301-350|pt|315 - A nossa fidelidade ao sucessor de Pedro

Viganò Egídio



A NOSSA FIDELIDADE AO SUCESSOR DE PEDRO



Atos do Conselho Geral

Ano LXVI – outubro-dezembro, 1985

N. 315




Um convite oportuno. — Dom Bosco teve um “sentido de Igreja” muito concreto. — Novo estilo no exercício do ministério de Pedro. Uma situação de mal-estar. — Algumas reflexões sobre a Lúmen Gentium. — A nossa atitude de fidelidade torna-se “tarefa”. — A Auxiliadora e o Papa.




Roma — Memória de S. Gregório Magno

3 de setembro de 1985


Queridos irmãos.


estou a escrever-lhes no regresso de uma visita às nossas comunidades do Chile, Bolívia e Peru. Nessas Inspetorias, anima­das por promissora fecundidade vocacional, tive a alegria de entregar aos irmãos o texto reelaborado das Constituições e Re­gulamentos Gerais. O evento foi acolhido como um gesto excep­cional e memorável. As comunidades viveram um momento de profunda sintonia com o coração de Dom Bosco Fundador, cujas palpitações evangélicas foram novamente ouvidas no seu “testa­mento vivo” aprovado pela Sé Apostólica.

Apraz-me lembrar a todos o propósito feito nessa ocasião de uma adequada preparação para as celebrações de 1988: concen­trar nos próximos três anos as iniciativas de estudo, aprofunda­mento pessoal, assimilação comunitária e testemunho operativo do Livro da nossa Regra de vida. A Congregação toda deve sentir-se convidada a viver uma espécie de “segundo noviciado”, para relançar, com atualidade profética, o espírito apostólico do nosso Pai. A cem anos de sua morte, queremos que esse espírito viva flórido nos seus filhos!

Como se sabe, as Constituições renovadas foram aprovadas pela Sé Apostólica em 25 de novembro de 1984, solenidade de Cristo Rei. Esse dado liga mais estreitamente a nossa profissão religiosa ao ministério de Pedro, dá autoridade eclesial ao pro­jeto de vida que professamos e comprova a genuinidade do carisma que levamos ao Povo de Deus.

Nessa ótica, pareceu-me oportuno atender ao pedido feito por muitos irmãos (de várias Inspetorias) de apresentar uma refle­xão sobre a nossa “consciência eclesial”, que “exprimimos — como dizem as Constituições — na fidelidade filial ao sucessor de Pedro e ao seu magistério”.1

O comportamento de “devoção” para com o Papa, teologica­mente fundado, que Dom Bosco nos deixou como preciosa heran­ça, é um elemento constitutivo do nosso espírito. Queremos re­novar a consciência disso.

Invoco a especial intercessão do Papa Gregório Magno, em cuja memória litúrgica comecei a redação desta carta. Esse grande Pontífice, anteriormente renomado político da Urbe e depois mon­ge fervoroso e exemplar, que levou muitas virtudes “romanas” para o exercício do supremo ministério eclesial, nos ajude a apro­fundar e apreciar a função fundamental do Papado na Igreja de Cristo. É um serviço qualificado, posto por Cristo no coração da história, para iluminar, exortar, encaminhar, estimular, con­firmar e para reatualizar continuamente a mensagem libertadora do seu Evangelho.



Dom Bosco teve um “sentido de Igreja” muito concreto



A consciência eclesial do nosso Fundador concretizava-se pe­dagogicamente em alguns comportamentos de fé, fortes e práticos. Expressava-os com simplicidade em três grandes atitudes que foram chamadas “devoções”: a Jesus Cristo Salvador e Redentor, presente na ação central da Igreja, a Eucaristia; a Maria, Modelo e Mãe da Igreja, contemplada na história como Auxiliadora; e ao Papa, Sucessor de Pedro, posto como chefe do Colégio episcopal para o serviço pastoral de toda a Igreja.

Trata-se de três aspectos inseparáveis, que mutuamente se iluminam, convergem na pessoa de Cristo, Senhor da história. Nem a dimensão mariana nem o ministério petrino podem ser objeto isolado de uma devoção independente. Se aqui trata­mos especificamente da nossa adesão ao Papa, fazemo-lo por necessidade de método; mas é evidente que não o consideramos um tema isolado. Cada irmão é convidado a meditá-lo na globa­lidade do mistério cristológico e eclesial.

O beato Pe. Luís Orione, formado no mesmo sentido de Igreja do nosso Fundador, queria para o seu Instituto “um quarto voto” de total adesão e obediência ao Papa. O que ele, pelas difi­culdades do tempo, não conseguiu, realizaram-no seus filhos num recente Capítulo Geral, dando assim ao Instituto Orionista mais fiel identidade carismática.

Nós salesianos não temos um quarto voto de obediência ao Papa, mas vivemos o espírito dele. O artigo 125 das Constituições declara explicitamente: “A Sociedade Salesiana tem como supre­mo superior o Sumo Pontífice, a cuja autoridade os sócios estão filialmente submissos também em força do voto de obediência, disponíveis para o bem da Igreja universal. Acolhem com docili­dade seu magistério e ajudam os fiéis, especialmente os jovens, a aceitar-lhe os ensinamentos”.

Os conteúdos de outro artigo das Constituições, o 13, ajudam a ler em profundidade o 125, mediante o elemento vivificante do “espírito” que nos anima.

Vale a pena sublinhar o emprego em ambos os artigos do qualificativo “filial” e, além disso, a insistência sobre a “disponi­bilidade” e sobre a “docilidade” que devem distinguir a nossa ação apostólica, sobretudo entre os jovens. Isso tudo exige cora­gem e dedicação: “Toda fadiga é pouca — segundo Dom Bosco — quando se trata da Igreja e do Papado”.2

Os dois artigos, 13 e 125, podem ser considerados a expressão sintética de toda a rica tradição salesiana, à qual aqui só podemos aludir. O Pe. Pedro Ricaldone recolheu suas expressões mais sig­nificativas na conhecida circular intitulada “Conhecer, amar, de­fender o Papa”.3

Encontramos nela abundante material, que nos leva, também hoje, a perceber facilmente no coração de Dom Bosco um ex­traordinário e corajoso empenho de fidelidade ao ministério de Pedro. Disso estava convencido nosso Pai, que expressava de for­ma explícita sua convicção. Não aceitava a fórmula “Pio IX sim, o Papa não”, nem lhe agradaria a outra (hoje em voga): “o Papa­do sim, não, porém, este Papa”. A primeira era astutamente polí­tica; a segunda, ambiguamente descomprometida.

O sucessor de Pedro ao qual Dom Bosco aderia era o Papa “vivo” (“este” Papa), que guia e ensina aqui e agora, na presente conjuntura histórica, o Povo de Deus; estava convencido de que se referem a ele, ao Papa vivo, as palavras de Cristo no Evange­lho e a indefectível assistência do Espírito Santo. As duas formas a que aludimos não exprimem a verdadeira fé cristã; antes, encobrem-lhe as exigências, favorecendo interpretações subjetivas.

Na sua praticidade pedagógica, Dom Bosco é bem claro ao testemunhar a dimensão eclesial da sua fé e ao educar nela os jovens. É impossível correr o perigo de não perceber seu pensa­mento de fundo. Também quando algumas expressões suas se acham ligadas a uma mentalidade da época, porque redigidas num gênero literário já incomum, percebe-se com facilidade e clareza a consciência eclesial que lhe permeia o coração.

Por isso, na laboriosa e escrupulosa reelaboração do texto constitucional dos últimos anos, não houve titubeios para afirmar a nossa “filial fidelidade” ao Papa4 e a correspondente “docili­dade” ao seu magistério.5 Pode-se, pois, concluir, sem sombra de dúvida, que o amor e a adesão ao ministério petrino são compo­nentes irrenunciáveis do patrimônio espiritual que o Fundador nos deixou em herança.

Na mencionada circular do Pe. Ricaldone, encontram-se nume­rosos dados para justificar os múltiplos qualificativos empregados para descrever o amor de Dom Bosco ao Papa: “sobrenatural, zeloso e conquistador, filial e devoto, obediente e submisso, sacri­ficado e heroico. Foi, além disso, seu estrénuo defensor”.6 Não são afirmações pleonásticas; correspondem a diversos aspectos de sólido testemunho, vivido ao longo de muitos anos.

Pensemos em quanto Dom Bosco escreveu, por exemplo, sobre a história dos Papas; em quanto fez para a proclamação da in­falibilidade, por ocasião do Concílio Vaticano I; no gesto heroico de obediência a Leão XIII, na dolorosa pendência com Dom Gastaldi; em quanto enfrentou nos seus últimos anos de saúde precária para realizar o desejo do Papa de levar a termo o templo do Sagrado Coração no Castro Pretório, em Roma. Esse último e pesado compromisso de sua vida merece um breve comentário. O Pe. Cerruti, que acompanhou Dom Bosco de perto nesse ato heroico de deferência para com o Papa, atestou com juramento nos processos: “Estou intimamente convencido de que as canseiras e os sofrimentos (nas longas viagens para esmolar) abreviaram-lhe a vida, já decadente e consumida pelo trabalho”.7

Dom Bosco, sem dúvida alguma, quis deixar aos seus filhos a viva herança de uma “devoção” concreta e teologal ao sucessor de Pedro.

No “Resumo” da apresentação feita pelo próprio Dom Bosco, em 23 de fevereiro de 1874, à Sé Apostólica sobre a vida e a identidade da Pia Sociedade de S. Francisco de Sales, ele próprio assim se expressa: “Finalidade fundamental da Congregação, des­de o seu início, foi constantemente sustentar e defender a auto­ridade do Chefe supremo da Igreja na classe menos abastada da sociedade e particularmente da juventude periclitante”.8

Na primeira tradução italiana do texto constitucional, apro­vado havia pouco pela Santa Sé,9 no artigo 1º do capítulo VI (sem embargo da delicada situação política daqueles anos) escreve: “Os sócios reconhecerão como árbitro e supremo superior absoluto o Sumo Pontífice, ao qual estarão, em todas as coisas, em todos os lugares e em todos os tempos, humilde e respeitosamente submis­sos. Antes, cada membro terá a maior solicitude em defender sua autoridade e em promover a observância das leis da Igreja Cató­lica e do seu Chefe supremo, que é Legislador e Vigário de Jesus Cristo na terra”.10

Trata-se, queridos irmãos, de uma atitude e de um comporta­mento espirituais apropriados à missão específica da Congrega­ção. Um movimento apostólico de amplitude universal como o nosso, dedicado por carisma à pastoral juvenil, tem necessidade, por íntima coerência, de se colocar na linha da própria natureza do dinamismo apostólico da Igreja. Fazer pastoral, com efeito, é empenhar-se numa ação evangelizadora guiada pelos Pastores em “comunhão hierárquica” com o Papa, chefe do Colégio episcopal.11



Novo estilo no exercício do ministério de Pedro



Desde os tempos de Dom Bosco até hoje, o exercício do ser­viço papal entrou num processo prático e progressivo de evolução de ideias, que exige revisão, esclarecimento e também renovação.12 A consciência desse processo deve entrar também a fazer parte do nosso amor e adesão ao Papa. Se alguém permanecesse esquivo ou titubeante diante dessa afirmação, basta, para convencer-se, confrontar, por exemplo, o exercício do ministério papal de um grande Pontífice anterior ao Vaticano II, como Pio XII, com a modalidade atual seguida por João Paulo II.

Do século passado aos nossos anos de 80, o exercício do Pri­mado houve de enfrentar desafios não somente das profundas transformações sociopolíticas e eclesiais, mas também das novas exigências de amadurecimento doutrinal e de perspectiva pastoral, que o apresentam hoje com novidades que provocaram sérias pesquisas e também tensões. Tentemos rememorar, sinteticamen­te, alguns elementos mais significativos.

O fim do Estado Pontifício, com as complexas lutas que o precederam e com os delicados problemas que se lhe seguiram por longos decênios, condicionou por certo as modalidades do exercício da função papal.

A sucessiva purificação e progressiva simplificação em fa­vor de maior impulso pastoral acresceram a incisividade e a genui­nidade do ministério de Pedro, intensificando-lhe o serviço profé­tico, particularmente no âmbito do ensinamento social.

O suceder-se de Papas contemporâneos, que se distingui­ram por alta qualificação e santidade, esclareceu e aperfeiçoou a imagem do serviço papal diante da crescente racionalidade laicista, e robusteceu-lhe a dimensão de universalidade.

O extraordinário evento do Concílio Ecumênico Vaticano II renovou profundamente toda a eclesiologia no seu aspecto subs­tancial de “mistério” e na sua atipicidade constitutiva, animada pela presença indefectível do Espírito do Senhor. Desde então se constata contínua renovação da Igreja, também no exercício dos ministérios e nos carismas.

A proclamação simultânea do Primado papal e da Colegia­lidade episcopal, feita pelo Concílio, trouxe não indiferentes novi­dades, com a possibilidade de ulteriores desenvolvimentos, no exercício do ministério de Pedro. Foi o que se pôde ver, por exemplo, na iniciativa de Paulo VI de criar o Sínodo dos Bispos.

A visão vaticana da “Igreja universal” como comunhão de Igrejas particulares exclui a caricatura de considerar toda a Igreja de maneira simplista como a “diocese do Papa”: o poder dos Bispos, diz a Lúmen Gentium, “não é diminuído pelo poder supre­mo e universal, antes, pelo contrário, é por ele assegurado, con­solidado e defendido”.13

Segue-se de aí que o exercício do ministério papal deve ser um verdadeiro “serviço da comunhão”, confirmando e orientando a colegialidade e harmonizando as intervenções do poder prima­cial com as justas exigências da subsidiariedade.

Uma eclesiologia de comunhão reconhece e respeita as legítimas diversidades que enriquecem a edificação da Igreja uni­versal. Por isso o Papado, fundamento visível da unidade e da catolicidade da Igreja, empenha-se em promover uma comunhão multiforme, evitando os insidiosos perigos da uniformidade.

O Vaticano II, além do mais, criou novo e vasto contexto ecuménico que, entre as suas exigências, enumera justamente o confronto e o diálogo sobre o delicado tema do ministério de Pedro. Isso estimula a aprofundar e formular mais compreensi­velmente sua doutrina.14 É verdade que o Concílio afirma inequi­vocamente que o Primado do Papa pertence constitutivamente ao mistério da Igreja de Cristo na sua estrutura histórica, mas a formulação dessa verdade pode ser suscetível de esclarecimento: “Como a terminologia do Concílio de Éfeso — escreve um com­petente estudioso — foi profundamente mudada pelo de Calcedônia, com o fito de dizer a mesma coisa de maneira mais clara, assim pode-se logicamente pensar que a realidade que os dois últimos Concílios exprimiram com sua particular terminologia (acerca do Primado do Papa) possa ser formulada também com outros termos mais compreensíveis”.15

Enfim, a abertura conciliar às religiões não-cristãs e ao número ingente de não-crentes está a exigir do papel do Papa uma modalidade inédita de serviço, que vemos iniciada quer na ampliação e reforma dos dicastérios vaticanos, quer nas promis­soras viagens apostólicas dos últimos Pontífices,16 como ainda em corajosas iniciativas pastorais e culturais com os representantes dos povos ou mediante algumas formas de mediação no campo da justiça e da paz.

O conjunto de todas essas “novidades”, em que não faltam tensões, está a incidir no exercício do ministério de Pedro, não para pôr em dúvida ou diminuir de forma redutiva sua realidade querida por Cristo, mas para adequar-lhe o funcionamento à progressiva transformação socioeclesial.

A enumeração dessas motivações para uma mudança de estilo deve ajudar-nos a reinterpretar com diligente fidelidade o testa­mento espiritual que Dom Bosco nos deixou. A consciência do atual processo de renovação do exercício do ministério petrino é condição indispensável do nosso renovado sentido de Igreja.

Com Dom Bosco e com os tempos! A nossa adesão filial ao Papa deve hoje sentir-se radicada numa Tradição viva, que se alimenta nas fontes cristalinas da fé, mas progride em profunda sintonia com o crescimento da consciência da Igreja no tempo.17



Uma situação de mal-estar



O fascínio das mencionadas novidades, o recrudescimento de algumas tensões que de aí nasceram, certa racionalidade pseudocientífica, antigos e novos preconceitos quereriam apresentar como sinal de personalidade ou amadurecimento a atitude de habitual distanciamento crítico ou prescindência na prática, da guia do magistério do Papa. Se alguém demonstrar adesão sincera será facilmente acoimado de retrógrado.

Não se trata aqui somente do “complexo antirromano” já analisado no conhecido volume de Urs von Balthasar, mas tam­bém de crescente animosidade para com “este” Papa de hoje.

Parece haver-se tornado moda acolher fáceis interpretações malévolas em relação à pessoa do atual Papa. Enfraquecem suas intervenções magisteriais, demonstra-se simpatia por posições ideológicas por ele censuradas, admitem-se afirmações gratuitas de ter ele uma mentalidade cultural superada e frenadora; alguns, ainda, sobrevalorizam tanto a pesquisa hermenêutica (de per si, aliás, importante e enriquecedora) que prescindem, afinal de contas, de qualquer mediação magisterial; esquecem que “o ofício de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou trans­mitida — como afirma a Constituição Dei Verbum — foi confia­do unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo”.18

Os que consideram a interpretação “histórica” das fontes da revelação como uma superação científica de sua interpretação “dogmática”, descuidam a natureza da fé cristã. Consideram a visão dogmática como uma espécie de etapa pré-científica a ser, após sua pesquisa, colocada entre parêntesis, como se fora um conhecimento já arcaico. Desta sorte não consideram que a mes­ma revelação é, para falar com propriedade, a verdadeira “fonte” do que é objeto da fé; e que a fé é fundamentalmente um ato cumprido com toda a Igreja, no âmbito da sua tradição viva acompanhada pelo serviço do magistério.

A fé — com efeito — não é somente um face à face com Deus e o Cristo, é também um contato que abre a comunhão com aqueles a quem o próprio Deus se comunicou. A fé, pois, não é apenas um ‘eu’ e um ‘tu’, mas também um ‘nós’. Neste ‘nós’ vive o memorial que nos fez reencontrar quanto havemos esque­cido: Deus e o seu Enviado. Para usar outras palavras, não há fé sem Igreja. Henri De Lubac demonstrou que o ‘eu’ da profis­são de fé cristã não é o ‘eu’ isolado do indivíduo, mas o ‘eu’ coletivo da Igreja”.19

Não é atitude de fé prescindir da presença viva do Espírito Santo, que assiste indefectivelmente o ministério de Pedro, como ainda “democratizar” de tal forma Sua ação dentro do Povo de Deus que se venha a praticamente tornar supérflua a função do Papa.

O dano causado no povo, sobretudo nos jovens, por aqueles (agentes de pastoral ou professores) que contradizem, subesti­mam ou ironizam a direção pastoral do atual sucessor de Pedro, é pastoralmente grave. Tal comportamento desorienta e afasta a pouco e pouco, psicologicamente, das verdades de fé e da reta conduta pessoas ainda bem-dispostas, mas doutrinalmente pobres, agregando-as a uma onda invasora de secularismo. Sob a ação de tais impulsos, uma cultura até ontem impregnada de Evangelho parece sofrer hoje um processo de esvaziamento procedente do interior: em seu vértice encontramos o “ateísmo”, depois uma “reinterpretação demitizadora” de Cristo, mais embaixo uma “po­pularização” da Igreja, depois uma “reapropriação” da Palavra de Deus, e, por fim, um repensamento radical dos “ministérios”, não mais à luz do mistério cristológico com o Primado do Papa, mas, de preferência, em termos psicológico-sociológicos.

Não sem razão se fala de “pós-cristianismo”, ou seja, de uma mentalidade que se preocuparia somente da racionalidade que acompanha o progresso científico, sem necessidade de uma Reve­lação histórica. É um sentimento nem sempre explícito nem de igual intensidade de convicção, nem sempre expresso no mesmo nível, mas sua influência invade os grandes meios de comunica­ção social e se estende insensivelmente, qual mancha de óleo, também por alguns setores dos crentes e talvez mesmo entre nós.

Sinal dessa influência é justamente um comportamento de indiferença, de pretensiosa ironia ou de antipatia para com o papel do Papa como centro unificador da comunhão eclesial e primeiro guia pastoral de toda a missão do Povo de Deus.

Não se trata de negar eventuais defeitos inerentes ao exer­cício humano de qualquer ministério. A maneira de exercer seu ofício por parte de um Papa e também algum seu particular pro­jeto não se devem necessariamente considerar objeto de infalibili­dade. “Todo possível programa — escreve na já citada obra von Balthasar — permanece limitado ao interior das contingências terrenas e — confrontado com a universalidade do Reino de Cristo — discutível, quer se trate do programa de Leão I ou de Gregório I, de Hildebrando e Inocêncio III, ou dos últimos Papas do Estado da Igreja”.20

Mas uma coisa é procurar fazer uma avaliação histórica de um pontificado do passado (à luz de suficiente perspectiva) e outra dissentir ou prescindir da orientação pastoral do Papa que estiver no cargo concorrendo para enfraquecer-lhe entre o povo o carisma de direção eclesial. Assistimos hoje a desastrosas consequências dessas formas de crítica ou de discordância, sobretu­do no âmbito da moral, onde se nota ser mais forte a diferença entre mentalidade secularista (uma “nova ética”) e o Magistério do Papa. Vemos a opinião pública afastar-se cada vez mais dos próprios fundamentos da moral cristã, a ponto de considerar como critério ético não o Evangelho, mas as estatísticas, a legali­dade civil ou algumas modas aceitas pela sociedade. Há uma subversão de valores, habilmente difusa, que torna assaz difícil o ministério de Pedro e dos pastores, apresentando-o como alheio aos que são considerados os atuais progressos da “razão” e ao grandioso futuro da “história da liberdade”.

Numa hora em que se põe em discussão o próprio valor da função papal, não seria comportamento pastoralmente feliz nem expressão de genuíno sentido de Igreja nem demonstração de compreensão objetiva da fé, descomprometer-se de uma posição de “fidelidade filial”, de adesão convicta e atualizada e de corajosa defesa da pessoa e do ministério do Sucessor de Pedro.

Hoje, numa conjuntura tão problemática para a pastoral, Dom Bosco não se colocaria de certo do lado dos desempenhados, nem dos críticos em moda, mas proclamaria com franqueza sua opção de fidelidade.



Algumas reflexões sobre a Lumen Gentium



Há vinte anos do Vaticano II, vale a pena voltar a refletir sobre as afirmações conciliares acerca do ministério de Pedro. Repre­sentam o sentimento vivo da Igreja hoje. Não pretendemos entrar nos debates sobre o tema complexo dos ministérios no Povo de Deus. Algumas publicações de discutível hermenêutica a respeito do assunto foram objeto de desaprovação oficial.21

A nós nos interessa uma releitura espiritual que transcenda qualquer suspeita de racionalismo e ultrapasse o apriorismo antissacramental que exclui qualquer mediação vinda do alto. Convido-os, queridos irmãos, a reler atentamente (também em comu­nidade) o capítulo terceiro da Constituição dogmática sobre a Igreja. Haverá de brotar uma reflexão útil e iluminadora, que talvez poderá ajudar alguém a redescobrir o verdadeiro sentido do Vaticano II.

Como acima lembrávamos, o ministério petrino na Igreja pertence à sua própria constituição “sacramental”. No grande “Sacramento de salvação” que é o “Corpo de Cristo” na história, Jesus colocou, como expressão sensível do seu papel insubstituí­vel de Chefe, o Colégio apostólico, no qual Pedro é constituído “princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade da fé e da comunhão”.22 O crente deve, pois, saber olhar para a figura do Papa a partir dessa ótica “sacramental” da globalidade da Igreja.

Numa visão eclesial de “mistério” (que inclui a presença di­vina em realidades humanas), podemos considerar no ministério petrino, segundo a Lumen Gentium, três elementos complementa­res: sua instituição por parte de Jesus Cristo, o realismo sacra­mental da Colegialidade dos Bispos como realidade inseparável do Primado, e a assistência permanente do Espírito Santo.

Antes de mais, interessa vitalmente à consciência do crente o fato que Jesus tenha projetado, querido e preparado pessoal­mente o ministério de Pedro, como rocha da sua Igreja por todos os séculos.

Tal afirmação atingiu sua formulação fundamentalmente pre­cisa nos dois últimos Concílios Vaticanos: “Este Sacrossanto Sí­nodo — diz a Lumen Gentium —, seguindo os passos do Concílio Vaticano I, com ele ensina e declara que Jesus Cristo, Pastor Eterno, fundou a santa Igreja” e consagrou os Apóstolos e seus sucessores os Bispos, estabelecendo como Chefe deles a Pedro e seus sucessores. “Esta doutrina sobre a instituição, perpetuidade, poder e natureza do sacro Primado do Romano Pontífice e sobre seu infalível Magistério, o Sagrado Sínodo novamente a propõe para ser criada firmemente por todos os fiéis”.23

Todo o capítulo terceiro da Constituição descreve de maneira pormenorizada a estrutura hierárquica querida por Cristo e ani­mada pelo seu Espírito; é de modo particular significativo quanto se afirma sobre a Colegialidade episcopal e o Primado do Papa.24

Hoje um católico, como escreve von Balthasar, “pode mover-se como quiser, mas já não pode voltar a antes do Vaticano I, que foi solenemente reafirmado pelo Vaticano II (LG 22). Como após todas as definições, não há senão o caminho da integração numa totalidade maior, mais vasta. E essa totalidade é a indefec­tibilidade de Igreja crente, da qual o ministério petrino é um aspecto particular. Pode-se dizer que o Vaticano I fechou neste ponto uma porta de maneira tão hábil que ninguém jamais a poderá abrir sem derrubar a parede toda, todo o complexo cató­lico. Comportar-se como se essa porta pudesse ser aberta por divertimento é uma mentira”.25

Em segundo lugar, o realismo sacramental da Colegiali­dade episcopal como realidade inseparável do Primado leva o crente a considerar que a verdadeira “sacramentalidade” da Igreja se exprime em fim de contas numa existência humana bem de­terminada; uma realidade que se toca e constata, situada no tem­po e no espaço, aqui e agora, em relação a pessoas concretas e a papéis definidos. O Vaticano II ajudou-nos a conceber essa “sa­cramentalidade” como a meta objetiva da eficácia dos sete sacra­mentos. Os sacramentos são mediações que levam a construir o verdadeiro e único grande Sacramento que é a Igreja enquanto “Corpo de Cristo” no mundo. O Batismo, a Crisma e a Eucaristia fazem de mim, na minha concretude humana, um membro vivo desse Corpo de Cristo. A dimensão sacramental definitiva somos nós, enquanto sinais e portadores do mistério de Cristo!

Ora bem, o sacramento da Ordem (que na sua plenitude con­sagra os Bispos) incorpora a um Colégio de Pastores historica­mente definido, isto é, envolve os consagrados numa realidade pré-existente, que tem uma natureza peculiar de “comunhão hie­rárquica” (uma “Ordem”), na qual existe objetivamente e desde sempre, por disposição de Jesus Cristo, o Primado de Pedro: “O Santo Sínodo ensina que pela sagração episcopal se confere a plenitude do Sacramento da Ordem, que, tanto pelo costume litúr­gico da Igreja como pela voz dos Santos Padres, é chamada o sumo sacerdócio, o ápice do ministério sagrado. Mas a sagração episcopal, juntamente com o múnus de santificar, confere tam­bém os de ensinar e de reger. Estes, todavia, por sua natureza só podem ser exercidos em hierárquica comunhão com o Chefe e os demais membros do Colégio”.26

Eis aí por que não é possível conceber uma autêntica colegia­lidade episcopal sem o Primado do Papa; nem uma Igreja parti­cular desligada da universal; nem uma federação de Igrejas locais diferentes e autônomas, em vez de uma comunhão de Igrejas originais, mas reunidas numa unidade. Mais: o Colégio apostólico e o Corpo episcopal (com os consagrados para os ministérios subordinados do Presbiterado e do Diaconato) são, no Corpo de Cristo que é a Igreja, os sinais e os portadores da função especial de Cristo enquanto “Pastor eterno”, Cabeça viva daquele Corpo. São, pois, expressão sacramental da sua função “capital” de Pas­tor; com efeito, “para apascentar e aumentar sempre o Povo de Deus, Cristo Senhor instituiu na Sua Igreja os ministérios”.27

Mas se o Senhor quis o ministério dos Pastores como corpo colegial, guiado por Pedro, quer dizer que as responsabilidades pastorais implicam sempre uma aspiração de comunhão com o Papa, uma convergência de consciente solidariedade com a sua função de guia, uma sintonia com o seu magistério, que, por outra parte, é expressão dos valores permanentes e vivos da Tradição e do indefectível instinto de fé de toda a Igreja.

Enfim, a assistência permanente do Espirito Santo faz do ministério do Papa um dom inestimável para o Povo de Deus: o “carisma da direção”. O próprio Cristo envia com explícita de­terminação o seu Espírito à pessoa de Pedro e dos seus sucesso­res: “Eu rezei por ti, e tu confirma os teus irmãos”;28 “Simão, filho de João, tu me amas mais do que os outros? Cuida dos meus cordeiros, cuida das minhas ovelhas”.29

O Espírito Santo está presente na história porque enviado pelo Pai e pelo Filho; Pentecostes é a plenitude do mistério de Cristo: “O Espírito Santo, no dia de Pentecostes — diz a Lumen Gentium —, foi enviado a fim de santificar perenemente a Igre­ja... Leva a Igreja ao conhecimento da verdade total. Unifica-a na comunhão e no ministério. Dota-a e dirige-a mediante os diver­sos dons hierárquicos e carismáticos. E adorna-a com seus fru­tos”.30 A iniciativa e a criatividade do Espírito Santo no Povo de Deus são inexauríveis, nunca em contraste mas a favor das me­diações instituídas por Cristo; Carismas e Ministérios são projetados juntos pelo Senhor para que cresçam em harmonia ao longo da história: “A comunhão orgânica da Igreja — afirma o Mutuae Relationes — não é exclusivamente espiritual, isto é, nascida, seja como for, do Espírito Santo, de per si anterior às funções eclesiais e criadora delas, mas é ao mesmo passo hierárquica, enquanto derivada, por impulso vital, de Cristo-Cabeça. Os próprios dons, conferidos pelo Espírito, são expressamente queridos por Cristo e por sua própria natureza dirigidos ao conjunto do corpo, a fim de vivificar-lhe as funções e atividades”.31

O papel do Papa (juntamente com o dos Bispos) acha-se, pois, ligado a uma assistência objetiva do Espírito do Senhor nas con­junturas concretas do exercício do ministério: “Para desempenhar ofícios tão excelsos, os apóstolos foram enriquecidos por Cristo com especial efusão do Espírito Santo descendo sobre eles. E eles mesmos transmitiriam aos seus colaboradores mediante a imposi­ção das mãos este dom espiritual, que chegou até nós pela sa­gração episcopal”.32 Seria reducionismo da fé não levar isto em consideração.

Devemos reconhecer, no fim destas breves reflexões sobre alguns conteúdos da Lumen Gentium, que se sente hoje a urgente necessidade de uma renovada teologia e espiritualidade da pre­sença do Espírito Santo na história: muito lucrará dessa maneira a atitude do crente, justamente em relação ao ministério de Pedro.



A nossa atitude de fidelidade torna-se “tarefa”



Quisemos recordar a importância que tem na nossa vida salesiana “a fidelidade filial ao Sucessor de Pedro”, iluminando-a com algumas reflexões conciliares. Sublinhamos a atual novidade de estilo e tomamos consciência de dificuldades concretas que se advertem a respeito na sociedade secularizada. Tudo isso nos interpela e põe, de alguma maneira, em estado de alerta.

Os dois artigos constitucionais que relemos33 exprimem a dimensão eclesial do nosso “espírito” e do nosso “carisma”. O artigo 13 fala da adesão ao Papa como elemento vivo do “espí­rito salesiano”, ou seja, do nosso “estilo original de vida e de ação”.34 O espírito de Dom Bosco anima e inspira a nossa atividade concreta. E assim a fidelidade ao Papa não será para nós apenas uma atitude interior, mas deverá tornar-se tarefa apostó­lica. Com razão termina o artigo 13 dizendo: “Educamos os jovens cristãos a um autêntico sentido de Igreja e trabalhamos assidua­mente para que ele cresça”.

O artigo 125, por sua vez, fala da “Sociedade salesiana”, en­quanto tal. Considerando a sua atividade apostólica como uma participação na missão da Igreja, afirma que o nosso voto de obediência nos liga explicitamente à autoridade suprema do Papa e, por isso, “acolhemos com docilidade” o seu magistério. Tam­bém aqui, pela própria natureza da vocação salesiana, a obediên­cia e docilidade não se reduzem unicamente à vida interna das comunidades, mas se prolongam e transformam em tarefa apos­tólica. Com efeito, também este artigo termina dizendo: os sócios “ajudam os fiéis, especialmente os jovens, a aceitar os ensina­mentos” do magistério papal.

Por conseguinte, a nossa “devoção” ao Papa torna-se “tarefa”; convida-nos a verdadeiro empenho apostólico neste campo.

Como? Se olharmos para Dom Bosco, sentir-nos-emos estimu­lados e seremos orientados na realização dessa tarefa. Com sua mentalidade realista, ele a realizou como pastor e educador com os escritos, com o testemunho de vida, com a comunicação social, com a atividade educativa, com muitos empenhos apostólicos, com variadas intervenções, que também ultrapassavam os inte­resses imediatos da Congregação.

Permito-me aqui sugerir alguns aspectos práticos, nos quais as comunidades locais e as inspetorias deveriam sentir-se convi­dadas a programar iniciativas concretas a respeito.

Para melhor ressaltar tais sugestões, ponho em primeira linha a urgência de saber formular uma concreta e estimulante espiri­tualidade juvenil, um projeto evangélico que atraia os jovens, capaz de animar todas as nossas presenças e pôr em ação também um “movimento salesiano” inspirado nas opções pedagógico-pastorais de Dom Bosco.

Trata-se de lançar e fazer amar valores que exprimem a vita­lidade da mensagem de Cristo hoje: ideais verdadeiros, comporta­mentos exigentes, metas práticas, sobre o estilo evangélico da carta de João Paulo II aos jovens, para demolir o crescente peri­go do “homem sem vocação”.

Não falta, talvez, em não poucas das nossas presenças o sopro místico na convocação e na proposta juvenil? Se falo de “mística”, não é para convidá-los a promover iniciativas intimistas ou excêntricas, mas a uma corajosa convicção da força do Evan­gelho, acompanhada de um testemunho contagioso, fruto de con­templação, perseverança, entusiasmo e espírito de sacrifício.

A nossa vocação de “missionários dos jovens” deveria intensi­ficar no coração de todos uma verdadeira energia de vida, uma forte comunicação de fé, uma iluminada franqueza na contestação do aburguesamento, do permissivismo, do secularismo.

O irmão e a comunidade carentes dessa “mística” não sabe­rão jamais criar um verdadeiro “movimento” de atualidade.

Por felicidade, há que agradecer ao Senhor que o desenvolvi­mento, entre nós, da experiência associativa já amadureceu con­clusões positivas a respeito (como se pode ver no último subsídio oferecido pelo Dicastério para a Pastoral Juvenil: “A Proposta Associativa Salesiana — Síntese de uma experiência em caminho” Doc. n. 9).

Entre os componentes de uma espiritualidade juvenil salesia­na está precisamente um forte “sentido de Igreja”, com atitudes apropriadas a serem criadas, desenvolvidas e traduzidas em ex­periência viva. Lugar privilegiado ocupa certamente, no projeto e na práxis de Dom Bosco, o empenho na adesão ao Papa, fun­dado sobre o conhecimento, sobre o amor e sobre a acolhida a seu ministério de Sucessor de Pedro.

Bem cuidado, esse componente dará à espiritualidade juvenil experiência concreta de Igreja, orientações claras para a vida, riqueza de atualidade e renovados motivos propulsores de ação.

Mas a transmissão de um projeto espiritual aos jovens só pode ser fruto de intensa vida, pessoal e comunitária, no Espírito.

De aí a necessidade de enriquecer-nos constantemente na atualização e desenvolvimento do característico sentido de Igreja do nosso Fundador. Uma tarefa fundamental para todos nós.

Para tal fim, vou apresentar alguns pontos que considero estratégicos e que, lamentavelmente, vejo, aqui e ali, um tanto transcurados.

O primeiro de todos é o conceito de Igreja como “Misté­rio”, assim como no-lo apresentou o Vaticano II: “A sociedade provida de órgãos hierárquicos e o corpo místico de Cristo, a assembleia visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja enriquecida de bens celestes, não devem ser considera­dos duas coisas, mas formam uma só realidade complexa em que se funde o elemento divino e o humano. É por isso, mediante uma não medíocre analogia, comparada ao mistério do Verbo encarnado”.35

Uma eclesiologia verdadeiramente conciliar, que faz ressaltar a natureza sacramental da Igreja, é a base principal da adesão ao Papa. Sabemos que circulam ideias eclesiológicas que desorien­tam, as quais, no melhor dos casos, favorecem uma interpretação minimalista do ministério de Pedro.

Ter hoje consciência atenta da presença real do Espírito Santo na Igreja, em sua vida, mediações, ministérios e carismas é condição indispensável de sintonia conciliar.

Como consequência de uma genuína eclesiologia do Mis­tério, devemos atualizar a nossa imagem do Papa como primeiro e supremo Pastor.

O Vaticano II apresenta a dimensão hierárquica da Igreja não com uma visão sociológica, “monárquica” ou “democrática”, mas com uma ótica “sacramental”, como realidade de serviço ao Povo de Deus, vivificada pela presença do Espírito Santo e, por isso, considerada e percebida somente numa visão de fé. A figura do Papa é portadora de um poder, que não é poder despótico, mas serviço de verdade e de caridade, com especial participação na autoridade salvadora de Cristo ressuscitado, verdadeira Cabeça viva e atual da Igreja, seu “Pastor eterno”.

O Papa não está sozinho; a Igreja universal não é uma dio­cese; a Colegialidade episcopal, como vimos, não é sociedade anônima, mas inclui, por natureza, o Primado de Pedro.

Sabemos, repito, que a maneira de exercer o ministério pri­macial atravessa hoje interessante modalidade de renovação. Tal novidade deve intensificar a nossa atenção e o nosso estudo para permanecermos atualizados e competentes num aspecto vital do nosso espírito. São muitos, ao nosso derredor, os que julgam a presente evolução apenas como um fenômeno sociocultural, pres­cindindo da sua realidade sacramental de ministério instituído por Cristo. Um motivo a mais, pois, para aprofundar os nossos conhecimentos culturais e eclesiológicos, juntamente com cons­tante reflexão de fé.

Outro ponto que devemos cuidar é a inclusão dos conteú­dos do magistério do Papa nas nossas atividades de evangelização. O magistério do Papa exprime-se de diferentes maneiras. Devemos saber acolhê-lo e conservá-lo segundo a mente por ele entendida, a qual se manifesta seja pela matéria tratada, seja pelo teor da expressão verbal, seja pelo tipo de documento, conforme as co­nhecidas e justas normas de interpretação.

É preciso dar importância às encíclicas, às exortações apos­tólicas, a certas orientações particularmente significativas, às no­tas ou instruções doutrinais produzidas sobretudo pela Congrega­ção para a doutrina da fé, às alocuções e intervenções particular­mente significativas. Seguir com atenção o magistério do Papa é um modo de manter-se atualizados sobre os problemas e diretrizes da Igreja e de exercitar a fé em diálogo com os desafios dos tempos, de repensar o Evangelho como mensagem de salvação e não simplesmente como um dado de cultura religiosa.

Há, aqui, vasto campo para empenho urgente e indispensável, numa hora de mudanças, em que aparecem ininterruptamente teorias inéditas, modas desnorteantes, problemas complexos. Cada comunidade deve procurar a maneira de manter-se bem informa­da e atualizada.

Quem entre nós não vivesse esse esforço contínuo de sintonia não poderia dizer que dá, de fato, testemunho do espírito de Dom Bosco.

Por fim, na nossa acolhida do magistério do Papa creio se devam sobretudo privilegiar, tendo em vista o caráter pastoral e pedagógico da vocação salesiana, suas “diretrizes morais” e seu “ensinamento social”: dois setores de extraordinária urgência educativa, o primeiro mais fortemente presente nas sociedades ricas, impregnadas de permissivismo, o segundo mais intensamen­te sentido no terceiro mundo, sedento de libertação.

Como pastores-educadores, devemos ser competentes no que tange aos critérios cristãos da conduta humana. Ouve-se falar, com preocupação, de “drama da moral”, de guinadas radicais favoreci­das pelas disciplinas antropológicas, de novos valores que surgi­ram numa cultura pós-cristã, de ocaso da ética tradicional.

Não será fácil, por certo, resolver todos os problemas morais da cultura emergente; a adesão ao magistério do Papa sobre a reta conduta do homem servirá de luz doutrinal e de preciosa orientação pastoral.

O amadurecimento do processo de socialização, que supõe a consciência e a participação ativa dos cidadãos na gestão do bem comum, deu extraordinário relevo aos temas da justiça e da paz e à dimensão política da vida dos indivíduos e dos povos. Surgi­ram, neste campo, ideologias que tendem a hegemonizar a cultura. De aí a atenção e prudência com que se deve acolher a doutrina social da Igreja, sobretudo a que provém do ministério do Papa. Se quisermos influir evangelicamente sobre as mudanças das es­truturas, preparar os jovens para o mundo do trabalho e animar de espírito cristão a gestão política, educando para a solidariedade e a paz entre os povos, temos necessidade de acurado conheci­mento e de adequada capacidade para comunicar a doutrina social da Igreja. Parece-me que é essa uma área em que não poucos lamentavelmente manquejamos. Devemos correr com urgência aos reparos, também porque as Constituições nos movem nesse sen­tido: nós Salesianos “conservando-nos independentes de qualquer ideologia e política partidária, recusamos tudo o que favorece a miséria, a injustiça e a violência, e colaboramos com quantos constroem uma sociedade mais digna do homem”.36

Como vedes, queridos irmãos, se olharmos para a nossa “de­voção” ao Papa como “tarefa” apostólica atual, sentimo-nos con­vidados concretamente a empenhar-nos mais como crentes, como pastores, como educadores. Peço aos Inspetores e aos Diretores que se preocupem constantemente em fazer com que haja em cada casa uma devida atualização em relação ao magistério da Igreja.



A Auxiliadora e o Papa



Ficaria incompleta a exposição de um tema tão expressivo do espírito de Dom Bosco se não lembrássemos o estreito laço que une a figura do Sucessor de Pedro com a de Maria.

Dizia de início que as três peculiares “devoções” salesianas, a Cristo-Eucaristia, à Auxiliadora e ao Papa, são a expressão prática da consciência eclesial do nosso Fundador e constituem três ati­tudes inseparáveis e complementares de uma fé corajosamente empenhada.

O chamado “sonho” das duas colunas, narrado por Dom Bosco em maio de 1862,37 apresenta, com ótica profética e de forma plástica de evento histórico, a nau da Igreja guiada pelo Papa no mar em tempestade. Ela encontra segurança nos dois ressuscitados, Cristo e Maria, presentes na história como Hóstia de salvação e Imaculada Auxiliadora, representados nas duas só­lidas colunas dotadas de âncoras e amarras.

Sabemos que precisamente nos anos ‘60, levado pela intuição das mudanças sociais e pelo vivo sentido de Igreja, o nosso Pai intensificou sua devoção a Maria como “Auxiliadora”: “É a pró­pria Igreja Católica que é assaltada — escrevia —. É assaltada nas suas funções, nas suas sagradas instituições, no seu chefe, na sua doutrina, na sua disciplina; é assaltada como Igreja Católica, como centro da verdade, como mestra de todos os fiéis”.38

Nesta ótica, Dom Bosco vê Nossa Senhora como Mãe da Igreja, preocupada de modo especial em socorrer e proteger o indispensável ministério do Papa e dos Bispos.

A história documenta suas incontáveis intervenções.

Aqui apenas esboçamos algumas reflexões eclesiais, que ilu­minam a relação mútua entre Maria e Pedro, no âmbito da Igreja como mistério.39

Tanto o princípio mariano como o petrino são coextensivos na Igreja” — a Igreja toda é “mariana” e “petrina”, ainda que em sentido análogo e complementar.

Maria e Pedro, de maneira diversa, estão inteiramente a ser­viço do Povo de Deus no dom total de si; unem ambos a altura da consciência de sua missão com a humildade “da imolação” da própria vida.

Maria é mãe para toda a Igreja; Pedro é fundamento para toda a Igreja.

Maria é “imaculada”, modelo profético da vida e santidade de toda a Igreja; Pedro é “infalível”, pastor profético da profis­são de fé e da conduta moral de toda a Igreja.

Maria vive na ressurreição como incansável “auxiliadora” para toda a Igreja; Pedro vive na sucessão apostólica como “guia e animador” para toda a Igreja.

Maria é esposa do Espírito Santo na fecundidade dos caris­mas para a Igreja; Pedro, assistido pelo Espírito Santo, é juiz da genuinidade e do exercício ordenado dos carismas para a Igreja.

Maria participa da plenitude do mistério pascal, que a torna “rainha” nos séculos para a edificação da Igreja; Pedro participa da autoridade de Cristo-Senhor, com um poder sagrado que o faz “ministro” (vigário, servo dos servos de Deus) na história para a edificação da Igreja.

Maria está toda voltada para Cristo para que a Igreja seja o seu Corpo místico; Pedro é sinal e portador da “capitalidade” de Cristo-Pastor para que a Igreja seja o seu grande Sacramento de Salvação.

Maria e Pedro, a Auxiliadora e o Papa, portanto, de ângulos diversos e com funções complementares, estão vitalmente orde­nados à Igreja para que nela o mistério de Cristo atinja sua plenitude.

Se Maria (“Mater Ecclesiae”) socorre e ajuda o Papa, o Su­cessor de Pedro entrega-se a Maria (“totus tuus”) e testemunha-lhe a real maternidade.



Queridos irmãos, nós, que quisemos levar Nossa Senhora para casa a fim de garantir com sua presença a renovação da Congre­gação,40 e nos entregamos solenemente a Ela no último Capítulo Geral,41 não esqueçamos nunca que a devoção salesiana a Ela como “Auxiliadora-Mãe da Igreja” importa, por nexo teologal e segundo o espírito do nosso carisma, “filial fidelidade ao Suces­sor de Pedro e ao seu magistério” para educar e promover um genuíno e concreto sentido de Igreja “na classe menor abastada da sociedade e particularmente da juventude periclitante”.

Que Dom Bosco nos inspire e encoraje.

A sincera e atualizada “devoção” ao Sucessor de Pedro nos trará entusiasmo na consagração, oportunos projetos pastorais e maior fecundidade vocacional.

Saúdo-vos no Senhor e desejo a todos (em preparação ao ‘88) constante crescimento no estudo, assimilação e testemunho das Constituições renovadas e dos Regulamentos Gerais.

Vosso af.mo em Dom Bosco,



1 Const. 13

2 Cf. Const. 13

3 ACS, 24 de maio de 1951, n. 164.

4 Const. 13.

5 Const. 125.

6 o.c. passim.

7 o.c., p. 69.

8 Opere Edite, Ristampa anastatica, vol. XXV, pag./380/: Num. XV, Riassunto della Pia società di S. Francesco di Sales nel 23 febbraio 1974, pag. 44.

9 Turim 1875.

10 Cf. “Costituzioni delia Società di S. Francesco di Sales” — 1858, 1875 Testi critici a cura di Francesco Motto, p. 113.

11 Cf. Lumen Gentium 22.

12 Cf., p. e. J. M. R. Tillard, “L’évêque de Roma”, Cerf, Paris, 1984.

13 Lumen Gentium 27.

14 Cf. p. e. AA.VV, “Papato e istanze ecumeniche”, EDB, Bologna, 1984.

15 Urs von Balthasar, “Il complesso antiromano”, Queriniana, 1974, p. 221.

16 Por um exemplo de reflexão sobre a viagem de João Paulo II a Turim. Cf. ACS, 1980, n. 297.

17 Cf. Dei Verbum 8.

18 Dei Verbum 10.

19 Ratzinger, “Trasmissione della fede e fonti della fede”, Collana “Euntes docete”, Piemme,

20 o.c. p. 56.

21 Cf. p.e., E. Schillebceckx, “II ministero nella Chiesa”, ediz., Queriniana, Brescia, 1982

22 Lumen Gentium 18.

23 Lumen Gentium 18

24 Cf. especialmente Lumen Gentium 22, 25, 27.

25 o. c. p. 124.

26 Lumen Gentium 21.

27 Lumen Gentium 18.

28 Lc 22,32.

29 Cf. Jo 21,15-17.

30 Lumen Gentium 4.

31 Mutuae Relationes 5.

32 Lumen Gentium 21.

33 Const. 13, 125.

34 Const. 10.

35 Lumen Gentium 8.

36 Const. 33.

37 Memorie Biografiche VII, 169-171

38 Cf. ACS, 1978, n. 289, p. 22.

39 Cf. as agudas considerações a respeito de Urs von Balthasar, o.c, pag. 203-225

40 Cf. ACS, 1978, n. 289

41 Cf. CG22 Doc. N. 126.

18