energia e o ponto de desdobramento para aquela renovação que esteve no centro do discurso, dos projetos e das expectativas nestes anos: “Tender à santidade, eis em síntese o programa de toda Vida Consagrada, também na perspectiva da renovação nos umbrais do terceiro milênio”.20

Esta exigência premente, repetida após a revisão feita pelo Sínodo, parece indicar a espiritualidade como “a última fronteira” da Vida Consagrada, a sua única possibilidade de tornar-se significativa e fecunda. Surge, de fato, como a única capaz de tornar crível a proposta ética, porque animada pela verdade e pelo amor, de superar, na pastoral, a única iniciação catequética e os aspectos organizativos, inspirando-se na lógica da graça e dos sacramentos, e de vivificar com a caridade o anúncio, a celebração, o testemunho e o serviço.21

4.1. Programa e caminho



O discurso sobre a prioridade da vida espiritual torna-se concreto quando se recordam as dimensões e as exigências comprovadas pela experiência secular da Vida Consagrada.

Antes de tudo, a fidelidade ao patrimônio espiritual de cada Instituto.22 Trata-se de fidelidade criativa e não de observância material ou de conservação imobilizada. É preciso referir-se à alma, às atitudes e às opções evangélicas dos Fundadores e Fundadoras para responder aos desafios que nos vêm da mentalidade dominante ou dos problemas atuais da convivência humana. Cada carisma, com efeito, comporta uma forma de relacionamento com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo expressa na história. Essa fidelidade criativa não deve referir-se apenas às iniciativas apostólicas, mas, em primeiro lugar, ao estilo de vida das pessoas e das comunidades. Delas vem um apelo à transparência evangélica, à radicalidade e à coragem apostólica. No contexto dessa fidelidade, afirma a Exortação, “torna-se hoje premente em cada Instituto a necessidade de um renovado referimento à Regra, pois nela se encerra um itinerário de seguimento”23 e se oferece a genuína tradição espiritual do Instituto. É um apelo a explorar continuamente e a extrair sempre novas riquezas do nosso patrimônio.

Entre as dimensões a serem cultivadas com particular atenção vem, em primeiro lugar, a contemplativa, que se exprime no sentido da presença de Deus acolhido com amor e gratidão. A ela referem-se as nossas Constituições quando afirmam que “trabalhando pela salvação da juventude, o salesiano faz experiência da paternidade de Deus e reaviva continuamente a dimensão divina da própria atividade. Cultiva a união com Deus, consciente da necessidade de rezar sem interrupção em diálogo simples e cordial com Cristo vivo e com o Pai, que percebe perto de si. Atento à presença do Espírito e tudo fazendo por amor de Deus, torna-se, como Dom Bosco, contemplativo na ação”.24

Dessa dimensão, todos e sempre têm necessidade: “A teologia, para poder valorizar plenamente a própria alma sapiencial e espiritual; a oração, para que nunca esqueça que ver a Deus significa descer da montanha com um rosto tão radiante ao ponto de sermos obrigados a cobri-lo com um véu; o compromisso, para renunciar a fechar-se numa luta sem amor e perdão”.25

A dimensão contemplativa atravessa e permeia todas as formas de Vida Consagrada, embora tenha seus lugares e momentos típicos e expressivos para cada carisma. Como seja assumida e praticada pelo salesiano, exprimem-no dois textos que unem estreitamente oração e encontro educativo. O primeiro é o artigo 95: “A necessidade de Deus, sentido no trabalho apostólico, leva-o a celebrar a liturgia da vida, até chegar à ‘operosidade incansável, santificada pela oração e pela união com Deus...’”. O segundo refere-se ao momento educativo como lugar característico da nossa experiência de Deus: “Dom Bosco ensinou-nos a reconhecer a presença atuante de Deus em nosso empenho educativo, a experimentá-la como vida e amor... Nós cremos que Deus nos está esperando nos jovens para oferecer-nos a graça do encontro com Ele... O momento educativo torna-se assim lugar privilegiado do nosso encontro com Ele”.26

A dimensão contemplativa se alimenta e reforça nas fontes que preservam do desgaste e das quedas de tensão. A Exortação evidencia a Palavra de Deus, a comunhão com Cristo na Liturgia, particularmente na Eucaristia e na Reconciliação, a direção espiritual. Detém-se em sublinhar o valor da Lectio divina: “Realizada na medida das possibilidades e circunstâncias da vida de comunidade, ela leva à partilha feliz das riquezas encontradas na palavra de Deus, mercê das quais irmãos e irmãs crescem juntos e se ajudam a progredir na vida espiritual”.27 Sabe-se que ela comporta um contato estreito com o texto, uma interiorização da Palavra, o confronto com a vida e a partilha. É, para nós, uma sugestão para recuperar momentos e formas de comunicação espiritual que poderia colocar de maneira mais evidente a Palavra de Deus aonde quer o artigo 87 das Constituições: “A Palavra ouvida com fé é para nós fonte de vida espiritual, alimento da oração, luz para conhecer a vontade de Deus nos acontecimentos e força para viver com fidelidade a nossa vocação”.

A dimensão apostólica emerge da unidade interna entre consagração e missão: “Na sua vocação, portanto, está incluído o dever de se dedicarem totalmente à missão; mais, a própria Vida Consagrada, sob a ação do Espírito Santo que está na origem de toda vocação e carisma, torna-se missão, tal como o foi toda a vida de Jesus”.28 Pressiona também na exigência de compreender e cultivar a espiritualidade da ação que leve a “ver Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”29, expressa com um ícone que apresenta imediatamente seu significado: o lava-pés em que “Jesus revela a profundidade do amor de Deus pelo homem”.30

A espiritualidade comporta também a dimensão ascética, de resistência ou combate espiritual, representada com o ícone de Jacó que luta com o Anjo. “Ajudando a dominar e corrigir as tendências da natureza humana ferida pelo pecado, a ascese é verdadeiramente indispensável para a pessoa consagrada permanecer fiel à própria vocação e seguir Jesus pelo caminho da Cruz”.31 Trata-se de um aspecto não muito congenial à sensibilidade corrente que tende a satisfazer os desejos e a justificá-lo. Cada Instituto tem uma tradição ascética coerente com o próprio estilo espiritual. Existem no nosso algumas palavras-chave que a definem: trabalho, temperança, carinho e competência na missão educativa, relacionamento fraterno.

Aspecto importante desta ascese é integrar no projeto de vida em Deus algumas tendências que, desenvolvidas de forma autônoma, comprometem a qualidade da experiência espiritual e a finalidade da missão: uma busca exasperada da eficiência e da capacidade profissional separadas das finalidades pastorais, a secularização da mentalidade e do estilo de vida, as formas, mesmo dissimuladas, de nacionalismo ou a afirmação excessiva da peculiaridade cultural.32

A espiritualidade, como caminho, leva a assumir a totalidade da existência em suas diversas fases. “O indivíduo procura e encontra em cada fase da vida, uma tarefa diversa a cumprir, um modo específico de ser, de servir e de amar”.33

Algumas pinceladas apresentam as possibilidades e os riscos presentes nas diversas idades do homem e o esforço que requerem: o esvaziamento espiritual na fase de intensa atividade, o hábito, a desilusão e o perigo do individualismo na idade adulta, o afastamento da atividade nos anos da velhice e da doença. Cada fase tem, porém, uma graça particular do Senhor e inclui um intenso convite a crescer e corresponder de forma madura através da formação permanente.

Desde os anos 70, ela teve entre nós desenvolvimentos satisfatórios com os cursos que se difundiram em todas as regiões. O CG23 relançou um aspecto que já vinha se realizando: a comunidade local e o quotidiano como espaço do crescimento contínuo, sobretudo através da qualidade de relacionamentos e da comunicação, os momentos de oração, o planejamento comunitário e a realização corresponsável da missão.

Não se deve subestimar a importância do empenho pessoal sistemático; talvez seja este o momento de voltar a propô-lo. A nossa vida precisa integrar reflexão e prática, estudo e atividade, silêncio e encontro embora para nós isso não esteja ligado a uma rígida alternância de tempos. É uma das chaves para tender àquela qualidade espiritual, pastoral e cultural a que me referia no discurso conclusivo do CG24.34



4.2. Uma pastoral da espiritualidade



Há um tom de novidade na Exortação quando afirma que a vida espiritual não é só pré-condição, base ou preparação para o serviço que os consagrados prestam ao homem, mas aspecto essencial da sua missão. Eles são convidados a se tornarem guias espirituais especializados e a multiplicarem iniciativas que tenham como finalidade acompanhar os fiéis na caminhada para o Senhor.35

Assim iluminadas, devem ser lidas com atenção as palavras da Exortação que confiam aos consagrados a missão de “suscitar em cada fiel um verdadeiro anseio de santidade, um forte desejo de conversão e renovamento pessoal num clima de oração cada vez mais intenso e de solidário acolhimento do próximo, especialmente do mais necessitado”.36 Trata-se, não de uma missão individual, mas de um entendimento comunitário e de uma finalidade institucional: “Cada Instituto e cada comunidade se apresentem como escolas de verdadeira espiritualidade evangélica”.37

O serviço à dimensão da espiritualidade vai além dos limites da comunidade cristã, e se coloca como acompanhamento e apoio para todos aqueles que estão à procura de sentido e de orientação. “Aqueles que abraçam a Vida Consagrada, homens e mulheres, colocam-se, pela natureza mesma da sua opção, como interlocutores privilegiados daquela procura de Deus que desde sempre inquieta o coração do homem e o conduz a múltiplas formas de ascese e de espiritualidade”.38

É o que apostamos neste sexênio. Estamos cientes de ter realizado uma caminhada de renovação da mentalidade, repensamos conteúdos e métodos do trabalho pastoral, atualizamos as estruturas de vida comunitária e de governo. Empenhamo-nos, no momento, na convocação dos leigos, na partilha de responsabilidades com eles, de nos formarmos juntos. Mas, como notava no discurso de conclusão, “o CG24 chegou à espiritualidade na procura de uma fonte de comunhão entre leigos e salesianos. Difunde-se na Congregação a consciência de que nossos laços com os leigos precisam de maior vigor espiritual se, juntos, devemos enfrentar os difíceis desafios da missão salesiana na hora presente”.39

A própria Exortação havia antecipado esta chegada quando afirmava: “Hoje alguns Institutos, frequentemente por imposição das novas situações, chegaram à convicção de que o seu carisma pode ser partilhado com os leigos. E assim estes são convidados a participar mais intensamente na espiritualidade e missão do próprio Instituto”.40

A fim de facilitar esse compromisso formularam-se alguns quadros de referência que dão uma ideia adequada da nossa espiritualidade. Os salesianos têm as Constituições e nelas o capítulo sobre o espírito salesiano, ponto de partida e base das demais apresentações. O P. Egídio Viganò indicou alguns traços que formam o patrimônio comum de toda a Família Salesiana,41 retomados e ulteriormente explicitados na Carta de Comunhão. Desde os anos Oitenta foram formulados para os jovens “programas” e propostas, e o CG23 deu-lhes respeitabilidade de proposta comunitariamente compartilhada. Há pouco foi oferecida uma sua apresentação preparada pelos dois dicastérios de Pastoral Juvenil FMA e SDB.

O CG24 procurou evidenciar o que nos leva a compartilhar mais e melhor a missão com os leigos: o amor preferencial na forma de caridade pastoral pelos jovens, especialmente os mais pobres,42 a qualidade do encontro educativo e o espírito de família,43 o compromisso com a Igreja e com o mundo movidos pelo “da mihi animas”,44 o cotidiano feito de empenho, relacionamentos, profissionalismo, vivido à presença de Deus,45 a prática educativa do sistema preventivo continuamente renovada.46

A nossa espiritualidade foi assim formulada para os religiosos, para os jovens e para os leigos. Dispomos de textos de meditação e de orientação. “Concluímos o CG24 com a convicção de que propor a eles (os leigos) a espiritualidade salesiana é a resposta adequada a um pedido premente e a oferta de um dom desejado. De resto, a procura de espiritualidade nos leva a descobrir os tesouros de família, a desenvolver e aprofundar aqueles traços que Dom Bosco nos confiou com extraordinária eficácia”.47

É preciso reconhecer, porém, que somos iniciados numa espiritualidade através do encontro com alguém que dela fez experiência e a vive com alegria e convicção, através da participação de um grupo que a comunica com capacidade de envolvimento, sob a guia e orientação espiritual de quem conhece seus caminhos e recursos.

Desde o momento em que conhecemos formulações e perspectivas, devemos evidenciar estes pontos: vivência, comunidade, comunicação, orientação.



5. Os muitos âmbitos da comunhão



Outro filão, de onde tirar vantagem na leitura da Exortação, é o que se refere à comunidade. Sua novidade está na missão de comunhão que é confiada aos consagrados. A reflexão segue duas direções: uma, que olha para o interior da comunidade, assume e confirma quanto propunha o documento Consecravit nos in unum48 anterior ao A vida fraterna em Comunidade; outra, que visa o exterior.

A partir o Concílio Vaticano II, todos os Institutos vêm atuando uma mudança que leva da comunidade, entendida antes de tudo como “vida comum”, à experiência de comunhão. A primeira sublinha a importância das estruturas que regulam a convivência. A segunda volta-se para o amor recíproco, a participação nos projetos, a comunicação profunda, a corresponsabilidade.

Também nós, através de um itinerário de destaques e de equilíbrios, levamos à unidade carismática os dois elementos indispensáveis para uma presença comunitária real e testemunhadora, o “espiritual”: a fraternidade em Cristo que se exprime na unidade dos corações e na qualidade das relações interpessoais; e o outro, mais visível, “a vida comum” ou vida de comunidade, que consiste em habitar a mesma casa religiosa, participar dos atos comuns, levar adiante as iniciativas pastorais com o esforço de todos.

É claro que a vida fraterna não será automaticamente realizada pela observância das normas que regulam a vida comum; mas é evidente que a vida comum tem a finalidade de favorecer e exprimir a vida fraterna”.49 O nosso carisma, a nossa praxe, a nossa missão e o característico espírito de família levam a unir estreitamente os dois aspectos: comunhão de espírito e vida de comunidade.

As nossas Constituições atribuem a esta fusão, que exige maturidade humana e profundidade espiritual, significatividade e particular incidência pastoral, a ponto de fazer dela elemento indispensável da missão. “Viver e trabalhar juntos é para nós salesianos exigência fundamental e caminho seguro para realizarmos a nossa vocação. Por isso nos reunimos em comunidades, nas quais nos amamos a ponto de tudo compartilhar em espírito de família e construímos a comunhão das pessoas”.50

Vê-la o CG23 como sinal, escola e ambiente de fé para os jovens,51 lugar preferencial da formação permanente para os salesianos,52 presença testemunhadora no território,53 centro de comunhão e participação,54 sujeito de uma pastoral orgânica,55 proposta vocacional.56

O CG24 deteve-se, depois, em explicitar, do ponto de vista teórico e nas aplicações práticas, a qualificação de núcleo animador e as condições internas que lhe consentem de vir a sê-lo: a identidade carismática, a unidade de espírito e de projeto, o conhecimento e prática do sistema preventivo, a interioridade apostólica, a criatividade, a capacidade de comunicação. Estudou também as formas concretas de exercício de tal empenho: a atenção ao envolvimento, a participação, a distribuição das responsabilidades, os processos de formação.

Enquanto este quadro estimulante vai se tornando mentalidade comum, nós também experimentamos a incidência de fenômenos externos e internos que põem à prova a comunidade e a comunhão. Entre os primeiros está a reivindicação de maiores espaços de liberdade pessoal, o consumismo que leva à posse individual de bens, a desintegração das comunicações. Entre os segundos, a redução numérica, o alargamento do campo de trabalho real e potencial, o apelo das novas urgências, uma nova relação com o exterior.

A Exortação insiste fortemente sobre o valor indispensável da vida fraterna para a renovação e eficácia da missão.57 João Paulo II já o sublinhara alguns anos antes em discurso à Plenária da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica: “Toda a fecundidade da vida religiosa depende da qualidade da vida fraterna em comum. Mais anda, a atual renovação da Igreja e na Vida Religiosa é caracterizada por uma procura de comunhão e comunidade”.58

A confirmação disso vem do aprofundamento da dimensão trinitária, de onde provêm as consequências eclesiológicas e antropológicas propostas de novo, não só como paradigma das relações recíprocas, mas presença atual, causa e origem da comunhão entre os religiosos. “Também a vida fraterna se apresenta como uma eloquente confissão trinitária. Confessa o Pai, que quer fazer de todos os homens uma só família; confessa o Filho encarnado, que congrega os redimidos na unidade...; confessa o Espírito Santo, como princípio de unidade na Igreja”.59

A comunidade, portanto, não é apenas funcional ao trabalho. Ela é “um espaço humano habitado pela Trindade”,60 onde Deus se faz presente e age através da memória do Senhor, do amor no qual nos empenhamos e queremos enraizar, da unidade daqueles que se apresentam como seguidores de Cristo.



Especialistas de comunhão



A comunhão é igualmente conteúdo e fim da missão. “Até agora, talvez, jamais tenha sido reconhecida, de maneira tão explícita, uma tão grande missão à vida fraterna”.61

Fortes de uma experiência pessoal que é dom de Deus, os consagrados, como indivíduos e comunidade, são chamados a expandir, reforçar ou recriar a comunhão: tornam-se “especialistas de comunhão”,62 fermento de unidade, agentes de reconciliação.

São multíplices os âmbitos onde agir. Na Igreja universal, a comunhão é potencializada capilarmente pelo testemunho fraterno e pela ação de toda a Vida Consagrada, pela solidariedade operativa pela qual os consagrados acorrem às fronteiras da evangelização, pela disponibilidade aos apelos urgentes da Igreja, pela sua comunhão com o Santo Padre. Não deve ser negligenciada a incidência sobre a comunhão universal que deriva da nossa presença, da ação entre os jovens e adultos, da profissão de fé, da nossa palavra e das tomadas de posição. Nossa espiritualidade estimula-nos a dar uma contribuição pessoal cotidiana à unidade do corpo de Cristo: “Do nosso amor a Cristo nasce inseparavelmente o amor à sua Igreja, povo de Deus, centro de unidade e comunhão de todas as forças que trabalham pelo Reino”.63

Às pessoas consagradas - realça a Exortação - cabe uma função significativa, também no seio das Igrejas particulares... Muito podem contribuir os carismas da vida consagrada para a edificação da caridade na Igreja particular”.64 É um segundo âmbito onde a comunhão torna-se compromisso da nossa missão. Como modalidades práticas são indicadas “a colaboração com os bispos para o desenvolvimento harmonioso da pastoral diocesana”,65 o cuidado e a inserção do próprio patrimônio espiritual e praxe pastoral, o diálogo entre superiores e bispos, a atenção destes ao carisma, procurada e acolhida pelos religiosos.66

Trata-se de um aspecto necessário em vista da educação dos jovens à fé, em que a experiência eclesial é indispensável e não fácil. É interessante recordar que Dom Bosco quis colocar-se em sua Igreja particular, atormentada por tensões doutrinais e pastorais não de uma parte, mas no ponto crítico da comunhão. Fez prevalecer, na solução de um conflito pessoal, o bem da Igreja acima do desejo natural de justiça.

A Exortação apresenta a missão de comunhão em outro âmbito ainda: o das relações entre os consagrados. “Pessoas que estão unidas entre si pelo compromisso comum de seguir Cristo e animadas pelo mesmo Espírito, não podem deixar de manifestar visivelmente, como ramos da única videira, a plenitude do Evangelho do amor. Lembradas da amizade espiritual que muitas vezes ligou na terra os diversos fundadores e fundadoras, tais pessoas, permanecendo fiéis à índole do próprio Instituto, são chamadas a exprimir uma fraternidade exemplar, que sirva de estímulo aos outros corpos eclesiais no empenho cotidiano de dar testemunho do Evangelho”.67

Também por isso não faltam orientações práticas: conhecimento, amizade, participação ativa nos organismos de animação e coordenação, comunicação e intercâmbio para “procurar compreender o desígnio de Deus no atual transe da história, para melhor lhe responder com iniciativas apostólicas adequadas”.68

Na relação sobre o Estado da Congregação eu escrevia: “Estamos muito mais sensíveis e abertos à comunhão ampla realizada entre os Institutos de Vida Consagrada e também nos fazemos presentes com válidas contribuições nos acontecimentos e organismos de coordenação (CISM, CLAR, preparação do Sínodo, compromissos comuns)”.69 É um critério a manter e um caminho a continuar.

Não se deve subestimar a possibilidade de estabelecer colaborações sistemáticas e estáveis com outros religiosos em vista de determinados empreendimentos que solicitam convergência de competências e recursos. Isso já foi experimentado com os centros de estudos. A complexidade do atual contexto e as novas exigências de evangelização levam não só a concordar sobre planejamentos e linhas, mas também a pensar em algumas iniciativas comuns.

Há, depois, o âmbito do território ou comunidade humana, considerada em raio imediato e amplo: bairro, cidade, nação, mundo. Neles surge a necessidade de agregação, a invocação da paz, o desejo de reconciliação e de convivência digna e tranquilizadora. Aos velhos conflitos, presentes de formas novas, familiares, sociais e políticas, acrescentam-se outros típicos do nosso tempo como a estranhamento cultural, a marginalização, os vários fundamentalismos, as pluralidades contrapostas. Com frequência terminam em paliçadas reais ou psicológicas, rejeição, desatenção.

Ser “especialistas de comunhão” significa saber criar momentos e motivos de agregação, mediar os conflitos cotidianos, infundir vontade de encontro e convivência, favorecer estruturas e espaços humanizadores, ser pacíficos no sentido forte da palavra, visar a qualidade das relações, trabalhar para destruir preconceitos sociais ou étnicos, tornar-se sempre mais capazes de dialogar com mentalidades diversas. Por isso alguns desejam a constituição de comunidades internacionais e interculturais que sejam laboratórios de acolhida e valorização das diversidades, e delas façam experiência.

Há um último âmbito, indicado na Exortação, para o qual vai neste momento a nossa atenção, porque coincide com o empenho que nos foi pedido pelo CG24: o dos leigos, particularmente os “próximos e associados”.70

Releiamos a passagem que já citava a propósito da espiritualidade: “Hoje alguns Institutos, frequentemente por imposição das novas situações, chegaram à convicção de que o seu carisma pode ser partilhado com os leigos. E assim estes são convidados a participar mais intensamente na espiritualidade e missão do próprio Instituto”.71 Uma rica exposição de motivos carismáticos, eclesiais e pastorais sustenta a afirmação.

Não me delongo em confrontar orientações e motivações com aqueles apresentados pelo nosso documento capitular referentes ao mesmo argumento. A convergência é muito evidente para que vos escape. Interessava apenas percorrer de novo esta parte da Exortação para relevar que estamos procurando realizar aquilo que a Igreja propõe e para mostrar que todos estes âmbitos são relacionados e se reforçam reciprocamente. No seu interior atuam aqueles que, segundo a mesma Exortação, vivem e difundem a “espiritualidade da comunhão”72 e tornam-se “testemunhas e artífices daquele projeto de comunhão que está no vértice da história do homem”.73



6. Um areópago para nós: a educação



Não nos terá fugido que o primeiro dos areópagos, enumerado para a missão dos consagrados, é o “mundo da educação”.74

A educação é tomada em sua acepção mais ampla e abrangente, como crescimento da pessoa e como conjunto de mediações que se colocam ao seu serviço para torná-la consciente do seu ser e do seu destino, dar-lhe um conhecimento adequado da realidade, desenvolver a sua capacidade de avaliação e de escolha, abri-la ao sentido e ao mistério, anunciar-lhe a palavra de Deus.

O modelo do educador é, com efeito, “o Mestre interior da Igreja que penetra as profundidades mais recônditas de cada homem e conhece o dinamismo da história”.75

Entende-se nessa perspectiva e amplitude a função educativa da Igreja no mundo. A educação das pessoas e da humanidade não é uma manifestação opcional da caridade ou um aspecto setorial da missão: é o seu coração e caminho indispensável. Assim como Deus salva o homem educando-o enquanto se dirige à sua consciência e dela espera resposta, a Igreja também exerce o seu ministério iluminando, propondo, interpelando a liberdade. Ela torna-se mediadora da ação educadora de Deus, prolongamento e atualização do magistério que Cristo exerceu com os discípulos e as multidões, sinal da ação do Espírito que transforma os corações.

Por isso, tudo tem nela um caráter educativo: presença, anúncio, celebração, serviços variados. Tudo tende a dar ao homem consciência do seu ser, ajudá-lo a descobrir e abraçar quanto de bom, de nobre, de eterno o Criador colocou nele, abri-lo à relação que o constitui em sua dignidade com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo.

Insere-se neste contexto o compromisso educativo dos consagrados, mais e antes, em força de sua opção de vida, do que das instituições específicas que criam ou das capacidades profissionais que assumem. Neste sentido, todas as formas de Vida Consagrada são fortemente educadoras do homem e, em primeiro lugar, dos cristãos. O sinal que oferecem, os valores que fazem próprios, o serviço que prestam, levam e ajudam a crescer em humanidade e fé.

Alguns entre os consagrados assumem profissionalmente o trabalho educativo e dele fazem o lugar onde viver a opção radical por Deus e o serviço aos irmãos, especialmente os mais necessitados.

A missão leva estes religiosos a agirem em três espaços. O primeiro compreende tudo o que diz respeito à promoção integral da pessoa, conforme as urgências que se evidenciam nas situações concretas. Sua ação neste campo, inspirada pelo amor de Cristo e sob o sinal de sua sequela, é verdadeira evangelização.

O segundo espaço compreende a iniciação cristã, a educação daqueles que fizeram a opção da fé ou se demonstram disponíveis em considerá-la. Trata-se de acompanhar as pessoas a viverem na história como filhos de Deus, incorporadas à existência de Cristo, membros do seu povo. A catequese e a formação de uma mentalidade evangélica são suas partes principais.

O terceiro é a humanização e a evangelização da cultura como forma coletiva de educação conforme o processo descrito pela Evangelii nuntiandi para “chegar e quase subverter pela força do Evangelho os critérios de julgamento, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade”.76

Este quadro de referência é indispensável para perceber, de forma realística, quais sejam os desafios dirigidos à missão dos religiosos educadores e quais as respostas que eles podem dar.

A educação assim entendida não se limita ao setor escolar nem apenas às instituições específicas conhecidas, embora representem o torrão duro do esforço social para oferecer a todos oportunidades de prevenção, recuperação e crescimento. O tipo de sociedade em que vivemos multiplicou os problemas de jovens e adultos. Ao itinerário educativo, que se desenvolvia segundo uma cartilha para a maioria, sucedeu a necessidade de adequação a multíplices situações que se vão diferenciando à medida que a sociedade se torna complexa. É com razão que se relaciona na Exortação a educação ao “renovado amor pelo empenho cultural”77 dos religiosos e à sua presença no mundo da comunicação social.78

A isso se dá o nome de “areópago”, lugar de diálogo aberto e não só sistema de instituições, justamente porque é preciso instaurar um diálogo sobre o sentido da vida ao aberto, com interlocutores diversamente orientados ou desmotivados, porque é preciso ir ao encontro das novas questões da cultura e da vida com iniciativas novas.

Todo este discurso tem, para nós, um campo preferencial de aplicação: os jovens, especialmente os mais pobres. Eles põem à prova o realismo do nosso amor e a nossa capacidade de anúncio. Torna-se providencial para eles e para a Igreja que alguém vá à praça para entabular um diálogo com eles.

A Exortação reconhece que os consagrados, “pela sua especial consagração, pela peculiar experiência dos dons do Espírito, pela escuta assídua da Palavra e o exercício do discernimento, pelo rico patrimônio de tradições educativas acumulado ao longo da história pelo próprio Instituto, pelo conhecimento profundo da verdade espiritual... são capazes de desenvolver uma ação educativa particularmente eficaz, oferecendo uma contribuição específica para as iniciativas dos outros educadores e educadoras”.79

A citação de Dom Bosco: “os jovens não só sejam amados, mas eles mesmos percebam que são amados”80 está inserida na memória dos “exemplos admiráveis de pessoas consagradas que viveram e vivem a tensão para a santidade através do empenho pedagógico, propondo contemporaneamente a santidade como meta educativa”.81

Ela recorda-nos que a educação, para nós, não é só consequência do propósito de santificação, mas lugar humano onde se adquire a sua fisionomia típica porque contém, conforme a índole da nossa vocação, também o momento de graça. O primado que damos a Deus em nossa vida e a sequela de Cristo traduz-se no desejo de fazê-los viver no coração dos jovens que crescem, para que encontrem sentido e felicidade.

A unidade com que vivemos os dois aspectos plasma a fisionomia da nossa espiritualidade, que se identifica com o Sistema Preventivo e cria o estilo de nossa comunhão como “espírito de família”.82

No-lo havia indicado João Paulo II na carta Iuvenum Patris: “Agrada-me considerar de Dom Bosco sobretudo o fato de ele realizar a sua santidade pessoal no empenho educativo vivido com zelo e coração apostólico. O aspecto característico de sua figura é justamente esse intercâmbio entre educação e santidade”.83



Conclusão



Queridos irmãos, quis atrair a vossa atenção à Exortação que ilumina a Vida Consagrada para encorajar-vos à sua leitura acolhedora e criativa. Detive-me em comentar apenas alguns aspectos que julgo mais indicados para o momento presente, também em vista da atuação do CG24.

Penso, com efeito, que olhando os objetivos mais fundamentais do CG24 temos necessidade de exprimir a esperança nos recursos da nossa vocação, dar atenção preferencial à nossa vida espiritual e à sua comunicação, ser homens de comunhão, repensar a importância que a educação tem na realização da vocação, da espiritualidade e da comunhão.

Concluo esta carta em oito de setembro, dia da Natividade de Maria. Ao redor desta festa, aconteceram, em muitas Inspetorias as profissões. Das comunicações que chegam do mundo vemos, ainda uma vez, que “o Senhor ama a Congregação, deseja-a viva para o bem da sua Igreja e não cessa de enriquecê-la com novas vocações”.84 Eu mesmo tive a satisfação de receber doze primeiras profissões em nosso noviciado de Oktiabrskij, junto a Moscou, e outras vinte e duas em Smarhon (Belarus).

Isso encoraja a fazer apresentar aos jovens, com confiança, a Vida Consagrada e a experiência que nós, no seguimento de Dom Bosco, fazemos dela.

Maria Santíssima, que acolheu o dom de Deus e o cantou no Magnificat, ajude-nos a viver com alegria a nossa experiência de caridade pastoral, a compartilhá-la com simplicidade em nossas comunidades e a comunicá-la com eficácia aos jovens.

A todos saúdo cordialmente e vos desejo um trabalho rico de frutos.

P. Juan E. Vecchi

Reitor-Mor

1 Cf. Const. 148.

2 CG24, 256.

3 Propositio n. 2.

4 Cf. VC, 61; 62.

5 CG24, 192.

6 Salmo 42,4.

7 Cf. VC, 5.

8 CG24, 151.

9 VC, 110.

10 VC, 40

11 Cf. ib.

12 Cf. VC, 35.

13 Cf. VC, 93.

14 Cf. VC, 69

15 Cf. VC, 103

16 Cf. Castellano Cervera J., Dimensione teologica e spirituale della vita consacrata: tradizione, novità, profezia, in “Vita consacrata”, Roma, Rogate, 1996, p. 38.

17 Cf. VC, 5-11.

18 VC, 93.

19 Ib.

20 Ib.

21 Cf. Castellano Cervera J., Dimensione teologica e spirituale della vita consacrata: tradizione, novità, profezia, p. 55.

22 Cf. VC, 36.

23 VC, 37.

24 Const. 12.

25 VC, 38.

26 CG23, 95.

27 VC, 94.

28 VC, 72.

29 VC, 74.

30 VC, 75.

31 VC, 38.

32 Cf. VC,38.

33 VC, 70.

34 Cf. CG24, 242-243.

35 Cf. VC, 39.

36 VC, 39.

37 VC, 93.

38 VC, 103.

39 CG24, 239.

40 VC, 54.

41 Cf. ACG, 324.

42 Cf. CG24, 89-90.

43 Cf. CG24, 91.

44 Cf. CG24, 95.

45 Cf. CG24, 97.

46 Cf. CG24, 99.

47 CG24, 240.

48 Cf. CIVCSVA, 2 de fevereiro de 1994.

49 Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de vida Apostólica, A vida fraterna em comunidade, n. 3.

50 Const. 49.

51 Cf. CG23, 216-218.

52 Cf. CG23, 222.

53 Cf. CG23, 225-226.

54 Cf. CG23, 232-234.

55 Cf. CG23, 239-246.

56 Cf. CG23, 252,

57 Cf. VC, 72.

58 João Paulo II, Discurso à Plenária da CIVCSVA, 20 de novembro de 1992.

59 VC, 21.

60 VC, 41.

61 Ciardi F., La comunione in “Vita Consecrata”, in “Religiosi in Italia”, n. 294, p. 120.

62 Cf. VC, 46.

63 Const. 13.

64 VC, 48.

65 Ib.

66 Cf. ib.

67 VC, 52.

68 VC, 53.

69 Vecchi, J. E., A sociedade de São Francisco de Sales no sexênio 1990-95, 4.3, n. 276.

70 Cf. VC, 54-56.

71 VC, 54.

72 Cf. VC, 51-57.

73 VC, 46.

74 Cf. VC, 96-97.

75 VC, 96.

76 Cf. EN, 19.

77 VC, 98.

78 Cf. VC, 99.

79 VC, 96.

80 Bosco João, Carta de Roma 1884, MB XVII, 110.

81 VC, 96.

82 Cf. Const. 16.

83 IP, 5.

84 Const. 22.

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