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1 - CARTA DO REITOR-MOR
«Fazei tudo por amor, nada por força»
(São Francisco de Sales)
No QUARTO CENTENÁRIO da morte de São Francisco de Sales,
dois gigantes que se sucedem no carisma salesiano
1. Nada por força. A liberdade, dom de Deus. 2. A presença de Deus no
coração humano. 3. A vida em Deus. 4. A doçura e a amabilidade de trata-
mento. 5. Amor incondicionado e sem restrições. 6. Com a necessidade de
um guia espiritual. 7. «Tudo por amor»: A caridade como medida da nossa
oração; Maria, a mãe de Jesus. Dirijamo-nos a esta Mãe, invocando o seu
amor materno; Francisco de Sales, um humanista cristão que comunica Deus.
Conclusão. PARA RELER e REFLETIR, PARA DEIXAR-SE REPOUSAR
NO CORAÇÃO.
Roma, 1º de janeiro de 2022.
Queridos Irmãos,
Devo começar declarando que não é minha intenção redigir um
opúsculo sobre a vida de São Francisco de Sales. Existem biografias
magníficas escritas por verdadeiros especialistas. Seria, também, ab-
solutamente presunçoso de minha parte e, na verdade, além das mi-
nhas capacidades e finalidades. Com estas páginas, porém, pretendo
oferecer uma contribuição para que a figura admirável de São Francis-
co de Sales, no IV centenário da sua morte, ilumine a nossa Família

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ATOS DO CONSELHO GERAL
Salesiana, a Família de Dom Bosco, que tem nele as suas raízes e
haure todos os dias da sua espiritualidade.
Desejo discorrer neste comentário à Estreia 2022, sobre dois
gigantes que se sucedem no carisma salesiano. Primeiramente, por-
que ambos são um grande dom à Igreja e, depois, porque Dom Bosco
soube traduzir como nenhum outro a força espiritual de Francisco de
Sales na educação e evangelização quotidiana de seus meninos po-
bres. Esta tarefa continua a ser confiada à Família Salesiana na Igreja
e no mundo de hoje.
Ouso afirmar que desde suas origens, de modo emblemático,
Francisco de Sales e João Bosco (Dom Bosco) têm muito em comum.
Desde o berço. Francisco de Sales nasce debaixo do céu da Saboia
que coroa vales atravessados por arroios que nascem nos cumes mais
elevados dos Alpes.
Como não pensar que também João era um pouco saboiano? Não
nasceu num castelo, mas como Francisco, recebeu o mesmo presente
de Francisco: uma mãe terníssima e cheia de fé. Françoise de Boisy
era muito jovem quando esperava o seu primeiro filho e, em Annecy,
diante do Santo Sudário, que lhe dizia da paixão do Filho bendito de
Deus, emocionada, fez uma promessa: o menino que trazia em seu seio
deveria pertencer para sempre a Jesus. Por sua vez, Mamãe Margarida
confiará, certo dia, ao seu João: «Quando nasceste eu te consagrei a
Nossa Senhora».1 E Dom Bosco se ajoelhará em Turim diante do mes-
mo Santo Sudário. As mães cristãs geram santos. Como Francisco num
castelo, ou como João numa casa decadente de camponeses.
Dizem que a primeira frase completa que Francisco conseguiu
formular foi: «O bom Deus e minha mãe me amam muito». E o bom
Deus cuidou de Francisco e de João. E a ambos deu um grande coração.
1 J. Bosco, Memórias do Oratório de S. Francisco de Sales, in Istituto Storico Sa-
lesiano, Fontes Salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra. Coletânea antológica,
EDB, Brasília 2014, 1294.

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CARTA DO REITOR-MOR 5
Francisco estudou em Paris e em Pádua, nas mais prestigiosas
universidades da época. João estudou à luz de vela no desvão da esca-
da de uma taverna. O Espírito, porém, não se detém diante das dificul-
dades humanas. Os dois estavam destinados a “se encontrarem”. Certo
dia Dom Bosco disse a um grupo de jovens que cresceram com ele:
«Nós nos chamaremos Salesianos».2 Desde aquele momento, sempre
conduzida pelo Espírito, crescerá a grande árvore da família de Dom
Bosco, a Família Salesiana.
São Francisco de Sales é uma das figuras da história que, com
o passar do tempo, foi ganhando relevância e significado, devido à
expansão fecunda de suas intuições, experiências e convicções espi-
rituais. Passados 400 anos, ainda são fascinantes a sua proposta de
vida cristã, o seu método de acompanhamento espiritual e a sua visão
antropológica sobre a relação entre os homens e Deus.
O tema escolhido para esta Estreia de família, fiel como sempre
à herança e tradição deixada por Dom Bosco, vem da mesma pena de
Francisco de Sales, que escrevia à filha espiritual Santa Joana Fran-
cisca de Chantal: «Mas se estás muito afeiçoada às orações que in-
dicaste acima, não as mudes, por favor, e se parece que renuncias a
algo que te proponho, não tenhas escrúpulos, pois a regra da nossa
obediência, que escrevo em letras maiúsculas, é: FAZEI TUDO POR
AMOR, NADA POR FORÇA; É MELHOR AMAR A OBEDIÊNCIA
DO QUE TEMER A DESOBEDIÊNCIA».3
2 Cf. MB V, 9.
3 São Francisco continua: «Deixo-te o espírito de liberdade, não aquele que exclui
a obediência, que é a liberdade do mundo, mas aquele que exclui a violência, o
escrúpulo, a ansiedade. Se amas intensamente a obediência e a submissão, eu
gostaria que, se chegasse a ocasião adequada e amorosa de deixar algum dos teus
exercícios, seja isso uma espécie de obediência, e que essa ausência seja substitu-
ída pelo amor» (Carta CCXXXIV à Baronesa de Chantal, OEA XII, 359. A carta
traz a data de 14 de outubro de 1604). Para as citações de São Francisco de Sales,
farei referência, enquanto possível, à edição completa em 27 volumes baseada nos
autógrafos originais e edições das religiosas da Visitação do primeiro mosteiro

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ATOS DO CONSELHO GERAL
As Constituições dos Salesianos de Dom Bosco apresentam nu-
merosos elementos e características da espiritualidade de São Francis-
co de Sales. O mesmo se dá com as das Filhas de Maria Auxiliadora e
de muitos outros grupos da família de Dom Bosco, uma vez que têm
muitíssimos elementos salesianos em sua identidade. Neste sentido,
não é difícil encontrar harmonia, conexões e aplicações diretas entre
os textos escritos há 400 anos por Francisco de Sales e os elementos
que, como aspectos da nossa identidade, pertencem ao nosso patrimô-
nio espiritual salesiano.
Em particular, como guia deste texto, valho-me do artigo 38 das
Constituições dos Salesianos de Dom Bosco, que – no quadro do nos-
so serviço educativo-pastoral – descreve as características do Sistema
Preventivo em nossa missão e apresenta uma síntese dos aspectos que
desejo desenvolver, como se se tratasse de um índice atualizado de
leitura do pensamento de São Francisco de Sales. Assim lemos:
«Para realizar o nosso serviço educativo e pastoral, Dom Bosco
nos legou o Sistema Preventivo.
Este sistema baseia-se inteiramente na razão, na religião e na
bondade. Não apela para pressões, mas para as fontes da inteli-
gência, do coração e do desejo de Deus, que cada homem traz
nas profundezas de seu ser.
Associa numa única experiência de vida educadores e jovens,
em clima de família, de confiança e de diálogo.
Imitando a paciência de Deus, encontramos os jovens no ponto
em que se acha a sua liberdade. Acompanhamo-los para que
de Annecy. Oeuvres de Saint François de Sales, citada com o acrônimo OEA
(«Oeuvres Edition Annecy»), que indica o volume e a página da edição. Citarei, às
vezes, apenas a fonte secundária. Para facilitar a consulta e a leitura, há uma mag-
nífica biblioteca digital com todas as obras de São Francisco de Sales, disponíveis
em vários formatos digitais: https://www.donboscosanto.eu/francesco_di_sales/
index-fr.php.

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CARTA DO REITOR-MOR 7
eles amadureçam convicções sólidas e se tornem progressiva-
mente responsáveis no delicado processo de crescimento de sua
humanidade na fé» (Const. 38).
O que distingue a nossa Família Salesiana, nas sociedades e cul-
turas multiformes e diversificadas de hoje, é provavelmente o Sistema
Preventivo de Dom Bosco, que possui a capacidade de ser aplicado,
conhecido e aceite nos mais diversos contextos. Encontro no artigo
citado e nas linhas centrais do pensamento e espiritualidade de São
Francisco de Sales muitos elementos comuns, que me permitem en-
cetar um diálogo entre Francisco de Sales e Dom Bosco. Enuncio-os:
1. Nada por força. A liberdade, dom de Deus: por isso, o
nosso sistema educativo «não apela para pressões».
2. A presença de Deus no coração humano: por isso, re-
conhecemos o «desejo de Deus, que cada homem traz nas
profundezas de seu ser».
3. A vida em Deus: que «associa numa única experiência de
vida educadores e jovens».
4. A doçura e amabilidade de tratamento: que nos leva a
viver com nossos jovens «em clima de família, de confiança
e de diálogo».
5. Um Amor incondicional e irrestrito: tornando possí-
vel em nossa família que «Imitando a paciência de Deus,
encontramos os jovens no ponto em que se acha a sua
liberdade».
6. Com a necessidade de um guia espiritual: e, por isso,
«Acompanhamo-los para que eles amadureçam convicções
sólidas».
7. Até viver «tudo por amor»: para que «se tornem
progressivamente responsáveis no delicado processo de
crescimento de sua humanidade na fé».

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ATOS DO CONSELHO GERAL
1. Nada por força. A liberdade, dom de Deus.
E, por isso, o nosso sistema educativo «não apela para pressões».
«A caridade e a doçura de São Francisco de Sales me guiem
em tudo», foi uma das resoluções tomadas pelo jovem Dom Bosco
por ocasião dos exercícios espirituais antes da ordenação sacerdotal.4
Dom Bosco pôde conhecer no seminário de Chieri as obras fundamen-
tais de São Francisco de Sales. A resolução mostra que Dom Bosco
descobrira e encontrara nele um modelo não só de ação, mas também
de vida. A caridade e a doçura demonstrada por São Francisco de Sales
nas relações com as pessoas ao longo de sua vida tiveram um impacto
convincente sobre Dom Bosco marcando-o por toda a vida. Nessas
virtudes, ele reconheceu certamente uma consonância com a orienta-
ção recebida de um misterioso personagem no sonho que tivera aos
nove anos: «não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade
que deverás ganhar esses teus amigos».5
«Nada por força» é uma bela proposta, um convite a acolher
como preciosa regra pessoal de vida. Torna-se uma orientação quando
se trata de aceitar um trabalho, assumir um estilo com que realizar uma
missão, aceitar uma responsabilidade ou um serviço para os outros.
Ela sustenta e dá consistência a uma opção e ao modo de viver como
cristãos, em sintonia com a decisão mesma de Deus, que nos criou e
nos tornou livres.
Todos nós já sentimos que as coisas impostas, sem motivações,
sem um porque, simplesmente por imperativo e pela força, não duram
muito tempo; duram apenas enquanto dura a imposição. Deus não faz
assim, e São Francisco de Sales pôde vivê-lo na sua atividade pastoral.
4 In ISS (Istituto Storico Salesiano), Fontes Salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra.
Coletânea antológica, EDB, Brasília 2014, documento n. 297, p. 971.
5 J. Bosco, Memórias do Oratório de São Francisco de Sales, in Istituto Storico
Salesiano, Fontes salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra. Coletânea antológica,
EDB, Brasília 2014, p. 1258-1259.

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Bispo tridentino, promotor da reforma católica, educado na luta contra
a tibieza da fé, escolheu a via do coração e não a da força. E nada
mais fez do que contemplar e viver a atitude de Deus. É o que diz à sua
dirigida espiritual: «Como um bom pai que segura o filho pela mão, ele
adequará seus passos aos teus e ficará feliz em não andar mais rápido
de ti».6
A realidade da Encarnação é a razão mais sublime para poder
afirmar a dignidade da pessoa humana. Pode-se dizer que Deus não só
nos criou à sua imagem e semelhança, mas que, em Cristo, o próprio
Deus – nas palavras de Francisco de Sales – «se fez à nossa imagem e
semelhança».7 A grandeza do ser humano, o seu valor como pessoa,
manifesta-se na liberdade que torna a pessoa responsável. Para o santo
humanista Francisco de Sales, a liberdade é a parte mais importante da
pessoa porque é a vida do coração.8 E tem tanto valor e dignidade que
o próprio Deus, que no-la deu, não a quer com a força e, quando no-la
pede, quer que a entreguemos com sinceridade e de boa vontade. Deus
«nunca forçou ninguém a servi-lo e nunca o fará».9
A intervenção de Deus, a sua graça, jamais atua sem o nosso
consentimento. Ele age com poder, não para forçar ou coagir, mas para
atrair o coração, não para violentar, mas por amar a nossa liberda-
de. A liberdade dada por Deus à pessoa humana é sempre respeitada.
Deus, como gostava de dizer Francisco de Sales, atrai-nos a si com a
sua amável iniciativa, às vezes como vocação ou apelo, outras vezes
6 Carta a Joana de Chantal (OEA XIV, 111).
7 Cf. M. Wirth, San Francesco di Sales. Un progetto di formazione integrale, LAS,
Roma 2021, 76: «Ninguém pode ignorar que a vontade de Deus é que nos salve-
mos, tantas e tão diferentes são as maneiras pelas quais no-lo manifestou. Nesse
intuito nos fez à sua imagem e semelhança, no ato da criação; quando se encarnou,
revestiu-se da nossa mesma natureza; padeceu a morte de cruz para resgatar o
gênero humano e salvá-lo». Cf. Tratado do amor de Deus, VIII, 4.
8 Cf. M. Wirth, San Francesco di Sales. Un progetto di formazione integrale, 76-77.
9 Cf. Sermão sobre a conversão de Santo Agostinho (OEA IX, 335). Citado in M.
Wirth, San Francesco di Sales, 76.

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10 ATOS DO CONSELHO GERAL
como a voz de um amigo, como inspiração ou convite, ou ainda como
“prevenção” porque sempre se antecipa. Deus não se impõe: bate à
nossa porta e espera que lhe abramos.10
Dom Bosco, igualmente, ao lidar com os meninos mais aban-
donados e pobres de Valdocco, aprendeu a seguir a via do coração no
acolhimento e no acompanhamento educativo. O desempenho do seu
zelo pastoral, o desejo de salvar almas, o esforço pelo desenvolvimen-
to pleno dos seus meninos dá-se sem coerção, sem imposições, sempre
com a aceitação da parte do jovem de estabelecer a relação de amiza-
de, porque sente no seu coração que é bem aceito, que existe alguém
que pensa no seu bem e deseja a sua felicidade.
A liberdade humana será sempre um valor a garantir, também
quando entram em jogo outros valores como a fé, a justiça e a verdade.
Para nós, família de Dom Bosco, isso é fundamental. Não aceitamos
que a educação possa ser feita sem um respeito sagrado à liberdade de
cada pessoa. Onde não se respeita a liberdade da pessoa, Deus não se
faz presente. Por isso, segundo São Francisco de Sales, Deus atrai a
pessoa com o seu amor da maneira mais concorde com a nossa nature-
za. É assim que ele o expressa neste belo texto:
«A vontade humana é arrastada pelo gosto e o prazer; «mostram-
-se nozes a um menino», diz Santo Agostinho, “e ele é atraído
pelo gosto; isto é, pelo laço, não do corpo, mas do coração”. Vê,
então, como o Pai Eterno nos atrai: ensinando-nos, deleita-nos
com sua palavra sem nos impor necessariamente a sua vontade;
lança nos nossos corações delícias e prazeres espirituais, como
sagrados engodos, com que nos atrai suavemente a acolher e sa-
borear a doçura da sua doutrina... Eis como é carinhosa a mão de
Deus no manejo do nosso coração, e hábil em nos comunicar a
sua força, sem nos sequestrar a liberdade, dando-nos o impulso
10 Cf. M. Wirth, San Francesco di Sales, 140.

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CARTA DO REITOR-MOR 11
do seu poder sem impedir o do nosso querer, e harmonizando o
seu poder com a sua suavidade. “Se tu conhecesses o dom de
Deus”, disse o Salvador à Samaritana”, “e quem é aquele que te
diz: dá-me de beber, tu mesma lhe pedirias e ele te daria da água
viva”. As inspirações precedem-nos, ó Teótimo; antes que nelas
tenhamos pensado, fazem-se sentir; mas depois de as sentirmos,
cabe a nós consentir, favorecendo-as e seguindo os seus atrati-
vos, ou dissentir, repelindo-as, porque se fazem sentir a nós sem
nós, mas não nos fazem consentir sem nós».11
Deus atrai, escreve Francisco de Sales, como os perfumes de
que fala o Cântico dos Cânticos. A força da atração de Deus, pode-
rosa, mas não violenta, está na doçura da sua atração. E a doçu-
ra permite chegar à meta de conciliar liberdade humana e atração de
Deus. Na experiência espiritual vivida e compartilhada por Francisco
de Sales, o amor de Deus nada tem a invejar ao amor humano pelas
criaturas. Nenhum amor jamais afasta o nosso coração de Deus, mas
somente o que é contrário a ele. Na mística salesiana, o amor de Deus
de que falamos, longe de excluir o amor aos outros, o exige.12
Fazendo experiência de Deus, compreendemos que Ele respeita
a liberdade humana e ao mesmo tempo quer o nosso bem e nos oferece
muitos sinais do seu amor. Talvez o primeiro deles seja, sem dúvi-
da, o respeito incondicional pela nossa liberdade. O amor desaparece
quando se pretende impor ou exigir, e nisso reside a força com que
Francisco de Sales apresenta a imagem positiva de um Deus amoroso,
que oferece a sua amizade, doa os seus bens e, através da comunicação
com Ele, deixa espaço aberto à reciprocidade na liberdade.
11 Tratado do Amor de Deus, II, 12: Esses chamados divinos nos deixam completa-
mente livres para segui-los ou não os aceitar.
12 Cf. F. Vincent, Saint François de Sales, directeur d’âmes. L’éducation de la volonté,
264 (nota1). Citado in M. Wirth, San Francesco di Sales, 140.

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12 ATOS DO CONSELHO GERAL
Tudo isso nos ilumina também sobre o cuidado e o respeito
pela liberdade religiosa de todas as pessoas. Trata-se de cuidar, como
Francisco de Sales, de uma presença amigável entre os não católicos,
uma presença a ser entendida como forma de evangelização pelo tes-
temunho, que às vezes deverá ser não só respeitosa, mas tranquila,
silenciosa; esta presença será perfeitamente válida, pois se baseia não
só no princípio da não violência, mas, mais importante, no profundo
respeito pela liberdade das pessoas.
Sentimo-nos muito identificados com esse modo de presença
que São Francisco de Sales já praticava nas zonas de conflito devido
à guerra de religiões do seu tempo, dando o testemunho profético de
paciência e perseverança com um estilo centrado na cruz de Cristo e
na intercessão materna de Maria. Nossa presença como Família Sale-
siana em muitas partes do mundo exige, por opção, este tipo de pre-
sença. E, com certeza, a melhor forma de crescer na “salesianidade”
será aprofundar a herança de Francisco de Sales e procurar aplicar a
sua espiritualidade nas situações concretas do nosso tempo.
2. A presença de Deus no coração humano:
Reconhecemos «o desejo de Deus, que cada homem traz nas pro-
fundezas de seu ser».
Dizer «Nada por força», não é apenas uma estratégia ou um
método, mas, sobretudo, a profunda convicção de fé e confiança no
ser humano – o humanismo cristão – que São Francisco de Sales viveu
de certa maneira contracorrente, e que Dom Bosco soube desenvolver
magnificamente com o seu otimismo e a confiança plena nos jovens,
em seus meninos: o ser humano, o jovem, cada pessoa, nós todos, tra-
zemos inscrito em nosso ser a necessidade de Deus, o desejo de Deus,

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CARTA DO REITOR-MOR 13
«a nostalgia de Deus».13 O desejo natural de ver Deus transforma-se
em nossos santos na convicção de que Deus está presente e se faz pre-
sente em cada pessoa nos momentos de sua vida que só Deus mesmo
escolhe e da maneira que só Deus conhece.14
Estes princípios teológicos, tão contemporâneos a nós, expres-
sam-se de maneira concreta numa atitude espiritual profundamente
salesiana de colaboração com a ação de Deus: servir o homem com
espírito de liberdade, que se concretiza em São Francisco de Sales no
otimismo, positividade e confiança na natureza humana e, por conse-
quência, no valor da amizade e na busca possível da felicidade.
Da imagem positiva de Deus que nos é oferecida pela sua ami-
zade, é fácil compreender o elemento que ilumina a espiritualidade sa-
lesiana vivida e proposta por Dom Bosco: «procura mais fazer-te amar
do que temer».15 Nosso pai Dom Bosco, seguindo Francisco de Sales,
quer que Deus seja amado mais do que temido. O “temor de Deus”
entendido como expressão que acompanha o caminho de santidade não
é o medo e o temor de um terrível castigo, mas um temor estritamente
ligado à confiança na bondade de Deus.
13 Cf. Tratado do Amor de Deus, I, 18: «Se não podemos pelas próprias forças amar
a Deus sobre todas as coisas, por que razão sentimos essa inclinação natural?
Acaso a natureza será louca incitando-nos a um amor que não nos pode dar? Por
que razão nos dá ela a sede de uma água tão preciosa, se não a podemos beber?
Ah! Teótimo, como Deus foi bom para conosco!».
14 Cf. Gaudium et spes, 22: «Na realidade, o mistério do homem só no mistério do
Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. […] E o que fica dito vale não só
dos cristãos, mas de todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça
opera ocultamente. Com efeito, já que por todos morreu Cristo e a vocação última
de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o
Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal
por um modo só de Deus conhecido».
15 Os comentaristas de São Francisco de Sales sugerem a atribuição a São Francisco
de Sales de uma frase que expressa a profundidade desse princípio: «Os que gos-
tam de fazer-se temido, temem fazer-se amar».

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14 ATOS DO CONSELHO GERAL
Longe de semear pessimismo, negativismo ou medo, a presença
de Deus, o desejo de encontrar Deus, o desejo da sua amizade e de
vê-la correspondida estão na base da espiritualidade salesiana. Diante
de quem considerava Deus um controlador que reprime as infrações
da lei, ou um Deus distante e indiferente, Francisco de Sales o vê
como um Deus preocupado com suas criaturas e com a felicidade de-
las, sempre respeitoso da sua liberdade e empenhado em guiá-las com
firmeza e doçura.16
Francisco de Sales compartilha a ideia aristotélica de que em
cada pessoa existe uma aspiração à felicidade, um movimento que
tende a esse fim, um desejo natural comum a toda a humanidade. Ao
mesmo tempo, porém, a partir da sua experiência pessoal, ele per-
cebe que a primeira aproximação da felicidade ocorre na aceitação
de si mesmo, do que se é, porque a felicidade se confunde com os
meios para alcançá-la. Alguns a buscam na riqueza, outros no prazer,
outros na glória humana. Na realidade, para Francisco de Sales, só o
bem supremo pode preencher plenamente o coração humano, e esse
bem supremo é Deus, a quem o coração humano tende por natureza.
Ele havia aprendido com seus professores de filosofia que a “felici-
dade prática” consistia em possuir sabedoria, honestidade, bondade
e prazer, mas que a “felicidade essencial” da pessoa humana só pode
ser encontrada em Deus. Como discípulo de Tomás de Aquino, ele
confiava na capacidade da inteligência humana e na vontade de intuir
ou descobrir Deus como seu objetivo último, e vem à mente a confis-
são de Santo Agostinho, que sintetiza admiravelmente essas ideias e
com as quais Francisco de Sales escreveu algumas de suas homilias:
«Tu nos fizeste, Senhor, para ti, e o nosso coração está inquieto, en-
quanto não repousar em Ti» (Confissões, I, 1.1).17
16 Cf. M. Wirth, San Francesco di Sales, 145.
17 Cf. M. Wirth, San Francesco di Sales, 130, nota 1: «No manuscrito do curso de
filosofia de março de 1586 ele copiara em caracteres maiúsculos esta frase latina

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CARTA DO REITOR-MOR 15
Entretanto, a tendência para Deus que sentimos naturalmente
não pode ser alcançada por nós mesmos, porque é um dom de Deus,
que sempre toma a iniciativa. São Francisco de Sales oferece-nos na
sua espiritualidade a convicção de que, embora tenhamos tendência
para a felicidade, identificada com o encontro com Deus, e não a pos-
samos alcançar sozinhos, Deus prometeu no-la dar, porque assim o
quis. E essa promessa de plenitude, juntamente com o desejo de Deus
que está em nós, é chamada a dar muitos frutos.
Podemos entender que a visão antropológica e teológica de
Francisco de Sales consiste perfeitamente em manter no justo equi-
líbrio – o que é muito importante para nós hoje – o diálogo entre fé e
razão. Em seu tempo, Francisco de Sales, dialogando com seus adver-
sários – a quem chamava de irmãos – sustentava que acolher a Deus
como bem supremo tinha apoio na razão, na mesma natureza humana.
Perante quem se baseava apenas na Bíblia, Francisco de Sales fazia
ver que a razão e a fé brotam da mesma fonte e, sendo obra do mesmo
autor, não podem ser contrárias entre si. A teologia não destrói o uso
da razão, mas a pressupõe, e não a anula, mas a completa.
É nesse contexto que Francisco de Sales elaborou a sua reflexão
e desenvolveu a sua espiritualidade. Hoje cabe a nós dar continuidade a
essa corrente espiritual que tanto iluminou a vida de muitas pessoas, na
busca da felicidade e, em última instância, na busca do próprio Deus.
Francisco de Sales e Dom Bosco, cada um no seu tempo, vi-
veram com essa forte convicção que nos legaram. Francisco escreve:
«não há terreno tão ingrato que a dedicação do agricultor não torne
produtivo».18 E propõe, por isso, outro elemento fundamental da espi-
ritualidade e da pedagogia salesiana: a paciência, que nada mais é do
de Santo Agostinho: «Fecisti nos – inquit – Domine, ad te, et inquietum est cor
nostrum donec revertatur ad Te» (OEA XXII, 7). Também encontrada numa
homilia de 1594 (OEA VII, 189).
18 Cf. OEA XV, 28, in M. Wirth, San Francesco di Sales, 29.

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16 ATOS DO CONSELHO GERAL
que a imitação da que Deus tem para conosco. Isso também foi uma
constante em Dom Bosco.
Hoje, cabe a nós, como Família que participa dessa espirituali-
dade, continuar a confiar e consolidar os recursos da inteligência, do
coração e do anseio de Deus, diante de todo tipo de dificuldade. Certa-
mente, este trabalho requer um perfil específico e definido de educador
salesiano que viva com intensidade a convicção de que o bem sempre
se aninha no coração de cada pessoa, de cada jovem, por mais oculto
que esteja, como também acreditava Dom Bosco, e que todo coração
humano está qualificado para o Encontro com Deus. Compete-nos aju-
dar a percorrer esse caminho.
3. A vida em Deus
que «associa numa única experiência de vida educadores e jovens».
Francisco de Sales soube apresentar a vida espiritual como uma
realidade ao alcance de todos. O termo por excelência que ele usa
para se referir à vida cristã em Deus é “devoção”, como expressão de
amor a Deus com as características de não ser nem exclusivo e nem
fechado. Ele não vê oposição entre querer ser totalmente de Deus e
viver plenamente a sua presença no mundo. Essa é provavelmente a
sua proposta mais original e “revolucionária”.
Se a devoção é amor, amor a Deus em primeiro lugar, também
é amor ao próximo, e essa devoção pode ser praticada por todos e em
qualquer realidade humana. Para ter uma vida cristã autêntica, não é
necessário retirar-se do mundo, ir para o deserto ou entrar necessaria-
mente num convento.
Em sua Introdução à vida devota, dirigindo-se com o nome
poético de Filoteia a todos os que querem amar a Deus, ele apresen-
ta um itinerário de vida cristã no meio do mundo, mostrando que é
necessário usar as próprias asas para elevar-se às alturas da oração, e

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CARTA DO REITOR-MOR 17
ao mesmo tempo é preciso servir-se dos próprios pés para caminhar
junto com outras pessoas em um santo e amigável diálogo.
«A viva e verdadeira devoção, Filoteia, pressupõe amor de
Deus, ou, melhor dizendo, é verdadeiro amor de Deus, mas não
um amor qualquer; porque, quando o amor divino embeleza a
nossa alma, toma o nome de graça, tornando-nos agradáveis à
sua divina Majestade; quando nos dá a força de fazer o bem,
chama-se caridade; mas quando chega a tal grau de perfeição,
que não somente nos leva a praticar o bem, mas até no-lo faz
praticar com zelo, constância e prontidão, então chama-se de-
voção. [...] Em suma, a devoção é uma espécie de agilidade e
vivacidade espiritual pela qual a caridade atua em nós ou, se
quisermos, agimos por ela, com presteza e afeto. A caridade nos
faz observar todos os mandamentos de Deus sem exceção, e
a devoção faz com que os observemos com toda diligência e
fervor possíveis. Eis porque quem não observa todos os man-
damentos de Deus não pode ser julgado nem bom nem devoto;
para ser bom é preciso ter caridade e para ser devoto, além da
caridade, é preciso ter grande diligência e presteza na realização
das obras desta virtude».19
Não resisto a trazer aqui algumas linhas muito claras e fecundas
do nosso Autor que se referem à convicção de que cada pessoa vinda a
este mundo vem com um projeto pessoal de Deus para si; um projeto
de felicidade e realização plena da vontade de Deus para cada uma de
suas criaturas. Na Introdução à vida devota, ao falar da necessidade de
cada um encontrar a melhor forma de louvar a Deus no seu estado de
vida, São Francisco de Sales, em diálogo com Filoteia, diz:
«Diversas são as regras que devem seguir as pessoas na
sociedade, os operários e os plebeus, a mulher casada, a solteira
19 Introdução à vida devota I, 1.

2.6 Page 16

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18 ATOS DO CONSELHO GERAL
e a viúva. A prática da devoção tem que atender à nossa saúde,
às nossas ocupações e deveres particulares. Na verdade, Filo-
teia seria porventura louvável se um bispo fosse viver tão so-
litário como um cartuxo? Se pessoas casadas pensassem tão
pouco em ajuntar para si um pecúlio, como os capuchinhos?
Se um operário frequentasse tanto a igreja como um religioso o
coro? Se um religioso se entregasse tanto às obras de caridade
como um bispo? Não seria ridícula uma tal devoção, extrava-
gante e insuportável? Entretanto, é o que se nota muitas vezes;
e o mundo, que não distingue nem quer distinguir a devoção
verdadeira da imprudência daqueles que a praticam desse modo
excêntrico, censura e vitupera a devoção, sem nenhuma razão
justa e real».20
Esse caminho leva à teologia cristã da vocação em que cabe a
cada um realizar o processo de busca da própria vocação, em linha
com o Concílio Vaticano II: «todos os fiéis, seja qual for a sua condi-
ção ou estado, são chamados pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um
por seu caminho».21
Tanto Francisco de Sales como Dom Bosco fazem da vida quo-
tidiana uma expressão do amor de Deus, recebido e correspondido.
Nossos santos quiseram aproximar a relação com Deus à vida e a vida
à relação com Deus. Trata-se da proposta da «santidade ao pé da por-
ta» ou da «classe média da santidade» da qual o Papa Francisco fala
com tanto carinho. «Gosto de ver a santidade no povo paciente de
Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens
e nas mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos
doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta cons-
tância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja
militante. Esta é muitas vezes a santidade “ao pé da porta”, daqueles
20 Introdução à vida devota, I, 3.
21 LG, 11.

2.7 Page 17

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CARTA DO REITOR-MOR 19
que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus, ou – por
outras palavras – da “classe média da santidade”».22
Como Dom Bosco, também nós hoje devemos estar abertos
para cumprir a importante missão de acompanhar os jovens na busca
da vocação e da santidade, bem como de vivê-la nós mesmos. Talvez
seja o que nos pedem com maior urgência e necessidade. Ouvimos
ainda um eco recente do apelo dos jovens à Igreja no Sínodo sobre
os jovens que pedem, entre outras coisas, para serem acompanhados
no discernimento da sua vocação. A Exortação Apostólica do Papa
Francisco Christus Vivit, querendo responder aos jovens, é um desafio
também para nós como Família Salesiana:
«Há sacerdotes, religiosos, religiosas, leigos, profissionais e
até jovens qualificados, que podem acompanhar os jovens no
seu discernimento vocacional. Quando nos toca ajudar o outro
a discernir o caminho da sua vida, a primeira coisa a fazer é
ouvir».23
E tocamos assim, quase com as mãos, outro elemento funda-
mental da nossa espiritualidade. Trata-se da presença e da escuta, jus-
tamente para ajudar quem vem até nós, e de quem nos aproximamos,
para estabelecer uma relação de amizade, de encontro, de proximida-
de, algo que novamente adquire um sabor salesiano de colocar o jo-
vem, a pessoa, no centro. O ‘Da mihi animas’ de Dom Bosco, e ainda
antes de Francisco de Sales, continua hoje em plena vigência.
São Francisco de Sales orientou a sua vida pastoral como reali-
zação de uma missão que lhe fora confiada. É a participação do amor
de Deus que o leva a participar também da missão salvífica de Cristo
Bom Pastor. A partir da experiência do amor de Deus em si mesmo,
22 Joseph Malègue, Pierres noires. Les classes moyennes du Salut, París 1958, Cita-
do in FRANCISCO, Gaudete et exsultate, 7.
23 CV, 291.

2.8 Page 18

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20 ATOS DO CONSELHO GERAL
ele sente que esse amor ardente, ou ardor amante, se traduz em alegria
pela conversão do pecador e dor pela dureza de coração de quem re-
jeita esse convite. É a leitura pessoal do da mihi animas feita por São
Francisco de Sales.24
Faríamos uma boa atualização deste zelo e caridade pastoral de
São Francisco se, como ele, mantivéssemos a nossa vida firmemente
enraizada em Cristo. Só assim a ação apostólica é fecunda, porque
realizada a partir da necessidade vivenciada de comunicar o amor com
que nos sentimos amados. Mais uma vez, uma boa homenagem a
São Francisco de Sales no quarto centenário de sua morte seria a
renovação e, em alguns casos, a recuperação, do dinamismo apos-
tólico do da mihi animas coetera tolle, entregando-nos a Deus e aos
jovens com a mesma caridade pastoral, sua e de Dom Bosco.
A espiritualidade salesiana de Dom Bosco, comparada a outras
correntes espirituais que alguns especialistas chamam de “abstratas”,
situa-se numa linha muito diferente, porque inspirada por um mestre
como Francisco de Sales, que propõe uma espiritualidade para a vida
ordinária.25 Numa feliz expressão atribuída ao santo, dir-se-ia que «de-
vemos florescer onde Deus nos plantou».26 Esta é uma característica
24 Dom Jean Pierre Camus, Bispo de Belley e amigo pessoal de Francisco de Sales,
em seu livro sobre o espírito do Beato Francisco de Sales, ao tratar do seu zelo
pelas almas, enaltece o desapego do santo dos bens materiais, a sua preocupa-
ção puramente pastoral e coloca em seus lábios a oração dirigida ao Senhor: «da
mihi animas, coetera tolle». Para o fecundo escritor, estas palavras expressariam
o ardente zelo pastoral que sempre guiou todos os seus empreendimentos. Cf. J.
P. Camus, El espíritu de San Francisco de Sales II, Balmes, Barcelona 1947, p.
339. Citado in E. Alburquerque, Don Bosco y sus amistades espirituales, CCS,
Madri 2021, San Francisco de Sales. Afinidad y convergencia espiritual, p. 11-27.
25 Cf. M. Wirth, San Francesco di Sales, 156. São Francisco de Sales inspira-se em
mestres espirituais que foram ao mesmo tempo pregadores, pastores e diretores
espirituais, como São Filipe Neri, fundador do Oratório em Roma. Suas principais
fontes de espiritualidade são as obras de espiritualidade que aproximam a perfei-
ção cristã da condição comum do cristão no mundo.
26 Ibid.

2.9 Page 19

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CARTA DO REITOR-MOR 21
fundamental da espiritualidade salesiana: ser realista. Aprender a amar
a condição que temos, assumir a vida como ela se apresenta e amá-
-la como manifestação da aceitação da vontade de Deus pode parecer
uma atitude passiva, mas não o é quando se trata de praticar a virtude,
fazer o bem, cumprir com o próprio dever, enfrentar as coisas de cada
dia, no lugar onde a providência de Deus nos plantou, e talvez onde
nem sempre gostaríamos de estar, ou talvez sim. É preparar o coração
para a aceitação da vontade de Deus.
Vem logo à mente ser essa a espiritualidade proposta pelo pró-
prio Dom Bosco aos seus meninos e salesianos. A título de exemplo,
uma pérola: as mortificações de Domingo Sávio.
«[...] Pobre de mim! Estou deveras atrapalhado... Nosso Senhor
diz que devo fazer penitência, se não, não vou para o céu; e, no
entanto, estou proibido de fazê-la. A que paraíso posso então
aspirar?».
– A penitência que o Senhor quer de ti, disse-lhe eu, é a obe-
diência. Obedece e basta.
– Não podia permitir-me qualquer outra penitência? – Posso,
sim: são permitidas as penitências de sofrer com paciência as
injúrias que te fizerem, de suportar com resignação o calor, o
frio, o vento, a chuva, o cansaço e todos os incômodos que Deus
quiser enviar-te.
– Mas isso sofre-se por necessidade.
– O que sofres por necessidade, oferecido a Deus, pode tornar-
-se virtude e mérito para a tua alma.
Contente e resignado com estes conselhos, retirou-se
tranquilo».27
27 Cf. Istituto Storico Salesiano, Fontes salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra.
Coletânea antológica, EDB, Brasília 2014, Vida do jovem Domingos Sávio, aluno
do Oratório de S. Francisco de Sales, p. 1144.

2.10 Page 20

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22 ATOS DO CONSELHO GERAL
A nossa Família Salesiana assumiu o seu modo de viver a rela-
ção com Deus através do cumprimento do dever, com a consciência
de que é assim que devemos corresponder, participar e cooperar com
Deus na ação criadora e com Cristo na construção do Reino.
Dom Bosco promoveu e viveu com seus jovens e salesianos
as características deste modo simples, próximo e quotidiano de viver
a relação com Deus. Corresponde à maneira de Francisco de Sales
propor a prática das virtudes no quotidiano, mas aquelas que corres-
pondem à sua condição e estado, não outras.
«O Senhor, criando o universo, ordenou às árvores que
produzissem frutos, cada uma segundo a sua espécie; e ordenou
do mesmo modo a todos os fiéis, que são as plantas vivas de
sua Igreja, que produzissem frutos dignos de piedade, cada um
segundo o seu estado e vocação».28
4. A doçura e a amabilidade de tratamento
que nos leva a viver «em clima de família, de confiança e de
diálogo».
São Francisco de Sales é conhecido principalmente pela sua
amabilidade e doçura. Assim escreve em uma de suas cartas:
«Gosto especialmente destas três pequenas virtudes: a
amabilidade de coração, a pobreza de espírito e a simplicidade
de vida. E também os exercícios mais exigentes: visitar os
enfermos, servir os pobres, confortar os aflitos e outros, não por
obrigação, mas com verdadeira liberdade».29
28 Introdução à vida devota I, 3.
29 Carta 308. À Baronesa de Chantal, de 8 de setembro de 1605. Consultada na
edição digital, p. 83/321. OEA XIII, 92. Citado in: Cf. Eunan McDonnell, God
Desires You, De Sales Resource Center, Stella Niagara, N.Y., 2008, 56.

3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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CARTA DO REITOR-MOR 23
Os que estudaram a sua vida e a sua personalidade estão de
acordo ao afirmar que o seu caráter afável não era espontâneo30 como
não o era em Dom Bosco. São Francisco de Sales propôs-se como
modelo a imitar Jesus Cristo, manso e humilde de coração,31 e pode-se
dizer que a doçura foi a sua virtude característica. «Uma doçura, no
entanto, muito diferente da gentileza artificial consistente apenas no
refinamento das maneiras e na exibição de uma amabilidade cerimo-
niosa, muito alheia tanto à apatia, que não se move por nada, quanto
à timidez, que não ousa indignar-se mesmo quando necessário. Essa
virtude, que brotou no coração de Sales como o mais doce fruto da
caridade, nutrida pelo espírito de compaixão e tolerância, temperava
com sua doçura a gravidade da sua aparência e iluminava a sua voz
e os seus gestos de tal maneira que o fez conquistar a mais afetuosa
reverência de todos».32
Foi essa doçura que atraiu também Dom Bosco, desde o início
do seu trabalho pastoral, e que caracterizou o seu estilo educativo na
relação com seus meninos. Refletir hoje, desde Roma, sobre a bonda-
30 Por exemplo: «Muitos biógrafos afirmam que ele era de temperamento colérico,
forte, impaciente, muito de sua raça, um verdadeiro saboiano. Por causa disso,
a cólera frequentemente fervia em sua cabeça, sentia-se incomodado com a lin-
guagem insolente ou as ações imprudentes, a desordem irritava-o interiormente,
seu semblante mudava de cor e ele ficava vermelho diante de uma contradição.
No entanto, a luta constante a essas tentações, a vigilância, o esforço ascético, o
controle pessoal e a ajuda da graça, conduziram-no àquela doçura primorosa que
faz dele uma imagem viva de Cristo. Não se deveria falar, então, de uma doçura
natural de Francisco de Sales, mas sim ver nela o fruto de um combate vitorioso».
Cf. E. Alburquerque, Espíritu y espiritualidad salesiana, Editorial CCS, Madri
20217, 105-12.
31 Cfr. Eunan McDonnell, God Desires You, p. 56-67.
32 Cf. Pio XI, Carta Encíclica Rerum ómnium perturbationem, de 26 de janeiro de
1923. O Papa Bento XV pretendia escrever uma encíclica no terceiro centenário
da morte de São Francisco de Sales. O seu desejo foi realizado em 1923 pelo seu
sucessor Pio XI, que enfatizou a doçura da santidade de Francisco e a sua aces-
sibilidade a todos: a bondade de alma do Santo transpareceu, e pode-se dizer que
era sua virtude característica.

3.2 Page 22

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24 ATOS DO CONSELHO GERAL
de e a doçura permite-nos intuir alguns dos sentimentos que o próprio
Dom Bosco tinha pelos seus meninos e que transmitiu, não sem sofri-
mento, na carta de 10 de maio de 1884 aos seus salesianos. Nela ele
nos recorda: «A caridade dos que mandam, a caridade dos que devem
obedecer, faça reinar entre nós o espírito de São Francisco de Sales».33
Dom Bosco ensina que acolhimento, cordialidade, gentileza,
bondade, paciência, afeto, confiança, doçura, mansidão são expres-
sões do amor que gera confiança e familiaridade. É nesse ambiente
que nasce a nossa espiritualidade salesiana, rica de compreensão e
misericórdia, de acolhimento e capacidade de esperar com paciência
o progresso dos jovens.
Como Francisco de Sales, Dom Bosco queria viver com a man-
sidão e a humildade do coração de Jesus (Mt 11,29). No sonho, aos
nove anos de idade, ele recebeu uma ordem da «Mestra» em meio
a uma multidão de cabras, cães, gatos, ursos e outros animais: «Eis
o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto;
e o que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus
filhos».34 É emocionante ver que nas primeiras lembranças registradas
nas Memórias do Oratório de São Francisco de Sales, escritas por
Dom Bosco por obediência, tenha prioridade a atitude humilde com
que enfrentar as dificuldades.
As qualidades da mansidão e da humildade de coração foram
para Francisco de Sales o único auxílio da sua missão na região do
Chablais onde, como missionário, fez uma belíssima pastoral, modelo
33 J. Bosco, Carta de Roma para a comunidade salesiana do Oratório de Turim-
-Valdocco, in Istituto Storico Salesiano, Fontes Salesianas. 1. Dom Bosco e a sua
obra. Coletânea antológica, EDB, Brasília 2014, 525.
34 J. Bosco, Memórias do Oratório de S. Francisco de Sales de 1815 a 1855, in Isti-
tuto Storico Salesiano, Fontes Salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra. Coletânea
antológica, EDB, Brasília 2014, EDB, Brasília, 2012, 1259.

3.3 Page 23

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CARTA DO REITOR-MOR 25
de estilo apostólico ainda hoje. De maneira muito diferente de outros
missionários, que procuravam fazer-se temidos, Francisco de Sales
atraiu mais moscas com uma colher do seu mel habitual do que com
um barril de vinagre!35
Esse espírito de bondade, doçura e mansidão foi profundamen-
te gravado nos primeiros salesianos, pois pertence à nossa mais antiga
tradição. Tudo indica que não podemos negligenciá-lo, muito menos
perdê-lo, sob o risco de prejudicar significativamente a nossa identida-
de carismática. O modo como este espírito de bondade e gentileza se
transmite e comunica entre nós pode ser visto na vida dos meninos que
se tornaram salesianos, precisamente pela experiência pessoal do trata-
mento familiar, acolhedor, amável e respeitoso oferecidos pela convi-
vência com Dom Bosco e com os primeiros salesianos em Valdocco. De
fato, nos primeiros tempos se falava de um “quarto voto salesiano”, que
incluía a bondade (antes de tudo), o trabalho e o Sistema Preventivo.36
Unindo esse testemunho com aquele deixado pelas testemunhas
do sonho da Carta de Roma, em particular Valfré, que aparece no so-
nho e que estava no Oratório antes de 1870, lemos:
«Era uma cena cheia de vida, movimento, alegria. Alguns
corriam, outros pulavam, outros faziam pular [...]. Noutro
[lugar], uma roda de jovens pendia dos lábios de um padre, que
35 Cf. J.-P. Camus, L’Esprit du bienheureux François de Sales, partie I, section 3. Ci-
tado in M. Wirth, San Francesco di Sales, 97. Dom Jean Pierre Camus, ao falar da
personalidade de Francisco de Sales, evidencia as expressões que utilizou diante
dos seus opositores e adversários, que refletem bem a sua humildade e mansidão.
Ele fala de irmãos, filhos da igreja disponíveis, irmãos na esperança da mesma
vocação para a salvação, e sempre chamou a Sé de Genebra «minha pobre» ou
«minha querida», termos de compaixão de amor.
36 Cf. A. Giraudo, o.c. p. 3-5, «[…] temos três quartos votos, segundo os vários
aspectos: a bondade, o trabalho, o Sistema Preventivo […]» (p. 70). Cf. o comen-
tário de A. Alburquerque, Espíritu y espiritualidad salesiana, «El cuarto voto
salesiano» e em nota: A. Caviglia, Conferenze sullo Spirito Salesiano, Istituto
Internazionale Don Bosco, Torino 1953, p. 107.

3.4 Page 24

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26 ATOS DO CONSELHO GERAL
lhes contava uma história. Noutro ainda, um clérigo no meio de
um grupo de meninos brincava de burro voa e de jerônimo [...].
Via-se que entre jovens e superiores reinava a maior cordialida-
de e confiança [...] a familiaridade gera o afeto e o afeto produz
confiança [...] abre os corações».37
Não podemos imaginar uma presença salesiana no mundo, uma
presença das Filhas de Maria Auxiliadora, dos Salesianos de Dom
Bosco e dos atuais trinta e dois grupos que compõem a Família Sale-
siana de Dom Bosco, que não tenha a característica da bondade como
elemento distintivo, ou pelo menos deveríamos tê-la, como o Papa
Francisco quis lembrar com a sua expressão esclarecedora de “opção
Valdocco”.38 É a nossa opção pelo estilo salesiano feito de gentileza,
afeto, familiaridade e presença. Temos um tesouro, um presente rece-
bido de Dom Bosco, que agora cabe a nós reavivar.
A Carta de Identidade da Família Salesiana contempla o afeto
e a amorevolezza salesiana como um aspecto característico da identi-
dade da Família Salesiana.
«A bondade (amorevolezza) de Dom Bosco é, sem dúvida, um
traço característico da sua metodologia pedagógica tida ainda
hoje como válida, tanto nos contextos ainda cristãos quanto na-
queles nos quais vivem jovens que pertencem a outras religiões.
Entretanto, não se reduz apenas a um princípio pedagógico, mas
deve ser reconhecida como elemento essencial da nossa espiri-
tualidade.
37 J. Bosco, Carta de Roma à comunidade salesiana do Oratório de Turim-Valdocco,
in Istituto Storico Salesiano, Fontes Salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra. Cole-
tânea antológica, EDB, Brasília 2014, 518-519.
38 Cf. Papa Francisco, Mensagem de Sua Santidade o Papa Francisco aos membros
do CG28, in ACG 433, «Quais salesianos para os jovens de hoje?». Reflexão
pós-capitular da Sociedade de São Francisco de Sales, Roma 2020.

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CARTA DO REITOR-MOR 27
Ela, com efeito, é amor autêntico porque vem de Deus; é amor
que se manifesta nas linguagens da simplicidade, da cordiali-
dade e da fidelidade; é amor que gera vontade de correspon-
dência; é amor que suscita confiança, abrindo caminho para a
confidência e a comunicação profunda («a educação é coisa do
coração»); é amor que se difunde criando clima de família, no
qual viver em comum é belo e enriquecedor».39
Francisco de Sales atraía as pessoas com a sua doçura. São Vi-
cente de Paulo descreveu-o como a pessoa mais parecida com nosso
Senhor.40 Ele aprendera de Jesus, manso e humilde de coração. O co-
ração de Jesus tem um significado profundo para Francisco de Sales e
para Dom Bosco. O amor de Deus feito carne encontra no coração hu-
mano de Jesus a mais eloquente expressão de amor. A partir da liber-
dade com que Deus cria a humanidade, através da doçura, da bondade
e do afeto como forma de Deus tratar seus filhos e filhas, chegamos ao
centro da espiritualidade salesiana, que é também o modelo do nosso
ser e viver: o amor.
Para muitos dos nossos jovens, a experiência mais relembrada
do encontro com a Família Salesiana no mundo é, com frequência, o
aspecto familiar, o acolhimento e o afeto com que se sentem tratados.
Em suma, o espírito de família.
De onde vem em Francisco de Sales a capacidade de amor e
amabilidade, de doação e entrega de si? Sem dúvida da profunda cer-
teza a que chegou depois de superar duas fortes crises que o faziam
sentir-se indigno do amor de Deus. Na verdade, a experiência de cri-
se e escuridão, que todos podemos vivenciar, foi também vivida por
grandes santos como Teresa d’Ávila, Teresa de Calcutá, João da Cruz
39 Carta de identidade da Família Salesiana, n. 32.
40 Cf. Eunan McDonnell, God Desires You, p. 57.

3.6 Page 26

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28 ATOS DO CONSELHO GERAL
etc.... Em Francisco de Sales brotou uma esperança purificada que o
levou a confiar não nos próprios méritos, mas na misericórdia e na
bondade de Deus. Moveu-se em direção ao “puro amor”, um amor que
ama a Deus por si mesmo. Deus não nos ama porque somos bons, mas
porque Ele é bom, e nós não amamos a Deus porque queremos algo
de bom d’Ele, mas porque ele mesmo é o maior bem. A realização da
vontade de Deus não se dá com sentimentos de “indignidade”, mas
com a esperança na misericórdia e na bondade de Deus. Este é o oti-
mismo salesiano. Esta perspectiva leva-nos a rejeitar com convicção
toda ideia que apresente Deus como um justiceiro arbitrário e aceitar
o Deus revelado por Jesus – um Deus misericordioso e amoroso – e
a contemplar o quanto em Francisco de Sales o seu coração se alarga
ao perceber o amor infinito de Deus. Assim, quando fala do amor de
Deus, ele fala de uma experiência pessoal, da sua vivência. Enfim,
Francisco de Sales responde ao amor de Deus com o amor. Esta de-
claração profundamente sincera, que ele faz em oração, é verdadeira-
mente comovente:
«Aconteça o que acontecer, Senhor, tu que tens tudo na tua mão e
cujos caminhos são a justiça e a verdade; seja o que for que tenhas
estabelecido para mim neste segredo eterno de predestinação e
condenação; tu, cujos julgamentos são um abismo profundo,
tu que és sempre justo juiz e Pai misericordioso, eu te amarei,
Senhor, pelo menos nesta vida, se não me for dado amar-te na
vida eterna; pelo menos te amarei aqui, ó Deus, e esperarei
sempre na tua misericórdia, e sempre repetirei o teu louvor,
apesar de tudo o que o anjo de Satanás cultiva para me inspirar
o contrário. Senhor Jesus, tu serás sempre a minha esperança e a
minha salvação na terra dos vivos. Se, porque necessariamente

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CARTA DO REITOR-MOR 29
mereço, devo ser amaldiçoado entre os malditos que não verão o
teu doce rosto, pelo menos me permitas não estar entre aqueles
que amaldiçoam o teu santo nome».41
A crise de Francisco de Sales revelou a parte mais profunda do
seu ser: um coração apaixonado por Deus. Ele compreendeu que o
ápice do amor puro é a submissão da própria vontade, à imitação de
Cristo no Horto das Oliveiras. Tal resposta só pode ser dada por puro
amor e brota do centro mais sublime do espírito. É um amor baseado
na fidelidade e no sacrifício pela pessoa amada. Jesus, na agonia do
horto, é o nosso modelo: «Não o que eu quero, mas o que tu queres»
(Mc 14,36).42
A convicção de que o amor de Deus não se baseia no sentir-se
bem, mas no fazer a vontade de Deus Pai, está no centro da espiritua-
lidade de Francisco de Sales e deve ser modelo para toda a família de
Dom Bosco. Francisco exprime-o esplendidamente aludindo à neces-
sidade de fazer um caminho das consolações de Deus ao Deus das
consolações, do entusiasmo ao verdadeiro amor, permanecendo fiel
nas provações; passando do encantamento ao verdadeiro amor pelos
outros. Um amor puro e desinteressado que nada busca para si, des-
centralizado de si mesmo. Deus, que quer salvar a todos, mostra-nos
que o amor perfeito afasta qualquer temor. Fazer tudo por amor, nada
por temor, porque o que nos leva a amar é a misericórdia de Deus e
não os nossos méritos.
A partir desta espiritualidade salesiana, será significativo para nós
descobrir o amor incondicional de Deus como centro de todo o dinamis-
mo da caridade e do zelo pastoral pelos outros que Francisco de Sales,
primeiro, e Dom Bosco, depois, desenvolveram magnificamente.
41 OEA XXII, 19-20.
42 Cf. Eunan McDonnell, God Desires You, p. 18.

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30 ATOS DO CONSELHO GERAL
5. Amor incondicionado e sem restrições:
«Imitando a paciência de Deus, encontramos os jovens no ponto
em que se acha a sua liberdade».
A santidade para todos é um elemento essencial da proposta
espiritual de Francisco de Sales, fundada no amor a Deus e por todos
e cada um. Este amor tem, na devoção ao Sagrado Coração de Jesus,
um modelo sólido a imitar e seguir. Juntamente com a mansidão e a
humildade, o ápice do amor puro é a submissão da própria vontade, à
imitação de Cristo no Horto das Oliveiras. Amar é um ato de vontade,
um ato de abandono, em que se acolhe a vontade de Deus.
Francisco de Sales cita o coração mais de trezentas vezes no
Tratado do Amor de Deus. Sendo um humanista cristão, ele se refere
continuamente à pessoa criada à imagem e semelhança de Deus; e na
pessoa humana ele encontra a “perfeição do universo”:
«O homem é a perfeição do universo, o espírito a perfeição do
homem, o amor a perfeição do espírito e a caridade, a perfeição
do amor; por isso o amor de Deus é o fim, a perfeição, a exce-
lência do universo. Nisto consiste a grandeza e o primado do
primeiro e grande mandamento do amor divino chamado pelo
Salvador de o maior e primeiro mandamento».43
O coração do ser humano (mulher e homem), coração como o
do filho pródigo (Lc 15), quando se afasta do bem, ainda assim conser-
vará a vontade que continua a atraí-lo para o bem. Esse é o modo com
que Deus nos criou, e não podemos chegar a Deus só com as nossas
forças, dependendo apenas da natureza humana, se Ele não nos ajudar
com a sua providência, com a sua graça e com o seu amor. A inclina-
ção natural para o bem, o belo e o verdadeiro podem ser suficientes
para fazer-nos partir, para nos colocar a caminho, e é aí que nos assiste
43 Tratado do amor de Deus, X, 1

3.9 Page 29

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CARTA DO REITOR-MOR 31
e guia a ação de Deus em nós, a sua graça, que não é negada a ninguém
que O procure.
Santo Agostinho dizia que «o nosso coração está inquieto en-
quanto não repousar em ti».44 Seguindo o pensamento de Francisco de
Sales, poderíamos dizer com von Balthasar: «o teu coração [ó Deus]
está inquieto enquanto não repousarmos em ti e tempo e eternidade
submerjam um no outro».45
Encontramos na tradição salesiana numerosos exemplos de de-
voção preferencial ao Coração de Jesus, tanto em Francisco de Sales
como em Joana de Chantal, e de modo muito especial em uma de suas
filhas da Visitação, Santa Margarida Maria Alacoque; até chegar ao
tempo de Dom Bosco com um impulso especial dado à devoção pelo
Papa Pio IX,46 que beatificou Margarida Maria Alacoque e, em 1877,
declarou São Francisco de Sales Doutor da Igreja. O tempo de Dom
Bosco foi marcado pela devoção ao Sagrado Coração de Jesus e, desde
a construção da Basílica concretizada pelo nosso Pai, a pedido do Papa
Pio IX, a Família Salesiana esteve ligada ao Amor de Jesus expresso
no seu coração. Quiçá seja este outro ponto de semelhança e contato
entre São Francisco de Sales e Dom Bosco: a fidelidade à Igreja e
44 Agostinho de Hipona, Confissões, I, 1.
45 Cf. H. U. von Balthasar, El corazón del mundo, Encuentro, Madri 2009, citado
in Eunan McDonnell, God Desires You, p. 30.
46 Pio IX publicou vários documentos sobre o Ofício da Missa do Sagrado Coração,
erigiu numerosas confrarias, concedeu indulgências a muitas práticas devocionais
como também beatificou Margarida Maria Alacoque (19 de agosto de 1864). A
Basílica do Sagrado Coração, no “Castro Praetorium” de Roma, reflete alguns
destes motivos: a pintura do altar-mor é uma tela encomendada por Dom Bosco ao
pintor Francesco de Rohden. Representa a terceira aparição do Sagrado Coração
de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque em 1687. A composição foi projetada
pelo próprio Dom Bosco: no centro, Cristo com um coração flamejante na mão.
Em torno dele, uma multidão de anjos. Na parte inferior, duas pinturas repre-
sentam São Francisco de Sales e Santa Margarida Maria Alacoque e, acima, um
querubim segura um pergaminho com a citação do livro dos Provérbios: «Praebe,
fili mi, cor tuum mihi» (Pr 23, 26): Dá-me, meu filho, o teu coração.

3.10 Page 30

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32 ATOS DO CONSELHO GERAL
à missão de anunciar o Evangelho, colocando Cristo no centro da
ação pastoral com a finalidade de chegar a todos. Não é irrelevante
definir a Basílica menor do Sagrado Coração de Roma “Templo Inter-
nacional”, como o “Tibidabo” de Barcelona e muitos outros templos
dedicados ao Sagrado Coração de Jesus em todo o mundo salesiano e,
naturalmente, na Igreja inteira.
No Coração de Jesus está viva a presença encarnada do amor
de Deus e da sua vontade de redenção do mundo. Isso nos garante que
Ele, o amor, é a última palavra de Deus no mundo. O Papa emérito
Bento XVI, em sua preciosa e magistral encíclica Deus Caritas Est,
descreve Jesus Cristo como a encarnação do amor de Deus, a mani-
festação da intervenção de Deus na história humana, que encontra sua
maior expressão em Jesus:
«Quando Jesus fala, nas suas parábolas, do pastor que vai atrás
da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que
sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas
de palavras, mas constituem a explicação do seu próprio ser e
agir. Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o
homem e salvá-lo — o amor na sua forma mais radical. O olhar
fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala João (cf. 19,37),
compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta
Encíclica: «Deus é amor» (1Jo 4,8). É lá que esta verdade pode
ser contemplada. E começando de lá, pretende-se agora definir
em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristão encon-
tra o caminho do seu viver e amar».47
Este pequeno excurso sobre a devoção ao Sagrado Coração
aproxima-nos do centro da nossa espiritualidade. Não há bondade,
não há dedicação aos necessitados, não há amabilidade ou liberdade,
47 Bento XVI, Deus caritas est, 12.

4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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CARTA DO REITOR-MOR 33
não há caridade ou qualquer um dos aspectos que apresentamos, se
faltar a fonte original do amor de Deus. É o amor e não o pecado que
explica a decisão livre de Deus de fazer parte da humanidade e ser um
de nós. Entendemos, com isso, que a Encarnação, o fazer-se homem,
foi eternamente desejado por Deus. Não se trata de uma espécie de
plano “b” que Deus inventa por causa do pecado do homem. Mesmo
que não houvesse o pecado do qual nos redimir, Deus ainda assim se
teria feito homem. Essa é a profunda convicção de Francisco de Sales.
A Encarnação também não é apenas um fato histórico, mas contínuo,
metafísico e pessoal. Deus se encarna em nossa história, por Sua pura
e livre iniciativa.
De daqui, ganham todo o sentido o apostolado e a dedicação à
nossa missão, como imitação d’Aquele que deu a sua vida por amor
de nós; amando do mesmo modo, com o dom da nossa vida, com a
humildade que Francisco de Sales chamava de “caridade descenden-
te”, entrando em relação com os outros, fazendo-nos pequenos com
os pequenos, por amor, para elevá-los. Esse é o “êxtase”: sair de si
mesmo e ir ao encontro do outro com a atitude de serviço de Jesus
como no lava-pés (Jo 13): «Jesus chamou-os e disse: quem quiser ser
o primeiro entre vós, seja vosso servo; o Filho do Homem não veio
para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos»
(Mt 20, 27-28).
Compreendemos a paternidade de Dom Bosco, expressão do
seu amor incondicional pelos jovens pobres, abandonados e em perigo
à luz da Palavra do Senhor, seguindo o bom exemplo de Francisco de
Sales.
Em nossa espiritualidade salesiana, a devoção e a vida espi-
ritual não estão separadas do apostolado e do exercício da caridade.
Por isso, ao lado da igreja, Dom Bosco quis um centro de educação e
formação para os seus meninos, uma casa que, como a de Valdocco e

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34 ATOS DO CONSELHO GERAL
como todas as outras do mundo, fosse uma casa para os jovens mais
necessitados, um pátio onde pudessem encontrar-se com os amigos.
Assim se completa e se realiza plenamente a devoção autêntica que
leva ao exercício da caridade para com o próximo. Dom Bosco quer
que o amor por Cristo nos conduza ao amor pelos jovens, caracterís-
tica salesiana da nossa vida e desafio permanente para a Família de
Dom Bosco hoje e sempre.
6. Com a necessidade de um guia espiritual:
«Acompanhamo-los para que eles amadureçam convicções sólidas».
A Família Salesiana continua a praticar a arte do acompanha-
mento, a mesma arte que Francisco de Sales e Dom Bosco cultivaram,
cada um no próprio tempo. O ministério, o serviço de orientação espi-
ritual, foi e é valorizado na Igreja como algo verdadeiramente impor-
tante na pedagogia e no sistema educativo salesiano e que deveríamos
praticar de modo sempre mais adequado. Trata-se do acompanhamen-
to. Também para essa missão colocamos em prática os princípios sa-
lesianos, herdados de Francisco de Sales: a bondade, a amabilidade, a
paciência, a escuta, a espera.
Os jovens de hoje, como os de todos os tempos, esperam uma
mão amiga que os ajude no seu caminho. A direção espiritual que
Francisco de Sales oferecia a muitas pessoas, ajudando-as a caminhar
para Deus no estado de vida em que se encontravam, foi também prati-
cada por Dom Bosco com os seus jovens, acompanhando cada um de-
les com a criação de um ambiente educativo e o contato pessoal. Não
foi por acaso que Dom Bosco inventou a “palavrinha ao ouvido”, ou
seja, uma maneira de propor um itinerário pessoal de santidade e cres-
cimento na própria vida, até ser o que Deus “sonhou” para cada um.
Refletir sobre este serviço aos jovens estimula-nos a aprofundar
o significado que o acompanhamento pessoal tem para cada um de nós.

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CARTA DO REITOR-MOR 35
É um modo precioso de servir ao próximo com a generosidade do tem-
po dedicado à escuta. Não há nada de mais valorizado na relação entre
as pessoas do que o tempo dedicado com generosidade à escuta do ou-
tro, deixando os demais trabalhos e encargos de lado para estar plena-
mente disponível a acolher, ouvir, orientar, guiar, propor, acompanhar.
Neste ano centenário de São Francisco de Sales, não podemos
preterir este serviço simples e humilde aos jovens, que exprime cla-
ramente o apreço e a importância que damos à sua vida quando dedi-
camos o nosso tempo para estar com eles, escutá-los, compreendê-los
e ajudá-los a seguir na própria vida o projeto que Deus lhes propõe.
Para nós, seguidores da espiritualidade de São Francisco de Sales em
Dom Bosco, ajudar os jovens a descobrirem e seguirem a vontade de
Deus dá sentido à nossa vocação de educadores e evangelizadores.
Esta é também a razão pela qual nascemos na Igreja, a razão pela qual
o Espírito Santo despertou em Dom Bosco o carisma salesiano vivido
hoje na sua Família espiritual.
A nossa predileção pelos jovens pobres e abandonados concre-
tiza-se e exprime-se na dimensão do serviço pastoral de acompanha-
mento. Não se trata decerto nem do mesmo ambiente cultural, nem
das mesmas pessoas que Francisco de Sales acompanhava. Entretanto,
não há diferença na importância atribuída à busca da vontade de Deus
na vida de cada pessoa, de cada jovem, de cada destinatário da nossa
missão. É evidente que reconhecemos como importante a pessoa que
está diante de nós quando, preterindo outras coisas, damos atenção à
sua vida, história e situação. Essa é a forma concreta de pôr em prática
o lema de Dom Bosco – «Da mihi animas, caetera tolle» – tão urgente
e importante para nós hoje como o foi para ele.
Na vivacidade da linguagem salesiana encontramos o desejo de
Dom Bosco de ser o “amigo da alma” de muitos jovens, como Francis-
co de Sales experimentara a amizade espiritual que nascia nas pessoas

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36 ATOS DO CONSELHO GERAL
que acompanhava. Dom Bosco, seguindo os passos de Francisco de
Sales, procurou levar os seus jovens à amizade com Deus, centro de
toda a vida espiritual: na vida quotidiana, quer nas circunstâncias mais
ordinárias quer nos momentos especiais e difíceis. Queria ser o amigo
dos jovens que nele podiam confiar e, como amigo e pai, aproximá-los
de Deus. Assim narra o mesmo Dom Bosco:
«Nessas ocasiões descobri que muitos voltavam àquele lugar
porque abandonados a si próprios. «Quem sabe – dizia de mim
para mim –, se tivessem lá fora um amigo que tomasse conta de-
les, os assistisse e instruísse na religião nos dias festivos, quem
sabe não se poderiam manter afastados da ruína ou pelo menos
não diminuiria o número dos que retornam ao cárcere?” Comu-
niquei esse pensamento ao padre Cafasso, e com o seu conselho
e com suas luzes pus-me a estudar a maneira de levá-lo a efeito,
deixando o êxito nas mãos do Senhor, pois sem ele são inúteis
todos os esforços dos homens».48
Na Introdução à vida devota, Francisco de Sales não impõe
qualquer condição ao propor a busca do “amigo da alma” para poder
caminhar na vida. É uma acolhida incondicional. Esse é o “estilo sale-
siano de acompanhamento”.49
«Quando o jovem Tobias recebeu a ordem de ir a Rages, disse:
“Não sei o caminho”. “Vai então”, respondeu o pai, “e procura
alguém que te sirva de guia”. É o que também digo a ti, Filoteia:
48 J. Bosco, Memórias do Oratório de S. Francisco de Sales de 1815 a 1855, in
ISS, Fontes Salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra. Coletânea antológica, EDB,
Brasília 2014, 121.
49 O estudo do acompanhamento tem recuperado interesse nos últimos anos, não
faltando trabalhos que apresentam propostas interessantes a aprofundar. Em nosso
ambiente salesiano, cf. Fabio Attard Miguel Ángel García (coord.), O acom-
panhamento espiritual. Itinerário pedagógico-espiritual em chave salesiana a
serviço dos jovens, EDB, Brasília, 2015, e também CRESPO-BUEIS, J. (coord.),
Acompañar a los jóvenes, CCS, Madri, 2021.

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CARTA DO REITOR-MOR 37
se tens uma vontade sincera de entrar nas veredas da devoção,
procura um guia sábio e prático que te conduza. Esta é a adver-
tência mais necessária e importante. Em tudo o que fazemos
– diz o devoto [João de] Ávila – só teremos certeza de fazer a
vontade de Deus enquanto não nos afastarmos daquela obediên-
cia submissa, que os santos tanto encomendaram e praticaram
tão fielmente».50
Encontrar esses amigos da alma que nos acompanhem pelo ca-
minho seria também um belo fruto deste centenário salesiano. Dom
Bosco levou tudo isso em muita consideração e o tornou realidade.
E o fez com o acolhimento incondicional, a atenção ao ambiente e à
presença, a amizade, o afeto, a confiança, a busca do bem de cada um,
a escuta de Deus que é quem colocou em nosso caminho a pessoa que
nos pode acompanhar. O próprio Dom Bosco mostra por experiência
própria o grande valor do acompanhamento em sua vida, especialmen-
te em alguns momentos decisivos. Ele diz:
«O padre Cafasso, meu guia havia seis anos, foi também meu
diretor espiritual, e se fiz algum bem, devo-o a este digno ecle-
siástico, em cujas mãos coloquei minhas decisões, estudos e
atividades».51
Francisco de Sales escrevera sobre esse assunto na Filoteia:
«[Este amigo] deve ser um anjo para ti, ou seja, uma vez que
o tenhas obtido de Deus, já não deves considerá-lo como um
simples homem. Não deposites a tua confiança nele senão com
respeito a Deus, que, por seu ministério, te quer guiar e instruir,
suscitando no seu coração e nos seus lábios os sentimentos e
50 Introdução à vida devota, I, 4.
51 J. Bosco, Memórias do Oratório de S. Francisco de Sales de 1815 a 1855, in Isti-
tuto Storico Salesiano, Fontes Salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra. Coletânea
antológica, EDB, Brasília 2014, p. 1313.

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38 ATOS DO CONSELHO GERAL
as palavras necessárias para a tua direção. Por isso, deves ou-
vi-lo como a um anjo que vem do céu para te dirigir. Ajunta a
esta confiança uma sinceridade a toda prova, tratando-o franca
e abertamente e deixando-lhe ver em tua alma todo o bem e o
mal que aí se encontram: o bem será mais certo e o mal menos
profundo; a tua alma será mais forte nas adversidades e mais
moderada nas consolações. Um religioso respeito também de-
ves ajuntar à confiança, de tal forma que o respeito não diminua
a confiança, nem a confiança o respeito. Confia nele como uma
filha em seu pai e respeita-o como um filho sua mãe. Numa
palavra: esta amizade, que deve unir a força com a doçura, tem
que ser toda espiritual, toda santa, toda sagrada, toda divina».52
Concluído o período no Colégio Eclesiástico de Turim, Dom
Bosco quis que a vontade de Deus guiasse os seus passos naquilo que
deveria iniciar e entregou-se à ponderação de quem melhor o conhecia
e podia guiar: o Padre Cafasso. Neste breve diálogo, ele mostra como
assimilou plenamente o que Francisco de Sales ensinara sobre o des-
pego, a busca sincera e a obediência no acompanhamento. Mostra-nos
um caminho de vida, não só para propor a outros, mas para nós mes-
mos o colocarmos em prática.
«Um dia o padre Cafasso me chamou e disse:
– O senhor terminou os estudos; deve agora trabalhar. A messe
é muito grande nestes tempos. A que se sente mais inclinado?
– Ao que lhe aprouver indicar-me.
– Há três trabalhos: vice-pároco em Buttigliera d’Asti, repetidor
de moral, aqui no Colégio, diretor do Pequeno Hospital, ao lado
do Refúgio. Que escolhe?
– O que o senhor julgar melhor.
52 Introdução à vida devota, I. 4

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CARTA DO REITOR-MOR 39
– Não se sente inclinado a uma coisa mais que a outra?
– Minha propensão é para cuidar da juventude. O senhor faça
de mim o que quiser; verei no seu conselho a vontade de Deus.
– Mas neste momento que há no seu coração? Em que pensa?
– Neste momento parece-me estar no meio de uma multidão de
jovens que me pedem ajuda.
– Vá então de férias por algumas semanas. Quando voltar lhe
direi o que deve fazer.
Após as férias o padre Cafasso deixou passar algumas semanas
sem nada me dizer; eu também não perguntei.
– Por que não me pergunta o que deve fazer? – disse-me um dia.
– Porque quero reconhecer a vontade de Deus na sua delibera-
ção e não quero que nela entre a minha vontade.
– Faça a trouxa e vá com o teólogo Borel; lá será diretor do Pe-
queno Hospital de Santa Filomena; trabalhará também na obra
do Refúgio. Entretanto Deus lhe mostrará o que deve fazer pela
juventude. À primeira vista esse conselho parecia contrariar mi-
nhas inclinações, porque dirigir um hospital, pregar e confessar
num instituto de mais de quatrocentas jovens não me deixaria
tempo para nenhum outro trabalho. Sem embargo, esta era a
vontade de Deus, como pude depois me certificar».53
Concluindo, descobrimos na espiritualidade de Francisco de Sa-
les em relação ao acompanhamento, que o nosso estilo educativo é uma
“mistagogia espiritual”. Esse estilo cuida do outro com uma amizade
educativa que ilumina, introduz na vida interior e gera uma relação
com Deus; e o fazemos com um estilo de vida e uma relação amiga,
53 J. Bosco, Memórias do Oratório de S. Francisco de Sales de 1815 a 1855, in Isti-
tuto Storico Salesiano, Fontes Salesianas. 1. Dom Bosco e a sua obra. Coletânea
antológica, EDB, Brasília 2014, p. 1320).

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40 ATOS DO CONSELHO GERAL
jovial, próxima, não superficial, mas capaz de acompanhar cada um no
caminho que conduz ao Amor de Deus. O acompanhante salesiano, por
sua vez, deve ter as atitudes próprias de quem vive o Sistema Preventi-
vo e a caridade pastoral.54
7. «Tudo por amor»
Para que «se tornem progressivamente responsáveis no delicado
processo de crescimento de sua humanidade na fé».
Um dos elementos que permeiam toda a espiritualidade sale-
siana de Francisco de Sales é o grande valor dado à oração. Referi
nestas páginas algumas formas de expressão devocional, como a do
Sagrado Coração, a atitude fundamental de confiança, o abandono nas
mãos da Providência, a consciência de termos em nós um “santuário
interior”, a amizade com Deus, que devemos cultivar e a bondade de
Deus que nunca recusa a sua ajuda a quem faz tudo o que pode e é fiel
nas pequenas coisas.
Percebe-se em tudo o zelo pastoral de Francisco de Sales, a sua
paciência com todos, a sua bondade, o seu otimismo, a sua força de
espírito e também o seu desejo de comunicar a todos a boa nova do
Evangelho. Tudo isso como fruto da sua relação com Deus, profunda
e simples ao mesmo tempo, quotidiana e como verdadeira amizade.
A sua vida de oração é a sua história pessoal de amor a Deus, com os
seus progressos, e os exercícios para evitar que se esfrie a sua relação
com o Coração do seu coração, centro da sua vida.
54 Cf. Aldo Giraudo, “Direção espiritual em S. João Bosco. Características peculia-
res da direção espiritual oferecida por Dom Bosco aos jovens”, in: Fabio Attard
– Miguel Ángel García (Coord.), O acompanhamento espiritual. Itinerário pe-
dagógico-espiritual em chave salesiana a serviço dos jovens, EDB, Brasília, 2015,
p. 195ss. «Dom Bosco é modelo: ele tende a identificar em si o educador, o confes-
sor e o diretor espiritual; insiste na acolhida afetuosa, na bondade, na magnanimi-
dade e no cuidado dos particulares, na intensidade do afeto demonstrado, de modo
que os jovens se entreguem e se abram, colaborem com a ação formativa com uma
obediência pronta e cordial».

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CARTA DO REITOR-MOR 41
Para Francisco de Sales, a oração como comunicação com Deus
é o coração do homem que fala ao coração do Senhor. É a forma de
oração da espiritualidade encarnada. Deus não é apenas Deus do cora-
ção humano, mas também “amigo do coração humano”.
A oração permite-nos encontrar o coração de Deus e confor-
mar o nosso coração ao dele. «Unimos a nossa vontade ao Senhor
para saborearmos as doçuras da sua incompreensível bondade; no alto
da escada, o Deus eterno inclinado para nós, dá-nos o seu beijo de
amor e faz-nos saborear o seu seio de suavidade, mais agradável que
o vinho».55
Francisco de Sales vive a oração como um diálogo de corações
no qual Deus toma a iniciativa.
«Nunca um presente é mais agradável do que quando o
recebemos de um amigo. As ordens mais brandas tornam-se
ásperas, quando ditadas por um coração tirano e cruel; e são-nos
gratíssimas quando ditadas pelo amor. Jacob considerava como
realeza a servidão a que se obrigara por amor. Muitos cristãos
observam os mandamentos como quem ingere um remédio,
mais pelo receio de morrer em pecado do que pelo desejo de
viver na graça de Deus. Diversamente, o coração apaixonado
ama os mandamentos, e quanto mais difíceis são, mais doces e
agradáveis lhe parecem, porque assim agrada mais ao Amado e
é maior a honra que lhe tributa».56
É uma questão de amar a vontade de Deus, de colocá-la em
prática, de encontrar na oração o melhor apoio para cumpri-la. A cha-
ve dessa espiritualidade está em recorrermos à oração para estar com
quem sabemos que nos ama, para fazer coincidir o batimento do nosso
coração com o do Mestre, como o discípulo amado, para contemplar,
55 Tratado do amor de Deus, XI,12, com evidente referência a Ct 1,2.
56 Ibid., VIII, 5.

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42 ATOS DO CONSELHO GERAL
pois orar não é pensar muito, mas amar muito; e repousar n’Ele, como
forma de recuperar e encontrar forças para continuar a amar.
Î A caridade como medida da nossa oração
A caridade é a medida da nossa oração, porque o nosso amor
a Deus se manifesta no amor ao próximo. É a “oração da vida”, tão
importante para São Francisco de Sales.57 Consiste em realizar todas
as nossas atividades no amor e pelo amor de Deus, de tal forma que
toda a nossa vida se torne uma oração contínua. Quem faz obras de
caridade, visita os enfermos, ajuda no pátio, dá tempo aos outros para
os escutar, acolhe os necessitados... está rezando. Os compromissos e
as ocupações não devem impedir a união com Deus, e quem pratica
esta forma de oração não corre o risco de se esquecer de Deus. Quando
duas pessoas se amam – conclui Francisco de Sales – os seus pensa-
mentos sempre se dirigem um para o outro.
Podemos reconhecer os meios simples que ele propõe para che-
gar à união com Deus – tema tão caro à nossa espiritualidade de filhos
e filhas de Dom Bosco – precisamente nas práticas de piedade que
Dom Bosco propunha aos seus meninos e aos seus primeiros salesia-
nos. Aos que se ocupam das coisas temporais, ele aconselha encontrar
momentos, mesmo que muito curtos, de recolhimento para unir o co-
ração a Deus com breves aspirações, jaculatórias e bons pensamentos,
ou tomar consciência de Deus em nosso espírito. Mesmo em meio a
conversas ou atividades, podemos estar sempre na presença de Deus.
Dessa forma, a verdadeira oração não negligencia as obrigações do
dia a dia. Quem experimentou tudo isso reconhece que Francisco de
Sales vivia o que aconselhava e ensinava aos outros. Tudo que ele fa-
zia, fazia-o para Deus e em Deus. Ele considerava essa “oração ativa”
melhor do que as outras. Quando estava sobrecarregado de trabalhos e
57 Cf. M. Wirth, San Francesco di Sales, 160.

5 Pages 41-50

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CARTA DO REITOR-MOR 43
compromissos, quase não dedicava tempo à oração formal: «sua vida
era uma oração contínua».58
Na Introdução à vida devota, Francisco de Sales apresenta os
graus da oração, seguindo de perto o exemplo de Santa Teresa de Je-
sus (oração vocal, mental, contemplativa e de quietude). Para a nossa
prática diária, valeria a pena aprofundar o valor da meditação para
Francisco de Sales. Ele considera que assim como se dá corda num
relógio para não parar, também a oração e o tempo dedicado ao Se-
nhor na meditação e no exame de consciência, e em outras práticas de
piedade, mantêm vivo o nosso zelo, o nosso ardor apostólico e o nosso
desejo de pertencer a Deus. Convém encontrar momentos para se re-
tirar no próprio coração, longe da agitação e do ativismo, e conversar
de coração a coração com Deus.
«Não há relógio, por melhor que seja, a que não se precise dar
corda de vez em quando e que não seja necessário consertar e
limpar periodicamente; e é necessário às vezes passar óleo nas
rodas, para que os movimentos se façam mais suavemente e
elas não criem tanta ferrugem. E todo aquele que cuida bem do
seu coração lhe deve dar corda, por assim dizer, de manhã e à
noite (para isso servem os exercícios indicados), e observar-lhe
sempre os movimentos, para poder regulá-lo bem. É necessário
que ao menos uma vez ao ano ele examine minuciosa e
cuidadosamente as suas disposições, para reparar as faltas que
se poderão ter intrometido, renová-las inteiramente e procurar
premunir-se quanto possível com a unção da graça que recebe
na confissão e na comunhão. Este exercício, Filoteia, há de re-
parar as tuas forças debilitadas pelo tempo, há de reanimar o
58 Cf. M. Wirth, San Francesco di Sales, 160. Em nota, Wirth faz referência a este
fato na carta da Madre de Chantal a Dom Jean de Saint-François, in Jeanne-Fran-
çoise Frémyot de Chantal, Correspondance, t. II, 305.

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44 ATOS DO CONSELHO GERAL
fervor de tua alma, há de fazer reviver as tuas boas resoluções e
reflorescer em ti todas as virtudes».59
Quando o processo é autêntico, a oração leva à ação e vice-ver-
sa. O valor adicional é que a oração é praticada com simplicidade e
com a renúncia do “nada pedir, nada recusar”, o que ajuda a purificar
as motivações da sequela, permite-nos ser guiados por Deus e propor-
ciona-nos uma autêntica liberdade.
Î Maria, a mãe de Jesus. Dirijamo-nos a esta Mãe,
invocando o seu amor materno.
Farei apenas uma referência breve e concisa, desejando enfati-
zar, contudo, que o crescimento humano na fé também encontra um
modelo em Maria, a mãe de Jesus.60 São Francisco de Sales dizia que a
Obra da Visitação, fundada com Joana de Chantal, teria como símbolo
um coração trespassado por duas flechas, coroado por uma cruz, ro-
deado por uma coroa de espinhos e com os sagrados nomes de Jesus e
Maria incisos nele. Maria aparece na teologia de Francisco de Sales de
forma semelhante ao que será a teologia do Concílio Vaticano II. Ma-
ria está no coração da Igreja. E a sua missão é atrair e conduzir todos
ao seu Filho.61 Por isso Francisco de Sales incentiva a unir-se a Maria,
como os discípulos, para receber a fonte da unidade, o Espírito Santo.
«Honra, venera e respeita de modo especialíssimo a Santíssima
e Excelsa Virgem Maria, que, como Mãe de Jesus Cristo, nosso
irmão, é também indubitavelmente a nossa Mãe. Recorramos a
ela e, como seus filhinhos, lancemo-nos a seus pés e aos seus
braços com perfeita confiança, em todos os momentos e em
todos os acontecimentos. Invoquemos a esta Mãe tão santa e
boa; imploremos o seu amor materno; tenhamos para com essa
59 Cf. Introdução à vida devota, o.c. V, 1.
60 Eunan McDonnell, God Desires You, p. 127-135.
61 Cf. OEA XXVI, 266. Citado in Eunan McDonnell, God Desires You, p. 128.

5.3 Page 43

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CARTA DO REITOR-MOR 45
Mãe um coração de filho e esforcemo-nos por imitar as suas
virtudes».62
Além disso, a figura de Maria, modelo de todas as virtudes, apre-
sentada como “revestida de Cristo”, percorre o caminho da humildade
como o seu Filho, com total dependência de Deus, disponível a Ele,
recebendo abundantemente a generosidade de Deus. Quando canta no
seu Magnificat a humildade da serva, é porque atraiu o olhar de Deus.
Enfim, a característica salesiana de devoção à Virgem, nossa
mãe e guia, corresponde à confiança que Dom Bosco depositou em
Maria como Consoladora, Imaculada e Auxiliadora de todos os irmãos
do seu Filho. Ela colabora no desígnio de salvação de Deus e, nas pa-
lavras de Francisco de Sales, Deus «fez Maria passar por todos os es-
tados de vida, para que todos pudessem encontrar nela o que precisam
para viver adequadamente o próprio estado de vida».63 Nela vemos
o que Deus está disposto a fazer com o seu amor, quando encontra
corações disponíveis como o de Maria. Esvaziando-se, ela recebe a
plenitude de Deus. Permanecendo à disposição de Deus, Ele é capaz
de realizar grandes coisas n’Ela.
A contemplação de Maria, com a sua vida e o seu sim a Deus,
convida-nos a abrir-nos ao amor de Deus, na consciência de que o
coração de Jesus, desde a árvore da cruz, nos contempla e nos ama.
Em Maria vemos realizado o verdadeiro destino do nosso coração, o
coração de Deus.
Î Francisco de Sales, um humanista cristão que comunica
Deus
Há outra característica de Francisco de Sales que, talvez, o tor-
ne mais conhecido nos círculos culturais do nosso mundo: ele é o Pa-
trono dos jornalistas. Numa época em que a comunicação se realiza de
62 Introdução à vida devota, II, 16.
63 OEA IX, 342. Citado in Eunan McDonnell, God Desires You, p. 134.

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46 ATOS DO CONSELHO GERAL
tantos modos, com suas vantagens e seus defeitos inegáveis, Francisco
de Sales destaca-se pelo valor que dignifica a profissão jornalística: a
busca e a difusão da verdade.
Quando o Papa Pio XI, em 1923, declarou Francisco de Sales
Patrono dos jornalistas,64 indicou suas principais características como
comunicador. O seu itinerário amável de santidade mostrou aos ou-
tros, através dos seus escritos, o caminho seguro e simples da perfei-
ção cristã.
Mostrar, como fez Francisco de Sales, que a santidade é para
todos e perfeitamente compatível com todos as profissões e condições
da vida civil, implica também em saber comunicar os conteúdos da
fé e da religião numa linguagem simples, compreensível e agradável.
Esta é a virtude e a característica salesiana da comunicação da verda-
de, com todos os meios possíveis, para que o anúncio chegue a todos
e ajude a todos a compreenderem a mensagem que se quer transmitir.
O desejo de comunicar a verdade do Evangelho, enquanto não
tinha um púlpito para transmitir as suas catequeses ao povo de Deus,
que lhe fora confiado como seu pastor, foi acompanhado de uma cria-
tividade e originalidade sem par, como os folhetos que colocava em
lugares públicos ou debaixo das portas. Ele, então, se fazia presente
com este modo simples, gratuito e acessível.
Pio XI, na encíclica do terceiro centenário da morte de Francisco
de Sales, enuncia os princípios fundamentais, ainda atuais e dignos de
consideração como modelo de conduta íntegra, profissional e honesta.
«Mas gostaríamos que destas solenes ocorrências [terceiro
centenário da morte de Francisco de Sales] a principal van-
tagem fosse retratada por todos aqueles católicos que, com a
64 Pio XI, Carta encíclica Rerum Omnium Perturbationem, sobre São Francisco de
Sales, 26 de janeiro de 1923.

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CARTA DO REITOR-MOR 47
publicação de jornais ou outros escritos, ilustram, promovem e
defendem a doutrina cristã. É necessário que, em suas pondera-
ções, eles imitem e mantenham a energia, unida à moderação e à
caridade, próprias de Francisco. De fato, pelo seu exemplo, ele
lhes ensina claramente a conduta a seguir. Em primeiro lugar,
devem estudar com a máxima diligência e chegar, tanto quanto
possível, a adquirir a doutrina católica; cuidem-se de não faltar
à verdade, nem, a pretexto de evitar a ofensa dos adversários,
mitigá-la ou ocultá-la; cuidem da mesma forma e elegância de
dizer, e procurem expressar os pensamentos com perspicácia
[clareza, transparência, inteligibilidade] e elegância do discur-
so, para que o leitor se delicie com a verdade. Se for o caso
de lutar contra os adversários, saibam, sim, refutar os erros e
resistir à improbidade dos perversos, mas de modo a dar a co-
nhecer que são animados pela justiça e sobretudo movidos pela
caridade. E como não consta que o Sales foi dado como Patro-
no dos escritores católicos com um documento público e solene
desta Sé Apostólica, Nós, aproveitando esta ocasião auspicio-
sa, com certo conhecimento e com deliberação amadurecida,
com a Nossa autoridade apostólica damos ou confirmamos, e
declaramos, através desta Carta Encíclica, São Francisco de
Sales, bispo de Genebra e Doutor da Igreja, o Celeste patrono
de todos eles, não obstante qualquer coisa em contrário».65
Temos aqui um precioso compromisso com a verdade e a sua
difusão, com o estilo salesiano de bondade e doçura, com o seu sim-
ples anúncio, com a justa intenção de fazer chegar a todos o anúncio
da verdade, sempre buscando o bem das pessoas.
65 Pio XI, Carta encíclica Rerum Omnium Perturbationem, 26 de janeiro 1923. Os
cursivos são meus.

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48 ATOS DO CONSELHO GERAL
O anúncio e a proclamação da fé, além do que acabamos de di-
zer, envolvem outro aspecto importante a ser levado em consideração,
porque Francisco de Sales foi fiel a ele. Como bispo de Genebra, ele
sempre se preocupou com a evangelização do povo de Deus e, sobre-
tudo, com a catequese. Como família de Dom Bosco não podemos
perder este valor carismático. Comunicar a mensagem do Evangelho
para que ela seja vivida faz parte do nosso carisma. A Congregação
Salesiana, a Família Salesiana, nasceram de um simples catecismo.66
A Igreja estabeleceu recentemente o ministério do catequista,67 sendo-
-nos oferecida, também, uma magnífica oportunidade de revitalizar a
nossa dimensão evangelizadora nessas perspectivas.
Não esqueçamos que Dom Bosco, com os meios disponíveis na
época, publicou 318 obras ao longo de 40 anos, porque, como Fran-
cisco de Sales, estava convencido de que uma boa palavra ou uma rica
leitura podiam fazer um grande bem. Todos os esforços nada significa-
vam para ele, a fim de obter o bem e a salvação de uma pessoa.
Enfim, Francisco de Sales sempre quis chegar a todos e anunciar
a salvação e a libertação que o Amor de Deus oferece. Isso se tornou
realidade no seu exercício pessoal de amabilidade e no seu zelo pas-
toral, indo visitar, encontrar, buscar e encorajar as pessoas de várias
maneiras. A fundação da Ordem da Visitação, juntamente com Joana
de Chantal, fala-nos, na linguagem da época, da “Igreja em saída”,
66 O encontro com Bartolomeu Garelli na Igreja de San Francisco de Assis, em 8 de
dezembro de 1841. «[…] levantei-me e fiz o sinal da cruz para começar; meu alu-
no não o fez porque não sabia. Naquela primeira aula procurei ensinar-lhe a fazer
o sinal da cruz e a conhecer Deus Criador e o fim por que nos criou. […] Essa é
a origem do nosso Oratório, que, abençoado por Deus, teve um desenvolvimento
que então eu não podia imaginar«. Cf. J. Bosco, Memórias do Oratório de S. Fran-
cisco de Sales de 1815 a 1855, in Istituto Storico Salesiano, Fontes Salesianas. 1.
Dom Bosco e a sua obra. Coletânea antológica, EDB, Brasília 2014, p. 1316.
67 Cf. Francisco, Carta apostólica na forma de motu proprio “Antiquum ministerium”
com que se institui o ministério de catequista, Roma 10 de maio de 2021.

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CARTA DO REITOR-MOR 49
proposta pelo Papa Francisco, que vai ao encontro de quem deseja
ouvir a mensagem de Jesus.
A imagem de Dom Bosco que visita os seus meninos durante
a semana nos locais de trabalho, a imagem de Francisco de Sales que
visita os seus paroquianos e deixa à porta das suas casas uma mensa-
gem de fé e de amor a Deus, a imagem inspiradora da Virgem Maria
que visita a sua parente Isabel, deve encorajar-nos e entusiasmar-nos,
e quase desafiar-nos.
Conclusão
Nós também, como Família Salesiana, devemos explicitar o
“carisma da visitação” como desejo do coração de anunciar, sem es-
perar que sejam os outros a virem até nós, indo a ambientes e lugares
habitados por muitas pessoas às quais uma palavra gentil, um encon-
tro, um olhar cheio de respeito pode abrir seus horizontes a uma vida
melhor.
Em suma, ir ao encontro dos jovens, aonde e como quer que
estejam, continua a ser o nosso traço mais distintivo, que confirma o
desejo de Dom Bosco de amar o que os jovens amam para que amem o
que amamos, difundindo o espírito salesiano, a nossa “opção Valdoc-
co”, aonde quer que nos leve o desejo de estar com os jovens, vivendo
o verdadeiro “sacramento salesiano da presença”, e o compromisso
de fazer “pequenos exercícios de caridade”. Assim nascemos e assim
queremos seguir Dom Bosco, que encontrou em Francisco de Sales
um modelo e uma alma gêmea.

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50 ATOS DO CONSELHO GERAL
O aniversário que celebramos neste ano ajude-nos a continuar a
crescer na dedicação aos jovens pobres e abandonados com o carisma
salesiano de Dom Bosco impregnado do espírito de São Francisco
de Sales.
P. Ángel Fernández Artime
Reitor-Mor
*****
PARA RELER e REFLETIR, PARA DEIXAR-SE
REPOUSAR NO CORAÇÃO
Termino este comentário sobre a Estreia 2022 reportando al-
gumas reflexões de São Francisco de Sales, de Dom Bosco, do Papa
Francisco e também com um texto meu. São escolhidos para ajudar
a reler e refletir sobre a Estreia e para que, ao deixá-los repousar no
coração, deem fruto em nossa vida.
A caridade e a doçura de São Francisco de Sales me guiem
em tudo.
«Nada por força» é uma bela proposta, um convite a fazer
dela uma regra preciosa da vida pessoal.
Bispo tridentino, promotor da reforma católica, educado na
luta contra a tibieza da fé, escolheu o caminho do coração e
não o da força. E nada mais fez do que contemplar e viver a
atitude de Deus.

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CARTA DO REITOR-MOR 51
Deus age com força, não para forçar ou coagir, mas para
atrair o coração, não para violentar, mas por amar a nossa
liberdade.
Deus, como gostava de dizer Francisco de Sales, atrai-nos a si
com a sua amável iniciativa, ora como vocação ou chamado,
ora como a voz de um amigo, como inspiração ou convite,
ora como uma “prevenção” porque sempre se antecipa. Deus
não se impõe: bate à nossa porta e espera que lhe abramos.
Não aceitamos que a educação possa ser feita sem um respei-
to sagrado à liberdade de cada pessoa. Onde a liberdade da
pessoa não é respeitada, Deus não está presente.
A força da atração de Deus, poderosa, mas não violenta, está
na doçura da sua atração.
A mística salesiana, o amor a Deus de que falamos, longe de
excluir o amor aos outros, o exige.
O ser humano, o jovem, cada pessoa, nós todos, trazemos
inscrito em nosso ser a necessidade de Deus, o desejo de
Deus, “a nostalgia de Deus”.
Deus está presente e se faz presente a cada pessoa nos mo-
mentos de sua vida que só Deus mesmo escolhe e da maneira
que só Deus conhece.
Tanto Francisco de Sales como Dom Bosco fazem da vida
quotidiana uma expressão do amor de Deus, que é recebido e
também correspondido. Nossos santos quiseram aproximar a
relação com Deus da vida e a vida à relação com Deus. Trata-
-se da proposta da «santidade da porta ao lado» ou da «classe
média da santidade» da qual o Papa Francisco fala com tanto
carinho. «Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus:
nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens
e nas mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa,
nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir.

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52 ATOS DO CONSELHO GERAL
Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a
santidade da Igreja militante. Esta é muitas vezes a santidade
«ao pé da porta«, daqueles que vivem perto de nós e são um
reflexo da presença de Deus, ou – por outras palavras – da
«classe média da santidade».
Deus não nos ama porque somos bons, mas porque Ele é
bom.
A realização da vontade de Deus não se dá com sentimentos
de «indignidade», mas com a esperança na misericórdia e na
bondade de Deus Este é o otimismo salesiano.
Francisco de Sales responde ao amor de Deus com o amor.
Eu te amarei, ó Senhor, pelo menos nesta vida, se não me for
dado amar-te na vida eterna; pelo menos te amarei aqui, ó
Deus, e sempre esperarei na tua misericórdia.
A crise de Francisco de Sales revelou a parte mais profunda
do seu ser: um coração apaixonado por Deus.
A convicção de que o amor de Deus não se baseia em sentir-
-se bem, mas em fazer a vontade de Deus Pai, está no centro
da espiritualidade de Francisco de Sales e deve ser modelo
para toda a família de Dom Bosco.
Fazer um caminho das consolações de Deus ao Deus das con-
solações, do entusiasmo ao amor verdadeiro.
Passar do apaixonar-se ao verdadeiro amor pelos outros.
Fazer tudo por amor, nada por temor, porque é a misericórdia
de Deus, e não os nossos méritos, que nos leva a amar.
Santo Agostinho dizia que «o nosso coração está inquieto en-
quanto não repousar em ti». Seguindo o pensamento de Fran-
cisco de Sales, poderíamos dizer com von Balthasar: «o teu
coração [ó Deus] enquanto não repousarmos em ti, e tempo e
eternidade submerjam um no outro».

6 Pages 51-60

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6.1 Page 51

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CARTA DO REITOR-MOR 53
Dom Bosco quer que o amor por Cristo nos conduza ao amor
pelos jovens, característica salesiana da nossa vida e desafio
permanente para a Família de Dom Bosco hoje e sempre.
A sua vida de oração é a sua história pessoal do amor a Deus.
Para Francisco de Sales, a oração como comunicação com
Deus é o coração do homem que fala ao coração do Senhor.
É a forma de oração da espiritualidade encarnada.
A oração permite-nos encontrar este coração de Deus e con-
formar o nosso coração ao dele.
A caridade é a medida da nossa oração, porque o nosso amor
a Deus se manifesta no amor ao próximo.
Esta é a «oração da vida»: a realizar todas as nossas ativi-
dades no amor e pelo amor de Deus, de tal forma que toda a
nossa vida se torne uma oração contínua.
Convém encontrar momentos para se retirar no próprio cora-
ção, longe da agitação e do ativismo, e conversar de coração
a coração com Deus.
Nela [Maria) vemos o que Deus está disposto a fazer com o
seu amor, quando encontra corações disponíveis como os de
Maria. Esvaziando-se, recebe a plenitude de Deus. Estando
à disposição de Deus, Ele é capaz de realizar grandes coisas
n’Ela.