ACG439_Artime_Como_fermento


ACG439_Artime_Como_fermento

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1. CARTAS DO REITOR-MOR
1.1. ESTREIA DO REITOR-MOR, P. ÁNGEL FERNÁNDEZ
ARTIME, PARA 2023
SOCIETÀ DI SAN FRANCESCO DI SALES
SEDE CENTRALE SALESIANA
Via Maria Ausiliatrice, 32 - 10152 Torino
Il Rettor Maggiore
COMO FERMENTO NA FAMÍLIA HUMANA DE HOJE
A DIMENSÃO LAICAL DA FAMÍLIA DE DOM BOSCO
1. O fermento do Reino. 2. O Reino de Deus continua a crescer no
nosso mundo, entre luzes e sombras. 3. A família humana precisa
de filhos e filhas responsáveis. 4. O leigo, um cristão que “santifica o
mundo a partir de dentro”. 5. A família de Dom Bosco chamada a ser
fermento. 6. À sombra de uma grande árvore com frutos esplêndidos.
7. Os nossos jovens como FERMENTO no mundo de hoje.
Roma/Turim-Valdocco, 20 de dezembro de 2022.
Caríssimos Irmãos,
Durante a reunião da Consulta Mundial da Família Salesiana,
realizada em maio de 2022, em Valdocco-Turim, foi-me pedido que
aprofundasse, com a Estreia de 2023, o tema da dimensão laical da
Família Salesiana: uma família que procura ser sempre fiel ao Senhor

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ATOS DO CONSELHO-GERAL
nos “passos” de Dom Bosco. Este comentário destina-se a responder
a esse pedido.
Quero recordar, primeiramente, que a Estreia 2023 é dirigida a
dois grupos.
Os primeiros são os adolescentes e os jovens de todas as presenças
da Família de Dom Bosco no mundo — como os primeiros “destina-
tários” da missão salesiana. Eles, de fato, desde o início, estiveram
presentes nas casas salesianas e no centro da atenção de todos os gru-
pos da nossa família, e precisam conhecer — como cristãos ou mesmo
como crentes de outras religiões — a força da mensagem do Senhor:
«ser sal da terra e luz do mundo»; ser fermento na família humana de
hoje. Trata-se de um compromisso muito belo, de uma bela maneira de
viver a própria vocação; e, ao mesmo tempo, de um desafio precioso
para nós, educadores, que temos a tarefa de acompanhar os jovens no
caminho da vida para que ela seja vivida sob a bandeira do empenho
e da responsabilidade, na busca da fraternidade e da justiça para todos
e para cada um.
Ao mesmo tempo, a Estreia também é dirigida a todos os grupos da
Família Salesiana, convidados a redescobrir (ou descobrir) a dimen-
são laical própria da nossa família e a complementaridade vocacional
que existe e sempre deverá existir entre nós.
À luz do que mais caracteriza a nossa pedagogia e a nossa espiri-
tualidade, pretendemos ajudar sobretudo os adolescentes e os jovens
a descobrirem que cada um deles é chamado a ser como o fermento
de que fala Jesus: o bom fermento que ajuda a fazer crescer e tornar
saboroso o «pão» da família humana. Cada um deles é chamado a
ser um verdadeiro protagonista porque, à sua maneira, é «uma missão
sobre esta terra».1
Para a Família de Dom Bosco, quer ser uma mensagem que a en-
coraje vigorosamente a redescobrir a sua dimensão laical. Na verdade,
ela é uma família em que a maioria dos membros é formada de leigos:
homens e mulheres de muitas nações, distribuídos por todos os conti-
nentes. A variedade que nos distingue é em si mesma um dom e uma
responsabilidade que não podemos recusar. Ser tão rico em cultura e
tão amplamente presente no mundo é fruto da história da missão e do
carisma em que fomos gerados e que são um dom do Espírito. Viver
1 EG, 273; ChV, 25.

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 7
juntos como povo de Deus (laós = povo, do qual provém leigo, ou
seja, membro do povo) para o bem dos jovens do oriente ao ocidente
do globo, do sul ao norte, está em plena sintonia com o que a Igreja
pede insistentemente há muito tempo, e é do que o nosso mundo frag-
mentado precisa sempre mais.
Como consagrados e consagradas na Família Salesiana, somos
igualmente convidados a ser “fermento na massa do pão da humanida-
de” e a viver uns com os outros, deixando-nos enriquecer pela secula-
ridade evangélica de tantos irmãos e irmãs. Com eles, de fato, partilha-
mos grande parte dos nossos dias. Portanto, a secularidade já está no
nosso DNA de salesianos consagrados e consagradas, porque fomos
gerados na família à qual Dom Bosco deu vida no primeiro Oratório e
que, desde o início, era formada por consagrados e leigos. Nascemos
com esta intensa proximidade e participação entre estados de vida e
vocações. Enfim, e para dizer em poucas palavras, somos chamados
como Família a doar-nos e complementar-nos reciprocamente.
1. O fermento do Reino
Jesus disse ainda:
«A que posso comparar o Reino de Deus?
É semelhante ao fermento que uma mulher toma
e mistura em três medidas de farinha
e toda a massa fica fermentada.» (Lc 13,20-21)
O fermento trabalha silenciosamente. A fermentação acontece
no silêncio, assim como a ação do Reino de Deus; trabalha “a partir
de dentro”.
Quem, de fato, consegue ouvir o fermento enquanto atua na farinha
e na massa em que foi colocado, enquanto fermenta a massa toda?
Esta imagem permite-nos compreender a ação do Reino de Deus.
O próprio apóstolo Paulo apresenta o Reino recordando o essencial:
«O Reino de Deus, de fato, não é nem comida nem bebida, mas jus-
tiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17). Pois bem, este é o

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ATOS DO CONSELHO-GERAL
modo de o Espírito agir interior e invisivelmente; é o fermento colo-
cado no coração. E, como o fermento realiza a sua ação através do
contato direto, o mesmo acontece com o Evangelho.
A parábola do fermento, escolhida como tema da Estreia 2023,
possui uma grande sabedoria evangélica e pedagógica apresentando
um vigoroso valor educativo: ela expressa de forma completa a natu-
reza do Reino de Deus que Jesus viveu e ensinou.
Há várias interpretações e ênfases possíveis. A minha opção in-
terpretativa para a Estreia deste ano é apresentar o fermento como
imagem-símbolo da fecundidade e do crescimento, típicos do Reino
de Deus. Reino que no coração das pessoas fecunda o chamado à vida,
a vocação que Deus nos plantou, orientando a missão dos leigos e da
família inteira de Dom Bosco no mundo todo.
«Um pouco de fermento faz fermentar a massa inteira» (Gl 5,9).
Impressiona ver como uma porção de farinha dobra ou triplica o seu
volume graças à adição de uma pitada de fermento. O Senhor diz que
o Reino de Deus é como o fermento que fermenta a farinha amassada
e prepara o pão. O fermento, como Jesus ressalta, não é um elemento
presente em grandes quantidades. Pelo contrário, usa-se muito pou-
co dele. Mas o que o distingue é ser o único ingrediente vivo e, por
estar vivo, tem o poder de influenciar, condicionar e transformar a
massa inteira.
Podemos afirmar, então, que o Reino de Deus é
«uma realidade humanamente pequena e de aparência irrele-
vante. Para fazer parte dele é preciso ser pobre de coração; não
confiar nas próprias capacidades, mas no poder do amor de
Deus; não atuar para ser importante aos olhos do mundo, mas
precioso aos olhos de Deus, que tem predileção pelos simples
e humildes... o Reino de Deus requer a nossa colaboração, mas
é sobretudo iniciativa e dom do Senhor. A nossa obra frágil,
aparentemente pequenina face à complexidade dos problemas
do mundo, se for inserida na de Deus, não receia as dificulda-
des. A vitória do Senhor é certa: o seu amor fará germinar e
crescer todas as sementes de bem presentes na terra. Isso nos
abre à confiança e à esperança, não obstante os dramas, as in-
justiças, os sofrimentos que encontramos. A semente do bem e

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 9
da paz germina e desenvolve-se, porque o amor misericordioso
de Deus a faz amadurecer».2
2. O Reino de Deus continua a crescer no nosso mundo, entre luzes
e sombras
No Evangelho, o Reino vem com o próprio Jesus: é a sua presença,
a sua palavra — ele, o Verbo feito carne. É o seu modo de viver com o
povo, misturando-se com pessoas de todas as camadas sociais, entre as
quais Ele prefere aqueles que os outros excluem. Há uma passagem no
Evangelho segundo Mateus que abre uma janela sobre o modo como
o Reino de Deus é vivido por Jesus.
«Os fariseus saíram e deliberaram sobre os meios de o matar.
Jesus ao saber disso afastou-se daquele lugar.
Uma grande multidão o seguiu, e ele curou a todos e impôs-lhes de não o
divulgar,
para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías:
“Eis o meu servo a quem escolhi,
o meu bem-amado em quem pus toda a minha afeição.
Porei o meu Espírito sobre ele
e ele anunciará a justiça às nações.
Ele não contestará nem gritará;
não se ouvirá a sua voz nas praças.
Não quebrará o caniço rachado,
nem apagará a mecha que ainda fumega,
até que faça triunfar a justiça.
Em seu nome as nações pagãs porão a sua esperança”» (Mt 12,14-21).
Jesus age como fermento no meio do povo mais simples, entre os
pobres e os doentes carentes de cura.
«E ele curou a todos»: é o aspecto «laical» de Jesus, entre o laós, o
seu povo, em os quais não há diferença de classe social ou proveniência;
2 Francisco, Ângelus, Roma, 14 de junho de 2015.

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10 ATOS DO CONSELHO-GERAL
em que todos parecem unir-se pela pobreza e pela necessidade de aju-
da. Uma vulnerabilidade que não lhe é estranha, como apresentam os
primeiros versículos, que falam da clara hostilidade dos fariseus: sinal
premonitório da cruz que se aproxima e, quando Ele se faz pobre para
nos enriquecer, alcançando a sua plena realização (cf. Jo 19,30).
«Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei
penitência e crede no Evangelho» (Mc 1,14-15). A expressão está
presente 122 vezes no Evangelho e 90 vezes nos lábios de Jesus.
Como o grande teólogo Karl Rahner expressou muitas vezes, é evi-
dente que o Reino de Deus está no centro da pregação de Jesus.
Jesus viveu o Reino em plenitude, demonstrando em sua ação o amor
incondicional de Deus pelos últimos, e o seu modo de vida é assu-
mido como por osmose pelos doze e continuado na Igreja primitiva:
«Aquele que crê em mim também fará as obras que eu faço e fará
obras ainda maiores» (Jo 14,12).
Também hoje reconhecemos que há muito de bom sendo feito e
crescendo em todas as latitudes, neste Reino em construção. Tam-
bém reconhecemos a presença de muita dor: uma aflição que muitas
vezes é consequência direta do nosso modo de ser e agir no interior
da família humana.
Somos chamados a abrir os olhos e os corações ao modo de agir
de Deus, que estabelece o seu Reino de acordo com os seus caminhos.
Sintonizando-nos com a sua maneira de ser e agir, colaboramos com
Ele, como trabalhadores na sua vinha. Caso contrário, ela deixa de ser
“de Deus” para ser somente uma obra nossa.
A abertura universal que nos caracteriza como Família Salesiana
está em plena harmonia com o Evangelho do Reino. A proximidade
com muitas comunidades humanas diferentes em cerca de 75% dos
países do mundo já é um potencial formidável de unidade e missão.
A Igreja é constituída por mais de 99% de leigos. Imaginemos como
a proporção aumenta se considerarmos e abraçarmos toda a família
humana: os leigos são a massa, além de fermento do Reino. Como
São João Paulo II escrevia há mais de 30 anos, neste vasto mundo, «a
missão está apenas nos inícios».3
3 João Paulo II, Carta encíclica Redemptoris missio, Roma, 7 de dezembro de 1990,
n. 40.

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 11
Às vezes, a nossa contribuição humana ou os nossos pequenos es-
forços podem parecer insignificantes, mas perante Deus são sempre
preciosos. Não devemos nem podemos medir a eficácia ou os resulta-
dos dos nossos esforços calculando o quanto investimos neles, o esfor-
ço que exigem de nós, como se fossem os únicos fatores envolvidos,
já que a razão e o movente de tudo é Deus. Não nos percamos em
desculpas que paralisam a missão e a construção do Reino. Para Dom
Bosco, também o ótimo pode ser inimigo do bom: não é preciso espe-
rar pelas circunstâncias ideais para dar o primeiro passo. O estilo do
Reino vivido de acordo com o carisma salesiano é este: ter consciência
dos nossos limites, livres do triunfalismo e do gosto da autorreferência
estéril e, ao mesmo tempo, cheios de confiança, certos de que sempre
começamos por «um ponto acessível ao bem».4
Contemplando a realidade com os “olhos” e o “coração” de Deus,
compreenderemos que a pequenez e a humildade não significam fra-
queza e inércia. É pouco o que podemos fazer diante do muito que nos
é exigido. No entanto, nunca é “não suficiente” ou irrelevante, porque
é Deus quem nos faz crescer. É a força de Deus que vem em nosso
auxílio. E, enfim, é Deus quem acompanha o nosso trabalho, os nossos
esforços, o nosso ser um pobre fermento na massa. Desde que façamos
tudo e sempre em seu nome.
3. A família humana precisa de filhos e filhas responsáveis
«As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens
de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são
também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente
humana que não encontre eco no seu coração»5.
Assim começa a Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concí-
lio Vaticano II. Dentro de três anos, comemoraremos o 60o aniversário
da sua promulgação.6 Ela marcou e continua a marcar o horizonte em
que a Igreja é chamada a se mover: um panorama tão familiar aos que,
4 MBp V, 316.
5 GS, 1.
6 A Constituição foi promulgada por ocasião da celebração das Vésperas da Sole-
nidade da Imaculada Conceição em 7 de dezembro de 1965.

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12 ATOS DO CONSELHO-GERAL
na Igreja e no mundo, realizam uma missão como a de Dom Bosco,
em que a vitalidade juvenil e a compaixão por aqueles que são pobres
e sofrem estão sempre presentes.
É um convite a sentir-nos solidários e a entrar sem temores neste
tempo que nos é dado viver, com desafios que parecem crescer em
intensidade, sempre mais globais e nos quais os primeiros a serem
afetados, muitas vezes de modo trágico, são os segmentos mais jovens
da população.
É um estímulo para descobrir o significado da própria existência
sabendo que a minha vida nunca está isolada da de todos os outros.
O “eu” e o “nós” só podem existir juntos e viver bem. A parábola do
fermento e a proposta desta Estreia ajudam a sintonizar-nos com os
processos em evolução que moldam a história humana. O fermento
amalgamado com a massa do pão precisa do próprio tempo para fer-
mentar; e nós também temos a responsabilidade e o compromisso de
construir esta família humana para que o mundo seja mais habitável,
mais justo, mais fraterno.
Conhecemos o quanto de bem nos rodeia, mas também o sofri-
mento, a injustiça e o sofrimento que, como já disse, ainda oprimem
o mundo em que vivemos. O Papa Francisco lembra-nos exatamente
disso quando afirma:
«cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das ge-
rações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o cami-
nho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não
se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados
cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve
no passado nem se instalar a gozá-lo como se esta situação nos
levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem
situações de injustiça que nos interpelam a todos».7
Aumenta o grito dos pobres, a maioria dos quais são crianças,
adolescentes e jovens; enfrentamos desafios que são tão extensos
quanto os que encontramos nas origens da nossa missão. Nascemos
para este tempo não menos do que Dom Bosco para o dele. Senti-
mos intenso o chamado que vem da família humana da qual fazemos
parte como indivíduos e como comunidade; família marcada e ferida
7 FT, 8 e 11.

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 13
pela carência premente de justiça e dignidade para os últimos e os
descartados;8 carente de paz e fraternidade;9 necessitada de cuidados
pela casa comum.10
Não menos forte e radical, ou seja, na raiz de todos os anseios, es-
tão a necessidade da verdade11 e a necessidade de Deus.12
Diante desta realidade, precisamos viver muito conscientes da im-
possibilidade de adiar para amanhã o bem que podemos e devemos
fazer hoje. Somos chamados a ser o fermento que transforma a família
humana a partir de dentro. É um mandato fundamental e coincide com
a nossa própria vida, com o nosso ser humanos: ninguém pode se reti-
rar ou se considerar excluído desse mandato.
Por isso, como membros da Família de Dom Bosco e inspirados
pela dinâmica evangélica do fermento, pretendemos aprofundar e re-
conhecer a riqueza de fazer parte desta Família, humana e salesiana,
na qual muitos nesta Família de Dom Bosco são leigos e leigas, e em
que, como consagrados, devemos enriquecer-nos desta complementa-
ridade.13 Ser leigo é um estado de vida, uma vocação que caracteriza
de maneira tão preponderante todas as presenças no mundo que, de vá-
rias maneiras, se identificam ou se sintonizam com a Família de Dom
Bosco. Reconhecidos e unidos como autêntica família, queremos va-
lorizar ao máximo o dom da sua vida, a força da sua fé, a beleza da
sua família, a sua experiência de vida e trabalho, a sua capacidade de
interpretar e viver o carisma e a missão de Dom Bosco para os jovens
e para o mundo de hoje.
4. O leigo, um cristão que “santifica o mundo a partir de dentro”
As coisas estão assim: o leigo na Igreja e na Família Salesiana é e
sempre será um cristão comprometido que “santifica o mundo a partir
de dentro”.
8 Cf. FT, 15-17; 18-21; 29-31; 69-71; 80-83; 124-127; 234.
9 Cf. FT 88-111; 216-221; ChV 163-167.
10 Cf. toda a Encíclica Laudato Si’.
11 Cf. LF 23-25; FT 226-227.
12 Cf. LF 1-7; 35; 50-51; 58-60.
13 Cf. J. E. Vecchi, La famiglia salesiana compie venticinque anni, in M. Bay (ed.),
Educatori appassionati esperti e consacrati per i giovani. Lettere circolari ai
Salesiani di don Juan E. Vecchi, LAS, Roma 2013, 137.

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14 ATOS DO CONSELHO-GERAL
Um olhar correto e atento sobre a eclesiologia proposta pelo Con-
cílio Vaticano II permite-nos declarar que hoje, especialmente como
cristãos, não podemos aceitar (e muito menos encorajar) um dualismo
entre sagrado e profano na realidade de um mundo que foi criado por
Deus. Certamente a deriva dualista ocorreu quando a legítima autono-
mia das “coisas seculares” não foi adequadamente compreendida, em
oposição às “coisas sagradas” ou religiosas.
A Igreja, desde as origens do cristianismo e especialmente desde o
Concílio Vaticano II, reconheceu claramente a relação do cristão com
o mundo em que vive; mesmo em uma sociedade onde ser cristão era
e é algo marginal.
A Carta a Diogneto (século II d.C.) — na minha opinião uma bela
obra da literatura cristã primitiva — oferece uma descrição admirável
do cristão no mundo:
«Os cristãos, na verdade, não se distinguem dos outros ho-
mens, nem pela sua terra, nem pela sua língua ou costumes. Na
verdade, não moram em cidades próprias, nem falam língua
estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina
não foi inventada por eles, graças ao talento e à especulação
de homens excêntricos, nem professam, como outros, algum
ensinamento humano.
Vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de
cada um, e adequando-se aos costumes do lugar quanto à rou-
pa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida ad-
mirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem em sua pátria, mas
como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam
tudo como estrangeiros; toda pátria estrangeira é sua pátria,
mas vivem em cada pátria como em terra estrangeira. [...]
Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim
também estão os cristãos no mundo. A alma está espalhada por
todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as partes
do mundo [...].»14
É um texto magnífico e muito útil para compreender a laicidade
cristã que pretendemos apresentar, indicado no título da Estreia com
«dimensão laical» da vida cristã e da nossa Família Salesiana.
14 Carta a Diogneto (Cap. 5-6; Funk 1, 317-321).

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2.1 Page 11

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 15
A Família Salesiana de Dom Bosco é chamada hoje a viver no
mundo como fermento, colaborando, a partir da própria condição de
crente, na construção de um mundo melhor, onde quer que esteja-
mos, independentemente de nação, cultura ou religião. A Igreja deu
um nome a este amplo campo de ação: a natureza secular da vocação
dos leigos.
«O caráter secular é próprio e peculiar dos leigos. [...] Por vo-
cação própria, compete aos leigos buscar o Reino de Deus tra-
tando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus.
Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e ati-
vidade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e
social, com as quais é como que tecida a sua existência. São
chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofí-
cio, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santi-
ficação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e assim
manifestem Cristo aos outros, antes de mais nada pelo teste-
munho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e
caridade. Portanto, a eles compete especialmente iluminar e
ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estrei-
tamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e
progridam e glorifiquem o Criador e Redentor».15
E não é menos verdadeiro que a condição dos fiéis leigos é comum
a todos, e que todos somos corresponsáveis do Reino.
«Teologicamente, a laicidade da Igreja é entendida a partir do
significado da relação igreja-mundo e do sacerdócio comum,
da profecia e da dimensão real; todo batizado é membro de
uma Igreja que deve servir ao mundo para tornar presente a
vontade salvífica de Deus e Seu Reino, mesmo que todo ba-
tizado exerça ou desenvolva essa secularidade de uma forma
15 LG, 31. A exortação apostólica Christifideles laici (1988) sintetiza muito bem que
é tarefa de todos os batizados, embora de diversas maneiras, ser fermento no
mundo: «As imagens evangélicas do sal, da luz e do fermento, embora se refiram
indistintamente a todos os discípulos de Jesus, têm uma aplicação específica nos
fiéis leigos. São imagens maravilhosamente significativas, porque falam não só
da inserção profunda e da participação plena dos fiéis leigos na terra, no mundo,
na comunidade humana, mas também e, sobretudo, da novidade e da originali-
dade de uma inserção e de uma participação destinadas à difusão do Evangelho
que salva» (Cf. ChL 15).

2.2 Page 12

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16 ATOS DO CONSELHO-GERAL
particular, de modo que haja uma diversidade de ministérios e
funções e, em certa medida, de «presença e situação» no mun-
do, na história e na sociedade».16
É importante entender em que consiste esse «estilo cristão» como
modo de estar presente na sociedade, segundo o Concílio Vaticano II;17
o caminho a seguir para a evangelização e a ação missionária da Igreja
numa sociedade em que a religiosidade não pode mais ser considerada
como algo óbvio e sempre presente.
Ao reconhecer a “autonomia do profano” como um aspecto le-
gítimo da secularidade, a teologia preocupa-se em distinguir entre a
autonomia das tarefas profanas e o reino do religioso, com o legíti-
mo direito à coexistência de ambas as realidades. Em outras palavras,
destaca o aspecto legítimo da laicidade, que é muito diferente do “se-
cularismo” associado a uma secularização radical inimiga de tudo que
seja religioso. O fato religioso em seus vários “credos” tem todo o
direito de existir e de ter “carta de cidadania”. O Concílio Vaticano II
é decisivo sobre esse propósito:
«Muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a li-
gação íntima entre a atividade humana e a religião constitua
um obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades
ou das ciências. Se por autonomia das realidades terrenas se
entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis
e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrin-
do, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir
tal autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do
nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a
vontade do Criador [...].
Seja permitido, por isso, deplorar certas atitudes de espírito
que não faltaram entre os mesmos cristãos, por não reconhece-
rem suficientemente a legítima autonomia da ciência [...]. Se,
porém, com as palavras “autonomia das realidades temporais”
se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o
homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém
16 R. Berzosa, «¿Una teología y espiritualidad laical?», Revista Misión Abierta,
(mercaba.org/fichas/laico).
17 Cf. C. Theobald, La fede nell’attuale contesto europeo. Cristianesimo come stile,
Queriniana, Brescia 2021, 96-146.

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 17
que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais asserções.
Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste».18
A antropologia cristã deve procurar traduzir, hoje assim como no
passado, os valores e a mensagem de salvação transmitida pelo Evan-
gelho para a linguagem das diversas sociedades e culturas do mundo.
Trata-se de harmonizar a legítima autonomia do homem com a vali-
dade, autenticidade e coerência da fé cristã. Este é o desafio para o
crente, para os fiéis cristãos e para nós em nossa missão como Família
de Dom Bosco: respeito por todos, mas sem temor e vergonha pela
nossa condição de crentes!
A Igreja, com a voz do Concílio Vaticano II, recorda-nos que é um
grave erro separar a vida quotidiana da vida de fé.
«Afastam-se da verdade os que, sabendo que não temos aqui
na terra uma cidade permanente, mas que vamos em demanda
da futura, pensam que podem por isso descuidar dos seus deve-
res terrenos, sem atenderem ao que a própria fé ainda os obri-
ga mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um.
Mas não erram menos os que, pelo contrário, opinam poder
entregar-se às ocupações terrenas, como se estas fossem intei-
ramente alheias à vida religiosa, que pensam consistir apenas
no cumprimento dos atos de culto e de certos deveres morais.
Esta dissociação entre a fé que professam e o comportamento
quotidiano de muitos deve ser contado entre os mais graves
erros do nosso tempo».19
Trata-se de viver como cristãos em um mundo que não será melhor
sem o pequeno fermento que o cristianismo traz ao mundo criado por
Deus. É pela humildade, mas também pela convicção do valor da nos-
sa fé, em diálogo com as diversas sociedades e culturas, que podemos
contribuir para melhorar a vida das pessoas ao nosso redor, renuncian-
do a toda lógica de proselitismo ou imposição. Para dizer com as pa-
lavras de um magnífico pastor e homem de reflexão capaz de dialogar
com a cultura, o Cardeal Carlo Maria Martini: «Brandir um credo, seja
ele científico, filosófico ou teológico, para conseguir fechar as contas
impondo uma solução, é uma dolorosa premissa para uma ideologia
18 GS, 36.
19 GS, 43.

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18 ATOS DO CONSELHO-GERAL
que é fonte de violência».20 Mas também não é aceitável que os cris-
tãos de todos os tempos — e especialmente de hoje — pratiquem um
confortável irenismo ou uma tolerância que reduz a coerência, o teste-
munho e a autenticidade pessoal e comunitária.
E, como o fermento na massa passa quase despercebido, também
a nossa colaboração na edificação da Igreja e na construção de uma
sociedade mais humana, mais justa e mais de acordo com a vontade
de Deus, pede-nos para considerarmos que é mais importante fazer o
bem do que ser-nos atribuído o bem que é feito; o mais importante será
sempre contribuir para o bem da sociedade e do mundo, mesmo “sem
direitos autorais”, sem confundir ação efetiva com protagonismo, re-
conhecendo, ao mesmo tempo, que o bem que é feito pelos outros é
no mínimo tão valioso quanto o nosso. Se não estivermos convenci-
dos, releiamos a passagem do Evangelho em que o Senhor corrige os
discípulos por tentarem impedir o bem que outros estavam fazendo,
mesmo não sendo do “grupo deles”.
Devemos exercitar-nos para uma leitura crente da realidade que
inclua outros, promovendo o diálogo com os outros, com a cultura,
com os meios de comunicação, com os intelectuais, com aqueles que
pensam diferente e até mesmo em oposição a nós. Esses são os hábitos
virtuosos exigidos pela nossa maneira de estar no mundo, o “estilo
cristão e salesiano” que podemos trazer para a visão do mundo e das
coisas.
Esse estilo permitirá tecer relações com outras pessoas consagra-
das, com outros ministros ordenados, com outros fiéis leigos, com ou-
tros cristãos e com outros homens e mulheres de outras religiões. Pa-
rece que essa é uma boa maneira de ser «chamados a contribuir, como
a partir de dentro como fermento, para a santificação do mundo». Um
modo de fazer as coisas que nos coloca em sintonia com «a vocação
universal à santidade na Igreja». E como a Igreja está envolvida no
mundo na dupla dimensão transcendente e imanente, todo cristão deve
ser um sinal do Reino de Deus já presente na história humana. Se a
piedade e a devoção, a vida de oração e a vida sacramental enfatizam
o perfil transcendente desta santidade, o compromisso social com a
justiça e a fraternidade humana ressalta, para nós, a dimensão cristã
20 Cf. C. M. Martini, Los movimientos en la Iglesia, LEV, 1999, p. 156 (tradução do
autor para a língua italiana).

2.5 Page 15

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 19
imanente. Como Dom Bosco, vivemos com os pés no chão e os olhos
fixos no céu. Nesse sentido, um membro qualificado da nossa Família
Salesiana ofereceu-nos a própria reflexão vital como leigo no mundo
e na Família de Dom Bosco, definindo os fiéis leigos na Igreja e na Fa-
mília de Dom Bosco como aqueles homens e mulheres com uma tripla
pertença: pertencer a Cristo, pertencer à Igreja e pertencer ao mundo.21
O Papa Francisco, no belo encontro que tivemos por ocasião da
canonização de Artêmides Zatti, ao apresentá-lo como “parente de to-
dos os pobres”, lembrou-nos que faz parte da nossa vocação salesiana
ser educadores do coração, preparando as pessoas, especialmente os
jovens, para o mundo de hoje:
«Assim, um hospital tornou-se a “Pousada do Pai”, sinal de
uma Igreja que quer ser rica em dons de humanidade e Graça,
morada do mandamento do amor a Deus e ao irmão, lugar de
saúde como penhor de salvação. É também verdade que isto
faz parte da vocação salesiana: os salesianos são os grandes
educadores do coração, do amor, da afetividade, da vida social;
grandes educadores do coração!»22
Levar à Igreja e ao mundo o dom do carisma laical vivido na Família
Salesiana é a resposta vocacional que nos leva a estar presentes como
sinais e testemunhas, dialogando e oferecendo o humilde serviço do
que somos pelo bem comum.
É da e na própria vida laical, que em muitos casos passa por meio
da vocação específica na família e na vida profissional no mundo, que
os leigos, e em particular os leigos cristãos, os leigos da família de
Dom Bosco, são chamados a estabelecer, promover e apoiar os valores
evangélicos na sociedade e na história, contribuindo para a consecratio
mundi, para a consagração do mundo, para o estabelecimento do Reino
de Deus aqui e agora.
São Francisco de Sales, cujo quarto centenário da morte acabamos
de celebrar, é um dos profetas mais singulares e fecundos da história
da Igreja, capaz de iluminar a grandeza da vocação de cada um. Assim
21 Cf. A. Boccia, Credenti Laici nella Chiesa e nella Famiglia di Don Bosco. Uomini e
donne delle tre appartenenze, Edizione privata.
22 Francisco, Discurso aos Salesianos reunidos para a canonização do Beato
Artêmides Zatti, Roma, 8 de outubro de 2022.

2.6 Page 16

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20 ATOS DO CONSELHO-GERAL
foi para muitos leigos de todas as camadas sociais que ele acompa-
nhou pessoalmente, ajudando-os a florescer no jardim em que foram
plantados pelo Senhor, até a plena santidade. São Francisco de Sales
continua a ser fonte de inspiração sempre nova e insubstituível para
aqueles que se reconhecem como “Salesianos”, qualquer que seja o
seu estado de vida.
Em sua recente Carta Apostólica oferecida pelo Papa Francisco a
todas as famílias religiosas que se referem ao carisma de São Francis-
co de Sales, destaca-se a importância da espiritualidade que o santo
genebrino propôs no seu tempo, e que ainda hoje é de extrema atuali-
dade na teologia dos leigos.
«Quase todos os que trataram da devoção interessaram-se em
instruir pessoas apartadas do mundo ou, pelo menos, têm ensi-
nado um tipo de devoção que leva a esse isolamento. Pretendo
oferecer meus ensinamentos àqueles que vivem nas cidades, na
família, na corte, e que, em virtude de seu estado, são forçados
por conveniências sociais a viver entre os outros».23
É por isso que erram aqueles que pensam em relegar a devoção
a algum âmbito protegido e reservado. Ao contrário, ela pertence a
todos e é para todos, onde quer que vivamos, e todos podem praticá-la
de acordo com a própria vocação. Como escreveu São Paulo VI no
quarto centenário do nascimento de Francisco de Sales:
«A santidade não é prerrogativa de uma ou de outra classe; mas
a todos os cristãos é dirigido o convite premente: «Amigo, vem
mais para cima» (Lc 14,10); todos estão ligados pela obrigação
de subir a montanha de Deus, mesmo que nem todos pelo mes-
mo caminho.
A devoção deve ser exercida de maneira diferente pelo cava-
lheiro, o artesão, o servo, o príncipe, a viúva, a jovem, a espo-
sa. Ainda, a prática da devoção deve ser adequada às forças,
aos negócios e aos deveres de cada um».24
23 S. François de Sales, Introduction à la vie dévote, I,1: ed. Ravier – Devos, Paris
1969, 23 (tradução do autor para a língua italiana).
24 Paulo VI, Carta Ap. Sabaudiae gemma, no IV centenário do nascimento de
São Francisco de Sales, doutor da Igreja (29 de janeiro de 1967), in AAS 59
(1967), 119.

2.7 Page 17

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 21
Esta era a sua intenção e continua a ser uma valiosa lição para
cada mulher e homem do nosso tempo: passar pela cidade secular,
conservando a interioridade, unir o desejo de perfeição ao estado de
vida, encontrando um centro que não se aparta do mundo, mas ensina
como habitá-lo, como apreciá-lo, ao mesmo tempo em que aprende a
se distanciar dele.
Este é o tema conciliar da vocação universal à santidade:
«Munidos de meios salutares de tal abundância e grandeza,
todos os fiéis de todos os estados e condições são chamados
pelo Senhor, cada um à sua maneira, a uma santidade cuja
perfeição é a do próprio Pai celeste».25
«Cada um à sua maneira».
«Portanto, não é o caso de desanimar ao contemplar modelos
de santidade que parecem inalcançáveis. A Mãe Igreja no-los
propõe não para procurarmos copiá-los, mas para nos estimu-
larem a caminhar no caminho único e específico que o Senhor
projetou para nós. O importante é que cada crente descubra o
próprio caminho e faça sobressair o melhor de si, aquilo que de
muito pessoal Deus colocou nele» (Cf. 1Cor 12,7).26
A Igreja, «conjunto dos que são chamados», estando no significado
original do termo, vive graças à riqueza de cada vocação que a define.
Todo chamado está a serviço de todos os outros e somente no doar-se
pode expressar e redescobrir a sua plena identidade. Os dons não são
propriedade privada e exclusiva de um grupo. Como batizados, todos
nós participamos do sacerdócio de Cristo, da profecia e da realeza
d’Aquele que veio para servir e dar a vida. O ministério ordenado
só pode ser entendido como um serviço ao sacerdócio comum de to-
dos os fiéis. Assim também, o que é típico da condição laical é um
dom para todos, que entra na vida e no chamado de todos os outros
membros do único corpo de Cristo. A “dimensão secular” é, portanto,
compartilhada também por aqueles que pertencem à vida consagrada
ou ao ministério ordenado: a história de Dom Bosco oferece-nos uma
25 LG, 11.
26 Francisco, Carta Apostólica Totum amoris est, no IV Centenário da morte de São
Francisco de Sales, LEV, Cidade do Vaticano 2022, 32-34.

2.8 Page 18

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22 ATOS DO CONSELHO-GERAL
esplêndida evidência disso. Dom Bosco é um padre da diocese de
Turim que funda duas congregações de consagrados e consagradas e
duas outras associações laicais; e com todos eles, e com tantos outros
que sabe envolver, mergulha intensamente no “século” em que vive,
nas vidas e problemas de centenas de milhares de jovens, superando
sem temor as grandes dificuldades e fronteiras, com uma fecundidade
que hoje inspira milhões de pessoas — para além das diferenças na-
cionais, culturais e religiosas.
Ser cristão e ser leigo abre o caminho para fazer frutificar com a
máxima intensidade o talento laical, secular, empenhando-o na infi-
nita riqueza de possibilidades abertas àqueles que vivem no mundo
animados pela fé, esperança e caridade. O Concílio Vaticano II pro-
clamou-o claramente:
«Por vocação própria, compete aos leigos buscar o Reino de
Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as se-
gundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer
ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da
vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua
existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o
seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concor-
ram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o
fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes
de mais nada pelo testemunho da própria vida, pela irradia-
ção da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete
especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades
temporais, às quais estão estreitamente ligados, para que se-
jam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem
o Criador e Redentor».27
Não é tarefa do comentário à Estreia definir todas as áreas e reali-
dades da vida em que a presença dos leigos é transformadora e pode
ser o fermento do Reino de Deus que ninguém mais poderia “amassar”
com a mesma eficácia e capilaridade. Em todo caso, os leigos na Igreja
têm um espectro amplo e complexo de potencialidades e desafios, de
situações a enfrentar que são ao mesmo tempo outros tantos apelos
para quem deseja ser «sal da terra e luz do mundo».
27 LG, 31.

2.9 Page 19

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 23
Entrar na concretude do “onde”, do “quando” e do “como” é o ca-
minho aberto diante de cada pessoa e de cada grupo, de acordo com a
sua natureza específica. Um caminho que a Estreia deste ano nos con-
vida e exorta a retomar, intensificar e fazer nosso com coragem e ge-
nerosidade, tornando atual a mensagem da própria Igreja quando diz:
«Aos olhos iluminados pela fé abre-se um cenário maravilho-
so: o de inúmeros fiéis leigos, homens e mulheres, que, pre-
cisamente na vida e nas ocupações do dia a dia, muitas vezes
inobservados ou até incompreendidos e ignorados pelos gran-
des da terra, mas vistos com amor pelo Pai, são obreiros incan-
sáveis que trabalham na vinha do Senhor, artífices humildes
e grandes — certamente pelo poder da graça de Deus — do
crescimento do Reino de Deus na história».28
Não resta dúvida de que para todos os membros leigos da Família
Salesiana de hoje — e para os consagrados e consagradas que vivem
dia a dia enriquecidos pela sua vocação e complementaridade — o
mundo, a sociedade, a economia e a política, a ação social a serviço
dos outros, a vida cristã na vida diária é e deve ser sempre um lugar
teológico de encontro com Deus:
«O campo próprio da sua atividade evangelizadora é o mesmo
mundo vasto e complicado da política, da realidade social e
da economia, como também o da cultura, das ciências e das
artes, da vida internacional, dos instrumentos de comunicação
social e, ainda, de outras realidades abertas à evangelização,
como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos
adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento. Quanto
mais leigos houver impregnados do Evangelho, responsáveis
em relação a tais realidades e comprometidos claramente nas
mesmas, competentes para promovê-las e conscientes de que
é necessário fazer desabrochar a sua capacidade cristã mui-
tas vezes escondida e asfixiada, tanto mais essas realidades,
sem nada perder ou sacrificar do próprio coeficiente humano,
mas patenteando uma dimensão transcendente para o além,
não raro desconhecida, se virão a encontrar ao serviço da edi-
ficação do reino de Deus e, por conseguinte, da salvação em
Jesus Cristo»29
28 ChL, 17.
29 EN, 70.

2.10 Page 20

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24 ATOS DO CONSELHO-GERAL
5. A família de Dom Bosco chamada a ser fermento
Dom Bosco foi capaz de envolver muitas pessoas, tornando-as pro-
tagonistas ativas e empreendedoras do mesmo sonho de salvação para
os jovens. P. Júlio Barberis anotou cuidadosamente o que Dom Bosco
disse dirigindo-se aos jovens mais velhos do Oratório na noite da festa
de São José, 19 de março de 1876, pouco mais de cinco meses após a
partida dos primeiros missionários para a Patagônia. Referindo-se ao
campo e à vinha das parábolas evangélicas, e servindo-se da sua expe-
riência pessoal de vida no campo, ajuda os jovens de Valdocco a en-
tender como cada um pode desempenhar o seu papel, sempre precioso
e importante, para o crescimento do Reino de Deus. É tanto um exem-
plo secular quanto um exemplo evangélico e eclesial de como somos
chamados a fazer frutificar os nossos talentos, cada um segundo a sua
história de vida, a sua capacidade e o seu chamado. P. Barberis retoma
assim as palavras de Dom Bosco, que sem dúvida nos parecem da
máxima relevância teológica:
«O divino Salvador, vós compreendeis muito bem, por campo
ou vinha entendia falar da Igreja e de todos os homens do mun-
do: a colheita a se fazer consiste na salvação das almas, pois
todas as almas devem ser recolhidas e levadas para os silos do
Senhor. Oh, como é copiosa a messe; quantos milhões de ho-
mens há na terra! Quanto trabalho ainda a fazer para conseguir
que todos se salvem, mas operarii autem pauci, os operários
são poucos!
Por operários que trabalham na vinha do Senhor entendem-se
todos os que de alguma maneira concorrem para a salvação das
almas. E, notai bem, que, como alguém pode pensar, por operá-
rios aqui não se compreendem somente sacerdotes, pregadores
e confessores, que sem dúvida mais efetivamente são postos a
trabalhar e mais diretamente se afadigam em recolher a messe,
mas eles não estão sós, nem seriam suficientes. Operários são
todos que de alguma forma concorrem para a salvação das al-
mas; assim como operários no campo não são somente os que
recolhem o grão, mas também os demais.
Há quem ara a terra, quem a limpa; outros, com a enxada, a ajei-
tam; há quem a aplaina com o ancinho; alguns lançam a semen-
te, outros a cobrem; há quem arranca as ervas daninhas, outros
regam a terra em tempo oportuno; há quem colhe os grãos, faz

3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 25
os feixes e os amontoa; há quem carrega o carro, quem o con-
duz; há quem espalha os feixes no terreiro, quem bate o grão;
há quem separa o grão da palha; outros os leva ao moinho para
fazer a farinha, depois a ensacam; há também quem a peneira,
quem a empasta, prepara o pão, coloca no forno.
Vede, caros amigos, quanta variedade de operários é necessária
antes que a messe possa chegar ao seu destino de dar-nos um
pão excelente do paraíso.
Tanto no campo quanto na Igreja há necessidade de todo tipo
de operários; não há um só do qual se possa dizer: “Eu, embora
meu comportamento seja irrepreensível, não sirvo para nada no
trabalho para a maior glória de Deus”. Não, não se fale isso de
ninguém; todos podem fazer alguma coisa de algum modo».30
Nascemos carismáticos como comunidade e como comunhão de
pessoas de diversas origens sociais, estados de vida, perfis profissio-
nais... unidos pela mesma missão e motivados pela mesma carga caris-
mática que Dom Bosco sabe comunicar.31 Essa é a natureza do Orató-
rio nos anos da sua fundação — de 1841 a 1859 (18 anos!) —, em que
a sinergia do povo de Deus ainda é fortemente refletida, cooperando
de várias maneiras para tornar os jovens em maior risco «bons cristãos
e honestos cidadãos». É inegável que nascemos desde o início como
um grupo do povo de Deus; essa é a natureza do nosso carisma e da
nossa missão.
Estou muito consciente — e procuro transmitir esta consciência à
nossa Família Salesiana — de um fato particularmente óbvio: somente
juntos, somente vivendo em comunhão seremos capazes de fazer hoje
algo significativo.
Fiz um forte apelo à Congregação Salesiana sobre a nossa missão
compartilhada com os leigos — um apelo que serve a toda a Família
de Dom Bosco — e não o atender levaria, em um futuro não muito
distante, a um ponto perigoso de não retorno.
Declarei:
«O nosso CG24 foi certamente uma resposta carismática à ecle-
siologia de comunhão do Concílio Vaticano II. Bem sabemos
30 ISS, Fontes salesianas, 1. Dom Bosco a sua obra, EDB, Brasília 2014, 801-802.
31 J. E. Vecchi, o.c., 140-142.

3.2 Page 22

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26 ATOS DO CONSELHO-GERAL
que Dom Bosco, desde o início de sua missão em Valdocco,
envolveu muitos leigos, amigos e colaboradores para que eles
participassem de sua missão entre os jovens. Desde o início, ele
«desperta participação e corresponsabilidade de eclesiástico e
leigos, de homens e mulheres».32 Trata-se, portanto, apesar das
nossas resistências, de um ponto de não retorno, pois, além de
corresponder às ações de Dom Bosco, o modelo operativo da
missão compartilhada com os leigos proposto pelo GC24 é de
fato “o único praticável nas condições atuais”».33
Temos, assim, um ponto de não retorno para aqueles que decidem e
decidiram entrar neste estilo de missão, formação, vida compartilhada,
que abre novos horizontes de futuro para o carisma de Dom Bosco em
plena harmonia com o caminho que a Igreja está levando adiante com
a orientação do Papa Francisco, sem dúvida profético e exemplar.
Ao mesmo tempo, há também outro perigoso e arriscado não retorno
daqueles que não podem ou não querem cruzar este limiar e fecham-
se em formas de isolamento autorreferencial, não acompanhando
mais os tempos no modo de viver e interpretar a presença salesiana, e
destinados a se tornarem irrelevantes e se extinguirem com o passar
dos anos.
O objetivo final da missão de Dom Bosco é, juntamente com a
salvação dos seus meninos, a transformação da sociedade. A visão
ampla e corajosa de Dom Bosco, a sua incansável operosidade, a sua
resistência diante dos obstáculos... só se explicam com esse horizonte
de transformação social e evangelização dos jovens em escala global.
Dom Bosco não se envolve em política, mas pode falar com os
representantes dos vários níveis de governo, porque o seu trabalho
orienta-se claramente para o bem dos jovens, dos quais ninguém que
leve a sério a sociedade humana e o serviço aos outros — como tam-
bém o serviço público é e deveria ser para o bem de todos — pode
desinteressar-se.
Por isso, a nossa voz comum pode obter acesso e escuta muito
além das fronteiras confessionais se hoje encarnamos juntos esse
mesmo zelo de predileção pelos jovens que nos foi dado como
32 CG24, n. 71.
33 CG24, n. 39.

3.3 Page 23

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 27
carisma e que não podemos realizar a não ser em comunhão como
Família de Dom Bosco.
A complementaridade das vocações na família de Dom Bosco,
viver unidos como Família Salesiana e unidos ao grande número de
leigos e leigas das presenças no mundo, juntos na missão e na forma-
ção, torna-se uma exigência inevitável hoje e ainda mais no futuro, se
não quisermos permanecer irrelevantes.
E a comunhão no espírito de família e no interior do vasto movi-
mento salesiano é o grande dom que possuímos como herança preciosa.
6. À sombra de uma grande árvore com frutos esplêndidos
Em minha carta no final do Segundo Seminário para a promoção das
Causas de Beatificação e Canonização da Família Salesiana, escrevi:
«Desde Dom Bosco até hoje reconhecemos uma tradição de
santidade que merece atenção, pois é a encarnação do carisma
que se originou com ele e se expressou em uma pluralidade de
estados de vida e de formas. Falamos de homens e mulheres,
jovens e adultos, consagrados e leigos, bispos e missionários
que, em diferentes contextos históricos, culturais e sociais no
tempo e no espaço, fizeram brilhar o carisma salesiano com
uma luz singular, representando a herança que desempenha um
papel eficaz na vida e na comunidade dos crentes e para os
homens de boa vontade».34
Com humildade e profundo sentimento de gratidão, reconhecemos
na Família Salesiana uma grande árvore com muitos frutos de santida-
de. São homens e mulheres, jovens e adultos que encheram suas vidas
com o fermento do amor, amor que se entrega até o fim, fiel a Jesus
Cristo e ao seu Evangelho.
34 A. Fernández Artime, Carta do Reitor-Mor na conclusão do II Seminário de pro-
moção da Causas de Beatificação e Canonização da Família Salesiana, Roma,
abril de 2018.

3.4 Page 24

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28 ATOS DO CONSELHO-GERAL
A eclesiologia demonstra, como sabemos, que as diversas voca-
ções têm uma raiz batismal comum e são destinadas a contribuírem
para o crescimento do povo de Deus:
«Na Igreja-Comunhão os estados de vida encontram-se de tal
maneira interligados que são ordenados uns para os outros.
Comum, direi mesmo único, é, sem dúvida, o seu significado
profundo: constituir a modalidade segundo a qual se deve vi-
ver a igual dignidade cristã e a universal vocação à santidade
na perfeição do amor. São modalidades, ao mesmo tempo,
diferentes e complementares, de modo que cada uma delas
tem a sua fisionomia original e inconfundível e, simultanea-
mente, cada uma delas se relaciona com as outras e se põe ao
seu serviço».35
Tal perspectiva indica que o carisma salesiano se completa quando
a vocação e a missão são vividas na reciprocidade e complementa-
ridade dos diversos chamados. Este deve ser o sentido profundo da
Família Salesiana: um vasto movimento apostólico para a salvação
dos jovens.
É interessante notar que, entre os 173 santos, beatos, veneráveis e
servos de Deus da nossa Família, 25 são leigos que encarnaram o ca-
risma salesiano na família, na casa salesiana, na vida secular, na pro-
fissão, no espaço privilegiado do testemunho cristão e em diferentes
contextos sociais, históricos e culturais. Considero muito apropriado
lembrá-los como testemunho no interior do comentário desta Estreia:
– São Domingos Sávio, adolescente, expressão da santidade
juvenil, fruto da graça preventiva e primeiro de uma longa
linhagem de jovens santos.
– Beata Laura Vicuña, adolescente, testemunha do poder do
amor que dá vida e recorda a realidade de uma família ferida.
– Beato Zeferino Namuncurá, jovem mapuche, recordando o
valor e o respeito pelas culturas indígenas e o trabalho de en-
culturação da fé e do carisma.
35 ChL, 55.

3.5 Page 25

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 29
– Beatos Francisco Kęsy, Czesław Jóźwiak, Eduardo
Kaźmierski, Eduardo Klinik, Jarogniew Wojciechowski,
mártires do Oratório de Poznań, testemunhas da fé até o martírio.
– Entre os bem-aventurados mártires da perseguição espanhola,
encontramos: Alexandre Planas Saurí e João da Mata Díez,
colaboradores leigos; Tomás Gil de la Cal, Frederico Cobo
Sanz e Higino de Mata Díez, três aspirantes à vida salesiana;
Bartolomeu Blanco Márquez, leigo e noivo; Teresa Cejudo
Redondo, esposa e mãe, salesianos cooperadores comprome-
tidos com a realidade eclesial, social e associativa de seu am-
biente.
– Beata Alexandrina Maria da Costa, Salesiana Cooperadora,
recordando a mais elevada forma de cooperação: a união com
a paixão redentora de Jesus.
– Beato Alberto Marvelli, ex-aluno do Oratório de Rimini,
comprometido com o mundo social e político.
– Venerável Mamãe Margarida Occhiena, presença materna e
feminina na origem do carisma.
– Venerável Doroteia Chopitea, esposa e mãe, que “acolhe” e
faz crescer o carisma salesiano, optando por uma vida pobre e
pela disposição de se deixar evangelizar pelos pobres.
– Venerável Atílio Giordani, esposo e pai, que encarna a ale-
gria salesiana na família, no trabalho, no oratório, em terras de
missão.
– Servo de Deus Simão, indígena bororo, que compartilha a
missão salesiana com o P. Rodolfo Lunkenbein e recorda a
necessidade de reconhecer e acolher as sementes da verdade
presentes em cada cultura e tradição.
– Serva de Deus Matilde Salem, esposa e benfeitora, que doa
seus bens e sua vida pela fecundidade do carisma na Síria e
dá testemunho da força da comunhão entre os cristãos e da
capacidade de coexistência com fiéis de outras religiões.
– Servo de Deus Antonino Baglieri, voluntário com Dom Bosco,
que sabe como ser fermento evangélico mesmo na doença.

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30 ATOS DO CONSELHO-GERAL
– Serva de Deus Vera Grita, Salesiana Cooperadora e Profes-
sora, instrumento de uma Obra mística que empenha todo
cristão a fazer frutificar a graça da Eucaristia.
– Servo de Deus Akash Bashir, jovem ex-aluno do Paquistão
que deu a vida pelos seus irmãos.
Entre estas numerosas e variadas figuras de santidade, gostaria de
destacar algumas que nos oferecem um testemunho significativo e ori-
ginal de santidade laical e que, em minha opinião, mostram aquele as-
pecto multifacetado, ou seja, rico em aspectos, lados, formas e cores,
da vida laical vivida em diferentes contextos, em diferentes séculos,
com diferentes vocações, mas cheia da santidade simples da vida quo-
tidiana. A santidade da “porta ao lado” que sempre nos fará muito bem
descobrir. Detenho-me a contemplar:
Margarida Occhiena, a “Mamãe”.
Sabemos como Dom Bosco, no início do Oratório, após pensar e
repensar em como sair das dificuldades, foi falar com o seu pároco
em Castelnuovo, expondo-lhe as suas necessidades e os seus temores.
«Tens a tua mãe!» — respondeu o pároco sem hesitar um momento
— «faze-a ir contigo a Turim». Mamãe Margarida chegou a Valdocco
em novembro de 1846 e, durante dez anos, foi a mãe de centenas de
meninos. Em 1846 só o Oratório estava aberto e os meninos afluíam
principalmente aos domingos.
As Memórias Biográficas falam de ao menos 800 frequentadores.
Durante a semana, todas as noites após o trabalho na cidade, vinham
os jovens da escola noturna. Pode-se imaginar o barulho. As aulas
ocupavam a cozinha e o quarto de Dom Bosco, a sacristia, o coro,
a capela. Vozes, cantos, indo e vindo. Mamãe Margarida estava ali
com eles. É certo que também alguns sacerdotes e leigos vinham para
ajudar Dom Bosco e algumas mulheres vieram mais tarde para dar
uma mão. Contudo, só Mamãe Margarida estava sempre presente, em
tempo integral. Essa disponibilidade tornou-a querida de todos e, por
isso, era reverenciada por todos os que a conheciam. Desde o início,
quando chegou a Turim, assim ficou conhecida pelo povo dos bairros
vizinhos, não foi chamada por outro nome que não fosse “Mamãe”.

3.7 Page 27

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 31
Ali, durante dez anos, a sua vida misturou-se com a do filho e com
os inícios da obra salesiana; ela foi a primeira e principal cooperadora
de Dom Bosco; com bondade ativa tornou-se o elemento materno do
sistema preventivo. Iletrada — mas cheia da sabedoria que vem do
alto —, ela também foi o auxílio de muitos pobres garotos de rua,
filhos de ninguém, colocando Deus em primeiro lugar, consumindo-se
por Ele em uma vida de pobreza, oração e sacrifício.
Bartolomeu Blanco Márquez, jovem integralmente cristão.
«Sou um operário, nascido de pais que também o eram. Vivi e vivo
no ambiente de estreiteza e trabalho das classes humildes e sinto certa
rebelião correndo pelas minhas veias, exacerbada às vezes pelo fogo
do entusiasmo juvenil, uma rebelião vigorosa contra aqueles que acre-
ditam que não somos homens como eles porque tivemos o infortúnio
— ou talvez o destino — de nascer na pobreza, de usar o avental de
trabalho e ter as mãos ásperas e calejadas. Mas sejamos claros: «Eu
sou um operário e sou católico»».
Quem fala assim é um jovem de 19 anos, fabricante de cadeiras,
um marceneiro, no comício da Ação Popular em 5 de novembro de
1933, em Pozoblanco (Córdoba, Espanha); um jovem íntegro e cora-
joso, com inteligência incomum, de origens humildes, da classe traba-
lhadora, defensor dos direitos do povo e da Igreja.
Nascido em Pozoblanco, em 25 de dezembro de 1914, perdeu
a mãe na chamada gripe espanhola. Também órfão de pai aos doze
anos, precisou deixar a escola e trabalhar como fabricante de cadeiras.
Quando os salesianos chegaram a Pozoblanco, em setembro de 1930,
Bartolomeu frequentou o oratório e ajudou como catequista e animador.
Encontrou no P. Antonio do Muiño um diretor que o incentivou a
continuar a sua formação intelectual, cultural e espiritual por meio da
participação em círculos de estudo. Esse salesiano será, até a morte
prematura de Bartolomeu, o seu confessor e guia espiritual.
Bartolomeu é apreciado pelos parentes, amigos e colegas pela in-
teligência, pelo trabalho apostólico e pelo comportamento de líder.
Mais tarde, entra na Ação Católica, da qual foi secretário, dando o
melhor de si. Mudou-se para Madri a fim de especializar-se no apos-
tolado entre os operários no Instituto Social Operário, destacando-se

3.8 Page 28

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32 ATOS DO CONSELHO-GERAL
como orador eloquente e estudioso da questão social. Após obter uma
bolsa de estudos, pôde conhecer as organizações católicas de traba-
lhadores na França, Bélgica e Holanda em uma viagem organizada
pelo Instituto Social Operário. Nomeado delegado dos sindicatos ca-
tólicos, fundou oito seções na província de Córdoba.
Quando explode a revolução, em 30 de junho de 1936, Bartolomeu
retorna a Pozoblanco, colocando-se à disposição da Guarda Civil para
defender a cidade, que após um mês se rendeu à outra facção em con-
flito. Acusado de rebelião, foi levado para a prisão, onde continuou o
seu comportamento exemplar: «Para merecer o martírio, é preciso ofe-
recer-se a Deus como mártir!». Foi julgado e condenado à morte em
Jaén, no dia 29 de setembro. Após a sentença, mantendo a tranquilida-
de e defendendo-se com dignidade, ele diz: «Pensais fazer-me um mal
e, em vez disso, estais fazendo-me um bem porque estais esculpindo
uma coroa para mim».
As cartas que escreve à família e à noiva na véspera da sua morte
são uma prova clara disso. Escreveu às tias e aos primos: «Que esta
seja minha última vontade: perdão, perdão e perdão; mas indulgência,
que desejo que seja acompanhada fazendo o melhor possível. Portan-
to, peço-vos que me vinguem com a vingança do cristão, retribuindo
com o bem àqueles que tentaram me prejudicar».
E à noiva, Maruja: «Quando me restam algumas horas para o meu
descanso final, só quero te pedir uma coisa: que ao lembrares do amor
que tivemos um pelo outro e que está aumentando neste momento,
cuides da salvação da tua alma como teu objetivo principal, para que
possamos nos encontrar no céu por toda a eternidade, onde ninguém
nos haverá de separar”.
Seus companheiros de prisão mantiveram os detalhes emocionan-
tes da sua partida para a morte: com os pés nus, para assemelhar-se
mais de perto a Cristo. Quando lhe puseram as algemas nos pulsos,
ele beijou as mãos do miliciano que as colocava. Não aceita, como lhe
propõem, ser baleado pelas costas. «Quem morre por Cristo», disse
ele, «deve fazê-lo de frente e com o peito nu. Viva Cristo Rei!», e cai
com os braços abertos em forma de cruz, crivado de balas, ao lado de
um carvalho. Estamos em 2 de outubro de 1936. Não tinha 22 anos de
idade. Foi beatificado em Roma, em 28 de outubro de 2007.

3.9 Page 29

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 33
Atílio Giordani, um laico “à moda de Dom Bosco”.
Nasce em Milão, em 3 de fevereiro de 1913. Distinguiu-se desde
os primeiros anos pela grande paixão pelo Oratório Salesiano Santo
Agostinho e, aos dezoito anos, pela sua dedicação aos jovens que o fre-
quentavam. Durante décadas, foi um catequista diligente e um constan-
te e brilhante animador, com grande simplicidade e alegria. Cuida da
liturgia, da formação, dos jogos, do lazer, do teatro. Ama a Deus com
todo o coração e encontra na vida sacramental, na oração e na direção
espiritual o recurso para a vida da graça. Durante o serviço militar, que
começou em 1934 e terminou, com fases alternadas, em 1945, demons-
trou a sua sensibilidade apostólica entre os companheiros.
Trabalha na indústria Pirelli de Milão, onde também espalha ale-
gria e bom humor, com o mais profundo senso de dever. Casa-se, em
6 de maio de 1944, com a catequista Noemi D’Avanzo. Terão três
filhos: Piergiorgio, Mariagrazia e Paola. Em família, ele é um marido
e pai cheio de grande fé e serenidade, em uma deliberada austeridade
e pobreza evangélica em benefício dos mais necessitados.
Sem se afastar um mínimo da família, faz do oratório a sua segunda
família, pondo sua rica capacidade inventiva e sua extraordinária arte
educativa a serviço dos jovens. De acordo com a esposa Noemi, foi
para o Mato Grosso (Brasil) acompanhando os filhos na opção do tra-
balho missionário. Em 18 de dezembro de 1972, durante uma reunião,
depois de falar com entusiasmo e ardor sobre o dever de dar a própria
vida pelos outros, sentiu-se falhar repentinamente. Teve o tempo de
dizer ao filho: «Pier, tu continuas». Morreu de um ataque cardíaco. É
venerável desde 9 de outubro de 2013.
Sua vida de cristão, apostolicamente comprometido, tomou uma
orientação tão decisiva e pessoal que descobriu (estas são todas frases
suas): “A alegria de servir a Cristo”; “Não ser bom de qualquer jeito”;
“Viver no mundo sem ser do mundo”; “Caminhar contra a maré”;
“Não buscar, mas dar”; “É preciso viver o que se quer fazer viver”.
Essa maturidade cresce nas diversas etapas da vida: como adolescente,
como jovem militar, como soldado no front militar greco-albanês,
como resulta do seu “Diário de Guerra”. Até mesmo a escolha da noiva
Noemi Davanzo é motivada por razões de fé, como lhe escreveu: «O
Senhor, ao aproximar-me de ti, colocou diante dos meus olhos o teu

3.10 Page 30

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34 ATOS DO CONSELHO-GERAL
amor e o espírito de dedicação pelos prediletos do Salvador: esta foi a
mola mestra que me levou a pedir-te como companheira».
A fé de Atílio é tão grande que é verdadeiramente um “sinal” da
presença de Deus na família, no oratório, na comunidade paroquial e
para todos os que o encontram; uma fé, mais do que proclamada, bri-
lha em suas ações e em sua maneira de ser: «A medida do nosso crer
manifesta-se em nosso ser».
Vera Grita, “A excelente professora de Savona”.
Nascida em Roma no dia 28 de janeiro de 1923, viveu e estudou em
Savona, onde obteve o diploma de magistério. Aos 21 anos, durante
um imprevisível ataque aéreo à cidade (1944), ela foi atropelada e
pisoteada pela multidão em fuga, com graves consequências para o
seu corpo, ficando para sempre marcada pelo sofrimento. Passou sem
ser notada em sua breve vida terrena, ensinando em escolas do interior
da Ligúria, onde ganhou a estima e o afeto de todos pelo seu caráter
bom e afável. Em Savona, na paróquia salesiana de Maria Auxiliadora,
participava da missa e era assídua ao sacramento da penitência.
Salesiana cooperadora desde 1967, percebeu o seu chamado ao dom
total de si ao Senhor, que de forma extraordinária se entregou a ela, no
fundo de seu coração, com a “Voz”, com a “Palavra”, para comunicar-
-lhe a Obra dos Tabernáculos Vivos.
Sob o impulso da graça divina e aceitando a mediação de guias
espirituais, Vera Grita respondeu ao dom de Deus dando testemunho
em sua vida marcada pelo cansaço da doença, pelo encontro com o
Ressuscitado e dedicando-se com generosidade heroica ao ensino e à
educação de seus alunos, contribuindo para as necessidades de sua fa-
mília e dando testemunho de uma vida de pobreza evangélica. Faleceu
em 22 de dezembro de 1969, aos 46 anos, em um pequeno quarto de
hospital em Pietra Ligure.
Vera Grita testemunha, antes de tudo, uma orientação eucarística
totalizante, que se tornou explícita especialmente nos últimos anos da
sua existência. Ela não pensou em termos de programas, iniciativas
apostólicas e projetos; acolheu o “projeto” fundamental que é aquele
de Jesus, a ponto de torná-lo sua própria vida. O mundo de hoje con-
firma uma grande necessidade da Eucaristia.

4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 35
Sua caminhada na cansativa laboriosidade de todos os dias também
oferece uma nova perspectiva laical à santidade, tornando-se exem-
plo de conversão, aceitação e santificação pelos “pobres”, “frágeis”,
“doentes” que nela podem se reconhecer e obter esperança.
Como salesiana cooperadora, Vera Grita vive e trabalha, ensina e
encontra pessoas com uma diferenciada sensibilidade salesiana: da
doçura da sua presença discreta, mas eficaz, à capacidade de fazer-se
amar pelas crianças e suas famílias; da pedagogia da bondade que vive
com o seu sorriso constante à generosa prontidão com que, atenta às
dificuldades, volta sua atenção para o último, o pequeno, o distante, o
esquecido; da sua generosa paixão por Deus e Sua glória até o cami-
nho da cruz, deixando-se levar tudo em sua condição de doente.
Akash Bashir, testemunha de fortaleza e de paz.
Ex-aluno de Dom Bosco, ele é o primeiro paquistanês cujo pro-
cesso de beatificação e canonização está em andamento. Em 15 de
março de 2015, sacrificou-se para impedir que um terrorista suicida
causasse um massacre na Igreja de São João em Youhannabad, um
bairro cristão de Lahore, no Paquistão. Akash Bashir tinha 20 anos,
estudara no Instituto Técnico Dom Bosco em Lahore e tornara-se
voluntário da segurança.
O mais marcante neste simples jovem foi a sua fortaleza ao en-
frentar o mal e combater a violência homicida. A frase proferida ao
terrorista antes da sua morte — «Eu morrerei, mas não te deixarei
entrar na igreja» — expressa sua fé intensa e sua coragem heroica no
testemunho de um amor sem medida. O evangelho daquele quarto
domingo da Quaresma (15 de março de 2015) anunciava as palavras
de Jesus a Nicodemos: «Quem pratica o mal odeia a luz e não vem
para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas quem
pratica a verdade vem para a luz. Torna-se assim claro que as suas
obras são feitas em Deus» (Jo 3,20-21). Akash selou essas palavras
com o seu sangue de jovem cristão. Lutou corpo a corpo com o poder
da morte, do ódio e da violência e fez triunfarem a luz e a verdade.
Lavou sua veste branca com o sangue do Cordeiro, tornando-a res-
plendente (cf. Ap 7,14).

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36 ATOS DO CONSELHO-GERAL
O contato com o mundo e o carisma salesiano reforçou em Akash
as disposições de bondade e generosidade que ele havia aprendido em
família e na comunidade cristã. Akash Bashir é um exemplo de santi-
dade para todos os cristãos, um exemplo para todos os jovens cristãos
ao redor do mundo. E é, sem dúvida, um sinal carismático do sistema
educativo salesiano. Akash é a voz de muitos jovens corajosos que
conseguem dar suas vidas pela fé apesar das dificuldades, da pobreza,
do extremismo religioso, da indiferença, da desigualdade social e da
discriminação. A vida e o martírio deste jovem paquistanês fazem-nos
reconhecer o poder do Espírito Santo de Deus, vivo, presente nos lu-
gares menos esperados, nos humildes, nos perseguidos, nos jovens,
nos pequenos de Deus.
• E não nos esqueçamos de Artêmides Zatti no ano da sua
canonização.
Ele era certamente um religioso consagrado, mas não se pode dei-
xar de ficar impressionado com a dimensão laical da sua santidade,
vivida no exercício diário da caridade na simplicidade de um pequeno
hospital de uma humilde povoação. Ele é exemplo e modelo de con-
sagração ao seu povo no trabalho sacrificado e paciente, tendo Deus
como sua fonte, motivação na fé e objetivo único e último de sua vida.
Suas vidas, as vidas de todos eles e seus exemplos são como “fer-
mento na massa” que continua a fazer crescer o Reino dentro de nós
e ao nosso lado.
Os leigos dão o húmus ao crescimento da fé.36 A expressão de
Bento XVI lembra-nos que, graças à fé e ao trabalho de evangelização
de muitos leigos, de casados, de famílias e de comunidades cristãs, o
cristianismo se enraíza e se desenvolve no mundo. Por meio da graça
do Batismo, a fé cresce e difunde-se.
Analogamente, também as testemunhas leigas da santidade salesia-
na mencionadas anteriormente e muitas outras da porta ao lado deram
e dão o húmus para o crescimento do carisma salesiano. A companhia
de santos recorda-nos que antes das obras e dos papéis, o lugar privile-
giado para a proclamação do Evangelho e o florescimento do carisma
é a qualidade das relações humanas.
36 Bento XVI, Catequese de 7 de fevereiro de 2007.

4.3 Page 33

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 37
Estes testemunhos recordam-nos o chamado universal à santidade,
tão caro quer a São Francisco de Sales — como já dissemos —, quer
ao Pai da Família Salesiana, Dom Bosco, quando propôs aos jovens
do oratório e às classes populares a meta da santidade como horizonte
aberto a todos, fácil de alcançar e orientada para a felicidade sem fim.
Tudo isso tendo ao lado deles Maria Auxiliadora, Aquela que aco-
lheu Jesus em seu ventre virginal e por isso é Mãe, Mestra e Guia da
fé, especialmente no acompanhamento das gerações mais jovens no
seu caminho de santidade. A vida de todos eles e o seu exemplo são
como o “fermento para o pão”.
7. Os nossos jovens como FERMENTO no mundo de hoje
Quero concluir a mensagem da Estreia deste ano com uma palavra
final, dirigida aos nossos jovens e ao caminho que queremos percorrer
juntos, pois eles também querem acompanhar-nos como nós queremos
acompanhá-los:
«Queremos dizer-vos com força, de todo o coração: estar aqui
para nós foi um sonho que se tornou realidade, neste lugar es-
pecial que é Valdocco, onde começou a missão salesiana, com
salesianos e jovens para a missão salesiana, com a nossa von-
tade comum de juntos sermos santos. Tendes os nossos cora-
ções em vossas mãos. Cuidai desse vosso tesouro precioso. Por
favor, jamais vos esqueçais de nós e continuai a escutar-nos.
Turim, 7 de março de 2020».37
Na verdade, os jovens preparam-se para a vida, nós os acompanha-
mos nesta caminhada, e não tenho dúvidas de que um grande serviço
que prestaríamos a eles, à sociedade e à Igreja seria ajudá-los a tomar
consciência do papel social que devem desempenhar e para o qual
devem preparar-se. Por isso eles também são os primeiros a saber, e o
sabem, que são chamados a ser fermento na família humana.
Ao preparar-me para escrever este comentário, decidi procurar e
ler, precisamente para esta seção final da Estreia, um pouco do que
37 CG 28, Quais salesianos para os jovens de hoje? Carta dos jovens aos capitula-
res, Anexo 3.

4.4 Page 34

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38 ATOS DO CONSELHO-GERAL
os três últimos papas — São João Paulo II, Bento XVI e Francisco
— disseram aos jovens, por ter certeza de que suas mensagens seriam
abundantes e muito poderosas. E é assim que me parecem: tão rele-
vantes, tão oportunas e, ouso dizê-lo, tão “salesianas”. E, ao mesmo
tempo, quero afirmar intensamente quão vasta, extensa e exigente é a
tarefa que os jovens têm diante de si na Igreja e no mundo, se acei-
tarem o desafio de ser verdadeiramente jovens de hoje, ativos em seu
empenho cristão e social e verdadeiro “fermento” na família humana.
O Papa João Paulo II, três anos antes da sua morte, propôs em um
dos seus discursos38 oito grandes desafios que são autênticas propostas
para a vida cristã, social e política e compromisso para os jovens que
desejam enfrentar desafios significativos. Na verdade, são oito desa-
fios que alguns estudiosos reduzem a um único que poderia ser expres-
so assim: colocar o ser humano no centro da economia e da política.
A tarefa é esta: a defesa da vida humana em todas as situações; a pro-
moção da família e a erradicação da pobreza (com a redução da dívida,
a promoção do desenvolvimento e a justa abertura ao comércio inter-
nacional); a defesa dos direitos humanos e o trabalho para garantir o
desarmamento (com a redução da venda de armas e a consolidação
da paz uma vez terminados os conflitos); a luta contra as principais
doenças e o acesso de todos aos medicamentos mais necessários; a
preservação da natureza e a prevenção de desastres naturais; e, enfim,
a aplicação rigorosa do direito e das convenções internacionais.
Por sua vez, na carta encíclica sobre o desenvolvimento humano
integral, Caritas in veritate,39 Papa Bento XVI enuncia os desafios
atuais que são urgentes e essenciais para a vida do mundo e nos quais
os jovens de hoje podem empenhar-se, tais como: o uso dos recursos
da terra, o respeito à ecologia, a distribuição justa dos bens e o
controle dos mecanismos financeiros, a luta contra a fome no mundo,
a promoção da dignidade do trabalho, a solidariedade humana com
os países mais pobres, o serviço à cultura da vida, o diálogo inter-
-religioso e a construção da paz entre os povos e nações.
Enfim, o Papa Francisco propõe uma série de tarefas desafiadoras
que temos como cristãos e são esperadas pelos jovens que querem
38 João Paulo II, Discurso aos embaixadores dos países acreditados junto à Santa
Sé, Roma, 10 de janeiro de 2002.
39 Cf. Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate, Roma, 29 de junho de 2009.

4.5 Page 35

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 39
assumi-las e empenhar-se nelas com a sua fé e o seu trabalho, pois
muitos outros jovens sofrem com essas violências e extorsões.
Entre seus diversos escritos (encíclicas, exortações apostólicas e
mensagens aos jovens),40 gostaria de mencionar o seguinte: existem
contextos terríveis e dolorosos de guerra (e não posso deixar de men-
cionar a guerra injusta contra o povo ucraniano, que todos conhecemos
porque já dura onze meses); há muitas pessoas e jovens que sofrem
de violência manifestada de muitas maneiras: sequestros, extorsões,
crime organizado, tráfico de pessoas, escravidão e exploração sexual,
crimes de guerra etc.
Algumas crianças são forçadas a ser soldados, a juntar-se a qua-
drilhas armadas e criminosas, a envolver-se no tráfico de drogas. Não
poucas crianças e adolescentes são escravizados no comércio e tráfico
sexual. E não faltam pessoas e jovens marginalizados e até mesmo
martirizados em razão de sua etnia ou credo. A dor da migração (em
situações desumanas) e o flagelo da xenofobia não podem ser esqueci-
dos.41 O descarte de pessoas no mundo inteiro, o racismo e a violação
dos direitos humanos universais são outras realidades de um mundo
onde também há muita dor.42
Estamos conscientes de que tudo isso e muito mais afeta esta famí-
lia humana na qual queremos ser fermento, sal e luz?43 Seria possível
dizer que esta é uma visão pessimista? Não, de forma alguma. O pró-
prio Papa Francisco cita muitos progressos que existem hoje, mas que
vão pari passu com a “deterioração da ética”:
«O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os
avanços positivos que se verificaram na ciência, na tecnologia,
na medicina, na indústria e no bem-estar, sobretudo nos países
40 Cf. ChV, 72-74; Cf. FT, 25.
41 FT, 38-40.
42 Ibid, 18-24.
43 Quero destacar muito significativamente o que o Reitor-Mor P. Pascual Chávez
escreveu sobre a Família Salesiana em defesa da vida, em todos os seus sen-
tidos e em todas as suas dimensões. É uma lista muito rica do nosso trabalho
atual (que também envolve os jovens): Cf. Chávez, P., Amas todas as coisas e não
desprezas nada do que fizeste... Senhor amante da vida (Sb 11,24;12,1), em ID,
Lettere circolari ai salesiani (ACG 396 (2006) Lettera 019), LAS, Roma 2021, 604-
605, 609-617.

4.6 Page 36

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40 ATOS DO CONSELHO-GERAL
desenvolvidos. Todavia «ressaltamos que, juntamente com tais
progressos históricos, grandes e apreciados, se verifica uma de-
terioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e
um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de res-
ponsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensa-
ção geral de frustração, solidão e desespero [...]. Nascem focos
de tensão e acumulam-se armas e munições, em uma situação
mundial dominada pela incerteza, pela decepção e pelo medo
do futuro e controlada por míopes interesses econômicos». As-
sinalamos também «as graves crises políticas, a injustiça e a
falta de uma distribuição equitativa dos recursos naturais […].
Sobre tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças,
já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da
fome, reina um inaceitável silêncio internacional»».44
Essa realidade é uma oportunidade para todos nós, mas especial-
mente para os jovens, de sentir o chamado do Senhor para viver a sua
vida cristã e também salesiana (no interior da família de Dom Bosco)
como uma grande tarefa.
Essa tarefa e esse desafio já haviam sido lembrados pelo Papa
Paulo VI no final do Concílio Vaticano II na mensagem dirigida aos
jovens, em que disse:
«É a vós, rapazes e moças de todo o mundo, que o Concílio
quer dirigir a sua última mensagem, pois sereis vós a recolher a
tocha das mãos dos vossos antepassados e a viver no mundo no
momento das mais gigantescas transformações da sua história,
sois vós que, recolhendo o melhor do exemplo e do ensina-
mento dos vossos pais e mestres, ides constituir a sociedade de
amanhã: sereis salvos ou perecereis com ela.
[...] E construí com entusiasmo um mundo melhor que o
atual!».45
Essa súplica, que chega a todos nós para sermos verdadeiro
fermento na família humana, eu dirijo hoje com profunda convicção
a todos vós, queridos jovens. Esses desafios exigem que por vossas
44 FT, 29 que cita também o Documento sulla fratellanza umana per la pace mon-
diale e la convivenza comune, Abu Dhabi (4 febbraio 2019): L’Osservatore Roma-
no 4-5 febbraio 2019, p. 6.
45 Paulo VI, Mensagem aos jovens, Roma, 8 de dezembro 1968.

4.7 Page 37

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1. CARTAS DO REITOR-MOR 41
vidas, vossa educação, vossos estudos, vosso trabalho e vossa vocação
digais sim ou não ao vosso empenho na construção de um mundo mais
justo e fraterno. Esses desafios colocam-vos na encruzilhada de aceitar
ou rejeitar uma vida exigente e excitante na qual colocar toda a força e
energia de acordo com o sonho de Deus para cada um de vós.
E certamente não vos é pedido nenhum heroísmo especial e ex-
traordinário, mas somente — e já é muito — fazer frutificar os vossos
dons e talentos dados por Deus, comprometendo-vos a crescer na fé,
no verdadeiro Amor, na fraternidade e no serviço a todos, especial-
mente àqueles mais atingidos pela vida, que têm menos oportunidades.
Parece-me uma proposta valiosa para todo jovem cristão e sale-
siano que hoje deseje ser discípulo-missionário do Senhor, e também
um desafio e uma proposta de tal dignidade e abrangência que, sem
qualquer modéstia, pode ser oferecida a todo jovem que deseje viver
plenamente a sua condição humana, quer seja cristã, quer professando
outras crenças religiosas ou procurando viver um humanismo essen-
cial e autêntico, e ao mesmo tempo levá-lo a viver fora das “zonas de
conforto” que, como as sereias com seus cantos, podem hipnotizá-los
no sono.
Referi-me ao humanismo, e gostaria de concluir explicitamente
com uma menção a este “humanismo salesiano” com que podemos
educar todos os jovens de todas as nações do mundo nas presenças
salesianas, porque
«para Dom Bosco, significava valorizar tudo o que há de posi-
tivo enraizado na vida das pessoas, nas realidades criadas, nos
acontecimentos da história. Isso o levava a perceber os valores
autênticos presentes no mundo, sobretudo se agradáveis aos
jovens; a inserir-se no fluxo da cultura e do desenvolvimen-
to humano do próprio tempo, estimulando o bem e recusando
lamentar-se sobre os males; a sábia busca da cooperação de
muitos, convencido de que todos possuem dons a serem desco-
bertos, reconhecidos e valorizados; a crer na força da educação
que sustenta o crescimento do jovem e o encoraja a ser cidadão
honesto e bom cristão; a entregar-se sempre e em qualquer si-
tuação à providência de Deus, percebido e amado como Pai».46
46 P. Chávez, Como Dom Bosco educador, ofereçamos aos jovens o Evangelho da
alegria mediante a pedagogia da bondade. Estreia 2013 (ACG 415), p. 22.

4.8 Page 38

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42 ATOS DO CONSELHO-GERAL
Concluo agradecendo ao Senhor por tantas vidas belas e plenas em
nossa Família Salesiana a serviço do Evangelho, pedindo ao Senhor
para toda a Igreja e para nós, como parte da mesma Igreja, que acei-
temos a alegre tarefa de evangelizar, porque «por Cristo foi enviada
para revelar e comunicar a caridade de Deus a todos os povos».47
Que nossa Mãe Auxiliadora ajude todos nós a sermos discípulos-
-missionários, pequenas estrelas que refletem a sua luz. E rezemos a
fim de que os corações se abram para receber com alegria a proclama-
ção da salvação, que é o próprio Deus em Jesus.
Roma/Turim-Valdocco, 1o de janeiro de 2023.
P. Ángel Fernández Artime, S.D.B.
Reitor-Mor
47 Ad Gentes, 10.