251-300|pt|299 - Apelos do Sínodo-80 (Sobre a Família)


Egídio Viganò


Apelos do Sínodo-80”

(“O Papel da Família cristã no mundo de hoje”)


Atos do Conselho Superior


Ano LXII – JANEIRO-MARÇO, 1981


N. 299







Introdução — 1. O recente Sínodo dos bispos. — 2. A importância dada à “família”. — 3. Momentos proféticos que emergiram na experiência sinodal. — 4. Dois valores fundamentais: o amor e a vida. — 5. Algumas consequências para o nosso compromisso pastoral-educativo: atitude profética de bondade — a nossa atualização doutrinal — inserção ativa na Igreja local — a presença na área da cultura e na escola — destaque dado à educação sexual — um empenho especial de catecumenato — significado inovador do tema da “mulher”. — 6. Nexo íntimo entre família e consagração. — O “espírito de família”. — Conclusão.



Roma, 8 de dezembro de 1980

Solenidade da Imaculada



Caros irmãos,



O catastrófico terremoto que atingiu vasta região do Sul da Itália despertou, ao lado de muita dor e apreensão, uma explosão de solida­riedade humana e caridade cristã que abre o coração à esperança. A visita do Santo Padre a essa região converteu-se em fonte de conforto e convite comovente à oração e à colaboração.

Também a Família Salesiana da Itália, da Europa e das outras regiões do mundo sentiu-se parte viva da Igreja na ajuda e aderiu ativa e generosamente às iniciativas de oração, socorro e reconstrução tão urgentes e necessárias. Olha­mos com admiração para os irmãos da Inspetoria Meridional “Bem-aventurado Miguel Rua”, que se prodigalizaram e se prodigalizam com todos os meios e esforços para socorrer os necessitados. Garantimos a eles a nossa participa­ção e ajuda, especialmente através das Inspetorias irmãs da Conferência italiana.

Desgraças assim, tão lutuosas, irrompem na nossa existência, sacodem-lhe a tranquilidade habitual e interpelam-nos sobre os grandes va­lores da vida e sobre o significado do devir humano. Deixemo-nos interrogar por tais even­tos num clima de fé e saberemos responder com a atitude operosa e confiante da esperança.

Jesus Cristo não nos propôs uma teoria sobre a dor, mas nos deu um exemplo de parti­cipação nela e de transformação dela, porque assumiu a dor até a sua paixão e morte pessoal, abrindo ao homem, dessa maneira, os horizon­tes da ressurreição.

Rezemos e trabalhemos sempre no Cristo, renovando a nossa solidariedade e união com os irmãos atingidos pelos terremotos.



1. O recente sínodo dos bispos



Recebi a graça e o mandato de participar, em setembro e outubro passados, com outros nove superiores gerais na assembleia sinodal sobre o “Papel da Família cristã no mundo de hoje”. Julgo útil tratar brevemente nesta carta do significado e consequências que deverá ter para nós o Sínodo-80. Pois se trata de um acon­tecimento eclesial de grande ressonância: dois anos de preparação, 213 padres sinodais, 43 ouvintes (entre os quais 16 casais), 10 peritos (em teologia, ética, demografia e me­dicina), 164 intervenções orais e 62 escritas, 11 grupos linguísticos de trabalho por mais de uma semana, com uma síntese escrita das suges­tões de cada grupo, elaboração de 43 Proposi­ções votadas e aprovadas em plenário e de uma Mensagem, 2 importantíssimas Relações do Card. Ratzinger, as ponderadas homilias do Santo Padre e, por fim, a entrega ao Papa de bem 6 documentos (Linhas de preparação, Ins­trumento de trabalho, Relação introdutiva, Re­lação sintética após as intervenções na sala, Relações dos grupos linguísticos, Proposições) para a elaboração de uma Exortação Apostólica, fruto do Sínodo, como já o foram a Evangelii nuntiandi e a Catechesi tradendae.

Os fiéis acompanharam com iniciativas ex­traordinárias de oração os trabalhos sinodais para pedir uma assistência especial do Espírito do Senhor.

A tarefa de um Sínodo é orientar a vida e a atividade apostólica do Povo de Deus em todos os continentes; envolve, pois, também os Institutos religiosos, sobretudo os chamados de vida ativa. Nós, que estamos especificamente empenhados na pastoral juvenil, devemo-nos sentir solenemente convidados a rever as nossas modalidades de trabalho, no espírito e segundo as orientações dos Pastores reunidos em torno do Sucessor de Pedro.

Muitos problemas enfrentados são impor­tantes e assaz delicados: a inculturação da dou­trina cristã sobre o matrimônio e a leitura dos sinais dos tempos, os valores da sexualidade e a reformulação das orientações éticas e espiri­tuais, a importância da indissolubilidade matri­monial e a situação dos divorciados, o caráter profético da Humanae Vitae e a razão para o controle da natalidade, as mútuas exigências entre fé e sacramento para a validez do matri­mônio, as dificuldades e perspectivas dos matrimônios mistos, o verdadeiro significado da pro­moção da mulher, a perniciosidade do aborto, o amplo tema da educação dos filhos, a função social e cultural da família etc.

Muitos problemas fazem ver a necessidade premente de evangelização da cultura, hoje, sobretudo com referência ao vasto tema da sexualidade. O problema da sexualidade é, em fim de contas, um dos mais significativos e também mais dramáticos do atual devir humano. Não se pode procurar resolvê-lo com atitudes ingênuas e antiquadas de simplificação, insistin­do unicamente sobre normas formuladas com materiais de outro tipo de cultura. Urge perce­ber e assumir a aprofundada complexidade dos dados constitutivos do nosso ser e acrescida relevância — com todas as suas expressões contraditórias — que o sexo manifesta nos com­portamentos sociais de hoje.

Somos chamados a procurar os sinais do Espírito do Senhor e a atualidade da mensagem do seu Evangelho a fim de responder com sabe­doria tanto ao pensamento iluminista (para o qual qualquer norma moral neste campo seria de competência somente da consciência indivi­dual), como à interpretação romântica (para a qual o amor humano seria como uma mitologia do sentimento sem apropriadas iluminações éticas), e também à ciência psicanalista (para a qual a sexualidade se reduziria fundamentalmente a uma “pulsão” que aflora à tona da consciência somente no momento da sua satis­fação).

Por outra parte, a privatização do matrimônio e da família parece dar origem a uma nova sociedade que, no seu conjunto, não se mostra interessada na consistência e na solidez dos valores matrimoniais e familiares. Isso torna extremamente insegura e frágil a chama­da “família nuclear” moderna, na qual o filho não aparece mais como um fruto do amor e um bem e uma ajuda, mas antes como um produto da racionalidade, um peso para a res­ponsabilidade e um problema para os recursos.

Por isso é tão desejada hoje, em todos os ambientes cristãos, uma palavra profética dos Pastores sobre este tema.

É verdade que o Sínodo permaneceu, por agora e de certa maneira, ainda aberto. Mas ofereceu um rico material de perspectivas defi­nidas e de conclusões concretas ao Santo Padre, para que as organize, elaborando uma Exorta­ção Apostólica sobre o tema. Refletir desde agora sobre as grandes orientações do Episco­pado com relação à Família significa preparar-se para melhor e prontamente assumir as escolhas e as diretrizes do novo documento.



2. A importância dada à família



Ao aprofundar as funções e os problemas familiares no mundo contemporâneo, os padres sinodais evidenciaram dois aspectos de sentido, diria, de certo modo oposto: de um lado, a den­sidade dos valores e as grandes perspectivas inerentes de per si à família; do outro, os limites da família e suas graves dificuldades concretas.



Primeiramente, foram afirmadas no Sí­nodo a amplitude, a beleza e a exigência das metas apontadas no projeto divino da família: o matrimônio como aliança de amor e o lar como célula primeira, matriz da sociedade.

À luz de tais riquezas evidenciou-se clara­mente que não se trata de um argumento seto­rial escolhido momentaneamente entre muitos outros mais ou menos igualmente importantes. A família não pode ser simplesmente “objeto” de uma programação para algum plano quin­quenal. Ela é “sujeito” central e indispensável de atividade civil e eclesial. Não deve, pois, ser encarada como sendo um dos problemas a serem enfrentados e resolvidos com simples prioridade de situação.

O homem de hoje — foi dito explicita­mente no plenário — vive angustiado por um cúmulo de problemas. O da família não é, sim­plesmente, um a mais entre tantos outros. Se a Igreja julgou oportuno dedicar-lhe um Sínodo específico é porque a família representa um lugar privilegiado para enfrentar, partindo dela, a problemática global do mundo contemporâ­neo. (Nós aqui no Sínodo) queremos refletir sobre a família não para comunicar aos homens algumas verdades sobre aspectos parciais dela, mas para novamente iluminar o significado da sua realidade com o Evangelho do Deus-Família, que nos criou à sua imagem e enviou à terra o seu Filho Unigênito para fazer de nós, com o preço do seu sangue, a “Família de Deus”, fa­mília de filhos e de irmãos. A família é o ponto de apoio de que precisamos para mover o mundo para Deus e restituir-lhe a esperança.

A família é minúscula, mas possui em si uma energia superior à do átomo... Da humilde pequenez de milhões de lares... a Igreja pode relançar o poder do amor necessário para fazer de Si mesma o Sacramento da unidade entre os homens” (Dom Francisco J. Cox, 14.10.1980).

O tema da família, pois, mais que um setor sobre o qual fazer convergir as nossas revisões programáticas, é um ângulo privilegiado do qual se pode repensar e projetar de maneira mais realista e inteligente, de acordo com o projeto divino, toda a pastoral.

E esse, caros irmãos, é um aspecto que nos interpela profundamente!



A segunda observação dos sinodais é a dos limites da família e de tantas tristes cons­tatações da sua realidade.

A família não é um absoluto; não foi projetada para si mesma, mas em ordem ao Homem, o qual deve poder crescer na história até realizar a sua felicidade no Reino de Deus.

Não é por nada que o Evangelho nos ensina que é necessário estar dispostos a deixar tudo, mesmo a família, em vista do Reino.

O amor conjugal é genuíno somente quando leva a transcender as paredes domésticas.

No longo caminho escatológico da Igreja, a família deve saber abrir-se a outros valores. Assim, por exemplo, deve saber apreciar e sus­tentar o valor paradoxal da virgindade que tes­temunha a meta definitiva segundo a qual a própria sexualidade deve ser aperfeiçoada.

Se então se observar a realidade circuns­tante (e isso, é pena, em todos os continentes), é preciso afirmar ainda que, de fato, a família é muitas vezes politicamente conculcada, cultu­ralmente deformada, economicamente oprimida e moralmente doente. Numa descrição sociológica objetiva, a família se apresenta como uma vítima necessitada de libertação e de promoção, mais do que como o centro vital e renovador da sociedade.

Por isso o Sínodo, em vista de tantas cons­tatações dolorosas, considerando que, por natu­reza, ela é sujeito de direitos e de funções basi­lares (anteriormente ao Estado e a qualquer sociedade), preocupou-se em reunir os elementos de uma futura “Carta” fundamental para uma política da família, que proclame os seus direitos, que possa servir de inspiração aos eventuais projetos de renovação dos Estados democráticos e que seja tida na devida conta por todas as sociedades intermédias (sem ex­cluir os Institutos religiosos).



3. Momentos proféticos que emergiram na experiência sinodal



A participação direta nos trabalhos do Sí­nodo ofereceu-me a oportunidade de perceber alguns aspectos vitais de um evento que se situa num nível entre os mais expressivos do mistério existencial da Igreja.

Lembro alguns que nos podem ajudar a formar-nos uma consciência mais eclesial de um acontecimento que foi captado, muitas vezes, só através dos meios de comunicação social, os quais costumam julgar e descrever as coisas partindo de posições bem diferentes das tão originais da nossa fé.



E como foi bonito constatar os progres­sos da colegialidade episcopal. Há quase vinte séculos existe na história humana uma espécie de profissão nova e original, exclusiva da Igreja de Cristo: é o ministério de “Pastor” exercido pelos bispos em comunhão com o Sucessor de Pedro. É um “ofício” inventado pelo Verbo encarnado, que faz crítica e profecia sobre tudo o que é humano (sexo, cultura, economia, polí­tica) sem descer do seu nível e sem identificar-se com nenhum setor específico, mas iluminando-os todos com a verdade da Revelação apre­sentada e aprofundada na variada riqueza de um concreto pluralismo cultural. Viu-se com satisfação geral o forte progresso realizado no exercício colegial desse ministério: clara conver­gência sobre os princípios e sobre as exigências da fé, e policroma riqueza de revestimentos culturais.



Percebi, além disso, a importância inderrogável do magistério eclesial na vida de fé. Nós cremos “eclesialmente”. Entre a fé da cons­ciência de cada um de nós e os dados históricos e científicos sobre os quais ela se pode basear (S. Escritura, Símbolos, Documentos qualifica­dos, Ciências teológicas) há um espaço essencial ao qual ninguém pode renunciar sem perigo de desvios e de subjetivismo: o da comunhão dos crentes guiada pelo ministério de Pedro e dos Apóstolos e dos seus Sucessores. Jesus Cristo não apoiou a nossa fé na análise de documentos (embora muito importantes), mas no testemu­nho vivo de pessoas críveis por Ele escolhidas, qualificadas e assistidas.

Neste sentido pude constatar a densidade de discernimento e a permanência dinâmica do ensinamento do Magistério sobre aspectos delicados e sujeitos a dura avaliação pelas novas disciplinas humanas. A sexualidade e a fecun­didade humana, para dar um exemplo, foram apresentadas pelos padres sinodais, com conver­gência unânime, à luz profética e duradoira da encíclica Humanae Vitae; acrescentou-se, como exigência pastoral, a preocupação, própria de cada momento histórico, de saber-lhe apre­sentar os argumentos válidos, em consonância com os tempos.



Sublinhou-se igualmente a função pecu­liar do Magistério de incrementar e de interpre­tar autenticamente o “sentido sobrenatural de fé” (LG 12), próprio de todo o Povo de Deus, de que fala a constituição dogmá­tica Lumen gentium (n. 35).

Não se pode deduzir o “sentido da fé” sim­plesmente de pesquisas sociológicas ou psicoló­gicas e de estatísticas (mesmo quando tais investigações trazem importantes elementos de aprofundamento da verdade e dados concretos para uma programação mais racional da ativi­dade pastoral). O sentido da fé é fruto do Espí­rito Santo; transcende qualquer delimitação de tempo (sintonia com os crentes de todos os séculos) e de espaço (sintonia com os crentes de todas as culturas), porque a fé abre aos horizontes universais de Cristo partindo da simplicidade e docilidade do coração: assim como testemunhou a humilde e pobre Maria de Nazaré (cf. Proposições n. 2.4).

Além disso os padres sinodais repropuseram com novidade e originalidade a extraor­dinária e arcana riqueza da doutrina cristã sobre o Matrimônio, partindo quer do mistério da Trindade, quer do da Criação, como do de Cristo e da Igreja. Há nela uma riqueza de ensinamento pastoral, anterior às “teologias”, que põe em evidência a função positiva e a densidade carismática do Magistério para a vida de uma fé que deve ser genuína.



A profecia da verdade proclamada pelos Pastores mostrou-se, particularmente, impreg­nada por uma consciente e indiscutível vontade de misericórdia. É inerente ao ministério pas­toral a preocupação de proceder com uma con­creta pedagogia de bondade.

Falou-se muito desse aspecto porque os bispos tiveram consciência de que o homem real (o homem ferido e abandonado na estrada), com as suas penas e desvios, é o “primeiro caminho” que a Igreja deve percorrer. Assim o ministério pastoral tem a tarefa delicada de harmonizar sempre entre si, com sensibilidade pedagógica, a verdade salvadora e a misericórdia divina; não uma ortodoxia que prescinda da bondade e da compreensão; não uma misericór­dia que ofenda a verdade.

Isso comporta todo um panorama pastoral prático, muito exigente e criativo, em favor dos que (e são tantos) foram por um cardeal defi­nidos como os “excepcionais do amor”.



Enfim, entre as propostas proféticas houve também a de não reduzir o Sínodo a uma espécie de clínica para as doenças da família, mas de saber relançar para o mundo contempo­râneo uma mensagem positiva, pondo em evi­dência os grandes valores intrínsecos ao projeto divino. Saber apresentar a família como uma “utopia” (no significado dinâmico e atraente desse termo), como um presente de Deus, como um pequeno núcleo de energia atômica para o futuro em todos os séculos, portadora de novi­dade, capaz de renovar sempre a cultura e a sociedade.



4. Dois valores fundamentais: o amor e a vida



A Mensagem para as famílias cristãs pro­mulgada no encerramento do Sínodo afirma, com expressão sintética: “Tudo o que dissemos sobre o Matrimônio e a Família pode ser resu­mido em duas palavras: amor e vida” (L’Osservatore Romano, 26.10.80).

São esses os dois grandes valores postos no centro de uma visão cristã renovada da família. O plano de Deus, diz a Mensagem, “verifica-se quando o homem e a mulher se unem intimamente no amor para o serviço da vida. O Matrimônio é aliança de amor e de vida”!

A família é chamada, pois, primeiramente a salvar e a cultivar o amor: “formar os homens no amor e educá-los a agir com amor em todos os relacionamentos humanos, de modo que o amor permaneça aberto para a comunidade e preocupado pelo sentido de justiça e de respei­to para com os outros, e também consciente da sua responsabilidade para com toda a socie­dade” (Mensagem).

E o amor está intrinsecamente ligado à vida; a ela se volta para dar-lhe significado, para dar-lhe origem, para cultivá-la, para defen­dê-la, para dar-lhe plenitude.

Na fidelidade a este sentido profundo do amor e da vida, a família por vezes “é obrigada a escolher para si um estilo de vida em con­traste com a cultura moderna a respeito de algumas coisas, como o uso da sexualidade, da autonomia e dos bens materiais” (Mensagem).

Na transmissão da vida através do amor atinge-se a raiz do mistério do homem, da dignidade da pessoa, do cume do ser, da beleza e responsabilidade da paternidade e da mater­nidade. Com razão lembra a Mensagem, de modo particular, a função do amor na trans­missão da vida como “inseparável da união conjugal”; nela, o amor deve ser genuíno: “plenamente humano, total, exclusivo e aberto a uma nova vida” (Humanae vitae 9 e 10).

Para realizar de modo adequado tão alta missão, na harmonia de aqueles dois grandes valores, são necessários a graça de Deus e o ministério da Igreja. É o Espírito do Senhor que torna possível a reatualização do verdadei­ro projeto de Deus através de uma difícil “conversão do coração” pela qual “se depõe o ‘velho’ homem para revestir o ‘novo’”.

Ora, se pensarmos em como aparece o amor e a vida na visão cultural moderna, perce­bemos imediatamente a coragem e a altura da profecia do Sínodo para a família hoje.

Vemos, com efeito, que o amor é falsificado e contrafeito de mil maneiras; a vida é conculcada e suprimida com frio cálculo e com vio­lências subversivas ou também legais.

Urge reevangelizar a cultura nas suas pró­prias raízes. Deve-se exorcizar a opinião pública de doutrinamentos ideológicos e modos egoístas. Deve-se derrotar um materialismo que está reduzindo amor e vida a biologia e química.

O clima ateu de muitas sociedades moder­nas fez crescer a angústia e a desorientação e uma mentalidade antinatalista; a ilusão sober­ba da “morte do pai” está desfazendo a convi­vência humana. Muitas sociedades são hoje infecundas porque se chegou a desprezar o matrimônio e a fecundidade. Os homens falam de virilidade e têm medo de serem pais; as mulheres falam de feminismo e têm medo de se tornarem mães. O amor foi separado da vida e, por isso mesmo, degradado. Não se conside­ram mais os seus recursos de martírio e o seu indispensável liame histórico com o sacrifício: não se olha mais a cruz como à expressão má­xima do amor (“id quo maius fieri nequit”!). Se amar é apenas sinônimo de experimentar um prazer, ficam inexoravelmente enterrados todos os grandes ideais do Homem chamado a ser protagonista no mundo.

Esta catástrofe psicológica é fruto da perda do sentido de Deus, do aniquilamento da cons­ciência acerca do Seu coração de pai, do esque­cimento da Sua bondade e misericórdia, do não acreditar mais no Seu amor para com a vida humana, amor tão incomensurável que enviou para nós o Seu Unigênito para que nos servisse até a total doação de si na Páscoa.

Com razão, o Sínodo concentrou a atenção sobre a família e se preocupou não simples­mente com enfrentar problemas éticos, mas sobretudo em realçar um clima de mística evangélica, ou seja, de vida familiar no Espírito Santo. Com efeito, moral sem espiritualidade não faz viver; o Espírito Santo, ao invés, forta­lece e vivifica, abre horizontes e tem abundan­tes reservas de energia; jamais desencoraja.

Eis então como se delineia na programação pós-sinodal, para todos os agentes de pastoral, um trabalho urgente e complexo de evangeliza­ção da cultura para revitalizar seus dois gran­des valores fundamentais, o amor e a vida.

E isso deve fazer-se para a família, com a família e através da família; embora conscientes das graves e até numerosas situações em que será preciso suprir a família; nesse caso, porém, será preciso saber interpretar seu peculiar espírito e a alta missão.



5. Algumas consequências para o nosso compromisso pastoral-educativo



É bom que desde agora enumeremos algu­mas diretrizes práticas que promanam do Síno­do e nos convidam a rever as nossas solicitudes de religiosos educadores e os nossos trabalhos apostólicos.

Mais que de longa descrição temos necessi­dade de clara e concisa enumeração das princi­pais consequências pastorais que nos devem interpelar. Eis algumas, que me parecem de especial interesse para nós.



Atitude profética de bondade



Na nossa maneira de realizar um apostola­do da família (através de nossa pastoral juve­nil) devemos saber partir, como o Sínodo, da comunicação positiva de uma mensagem de esperança radicada no conhecimento dos grandes valores do projeto de Deus sobre a família, na capacidade de percepção do bem que há em todo coração, na sensibilidade pedagógica das leis do crescimento, e numa inteligente e cons­trutiva aceitação da gradualidade.

Não, porém, uma gradualidade conciliadora de compaixão subjetiva e sentimental, mas uma gradualidade de genuína bondade e mise­ricórdia.

Se, por um lado, a misericórdia não se regula “unicamente com a medida da justiça”, por outro, porém, não significa nunca “indul­gência com relação ao mal, ao escândalo, ao erro ou à ofensa causada” (encíclica Dives in misericórdia 14).

Na homilia de encerramento do Sínodo, o Papa lembrou explicitamente que “a chamada ‘lei da gradualidade’ ou caminho gradual, não pode identificar-se com a ‘gradualidade da lei’, como se houvesse vários graus e várias formas de preceito na lei divina para homens e situa­ções diversas” (L’Osservatore Romano, 26.10.80).

A recente encíclica sobre a misericórdia pode ajudar-nos a aprofundar esta delicada e indispensável atitude. “O verdadeiro significa­do da misericórdia — diz o Papa — não consiste apenas no olhar, ainda que o mais penetrante e compassivo, com que se encara o mal moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se na sua verdadeira fisionomia quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal, existentes no mundo e no homem. Assim entendida, ela constitui o conteúdo fun­damental da mensagem messiânica de Cristo e a força constitutiva da sua missão” (Dives in misericordia 6).

Neste sentido é que a bondade se torna fonte de esperança!



A nossa atualização doutrinal



Os novos elementos culturais e o progresso das disciplinas do homem e da fé exigem ponhamos em dia nossa bagagem de conheci­mentos pastorais. Urge renovar-nos sobretudo no âmbito da teologia moral e do ensinamento social da Igreja. É uma atualização por zelar com seriedade e equilíbrio, na fidelidade ao Magistério, com a ajuda de especialistas bem escolhidos.

A próxima promulgação e os sucessivos e valiosos comentários da Exortação Apostólica sobre a família proporcionarão uma ocasião pro­pícia para realizá-lo.

Nessa atualização é urgente deixar-nos guiar pela verdade, como lembrou o Papa aos padres sinodais na homilia de encerramento: “Ninguém pode praticar a caridade senão na verdade. Este princípio vale tanto para a vida de cada família, como para a vida e ação dos Pastores, que verdadeiramente querem servir as famílias. Portanto, o fruto principal desta Sessão do Síno­do está principalmente em que as tarefas da família cristã, cuja essência é a caridade, não se podem cumprir a não ser vivendo plenamen­te a verdade. Todos aqueles aos quais, por pertencerem à Igreja — sejam leigos, sacerdo­tes, religiosos ou religiosas — foi confiada a colaboração nessa ação, não podem exercer o seu múnus senão na verdade. Porque é a ver­dade que liberta, é a verdade que ordena; é a verdade que abre o caminho à santidade e à justiça” (L’Osservatore Romano, 26.10.80).

E a verdade de que aqui se fala é a “salva­dora”; e garante-a o Magistério da Igreja, ainda que as disciplinas antropológicas lhe tenham dado e deem estimulantes elementos de progresso. Uma verdadeira competência, iluminada e pedagógica, no vasto e delicado campo da Moral foi sempre muito cara a Dom Bosco (basta lembrar a sua formação pós-seminarística no Colégio Eclesiástico) e objeto de especiais cuida­dos (sobretudo para os sacerdotes) na nossa tradição de educadores e confessores.

Para renovar a pastoral é indispensável que aprofundemos e atualizemos o significado vital da verdade salvífica!



Inserção ativa na Igreja local



Uma das consequências concretas do Síno­do em cada diocese deverá ser um repensamento da pastoral de conjunto de modo a fazê-la convergir para a renovação da família, antes de tudo para a sua identidade cristã e depois para as suas várias e graves tarefas.

Eu próprio pude salientar no Sínodo (cf. ACS 209. P. 48) a indispensabilidade de um projeto educativo na globalidade da pas­toral de conjunto, lembrando, a respeito, o espírito e as sugestões do documento Mutuae relationes. A aplicação dos critérios aí indica­dos poderia levar numerosas energias pastorais e muita capacidade apostólica (dos diferentes carismas existentes na Igreja local) a uma solu­ção mais eficaz dos vários problemas.

Nós, pois, não devemos ser nem surdos nem passivos na participação neste apelo a ser desenvolvido sobretudo na colaboração entre pais e agentes eclesiais de educação.





A presença na área da cultura e na escola



Sabemos que o lugar privilegiado da nossa missão de evangelizadores é o da área cultural, sobretudo no setor da educação e, por isso, de maneira particular também na escola e nos meios de comunicação social. O Sínodo insistiu claramente sobre a importância decisiva de uma urgente evangelização da cultura e sobre a atenção a ser dada à idade evolutiva para um crescimento cristão dela na difícil situação atual de pluralismo cultural.

É esse um dos empenhos mais importantes a favor da família. Além das várias interven­ções no plenário, bem 4 das 43 Proposições aprovadas pelos padres sinodais referem-se a esta tarefa tão grave e de enorme dimensão social e eclesial.

O Sínodo afirma que “a responsabilidade da educação corresponde em primeiro lugar aos pais e constitui a primeira tarefa (ou a primei­ra missão: “múnus”!) do seu ministério conju­gal, antes uma tarefa indeclinável e indelegável” (Sínodo, Proposição 26).

Na sua relação inicial, o Card. Joseph Ratzinger afirmou que numa mudança cultural e numa situação de pluralismo resulta indispensável perguntar novamente e com profundidade que é, afinal, a educação, porque ela já não pode ser interpretada partindo da pers­pectiva de uma “sociedade estabelecida”.

E acrescentava que, considerando a situa­ção concreta da família hoje e a sua missão, “a educação é essencialmente a introdução na capacidade de amar genuinamente; ou seja, a essência de toda educação é conduzir ao amor” (Relatio 4).

Será preciso, pois, trabalhar para que a família se torne de fato a “escola do amor”.

E todas as nossas instituições educativas deverão renovar-se, favorecendo a corresponsabilidade da família.

A Proposição sinodal 29 visa, de modo par­ticular, a uma substancial renovação da escola católica neste sentido.



Destaque dado à educação sexual



Um dos valores humanos aprofundados nos trabalhos sinodais foi o da sexualidade. Hoje se exige uma visão doutrinal mais atualizada e objetiva para superar uma espécie de dualismo maniqueísta que o transformou, na prática, num tabu supersticioso. Afirmou-se no Sínodo que o sexo é um dom extraordinário de Deus que impregna toda a personalidade de um indivíduo, proporcionando-lhe uma energia social que o enriquece em capacidade de relação.

O sexo não deve ser reduzido à sua função genital, mas é um aspecto irrenunciável da verdade integral do homem criado à imagem de Deus. É um elemento constitutivo de toda a existência pessoal.

Não se pode educar uma pessoa no amor, prescindindo da sua sexualidade.

Por outra parte é também verdade que as consequências do pecado atingiram, já na ori­gem humana, esse valor essencial. A depravação erótica das sociedades modernas comprova-o de maneira mais que exuberante.

Se quisermos hoje reativar, como dizia Paulo VI, uma “civilização do amor”, é indispensável que saibamos dar o devido relevo a uma educação sexual genuína e cristã.

Lamentavelmente algumas ideologias ho­diernas ou certa doutrinação de nível materialista falsamente revestida de dados “científicos” reduziram a sexualidade a uma realidade exclu­sivamente biológica, indiferente na ordem moral, da qual se deveria saber utilizar com um calculado tecnicismo segundo o gosto de cada um. Assim a “educação sexual” não passaria de uma instrução higiênico-orgânica (fisiológica e psicológica) para introduzir nos métodos para o uso do sexo, e assim poder desfrutar do prazer sem risco nem responsabi­lidade.

Contra estes erros — afirmou o Card. Ratzinger — a Igreja deve insistir sobre o tipo de educação que vá integrando a sexualidade, desde o início, na unidade do homem indiviso. Essa educação, por isso, é e deve ser sempre uma educação para a responsabilidade, para a fidelidade; numa palavra, uma educação para o amor” (Relatio III, 4).

Considerando a delicadeza característica do Sistema Preventivo de Dom Bosco neste campo e o dever primordial dos pais a respeito, deve­mos sentir, em primeiro lugar, a urgência de estarmos mais atualizados e sermos mais posi­tivos na visão cristã do homem integral, parti­cularmente com relação aos aspectos da sua sexualidade (e disso nos dá um luminoso exem­plo o atual Papa João Paulo II). Dessa maneira poderemos garantir explicitamente uma verda­deira “educação” sexual que, além dos aspectos fisiológicos e psicológicos, insista nos morais e espirituais como crescimento da pessoa na capacidade de amar.

Será oportuno não esquecer que somos portadores, por tradição carismática, de um projeto pedagógico original, no qual, justamen­te para o serviço do amor e da vida, têm lugar privilegiado os valores da delicadeza, a sensibi­lidade moral e a pedagogia preventiva com respeito a tantos desvios deletérios no campo da educação para a castidade.



Um empenho especial de catecumenato



Sublinhou-se no Sínodo a premente necessi­dade de mais cuidadosa pastoral pré-matrimonial (Proposição 35), pedindo-se a propósito a redação de um “Diretório pastoral”. As voca­ções eclesiais mais significativas (sacerdócio, vida religiosa, ministérios e compromissos apos­tólicos) têm todas elas um programa de prepa­ração, com seminários e noviciados ou com períodos apropriados de formação.

A vocação para o Matrimônio Cristão, que apresenta tantas tarefas delicadas e graves res­ponsabilidades quanto aos valores fundamentais da existência humana, geralmente não tem, de fato, uma adequada formação e preparação.

Urge, pois, preocupar-nos não só com uma educação remota (também ela indispensável), mas também com organizar uma preparação próxima e mais imediata que seja como uma etapa pré-matrimonial de catecumenato.

Será um setor especializado de pastoral juvenil, orientado para o amor conjugal e para a paternidade e maternidade responsáveis. Po­derão ser convidados a colaborar nessa inicia­tiva leigos especialmente competentes e homens de fé.



Entre os conteúdos da catequese matri­monial convirá desenvolver intensamente tam­bém o de uma “espiritualidade familiar”. A teo­logia do matrimônio e a indiscutível vocação dos cônjuges à santidade, moveram os padres sinodais a tratar com particular cuidado do tema de uma espiritualidade da família. Essa espiritualidade não se identifica por si (mesmo na Igreja latina) com a espiritualidade dos leigos, à qual, entretanto está estreitamente ligada.

Trabalhou-se então para reunir numa longa Proposição (n. 36) tudo o que os vários grupos linguísticos haviam exposto a propósito. De­verão ser desenvolvidos temas como: espiritua­lidade da criação, espiritualidade da aliança, espiritualidade da cruz, espiritualidade da res­surreição e espiritualidade do testemunho de uma característica caridade conjugal.

Eis aí um vasto campo no qual colaborar, trazendo para ele também os subsídios profun­dos e complementares da nossa consagração específica.



Além disso, a expressão conciliar com que se descreve a família cristã na Lumen gentium como “igreja doméstica” (n. 11) foi aprofundada, quer no sentido de levar a viver em casa o mistério de Cristo, quer (e não é menos importante) no sentido de sair de casa com o zelo apostólico do Cristo a fim de parti­cipar de maneira concreta na missão eclesial de serviço ao próximo e à sociedade.

Abre-se aqui amplo espaço para a animação ascético-mística, litúrgica, catequética, para fazer crescer e amadurecer a fé nos lares, para a renovação da oração, para o uso da Bíblia, para a valorização do Terço, para a preparação aos Sacramentos, para um comportamento cristão com os doentes, os anciãos, os moribun­dos etc. E ainda um vasto espaço para apro­priada animação pastoral em vista da assunção das responsabilidades eclesiais e sociais, entre os vizinhos, no bairro, na paróquia, no municí­pio, nos deveres civis e políticos, nos movimen­tos apostólicos diocesanos e nacionais, nas missões etc.

Em todo esse imenso setor há também a possibilidade de preparar subsídios válidos de acordo com os diferentes níveis culturais das famílias.



Significado inovador do tema da “mulher”



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O aprofundamento do amor e da vida levou a considerar e a apreciar ainda mais um dos sinais dos tempos atuais e particularmente significativos: a promoção da mulher.

Afirmou-se no Sínodo que “o tema da mulher atinge as raízes da crise da cultura moderna. Importantes pensadores descreveram a nossa civilização científico-técnica como uma civilização unilateralmente masculinizada. O culto da eficiência é uma deformação tipicamen­te masculina. Um antigo provérbio diz que o homem constrói a casa e que a mulher a trans­forma em lar!” (Dom Francisco J. Cox, 14.10.80).

O movimento feminista fez enlouquecer grandes valores que é preciso saber recuperar e promover. A mulher, com efeito, possui uma peculiar capacidade de humanizar e personalizar as relações e os ambientes (cf. Puebla 848); por isso é portadora de esperança na Igreja e na Sociedade. Se pensarmos no “amor”, ela interpreta a sua intimidade e a capacidade de doação (lembremos Maria na história da salvação!); se pensarmos na “vida”, ela é seu berço, nutriz e mãe.

O Sínodo apresentou propostas muito con­cretas a favor da libertação da mulher e da valorização social da sua missão específica, vi­sando à superação de um preconceito hoje em voga, isto é, que a independência da mulher deriva mais do favorecimento do seu trabalho fora de casa que da valorização do seu mister doméstico.

Afirmou-se, ao contrário, que a promoção da mulher não traz absolutamente consigo a sua masculinização, como se sua libertação con­sistisse em nivelá-la na medida do homem; con­siste antes no pleno desenvolvimento e no ama­durecimento da sua feminilidade.

Ao promover os direitos da mulher — diz a Proposição 16 — deve-se reconhecer primeiramente a igualdade entre a missão materna e familiar e a função pública e as outras profissões civis. Tais tarefas deverão, além disso, entrar cada vez mais no interior da evolução cultural e social. Por isso é para desejar, quanto ao caso, uma nova teologia do trabalho, que lhe desenvolva o significado na vida cristã e lhe indique a referência à família”.

Deve-se aqui refletir com mais cuidado sobre o patrimônio da tradição cristã para saber colaborar numa renovação social e eclesial que atinge todas as realidades e modos de vida e ação.

Uma devoção renovada e aprofundada a Nossa Senhora deveria servir-nos também para abrir grandes horizontes de renovação e cresci­mento neste campo (cf. Marialis cultus, so­bretudo 34-39).



6. Nexo íntimo entre família e consagração



Um aspecto ainda que considero particular­mente significativo para nós.

Foi bonito constatar durante o Sínodo, seja na relação inicial do Card. Ratzinger, seja num excelente esclarecimento do Card. Pironio, seja em várias intervenções notáveis de outros pa­dres sinodais, o intercâmbio mútuo de valores que se dá na vida da Igreja entre Matrimônio e Virgindade, entre vida conjugal e consagração.

Não há nas sociedades pagãs, pré-cristãs e pós-cristãs, um lugar de honra para a virgin­dade. Pode-se dizer que onde a fidelidade con­jugal não é estimada e cultivada, não são tam­bém reconhecidos os valores da virgindade. Onde a sexualidade não é considerada um grande dom do Criador, não se percebe também que a vir­gindade é um grande carisma do Redentor.

No Cristianismo, ao contrário, o fruto mais belo de uma família é a virgindade pelo Reino. Do amor e da vida conjugal desabrocha a flor mais bela da vida e do amor: Cristo e Maria foram justamente a melhor contribuição que uma família pôde fazer à humanidade, à sua vida global e à expressão máxima do seu amor.

Por outra parte, a vida consagrada traz à família uma capacidade especial de ser cristã, de superar as tentações contra o amor e de compreender e aceitar as dificuldades da vida.

Onde se torna possível a virgindade como forma de vida — observava o Card. Ratzinger —, aí se percebe de maneira luminosa o valor infinito do homem, não só pela sua alta função de transmissão da vida, mas especificamente pelo fato sublime de ser pessoa. Além disso, vivendo uma existência celibatária, o homem é chamado a uma relação especial com a comuni­dade, na qual consegue para si uma nova liber­dade. Uma liberdade pela qual a sua existência não é só para si e para os seus, mas é também para muitas outras pessoas provenientes de di­versas famílias; estabelece com elas uma nova e profunda comunhão, que foi chamada justa­mente ‘família de Deus’” (Relatio 11,4).

Ora a realidade social destes decênios nos está mostrando uma profunda crise da família e ao mesmo tempo da vida consagrada. Contra o amor cresceu a infidelidade e a satisfação do egoísmo; contra a vida aumentou a esterilidade e o envelhecimento. E isto, tanto no matrimônio como na consagração.

A crise levou ao esfacelamento dos laços familiares e de consagração e a um assustador rebaixamento dos dois grandes valores do amor e da vida.

Como uma das consequências vemos muitas crianças, meninos e jovens (demais!) que não conhecem hoje o bem insubstituível da família. Entretanto também para eles a Igreja é mãe e foi enviada por Cristo para ajudá-los a conhecer a Deus como Pai.

Há, pois, necessidade de muitas pessoas consagradas que lhe interpretem a maternidade. Há necessidade de mais vocações!

E aqui salientou-se no Sínodo a grande urgência de uma renovação de intercâmbio de bens espirituais entre casados e consagrados para o incremento de uma mais válida pastoral vocacional.

A família, qual “igreja doméstica”, será também o berço das vocações para a consagração pelo Reino. É este, sem dúvida, um dos principais papéis da família cristã.

Mas para fazer isso deve ser ajudada por sacerdotes, por religiosos e por religiosas nos seus difíceis compromissos e nas crescentes dificuldades suscitadas pelas novas situações culturais e sociais.

Fomentar esse intercâmbio espiritual e apostólico, pensar no ascendente social do tes­temunho acerca dos conteúdos evangélicos de cada estado de vida, sentir a complementariedade da vocação de cada um em ordem à tão diferente dos outros, apreciar e zelar pela variedade harmoniosa dos dons do Espírito na Igreja, viver a própria identidade, abrindo-a à co­munhão e à colaboração, é certamente uma das grandes metas pastorais que o Sínodo nos aponta.



7. O “espírito de família”



Não quero encerrar estas reflexões sucintas e exigentes sem aludir, ainda que rapidamente, ao estilo característico de realizar a nossa mis­são salesiana, ligado historicamente ao patrimô­nio sagrado da família cristã e que por tradição se chama “espírito de família”. Nasceu em Valdocco, nos primeiros tempos de Dom Bosco com mamãe Margarida.

Creio — escreveu a propósito Alberto Ca­viglia — que nunca se haverá de entender a fundo a razão íntima do seu sistema educativo, se não se tem em conta a fonte primeira da sua concepção, que era a lembrança e, digamos ainda, a saudade da vida daqueles primeiros tempos” (A. Caviglia: Vita di Domenico Savio — studio, p. 68; “Opere e scritti editi e inediti di Don Bosco”, vol. IV, Torino — SEI — 1943).

O ambiente de família é um dos postulados fundamentais do carinho no Sistema Preventivo.

Sem familiaridade — escrevia Dom Bosco de Roma em 1884 — não se demonstra afeto e sem essa demonstração não pode haver confian­ça. Quem quer ser amado deve fazer ver que ama. Jesus Cristo fez-se pequeno com os pe­quenos e carregou com nossas enfermidades. Eis o mestre da familiaridade” (Epistolario IV, 265).

Para alcançar esse objetivo é preciso que os educadores tenham o coração e a bondade característicos dos pais cristãos e transfor­mem a obra em que estão empenhados numa “casa”, onde haja compreensão, lealdade, since­ridade, indulgência e perdão, confiança cordial e afetuosa, clima de alegria e espontaneidade, regime filial de disciplina e gratidão. Como edu­cadores devemos lembrar sempre que é na fa­mília que reside radical e irrenunciavelmente o carisma e o ministério educativo.

Isso é particularmente importante quando pensamos nos destinatários aos quais Dom Bosco nos dedicou, os meninos “pobres e aban­donados”. A sua pedagogia é para os filhos do povo, os aprendizes, os necessitados de famílias humildes e decaídas, os emigrados, os sem fa­mília. “Sua pedagogia é e quer ser — escreveu o P. Caviglia — a pedagogia do pobre... Queria que ficasse bem clara a diferença entre os sis­temas ou métodos pedagógicos mesmo célebres, concebidos quase só para a sociedade burguesa e civil, e de qualquer maneira sem levar em conta as condições do pobre, e esta pedagogia de que Dom Bosco é, cumpre reconhecê-lo, o iniciador e o modelo clássico. Ela não é só o gesto caridoso de dar o pão ao filho do pobre, nem só a bondade que tem pena e compaixão da pobreza. Mas é toda uma concepção sistemá­tica, que parte da vida e da psicologia do pobre e se identifica com ele, para elevar-lhe o nível moral e espiritual, concretizando-se em aprecia­ções, preceitos, métodos, conformes à psicologia e à mentalidade do pobre... Nós o diríamos, com certa ousadia, uma pedagogia proletária, ou, pelo menos, a pedagogia do proletário...” (A. Caviglia: La vita di Domenico Savio” — Studio, p. 75; “Opere e scritti e inediti di Don Bosco”, vol. IV, Torino — SEI 1943).

Portanto, o compromisso da nossa Vocação salesiana deverá ser cumprido de maneira ca­racterizada com os humildes e os pobres. São eles que “têm necessidade, primeiramente, da ‘família’ e por eles Dom Bosco chegou — como escreve Pedro Braido — à sua invenção mais genial: o ‘carinho’ que educa no clima de uma família alegremente unida” (II Sistema Preven­tivo di Don Bosco, 2.a ediz. p. 195 PAS-VERLAG 1964).

O setor humano a cuja evangelização deve­remos sentir-nos fortemente convidados pelos apelos do Sínodo-80 e do Papa será preferencial­mente o dos ambientes populares. Assim reali­zaremos fiel e harmoniosamente o ideal da mis­são salesiana que foi justamente qualificado como “pastoral juvenil e popular”.



Queridos irmãos, enquanto as instâncias do Sínodo nos confirmam na vocação de consa­grados e na missão de educadores no setor po­pular, lembremos que exigem de nós especial capacidade de animação na Família Salesiana.

Queria lançar um apelo a todos os grupos que se inspiram em Dom Bosco: Que a próxima Exortação Apostólica do Papa sobre a família cristã seja considerada, desde agora, como calo­roso convite da Igreja a todos nós para em­penhar as energias da espiritualidade e do projeto apostólico próprio de cada grupo em favor da família.

Nós salesianos, principalmente, devemos trazer fortemente à consciência as “particulares responsabilidades” (Constituições 5) que temos em relação aos vários grupos, aos quais somos destinados a oferecer “o nosso serviço espiritual de preferência” (Regulamentos 30).

Pois bem: o tema do Sínodo sobre a família cristã constitua, no futuro, um lugar privilegiado para a nossa animação e programação pastoral, concentrando nelas a inventiva e criatividade que tanto nos recomendaram os dois últimos Capítulos Gerais.

Deveremos por certo dar atenção preferen­cial aos numerosos casais de Cooperadores, Ex-alunos, colaboradores e aos jovens que se pre­param para o casamento.

Peçamos a Nossa Senhora — estou escre­vendo no clima da festa da Imaculada, tão signi­ficativa para nós — que interceda por nós e nos assista. Seja Ela sempre a nossa “mestra” e a nossa “guia” no seguimento de Cristo num intenso trabalho diário projetado e vivido com o estilo familiar de Dom Bosco.

A todos asseguro a minha oração e faço a cada um os melhores votos para o novo ano.

N
o Senhor,

P. Egídio Viganò

Reitor-Mor

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