Vita di Don Rua - portoghese libro


Vita di Don Rua - portoghese libro

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Francis Desramaut
VIDA DO PADRE MIGUEL RUA
Primeiro sucessor de Dom Bosco (1837-1910)

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Francis Desramaut
VIDA DO PADRE
MIGUEL RUA
Primeiro sucessor de
Dom Bosco (1837-1910)
Edição revista, aos cuidados
de Aldo Giraudo

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2010 © Francis Desramaut
Título original: Vie de Don Michel Rua premier successeur de Don Bosco (1837-1910).
Roma, LAS, 2009.
Título em italiano: Vita di Don Michele Rua: primo successore di Don Bosco (1837-1910).
Traduzido do italiano por Antônio Feltrin.
Direção geral: Ailton A. dos Santos
Direção administrativa: Orivaldo Voltolini
Coordenação editorial: Alex Criado
Equipe editorial: Luiz Eduardo Baronto
Ana Cláudia Ramacciotti Vieira
Agueda Cristina Guijarro
Equipe de arte: Gledson Zifssak
Luciene Cardoso
Projeto gráfico, diagramação e capa: Rogério Loconte
Comunicação e marketing: Ana Cosenza
Rosana Araujo
Revisão: Cristina Kapor
Maurício Leal
Rogério G. Lopes
Rogério Jönk
Secretaria editorial: Suzete Oliveira
Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Desramaut, Francis
Vida do Padre Miguel Rua : primeiro sucessor de Dom Bosco
(1837-1910) / Francis Desramaut ; [traduzido por Antônio Feltrin].
-- Ed. rev. aos cuidados de Aldo Giraudo. -- São Paulo: Editora
Salesiana, 2010.
Título original: Vie de Don Michel Rua: premier successeur de
Don Bosco (1837-1910).
1. João Bosco, Santo, 1815-1888 2. Miguel Rua, Padre, 1837-
1910 3. Salesianos - Biografia 4. Salesianos - História I. Giraudo,
Aldo. II. Título.
09-13547
CDD-271.79092
Índice para catálogo sistemático:
1. Padres Salesianos : Biografia e obra
271.79092
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www.editorasalesiana.com.br
Sumário
Apresentação...................................................................................................................... 11
Abreviações........................................................................................................................ 13
Capítulo 1 – A infância de Miguel Rua ........................................................................... 14
A cidade de Turim na década 1830-1840 ........................................................................... 14
A família Rua na fábrica de armas....................................................................................... 17
Miguel e a escola da fábrica de armas ................................................................................. 18
O Ressurgimento em Turim................................................................................................ 20
Miguel frequenta a escola dos Irmãos.................................................................................. 21
Capítulo 2 – Na escola de Dom Bosco............................................................................. 25
O estudo do latim com Dom Bosco.................................................................................... 25
As aulas ginasiais................................................................................................................. 26
Miguel Rua veste o hábito clerical....................................................................................... 29
Capítulo 3 – Os estudos de filosofia................................................................................. 32
Miguel e a filosofia ............................................................................................................. 32
Enfermeiro dos doentes de cólera........................................................................................ 34
O segundo ano de filosofia.................................................................................................. 35
Os votos temporários de Miguel Rua.................................................................................. 36
Capítulo 4 – O nascimento da Sociedade Salesiana......................................................... 38
O estudo da teologia........................................................................................................... 38
O nascimento de uma sociedade religiosa num contexto turbulento .................................. 39
A morte de Margarida Bosco e de Domingos Sávio ............................................................ 40
O primeiro projeto constitucional de Dom Bosco .............................................................. 41
Em Roma com Dom Bosco, em 1858 ................................................................................ 42
O tratado De Deo uno et trino ............................................................................................ 44
A organização da Sociedade de São Francisco de Sales ........................................................ 46
Capítulo 5 – Miguel Rua jovem padre.............................................................................. 48
A preparação....................................................................................................................... 48
Miguel Rua é ordenado presbítero ..................................................................................... 49
O trabalho do jovem sacerdote............................................................................................ 51
Diretor em Mirabello ......................................................................................................... 52

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Capítulo 6 – Padre Rua prefeito geral ............................................................................. 57
O padre Rua substitui o padre Alasonatti ........................................................................... 57
O padre Rua representa Dom Bosco .................................................................................. 58
A reorganização do Oratório .............................................................................................. 58
As festas de consagração da igreja de Maria Auxiliadora....................................................... 59
A vida cotidiana do prefeito padre Rua .............................................................................. 61
Capítulo 7 – Formador dos jovens salesianos................................................................... 63
O problema da formação dos clérigos no Oratório de Turim............................................... 63
O padre Rua mestre dos noviços sem título ........................................................................ 66
Capítulo 8 – Padre Rua, coluna do Oratório e regra viva ............................................... 70
Uma Sociedade em contínuo crescimento........................................................................... 70
Prefeito exigente ................................................................................................................. 71
Sacerdote devoto ................................................................................................................ 74
Capítulo 9 – Padre Rua, visitador das casas filiadas ........................................................ 76
Padre Rua, “visitador” das casas salesianas .......................................................................... 76
O programa do padre Rua “visitador” ................................................................................ 76
As inspeções do padre Rua em 1874 e em 1875 ................................................................. 78
Padre Rua visitador em Borgo San Martino e Lanzo Torinese ............................................. 78
Padre Rua visitador em Sampierdarena, Varazze, Alassio e Valsalice .................................... 81
A instituição do inspetor na Sociedade de São Francisco de Sales ....................................... 82
Capítulo 10 – O braço direito de Dom Bosco ................................................................. 84
Padre Rua em Mornese, com as Filhas de Maria Auxiliadora............................................... 84
As circulares mensais aos diretores....................................................................................... 84
Duas pretensas fundações ................................................................................................... 86
O padre Rua na controvérsia com o arcebispo Gastaldi ...................................................... 88
A austeridade do prefeito geral ........................................................................................... 91
Capítulo 11 – Em viagem com Dom Bosco ..................................................................... 96
Em Roma nos meses de abril e maio de 1881 ..................................................................... 96
Ajuda de Dom Bosco em Paris e Lille, em maio de 1883 ................................................... 97
Com Dom Bosco em Frohsdorf ....................................................................................... 101
Capítulo 12 – O Padre Rua, vigário geral de Dom Bosco ............................................. 104
A intervenção de Leão XIII............................................................................................... 104
A oficialização do título de vigário geral............................................................................ 106
Com Dom Bosco na Espanha .......................................................................................... 109
O retorno da Espanha ...................................................................................................... 113
Capítulo 13 – A morte de Dom Bosco ........................................................................... 115
Um vigário humilde e piedoso ......................................................................................... 115
Em Roma para a consagração da igreja do Sagrado Coração.............................................. 116
A substituição de Dom Bosco, que ficou sem voz.............................................................. 117
A morte de Dom Bosco ................................................................................................... 118
Os funerais e a sepultura do Fundador ............................................................................. 120
Capítulo 14 – Padre Rua, Reitor-Mor ........................................................................... 122
A sucessão de Dom Bosco ................................................................................................ 122
Na presença de Leão XIII ................................................................................................. 123
A Família Salesiana herdada de Dom Bosco ..................................................................... 125
Capítulo 15 – Os anos do aprendizado (1888-1892) .................................................... 129
Nas pegadas de Dom Bosco ............................................................................................. 129
O peso das dívidas acumuladas......................................................................................... 131
O problema dos estudos eclesiásticos ................................................................................ 132
Os estudos literários.......................................................................................................... 134
Para uma direção sábia ..................................................................................................... 136
Capítulo 16 – A vida cotidiana do Reitor-Mor em Valdocco ........................................ 138
O padre Rua confessor ..................................................................................................... 138
As audiências ................................................................................................................... 139
A correspondência ............................................................................................................ 139
As celebrações anuais........................................................................................................ 142
Capítulo 17 – A exploração do mundo salesiano na Europa......................................... 144
Na Itália ........................................................................................................................... 144
No meridiano da França .................................................................................................. 147
Na Espanha...................................................................................................................... 150
Em Lyon e em Paris.......................................................................................................... 152
O padre Rua na Inglaterra, no norte da França e na Bélgica.............................................. 153
Capítulo 18 – O Oriente Médio .................................................................................... 157
O padre Antonio Belloni na Terra Santa .......................................................................... 157
A fusão da Congregação da Sagrada Família com a Sociedade Salesiana ............................ 158
A peregrinação do padre Rua à Terra Santa ...................................................................... 159
Belém e Jerusalém ................................................................................................... 160
Cremisan ................................................................................................................ 162
Beitgemal ................................................................................................................ 163
Nazaré..................................................................................................................... 164
Volta para Belém...................................................................................................... 164
A volta à Europa .............................................................................................................. 166

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Capítulo 19 – O congresso salesiano de Bolonha.......................................................... 168
A organização dos cooperadores salesianos........................................................................ 168
A preparação do Congresso de Bolonha ........................................................................... 169
A realização do Congresso ................................................................................................ 170
O encerramanto do Congresso ......................................................................................... 172
Os sentimentos do padre Rua .......................................................................................... 173
Capítulo 20 – A expansão salesiana na América ............................................................ 177
O zelo missionário do padre Rua ..................................................................................... 177
A América do Sul.............................................................................................................. 178
A Colômbia e o episódio de Agua de Dios ....................................................................... 178
A chegada dos salesianos ao Peru....................................................................................... 180
A aventura equatoriana .................................................................................................... 182
O México......................................................................................................................... 183
Venezuela, Bolívia, Paraguai, El Salvador .......................................................................... 185
Nos Estados Unidos ......................................................................................................... 190
Capítulo 21 – A Argélia e a Polônia ............................................................................... 191
Os salesianos na Argélia.................................................................................................... 191
A fundação de Orã em 1891 ............................................................................................ 193
O salesiano polonês Bronisław Markiewicz ...................................................................... 194
A fundação polonesa de 1892 .......................................................................................... 196
A crise de 1897 ................................................................................................................ 197
Capítulo 22 – A viagem pela Península Ibérica (1899) ................................................. 202
Na Catalunha e nos Países Baixos ..................................................................................... 202
Em Portugal ..................................................................................................................... 204
Na Andaluzia ................................................................................................................... 206
As casas da África ............................................................................................................. 209
Capítulo 23 – Os Capítulos Gerais dos primeiros dez anos........................................... 212
Os Capítulos Gerais no reitorado do padre Rua ............................................................... 212
O quinto Capítulo Geral (1889) ...................................................................................... 212
O sexto Capítulo Geral (1892) ........................................................................................ 214
O sétimo Capítulo Geral (1895) ...................................................................................... 217
O oitavo Capítulo Geral (1898) ....................................................................................... 217
O padre Rua é reeleito Reitor-Mor.................................................................................... 218
Capítulo 24 – A aurora de um novo século ................................................................... 220
Os diretores salesianos confessores de seus subordinados .................................................. 220
O decreto do Santo Ofício (5 de julho de 1899) .............................................................. 221
O decreto de 24 de abril de 1901 ..................................................................................... 222
A consagração da Sociedade Salesiana ao Sagrado Coração de Jesus................................... 226
Capítulo 25 – Vicissitudes na França ............................................................................. 229
O 25º aniversário da obra salesiana na França................................................................... 229
A lei francesa sobre as associações ..................................................................................... 231
A tática salesiana diante da nova lei................................................................................... 232
Capítulo 26 – A crise dos inspetores franceses .............................................................. 237
O poder foge do inspetor Pietro Perrot ............................................................................ 237
O padre Perrot é exonerado do cargo................................................................................ 238
A defesa impetuosa do padre Perrot e seu recurso a Roma ................................................ 240
O padre Bologna reconstitui a inspetoria da França do norte ........................................... 242
A destituição dolorosa do padre Bologna .......................................................................... 244
O governo do padre Rua .................................................................................................. 250
Capítulo 27 – Os Capítulos Gerais de 1901 e de 1904.................................................. 251
O nono Capítulo Geral (1901) ........................................................................................ 251
Iniciava-se a regionalização da Sociedade Salesiana............................................................ 252
A coroação de Maria Auxiliadora (1903) .......................................................................... 255
Homenagens do padre Rua a Pio X .................................................................................. 257
O décimo Capítulo Geral (1904) ..................................................................................... 258
As conclusões do décimo Capítulo Geral ......................................................................... 262
Capítulo 28 – A paz social.............................................................................................. 264
Rerum novarum ................................................................................................................ 264
Os trabalhadores franceses peregrinos no túmulo de Dom Bosco (1891) .......................... 265
As lições do Congresso de Bologna (1895) ....................................................................... 266
A Sociedade Nacional do Patronato e Auxílio Mútuo para as Jovens Operárias ................. 268
A greve da empresa Anselmo Poma (1906) ....................................................................... 269
Capítulo 29 – As Filhas de Maria Auxiliadora............................................................... 272
A direção das Filhas de Maria Auxiliadora......................................................................... 272
As cartas circulares do padre Rua às Filhas de Maria Auxiliadora....................................... 273
Projeta-se a separação........................................................................................................ 277
O alerta no verão de 1905 ................................................................................................ 278
O anúncio às Filhas de Maria Auxiliadora......................................................................... 280
A separação dos bens dos dois institutos ........................................................................... 281
Os recursos das Filhas de Maria Auxiliadora a Roma......................................................... 281
A separação efetiva ........................................................................................................... 283
Capítulo 30 – A expansão salesiana na passagem do século ......................................... 287
Na Tunísia ....................................................................................................................... 287
A Associação Nacional italiana em Alexandria do Egito .................................................... 288
Constantinopla e Esmirna ................................................................................................ 289
A Associação Nacional e as obras salesianas da Palestina ................................................... 290
Os salesianos na China ..................................................................................................... 292
A obra salesiana na Índia .................................................................................................. 295

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Capítulo 31 – O ano de 1907 ........................................................................................ 298
A causa de beatificação de Dom Bosco ............................................................................. 298
Os depoimentos no processo informativo ........................................................................ 300
Oposições e réplicas – Dom Bosco é venerável ................................................................. 302
Os fatos de Varazze .......................................................................................................... 305
O padre Rua na tormenta................................................................................................. 308
A condenação do modernismo ......................................................................................... 311
Capítulo 32 – Sete meses de dificuldades e de alegrias.................................................. 313
A visita extraordinária às casas da Congregação ................................................................ 313
O padre Rua em viagem ao Oriente.................................................................................. 314
Constantinopla, Esmirna, Nazaré...................................................................................... 315
Belém, Jerusalém, Cremisan, Beitgemal, Haifa.................................................................. 318
Impressões de viagem........................................................................................................ 322
O processo de beatificação e de canonização de Domingos Sávio ..................................... 323
Capítulo 33 – A consagração da igreja de Santa Maria Libertadora.............................. 325
A igreja de Maria Libertadora em Roma ........................................................................... 325
Em viagem para Roma ..................................................................................................... 327
A consagração da igreja..................................................................................................... 328
O desastre de Messina ...................................................................................................... 330
Capítulo 34 – O último ano do padre Rua .................................................................... 332
Preparar-se para a morte ................................................................................................... 333
A vida habitual do padre Rua doente................................................................................ 333
Os depoimentos do padre no processo apostólico de Dom Bosco...................................... 336
Capítulo 35 – O ocaso..................................................................................................... 339
O verão difícil de 1909 .................................................................................................... 339
O declínio ........................................................................................................................ 340
As conclusões da visita extraordinária ............................................................................... 341
As últimas semanas do padre Rua...................................................................................... 343
A morte do padre Rua ...................................................................................................... 346
Os funerais do padre Rua.................................................................................................. 348
Epílogo ........................................................................................................................... 350
A caminho da beatificação................................................................................................. 350
O discípulo fiel de Dom Bosco......................................................................................... 351
Cronologia ...................................................................................................................... 355
Apresentação
O centenário da morte do padre Miguel Rua oferece a ocasião para colocar os pingos nos is
sobre a vida do primeiro sucessor de Dom Bosco. A Família Salesiana lhe deve muito. O que
teria sido dela se não tivesse existido o padre Miguel Rua?
No passado, outros já se dedicaram a escrever a sua vida. Já no ano seguinte do falecimento,
o amigo de sempre, João Batista Francesia (1838-1930), publicava um livro de 220 páginas,
Padre Miguel Rua, primeiro sucessor de Dom Bosco (Turim, 1911), cuja única ressalva seja, talvez,
o entusiasmo excessivo pelo protagonista. Mais tarde, com o início dos processos de beatifica-
ção e canonização, afluíram numerosos testemunhos sobre suas virtudes.
Assim, no começo da década de 1930, o redator do Boletim Salesiano, Angelo Amadei
(1868-1945), que tinha acesso fácil aos arquivos centrais da Congregação, começou a reunir
grande número de documentos, chegando a uma obra monumental de três volumes, num
total de 2.388 páginas, O Servo de Deus Miguel Rua (Turim, 1931-1934). Amadei se informara
cuidadosamente. Por exemplo, recorrera até às crônicas locais das Filhas de Maria Auxiliadora.
Mas, no seu desejo de não esquecer nada, reuniu testemunhos e fatos agrupando-os segundo
um critério puramente cronológico, ano após ano, sem nunca se preocupar em construir uma
narração propriamente dita. A única exceção a este seu modo de proceder é constituída por
um interessante e detalhado retrato moral do padre Rua, situado entre 1898 e 1899. Quanto
ao mais, tudo parece misturado numa enorme desordem: “um bazar, uma confusão”, como
me disse um dia padre Ceria, falando do décimo volume das Memórias biográficas, obra do
mesmo autor, redigida com idênticos critérios. Além disso, Amadei não precisou as fontes de
suas informações, ignorando completamente o método das referências. Sua biografia, portanto,
embora extremamente meritória, deve ser utilizada com prudência. Acrescentamos, por amor
à precisão, que os irmãos lhe pediram uma versão reduzida da obra, publicada sob o título Un
altro Don Bosco, Don Rua (Turim, 1934, 703 páginas).
Um dos colegas da época, Augustin Auffray (1881-1955), que em Turim dirigia o Bulletin
Salésien francês, esteve, ao contrário, muito atento para não cair nas mesmas restrições literá-
rias e compôs uma verdadeira biografia do padre Rua: Un Saint formé par un autre Saint. Le
premier successeur de Don Bosco, Don Rua (Paris-Lyon, 1932, 412 páginas), obra logo traduzida
para o italiano. Auffray construiu inteligentemente a sua história; dividindo-a em 49 capítulos,
cuidadosamente organizados, e escrevendo com certa elegância de estilo. É verdade que um
leitor crítico, hoje, poderia torcer o nariz diante de suas imagens e de seus voos de Píndaro; no
entanto, o livro se apresenta como a primeira biografia decorosa do padre Rua, agradável de se
ler e suficientemente fundamentada (também ele, no entanto, esquece a referência às fontes).
11

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Outro literato, desta vez italiano, Eugenio Ceria (1870-1957), que ao redigir os últimos
volumes das Memórias biográficas de Dom Bosco se inspirara no método e no estilo de Auffray,
depois da Segunda Guerra Mundial publicou uma Vita del Servo di Dio Don Michele Rua,
primo successore di San Giovanni Bosco (Turim, 1949, 600 páginas) solidamente documentada,
bem construída e bem escrita. Também ele se beneficiava do conhecimento direto do padre
Rua, com quem se encontrara pessoalmente. Os seus 46 capítulos são, sem dúvida, melhores
em relação aos de Amadei. As notas são reduzidas ao mínimo, defeito até grave aos olhos dos
eruditos. Mas, desde o momento em que possuía informações de primeira mão, é provável que
se julgasse legitimamente dispensado desse detalhe. Todos consideram, hoje, sua biografia do
padre Rua de qualidade excelente.
Por ocasião do centenário, talvez bastasse republicar e traduzir essa obra de Ceria. No entan-
to, acredito que uma biografia nunca é definitiva. A documentação existente deve sempre ser
reinterpretada em função das perguntas levantadas pelos pesquisadores. Novos documentos,
e abundantes, foram encontrados, como notamos no DVD Documenti di Don Rua, prepa-
rado em 2007 pelo Comitato di studi storici Don Rua 2010, que deveria ser usado mais siste-
maticamente. Mas numerosas cartas e outros documentos do padre Rua permanecem ainda
totalmente desconhecidos nos arquivos inspetoriais salesianos de diversas partes do mundo.
O conhecimento de sua teologia referencial permanece ainda imperfeita. Não temos estudos
sobre sua pregação. Sabemos que seguia com atenção os missionários enviados à América: que
forma tomava sua direção sempre tão atenta? Em que medida encorajava (ou moderava) a ita-
lianidade, então muito acentuada, da Sociedade Salesiana? Até que ponto a formação salesiana
progrediu sob seu reitorado? Além disso, restam para serem estudadas as graves questões relati-
vas aos diretores-confessores e à separação jurídica entre a Congregação Salesiana e o Instituto
das Filhas de Maria Auxiliadora, que mereceriam uma análise mais cuidadosa em relação a
quanto fiz nesta obra...
Em suma, com este livro não tive a pretensão de renovar radicalmente o assunto. Pelo con-
trário, reconheço em vários pontos minha dívida com os biógrafos anteriores, sobretudo com
o padre Ceria, não somente pela biografia do padre Rua, mas também pelos seus Anais da So-
ciedade Salesiana. Confesso, além disso, lamentavelmente, que não pude dispor de documentos
de primeira mão, que talvez me tivessem feito modificar a narração de alguns pontos. A minha
foi, sobretudo, uma releitura, bastante livre, da documentação reunida no Fondo Don Rua, no
Arquivo Central Salesiano de Roma, colocada à disposição dos pesquisadores em microfilmes.
Sobretudo, não pude me beneficiar das pesquisas, ainda em curso, nas vésperas do Centenário
de 2010. Desejo que chegue logo alguém capaz de preencher tais lacunas.
Tolone, 31 de janeiro de 2009
12
Abreviações
Amadei
Annali
ASC
Auffray
Ceria, Vita
Documenti
Don Bosco en son
temps
Epistolario
Epistolario Ceria
FdB
FdR
Francesia
L. C.
MB
Positio 1935
Positio 1947
RSS
Amadei, A. Il Servo di Dio Michele Rua, 3 v. Torino, SEI, 1931-1934.
Ceria, E. Annali della Società Salesiana. Torino, SEI, 1941-1951.
Archivio Salesiano Centrale – Roma.
Auffray, A. Le premier successeur de Don Bosco, Don Rua (1837-1910).
Lyon-Paris, Vitte, 1932.
Ceria, E. Vita del Servo di Dio Michele Rua. Torino, SEI, 1949.
Lemoyne, G. B. Documenti per scrivere la storia di D. Giovanni Bosco,
dell’Oratorio di s. Francesco di Sales e della Congregaz. Salesiana, 45. In:
ASC A050-A094 (FdB 966A8-1201A9).
Desramaut, F. Don Bosco en son temps (1815-1888). Torino, SEI, 1996.
Giovanni Bosco, Epiostolario, aos cuidados de Francesco Motto, v. 1-4.
Roma, LAS, 1991-2003.
Epistolario di S. Giovanni Bosco, aos cuidados de D. Eugenio Ceria, 4 v.
Torino, SEI, 1955-1959.
ASC, Fondo Don Bosco. Microfichas e descrição. Roma, 1980.
ASC, Fondo Don Rua. Microfichas e descrição, Roma, 1996.
D. Michele Rua, primo successore di Don Bosco. Memorie del Sac. G. B.
Francesia. Torino, Ufficio delle “Letture Cattoliche”, 1911.
Lettere circolari di Don Michele Rua ai Salesiani. Torino, S.A.I.D. Buo-
na Stampa, 1910.
Lemoyne, G. B.; Amadei, A.; Ceria, E. Memorie biografiche di Don Gio-
vanni Bosco, 19 v. San Benigno Canavese e Torino, 1898-1948.
Sacra Rituum Congregatione. Taurinen. Beatificationis ac Canonizationis
Servi Dei Sac. Michaelis Rua. Positio super introductione Causae. Roma,
Guerra et Belli, 1935.
Sacra Rituum Congregatione. Taurinen. Betificationis et Canonizationis
Servi Dei Michaelis Rua. Positio super virtutibus. Romae, Guerra e Belli,
1947.
Ricerche Storiche Salesiane. Roma, LAS.
13

1.8 Page 8

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Capítulo 1
A infância de Miguel Rua
1. A cidade de Turim na década 1830-1840
Diferentemente do camponês João Bosco, que descobriu a cidade somente com a idade de
15 anos, quando chegou como estudante a Chieri, Miguel Rua nasceu em Turim, capital do
Reino da Sardenha, onde vai morar por toda a vida. Será sempre um cidadão, o filho de uma
cidade do período pré-industrial, que lentamente se desenvolvia de um passado do qual se
orgulhava, numa época mais liberal de monarquia constitucional.
Na década de 1830, Turim era uma cidade com 100 mil habitantes e tinha boa fama na
Europa.1 Os estrangeiros elogiavam “a regularidade das casas, o espaço e a limpeza das ruas, a
facilidade da água que chamam Dora, os passeios muito amenos, a ótima polícia, a gentileza
dos habitantes, o célebre museu, os esplêndidos cafés e muitas outras belezas [...]. Há aqui [...]
muito conforto e belíssimos pórticos por todo lado”.2 Essa dignidade derivava de sua situa-
ção política. Durante a Restauração, após os parênteses napoleônicos, depois da união com a
Ligúria, a cidade se tornara a capital mais importante dos Estados italianos da época, se não
pela superfície, ao menos pela organização e pelo poder econômico. A atividade dos arsenais
para o equipamento do exército e a das novas indústrias, sobretudo têxteis, atraíam gente das
províncias. Em Borgo Dora surgiam manufaturas que davam ocupação para várias centenas de
trabalhadores, com chaminés que contaminavam o ar.
Em Turim, vivia-se ainda sob o regime reacionário da Restauração. O rei tinha poder absolu-
to. Os ministros prestavam conta somente a ele. Em 1821, depois de alguns dias de desordem,
esse sistema, por um instante, pareceu vacilar ao anúncio de uma constituição iminente, mas
foi logo tranquilizado pelo rei Carlos Félix. Este se preocupou especialmente com a educação
dos jovens, como testemunha o Regulamento para escolas fora da Universidade, promulgado em
1822. Era preciso, lê-se nos manifestos reais que o introduzem, restabelecer a ordem no ensino
público do reino, cujas antigas organizações tinham sido perturbadas pela revolução e pela in-
trodução de novas organizações, já caducas a partir da “época feliz de maio de 1814”. Queria-se
1 Sirvo-me aqui dos dados colhidos no meu Don Bosco en son temps. Torino, Società Editrice Internazionale,
1996, p. 132-140.
2 Carta de Pier Francesco Cometti ao pároco da Cidade, em 10 de maio de 1840, citada por Umberto
Levra. L’altro volto di Torino risorgimentale, 1814-1848. Torino, Comitato di Torino dell’Istituto per la
Storia del Risorgimento Italiano, 1989, p. 162.
14
assim cuidar da instrução moral e científica dos jovens nas escolas municipais, públicas e reais
do reino. A reorganização das antigas disciplinas, graças às quais “os súditos dos nossos reais
predecessores obtiveram a fama de cultos, como também de sábios”, parecia o caminho mais
apropriado para formar jovens semelhantes a seus antepassados, os quais “queriam ser um só
e indivisível Verdadeiro: as Ciências, o Trono e Deus”.3 Havia a convicção de que a religião, a
monarquia e a ciência contribuiriam juntas para plasmar as mentes e os corações dos jovens
naqueles anos de restauração. Mas, infelizmente, em Turim a instrução era acessível somente às
famílias suficientemente abastadas.
De fato, a grande cidade não apresentava somente um aspecto organizado e civil. Dentro
dela os pobres, muitas vezes sem moradia, eram numerosos. “Das estatísticas que as congre-
gações de caridade registraram, fica evidente que Turim, com 125 mil habitantes, tem 30
mil pobres”, escrevia-se em 1845. Os mendigos pululavam e importunavam os transeuntes.
“Somos rodeados, somos diariamente assediados pelos mendigos; e tal é o seu número que,
mesmo supondo que todos fossem realmente pobres e não viciados, não seria possível ter
meios nem tempo de parar um pouco, e de socorrê-los todos. E, por isso, somos obrigados a
prosseguir nosso caminho sem nos importar nem com suas lágrimas nem com as súplicas mais
comoventes, que também, teoricamente, nunca deveriam ferir em vão o ouvido de um homem
comum, e especialmente de um cristão.”4 Os mendigos atulhavam as ruas e as calçadas pela
cidade. Nos interiores, eram encontrados sob os pórticos, às portas das igrejas e nos cafés mais
luxuosos, onde, como lamentava um cidadão, não paravam de importunar os transeuntes com
descarada obstinação.5
Parte dos pobres de Turim vivia nas periferias em rápida expansão de Borgo Dora, San Do-
nato e Vanchiglia. O setor mais mal-afamado estava situado na extremidade de Vanchiglia, na
região chamada Moschino. Lá moravam os pescadores, os barqueiros e a parte mais miserável
da população de Turim. Um contemporâneo escreve: “É impossível expressar a repugnância
que toma conta de você quando, ou pelo ofício de médico, ou pelo estudo estatístico, você
caminha por aqueles becos imundos, segregados pelo comércio, ignorados pela higiene, e for-
mando cloacas humanas para acusar a injustiça humana, que para uns dá tantos bens, e nega
aos outros a terra, o ar e o sol”.6 Moschino era, para a burguesia de Turim, um abrigo de bandi-
dos da pior espécie, covil de uma coca (bando organizado) temida; perigoso de dia e inacessível
de noite até para a polícia.
Essas condições de vida desastrosa geravam uma desordem moral de igual proporção. Em
Turim, o número dos nascimentos ilegítimos e dos infanticídios era elevado. Um nascimento
ilegítimo em quatro. Enquanto isto, de 1830 a 1840 havia somente um em doze em Gênova,
a segunda grande cidade do estado, um em treze nas outras cidades e um em quarenta e oito
3 Decretos régios, com os quais Sua Majestade aprova o regulamento anexo para as escolas tanto do município
como públicas e régias. Na data de 23 de julho de 1822. Torino, Stamperia Reale, 1822, p. 3-4.
4 [L. Francesetti di Mezzenile], Memorie sulla necessità di avvisare ai mezzi onde isbandire la mendicità.
Torino, Tip. Chirio e Mina, 1829, p. 3 (texto citado em Levra, L’altro volto, p. 80).
5 Levra. L’altro volto, p. 81.
6 Relação de Gioacchino Valerio, citada em Levra, L’altro volto, p. 165.
15

1.9 Page 9

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no conjunto do reino. Como nos romances franceses da época, o pobre encontrava conforto
visitando hospedarias de má reputação, com a entrada mais baixa que o nível da rua, assim
eficazmente descritas por um escritor da época:
O desconhecido abriu a porta de vidro e se encontrou numa sala grande, mais comprida que larga,
com as paredes enegrecidas, com o piso composto de tábuas pregadas, todo emporcalhado pelo
lodo trazido e ajuntado cá e lá pelos pés dos que chegavam, com uma atmosfera irrespirável, densa,
impregnada de odores acres, no qual a fumaça fazia, com pleno sucesso, as funções que na rua a
densa névoa daquela noite de inverno cumpria.7
Na grande cidade que se industrializava era especialmente penalizada a infância pobre. Em
1840, um cidadão se lamentava com o pároco da cidade:
Em todo canto, em toda encruzilhada de pórticos se amontoou uma multidão daqueles décrot-
teurs [engraxates] que disputam para chegar antes a cada um dos transeuntes, e o perseguem
depois que ele já passou, sempre gritando num tom e numa postura insolentes, até uma distância
de 20 passos.8
As manufaturas arruinavam os menores. No mesmo ano, um jornalista denunciava a ferida:
Quem colocar os pés numa manufatura e especialmente numa fábrica de seda ficará dolorosamente
surpreso vendo uma multidão de crianças, com a blasfêmia na boca, a todo momento, inconscien-
tes, magras, maltrapilhas e sujas envolvendo-se no lodo, brigando entre si, e se encaminhando com
pequenos furtos, com pequenos roubos para o crime. Ficaria horripilado pensando no triste futuro
que espera aquelas cabecinhas loiras a quem poucos cuidados bastariam para fazer voltar todas as
carícias, todas as graças, todas as virtudes (também a tenra idade tem suas virtudes) da meninice.9
Esses jovens viviam na rua. Em Turim todos deploravam suas más ações:
Uma das muitas feridas que corroem a sociedade e que, apesar da mais enérgica solicitude por
parte das autoridades e agentes de polícia, não se consegue senão atenuar é certamente a classe dos
ladrões que infestam não somente as redondezas ou as praças, mas chegam até a invadir os palácios
reais e as igrejas. Não há dia sem queixas de roubos de tabaqueiras, relógios, bolsas, lanternas ou
lenços. E para subtraí-los usam-se as mais astuciosas manobras.10
A bela Turim, portanto, apresentava um aspecto realmente pouco brilhante.
Felizmente, Turim tinha também uma tradição de caridade muito sólida. A cidade possuía
boa quantidade de obras piedosas: hospitais, ambulatórios, alojamentos, orfanatos, refúgios ou
asilos. Além das antigas instituições de caridade, no dia 10 de junho de 1837 abriu-se um abri-
7 Vittorio Bersezio, La plebe. Romanzo sociale, parte I, Torino, C. Favale e Comp., 1867, p. 3.
8 Carta de Pier Francesco Cometti ao pároco, em 7 de dezembro de 1840, citada em Levra, L’altro volto, p. 86.
9 Lorenzo Valerio, Igiene e moralità degli operai di seterie. Torino, BagLyone e C., 1840, p. 20-21; citado
por Claudio Felloni e Roberto Audisio, I giovani discoli. In: Giuseppe Bracco (cur.), Torino e Don Bosco.
Torino, Archivio Storico della Città, 1989, v. 1, p. 100.
10 ASCT, Vicariato, Atti criminali. v. 114. Ata de 5 de fevereiro de 1846 (cf. Claudio Felloni e Roberto
Audisio, I giovani discoli. In: Giuseppe Bracco (cur.), Torino e Don Bosco. Torino, Archivio Storico della
Città, 1989, p. 102.
16
go para mendigos, destinado às pessoas de ambos os sexos e de todas as idades, da cidade e da
província. Cada um recebia diariamente 18 onças de bom pão e 2 sopas abundantes. Quando
a saúde o exigia, eram dados aos mendigos também vinho e um cardápio melhor. Usavam um
uniforme e dormiam em grandes salões separados. Quando aceitavam trabalhar, tinham direito
à metade da venda. Desde o início seu número subiu a 498. Em 1838, o setecentista Albergue
de Virtude foi reformado com o nome de Hospital de Caridade e estruturado em forma de
escola profissional mantida pelas iniciativas privada e pública. Os aprendizes podiam esperar,
posteriormente, ser aceitos nas oficinas onde tinham aprendido o trabalho. Depois, havia as
instituições particulares. Entre essas, a Obra Pia Barolo, que incluía um abrigo para prisionei-
ras e prostitutas arrependidas e um mosteiro de penitentes chamadas Madalenas. Essa obra
beneficente cresceria muito depressa. Mas a instituição caritativa turinesa mais importante era
certamente a Pequena Casa da Divina Providência, fundada pelo cônego José Cottolengo. Em
1832, ele transferira para o bairro de Valdocco um pequeno hospital para miseráveis, inicia-
do três anos antes, que logo se desenvolveu e agora acolhia uma quantidade de “famílias” de
órfãos, de inválidos, de surdos-mudos, de epilépticos, de portadores de deficiências mentais,
de prostitutas e também um pequeno seminário. Em 1840, no coração infeliz do Moschino,
nos limites do bairro de Vanchiglia, surgiu uma instituição das mais interessantes. O jovem
sacerdote padre Cocchi fundou um centro para rapazes abandonados, o Oratório do Anjo da
Guarda, nos moldes do Oratório romano de São Felipe Neri.
A família Rua na fábrica de armas
Durante a Restauração, a convite de algum intelectual (Gioberti, Balbo, d’Azeglio), o exér-
cito foi reformado e reforçado. Sonhava-se fazer uma unidade da Itália, da qual o reino da Sar-
denha tinha a ambição de ser o motor. Exigia-se um Estado piemontês forte. Em Borgo Dora
foi construída uma importante indústria de armas, uma fundição. A fábrica tinha também seu
próprio “capelão”. Na área morava o pessoal dirigente. A família do controlador João Batista
Ruà, na qual nasceu nosso Miguel, morava justamente na fundição.
Diferentemente do leitor italiano, o leitor francês não coloca o acento sobre o a do sobre-
nome Ruà nos documentos administrativos da primeira parte do século XIX.11 Existe certa
assonância entre esta palavra e o termo francês roi, que significa rei. Padre Amadei fazia-o notar
na biografia do padre Rua. Mas estava errado. Na origem do sobrenome não há o patronímico
Des Rois.12 Na França do Antigo Regime, roi (isto é, rei) se pronunciava roá ou ainda roé, nunca
rouá. Não vamos complicar, portanto, o problema. Talvez a forma francesa roua, não roi, seja
a mais plausível. Se, como parece, os antepassados dos Ruà pertenciam a uma população de
língua francesa, chamava-se, no início, simplesmente Roua, palavra transposta para a língua
italiana como Ruà. A hipótese é ainda mais verossímil quando se pensa que o patronímico
Rouat é atualmente muito difundido na França e no Canadá francês. De qualquer forma, des-
de a metade do século XIX, o acento final desapareceu e, segundo o uso italiano, se deslocou
para a primeira parte do ditongo. A velha pronúncia foi definitivamente esquecida.
11 Podem ser vistas, por exemplo, as listas manuscritas dos Ruà no Arquivo Salesiano Central, FdR 2750 B10-D4.
12 A. Amadei, Il Servo di Dio Michele Rua, 3 v. Torino, SEI, 1931-1934, v. I, p. 3.
17

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Um duplo matrimônio tornou complicada a apresentação da família de Miguel Rua.13
O pai, Giovanni Battista, nasceu provavelmente em 1786, conforme a ata de seu primeiro ca-
samento, que lhe atribui “mais ou menos 28 anos” (o certificado de batismo e o de família não
foram encontrados). Giovanni Battista casou-se pela primeira vez no dia 25 de abril de 1814
com a jovem Catterina Grimaldi, de 18 anos, com a qual teve 5 filhos.14 Três deles morreram
em tenra idade. Por volta de 1827, com a idade de 31 anos, morreu também Catterina.15 Gio-
vanni Battista casou-se, então, em segundas núpcias, com Giovanna Maria Ferrero, de 34 anos,
a mãe do nosso Miguel, à qual confiou os dois filhos do primeiro casamento, Pietro Fedele e
Giovanni Battista Antonio.
Miguel, nascido no dia 9 de junho de 1837 e batizado no dia 11 de junho de 1837 na igreja
de Santa Maria das Neves e dos Santos Simão e Judas, em Turim,16 era o quarto e último filho
de Giovanna Maria. Os anteriores se chamavam Giovanni Battista (nascido no dia 2 de julho
de 1829), Maria Paola Felicità (nascida em 7 de março de 1834) e Luigi Tommaso (nascido no
fim de 1834). Maria Paola Felicità morreu quando Miguel nasceu. Por isso, ele vivia em casa
com dois meios-irmãos, Pietro Fedele (22 anos) e Giovanni Battista Antonio (17 anos), e dois
irmãos, Giovanni Battista (8 anos) e Luigi Tommaso (3 anos). Pode-se facilmente compreender
o motivo de Miguel ter se afeiçoado tanto a este último.
Miguel e a escola da fábrica de armas
Tudo leva a crer que Giovanna Maria cuidava especialmente da educação do caçula, o seu
preferido.
Miguel aprendeu a ler e a escrever, estudou o catecismo diocesano. Os primeiros biógrafos
dizem-nos que tinha memória excelente. As aulas de catecismo ficaram impressas definitiva-
mente em seu coração e o espírito ficou impregnado dele pelo resto de seus dias. À distância
de um século e meio, o dogmatismo e o moralismo daquele catecismo serão injustamente
desprezados por muitos sacerdotes e leigos. Na realidade, aquele instrumento tinha condições
de oferecer às mentes jovens, como à do pequeno Rua, uma estrutura religiosa destinada a
permanecer no tempo. Nele se aprendia o que se devia pensar e crer sobre Deus e sobre Cristo,
sobre o tremendo julgamento divino em relação aos pecadores, sobre a vida depois da morte,
sobre as principais virtudes cristãs, sobre os mandamentos de Deus e da Igreja, sobre os pecados
13 Nestes dois parágrafos, inspiro-me nas pesquisas mais ou menos avançadas e talvez pouco críticas de
Amadei I, p. 4-5.
14 O atestado de casamento foi publicado em Amadei I, p. 4, n.2.
15 Era o dia 26 de abril de 1828 e tinha apenas 32 anos, conforme afirma Amadei (I, p. 5), mas faz refe-
rência ao ato de morte de “Ruà Teresa, do ainda vivo Pietro Baratelli, mulher de Giovanni, de 32 anos
mais ou menos, que recebeu os santos sacramentos, falecida no dia 26 de abril de 1828 e sepultada no dia
27” (FdR 2750 C4). Confunde, portanto, Catterina Grimaldi com Teresa Baratelli. Havia outras famílias
Ruà na Turim daquele tempo.
16 Atestado do Batismo em FdR 2750D12.
18
e sobre os sacramentos.17 Os cristãos formados nessa escola não precisavam mais ir à procura
de outras certezas.
Citamos aqui somente “as premissas” daquele catecismo que a família Rua levava muito a
sério. A prática dos exercícios cotidianos do cristão levava, cada dia, o pensamento aos princi-
pais pontos da doutrina. Consistia, de manhã, numa oração de adoração, “Eu vos adoro, meu
Deus e vos amo com todo o coração...”, depois da qual vinham o Pai-nosso, a Ave-Maria, o
Credo, a invocação ao Anjo da Guarda, a lista dos mandamentos de Deus, dos preceitos da
Igreja, dos sacramentos; depois eram proclamados os atos de fé, de esperança, de caridade e de
contrição. À noite rezava-se o “Eu vos adoro”, o Pai-nosso, a Ave-Maria, a oração ao Anjo da
Guarda e o ato de contrição.18
Nessa família piemontesa de têmpera antiga vinha-se a ser cristão quase sem perceber. Mi-
guel aprendeu a servir à missa, o que lhe ofereceu também ocasião de fazer alguma molecagem.
Feito Reitor-Mor, vai confessá-lo tranquilamente. Em 1894, em Cavaglià, cidade piemontesa
perto de Biella, celebrava-se a inauguração de uma escola salesiana. O velho arcipreste, executor
testamentário do fundador morto recentemente, fazia as honras de casa ao padre Rua e a um
grupo de personalidades convidadas para o almoço na ocasião. Chegado o momento da sobre-
mesa, o padre Rua se levantou para o brinde:
– Eu não sei, senhor arcipreste, se o senhor se lembra de um menino vivo e moleque, que ia ajudar-
-lhe na missa, quando era, em Turim, Reitor da Igreja dos Catecúmenos, e que, depois, costumava
esvaziar a galheta do vinho. Pois bem, monsenhor, aquele menino, cujas molecagens o senhor com
muita bondade fingia não perceber, dando-lhe até, às vezes, alguma moeda, aquele menino sou eu,
e venho agora pedir-lhe sincero, embora tardio, perdão.
O irmão do arcipreste, contando o acontecido, acrescentou: “Pode-se imaginar a discreta
hilaridade dos comensais e, ao mesmo tempo, sua admiração por tanta modéstia em confessar
assim publicamente um fato de quando era criança. O velho anfitrião chorava como uma
criança”.19
Bem depressa Miguel estava pronto para receber os sacramentos do Crisma e da Eucaristia.
Segundo os registros paroquiais de San Gioacchino, recebeu a confirmação pelas mãos do ar-
cebispo Luigi Fransoni no dia 25 de abril de 1845. Não tinha ainda 8 anos. Na mesma idade,
foi admitido à primeira Eucaristia.20
17 Cf. o esquema do Breve catechismo per li fanciulli che si dispongono alla confessione e prima comunione
e per tutti quelli che hanno da imparare gli elementi della dottrina Cristiana ad uso della Diocese di Torino.
Torino, Eredi Botta, 1884.
18 Para os meninos internos das casas salesianas de antigamente, esse esquema era familiar, e era mais enri-
quecido no Jovem instruído, o livro de oração publicado por Dom Bosco, em 1847, e republicado muitas
vezes até 1960.
19 Episódio narrado por E. Ceria, Vita del Servo di Dio Michele Rua. Torino, SEI, 1949, p. 10.
20 Conforme o depoimento de Angelo Amadei no Processo informativo de beatificação do padre Rua, FdR
4350B4.
19

2 Pages 11-20

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2.1 Page 11

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No segundo semestre de 1845, ano decisivamente fecundo de acontecimentos para ele, Mi-
guel perdeu o pai. Giovanni Battista Ruà morreu “com a idade de mais ou menos 60 anos”. Os
meios-irmãos se afastaram da casa paterna. Apesar da morte do marido, Giovanna Maria e os
filhos conservaram o alojamento na fábrica, onde o filho primogênito estava empregado.
O segundo acontecimento daquele ano que, por muito tempo, terá para ele importância de-
terminante foi o encontro com Dom Bosco: “Conheci o Servo de Deus em setembro de 1845,
quanto tinha 8 anos”, testemunhará no processo de canonização. Dom Bosco tinha 30 anos.
Sacerdote havia quatro, era um dos capelães do Refúgio Barolo, onde tinha sido chamado para
assumir a direção de um hospitalzinho ainda em construção. Desde a infância tinha o dom
de atrair em torno de si os meninos e os jovens para diverti-los e instruí-los. Era sua paixão
e sempre fazia muito sucesso. Chegado a Turim em 1841, bem depressa começou a reunir e
a organizar um grupo de rapazes para quem ensinava o catecismo na capelinha do Seminário
eclesiástico, adjacente à igreja de São Francisco de Assis, onde frequentava cursos de Pastoral
(confissão, direção espiritual e pregação). Quando, três anos depois, se tornou capelão no Re-
fúgio Barolo, os rapazes foram encontrá-lo em seu quarto. O número exíguo de rapazes do
primeiro dia cresceu logo. Ajudavam-no outros dois capelães. A marquesa de Barolo havia lhes
cedido, na ala já terminada do hospitalzinho, uma sala que tinha sido preparada como capela
dedicada a São Francisco de Sales. Rezavam, cantavam, brincavam, ouviam belas instruções
e esplêndidos contos. No Refúgio, no outono de 1844, o Oratório de São Francisco de Sales
assumiu uma fisionomia semelhante à do Oratório do Anjo da Guarda do padre Cocchi, em
Vanchiglia.
Mas a marquesa prevenira os capelães de que sua estada seria provisória. Quando, no mês de
agosto seguinte, foi inaugurado o hospitalzinho, o Oratório de São Francisco de Sales precisou
desocupar o lugar. Tornou-se, portanto, necessário encontrar outra capela e um terreno para os
jogos dos meninos, parecidos com o Refúgio. Entre maio e junho tentou-se usar um cemitério
abandonado, San Pietro in Vincoli, que tinha uma capela. As autoridades competentes os ex-
pulsaram. Apresentou-se, então, um pedido à administração da cidade, que no dia 18 de julho
de 1845 permitiu que no domingo à tarde os meninos usassem a igreja dos Mulini, perto do rio
Dora. Foram tolerados somente até dezembro. Os jovens realmente invadiram imediatamente
a praça ao lado, para espanto dos moradores, preocupados com a limpeza e com a tranquilida-
de do bairro. Todo aquele movimento no Borgo Dora despertava interesse e atraiu a atenção
de muitos sobre Dom Bosco. Miguel Rua tomou conhecimento disso quando o Oratório se
encontrava provisoriamente nos Mulini. A senhora Rua não permitia ao filho menor que fre-
quentasse os meninos de rua, portanto, por aquilo que sabemos, foi um companheiro de classe
que lhe falou de Dom Bosco e o acompanhou até ele no Refúgio. No mesmo instante, Miguel
ficou fascinado por aquele sacerdote benévolo e sorridente.
O Ressurgimento em Turim
Em Turim, os anos que se seguiram ao encontro de Miguel Rua com Dom Bosco foram
turbulentos. Iniciava-se o processo do Ressurgimento italiano. Em Roma, em 1846, ao papa
Gregório XVI sucedera o “liberal” Pio IX. As pessoas mais abertas o quereriam chefe de uma
20
cruzada libertadora e unificadora de toda a península. Devia-se desvencilhar, sobretudo, do
jugo austríaco que humilhava o lombardo-vêneto. No dia 4 de março de 1848, os piemonte-
ses criaram uma lei fundamental, o Statuto, que ab-rogava o caráter absoluto da monarquia.
Elegeu-se um parlamento e no reino da Sardenha começou a prosperar a ideia liberal. Todos os
cidadãos, também os judeus ou valdenses, foram declarados iguais. O amor à pátria suscitava
entusiasmos por toda parte, até entre o baixo clero, começando pelos seminaristas, para grande
desprazer do arcebispo conservador Luigi Fransoni. No dia 23 de março, o rei Carlos Alberto
declarou guerra à Áustria pela libertação da Lombardia. Infelizmente foi vencido e precisou
abdicar em favor do filho Vítor Emanuel II (23 de março de 1849). No entanto, em Roma, Pio
IX, que não estava disposto a aceitar esse tipo de cruzadas militares, obrigado por uma revolu-
ção, refugiou-se no reino de Nápoles. Foi proclamada a República Romana, e o papa, aos olhos
dos patriotas mais ardorosos, se transformou no símbolo do conservadorismo obscurantista
hostil ao Ressurgimento da Itália.
Naquele tempo, Miguel Rua começava a pensar no sacerdócio. A atmosfera social não era
certamente favorável às vocações, como Dom Bosco explicará no prefácio de uma sua obra:
Naquele ano (1848), um espírito de aborrecimento se levantou contra as ordens religiosas e contra
as congregações eclesiásticas. Depois, em geral, contra o clero e contra todas as autoridades da
Igreja. Esse grito de furor e de desprezo contra a religião trazia consigo a consequência de afastar
a juventude da moralidade, da piedade e, portanto, da vocação ao estado eclesiástico. Enquanto
isso, os institutos religiosos iam se dispersando, os padres eram desprezados, alguns colocados na
prisão, outros mandados em prisão domiciliar. Como, humanamente falando, era possível cultivar
o espírito de vocação?21
Miguel frequenta a escola dos Irmãos
Naqueles anos atormentados, Miguel não frequentava ainda o Oratório de Dom Bos-
co, que desde 1846 se transferira definitivamente para Valdocco, na Casa Pinardi, onde
um alpendre fora transformado em capela. Sua mãe não o permitia. Toda a família assis-
tia à missa dominical na capela da fábrica de armas. O rapaz, no entanto, se mantinha
em contato com Dom Bosco. Algumas vezes, em companhia do irmão maior Luigi,
visitava-o no Oratório. Mas, sobretudo, podia vê-lo e provavelmente também falar com
ele na escola. Talvez tenha sido o próprio Dom Bosco quem o encaminhara para a escola
do bairro de Santa Bárbara, administrada pelos Irmãos das Escolas Cristãs. De fato, o
padre de Valdocco tinha algum contato com o provincial dos Irmãos. Em 1845, dedi-
cara sua História eclesiástica “ao exímio irmão Hervé-de-la-Croix, provincial dos Irmãos
das Escolas Cristãs”, pedindo-lhe que aceitasse a humilde homenagem “desta pequena
obra [...]; não seja mais minha, mas sua”. O historiador do instituto, Georges Rigault,
depois de citar o fato, escreve: “João Bosco se interessava muito pela pedagogia lassalia-
na. Tinha tomado como guia desse estudo a competência segura do inspetor provincial.
21 Cenno istorico sulla Congregazione di S. Francesco di Sales e relativi schiarimenti. Roma, Poliglotta, 1874,
p. 3.
21

2.2 Page 12

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Aprofundava seu conhecimento inato da alma infantil em frequentes conversas com ele
e através da leitura do Guia das escolas e das doze virtudes de um bom professor”.22 A coisa
é muito verossímil.
Em outubro de 1848, Miguel começou, então, a frequentar as aulas na escola municipal de
Santa Bárbara, situada na rua Borgo Dora, n. 29, e o fez por dois anos. Se nossas informações
estão corretas, foi matriculado logo no segundo ano da escola primária superior. O programa
previa que se aprendesse, “além das ciências religiosas, os preceitos de composição literária, o
sistema dos pesos e das medidas em uso no Piemonte, o sistema métrico decimal recentemente
adotado, a geografia da Ásia e da África, a história dos duques de Saboia, de Amadeu VII a
Carlos Emanuel II, elementos da história natural, de desenho e de caligrafia”.23 Esses cursos
completavam, assim, a instrução de base recebida na escola primária inferior.
Os Irmãos consideravam que a educação deveria ter o primado sobre a instrução. Na escola,
Miguel aperfeiçoou a educação recebida em família. Os alunos das classes elementares eram
convidados a ler o tratadozinho do fundador, São João Batista de La Salle, sobre as Regras da
boa educação e da educação cristã. Nos tempos de Miguel, em todas as escolas dos Irmãos, os
alunos eram asperamente repreendidos quando davam a impressão de transgredi-las. Deviam,
portanto, ter uma atitude sob o signo da “modéstia”. As Regras os advertiam: “Nada contribui
mais para a graça do corpo, para a honestidade dos costumes que a precisão com a qual um
jovem observa o estado natural e o movimento das partes do corpo”. Ora, “os jovens são muito
sujeitos aos defeitos que ofendem, neste âmbito, a modéstia e a honestidade. A boa educação
comporta que se tenha a cabeça ereta e elevada, sem incliná-la para um lado e para o outro; não
se deve girá-la para a direita e para a esquerda distraidamente”.
Como vemos pelos títulos dos vários capítulos, o livreto sobre “boa educação” era abun-
dante em diretivas pontuais. Diziam respeito, em ordem de sucessão, à cabeça e às orelhas,
aos cabelos, ao olhar, à fronte e ao olhar, ao nariz, à boca, aos lábios, aos dentes e à língua,
ao modo de falar e de pronunciar, de bocejar, de tossir e de cuspir; ao modo de conservar as
costas, os ombros, os braços, os cotovelos, as mãos, os dedos, as unhas, os joelhos, as pernas
e os pés. Repetir essas normas de comportamento no auge da exigente sociedade francesa do
século XVIII soaria hoje um tanto bizarro e superado. Mas na base daquelas exatidões, que
parecem excessivas para quem vive num modo individualista como o nosso, não havia outra
coisa a fazer senão manter um extremo respeito a si e aos outros. A postura em público devia
ser perfeitamente disciplinada.
Os jovens nunca devem interromper aqueles que falam com perguntas, mesmo sérias e oportunas.
Quando se pergunta alguma coisa, deve-se responder com modéstia; fazer seguir ao sim e ao não os
apelativos Senhor, Senhora, Senhorita. Deve-se impedir-lhes que olhem fixamente de frente aqueles
com os quais conversam, escutar quem fala com outros, enquanto não prestam nenhuma atenção
àquilo que se lhes diz; rir ou zombar falando; tratar de coisas que mal conhecem. Numa palavra, é
preciso convencê-los de que é seu dever escutar, falar pouco e não falar desatinadamente.
22G. Rigault, Histoire générale de l’Institut des Frères des Écoles Chrétiennes, v. VI, Paris, Plon, 1947, p. 40-41.
23Segundo A. Auffray, Le premier successeur de Don Bosco, Don Rua (1837-1910). Lyon-Paris (p. 19), que
retoma um “programa” que lhe foi provavelmente fornecido pelos Irmãos de Turim.
22
Miguel Rua, de índole atenta e reservada, assimilava sem dificuldades aqueles princípios de
boa educação. Graças a eles, como adulto, não terá dificuldade em se adaptar à “boa sociedade”.
Nas escolas dos Irmãos, a disciplina era férrea. O tratado do fundador, O guia das escolas
cristãs (traduzido para o italiano, em Turim, pelo editor Pomba, em 1834), ilustrava suas regras
com abundância de particulares. Os Irmãos eram convidados a ler e a reler o longo tratado.
Não sabemos com que pontualidade o aplicavam em Santa Bárbara, mesmo supondo que os
Irmãos do século XIX não transigiam sobre as suas tradições. Em todo caso, o conjunto do
tratado nos retrata exatamente o ambiente educativo no qual Miguel cresceu entre os 11 e os
13 anos. Eis algumas dessas disposições, por vezes surpreendentes:
Silêncio na escola: “O professor fará com que os alunos compreendam que podem falar em voz alta
somente em três momentos, isto é, durante a récita das lições, do catecismo e das orações. Tam-
bém o professor observará esta norma, e não falará em voz alta senão em três ocasiões: 1) durante
a leitura, quando devesse intervir para corrigir, não havendo nenhum aluno capaz de fazê-lo; 2)
durante o catecismo; 3) durante as reflexões e o exame de consciência. Fora dessas circunstâncias,
falará em voz alta somente quando considerar estritamente necessário, e fará de modo que essas
ocasiões sejam muito raras. Quando os alunos caminham na sala de aula, devem fazê-lo de cabeça
descoberta, com os braços cruzados, calmamente, sem arrastar os pés no pavimento ou fazer baru-
lho com os calçados, para não quebrar o silêncio que deve reinar sempre na sala de aula. Será fácil
para o professor fazer observar o silêncio se cuidar que os alunos estejam sempre sentados em seu
lugar, com o busto ereto, com o olhar voltado para diante e apenas um pouco voltado para ele; que
tenham nas mãos o livro de texto e sigam a leitura; que tenham as mãos e os braços bem visíveis;
que não se toquem um ao outro com as mãos e com os pés; que não troquem objetos ou olhares de
comunicação; que estejam compostos com as pernas e não tirem nunca os sapatos ou os tamancos;
que aqueles que escrevem não se deitem nos bancos e não assumam posições inconvenientes”.24
O Guia das escolas contém um longo capítulo sobre os métodos corretivos. Não sem razão,
considerava o autor. Com efeito, “correção dos alunos é uma das coisas mais importantes na
arte do ensino, à qual é preciso estar mais atento na aplicação com justiça e com fruto, tanto
para aqueles que a recebem como para os outros que a ela assistem”.25 As punições eram aplica-
das com a palmatória (um filete de madeira ou de couro para ferir a mão estendida do culpa-
do), com a vara ou o açoite (três golpes, cinco se apresentasse resistência), e através de “penitên-
cias”, que geralmente consistiam numa página para escrever ou num texto para decorar. João
Batista de La Salle sabia que as crianças são sensíveis, mas acrescentava: “Quando se tem muito
cuidado com a fragilidade humana e uma excessiva compreensão, deixando-os fazer aquilo
que quiserem, haverá somente jovens viciados, desregrados e cheios de insubordinação”.26 Esse
educador colocava em segundo plano a necessidade de deixar o aluno se expressar, tão exaltado
em nossos dias. Segundo ele, o comportamento habitual do professor facilitaria tudo:
Os professores se empenharão em ser muito cordiais e disponíveis, e em ter atitude afável, honesta
e aberta, sem, no entanto, assumir ar nem mesquinho nem muito familiar; devem fazer de tudo
24 Jean-Baptiste de La Salle, Guida delle scuole Cristiane. In: Opere, v. III, Roma, Città Nuova, 2000, p.
137-138.
25 La Salle, Guida delle scuole, p. 158.
26 La Salle, Guida delle scuole, p. 271.
23

2.3 Page 13

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para seus alunos, com o objetivo de conquistá-los todos para Jesus Cristo e que se persuadam
de que a autoridade se adquire e se conserva mais, na escola, com a firmeza, a severidade e o
silêncio que com as pancadas e a dureza.27
Colocadas essas premissas, compreende-se por que em Santa Bárbara fizesse enorme sensa-
ção a chegada de Dom Bosco, sacerdote que privilegiava as relações de amizade com os jovens.
Padre Rua testemunha:
Recordo-me de que quando Dom Bosco vinha celebrar a missa para nós e não raramente para
pregar aos domingos, logo que entrava na capela, parecia que uma corrente elétrica movimentasse
todos aqueles numerosos meninos. Ficavam de pé, saíam dos seus lugares, se amontoavam ao redor
dele e não ficavam contentes enquanto não conseguissem beijar-lhe as mãos. Era preciso muito
tempo para que ele pudesse chegar à sacristia. Naqueles momentos, os bons Irmãos das Escolas
Cristãs não podiam impedir aquela desordem aparente e não se importavam.28
Na escola dos Irmãos, Miguel se demonstrou aluno devoto, sério, empenhado e diligente:
recebia regularmente notas “honoráveis”. Os boletins, chegados até nós, louvam seu “bom com-
portamento” e sua “aplicação” nas aulas da segunda e da terceira “elementar superior”.29 Conser-
vará uma belíssima recordação de sua escola. As lições dos Irmãos sobre a dignidade da postura
em sociedade e sobre o Guia das escolas influenciarão o seu comportamento por toda a existência.
27 La Salle, Guida delle scuole, p. 280.
28 In: Documenti per scrivere la storia di D. Giovanni Bosco, dell’Oratorio di S. Francesco di Sales e della
Congregaz. Salesiana, v. III, p. 25 (ASC, A053), nota marginal reproduzida em MB II, p. 316. Nas MB
a sequência deste testemunho que descreve o confessionário de Dom Bosco assediado, enquanto os dos
outros confessores estavam totalmente vazios, poderia até ser um exagero de Lemoyne.
29 Esses boletins são reproduzidos em FdR 2665AI-7.
24
Capítulo 2
Na escola de Dom Bosco
O estudo do latim com Dom Bosco
Miguel, com a idade de 13 anos, no início do verão de 1850, começou a frequentar as aulas
de latim para a admissão à classe de “gramática”, sob a orientação de Dom Bosco, que o obser-
vava porque esperava fazer dele, no futuro, um colaborador do seu apostolado.
No fim da década de 1840, Dom Bosco estava se tornando, na cidade de Turim, aos olhos
dos seus admiradores, um personagem carismático, quase taumatúrgico. A imprensa católica
começou a celebrá-lo em 1849. Um artigo do Conciliatore Torinese afirmava que ele possuía
“uma força prodigiosa” sobre o coração dos jovens. Esse “novo discípulo de Felipe Neri” tinha
o poder de operar prodígios.1 A hagiografia salesiana faz remontar justamente a esses anos uma
multiplicação de hóstias, uma multiplicação de castanhas e até a ressurreição temporária de um
jovem de 15 anos, para que pudesse confessar um pecado grave antes de morrer definitivamen-
te. As pessoas, dentro e fora do Oratório, costumavam atribuir-lhe milagres, mesmo quando
ele negava ser o autor deles.
Dom Bosco precisava de colaboradores, sobretudo porque agora, junto do Oratório pro-
priamente dito, tinha sido criado um pequeno centro de acolhida. Os meninos hóspedes iam
ao trabalho e à escola na cidade. Havia três anos ele procurava no próprio ambiente jovens
dispostos a segui-lo. Rodeava-os de atenções especiais, instruía-os e se esforçava por orientá-los
para os próprios objetivos, isto é, o ministério pastoral a serviço dos jovens pobres e abandona-
dos. Mas as desilusões se multiplicavam. Os novatos, nos quais punha as suas esperanças, um
depois do outro o abandonavam.
Naquele momento, chegou ao Oratório Miguel Rua. Nas férias do verão de 1850, come-
çou a frequentar as aulas de latim em companhia de outros dois jovens. O professor, Félix
Reviglio, era um companheiro um pouco mais adiantado nos estudos. Depois de umas duas
semanas, Dom Bosco fez uma prova dos seus progressos. O primeiro biógrafo, Francesia, é
categórico: Miguel ficou “negligente”. Afirmação que fez admirar quem o conhecia. De resto,
pode-se compreender. Habituado, na escola dos Irmãos, a um ensino metódico, perfeitamente
organizado, em classes estruturadas, não podia senão ficar desorientado com as aulas de um
1 Cf. Il Conciliatore Torinese, sábado, 7 de abril de 1849, p. 2 (artigo assinado por Lorenzo Gastaldi).
Retomo aqui o meu livro Don Bosco en son temps, p. 281-286.
25

2.4 Page 14

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companheiro inexperiente, cheio de boa vontade. Mas logo que percebeu que isso desagrada-
va a Dom Bosco, arregaçou as mangas, como refere o biógrafo, e superou facilmente os dois
companheiros de aventura.2
Dom Bosco progressivamente o introduziu no tipo de vida que desejava para ele. A oração
e a alegria ocupavam um papel central. Miguel inaugurou esse novo período participando, na
metade de setembro de 1850, de um curso de exercícios espirituais organizado para os rapazes
do Oratório no pequeno seminário de Giaveno. O santo levou para lá mais de 100 jovens, aos
quais se uniram outros 20 da cidade. O retiro se desenvolveu segundo um esquema simplifica-
do dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, muito conhecido de Dom Bosco. A meditação
matutina era garantida pelo pároco de Giaveno, Innocenzo Arduino, as instruções da manhã
e da tarde eram feitas pelo teólogo Felice Giorda. Sermões, orações, leituras piedosas dividiam
os dias dos participantes. Como reforço, veio também Roberto Murialdo, diretor do Oratório
do Anjo da Guarda, para ajudar nas confissões. Na época, não se concebia um retiro sem con-
versão e, portanto, sem confissão.3
O recolhimento dos participantes foi sincero. Os pregadores exerceram bem sua tarefa. No
dia 12 de setembro, Dom Bosco constatou com satisfação que naquele dia, saindo da capela,
nenhum dos jovens aproveitou o recreio previsto entre 4 e 5 horas da tarde. Todos tinham pre-
ferido retirar-se para a “sala de reflexão”.4 Miguel gostava de relatar como naquela ocasião tinha
aprendido de Dom Bosco o exercício da boa morte e a importância de fazê-lo regularmente e
com atenção.
Alguns dias depois, o santo educador convidou um grupinho dos seus melhores oratorianos,
entre os quais o jovem Rua, para passar uma semana nos Becchi. Amava muito aquela agradável
colina, coberta de vinhedos e de árvores frutíferas espalhadas cá e lá nos campos e sombreada
nos declives por plantas majestosas. Para lá o levavam as lembranças da infância. Uma pequena
capela ao lado da casa do irmão José, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, lhe permitia cele-
brar a missa no lugar. Durante as excursões pelo terreno, os camponeses ofereciam aos rapazes
uvas e outras frutas. Rua, que estava acostumado à vida monótona e fechada da cidade, gostou
do ar aberto dos campos. Voltou revigorado e ainda mais afeiçoado ao pai espiritual.
As aulas ginasiais
Depois, Miguel entrou no ginásio. Naquele tempo, as classes ginasiais chamadas de “gramá-
tica” duravam três anos. Segundo Francesia, no fim das férias de 1850, “Dom Bosco, querendo
que seus alunos frequentassem um curso regular, falou disso a um bom sacerdote que naqueles
tempos ajudava o Oratório e abrira uma escola particular de latinidade. Ele se chamava Pietro
2 Cf. G. B. Francesia, D. Michele Rua, primo succesore di Don Bosco. Memorie del Sac. G. B. Francesia.
Torino, Ufficio delle “Letture Cattoliche”, 1911, p. 18-19.
3 Indicações sobre os exercícios espirituais organizados por Dom Bosco em P. Stella, Don Bosco nella storia
della religiosità cattolica, v. II: Mentalità religiosa e spiritualità. Zurique, Pas-Verlag, 1969, p. 336-337.
4 Carta de Dom Bosco a G. Borel, Giaveno, 12 de setembro de 1850, Epistolario I, p. 111-112.
26
Merla, de Rivara, muito dedicado à juventude estudiosa. A ele confiou seus alunos, que pude-
ram fazer muito bem os dois primeiros cursos de latim”.5
No começo do ano escolar 1851-1852, Miguel Rua começou a acompanhar as aulas de
Giuseppe Carlo Bonzanino, na rua Guardinfanti 19. Depois de um mês, em outubro de 1851,
alcançados os resultados de excelência em latim, foi autorizado a passar para o terceiro ano de
gramática. A escola de Bonzanino não tinha nenhuma semelhança com a dos Irmãos, mas pelo
menos não se perdia tempo. Agostino Auffray, dotado de imaginação fértil e bem informado,
descreve aquele professor de modo pitoresco:
Era uma figura, esse Bonzanino. Tinha o ensino no sangue e se dedicava a ele de corpo e alma.
Os sucessos, que eram constantes, se explicavam pela qualidade da sua instrução: clara, metódica,
prática. Sua experiência de muito tempo fazia instintivamente referência aos elementos essenciais,
resolvia os problemas somente com os princípios, e sabia infundir nas suas aulas muito austeras
tanto o entusiasmo como a inteligência. [...] Morava perto da igreja de São Francisco de Assis, na
mesma casa em que Silvio Pellico, de volta da prisão, tinha escrito Le mie prigioni. Todas as manhãs,
sob o pórtico da sua casa, se revezavam grupos de rapazes, sobretudo das classes mais adiantadas,
que se subdividiam em três cursos de latim e de grego. Ele conservava todos os três juntos. Uns
estudavam enquanto outros acompanhavam as aulas e vice-versa. Podia-se, à vontade, tomar parte,
na mesma manhã, na explicação de Cornélio Nepote, de César ou de Salústio, de Fedro, Ovídio
ou Virgílio. Nenhuma parede, nem física nem moral, separava as classes. O professor pretendia
somente duas coisas: a atenção, as tarefas benfeitas e as lições aprendidas como se deve. De resto,
total liberdade. O método era vantajoso para os alunos capazes. Aqueles que tinham lacunas na
sua instrução preenchiam-nas facilmente, seguindo ao mesmo tempo o curso inferior. Aqueles
que eram audazes no espírito e tinham sólidas faculdades intelectuais podiam passar para o curso
superior. Bonzanino teve alunos que entravam na quinta série em outubro, passavam para a quarta
na Páscoa e terminavam o ano na terceira. No sábado pela manhã, totalmente consagrado a redigir
a composição que atribuía os lugares [a classificação de mérito] da semana, oferecia um espetáculo
realmente curioso: os alunos “esforçados” se apressavam em concluir o dever do seu curso para con-
ceder-se o luxo de se juntar à composição da classe superior. O pequeno Miguel aproveitou admira-
velmente desse ambiente estimulante. Um dos seus companheiros, Francesia – salesiano fantasioso
que considero a fonte dessas notícias –, testemunha que Rua, quando estava na 3ª série, se obrigava
a seguir os cursos das duas classes anteriores, para se reforçar nos elementos das línguas antigas.6
Miguel brilhava nos estudos. Segundo Francesia, testemunha ocular, embora tivesse com-
panheiros muito dotados, não se empenhou muito para conquistar o primeiro lugar e para
conservá-lo.7
O mesmo Francesia conta um episódio do qual Miguel foi vítima inocente. Naquele tempo,
no Piemonte, era costume, na terceira quinta-feira da Quaresma, organizar uma brincadeira
que consistia em colocar nas mãos de um infeliz uma foice verdadeira ou de papel. Acontecia
sempre que o destinatário, não sabendo da armadilha, era colocado em ridículo. Em 1852, os
alunos de Bonzanino decidiram entregar a foice ao professor. Rua, que tinha pressentido o pro-
5 Francesia, p. 20.
6 Auffray, Le premier successeur, p. 26-27.
7 Francesia, p. 21-22.
27

2.5 Page 15

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jeto, procurou inutilmente dissuadir os companheiros. Naquela quinta-feira de manhã, quan-
do Rua entrou na sala, depois dos outros alunos do Oratório, um deles lhe disse: “Você que
agora está em pé entregue ao professor esta carta de Dom Bosco”. Rua a tomou e a entregou.
Logo que o professor percebeu de quem vinha a carta, abriu o envelope, que continha uma
foice em papelão. Então, levantou-se furioso contra Miguel, dizendo que nunca esperaria uma
insolência de um dos jovens de Dom Bosco, muito menos de sua parte. Mais tarde, quando
compreendeu que a verdadeira vítima era o próprio Rua, o professor se acalmou. Aquele dia era
a véspera de São José, onomástico do professor Bonzanino. À noite, Dom Bosco enviou seus
rapazes para lhe augurar uma boa festa. Mas Rua se conservava à parte e não ousava fazer-se
notar. Então, o professor se aproximou dele: “Não fique triste. A culpa é minha, não compreen­
di que a brincadeira era destinada a você, não a mim”. O padre Rua não esquecerá nunca o
acontecido. “Foi uma grande prova”, confiou ainda em 1909 a Francesia, que o recordava, não
tanto pela humilhação sofrida, mas por ter deixado entender que queria dar um tremendo tiro
num professor amado”.8
Miguel se distinguia no Oratório de Dom Bosco, que estava em plena evolução. É preciso
recordar que aquele centro juvenil estava se tornando uma obra-piloto em Turim. Pelo fim de
1847, com uma súplica se informava o arcebispo Fransoni de que o sacerdote João Bosco e o
teó­logo Borel, adidos à direção espiritual do Oratório São Francisco de Sales, tinham aberto um
novo Oratório entre a rua dei Platani e a avenida del Re e pediam que delegasse o padre de Nossa
Senhora dos Anjos para a bênção daquela capela. O novo Oratório, colocado sob a proteção de
São Luís Gonzaga, estava situado no bairro ainda periférico de Puorta Nuova. Além disso, depois
de uma grave desventura acontecida com o padre Cocchi, em 1849, cujo desfecho se deu com o
fechamento do Oratório do Anjo da Guarda, em Vanchiglia, o arcebispo tinha confiado a Dom
Bosco também a responsabilidade daquele primeiro Oratório de Turim. Essas anexações não
agradavam a alguns do ambiente eclesiástico. Dom Bosco foi repreendido pelas suas excessivas
pretensões. A inveja envenenava as reações. As altercações terminaram somente com um decreto
arquiepiscopal de Lyon, em 31 de março de 1852. Dom Fransoni, exilado na França, nomeava
Dom Bosco “diretor chefe espiritual” do Oratório São Francisco de Sales, ao qual deviam ser
considerados “unidos e dependentes” os Oratórios do Anjo da Guarda e de São Luís Gonzaga.9
A casa anexa ao Oratório de São Francisco de Sales, embora miserável, via aumentar o
número dos hóspedes, frequentemente meninos abandonados, obrigados a procurar trabalho
em algum bairro. Para todos esses jovens a capela da Casa Pinardi se tornava muito pequena.
Dom Bosco decidiu construir uma verdadeira e própria igreja, dedicada naturalmente a São
Francisco de Sales, que foi abençoada no dia 21 de junho de 1852. Naquele tempo se construiu
também um edifício novo ao lado do velho.
Miguel vivia ainda com a família, mas tinha se acostumado a passar a maior parte do seu
tempo livre no Oratório. Entretanto crescia. Observador nato, compreendia logo as intenções
de Dom Bosco e o ajudava como podia a ter um pouco de ordem e de disciplina tanto entre os
8 Francesia, p. 22-25, adaptado em E. Ceria, Vita del Servo di Dio Michele Rua. Torino, SEI, 1949, p.
18-19.
9 Documento reproduzido em MB IV, p. 178-179.
28
internos como entre os externos. Bem vestido, sempre educado, com certa gravidade nos mo-
dos, segundo as Regras da boa educação e de civilidade de João Batista de La Salle, já na sua idade
incutia submissão. João Cagliero nos deixou um quadro pitoresco do Miguel daqueles tempos
entre os companheiros, quadro provavelmente enriquecido por Auffray, de quem tiro a citação:
Nós o tínhamos como vigilante para ir e voltar da escola, e confesso que fazíamos um bom contras-
te com ele. Tanto nós éramos descabeçados, barulhentos, quase indisciplinados, quanto ele perma-
necia calmo, reservado, diligente. Não o escutávamos sempre, mas nos incutia submissão tanto na
aula como no estudo e também durante o recreio, com as suas conversas agradáveis e a sua devoção
fora do comum. Ainda me parece vê-lo, no domingo de manhã, em guarda perto da fonte. Dom
Bosco confessava antes da missa e Rua vigiava para que nenhum dos penitentes absolvidos faltasse
à comunhão por leviandade, vindo a beber um gole de água fresca [recordamos que antigamente as
regras do jejum eucarístico eram muito rígidas]. Durante a missa, seu recolhimento nos estimulava
a rezar. Punha fim às conversas e depois da comunhão, se nosso olhar ou nossa mente se distraí-
am, nos chamava ao dever, sussurrando: “Agradeça ao Senhor!”. Nos nossos colóquios não parava
nunca de elogiar Dom Bosco e não deixava de nos recomendar a correspondência ao seu amor por
nós, com uma docilidade exemplar. Tinha uma grande delicadeza, não tolerava nenhuma conversa
equívoca entre os aprendizes que vinham de fora e aqueles que moravam havia pouco tempo junto
com Dom Bosco; tanto mais entre os alunos do professor Bonzanino ou do padre Picco, que pare-
ciam todos encaminhados ao estado eclesiástico.10
Os companheiros de então, tornados adultos, reconheceram que Rua não tinha quem lhe fi-
zesse concorrência no desenvolvimento assíduo dos seus deveres. Naturalmente, quando Dom
Bosco, durante uma conferência, pediu voluntários que se empenhassem a recitar diariamente
as Sete alegrias de Maria, Miguel Rua foi um dos doze que se apresentaram (5 de junho de
1852).
Miguel Rua veste o hábito clerical
As férias de 1852 foram decisivas para o nosso Miguel. Aos 15 anos já mostrava maturidade
excepcional. Como fizera em 1850, em setembro participou, com uns cinquenta companhei-
ros, do retiro que Dom Bosco organizava para os jovens no pequeno seminário de Giaveno. De
volta, deixou a casa da família na fundição e entrou como “interno” na casa anexa ao Oratório.
Finalmente, durante as jornadas em Becchi, tornadas tradicionais para um grupo de jovens
do Oratório, Dom Bosco o fez vestir a batina. Não houve nenhum retiro preliminar. Agora o
jovem adolescente redobrou o empenho, observando seu mestre espiritual. Os dias passados
ao lado de Dom Bosco tinham para ele o mesmo valor de uma meditação. No processo de
canonização lhe acontecerá fazer o seguinte depoimento: “Observar Dom Bosco em suas ações
mesmo minúsculas me dava mais impressão que ler e meditar qualquer livro devoto”.11
10 Segundo Auffray, p. 31-32, confirmado pelo testemunho de João Cagliero no processo de canonização,
Summarium Super dubio, 1933, p. 51-52. (Esse Summarium se encontra inserido na Positio, 1935. Sacra
Rituum Congregatione. Taurinen. Beatificationis ac Canonizationis Servi Dei Sac. Michaelis Rua Positio super
introductione Causae. Roma, Guerra et Belli, 1935.)
11 Ceria, Vita, p. 22.
29

2.6 Page 16

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A cerimônia de vestição, que incluía também o companheiro Giuseppe Rocchietti, acon-
teceu no dia 3 de outubro de 1852, festa do Rosário, na pequena capela perto da casa de José
Bosco. Presidiu-a o pároco de Castelnuovo, padre Cinzano. Foi ele que benzeu as túnicas dos
dois jovens. Depois, o padre Cinzano ajudou Rocchietti, mais velho, a vestir a sua túnica, en-
quanto o teólogo Giovanni Battista Bertagna fazia o mesmo para o nosso Miguel. No fim da
vida, padre Rua recordava ainda o que Dom Bosco lhe havia dito naquela ocasião. “Meu caro
Rua, você agora começou uma nova vida. Você se encaminhou assim para a Terra Prometida,
mas é preciso atravessar o Mar Vermelho e o deserto. Se você me ajudar, nós conseguiremos
atravessá-lo e chegaremos”. Padre Ceria, interpretando esta reflexão, escreveu que Dom Bosco
aplicava a seu discípulo o dito dos Atos dos Apóstolos: “Devemos entrar no Reino de Deus
através de muitas tribulações” (At 14,21).12
Sua volta ao Oratório com a veste talar causou sensação: parecia “um anjo”, segundo os pri-
meiros biógrafos. Talvez fosse assim. Em todo caso, a túnica que lhe fora imposta lhe conferia
um ar muito simpático e acrescentava um toque de beleza à expressão serena do seu semblante
e à dignidade natural da sua compostura. Deve-se dizer que a vestia com evidente respeito.
Sua condição de clérigo o aproximava um pouco de Dom Bosco. Finalmente, depois de
muitas hesitações, resolveu, então, pedir que lhe explicasse o porquê de um gesto que fazia
quando o encontrava na escola dos Irmãos. Aos outros rapazes oferecia habitualmente uma
imagenzinha, mas a Rua estendia a mão esquerda e fazia como se quisesse cortar-lhe um pedaço
dizendo: “Veja, Rua: Dom Bosco queria lhe dizer que com você, um dia, faria tudo meio a
meio. Você vai compreender melhor depois”.13
Para completar os estudos secundários, Miguel entrou na escola do padre Matteo Picco,
situada na rua dos Fornelletti, perto da igreja de Santo Agostinho. Era uma escola aristocrá-
tica, mas padre Picco, amigo de Dom Bosco, recebia gratuitamente seus rapazes. Rua, aluno
perfeito, concluirá num só ano escolar (1852-1853) os cursos de humanidade (latim e grego)
e de retórica. Achou-se à vontade naquele ambiente, onde pôde fazer novas relações que lhe
seriam preciosas no futuro. Esses cursos de liceu terminavam com um exame chamado licença.
Miguel se demonstrou brilhante, como sempre, nos estudos. Um dos examinadores, Dome-
nico Cappellina, que gozava de certa fama no mundo literário piemontês, disse ao professor:
“Permita-me que tenha inveja de um aluno de tanto valor. Não deixará de fazer uma esplêndida
carreira!”.14
12 Ceria, Vita, p. 22. Esta é a versão salesiana da vestição, que me parece bem fundamentada. Mas é preciso
saber, como me observou o historiador salesiano Aldo Giraudo, que o Registro oficial dos clérigos do arce-
bispado de Turim, nos anos 1819-1876, atesta que “Miguel Rua, filho de João e de Joana Maria Ferrero,
nascido no dia 9 de junho de 1837, foi vestido com o hábito clerical em Turim pelo sacerdote João Bosco
no dia 16 de dezembro de 1853” (Arquivo Arquiepiscopal de Turim, 12.12.3: Registrum clericorum 1808-
1847 [mas: 1819-1876], rubr. R, 1853). Suponho, pessoalmente, que no dia 16 de dezembro de 1853,
Dom Bosco, que não havia informado oficialmente a cúria em outubro de 1852, tenha simplesmente
avisado a administração diocesana que fizera a entrega da veste ao jovem Rua. Daqui o lugar e a data do
documento administrativo.
13 Ceria, Vita, p. 23.
14 Francesia, D. Michele Rua, p. 35.
30
Aquele ano escolar foi marcado por três acontecimentos. Na tarde do dia 1º de dezembro
de 1852, a casa do Oratório desabou por causa da queda dos muros do edifício em construção.
De madrugada, a mãe de Dom Bosco ouviu um rangido e deu o alarme. Uns cinquenta jovens
dormiam na casa. Precipitaram-se para o pátio, debaixo das árvores, e depois para a capela. Rua
fazia parte daquele número. Felizmente não houve feridos. O prejuízo, de grandes dimensões,
foi só material.
O segundo foi um acontecimento histórico. Em fevereiro de 1853, o bispo de Ivrea, dom
Luigi Moreno, e Dom Bosco lançaram a coleção popular das Leituras Católicas, que daria ainda
mais brilho à obra de Valdocco.
O terceiro acontecimento atingiu padre Rua e sua família: no dia 29 de março de 1853,
morreu seu meio-irmão maior, João. Essa morte o feriu muitíssimo.
Eu nunca vi o amigo mais aflito do que naquela vez! Sei que era o começo da primavera, mas
chovia, e era um dia muito triste. Estivéramos um pouco na escola e, percebendo o seu sofrimen-
to, não pude me eximir de dizer-lhe: “O que você tem de tão grave que o deixa tão triste?”. Ele,
elevando os olhos ao céu, disse, suspirando: “Meu irmão morreu!”. O que poderia dizer-lhe de
mais consolador? Estávamos na sacristia do Oratório festivo. Deixou a escola e foi para a igreja
rezar. E foi uma longa oração.15
Essa morte teve consequências na família Rua. A mãe de Miguel, agora sozinha, deixou o
alojamento da casa de armas para se transferir para o Oratório de São Francisco de Sales, na
casa Bellezza. Então, todo o seu tempo livre, passou-o em grande parte na lavanderia de Dom
Bosco com a sua mãe, Margarida, que desde 1846 cuidava dos afazeres da casa. Assim, os lia-
mes entre a obra de Dom Bosco e o nosso Miguel se consolidavam.
15 Francesia, D. Michele Rua, p. 28-29.
31

2.7 Page 17

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Capítulo 3
Os estudos de filosofia
Miguel e a filosofia
Em julho de 1853, Miguel foi admitido para estudar filosofia no seminário de Turim. Um
seminário pobre, a bem da verdade, vítima dos movimentos revolucionários de 1848. Apesar
das ordens reiteradas do arcebispo Fransoni, os seminaristas, no fim de 1847 e no início de
1848, continuavam a se entusiasmar pelas manifestações patrióticas. Agora, esse arcebispo, de
temperamento conservador, via nas tendências liberais um atentado à autoridade do Estado e à
da Igreja. O arcebispo ameaçava não admitir os transgressores às ordenações.
Os seminaristas se obstinaram. No Natal, na catedral, alguns seminaristas se apresentaram
com o distintivo nacional no peito, no momento da missa pontifical do arcebispo. O reitor do
seminário, que não conseguia conter seu espírito rebelde, apresentou sua demissão, que dom
Fransoni se apressou a rejeitar. A agitação não se acalmou. No dia 9 de fevereiro de 1848, quan-
do em Turim foi anunciado o Estatuto, os clérigos se apresentaram novamente na cidade com o
peito ou o chapéu enfeitados de fitas tricolores simbólicas. Fizeram o mesmo, alguns dias mais
tarde, aclamando um cortejo de corporações leigas. Consequentemente foi negada a ordenação
a todos os clérigos que tinham participado das manifestações. E o arcebispo tomou a drástica
decisão de fechar o seminário de Turim. Os seminaristas voltaram para suas casas. Alguns en-
contraram lugar nas dioceses vizinhas. Depois, quando estourou a guerra, a administração civil
transformou o seminário em hospital militar. O arcebispo, preso durante algum tempo em Fe-
nestrelle, foi obrigado, depois, a ir como exilado para Lyon. Assim, quando Miguel entrou no
edifício como aluno externo, o seminário estava ainda em grande parte requisitado. Procurou
seus professores no sótão, onde moravam.
Durante o ano escolar de 1853-1854 teve como professores o padre Cipriano Mottura e o
padre José Farina, assistidos por um repetidor, o cônego Berta. Daquele ano, Rua nos deixou
dois cadernos intitulados Questões de lógica 1853-1854.1 Tratava-se de um curso ditado, escrito
com muito cuidado, sobre o processo do conhecimento e sobre a exposição de seus resultados.
Nosso seminarista aprendia a amar a clareza da frase, as relações bem construídas, criteriosamen-
te distribuídas e perfeitamente coerentes. No futuro, seus irmãos perceberão isso. No primeiro
ano de filosofia ele seguiu também cursos de física, dos quais nos restam os apontamentos.
1 Cf. esses cadernos em FdR 2720B5-2721C5.
32
Os estudos não constituíam, porém, senão uma pequena parte das ocupações de Miguel.
De resto, no seminário havia somente duas horas de aulas diárias. Rua devia garantir a assis-
tência geral da casa do Oratório de São Francisco de Sales. Esperava-o o cuidado do estudo, da
capela, do pátio e do refeitório. A isto se acrescentou, no último momento, uma aula semanal
de catecismo e o cuidado da biblioteca, em preparação. E quando, em 1854, Dom Bosco criou
para seus jovens uma miniconferência de São Vicente de Paulo, instituição que aparecera em
Turim somente quatro anos antes, assumiu seu secretariado e organizou o trabalho a serviço
dos pobres do bairro.2
Um acontecimento importante para ele marcou aqueles meses. No dia 26 de janeiro de
1854, ao se aproximar a festa solene de São Francisco de Sales, Dom Bosco, que insistira em
sua ideia de criar uma sociedade a serviço da sua obra, reuniu em seu quarto 4 jovens entre os
mais promissores: os clérigos Miguel Rua e Giuseppe Rocchietti, os jovens Tiago Artiglia e João
Cagliero, e lhes propôs, como lemos numa anotação de Rua, “fazer, com a ajuda do Senhor
e de São Francisco de Sales, uma prova de exercício prático da caridade para com o próximo,
para chegar, depois, a uma promessa, e, portanto, se for possível e conveniente, fazer um voto
ao Senhor”.3 Começava assim a se delinear a futura Sociedade Salesiana.
Três dias depois, na noite da festa de São Francisco de Sales, os quatro marcaram presença
numa premiação um tanto especial. Durante a semana, os alunos tinham sido convidados a
escrever, numa folha de papel, os nomes de quatro ou cinco companheiros que lhes parecessem
mais distintos pelo comportamento religioso e moral exemplar. As folhas eram assinadas. Um
registro manuscrito de Dom Bosco nos informa que “naquele ano, na premiação solene de São
Francisco de Sales, entre os clérigos, foram eleitos excepcionalmente Miguel Rua e Giuseppe
Rocchietti. Entre os estudantes, tiveram a honra de um prêmio: Bellisio, Artiglia, Cagliero.
Escrutinadores: irmãos maiores, como Turchi, Ângelo Sávio, Pepe L., Comollo”.4
Essa espécie de eleição, muito democrática, era para Dom Bosco um dos muitos modos
pensados para estimular seus jovens a se tornarem bons cristãos. Para obter seu objetivo – pen-
sava – nada valia mais que o exemplo vivo, mas também o exemplo contado ou escrito. Eis por
que, na série das Leituras Católicas, justamente naquele mesmo janeiro de 1854, em reedição
adaptada, publicava para eles a história de um jovem admirado e amado, que tinha conhecido
na escola e, depois, no seminário de Chieri. A vida de Luiz Comollo, “morto no seminário de
Chieri, admirado por todos pelas suas virtudes”, era continuamente proposta para a edificação
de seus jovens. Pode-se estar certo de que o clérigo Rua servia-se dela como de um tesouro,
pois encontramos, citada num dos seus cadernos de filosofia, uma longa nota de “exemplos”
de Luiz Comollo.
2 O conde Carlo Cays, presidente da única conferência de Turim, reconhecerá a Conferência do Oratório
de São Francisco de Sales no dia 11 de maio de 1856, como escreve Amadei I, p. 73.
3 Nota manuscrita de Rua em FdB 1989C10.
4 Como escreve Lemoyne em MB V, p.12. A propósito desta informação, supondo realmente de Dom
Bosco, observamos que o aceno, mais impróprio num registro, sobre a eleição “excepcional” dos dois
clérigos só podia vir de Lemoyne.
33

2.8 Page 18

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Enfermeiro dos doentes de cólera
As férias de verão foram um pouco movimentadas para ele, que precisou se tornar inespera-
damente enfermeiro dos doentes de cólera. Mas entremos no contexto.5
No dia 21 de julho de 1854, um manifesto do prefeito afixado nas esquinas das ruas
de Turim anunciava as normas higiênicas que deviam ser observadas nas casas, nas ofici-
nas, nos bares pela chegada iminente da cólera na cidade. Os “contagiosos” ditavam lei.
Deviam ser construídos hospitais especiais, chamados lazaretos, para isolar os doentes. Os
habitantes de Valdocco entenderam que a municipalidade destinaria para este objetivo
um grande galpão no Borgo Dora. Esse hospital teria capacidade para 150 leitos e seria
equipado com uma dependência que incluía farmácia, cozinha, serviços higiênicos, local
para desinfecções e salas para o pessoal de serviço. Os jornais informavam continuamente
sobre o avanço da epidemia. O vigário geral da diocese, padre Ravina, com uma circular
transmitiu aos párocos as instruções do governo, solicitando sua colaboração. Ao mesmo
tempo, os padres de Turim podiam ler um opúsculo com as disposições emanadas pelo
arcebispo de Gênova para seu clero: medidas profiláticas e higiênicas, facilitações para o
exercício do ministério e a proibição de fugir da cidade. De fato, a tentação era forte. No
dia 3 de agosto, segundo as estatísticas da Companhia Ferroviária, um quarto da popula-
ção de Turim devia ter abandonado a cidade.
No Oratório de São Francisco de Sales, o clérigo Rua se sentiu completamente envolvido.
Para fazer frente ao contágio, Dom Bosco, desde o primeiro alarme, havia organizado a casa.
Os locais onde eram amontoados quase 100 jovens foram adaptados e limpos. Para facilitar a
troca frequente de roupa de cama, duplicou o estoque do vestiário. No fim de julho, a epide-
mia começou a devastar a cidade e chegou à região próxima ao Oratório, Borgo Dora, onde
a população estava para ser literalmente dizimada pelo flagelo. O clero regular e diocesano se
dedicou sem reservas ao serviço dos doentes de cólera. O pároco de Borgo Dora se distinguiu
de modo especial. Na paróquia, eram muitos os doentes: havia 800, dos quais 500 morreram
na metade de outubro, segundo uma testemunha. Não satisfeitos em administrar os sacramen-
tos aos doentes, os padres ainda lhes prestavam os serviços de enfermaria com risco da pró-
pria vida. O padre Agostino Gattino pagou com muito sofrimento o preço de sua dedicação.
Dom Bosco estava convencido de que não devia se dedicar demais, limitando-se a defen-
der sua obra contra o perigoso flagelo. As autoridades municipais procuravam enfermeiros
voluntários: “Quem quer ir assistir os doentes de cólera no lazareto e nas casas particulares?”,
perguntou um dia a seus jovens. Assim pôde apresentar catorze nomes às autoridades. Falta-
-nos a lista completa, mas sabemos que entre eles estavam certamente o jovem Rua, de 17 anos,
Cagliero, de 16 anos, e Anfossi, de 14 anos. Dom Bosco deu instruções práticas a seus jovens
enfermeiros. A doença tem dois estágios, explicou com toda probabilidade. No começo, há um
ataque repentino que, salvo um socorro imediato, frequentemente é fatal. Depois vem a reação,
no decorrer da qual a circulação sanguínea tenta se restabelecer. O enfermeiro do doente de
5 Para este parágrafo sobre a cólera em Turim em 1854, retomo as notas do meu livro Don Bosco en son
temps, p. 399-408.
34
cólera deve combater o ataque procurando o mais depressa possível uma reação, depois manter
essa reação de maneira adequada. Na época, essas reações eram provocadas com aplicações de
medicamentos quentes e com fricções enérgicas, envolvendo em lã quente mãos e pés do doen-
te, mais sujeitos a câimbras e resfriados.
Estabeleceu-se um horário e os jovens se dispersaram, alguns para o lazareto do Borgo São
Donato, outros para as casas do bairro. De dia e de noite havia, no Oratório, um vaivém inin-
terrupto. Os jovens de Dom Bosco exerciam corajosamente sua nova tarefa, certos de que não
seriam atingidos pela doença, seguindo escrupulosamente as recomendações de seu diretor:
estar atento à limpeza, mas, sobretudo, fugir do pecado e confiar em Maria.
Começou assim uma experiência totalmente nova para o clérigo Rua. Devia, porém, superar
o horror despertado pelo doente de cólera. “Que morte pavorosa, a dos doentes de cólera”,
escreverá Dom Bosco no fim do ano, descrevendo aquilo que tinha visto e ouvido. “Vômito,
disenteria, câimbras nos braços e nas pernas, dor de cabeça, ansiedade, sufocação... Tinham os
olhos encovados, as faces pálidas, gemiam e se agitavam. Em suma, nesses desventurados, vi
todo o mal que um homem pode suportar sem morrer”. L’Armonia do dia 16 de setembro de-
dicou aos jovens do Oratório um parágrafo da Crônica da caridade do clero em tempo de cólera:
Animados pelo espírito de seu pai, mais que superior, Dom Bosco, se aproximam corajosamente
dos doentes de cólera, inspirando-lhes coragem e confiança, não somente com as palavras, mas
com os fatos, tomando-os pelas mãos, fazendo fricções, sem se preocupar minimamente com o
horror e o medo. Ao contrário, entrando em casa de um doente de cólera se dirigem logo às pessoas
aterrorizadas, confortando-as e convidando-as a se retirar se têm medo, enquanto eles providen-
ciam todo o necessário, excetuado quando se trata de pessoas do sexo feminino. Nesse caso, pedem
que alguém da casa fique, se não perto do leito, pelo menos em lugar conveniente. Quando o
doente de cólera morre, se não é mulher, prestam ao cadáver os últimos cuidados.6
Nenhum dos enfermeiros voluntários do Oratório foi atingido pela doença. Sua dedicação
causou grande impressão na cidade.
O segundo ano de filosofia
Quando estava se preparando para o segundo ano de filosofia, único seminarista de seu
curso, nosso clérigo, ao que parece, num primeiro momento não prestou muita atenção à
chegada de um novo aluno em Valdocco, Domingos Sávio. Mas precisou logo mudar de ideia.
Tinha sido recomendado a Dom Bosco por seu professor, padre Cugliero. Um jovem que se
distinguia pela inteligência e pela piedade. “Aqui em sua casa pode haver jovens iguais, mas
dificilmente haverá quem o supere em talento e virtude. Faça a prova e encontrará um outro
São Luís”.7 Domingos tinha a intenção de seguir o mesmo curso de estudos feito por Miguel
6 “Cronaca della carità del clero in tempo di colera”. L’Armonia, ano VII, n. 112, sábado, 16 de setembro
de 1854, p. 521. Esse artigo foi parcialmente reproduzido em MB V, p. 114-116.
7 G. Bosco, Vita del giovanetto Savio Domenico, allievo dell’Oratorio di San Francesco di Sales. Torino, Tip.
G. B. Paravia e comp., 1859, p. 34.
35

2.9 Page 19

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quatro anos antes. Este último testemunhará, um dia, que, “desde as primeiras semanas de sua
presença no Oratório”, tinha sentido por ele “grande estima, que aumentou regularmente”
dia após dia. Um “afeto fraterno” os ligou um ao outro.8 Entre 1854 e 1857, Domingos será
sucessivamente aluno do professor Bonzanino e do padre Picco, com um ano de intervalo em
que frequentou a escola no mesmo Oratório.
A partir do outono de 1854, Rua precisou se ocupar, todo domingo, com o Oratório de
São Luís, perto da estação de Porta Nuova. Isto significava para ele percorrer a pé duas vezes ao
dia um trajeto muito longo. Enquanto isso, seu papel no Oratório de São Francisco de Sales
assumia sempre maior importância. Um aluno da época testemunhará:
O que me admirou muito quando entrei no Oratório, em 1854, junto com Domingos Sávio, foi
ver que Dom Bosco tinha suas preferências de trabalho e de ocupações com o clérigo Rua, enquan-
to havia um outro, por exemplo o clérigo Rocchietti, pouco mais adulto que ele e de aspecto mais
próprio para o comando. Realmente me causava admiração ver essas preferências pelo clérigo Rua,
mas depois percebi como ele era, por todos os jovens, realmente temido e amado, como superior
e como representante de Dom Bosco, que, evidentemente, tinha por ele uma estima e um afeto
especiais.9
Os votos temporários de Miguel Rua
Dom Bosco, aos poucos, junto com outros, ia plasmando o jovem Rua, o qual, sem apare-
cer, se preparava para entrar na sociedade religiosa projetada por Dom Bosco. No outono, com
a permissão de seu diretor espiritual e confessor, começou a comungar todos os dias.10 Aqueles
meses foram o período de seu aprendizado espiritual, de seu noviciado, como se queira, e isto
incluía conferências doutrinais específicas e exercícios apropriados. As “conferências” eram fei-
tas por Dom Bosco em sua salinha, no domingo à noite, segundo costumava, depois das ora-
ções. Todo o futuro de sua obra estava concentrado naquele grupinho de discípulos que queria
formar lentamente, com base no próprio ideal educativo. Os exercícios aos quais os submetia
eram aqueles que ele mesmo fazia: dias cansativos de trabalho no meio dos oratorianos, orações
em comum, celebrações litúrgicas, catequese, aulas noturnas, assistência, jogos movimenta-
dos... Não pedia nada mais que uma vida de dedicação total a serviço da juventude abandona-
da, além da frequência regular dos sacramentos e de um sóbrio programa de práticas devotas,
como a visita ao Santíssimo Sacramento. As mesmas práticas sugeridas aos jovens do Oratório.
A isto se limitava seu ensino. Não pretendia nada mais. O resto confiava-o às mãos de Deus.
E a graça agia neles através de seu exemplo. Dom Bosco ia e vinha, rezando, divertindo-se, tra-
balhando à vista de todos. Devia-se somente colher o ensino que jorrava da sua vida. Rua nu-
tria o olhar e o coração fazendo tesouro de suas lições silenciosas de virtude. No genuflexório e
8 Depoimento do padre Rua no Processo informativo de canonização de Domingos Sávio, Summarium,
p. 152.
9 Giovanni Battista Piano, citado por Amadei, v. I, p. 57.
10 Este parágrafo sobre a preparação espiritual do jovem Rua para os primeiros votos respeita muito o texto,
um pouco carregado e fantasioso, é verdade, mas feliz nas imagens, de Auffray, p. 41-43.
36
no altar, admirava-o frequentemente, profundamente recolhido, imerso numa oração humilde
e confiante. No pátio e no refeitório, encontrava-o sempre cheio de bom humor e de vitalidade,
preocupado unicamente em manter entre os jovens alegria de boa qualidade. Se o percebia na
rua, descobria um homem desejoso de não perder nunca a ocasião de entrar em contato com
os jovens. Na vida de todos os dias, ficava tocado por sua naturalidade e por sua bondade, por
seu humor perenemente igual, por sua cortesia sempre sorridente. Se lhe falava na intimidade
de seu quarto, saía dele contente pelo encontro paterno e autenticamente amigável. Fazia bem
viver à sombra de Dom Bosco.
O proveito espiritual foi rápido e sério, tanto que o mestre bem depressa considerou o
discípulo pronto a enfrentar o grande passo. Na noite da Anunciação, no dia 25 de março de
1855, no humilde quarto de Dom Bosco, Miguel Rua, seminarista do segundo ano de filosofia,
pronunciou os votos temporários de pobreza, castidade e obediência, nas mãos daquele que era
seu pai na fé. Nenhuma solenidade na cerimônia. De um lado, um sacerdote em pé e, do outro,
diante de um crucifixo, um clérigo ajoelhado que murmurava uma fórmula, cujo teor não nos
é dado a conhecer. Não havia testemunhas. “No entanto – escreve prudentemente Auffray –
entre essas quatro paredes nascia alguma coisa grande... Origem, sempre obscura, das obras em
que Deus mostra todo seu agrado!”.11
11 A. Auffray, Le premier successeur de Don Bosco, Don Rua (1837-1910). Lyon-Paris, Vitte, p. 43.
37

2.10 Page 20

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Capítulo 4
O nascimento da Sociedade Salesiana
O estudo da teologia
No início do ano escolar de 1855-1856, o clérigo Rua começou os estudos de teologia
frequentando as aulas do seminário. Seus professores eram o teólogo Francesco Marengo, au-
tor de De institutionibus theologicis (Teologia fundamental), e o teólogo Giuseppe Molinari,
autor de De sacramentis in genere (Teologia dos sacramentos). Havia duas horas de aulas de
manhã e uma hora e meia de tarde. Rua acrescentava a elas duas ou três vezes por semana
uma aula particular de grego ou de hebraico com o orientalista professor universitário abade
Amedeo Peyron. De fato, precisava muito deles para ler e para compreender a Bíblia. Ao
mesmo tempo, preparava o exame de professor, como observamos pela presença, nos cader-
nos daquele período, de exercícios de francês, de aritmética e de ciências naturais.1 Miguel
era realmente dedicado ao trabalho intelectual.
Cuidava, sobretudo, da teologia. Foram conservados seus quatro cadernos com o título De
Religione. Começam distinguindo a religião na sua prática (o culto) e a religião como fenôme-
no social (as religiões), depois mostram a necessidade da Revelação, a integridade e a verdade
do Antigo e do Novo Testamento que a transmitem. O curso, a julgar pela caligrafia capricha-
da, parece que foi ditado. Procura-se provar que existe uma só religião revelada autêntica, que é
a religião cristã da Igreja Católica. No fim, todo o tratado é sintetizado, pelo nosso seminarista,
em 31 páginas de tabelas sinóticas que revelam um homem enamorado pela clareza e pela
coerência.
O tratado De Deo uno et trino, que vinha depois do de teologia fundamental, De religione,
certamente foi deixado para os anos posteriores. Parece que o teólogo Giuseppe Molinari mi-
nistrava os cursos ciclicamente e iniciava logo seu aluno em lições de sacramentária, começan-
do pelo tratado De gratia. Encontra-se, com efeito, nos mesmos arquivos salesianos, um estudo
escrito por Rua, de 206 páginas, sobre a graça, problema crucial na Igreja daquele período.
É seguido de uma longa série de notas, mais ou menos ordenadas, sobre a Eucaristia (96 pági-
nas). Os outros sacramentos são tratados, mas apressadamente, nesses manuscritos: temos um
esquema sinótico de duas páginas sobre o Batismo, 34 páginas de notas sobre a Confissão e 17
sobre a Extrema-Unção.2 Tudo escrito num latim escolástico, como se usava naqueles tempos.
1 Todos os cadernos escolares de Miguel Rua (que frequentemente são datados) podem ser encontrados
em FdR 2665B9-2750B9. Não faremos aqui referências precisas.
2 Extrema-unção, hoje sacramento da Unção dos enfermos (N.T.).
38
A análise dessas teses permitirá um conhecimento melhor do pensamento do padre Rua no
decorrer de sua vida sacerdotal.
O nascimento de uma sociedade religiosa num contexto turbulento
Enquanto isso, Dom Bosco refletia. Sua obra havia se consolidado com a chegada a Val-
docco, em outubro de 1854, de um padre de idade madura, padre Vitório Alasonatti. Fez dele
seu vice e lhe conferiu o título de prefeito. No entanto, começava a estruturar de modo mais
preciso os ritmos e as atividades da casa e de toda a instituição. Mas conseguiria criar aquela
sociedade religiosa que parecia necessária para reger a obra dos Oratórios?
Do ponto de vista político, o momento parecia contrário a tal iniciativa.3 Entre novembro
de 1854 e maio de 1855, o governo do Piemonte, animado, sobretudo, pelo ministro da jus-
tiça e do interior Urbano Rattazzi, organizou e fez discutir no Parlamento uma lei sobre os
conventos, que visava interditar no território, com toda medida possível, as ordens e as con-
gregações dos religiosos e das religiosas, em especial as “ordens mendicantes”, nocivas, segundo
os liberais, à moralidade do país e “contrárias à ética moderna do trabalho”. A nova lei tirava
os monges de suas propriedades. A direita clerical reagiu denunciando a violação do Estatuto e
das concordatas com a Santa Sé, e apresentou a lei como um atentado deliberado ao direito de
associação e de propriedade, precursor da explosão do socialismo e do comunismo no país. Ao
mesmo tempo, a extrema esquerda gritava contra o obscurantismo eclesiástico, lembrava o fim
de Giordano Bruno, o filósofo que no século XVI tinha sido acusado de heresia e fora quei-
mado vivo. Polemizava contra o processo de Galileu, outra mente muito moderna, e contra o
Índice dos livros proibidos. Aproveitando, então, o debate acalorado em torno da proposta de
lei, acusava os papas, entre os quais Pio IX, então protegido pelos franceses, de terem sempre
tomado a defesa do estrangeiro em desvantagem da Itália. Visando a ampliar o projeto de lei
que considerava muito fraco, pedia a supressão de todas as ordens religiosas existentes: ao lado
dos contemplativos e dos mendicantes, era preciso eliminar também as corporações dedicadas
à pregação e ao ensino. Insistia para que todos os bens eclesiásticos fossem municipalizados ou
provincializados... em suma, a atmosfera era elétrica.
Depois de uma série de vicissitudes, a lei Rattazzi foi aprovada pelas duas câmaras e assinada
pelo rei no dia 29 de maio de 1855. As obras situadas no Reino da Sardenha e dependentes
de religiosos não dedicados à pregação, à educação ou à assistência dos doentes não eram mais
reconhecidas como entes morais. De fato, não existiam mais. Era preciso percorrer o elenco
anexo ao decreto de aplicação da lei para compreender a desorientação psicológica causada
por tudo isto no Piemonte: 21 congregações masculinas e 14 congregações femininas foram
atingidas pela lei. “Que desconcerto! Que desgosto terrível! Quantos infelizes atingidos pela
excomunhão!”, exclamava Dom Bosco numa carta a um amigo.4
3 Sobre Rattazzi e a lei de supressão, remeto às notas do meu livro Don Bosco en son temps, p. 420-430.
4 Carta de João Bosco a D. Rademacher. Turim, 7 de junho de 1855. In: Epistolario I, p. 257.
39

3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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Essa lei constituiria um ponto de referência constante para Dom Bosco. Temia que seus cola-
boradores recebessem o epíteto inconveniente de frades; isso o induzia a evitar toda aparência de
ente moral para sua sociedade religiosa e lhe sugeria a conservar a todo custo os direitos civis de
seus membros. Esses direitos distinguiriam sua sociedade de qualquer outra corporação religiosa.
A morte de Margarida Bosco e de Domingos Sávio
O seminarista Rua, durante o primeiro ano de teologia, ficou chocado com a morte de três
pessoas queridas.
No dia 5 de novembro de 1856, com a idade de somente 28 anos, morreu, atingido por
uma infecção pulmonar, o teólogo Paolo Rossi, diretor do Oratório São Luís em Porta Nuova,
aonde Miguel ia aos domingos pela manhã. O peso de seu cargo recaiu sobre ele e o exerceu da
melhor forma que pôde.5
Na casa do Oratório de São Francisco de Sales, a chegada do padre Alasonatti tinha defini-
tivamente relegado ao próprio quarto de trabalho a mãe de Dom Bosco, Margarida, que por
muito tempo tinha cuidado dos afazeres da casa. Os rapazes e os visitantes não a esqueciam,
mas ela se retirara. Em novembro de 1856 foi atingida por uma violenta pulmonite. Desde
aquele momento, Giovanna Maria Rua permaneceu sem cessar à sua cabeceira, junto com a
irmã de Margarida, Marianna Occhiena. Toda a casa rezou pela sua cura. Por vários dias, todos
estiveram entre o temor e a esperança. Quase a cada hora os jovens se dirigiam, um após outro,
a seu quarto para ter notícias. A comunidade esperava, toda noite, saber qual a novidade de
Dom Bosco e do padre Alasonatti. O filho José chegou de Castelnuovo. A angústia aumen-
tou quando lhe foi administrada a unção dos enfermos. Finalmente, no dia 25 de novembro,
Margarida faleceu. Os funerais foram modestos, mas muito comoventes. Foi celebrada uma
missa solene na igreja do Oratório. Depois, os meninos em pranto acompanharam o féretro
até à paróquia. Os versículos do Miserere se alternavam com alguma nota da banda musical
do Oratório. O cortejo avançava muito composto, causando grande impressão nos presentes.
A senhora Gastaldi afirmou que nunca assistira a um funeral tão comovente.6 Consequência
importante para os Rua: no fim da década de 1850, Giovanna Maria será uma segunda Mamãe
Margarida para os jovens de Dom Bosco.
O terceiro luto que feriu o Oratório foi a morte de Domingos Sávio. No dia 8 de junho
anterior, Domingos havia fundado, com os clérigos Miguel Rua e Giuseppe Bongiovanni, a
Companhia da Imaculada. Foram escritas poucas regras, tecidas de resoluções práticas, que
melhorariam o clima espiritual de toda a obra. A “grande estima” que Miguel nutria por Do-
mingos cresceu “por ocasião da constituição dessa associação”, declarará o padre Rua no pro-
5 No dia 26 de julho de 1857, o teólogo Leonardo Murialdo assumirá a direção do Oratório de São Luís,
como deduzimos de uma carta de Miguel Rua a Dom Bosco, datada de 27 de julho de 1857 (citada por
Amadei, I, p. 90-91).
6 Essa nota sobre a morte de Margarida é tirada da narração de João Bonetti, Storia dell’Oratorio, publicada
quase como um romance em série no Bollettino Salesiano, a partir de maio de 1883.
40
cesso de canonização do jovem.7 Domingos sempre teve saúde franzina. No dia 1º de março
de 1857, uma infecção pulmonar o obrigou a deixar a comunidade e a voltar para a família.
Naquela manhã, participara do exercício da boa morte e se despedira serenamente de Dom
Bosco e dos companheiros. Oito dias mais tarde expirava. Era um santo, proclamaram logo os
companheiros, que começaram a invocá-lo. Este tipo de oração se demonstrava eficaz, declarará
ainda padre Rua no mesmo processo.8 De sua parte, Dom Bosco, que tinha a mesma opinião,
começou a colher, sobretudo com a colaboração de Miguel, os testemunhos de suas notáveis
virtudes para escrever a Vida do jovenzinho Domingos Sávio, que publicaria no ano de 1859.9
O primeiro projeto constitucional de Dom Bosco
Voltemos a 1857. As boas relações que mantinha com o ministro Rattazzi tranquilizaram
Dom Bosco, ansioso por passar à realização seu projeto de fundação religiosa. Esse temido
anticlerical admirava muito sua “caridade filantrópica”, recomendava-lhe jovenzinhos carentes
e lhe fazia chegar às mãos, quando Dom Bosco os solicitava, copiosos subsídios. Deve-se re-
montar provavelmente a maio de 1857 uma conversa decisiva que Dom Bosco teve com ele no
ministério, durante uma visita de agradecimento. Rattazzi lhe perguntou se tinha pensado no
futuro de sua obra: por que não fundava uma sociedade de leigos e de eclesiásticos? Dom Bosco
observou que o governo Piemontês era hostil a este tipo de associações. Rattazzi lhe replicou
que não devia fundar uma corporação religiosa tradicional, isto é, uma sociedade de privilegia-
dos, mas uma sociedade na qual cada um dos membros conservasse seus direitos civis, se sub-
metesse às leis do Estado, pagasse os impostos etc., em suma, uma sociedade de cidadãos livres.
Para Dom Bosco, foi uma iluminação. Mesmo se diante da Igreja a sua fosse uma Congre-
gação, diante do Estado teria a forma de uma sociedade de beneficência que responderia a estes
critérios. No fim de 1857, ou quando muito no início de 1858, ele entregou para Rua copiar,
com o título “Congregação de São Francisco de Sales”, um caderno de umas quinze páginas
que explicava a origem, o objetivo, a forma, os votos, o governo e como ser aceito nessa socie-
dade.10 “O objetivo dessa Congregação – escrevia então Rua, copiando Dom Bosco – é reunir
seus membros eclesiásticos, clérigos e também leigos, com o fim de aperfeiçoar-se a si mesmos
imitando, o quanto possível, as virtudes do nosso divino Salvador”.11 Nada de complicado,
sobretudo nada de votos solenes, vinculantes do ponto de vista jurídico. “Todos os congregados
têm vida comum, unidos somente pela caridade fraterna e pelos votos simples que os unem
com o objetivo de formar um só coração e uma só alma para amar e servir a Deus”. Dom Bosco
tinha levado em conta as observações de Rattazzi: “Cada um, ao entrar na Congregação, não
7 Positio super Introductione causae (Roma, 1913), Summarium, p. 152.
8 Summarium, p. 153.
9 Cf. os dois textos de Miguel Rua, Memórias sobre o jovem Domingos Sávio, relatados no mesmo Summa-
rium, p. 222-227.
10 Esse caderno se encontra em FdB 1893E5-1894A10.
11 G. Bosco, Costituzioni della Società di S. Francesco di Sales [1858]-1875. Textos críticos organizados por
F. Motto, Roma, LAS, 1982, p. 72.
41

3.2 Page 22

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perderá o direito civil, mesmo depois de feitos os votos, por isso conserva a propriedade de suas
coisas, a faculdade de suceder e de receber herança, legados e doações”.12 Seria uma sociedade
de cidadãos livres.
Dom Bosco decidiu submeter esse projeto ao papa. Ele era conhecido no Vaticano desde
1849, quando seus jovens participaram de uma coleta em favor de Pio IX, que lhes enviou
agradecimentos. Iria a Roma em companhia de Miguel, que seria seu secretário.
Em Roma com Dom Bosco, em 1858
A viagem Turim-Roma, por trem, depois por navio e, finalmente, num carro do correio,
durou quatro dias, da aurora do dia 18 de fevereiro de 1858 até tarde da noite do dia 21 de
fevereiro. Em Roma, Dom Bosco foi hóspede da família de Maistre, na rua do Quirinale, 49.
Também Rua num primeiro tempo se alojou lá, mas foi bem depressa procurar um lugar com
os rosminianos, com o risco de se levantar muito cedo toda manhã para procurar Dom Bosco.13
Nossos dois peregrinos, que previam uma estadia de um ou dois meses na cidade, organizaram
o próprio tempo. Dom Bosco se ocupava em aprimorar o estatuto da sua sociedade em gesta-
ção. Rua entregaria cartas em domicílio, transcreveria vários textos com sua bela grafia, espe-
cialmente o livro de Dom Bosco Il mese di maggio, e acompanharia Dom Bosco pela cidade.
Com o passar das semanas, ambos visitaram Roma cuidadosamente, como verdadeiros pe-
regrinos apaixonados por arquitetura e por história, e como apóstolos curiosos das experiências
pastorais da cidade dos papas. Iam a pé, às vezes debaixo de chuva e protegidos por um único
guarda-chuva, a menos que algum nobre senhor se oferecesse para acompanhá-los com sua
carruagem. Colhiam o maior número de notícias do dia, pitorescas e edificantes, lidas ou
ouvidas por acaso, para registrá-las depois em seu diário, que queriam muito detalhado. Visi-
taram a Igreja de Jesus, o Panteão, San Pietro in Vincoli, San Luigi dei Francesi, Santa Maria
Maior, São João de Latrão, e, obviamente, São Pedro no Vaticano, Castelo Santo Ângelo e os
arredores. Para Dom Bosco, que havia pouco publicara uma vida de São Pedro, a visita mais
comovente foi certamente a de 2 de março, em companhia de Miguel e da família de Maistre,
ao cárcere Mamertino. “Só ao vê-lo, dá medo”, escreverá Dom Bosco ao padre Alasonatti.14 Na
presença da família de Maistre, Dom Bosco celebrou a missa num pequeno altar ao lado da
“coluna de São Pedro”.
Dom Bosco e Rua se adaptavam às práticas devocionais dos lugares. No dia 23 de fevereiro,
em San Pietro in Vincoli, eram veneradas excepcionalmente as cadeias do apóstolo. “Nós tive-
mos a felicidade de tocar essas cadeias com nossas mãos, de beijá-las, de colocá-las no pescoço e
na cabeça”, diz o diário de viagem. No dia 25, subiram de joelhos os 25 degraus da Escada San-
ta. No dia 13 de março, fizeram uma parada em Santa Maria dos Anjos, onde quiseram ganhar
12 G. Bosco. Costituzioni..., p. 82.
13 Informamo-nos detalhadamente sobre a viagem por um caderno manuscrito de 75 páginas: Viaggio a
Roma, 1858, em FdB 1352E3-1354A5; foi escrito por Rua, mas é considerado o diário de Dom Bosco.
14 Carta de João Bosco a V. Alasonatti. Roma, 7 de março de 1858. In: Epistolario I, p. 340.
42
a indulgência plenária. Junto do altar-mor, veneraram um número impressionante de relíquias.
“Tendo assim satisfeito nossa devoção – conta o diário – voltamos para casa pelas 6 da tarde,
muito cansados e com bom apetite”. Nossos dois turinenses se interessaram muito pelas obras
de beneficência para compará-las com as suas. Visitaram assim a casa Tata Giovanni, cujo estilo
de vida parecia muito semelhante ao de Valdocco. Viram uma escola de caridade mantida pela
conferência romana de São Vicente de Paulo em Santa Maria dei Monti. Foram a São Miguel,
grande instituto que acolhia “mais de 800 pessoas, das quais 300 são jovenzinhos”. Entraram
em contato também com diversos Oratórios ligados à tradição de São Felipe Neri.
O momento mais importante para ambos foi, obviamente, o encontro com o papa, que
Dom Bosco solicitara já desde sua chegada a Roma. No dia 8 de março, voltando de um dia
cansativo, Dom Bosco abriu uma carta que o entusiasmou: “Abro-a, leio-a e era do seguin-
te teor: Avisa-se o senhor abade Bosco que S. Santidade se dignou recebê-lo em audiência
amanhã, 9 de março, das 11h45 às 13h”. No dia seguinte, acompanhado do clérigo Rua,
apresentou-se no Vaticano, muito emocionado, com um mantozinho cerimonial sobre os om-
bros. “Ocupados por mil pensamentos”, puseram-se a subir as escadas, “mais maquinalmente
que razoavelmente”, diz o diário. Os guardas nobres, “tão bem vestidos que pareciam muitos
príncipes”, os impressionavam. No andar dos salões pontifícios, guardas e camareiros “vestidos
luxuosamente” os saudaram e se inclinaram profundamente para tomar a carta da audiência
que Dom Bosco trazia entre os dedos. O espetáculo do vaivém na antecâmara ocupou o seu
espírito por uma hora e meia de espera.
Quando um prelado lhes fez sinal para entrar, Dom Bosco, afirma a crônica, precisou “fazer
força e violência para não perder o equilíbrio da razão”. Rua o seguia com as cópias encaderna-
das das Leituras Católicas, o seu presente para o Santo Padre. Fizeram as três genuflexões proto-
colares: uma na entrada do salão, uma segunda na metade e uma terceira aos pés do pontífice.
E toda a sua apreensão desapareceu, quando descobriram “um homem mais afável, mais vene-
rando, e ao mesmo tempo mais belo que um pintor possa pintar”. O papa estava sentado na
escrivaninha. Nossos visitadores não puderam, então, beijar-lhe os pés como haviam previsto:
beijaram-lhe somente as mãos. Mas Rua, recordando a promessa feita aos clérigos de Valdocco,
beijou-as duas vezes, uma vez por ele e outra vez por seus companheiros. Ficaram ajoelhados,
e Dom Bosco, respeitando a etiqueta, teria continuado a conversar ajoelhado. “Não – lhe disse
Pio IX –, levante-se!”. Quando o papa compreendeu bem o que tinha que fazer com o apóstolo
dos rapazes de Turim, multiplicou as perguntas sobre os Oratórios, sobre os jovens, os clérigos,
e recordou a oferta recebida em Gaeta. Dom Bosco lhe entregou os volumes das Leituras Cató-
licas. “Há quinze encadernadores em nossa casa”, explicou. O papa se ausentou um instante e
voltou com quinze medalhinhas da Imaculada para os encadernadores, uma um pouco maior
para Rua e um estojo que continha uma bela medalha para Dom Bosco. Estava para despedir
ambos, quando Dom Bosco pediu para lhe falar a sós. Rua fez uma genuflexão no meio da sala
e se retirou. Dom Bosco, ficando só com Pio IX, falou de seu projeto de sociedade religiosa e o
papa o exortou a pedir as opiniões de seus colaboradores. Rua foi chamado novamente e a au-
diência se encerrou com uma solene bênção sobre Dom Bosco, sobre seu companheiro, sobre
aqueles que compartilhavam sua missão, sobre os colaboradores e benfeitores, e, finalmente,
sobre os jovens e sobre todas as suas obras. Dom Bosco e Rua voltaram pelas Quattro Fontane,
cheios de veneração e de gratidão pelo pontífice que os tratara tão paternalmente.
43

3.3 Page 23

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A audiência pontifícia posterior, de 6 de abril, que viu, junto com Dom Bosco e Miguel
Rua, também o teólogo Leonardo Murialdo, outro santo apóstolo dos jovens piemonteses, en-
tão diretor do Oratório São Luís, foi na realidade uma despedida. Dom Bosco entregou ao papa
uma carta de Gustavo Cavour, que propunha uma reconciliação em consideração à sorte de
dom Fransoni, o exilado de Lyon, e ao futuro da diocese de Turim, sem pastor havia nove anos.
O documento foi transmitido ao cardeal Antonelli. O papa mostrou para com Dom Bosco uma
“bondade admirável”. No tempo de uma conversa de 45 minutos, Pio IX lhe concedeu todos
os favores espirituais e todas as bênçãos que ele pedia. E ainda acrescentou quarenta escudos de
ouro para que providenciasse um lanche aos jovens oratorianos. Leonardo Murialdo e Miguel
Rua “regozijavam-se de alegria”, escreveu no dia seguinte ao padre Alasonatti15 e, no dia 14 de
abril, nossos dois peregrinos, carregados de informações e de emoções sobre Roma, sua história,
suas igrejas, suas obras de caridade e, sobretudo, seu venerando pontífice, retomaram, em sen-
tido inverso, o caminho de Turim, onde chegaram, com o trem de Gênova, no dia 16 de abril.
A aventura dessa viagem reforçou ainda mais os laços entre o mestre e o discípulo. Em julho,
Dom Bosco teve a ocasião de responder, com uma carta em latim, a Rua, que lhe havia pedido
um conselho. Essa carta revela não só o tipo de espiritualidade ativa ensinada por Dom Bosco,
mas também o estilo de suas relações, já totalmente fraternas. Ei-la aqui traduzida na íntegra:
Meu filho,
A alegria e a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo estejam sempre em nossos corações. Você me
pediu alguns conselhos salutares. Eu o farei de boa mente e em poucas palavras.
Saiba, portanto, e recorde-se de que não são comparáveis os sofrimentos do tempo presente à
glória futura que será revelada em nós. Portanto, procuremos essa glória com constância e com
coragem.
A vida do homem na terra é como fumaça de pouca duração, é para nós como um traço que se
esvai, uma sombra que aparece, uma onda que flui. Consequentemente, devemos avaliar como
pouca coisa os bens desta vida e procurar com ardor os do céu.
Alegre-se no Senhor. Quer você coma, quer você beba, qualquer coisa que esteja fazendo, faça tudo
para a maior glória de Deus.
Eu o saúdo, meu filho. Reze por mim ao Senhor nosso Deus.
Seu irmão,
padre Bosco.
Sant’Ignazio di Lanzo, 26 de julho de 1858.16
Para Dom Bosco, o clérigo Rua já era sócio privilegiado, um irmão.
O tratado De Deo uno et trino
A viagem de Roma havia se interposto à série de tratados de teologia que o clérigo Rua con-
tinuava a acompanhar no seminário de Turim. Em julho de 1859, para os exames do final do
ano, classificou-se como o primeiro entre sete candidatos com uma avaliação mais que ótima.
15 Carta de Dom Bosco a V. Alasonatti. Roma, 7 de abril de 1858. In: Epistolario, I, p. 346.
16 Giovanni Bosco, Epistolario, a cura di Francesco Motto, v. 1-4. Roma, LAS, 1991-2003. V. I, p. 355.
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Os arquivos salesianos conservam seus cinco cadernos de apontamentos do final da década de
1850, intitulados De Deo uno et trino (Sobre Deus uno e trino), dos quais o segundo é datado de
1859. São ao todo 132 páginas. O seu conteúdo é interessante. Tratam, em ordem de sucessão,
sobre a existência de Deus, sobre sua essência, sobre seus atributos, quer “negativos” – isto é, a
eternidade, a imensidão, a imutabilidade, a liberdade e a unidade; quer “positivos” – isto é, a san-
tidade, a veracidade, a ciência, a bondade, a justiça e a providência. O terceiro caderno trata mais
especificamente sobre a Trindade e inicia com a definição de “processão” e de “relação”, mostra
que em Deus há três pessoas realmente distintas, procura determinar a originalidade da posição
da segunda e da terceira pessoas, insiste sobre a consubstancialidade das três pessoas e, finalmente,
procura resolver as objeções contra a definição de Trindade. Tratava-se, portanto, de um estudo
absolutamente clássico, como podemos esperar dos teólogos escolásticos do século XIX. Falava à
inteligência, muito pouco ao coração.
Na mesma época, destacam-se alguns cadernos de Rua intitulados De iustitia et iure (Sobre
a justiça e o direito), de 1859-1860.
A teologia dogmática e a teologia moral não parecem ter apaixonado o seminarista Rua.
Ele acompanhava os cursos conscienciosamente e brilhava nos exames. Em fevereiro de 1860,
os examinadores se congratularam com ele, atribuindo-lhe um julgamento egrégio. Mas Rua
preferia a Bíblia ou ainda a História sagrada, sobre a qual tinha iniciado a compilar toda uma
série de cadernos (deles são conservados 18 no total), com o objetivo de publicar uma obra (o
que na realidade nunca fará), partindo dos 6 dias da criação, contados minuciosamente em 80
páginas, muito densas. Consegue-se compreendê-lo, sem compartilhar em tudo. A hermenêu-
tica bíblica, nos tempos do jovem Rua, apenas balbuciava.
Miguel trabalhava muito. Podemos imaginá-lo quando pensamos em seu horário. Durante
o dia, suas obrigações no Oratório de São Francisco de Sales ou no de São Luís ocupavam as
horas centrais. Devia se recuperar à tarde, não durante a noite, porque Dom Bosco não permi-
tia, ou de manhã muito cedo. Nos invernos mais rígidos, muito frequentes em Turim, estava
em pé desde as 2 horas ou 2h30, como testemunhará mais tarde o professor Alessandro Fabre,
que entrara no Oratório em outubro de 1858. Rezava sozinho, ajoelhado no chão, perto de
uma mesa de estudo. Quando soavam as 3 horas, passava nos dormitórios onde dormiam os 6,
7, 10 ou até 15 colaboradores para que acordassem naquela hora. No verão, isto podia, talvez,
ser gratificante, mas no inverno... era muito duro. “Quantas vezes aconteceu – escreverá mais
tarde um desses rapazes – encontrar aos pés da cama a água do cântaro gelada! Então, abríamos
a janela das águas-furtadas, nos inclinávamos para a calha e, com as mãos dentro da neve, nos
lavávamos o rosto”. No estudo trabalhavam com pouca luz: alguma lamparina a óleo, apelidada
de capuccino por causa do apagador característico em forma de capuz.17 Às 5h30 esses jovens
corajosos se reuniam aos outros alunos. Assim, toda manhã, Rua podia dedicar três horas ao
estudo da teologia, antes da missa.
17Alessandro Fabre, “Per La memoria di D. Rua”, Pinerolo, 18 de junho de 1910. In: FdR 2839B2-8 (texto
retomado por Amadei I, p. 124).
45

3.4 Page 24

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A organização da Sociedade de São Francisco de Sales
O ano de 1859 foi marcado, no plano político, pelo processo de unificação italiana sob a
tutela do Piemonte e, em Valdocco, pela fundação da Sociedade que Dom Bosco tinha sonha-
do criar.
A guerra vitoriosa contra a Áustria na Lombardia, terminada no dia 11 de julho com o
armistício de Villafranca, e alguns motins populares no território pontifício da Romagna, fo-
mentados pelos agentes piemonteses e ratificados, em agosto-setembro, pelos próprios repre-
sentantes em Turim, fizeram com que bruscamente todo o norte da península passasse para o
controle do Reino da Sardenha. Para o papa Pio IX, isso significou uma grave ofensa à autori-
dade pontifícia. Valdocco se alinhou de seu lado, sem qualquer hesitação. Dom Bosco, autor
de uma História da Itália considerada favorável à Áustria e pouco entusiasta sobre a questão
da unidade italiana, foi julgado um reacionário perigoso pela Gazzetta del popolo, que no dia
18 de outubro o ofendia violentamente. No dia 9 de novembro, Dom Bosco encaminhou ao
Pontífice uma longa carta na qual lhe assegurava a total desaprovação do clero e de todos os
bons católicos em relação aos comportamentos do governo piemontês. O papa lhe respondeu
com um breve de elogio que Dom Bosco fez logo publicar no jornal conservador L’Armonia,
despertando a raiva de seus adversários.
Nesse clima tenso, Rua concluiu velozmente algumas etapas que o separavam do sacerdó-
cio. No dia 11 de dezembro, dom Giovanni Antonio Balma lhe conferiu a tonsura e as quatro
ordens menores. No dia 17 de dezembro recebeu o subdiaconato, que o consagrava ao celiba-
to. Será, portanto na qualidade de subdiácono que, um dia depois, participará da reunião de
fundação da Sociedade Salesiana. No mês de dezembro, Dom Bosco dava à sua Sociedade uma
estrutura simples, mas suficiente. Na tarde da sexta-feira, 9, com um discurso aos colabora-
dores, tinha anunciado para o domingo, 18, uma assembleia reservada àqueles que quisessem
trabalhar com ele. Quem não quisesse era convidado a não se apresentar.
O regulamento passado a limpo por Rua tinha um capítulo intitulado “Governo da Con-
gregação”. O primeiro artigo especificava: “A Congregação será governada por um Capítulo
composto de 1 Reitor, prefeito, ecônomo, diretor espiritual ou catequista e 2 conselheiros (logo
passados para 3 em relação ao original)”. Para definir esse grupo de governo, Dom Bosco tinha
voluntariamente optado pelo termo “Capítulo”, isto é, “colégio”, mais que pelo termo “conse-
lho”, usado nos modelos de Constituições, nas quais se inspirava. As decisões deveriam ser to-
madas de comum acordo. A autoridade do Reitor não seria absoluta, o governo seria colegiado.
Os artigos seguintes explicavam as modalidades da eleição do Reitor e os deveres do prefeito
e do diretor espiritual. Neste ponto, os 3 artigos referentes ao diretor espiritual são de grande
importância. Leiamo-los:
Art. 2 – O Diretor espiritual cuidará especialmente dos noviços, e se empenhará com a maior so-
licitude em fazer com que aprendam e pratiquem o espírito de caridade e de zelo que deve animar
aquele que deseja dedicar inteiramente sua vida ao bem dos jovens abandonados.
Art. 3 – É também ofício especial do Diretor espiritual estar atento ao comportamento do Reitor,
com obrigação estrita de avisá-lo se perceber algum descuido no observar as Regras da Congregação.
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Art. 4 – Mas é também dever especial do Diretor estar atento ao comportamento moral de todos
os congregados.
A assembleia do dia 18 providenciou a eleição desse organismo. Naquela noite, às 21 horas,
foram 18 os que se reuniram no pequeno quarto de Dom Bosco. Dois padres: o mesmo Dom
Bosco e o padre Alasonatti, depois o diácono Ângelo Sávio, o subdiácono Rua, 13 clérigos e
finalmente 1 jovem leigo. A assembleia foi registrada em ata pelo seu secretário, Alasonatti.
Segundo esse documento, os presentes afirmavam, unicamente com sua presença, a intenção
“de promover e conservar o espírito de verdadeira caridade que se exige na obra dos Oratórios
para a juventude abandonada e periclitante, que, nestes tempos calamitosos, é de mil maneiras
seduzida com prejuízo da sociedade e precipitada na impiedade e na irreligião”. Decidiam, de
comum acordo, “erigir-se em sociedade ou Congregação que tendo em mira a ajuda recíproca
para a santificação própria se propusessem promover a glória de Deus e a salvação das almas,
especialmente das mais necessitadas de instrução e de educação”.
Depois disso, procedeu-se à eleição dos membros da direção da nova Sociedade. Recita-
ram uma breve oração invocando o Espírito Santo e unanimemente pediram a Dom Bosco,
“iniciador e promotor” da Sociedade, que aceitasse o cargo de Reitor. Dado que temia talvez
os caprichos de seus jovens, nem sempre ternos com o austero padre Alasonatti, Dom Bosco
consentiu, com a condição de poder escolher ele mesmo o prefeito do Capítulo, que seria
justamente o mesmo Alasonatti, prefeito do Oratório. A assembleia não pôde senão dar sua
aprovação. O grupo, depois, certamente com a iniciativa de Dom Boco, decidiu que, para
os outros cargos, isto é, o de diretor espiritual, de ecônomo e dos 3 conselheiros, a eleição
aconteceria com votação secreta. E foi assim que, naquela noite, a assembleia deu o próprio
voto “unanimemente”, segundo a ata, ao subdiácono Miguel Rua para o cargo de “diretor
espiritual” da nova Sociedade. Seria, ao lado de Dom Bosco, o guarda das almas, aquele que
com a confiança de todos se ocuparia da formação dos novos que aderissem e zelaria para que
seu espírito fosse autenticamente religioso e cristão. Dom Bosco sabia que podia contar com
esse jovem que não tinha ainda 22 anos. Ângelo Sávio foi eleito ecônomo. João Cagliero,
João Bonetti e Carlos Ghivarello foram designados como conselheiros.18 A estrutura estava
completa.
18 Ata do padre Alasonatti em 1873D9-11.
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3.5 Page 25

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Capítulo 5
Miguel Rua jovem padre
A preparação
Quando foi nomeado diretor espiritual da nascente Sociedade Salesiana, Miguel Rua estava
concluindo seus estudos de teologia no seminário de Turim e se preparava para a ordenação
sacerdotal. Em alguns de seus cadernos, por exemplo, naqueles que continham o tratado De
legibus (sobre as leis), encontramos as datas daquele ano 1859-1860. Era sempre muito ativo.
A partir de 1855, no Oratório de São Francisco de Sales, tinham sido progressivamente insta-
ladas as 5 classes ginasiais. Era o seu dever supervisioná-las.
Sempre discreto em mostrar seus sentimentos, não se viam nele expressões de piedade exage-
radas. Seu temperamento reflexivo o induzia a moderar as palavras e os gestos. Era a razão que
o governava. Mantinha sempre a calma. Quando era o momento da oração, nela mergulhava
com simplicidade. No resto do tempo, como Dom Bosco, fazia de seu trabalho uma oração.
Afirmam-no algumas testemunhas. Jacinto Ballesio, que entrou no Oratório em 1858, teste-
munhará que “o clérigo Rua era o primeiro por sua piedade simples, firme e digna. Quando era
visto rezar, quer no estudo, quer nos pórticos durante as orações da noite, ou ainda na igreja,
seu semblante luminoso, sua postura faziam-nos compreender que seu espírito e seu coração
estavam em Deus. Via o Senhor, via Jesus, sentia-o, deliciava-se com ele, e fazia com que tam-
bém nós rezássemos.1
Inútil, porém, procurar efusões místicas em seus apontamentos pessoais. Não era seu tipo.
Tudo acontecia no segredo de sua alma, em sua relação constante com Deus.
No entanto, não o imaginamos somente reservado e silencioso. “O clérigo Rua, segundo a
mesma testemunha, embora digno e composto, era o rei do recreio, dos cantos, dos jogos que
sabia conduzir com um bom conselho, e boas repreensões ou exemplo.”2
No dia 17 de março de 1860, Rua iniciou, na casa dos Padres da Missão (lazaristas), um
retiro preparatório para o diaconato, ordem que lhe será conferida no dia 24 do mesmo mês.
A ordenação sacerdotal se aproximava.
1 Testemunho citado por Amadei I, p. 121.
2 A. Amadei, Il Servo di Dio Michele Rua, 3 v. Torino, SEI, 1931-1934, v. I, p. 121-122.
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Entretanto, Pio IX continuava a sofrer e Dom Bosco procurava apoiá-lo. Foram organizados
plebiscitos nos territórios no norte de Roma, em vista de sua anexação ao Piemonte. Indigna-
do, o papa excomungou os “invasores e os usurpadores”. E Dom Bosco escrevia a ele, último
sucessor de São Pedro, mandando uma oferta de seus jovens, expressando sua total adesão à
política papal e transmitindo informações sobre projetos de conquista dos territórios dos Esta-
dos Pontifícios.3 Em Turim, apoiar Pio IX causava não poucos problemas. Foram investigados
a casa do conde Cays, o quarto do cônego Ortalda, do padre Cafasso e também de Dom Bosco.
No dia 26 de maio a direção do Oratório passou por uma investigação muito severa. E, alguns
dias depois, as escolas da casa foram inspecionadas de modo grosseiro.
A primeira frase de uma carta de Dom Bosco a nosso Rua, que estava para ser ordenado sa-
cerdote, é compreendida muito melhor nesse contexto. Em julho, junto aos Padres da Missão,
no curso do retiro que o preparava diretamente para o sacerdócio, Rua, escrevendo em francês,
pedira a Dom Bosco conselhos úteis e ele respondeu em latim o que aqui traduzimos:
Ao caríssimo filho Miguel Rua. Eu o saúdo no Senhor.
Você me mandou uma carta escrita em francês, e fez bem. Seja francês somente na língua e no
discurso, mas de alma, de coração e de obra seja intrépida e generosamente romano.
Ouça atentamente o que lhe digo. Muitas tribulações o esperam, mas com elas o Senhor nosso
Deus lhe concederá também muitas consolações.
Mostre-se exemplar nas boas obras; continue a se fazer aconselhar; faça com convicção aquilo que
é bom aos olhos de Deus.
Combata contra o diabo, espere em Deus, e, naquilo que puder, estarei sempre com você.
A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja sempre conosco. Eu o saúdo.
Padre João Bosco.4
Miguel Rua deveria se mostrar fiel a Roma, nas palavras e nos atos. Não precisava, certa-
mente, de nenhuma lição. Em todo caso não a esquecerá nunca. Quanto à advertência sobre as
tribulações que o esperavam, já a sentira dos lábios de Dom Bosco e se dispunha serenamente
a sofrer.
Miguel Rua é ordenado presbítero
Foi ordenado padre no dia 29 de julho de 1860 por dom Balma, auxiliar do arcebispo
Fransoni, que estava no exílio. Foi ordenado na vila do barão Bianco de Barbania, onde o bispo
passava as férias. A vila estava em Caselle, no fundo do vale de Lanzo. Como a via férrea Turim-
-Lanzo ainda não tinha sido construída, o diácono Rua partiu de Valdocco no dia 28 de julho
em companhia de dois jovens clérigos, Celestino Durando e Giovanni Anfossi, e percorreu o
caminho a pé, como os pobrezinhos, conta-nos o padre Francesia.5 No entanto, chegado ao
destino, não foi dormir (na manhã seguinte sua cama ainda estava intacta), preferindo passar a
3 Carta de Dom Bosco ao papa Pio IX. Turim, 13 de abril de 1860. In: Epistolario I, p. 400-401.
4 Epistolario I, p. 419.
5 G. B. Francesia, D. Michele Rua, primo successore di Don Bosco. Memorie del Sac. G. B. Francesia. Torino,
Ufficio delle “Letture Cattoliche”, 1911, p. 50.
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noite em oração. No dia seguinte, durante a cerimônia da ordenação, na capela de Santa Ana
da vila, seu comportamento conseguiu “arrancar as lágrimas” de alguns presentes, a crer nas
expressões um tanto sentimentais do seu biógrafo Francesia.6
Voltou para Turim durante o dia e na manhã seguinte celebrou com toda simplicidade
a primeira missa, assistido por Dom Bosco, diante da numerosa comunidade do Oratório.
Cinquenta anos depois, uma testemunha, então jovem clérigo, recordava ainda seu “semblante
sereno e recolhido” enquanto se aproximava do altar, o “rosto radiante” no ato da consagração
e o “fervor de serafim” enquanto distribuía a santa Eucaristia.7 Naquela tarde, a comunidade
o ouviu dar a boa-noite. Seu discurso simples, direto e familiar despertou aplauso. Mas a
verdadeira festa do Oratório não terminava ali. Foi organizada no domingo seguinte, no dia
5 de agosto. Padre Rua cantou a missa. O Oratório do Anjo da Guarda onde trabalhava, como
sabemos, reforçou o grupo com centenas de internos do Oratório de São Francisco de Sales.
Foi um dia de alegria, de afeto e de veneração. As composições recheadas de hipérboles, que
os arquivos salesianos conservaram, eram abundantes tanto em prosa como em versos. Numa
delas, era definido “o modelo dos jovens, o exemplo dos clérigos, o digno rival de Domingos
Sávio”. Em outra, admirava-se nele “um novo São Pedro por seu amor a Jesus Cristo, um novo
São João pelo amor das coisas celestes, um novo Luís Gonzaga pela pureza de sua vida, um
novo São Bernardo por seu amor à Virgem Maria, e um novo Dom Bosco por sua dedicação
à juventude”. Seria um digno sucessor de Dom Bosco.8 Miguel dizia que estavam exagerando.
Protestou. O grito repetido de “Viva o padre Rua!” era muito para seus gostos: pediu que pelo
menos se acrescentasse um “Viva Dom Bosco!”.
Auffray imagina o entretenimento musical e teatral daqueles dias:
Não longe do filho, a senhora Rua assistia àquela festa como num sonho, dominando com dificul-
dade a emoção que lhe apertava o coração ao ver o único de seus quatro filhos que tinha sobrevi-
vido elevado a tal honra. Num canto da sala, o velho padre Picco, o professor de latim e de grego
de dez anos antes, saboreava esse modesto triunfo do melhor de seus alunos, enquanto, à direita
do novo sacerdote, Dom Bosco sorria com uma felicidade tão intensa quanto contida. Todos os
corações estavam imersos numa atmosfera de rara cordialidade. Era uma família que festejava seu
filho maior, sob o olhar terno do pai.9
O trabalho do jovem sacerdote
É difícil falar adequadamente da quantidade de trabalho que caiu sobre os ombros do jo-
vem padre Rua com o início do ano escolar 1860-1861. Tinha a responsabilidade por todas as
classes ginasiais do Oratório, que em julho de 1861 tinham 317 alunos, divididos em 5 classes,
número que aumentará de ano em ano. Dirigia as pessoas sem clamor. Vivia no silêncio, com
6 Francesia, D. Michele Rua, p. 51.
7 Cf. E. Ceria, Vita del Servo di Dio Michele Rua. Torino, SEI, 1949, p. 46.
8 Esses escritos em versos ou em prosa foram reunidos em FdR 2756B1-2757A4.
9 Auffray, Le premier successeur, p. 81.
50
uma operosidade impressionante, que o tornava mais austero do que era na realidade. Era im-
pecável e aqueles que se aproximavam dele admiravam sua bondade e sua discrição.
Além disso, no domingo, continuava a se ocupar, junto com o diretor teólogo Roberto
Murialdo, no Oratório do Anjo da Guarda, em Vanchiglia, bairro ingrato, como sabemos.
O clérigo Ballesio, que o acompanhava, contará os difíceis domingos do verão de 1861. Partia
de Valdocco de madrugada e passava toda a manhã com os jovens do Anjo da Guarda, na igreja
ou no pátio, com seus apetrechos de jogo, os balanços, as corridas e os jogos. Ao meio-dia, vol-
tava para Valdocco, acompanhado pelos jovenzinhos que o puxavam pela mangas e, chegado
ao destino, comia aquilo que estava sobrando. Sem descansar, voltava logo para Vanchiglia,
para se ocupar na igreja e no pátio. As cerimônias religiosas da tarde eram breves, entremeadas
pelo catecismo. Padre Rua não era um orador enfático, contava a história sagrada e pregava
claramente. Finalmente, quando chegava a noite, voltava para Valdocco, sempre atrasado para
o jantar. Então, como conta Ballesio, ainda rezava ou estudava.10 Num caderno intitulado Livro
da experiência,11 o vice-diretor Rua conta as várias atividades desse Oratório: no mês de Maria,
a crisma de 1861, cuidadosamente preparada dia após dia na semana anterior, a festa da Assun-
ção, a festa do diretor e a crisma no Oratório de São Francisco de Sales, em 1862... Esse Livro
da experiência nos fornece assim o programa da festa antecipada do santo patrono do Oratório
do Anjo da Guarda, no dia 29 de setembro de 1861: missa de comunhão celebrada pelo padre
Rua, almoço para todos, missa cantada e vésperas solenes presididas pelo padre Leonardo Mu-
rialdo, com o acompanhamento da banda musical de Valdocco. O teólogo Borel fez o sermão.
Ao se aproximar a noite, acenderam-se os fogos de artifício. O dia terminou na igreja com um
cântico ao Anjo da Guarda e com o cântico do Ângelus. Em outubro de 1861, numa carta,
o arcebispo Fransoni, do exílio, se congratulou com Dom Bosco pelo bom trabalho feito no
Oratório do Anjo da Guarda. Padre Rua será por toda a vida o protetor do Oratório de classe
popular, também, e sobretudo, quando seus irmãos preferirem a escola e o internato.
Para preparar um exame que lhe permitiria ouvir as confissões, padre Rua seguiu o ensina-
mento de teologia moral do cônego Zappata. Temos uma série de seis cadernos, 372 páginas ao
todo. Eram ditadas ou copiadas? Não se sabe exatamente. A capa do primeiro nos apresenta um
programa que versava sobre as ações humanas, a consciência, os pecados, os mandamentos de
Deus e da Igreja, a fé. Todas noções que se poderiam esperar no início da formação teológica.12
A seguir, vêm as leis, a censura, a justiça e o direito, os contratos, a disciplina dos sacramentos,
precisamente do Batismo, da Penitência – com uma nota sobre as indulgências –, da Extrema-
unção e do Matrimônio. Muito consciencioso e dotado de memória excelente, padre Rua
registrava tudo. Feito tesouro dessas lições e sendo aprovado nos exames, no dia 27 de junho
de 1862 lhe será conferida a licença de confessor pelo cônego Zappata.13
10 Segundo Jacinto Ballesio, em Amadei I, p. 165-166.
11 Encontra-se em FdR 2929B8-2930D7.
12 Título da capa: Theologiae moralis. Volumen I.um: De actibus humanis. De conscientia. De peccatis. De
praeceptis Decalogi et de Ecclesiae et de fide. Professor Rev.mo Can. Zappata. Sc. Rua Michaël 1860-61.
Esse primeiro caderno contém 94 páginas.
13 Cf. a licença em FdR 2751B9-C4.
51

3.7 Page 27

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ContempOrãeamente, o padre Rua preparou o exame de habilitação para o ensino nas
primeiras classes ginasiais, diploma que o reitor da universidade de Turim assinará no dia 21
de setembro de 1863.14
Finalmente, deve-se remontar a esse período uma iniciativa preciosa para os futuros his-
toriadores de Dom Bosco. Num dia da primavera de 1861, foi constituída no Oratório uma
“Comissão das fontes”, composta por quatorze membros. Eles determinaram reunir testemu-
nhos e documentação dos “dons maravilhosos” e dos “fatos extraordinários” atribuídos a Dom
Bosco, de sua “maneira única de educar a juventude”, de seus grandes “projetos futuros”, pois
lhes parecia que tudo nele revelava “alguma coisa sobrenatural”. O padre Rua era secretário
da comissão. Três dos assistentes, os clérigos Ghivarello, Bonetti e Ruffino, foram designados
como redatores.15 Até à morte de Dom Bosco, o padre Rua se encarregará de fazer reunir pelos
colaboradores do Oratório todos os elementos úteis para o conhecimento exato do mestre tão
admirado e venerado.16
Diretor em Mirabello
Miguel Rua estava para receber uma nova tarefa. No dia 14 de maio de 1862, Dom Bosco
deu um passo decisivo para garantir a coesão da sua Sociedade. Naquela tarde, convocou seus
colaboradores no próprio quarto para a primeira profissão dos votos religiosos previstos pelas
Regras, escritas já havia quatro anos. Quantos foram os que se reuniram em torno dele no
pequeno cômodo? Quinze, vinte? O número varia segundo as listas e as crônicas, que incluem
ou excluem os simples espectadores e os postulantes ausentes por força maior. De qualquer
forma, não havia lugar para se sentar. Dom Bosco, vestido somente com a sobrepeliz e a estola,
seguiu o cerimonial clássico, fixado pelo documento constitutivo Sociedade de São Francisco de
Sales, no capítulo “Fórmula dos votos”: canto do Veni Creator, responsório, oração, ladainha de
Nossa Senhora, Pai-nosso, Ave-Maria e Glória em honra de São Francisco de Sales. Mas, neste
ponto, antes de seguir o rito e fazer vir os colaboradores, um por um, diante de si, para pronun-
ciar os votos, encarregou o padre Rua, na qualidade de diretor espiritual, de recitar a fórmula,
frase por frase, de modo que os outros pudessem repeti-la. Tudo se procedeu de modo rápido,
mas não sem graves inconvenientes. De fato não se saberá exatamente quem, naquela tarde,
14 Cf. O diploma em FdR 2665B2.
15 A declaração inicial escrita num caderno de Domenico Ruffino e assinada pelo padre Rua se encontra
publicada em MB VI, p. 862.
16 Observa-se, por exemplo, que, no dia 21 de janeiro de 1872, o Capítulo do Oratório, por ele presidido,
encarregou Berto e Dalmazzo de colher anotações sobre Dom Bosco e no dia 28 seguinte decidiu a com-
posição de um perfil biográfico de Dom Bosco. Alguns capítulos desse esboço – a “vida comum” segundo
as atas – serão relidos ao longo do ano em diversas reuniões do Capítulo. Foi nesse período, em 1873, que
Dom Bosco, certamente informado sobre a iniciativa, se decidiu a redigir uma espécie de autobiografia
intitulada Memórias do Oratório de São Francisco de Sales, documento fundamental sobre seus primeiros
quarenta anos.
52
se empenhou formalmente na sociedade de Dom Bosco.17 Todavia, a história salesiana poderá
observar, sem dúvida, que no ano seguinte (1863) a Sociedade contava com 22 professos e 17
noviços, subdivididos em duas casas. Naquele ano, de fato, tinha sido criada uma nova casa,
confiada à direção do nosso padre Rua.
No outono de 1861, Dom Bosco fizera contato com uma família de Mirabello visando à
fundação de um colégio naquela cidade, pertencente à jurisdição de Casale. O negócio, apoia-
do pelo bispo de Casale, dom Luigi Nazari de Calabiana, amigo de Dom Bosco, se resolveu
rapidamente porque naquele período a diocese não tinha um seminário menor. No outono
de 1862 se iniciou a construção. À administração civil de Mirabello, interessada na fundação
de um colégio no próprio território, foi dito que se tratava de um pequeno seminário. Miguel
Rua, designado para assumir sua direção, mandou junto os documentos necessários: um certi-
ficado de bom comportamento que o declarava “excelente, honesto, estudioso, de comporta-
mento irrepreensível”, como se exigia de um reitor de seminário; um certificado de reputação
honesta, dado pelo vigário capitular de Turim, Giuseppe Zappata; um certificado civil assinado
pelo prefeito e entregue pela polícia municipal de Turim...18. Finalmente, no dia 30 de agosto
de 1863, dom Calabiana nomeava o padre Rua diretor do Pequeno Seminário São Carlos de
Mirabello.19
Chegou a Mirabello no dia 12 de outubro, com a mãe Giovanna Maria, que cuidaria da
cozinha e do guarda-roupa do novo colégio. Era o único sacerdote. O resto do pessoal era cons-
tituído por 5 clérigos e 4 jovens, ainda não salesianos. Quando o colégio foi aberto, os alunos
se apresentaram em bom número.
Chegou-lhe, então, da parte de Dom Bosco, uma longa e afetuosa carta de obediência.
Continha uma série de conselhos úteis para a boa condução de um colégio. Sua importância
nos induz a apresentá-la brevemente.20 Dizia, antes de tudo, que o diretor de Mirabello devia
manter sempre a calma, evitar mortificar-se na alimentação e dormir pelo menos 6 horas por
noite, não somente para manter a saúde, mas também pelo bem dos rapazes que lhe tinham
sido confiados. Dom Bosco conhecia o discípulo. Além disso, o convidara a cuidar das práticas
de piedade tradicionais, para si e para o pessoal. Missa, breviário, um pouco de meditação toda
manhã, uma visita ao Santíssimo Sacramento durante o dia. Recomendava que se fizessem
amar antes de se fazerem temer! (A severidade aparente do discípulo preocupará sempre Dom
Bosco.) No caso de se dever dar ordens ou repreender, pedia-se que se fizesse compreender cla-
ramente que o fazia pelo bem das almas. Encorajava-o ainda a orientar todas suas ações para o
bem espiritual, físico e intelectual dos jovens que a Providência lhe confiava, e, antes de tomar
uma decisão importante, era convidado a elevar a alma a Deus.
O diretor, escrevia Dom Bosco, deve tomar todo o cuidado com o bem-estar físico dos
17 Contrariamente a quanto se escreveu por vezes, não foi assinado nenhum registro no final da cerimônia.
É preciso confiar nas crônicas.
18 Cf. o documento em FdR 2665A11-12.
19 Cf. o documento em FdR2751B3-4.
20 Giovanni Bosco, Epistolario, a cura di Francesco Motto, v. 1-4. Roma, LAS, 1991-2003, I, p. 613-617.
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professores e dos assistentes. Sobretudo, tem o dever de cuidar da saúde dos alunos, de falar
frequentemente com eles, de se informar sobre suas preocupações e de procurar as soluções
mais apropriadas para resolver as situações difíceis. Deve fazer de modo que nas classes os pro-
fessores interroguem todos os alunos indistintamente. Nenhuma amizade particular, nenhuma
parcialidade. Os assistentes sejam pontuais em seu serviço! O diretor, além disso, se preocupe
com reunir de vez em quando professores e assistentes, para exortá-los a manter no colégio uma
atmosfera sadia: nada de conversas más, livros perigosos, imagens obscenas ou qualquer coisa
que possa colocar em risco a “virtude rainha”, a pureza.
Um parágrafo inteiro da carta é reservado ao pessoal de serviço. O diretor coloque como
chefe dos dependentes uma pessoa de reconhecida probidade, encarregada de cuidar não so-
mente da qualidade do trabalho dos subalternos, mas também de sua moralidade. Quanto ao
resto, o pessoal deve poder assistir diariamente à missa e se aproximar dos sacramentos pelo
menos uma vez por mês. Estamos justamente em outros tempos, numa cultura destinada in-
felizmente a desaparecer. Também na aceitação dos alunos é indispensável olhar com cuidado
o bom costume e rejeitar os candidatos perigosos. Diante de fatos de imoralidade evidente,
depois de uma advertência paterna, em caso de recaída, se proceda à expulsão imediata.
Um parágrafo da carta resume muito bem o comportamento do diretor de Mirabello em
relação aos alunos. “Faça o quanto possível para estar no meio dos jovens durante todo o tempo
do recreio, e procure dizer ao ouvido alguma palavra afetuosa de que, você sabe, aos poucos
sentirá a necessidade. Este é o grande segredo que torna você senhor do coração dos jovens.”
Dom Bosco ensina ao discípulo uma pedagogia da presença que ele conhece muito bem. Em
geral, “a caridade e a cortesia são as notas características de um diretor, tanto com os internos
quanto com os externos” do instituto; ele se esforça sempre para resolver todos os problemas
“para a maior glória de Deus”. Promessas não cumpridas, brigas, espírito de vingança, amor-
-próprio, tudo merece ser sacrificado ad majorem Dei gloriam.
Aquela carta muito concreta, ligeiramente retocada no decorrer dos anos, sob o título Ri-
cordi confidenziali ai Direttori, será destinada a se tornar progressivamente a magna charta de
todo diretor de colégio salesiano, um dos documentos fundamentais para o conhecimento do
sistema educativo de Dom Bosco.21
Em conformidade com as diretivas de Dom Bosco, padre Rua procurou fazer da casa de
Mirabello um ambiente protetor e transformador. Seu regulamento reproduzia escrupulosa-
mente o do Oratório de Turim.22 Para conseguir os resultados educativos esperados, padre Rua
desejava que cada um dos alunos encontrasse entre seus muros uma alegria serena, enraizada,
sobretudo, numa consciência em paz com Deus. Tê-la-ia alimentada com toda a inventiva do
seu espírito zeloso e se empenharia para manter um clima de serenidade entre os seus. Que-
ria uma disciplina séria, certamente, mas nunca ostensiva nem exagerada, deixando o maior
espaço possível para a liberdade. Os professores deviam ser pais, ou melhor, irmãos maiores,
que compartilhavam com os alunos todos seus jogos, as inquietudes, as ocupações, testemu-
21 Cf. F. Motto, I ricordi confidenziali ai Direttori di don Bosco. Roma, LAS, 1984.
22 Sobre esse regulamento para o colégio S. Carlo di Mirabello, cf. MB VII, p. 519-522, p. 863-869.
54
nhando-lhes grande confiança, ligando-os a si através de toda espécie de dedicação. Deviam ter
na mente uma única coisa: reconstruir em torno das almas dos rapazes a atmosfera da família,
tão necessária para o amadurecimento humano, e, sobretudo, uma vida de piedade profunda,
autêntica, racional, capaz de dar àqueles adolescentes a força de resistir ao mal, a luz nos dias
de dúvida e, em todo instante, a fidelidade ao dever. Para conservar esse espírito de piedade,
padre Rua, conforme havia experimentado no Oratório de Turim, organizou toda uma rede de
práticas. Celebrava para eles a missa cotidiana. Estava disponível desde a manhã até à tarde no
confessionário. Toda noite, depois das orações, antes de mandá-los dormir, dirigia a seus filhos
um breve discurso, cuidadosamente preparado. Todos os domingos, tinha para seu pequeno
povo duas instruções, uma de manhã, na qual expunha algumas páginas da História Sagrada,
outra à tarde, para explicar as virtudes cristãs.
Durante o ano escolar, no colégio de Mirabello, celebrou-se com pompa e fervor a come-
moração do patrono São Carlos (4 de novembro), depois a Imaculada Conceição de Maria (8
de dezembro) e as grandes solenidades do ano litúrgico. Essas festas eram preparadas com uma
novena ou com um tríduo. Todo mês se fazia um breve retiro que consistia no exercício da boa
morte, muito querido a Dom Bosco desde os tempos do internato de Turim. Finalmente, todo
ano, na primavera, fazia-se um curso de exercícios espirituais de três dias, durante o qual não
havia aulas, e os alunos eram convidados a meditar as verdades eternas e os grandes problemas
da vida.23
As ligações entre Mirabello e Turim foram numerosas e estreitas. As visitas e as cartas fre-
quentes de Dom Bosco encorajavam o diretor. Dom Bosco estava preocupado com a vida espi-
ritual dos jovens. Aconselhava o padre Rua sobre o modo de fazer frente à administração civil
de Alexandria, que lhe criava problemas porque num presumido “pequeno seminário” se acei-
tavam alunos que nada tinham a ver com o estado eclesiástico. No dia 26 de fevereiro de 1864,
o provedor dos estudos chegou quase a ameaçar o fechamento do instituto.24 Disso se ocupou
o bispo de Casale. Dom Bosco aconselhou o padre Rua que apelasse ao governo, se necessário.
No final, não se falou mais sobre isso. As relações entre os dois foram também de natureza eco-
nômica (uma vez Dom Bosco tomou emprestados 2 mil francos do padre Rua) e celebrativa,
como quando, no dia 25 de abril de 1865, padre Rua foi a Turim com uma centena de meninos
de Mirabello para o lançamento da primeira pedra da igreja de Maria Auxiliadora.
A casa era muito animada, embora nem tudo fosse perfeito. No fim do segundo ano escolar,
padre Rua foi obrigado a “beneficiar” o colégio com 3 expulsões tornadas necessárias. Esses
“lobos” se haviam revelado até muito perigosos para o rebanho.25
No dia 1º de junho de 1865, para concluir dignamente o mês de Maria, apresentou-se a
comédia latina intitulada Phasmatonices, isto é, o vencedor dos fantasmas, obra do bispo Rosini
23 Este parágrafo sobre a vida de piedade do padre Rua em Mirabello é uma retomada, em muitos casos
palavra por palavra, de Auffray, p. 106-107, que se fundamentava na própria experiência de vida nos
colégios salesianos.
24 Documento original em FdB 269C3.
25 Carta de M. Rua a F. Provera, 11 de julho de 1865. In: Amadei I, p. 181.
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di Pozzuoli. Estava presente dom Calabiana com um grupo de eclesiásticos e de leigos vindos
expressamente de Casale para o evento. As pessoas cultas admiraram a recitação desenvolta dos
atores e a habilidade dos professores, prova tangível da seriedade dos estudos nesse colégio.
O jovem diretor padre Rua tinha se saído perfeitamente bem na sua novíssima experiência
de Mirabello. Mas, depois de dois anos, quando se encontrava em Turim para o lançamento da
primeira pedra da Igreja de Maria Auxiliadora, Dom Bosco lhe deu a entender que pensava em
confiar-lhe um novo encargo ainda mais pesado.
56
Capítulo 6
Padre Rua prefeito geral
Padre Rua substitui o padre Alasonatti
Em julho de 1865, Dom Bosco, em Turim, estava realmente sobrecarregado de problemas.
Os trabalhos da igreja de Maria Auxiliadora tinham sido começados e seu custo – precisava
pagar o mestre de obras a cada quinze dias – lhe pedia um empenho extraordinário. Cinco de
seus sacerdotes estavam doentes, como escrevia o padre Rua.1 Padre Vitório Alasonatti, prefeito
geral, que dirigia a administração da obra, tinha um câncer na garganta. Devera deixar Turim
e se transferir para a casa de Lanzo Torinese, fundada no ano anterior. No dia 6 de julho, o
diretor daquele colégio, Domenico Ruffino, morria com a idade de 25 anos. Assim, em agosto,
Dom Bosco decidiu chamar Rua para seu lado. Substituiria o padre João Bonetti. Isto aconte-
cia no dia 18 de setembro. Naquele mesmo dia lhe pediu para pagar uma fatura vencida.2 No
dia 4 de outubro, encarregou-o de fazer publicidade para o colégio de Lanzo.3 Depois, na noite
de 7 para 8, morreu também padre Alasonatti.
Era preciso reorganizar, urgentemente, a direção geral da Sociedade Salesiana. Dom Bosco pro-
cedeu assim: primeiro, reuniu os 5 membros do capítulo que estavam no cargo, para a substituição
do prefeito falecido e do diretor espiritual padre Fusero, doente. Padre Miguel Rua foi eleito prefeito
e padre João Batista Francesia, diretor espiritual. Depois disso, foram convocados todos os irmãos
do Oratório para a eleição do terceiro conselheiro. No lugar do padre João Bonetti, transferido para
a sede de Mirabello, foi nomeado padre Celestino Durando. Percebeu-se, então, que formalmente
nenhum dos membros desse conselho diretivo tinha ainda emitido os votos perpétuos, como era
exigido pelos cânones. Colocou-se o remédio imediatamente. No dia 15 de novembro, os sacerdotes
Rua, Cagliero, Francesia, Ghivarello, Bonetti, mais dois clérigos e dois leigos pronunciaram os votos
perpétuos nas mãos do Reitor-Mor. Desde o fim da década de 1860, dado que Dom Bosco estava
frequentemente ausente, quando se faz referência ao Capítulo do Oratório, se entende falar, sobretu-
do, do padre Rua, prefeito, do padre Francesia, diretor espiritual, do padre Ângelo Sávio, ecônomo,
de João Cagliero, Carlos Ghivarello e Celestino Durando, conselheiros.
1 Giovanni Bosco, Epistolario, a cura di Francesco Motto, v. 1-4. Roma, LAS, 1991-2003,v. II, p. 148-149.
2 Giovanni Bosco, Epistolario II, p. 165.
3 Giovanni Bosco, Epistolario II, p. 170-171.
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3.10 Page 30

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Padre Rua representa Dom Bosco
Dom Bosco considerava o prefeito geral Rua seu alter ego. No dia 11 de janeiro de 1866,
enviou-o a Mirabello para receber, em seu nome, os votos perpétuos de dois professos da pri-
meira hora, Francisco Provera e Francisco Cerruti. No dia 4 de fevereiro seguinte, Dom Bosco
se encontrava à cabeceira de Rodolfo de Maistre, agonizante. Em seu lugar, padre Rua presidiu
a reunião dos diretores reunidos para a solenidade de São Francisco de Sales. No dia 11 de
fevereiro, o padre Rua escrevia uma longa carta à condessa Carlota Callori, em nome de Dom
Bosco, “ocupado com muitos afazeres”.4 Entre 1865 e 1870, suas responsabilidades compreen­
diam também as casas sucursais de Mirabello e de Lanzo; o trabalho do padre Rua se concen-
trou principalmente na casa do Oratório. A tendência é esquecê-lo, mas, desde seu retorno
a Valdocco, preocupado em dar ao ginásio um corpo docente titulado, ele mesmo começou
a se preparar para obter a láurea na Faculdade de Letras e Filosofia de Turim. Testemunha-o
um certificado de inscrições nos cursos de literatura latina, literatura italiana, literatura grega,
história antiga e história moderna, datado de 30 de novembro de 1865.5
Como Dom Bosco estava frequentemente ausente, o padre Rua de fato foi o principal res-
ponsável pela obra de Valdocco. Devia continuamente resolver problemas de contabilidade, de
disciplina, de higiene e limpeza, de reestruturação dos locais, de preparação das festas. Desses
problemas nos falam as atas das reuniões semanais do Capítulo, fielmente redigidas pelo pró-
prio padre Rua, e alguma anotação em seu Livro da experiência. A leitura desses documentos,
talvez enfadonha, é muito instrutiva. Aprende-se, por exemplo, que a vida do salesiano naquele
tempo não tinha nada de idílico.6 Colhemos cá e lá algum detalhe das reuniões do Capítulo no
ano de 1866. No dia 11 de março decidiu-se dedicar maior atenção à hora de acordar o pessoal
e ao modo de preparar as aulas. No dia 18 de março, recomendou-se que estivesse em ordem o
registro da contabilidade. No dia 8 de julho, que se preparasse com maior cuidado as crismas
(que seriam administradas no dia 22 seguinte), que não se dessem punições senão na aula e no
refeitório e que se controlasse que as camas estivessem em ordem no dormitório. No dia 12 de
agosto, voltando ao assunto das punições, o Capítulo estabelecia uma graduação, que consistia
em privar da sobremesa, do vinho, no fazer comer no meio do refeitório ou na porta de saída,
ajoelhados no refeitório, nos pórticos etc.7
A reorganização do Oratório
Tratava-se de retomar uma casa de quase 350 alunos e 350 aprendizes que frequentemente
deixavam a desejar quanto à ordem e à disciplina. Sob a direção do padre Alasonatti, homem
4 Publicada em Documenti XLIII, p. 134-135 (ASC A092).
5 Certificado de inscrição em FdR 2665B1.
6 As microfichas dos cadernos sobre as reuniões capitulares escritas à mão pelo padre Rua entre 1866 e
1877, cuidadosamente datadas, podem ser lidas em FdR 2916D1-2919E9.
7 Cf. FdR 2916D3 e seguinte; cf. também o artigo de P. Braido, “Don Michele Rua primo autodidatta
visitadore salesiano”, RSS 9 (1990), p. 108-110.
58
de saúde franzina e excessivo nas suas reações, a grande casa de Valdocco perdera um pouco
de seu espírito. Impunha-se, portanto, uma reorganização. A reordenação da disciplina e a
consolidação interna da vida de piedade. Para o novo prefeito geral, a tarefa foi simples. Foram
feitas críticas à sua ação. A posição de Rua era incômoda. Agora, se dizia, ele tinha a proteção
de Dom Bosco e não era mais possível mover sequer uma folha sem a sua permissão. Alguns
se alegravam com a ordem energicamente restabelecida depois da gestão relaxada de Vitório
Alasonatti. Outros, ao contrário, que tinham chegado ao Oratório ainda crianças, tornados
homens feitos, não se resignavam a se submeter ao antigo companheiro. Daqui surgiam maus
humores que padre Rua procurava controlar.
Suportava. O trabalho era pesado. Esperava-o o pagamento das dívidas, que eram notáveis.
Era preciso ocupar-se especialmente do bom andamento das oficinas com toda a contabilidade
anexa para a aquisição das matérias-primas e das máquinas, do pagamento dos operários, das
contas dos clientes. Dom Bosco lhe confiava também a superintendência dos trabalhos da
igreja em construção. Além disso, como afirma Auffray (não confirmado pelos outros historia-
dores), teria sido responsável até pelas Leituras Católicas. A publicação contava então com mais
ou menos doze mil assinantes que era preciso mensalmente satisfazer com contos escritos em
estilo simples e pessoal. “Não era pouca coisa escrever de modo adequado, correto e não muito
difícil, como também supervisionar todo o trabalho da edição mensal.”8
As festas de consagração na igreja de Maria Auxiliadora
No mês de maio de 1868, a casa do Oratório entrou em ebulição. Cinco anos depois de ter
lançado a ideia, Dom Bosco via realizar-se o sonho de uma grande igreja em honra de Maria
Auxiliadora. Estavam chegando ao fim os acabamentos. A consagração estava prevista para o
mês de junho, somente quatro anos depois do lançamento da “pedra angular”. Em maio, o
Capítulo havia discutido, sob a direção do padre Rua, acerca da distribuição dos cargos. Segun-
do os apontamentos sintéticos da ata, era preciso providenciar porteiros, coletores de esmola,
acompanhantes aos lugares, copeiros para as mesas, cantineiros, encarregados dos quartos dos
hóspedes, confessores e iluminação. Os festejos durariam oito dias. A cerimônia de consa-
gração deveria ser o momento mais importante. Deviam ser convidadas personalidades e as
cerimônias religiosas preparadas de forma solene. Havia uma multidão de devotos para serem
acolhidos, alunos das casas de Lanzo e de Mirabello para serem recebidos, concertos para serem
organizados e uma obra teatral para preparar.
Os grandiosos festejos da consagração, acontecida no dia 9 de junho, se prolongaram pelos
oito dias seguintes e estiveram à altura do fervor religioso que permitira a construção da igreja
em tempo recorde. Dom Bosco os descreve num fascículo especial das Leituras Católicas, pu-
blicado logo depois do acontecimento.9 Em toda a sua vida, nenhum outro acontecimento se
8 A. Auffray, Le premier successeur de Don Bosco, Don Rua (1837-1910). Lyon-Paris, Vitte, 1932, p. 117.
9 Rimembranza di una solennità in onore di Maria Auxiliatrice. Torino, Tip. dell’Oratorio di S. Francesco
di Sales, 1868.
59

4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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revestirá de maior importância que os maravilhosos dias entre 9 e 16 de junho, com missas e
vésperas pontificais, discursos de bispos, banquetes (para os quais tinham chegado doações de
toda parte da Itália do Norte), uma apresentação de ginástica e algumas representações teatrais,
entre as quais os Phasmatonices do padre Rosini que já tinham sido representados em Mira-
bello. Os fiéis acorreram em massa. Dom Bosco estava radiante. No final de tudo, padre Rua
podia escrever numa nota que nada tinha perturbado “a alegria desses santos dias”.10
É difícil imaginar o acúmulo de trabalho que essa iniciativa exigiu dos vários organizadores.
Giuseppe Bongiovanni, além de seu trabalho ordinário, se empenhou tanto para garantir o
serviço do altar com o pequeno clero, que se adoentou no dia da consagração e morreu no dia
17 de junho, 24 horas depois da conclusão da oitava.11 Devemos dizer que o padre Rua, a quem
estava confiada toda a máquina organizativa, a dirigiu esplendidamente. Mas seu físico sofreu
os contragolpes no mês seguinte. O arco muito esticado se quebrou. Extenuado, tentou escon-
der o desfalecimento o mais possível, mas precisou dar-se por vencido. No dia 29 de julho ficou
na cama. Padre Ceria afirma que foi atingido por uma peritonite grave. Era provavelmente o
diagnóstico do médico, segundo o qual não lhe restava uma possibilidade de cura em cem. O
padre Rua aceitou serenamente a morte e pediu os últimos sacramentos.12
Naquele dia, Dom Bosco estava ausente. Quando chegou, no fim da tarde, encontrou a casa
em alvoroço. Todos se precipitavam para lhe dar notícias sobre o doente. Segundo testemu-
nhas, teria respondido: “O padre Rua, eu o conheço, não irá embora sem minha permissão”.
E foi para o confessionário. Somente depois do jantar subiu para o quarto do padre Rua. Entre-
teve-se com ele durante alguns minutos e, quando o viu convencido de que devia morrer logo,
parece ter dito: “Ó, meu caro Rua, não quero que você morra. Você tem ainda muita coisa para
fazer comigo!”. Abençoou-o e saiu. Durante a noite, o mal não piorou. No dia seguinte, depois
de ter celebrado a missa, Dom Bosco foi novamente à sua cabeceira. O doutor Gribaudo, que
estava presente, lhe fez sinal de que não havia esperança. Dom Bosco não se deu por vencido.
Parece que, vendo os óleos santos sobre a mesa, repreendeu o enfermeiro pela sua pouca fé e
voltando-se para o doente disse: “Veja, Rua, mesmo que você agora se jogasse abaixo pela jane-
la, não morreria”. De onde lhe vinha essa convicção? Não se sabe. De qualquer forma, o doente
começou a sofrer menos. Aos poucos sua saúde melhorou e o perigo desapareceu. Quando, no
início da convalescença, esteve em condição de dar os primeiros passos fora do quarto, toda a
casa se alegrou. Chamaram-no para os pórticos, dedicaram-lhe muitos cantos e lhe foi lido um
discurso. Quanto readquiriu forças, Dom Bosco o mandou para repousar em Tofarello até ao
final do verão. Não participou das reuniões do Capítulo entre julho e novembro. Somente no
dia 13 de novembro retomou finalmente seu cargo no Oratório de Valdocco.
10 P. Braido, “Don Michele Rua precario ‘cronicista’ di Dom Bosco”, RSS 8 (1989), p. 347-348.
11 Diz-se expressamente, a partir da quinta edição, numa nota acrescentada ao capítulo 17 da biografia
de Domingos Sávio escrita por Dom Bosco; cf. Vita del giovanetto Savio Domenico allievo dell’Oratorio
di S. Franc. di Sales. Com apêndice sobre graças alcançadas pela sua intercessão [Sexta edição]. Torino,
Tipografia e Libreria Salesiana, 1880, p. 78-79.
12 Sobre essa doença do padre Rua, cf. Amadei I, p. 206-208 e MB IX, p. 320-322.
60
A vida cotidiana do prefeito padre Rua
Por muito tempo, a vida do padre Rua no Oratório foi vida de escritório, mais monótona e
sem acontecimentos significativos. Somente as testemunhas puderam falar dela com conheci-
mento de causa.13 A sala onde trabalhava tinha três móveis estritamente necessários. Nenhum
ornamento. Numa salinha ao lado estavam um ou dois secretários, aos quais não se limitava a
confiar o trabalho, mas os observava para descobrir neles as aptidões e fazer deles eventualmen-
te prefeitos ecônomos em outras casas. Com esse objetivo, compilou pequenos manuais ma-
nuscritos, nos quais explicava o método de registro das casas salesianas. Ilustrava a modalidade
do registro do mês, os livros de contabilidade e de gestão do colégio, o caderno das ofertas, os
registros dos diversos setores da administração de uma obra complexa: sacristia, cozinha, des-
pensa, oficinas, roupa de cama. Com paciência o padre Rua encaminhou seus secretários para
as operações administrativas mais complexas. Precisando, tomava, como ajuda temporária,
pessoas que não conseguiam encontrar sistematização em outras partes e se industriava para
colocá-las novamente no seu lugar.
A oração servia de moldura para o tempo passado no escritório. Começava o trabalho com
o Actiones nostras, uma Ave-Maria, a leitura de um pensamento de São Francisco de Sales ou da
Imitação de Cristo, e terminava com o Agimus tibi gratias.
A maioria da correspondência do Oratório confluía para o seu escritório. Abria e anotava
as cartas, depois as transmitia aos secretários que deviam redigir as respostas. Reservava para si
somente assiná-las. Era-lhe trazida também uma parte das cartas endereçadas a Dom Bosco:
comissões, pedidos de aceitação, pequenas ofertas... Às vezes Dom Bosco lhe passava cartas
muito longas, difíceis de serem decifradas. E padre Rua, depois de lê-las atentamente, resumia
seu conteúdo para permitir ao santo orientar-se na resposta.
Em seu escritório, padre Rua recebia fornecedores, parentes dos alunos e visitadores oca-
sionais. Uma procissão que às vezes durava horas. Se a qualidade das pessoas e a natureza dos
deveres o permitiam, depois de um olhar e uma saudação a quem entrava, atendia continuando
a ler, a escrever e a consultar suas cartas, até ao momento de se despedir. Pode-se pensar o que
se quiser. Evidentemente, queria economizar tempo.
De seu lugar, observava constantemente a disciplina da casa. Contatos e diálogos frequen-
tes com os membros do pessoal lhe permitiam identificar os abusos e as desordens para logo
corrigi-los. Não confiava somente na memória e tomava notas no seu Livro da experiência.
Impunha-se vigiar pessoalmente os lugares. Adquiriu até um hábito, ao qual foi fiel por muito
tempo. Depois das orações da noite, passeava lentamente sozinho sob os pórticos, recitando o
rosário, para advertir aqueles que não observavam o silêncio “sagrado” ou não se retiravam para
seu quarto, como previsto no regulamento. Depois, fazia o giro por toda a casa. Acontecia-lhe
repetir esta espécie de controle no coração da noite e concluí-lo sempre na igreja, diante do
Santíssimo.
13 Este parágrafo depende inteiramente de Ceria, Vita, p. 66-68.
61

4.2 Page 32

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A responsabilidade do padre Rua não se limitava aos alunos. O número dos clérigos ia
crescendo. Era preciso cuidar também deles. Padre Rua os confiou aos cuidados de um assis-
tente, Paulo Albera, futuro Reitor-Mor. Bem depressa foram reservadas algumas reuniões do
Capítulo para “avaliações” dos clérigos. Todo sábado, padre Rua dava-lhes uma aula sobre o
testamentinho, isto é, sobre o estudo de uma passagem do Novo Testamento. Assistia aos jo-
vens clérigos em seus primeiros passos como educadores salesianos, dando o exemplo de uma
vida religiosa exemplar.
Vivia, sobretudo, sob a direção de Dom Bosco, grande apoio do Oratório, cuja influência
moral enchia a casa, mesmo quando estava fisicamente ausente. Em 1867, Dom Bosco passou
dois meses consecutivos em Roma e Rua assumiu com extrema naturalidade o comando. Dava,
de alguma forma, a impressão de que não moveria um dedo sem o consentimento de Dom
Bosco. O que o padre Barberis escreveu em 1875, já poderia ter sido dito nos anos 1860: “O
Oratório é organizado de modo tal que, por assim dizer, não nos apercebemos da ausência de
Dom Bosco de Turim”.
62
Capítulo 7
Formador dos jovens salesianos
O problema da formação dos clérigos no Oratório de Turim
Padre Rua, prefeito geral da Sociedade Salesiana, viu-se diretamente envolvido no problema
da formação dos jovens clérigos do Oratório. Devemos colocar sua atividade na evolução difícil
da jovem Sociedade Salesiana ao longo dos anos da década de 1860. Sobretudo porque, em-
bora naqueles anos Dom Bosco ocupasse a cena, o prefeito geral era seu primeiro confidente,
portanto o conselheiro natural. Ele crescia no relacionamento habitual com Dom Bosco, que
não brincava quando se tratava da formação de seus filhos e do espírito do próprio método
educativo.
A partir de 1864, Dom Bosco, convencido do apoio de Pio IX a seu projeto, esforçava-se
para fazer a Sociedade Salesiana passar de Congregação de direito diocesano para instituição
de direito pontifício. Isto lhe permitiria – assim esperava – não depender mais dos bispos para
a admissão às ordens de seus clérigos. Seria plenamente livre no juízo sobre sua idoneidade.
Submeteu, portanto, à Santa Sé o texto das Regras, com a esperança de conseguir uma aprova-
ção rápida. Mas se enganava. Naquele ano, atingiu somente uma primeira etapa no processo
de reconhecimento do seu instituto, a do decretum laudis (decreto de louvor), datado de 23 de
julho. Uma série de 13 observações sobre o texto constitucional formuladas pela Congregação
dos Bispos e dos Regulares havia mais ou menos refreado os seus entusiasmos.1 Não somente,
como ele observou à Congregação Romana, correria o risco, em caso de aplicação, de dar à sua
Sociedade as aparências de uma corporação religiosa tradicional, com todos os problemas que
isto comportaria. Além disso, uma daquelas observações era claramente contrária a conceder
somente ao superior geral a plena faculdade de admissão às ordens: “Não se pode permitir que
o superior geral deixe aos membros do pio Instituto as cartas dimissórias para a admissão às
ordens; que isto seja, portanto, eliminado nas Regras”. Isto contrastava radicalmente com os
seus projetos. Portanto, opôs-se tenazmente.2
1 Podem ser lidas as Animadversiones de Stanislao Svegliati em G. Bosco, Costituzioni della Società..., p.
231 [documento 6].
2 Segundo o documento Supra animadversiones in constitutiones sociorum sub titulo S. Francisci Salesii in
Dioecesi Taurinensi, em G. Bosco, Costituzioni della Società..., p. 237 (documento 7].
63

4.3 Page 33

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Em maio de 1867, finalmente, depois de dezessete anos de “viuvez” da diocese, devida ao
exílio (1850) e, depois, à morte (1862) de dom Fransoni, um novo arcebispo fez entrada so-
lene em Turim. Era dom Alessandro Riccardi di Netro, transferido da sede de Savona para a
de Turim. Era muito ciumento dos direitos e dos deveres do próprio ministério. Durante seus
três anos de episcopado tornaria dura a vida de Dom Bosco, sobretudo em relação à formação
dos clérigos.3
Em Turim, com os anos, a formação do clero era mais ou menos superficialmente baseada
nas Regras ordinárias. Vários seminaristas tinham se refugiado junto a Dom Bosco, que tinha
sobre seu comportamento de vida e sobre os estudos eclesiásticos visões pouco sulpicianas. Para
sua instrução se valia de alguns sacerdotes da cidade, às vezes (para a moral) a providenciava
ele mesmo. Durante os estudos, esses clérigos prestavam serviços vários para a educação e a
instrução dos jovens. “Tenho cinquenta clérigos”, havia comunicado Dom Bosco ao reitor do
seminário Alessandro Vogliotti em junho de 1866. E, não sem ingenuidade, acrescentara: “Eles
empregam toda sua vida assistindo, catequizando, instruindo meninos pobres, especialmente
aqueles que frequentam os Oratórios masculinos desta cidade”.4 Durante as férias de verão
de 1866, tinha trabalhado tanto a seu favor que as autoridades diocesanas, isto é, o vigário
capitular e o reitor do seminário, tinham se limitado a exigir, da parte dos clérigos residentes
com ele, a frequência aos cursos feitos no seminário. Ora, alguns moravam em Lanzo. Mas
Dom Bosco tinha previsto para todos um único corpo de professores exatamente em Valdocco.
A cúria considerava, não sem razão, que estivesse exagerando.
No entanto, Dom Bosco perseguia seus objetivos. Em Roma, em janeiro de 1867, eram ini-
ciados os movimentos em vista da aprovação da Sociedade, segunda etapa indispensável para a
passagem de sua Regra para o direito pontifício. Por isso, precisava do apoio e da recomendação
dos bispos piemonteses, a começar do de Turim. Por motivos óbvios, a cúria de Turim logo
tinha colocado objeções. Quando, no dia 8 de abril, o arcebispo Riccardi tomou contato com
a nova diocese, começou a tornar-lhe a vida mais difícil. Não aprovava estudos eclesiásticos
feitos apressadamente, numa escola que incluía oficinas artesanais e o Oratório. O arcebispo
considerava insuficiente essa formação, e isto lhe causava problema desde o momento em que
era responsável pelas ordenações dos clérigos de Dom Bosco. Um mês antes do início do ano
escolar 1867-1868, escreveu-lhe uma carta inequívoca: no futuro ordenaria somente alunos do
seminário diocesano. Portanto, que o superior do Oratório de Valdocco se controlasse conse-
quentemente. Dom Bosco começou logo a trabalhar, tentou dialogar, mas precisou reconhecer
que o arcebispo não se dobraria. Voltou-se, então novamente para Roma, mas a iniciativa
irritou dom Riccardi.
Para apresentar suas razões em lugar elevado, o arcebispo se serviu da mesma campanha
colocada em ato por Dom Bosco junto ao episcopado com o objetivo de obter as cartas comen-
datícias em favor da Sociedade Salesiana. Tendo entregue a Dom Bosco a sua comendatícia,
no dia 14 de março de 1868, expediu também uma carta especialmente pungente ao cardeal
3 Sobre Dom Bosco no tempo do arcebispo Riccardi di Netro, cf. Don Bosco en son temps, p. 734-735, de
onde são tiradas as citações.
4 Carta de João Bosco a A. Vogliotti. Turim, 26 de junho de 1866. In: Epistolario II, p. 264.
64
prefeito da Congregação dos Bispos e Regulares. Sabia do apoio que Dom Bosco tinha junto a
Pio IX e o secretário de Estado Antonelli. Apesar disso, se sentia no dever de expressar o próprio
ponto de vista:
Verdadeiramente, se não estivesse persuadido de que essa Sagrada Congregação modificará es-
sencialmente as Constituições apresentadas, não teria dado mais este passo, porquanto a minha
oposição pudesse me trazer graves desprazeres, uma vez que acreditaria trair o meu dever de bispo
se eu me fizesse patrocinador de uma Congregação que, se fosse aprovada tal como se propõe, não
poderia resultar senão em gravíssimo dano à Igreja, à diocese e ao clero [...]. O colégio de Turim já
é um caos desde agora, sendo misturados aprendizes, estudantes, leigos, clérigos e sacerdotes. E se
tornará cada vez mais, estendendo sua esfera de ação.
Três meses depois, dom Lorenzo Renaldi, bispo de Pinerolo, assumia posições análogas
numa carta à Congregação dos Bispos e Regulares.
Com muita perplexidade, a comissão romana, convidada a se pronunciar sobre as Regras
da Sociedade de São Francisco de Sales, encaminhou uma pesquisa sobre os seminários de
Dom Bosco. As conclusões de dom Caetano Tortone, encarregado do trabalho da Santa Sé em
Turim, não foram favoráveis. Criticou duramente a pouca qualidade dos estudos dos clérigos,
sua falta de espírito eclesiástico e sua formação inadequada no meio dos rapazes do Oratório.
Alguns meses mais tarde, também o jornalista padre Giacomo Margotti, personagem influente
no mundo clerical piemontês, interrogado, deplorava o espírito de independência de Dom
Bosco na formação dos clérigos.5
Para enfrentar essa coalizão, Dom Bosco, pouco inclinado a ceder diante de medidas que
reputava vexatórias, esforçou-se muito para encontrar aliados em Roma. No dia 9 de setembro
de 1868, ainda na euforia dos festejos de Maria Auxiliadora, expunha ao amigo cardeal Filippo
de Angelis seus problemas com dom Riccardi di Netro, que pretendia ordenar somente os
clérigos passados pelos seminários diocesanos. Ao que objetava: “... se eu mandar os clérigos
para o seminário, onde estará o espírito de disciplina da Sociedade? Onde vou encontrar mais
de cem catequistas para outras tantas classes de crianças? Quem passar um quinquênio no
seminário terá vontade de voltar a se trancar no Oratório?”.6 O recrutamento do pessoal, sua
formação, sua perseverança e o funcionamento de qualquer outra iniciativa educativa pareciam
ameaçados pelas disposições do ordinário de Turim.
Este último pareceu ter vencido. O votum sobre as Constituições do carmelita Angelo Sa-
vini, consultor para a Congregação dos Bispos e dos Regulares, foi contrário a Dom Bosco.7
As autoridades romanas davam razão ao arcebispo. No dia 2 de outubro, o secretário da Con-
gregação dos Bispos e dos Regulares informava Dom Bosco sobre o voto negativo quanto ao
mérito de seu pedido de aprovação da Sociedade de São Francisco de Sales, apresentando estas
5 Sobre a aprovação romana, cf. Don Bosco en son temps, p. 736-740, texto e notas.
6 Carta de Dom Bosco a F. de Angelis, Turim, 9 de janeiro de 1868. In: Epistolario di S. Giovanni Bosco,
per cura di D. Eugenio Ceria, 4v. Torino, SEI, 1955-1959, v. I, p. 572-573 (esta carta não consta naquela
data no Epistolario Motto).
7 O votum de Savini foi reproduzido em MB IX, p. 376-378.
65

4.4 Page 34

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motivações: “Sinto muito informá-lo que agora não podem ser aprovadas as Constituições do
seu Instituto, porque seria preciso modificá-las substancialmente em dois dos artigos princi-
pais. O primeiro é o das Cartas dimissórias para os clérigos, que devem ser promovidos tanto
às Ordens menores como às Ordens sagradas. O segundo diz respeito aos estudos dos mesmos
clérigos que o arcebispo exige sejam feitos nas escolas do seminário diocesano”.8
Estava claro. Dom Bosco desejava duas coisas incompatíveis entre si: a aprovação romana da
Congregação e a manutenção do próprio sistema de formação eclesiástica. O obstáculo parecia
intransponível.
Mas sua manobra teria sucesso no final. Conseguiu alguma nova recomendação episcopal
e contornou os obstáculos encaminhando-se sistematicamente à autoridade superior. No dia
15 de janeiro de 1869, Dom Bosco foi a Roma decidido a vencê-la. Vai ficar lá por um mês
e meio, assediando os responsáveis. Já no dia 19, o papa o recebia em audiência. Era a fase
preliminar do assalto. Começou depois a explicar às autoridades seu método de formação dos
jovens religiosos: aceitação, anos de prova, estilo de formação dos aspirantes (Dom Bosco igno-
rava a palavra noviciado), estudos, formação apostólica prática. “O Santo Padre – dirá em seu
discurso aos salesianos no dia 7 de março seguinte – era favorável à aprovação, mas não poderia
concluir nada sozinho”. Por ocasião de uma nova audiência, no dia 23 de janeiro, ele havia
somente observado que as cartas dimissórias dos bispos não eram indispensáveis para os jovens
que haviam entrado no Oratório antes dos 14 anos. De alguma forma, no decorrer das sema-
nas, as coisas caminharam no silêncio. Em fevereiro, Dom Bosco teve ainda dois longos encon-
tros com o papa. Durante o segundo encontro, entendeu que a Congregação dos Bispos e dos
Regulares finalmente aprovava a Sociedade de São Francisco de Sales. O decreto de aprovação
traz a data de 1º de março de 1869. Nele se concede ao superior a faculdade, por um período de
dez anos, de conceder cartas dimissórias aos jovens que entraram em seu oratório antes dos 14
anos completos.9 Dom Bosco percebeu que havia finalmente superado a segunda etapa. Depois
de quatro dias do decreto, voltou a Turim com a certeza de uma vitória completa.
No entanto, logo compreenderia que sua Regra não tinha sido aprovada por completo e
que não seria suficiente apresentar as cartas dimissórias a um bispo para obter a ordenação de
um clérigo.
Padre Rua, mestre dos noviços sem título
Fortalecido pelo reconhecimento obtido em Roma, Dom Bosco quis seguir com atenção
o progresso de sua Sociedade. No dia 15 de agosto de 1869, escreveu aos diretores das casas
uma carta circular importante sobre seus deveres para com os irmãos: duas conferências por
mês, rendiconto mensal obrigatório para todos.10 As estatísticas declararão, para o ano 1869, 62
professos e 31 inscritos (noviços), subdivididos em 4 obras salesianas. Naquele ano, padre Rua
8 Carta de S. Svegliati a Dom Bosco, Roma 2 de outubro de 1868. MB IX, p. 378-379.
9 Texto publicado em MB IX, p. 558-561.
10 Epistolario III, p. 124-127.
66
recebeu a responsabilidade direta pela formação desses inscritos e se tornou assim mestre de
noviços sem ter o título, para evitar que a Sociedade parecesse com uma Congregação religiosa
tradicional. A bem da verdade, sua responsabilidade se estendia a todas as etapas do período de
prova (palavra usada por Dom Bosco) dos candidatos à vida salesiana, do postulado à ordena-
ção. No entanto, a distinção entre as várias etapas era muito imprecisa em Valdocco.
Depois de cinco anos, quando o cargo do padre Rua seria passado ao padre Júlio Barberis,
num documento preparado pelas autoridades romanas, Dom Bosco esclarecia as modalidades
dessa formação, usando o estilo para ele natural de pergunta e resposta.11 Seu texto reflete em
grandes linhas o encargo atribuído ao padre Rua nos anos anteriores: seleção de candidatos,
regulamentação de sua vida religiosa através de determinadas atividades, ensino espiritual mi-
nistrado a eles, formação prática para sua vida futura.
Segundo Dom Bosco, o “noviciado”, se devesse ser chamado assim, não era um absoluto:
“Temos o noviciado, mas as leis públicas, os lugares onde vivemos não permitem ter uma casa
separada, que sirva exclusivamente para esse objetivo. O noviciado, que nós chamamos tempo
de prova, se faz num espaço da casa principal que está em Turim”. Esse noviciado não podia ser
de tipo monástico. Escrevia assim Dom Bosco:
Na aceitação dos sócios se cuida de modo especial da virtude dos mesmos, porque nossa Congrega-
ção não é destinada a acolher convertidos, que desejem se dedicar à oração, à penitência, ao retiro,
mas a acolher indivíduos de vida ordinária, fundados na virtude e na religião, os quais querem se
dedicar ao bem da juventude, sobretudo das crianças mais pobres e em estado de perigo. Por essa
razão, até agora aceitamos somente jovens conhecidos há vários anos, e vividos em nossas casas com
vida exemplar sob todos os pontos de vista.12
Os jovens eram formados na ação, também durante o “noviciado”. Assim queria Dom Bos-
co, que em 1874 explicava a seus correspondentes romanos:
Nesse tempo, os noviços se ocupam também em dar aulas de catecismo sempre que for preciso, em
assistir as crianças do estabelecimento, e, às vezes, também em dar alguma aula diurna ou noturna,
para preparar os mais ignOrãtes para a crisma, para a comunhão, para servir à santa missa e simi-
lares. Nisto consiste a parte mais importante da prova. Quem não tivesse aptidão para esse gênero
de ocupações, não seria aceito na Congregação.
Esse era o programa ideal, certamente. Mas como se agia na realidade e quais eram os re-
sultados? Como se desenvolvia a vida cotidiana do padre Rua e a de seus inscritos entre 1869
e 1874? Dissemos que o noviciado enquanto tal não existia. Por outro lado, oficialmente, não
existia nenhuma congregação religiosa em Valdocco. Simplesmente de vez em quando alguém
se decidia a ficar com Dom Bosco. E quando um rapaz lhe confiava sua intenção Dom Bosco
o mandava ao padre Rua.
11 Cf. o fascículo de 20 páginas Cenno istorico sulla Congregazione di S. Francesco di Sales e relativi schiarimenti.
Roma, Tipografia Poliglotta di Propaganda, 1874 (reproduzido parcialmente em MB IX, p. 507-510).
12 Cenno istorico, p. 10-11.
67

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Dom Bosco certamente havia forçado a realidade dos fatos quando em sua nota acenou a
práticas de piedade especiais para os “noviços”. Escrevia:
Toda manhã, oração vocal, meditação, terça parte do rosário, e várias vezes durante a semana fa-
zem a santa comunhão. Durante o dia fazem a leitura espiritual, visita ao Santíssimo Sacramento
com leitura de matéria ascética, exame de consciência e comunhão espiritual. Em toda tarde do
ano, na hora estabelecida, se reúnem na Igreja, cantam uma loa sacra, depois se lê a vida do santo
daquele dia; e, depois do canto das ladainhas lauretanas, recebem a bênção com o Santíssimo
Sacramento!13
Em Turim, estas práticas correspondiam na realidade às dos próprios alunos.
Padre Rua, regularmente, toda quinta-feira, fazia uma conferência espiritual a seus inscritos,
como garante a carta de Dom Bosco. “Toda semana, o mestre dos que estão no período de
provas faz-lhes uma conferência moral sobre as virtudes que devem ser praticadas e sobre os
defeitos que devem ser evitados, tomando, na maioria das vezes, como assunto algum artigo
das Constituições”.14
Numa ata do Capítulo presidido pelo padre Rua no dia 8 de novembro de 1867, encontra-
mos escrito: “Dão-se as notas de aplicação e de comportamento aos clérigos como aos outros
estudantes”. De fato, a partir daquele momento serão feitas reuniões regulares mensais dedica-
das às notas dos clérigos, como se pode ver nas atas do padre Rua. Faltam-nos os registros que
contêm essas notas ou juízos. Todavia, um trecho do parágrafo sobre o “Registro do comporta-
mento dos clérigos e dos coadjutores”, contido nas “Normas [do padre Rua] sobre o conteúdo
dos registros” para as casas salesianas, nos informa sobre o objeto de tais juízos. Avaliava-se
a diligência e a piedade do interessado: “Sob o nome de diligência se entende a observância
das Regras gerais da casa e o cumprimento dos deveres da própria ocupação; sob o nome de
piedade se entende o comportamento religioso, isto é, frequência aos santos Sacramentos, as-
sistência às funções sagradas, atitude na igreja etc.”. Em duas sessões desse gênero, o Capítulo
julga necessário incrementar a assistência dos clérigos na Igreja, no dormitório, no estudo e
em outros lugares!15 O “mestre” dos que estão sob prova se entretinha pessoalmente com cada
um deles, normalmente uma ou duas vezes por mês. Os probandi do Oratório eram, portanto,
bem seguidos.
“Tornava-se noviço sem sabê-lo [...]. O noviciado salesiano apresentava naqueles anos um
aspecto muito curioso – concluía um pouco perplexo, mas como sempre benévolo, Agostino
Auffray. – Havia o essencial: a duração e a prova, mas nada mais”.16 Talvez. Mas não será da
mesma opinião dom Gastaldi, quando for eleito arcebispo de Turim, em 1871. Em suas car-
13 Cenno istorico sulla Congregazione di S. Francesco di Sales e relativi schiarimenti. Roma, Poliglotta, 1874,
p. 11-12.
14 Cenno istorico, p. 12.
15 P. Braido, “Don Michele Rua primo autodidata ‘Visitatore’ Salesiano”, RSS 9 (1990) 143. Os clérigos
deviam ser assistidos na igreja, no dormitório, no estudo e em todo lugar, segundo o que diz o padre Rua
no fim das sessões sobre a avaliação dos clérigos, dias 14 e 21 de fevereiro de 1869 (FdR 2916E5).
16 A. Auffray, Le premier successeur de Don Bosco, Don Rua (1837-1910). Lyon-Paris, Vitte, 1932, p. 131-132.
68
tas oficiais à Congregação dos Bispos e dos Regulares, insistirá para que o noviciado de Dom
Bosco tomasse como modelo o da Companhia de Jesus. Não era nem mesmo a opinião dos
revisores das Constituições salesianas, que, em 1873-1874, obrigaram Dom Bosco a formular
um capítulo definitivo: “O mestre dos noviços e a sua direção”, texto que o fundador, particu-
larmente rebelde, se apressou em modificar na versão italiana de 1875, a única então entregue
a cada irmão, reduzida de dez artigos sobre o funcionamento do noviciado em relação à edição
latina oficial. Esse tempo de prova para Dom Bosco era análogo ao anterior do “aspirantado”.
Um tempo de ação e de apostolado. As Constituições deveriam declará-lo abertamente ou, pelo
menos, não o ocultar.
No final das contas, os resultados desse tipo de formação foram bons. Dom Bosco se viu no
dever de garanti-lo em 1874.
Os resultados morais até agora foram muito satisfatórios. Aqueles que superam essas provas se tor-
nam bons sócios, tomam gosto pelo trabalho, aversão ao ócio, e as ocupações se tornam para eles
como necessárias, se prestam de boa vontade, em todo momento, para aquilo que pode se tornar
para a maior glória de Deus. Aqueles, no entanto, que não têm aptidão para esse tipo de vidas
continuam livres para seguir diversamente a própria vocação.17
Apesar da falta de um noviciado ascético tradicional, a formação dos jovens salesianos sob
a guia do padre Rua, mestre dos noviços sem título, é amplamente garantida. O futuro da his-
tória salesiana o demonstrará. Mais tarde, todavia, graves desordens morais entre os membros
das primeiras expedições missionárias na América – sobretudo entre os coadjutores – levarão a
refletir sobre um método centrado mais na atividade que no ascetismo.18
17 Cenno istorico, p. 13.
18 Quem desejasse um exemplo personalizado poderia ler a relação do padre Giuseppe Vespignani. Un
anno alla scuola del B. Don Bosco. San Benigno Canavese, Scuola Tipografica Don Bosco, 1930 (do qual
Auffray traduziu um trecho no seu livro, p. 134-137).
69

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Capítulo 8
Padre Rua, coluna do Oratório e regra viva
Uma Sociedade em contínuo crescimento
Padre Rua, formador dos salesianos das origens era, como sabemos, prefeito geral da Socie-
dade. Representava Dom Bosco, venerado por todos, e se esforçava por manter a unidade de
uma Congregação que crescia no número e nas posses. Entre 1870 e 1873, às outras três obras
piemontesas abertas na década de 1860 se acrescentaram na Ligúria as casas de Alassio, Varazze
e Sampierdarena. Em 1871, Dom Bosco encarregou o padre Ângelo Sávio de construir em
Turim a Igreja de São João Evangelista. Em 1872, a fundação do Instituto das Filhas de Maria
Auxiliadora em Mornese, considerado por Dom Bosco como parte integrante da Congrega-
ção Salesiana, e a aceitação do colégio aristocrático de Valsalice aumentaram posteriormente a
consistência da obra.1
Enquanto em Roma, entre janeiro e fevereiro de 1869, Dom Bosco superava passo após
passo os obstáculos devidos a seu modo de conceber os processos formativos dos jovens candi-
datos e conseguia finalmente a aprovação da Sociedade Salesiana, o padre Rua em Turim fazia
os alunos rezarem intensamente por ele. Os jovens, estimulados por suas exortações, se subdi-
vidiram espontaneamente em grupos empenhando-se em escolher, cada um, um dia da semana
para comungar, de modo que em cada manhã um bom número se aproximava da sagrada mesa
segundo as intenções de Dom Bosco. Expressavam assim reconhecimento em relação a seu pai,
como diz a crônica do padre Rua.2 Essas orações foram ouvidas. No dia 26 de fevereiro, Dom
Bosco informou seu prefeito sobre o resultado positivo, pedindo-lhe que não espalhasse a notí-
cia por medo do clamor que pudesse despertar a fundação de uma nova congregação religiosa.
Padre Rua não comunicou senão a um pequeno grupo, com o qual preparou com cuidado o
retorno de Dom Bosco no dia 5 de março.
A banda musical saudou Dom Bosco na entrada do instituto. Para acolhê-lo, de lá até aos
pórticos, através do pátio do Oratório, tinham sido erguidas duas fileiras de postes, aos quais
eram presos alternadamente globos de cristal iluminados e tochas com banha. Os jovens for-
mavam duas alas, os aprendizes de um lado, os estudantes do outro. Dom Bosco, precedido
1 Aqui me inspiro diretamente em Ceria, Vita, p. 73-84, com o risco de esvair e talvez contradizer os
apêndices, pois faço também uso das atas do Capítulo da casa.
2 P. Braido, “Don Michele Rua...”, p. 355.
70
pela banda, avançou em meio às aclamações de todos os seus jovens. Subiu ao primeiro andar
da casa e apareceu iluminado pelas luzes do pátio. O concerto continuou em meio ao extra-
ordinário entusiasmo geral. Padre Rua estava satisfeito. Sua crônica descreve com detalhes a
manifestação e conclui assim: “Foi um interminável suceder-se de gritos de alegria”.3
A aprovação da Sociedade impunha que se respeitassem as Constituições, que Dom Bosco
se esforçava por fazer reconhecer pelas autoridades eclesiásticas. Explicou, então, numa confe-
rência: “Todo o mundo nos observa e a Igreja tem o direito à nossa obra. É preciso, portanto,
que de agora em diante toda parte de nosso regulamento seja executada ao pé da letra”. Alguns
dias mais tarde insistia: “Cuidemos de nos tornar justamente dignos da fundação da Sociedade
de São Francisco de Sales, a fim de que aqueles que lerem nossa história possam encontrar
em nós muitos modelos e que não tenham, ao contrário, de exclamar: Que raça de fundadores
eram aqueles!”. Uma de suas cartas de Roma para o padre Rua recordava a necessidade da
obediência.4 Era preciso agir de modo a enraizar os costumes religiosos. O fato de serem poucos
facilitava as coisas.
Prefeito exigente
Padre Rua, nessa empresa delicada, foi o braço direito de Dom Bosco. Humilde e generoso,
nunca recuava diante do cansaço e das dificuldades quando se tratava de responder às intenções
do mestre. Sentinela vigilante, prestava atenção a toda irregularidade. Calmo e paciente, não
tinha medo de insistir quando descobria alguma infração aos regulamentos estabelecidos.
Frequentemente, não era respeitado o silêncio sagrado depois das orações da noite. Obrigou-
-se – como sabemos – a fazer, tarde da noite, o giro pela casa para remediar essa irregularidade
com sua simples presença. Outra questão que tomou a peito foi a prática da pobreza religiosa.
Padre Rua se empenhava em fazê-la observar escrupulosamente. Quando dava um dinheiro
qualquer a um irmão, pretendia que este último prestasse conta dele até ao último centavo.
Havia casos isolados que não fugiam ao seu controle. A intervenção podia ser difícil. Pode-se
imaginar como pudesse e devesse reagir à carta de Dom Bosco no dia 21 de abril de 1869,
que lhe ordenava: “Diga ao padre Chiapale que no domingo passado o mandei procurar e não
me foi possível encontrá-lo. Você lhe dirá que as Regras não permitem ir aonde se quer, sem
licença, e que me parece tempo de terminar com isso”. Dom Bosco lhe havia ensinado que a
observância das Regras era a condição sine qua non para que a Sociedade tivesse um futuro.
O que não teria feito para esconjurar o perigo oposto!
Contrariamente a quanto podemos imaginar, seus chamados à ordem não o tornavam
odioso. Era exigente sim, mas não pedante nem inoportuno. Demonstrava rara habilidade
na correção. Sabia esperar o momento certo, e quando duas palavras eram suficientes não
dizia três. Adaptava suas intervenções aos diversos temperamentos. Nunca perdia a calma, não
por cálculo, mas por simples bondade, aquela bondade que lhe impedia humilhar o culpado.
3 Segundo P. Braido, “Don Michele Rua...”, p. 355-356.
4 Carta de Dom Bosco a Miguel Rua, Roma, 31 de janeiro de 1869. In: Epistolario III, p. 46.
71

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Sua força na correção consistia em ser o primeiro no exemplo da observância. Todos podiam
testemunhá-lo, embora tivessem acabado de batizá-lo de “Regra viva”. Dom Bosco mesmo o
chamava assim quando, em sua ausência e nas conversas particulares, o indicava como modelo
de observância sobre esse ou aquele ponto particular.
Entre 1867 e 1872, padre Rua não se esqueceu de que, na qualidade de prefeito geral, era
também prefeito do Oratório. Esperavam-no a organização e a avaliação das grandes manifes-
tações religiosas (novena do Natal, Semana Santa, mês de Maria, 40 horas, exercícios espiri­
tuais, festa de Dom Bosco no dia 24 de junho, festas de Santa Cecília, da Imaculada Conceição
de Maria, de São Francisco de Sales, de São Luís Gonzaga e de Maria Auxiliadora). Suas instru-
ções a esse respeito se encontram nas atas das reuniões do Capítulo acontecidas sob sua presi-
dência.5 Os jovens eram, então, quase 900. Ele estabeleceu que os jovens estudantes entrassem
ordenadamente em suas salas, acompanhados pelos assistentes, e que os estudantes de filosofia
tivessem um assistente particular durante o tempo de estudo livre (reunião de 8 de novembro
de 1867). Exortou a manter os dormitórios em ordem e impedir o acesso neles durante o dia.
Os dormitórios deviam estar fechados às 8h30 (reunião de 16 de novembro de 1871).
O prefeito podia dizer-se quase satisfeito com os estudantes, talvez um pouco menos com
os aprendizes. Sua participação na Igreja deixava a desejar. “Que sejam subdivididos por dor-
mitórios com os seus assistentes; que cada um tenha o próprio lugar e um livro de devoção”,
prescrevia na reunião capitular de 27 de dezembro de 1867. Esses alunos não haviam ainda
adquirido uma disciplina precisa. Por exemplo, os aprendizes iam frequentemente à cidade
para comprar aquilo de que precisavam nas oficinas: padre Rua aboliu este costume, mas sem
grande sucesso. O horário era muito elástico. No dia 13 de março de 1870, o Capítulo decidiu
que um toque de campainha chamaria chefes e aprendizes. Os aprendizes faziam o recreio no
pátio dos estudantes: padre Rua estabeleceu uma separação rígida entre estudantes e aprendi-
zes, não sem dissabores, a julgar pelas repetidas observações do Capítulo. Foi decidido até que
se construísse um muro para respeitar essa separação.6 Os momentos destinados ao trabalho e
ao ensino não eram definidos formalmente. Padre Rua se empenhou a fim de que a formação
profissional procedesse por degraus e decidiu que os aprendizes recebessem em todos os dias
de trabalho um ensino teórico que os aperfeiçoaria no ofício e na cultura geral. Por exemplo,
no dia 9 de novembro de 1871, o padre Rua atribuiu as aulas para os cursos dos aprendizes.7
De vez em quando se fazia ver numa ou noutra oficina, observava os jovens, conversava com o
chefe da oficina, que às vezes era um indivíduo cheio de boa vontade, mas fraco de habilidade
técnica. As reuniões capitulares, que eram realizadas sob sua presidência, voltavam regularmen-
te ao “problema dos aprendizes” (como no dia 20 de março de 1873) e ao modo de “melhorar
a condição moral dos aprendizes” (reunião de 27 de julho de 1873). Graças a ele, aos poucos,
os cursos profissionais do Oratório melhoraram sensivelmente e adquiriram prestígio.
5 Recordemos que as Deliberações capitulares, escritas pessoalmente pelo padre Rua, se encontram em FdR
2916DI-2919E9.
6 Ata em FdR 2917C1-3.
7 Ata em FdR 291B12.
72
Padre Rua e seu Capítulo se interessavam também pela roupa de trabalho dos jovens, pela
sua limpeza, pela lavagem e pela distribuição da roupa de cama, pela higiene dos dormitórios.
Pudemos notar como, em 1870, no momento da transferência do colégio de Mirabello para
Borgo San Martino, Giovanna Maria Rua fosse com seu filho a Valdocco e se ocupasse desse
tipo de problemas. Muitos jovens se vestiam como podiam. Certo número deles, muito pobres,
dependia totalmente do instituto. Padre Rua fez de modo que todos pudessem ter uma roupa
decorosa aos domingos e quando saíam. Preocupava-se que, em toda semana, nos dormitórios
se procedesse à inspeção dos enxovais, para fazer consertar roupas e sapatos, quando preciso.
Queria que se observasse cuidadosamente o regulamento da casa. Esse regulamento Dom
Bosco o havia escrito em 1852. Depois de um período de experimentação, o havia retomado
em 1854 e fez entrar em vigor durante o ano escolar de 1854-1855. Não foi impresso antes de
1877, mas, ao que parece, ele o fazia ler solenemente em público no início de cada ano escolar
e obrigava que, em todo domingo, fosse comentado um capítulo para os alunos. Era somente
o início. Mas quanto o regulamento era realmente conhecido? O historiador (penso aqui no
padre Ceria) não devia causar ilusões. Em todo caso, a ata da reunião capitular do dia 22 de
novembro de 1867 estabelecia: “Para que o Regulamento seja conhecido por cada um [dos
membros do Capítulo!], fica decidido que seja lida uma passagem dele em cada sessão”. E a
reunião capitular do dia 8 de dezembro de 1872 instituía “uma conferência para os chefes de
repartição e para os assistentes sobre o Regulamento”. Padre Rua, que se formara na escola dos
Irmãos, via na observância precisa das Regras a melhor garantia do proveito moral e escolar dos
rapazes. De resto, Dom Bosco o obrigava particularmente, e toda manifestação da vontade de
Dom Bosco constituía para o padre Rua um imperativo categórico.
Tudo isso o obrigava a fazer sentir frequentemente o peso de sua autoridade, coisa que,
apesar de sua delicadeza, acabava por torná-lo mais temido que amado. As cabeças melhores e
mais respeitáveis da casa, especialmente o futuro cardeal Cagliero, preocupavam-se seriamente
com isso, a ponto de confidenciar suas preocupações a Dom Bosco. João Cagliero lhe dissera
mais ou menos assim:
Caro Dom Bosco, que Deus o conserve ainda por muito tempo, mas é certo que no dia em que se
for para o paraíso sua herança passará para o padre Rua. Todos o dizem e ele também disse. Mas
nem todos estão de acordo em pensar que terá como o senhor a confiança de todos. A vida de cen-
sor que leva aqui no Oratório para manter a disciplina o torna pouco simpático a muitos.
Dom Bosco admitiu que a observação fazia sentido. Em 1872, nomeou outro prefeito para
o Oratório na pessoa do padre Francisco Provera e conferiu ao padre Rua o título de diretor,
mas ele, por respeito a Dom Bosco, verdadeiro diretor da obra, modificou seu título para vice-
diretor.
Esse vice-diretor tinha as costas largas. Não recusou duas novas ocupações. Precisou assumir
para si a pregação do domingo pela manhã aos fiéis e aos alunos na igreja de Maria Auxiliado-
ra. Até àquele momento essa obrigação era reservada a Dom Bosco. Começou a comentar a
História Sagrada, da qual já tinha prontos os esquemas nos seus cadernos. Os ouvintes não es-
quecerão suas instruções, sempre claras e ordenadas. Às narrações acrescentava uma moral, re-
flexões ascéticas e considerações religiosas, como testemunham seus apontamentos. A segunda
ocupação consistia no ensino da Sagrada Escritura aos clérigos da casa, a partir do dia em que
73

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foi instituído em Valdocco o curso teológico interno. No manual, a matéria parece um tanto
árida, mas segundo afirmam alguns ex-alunos sua facilidade de linguagem e sua naturalidade
tornavam tudo mais claro e fascinante.
Cabia a ele também a organização geral dos cursos de teologia. A ata da reunião capitular
do dia 10 de novembro de 1872 nos informa sobre o horário semanal. Pela manhã, havia os
cursos de teologia dogmática na segunda e na sexta-feira (professor: o teólogo Molinari); de
teologia moral, terça, quarta e sábado (professor: padre Cagliero). À tarde havia aulas de Sagra-
da Escritura na segunda e na sexta-feira (professor: padre Rua); de História da Igreja na terça
e no sábado (professor: padre Barberis); na quarta-feira se estudava o Novo Testamento (com
o padre Rua). Na quinta-feira, dia de folga, havia somente uma aula de liturgia, ou sagradas
cerimônias, às 10 horas para filósofos e teólogos (professor: padre Cibrario). Devia depois se
ocupar das ordenações dos clérigos, como testemunham suas correspondências do período de
Turim.
Além de tudo isso, quem poderia acreditar – pergunta o padre Ceria – que o padre Rua se
tivesse obrigado a preparar exames públicos? E foi assim. Em 1872, ele figura entre os candi-
datos à habilitação para o ensino no ginásio superior. Com o multiplicar-se dos colégios, era
preciso ter títulos reconhecidos. Padre Rua procurou conseguir um. Tinha já tentado em 1866,
quando conseguira passar no exame escrito, mas foi reprovado no exame oral por professores
universitários mal dispostos em relação aos estudantes que não tinham frequentado seus cursos.
Dessa vez, no dia 1° de outubro de 1872, mereceu o diploma com louvor.8 Além disso (não se
sabe quem o introduziu), um documento original informa que, no dia 19 de outubro de 1873,
Miguel Rua começou a fazer parte da academia literária da Arcádia com o pseudônimo de
Tindaro Stinfatico.9 Segundo o padre Lemoyne, o abade Peyron, famoso catedrático de Turim,
teria afirmado que com 6 homens do porte de Rua poder-se-ia abrir uma universidade.10
Sacerdote devoto
Livre do cargo de prefeito da casa do Oratório, o padre Rua pôde se dedicar mais a seu
cargo de prefeito geral. Já havia se envolvido na organização dos colégios que estavam sendo
abertos, cujos programas, a pedido de Dom Bosco, fizera imprimir e distribuir. Em outubro de
1872, Dom Bosco lhe confiou também o encargo de atribuir o pessoal para os vários colégios.
Era um empenho delicado. “Faça o que você puder para que as coisas aconteçam sponte não
coacte [espontaneamente e não à força]”, lhe recomendava numa carta.11 Era preciso, portanto,
conhecer bem os homens, tratá-los o menos bruscamente possível, medir corretamente suas
capacidades...
8 Certificado em FdR 2665B5.
9 Documento em FdR 2774A7.
10 MB VIII, p. 252.
11 Carta de Dom Bosco a Miguel Rua, Peveragno, 16 de outubro de 1872. In: Epistolario, III, p. 475-477.
74
Uma piedade muito viva alimentava seu espírito, o tornava forte e perseverante no sacrifício.
Um fato de 1873 no-lo revela claramente. O padre Rua não se deixava distrair na oração. Um
monge de Lérins, que naquele ano serviu como sacristão na igreja de Maria Auxiliadora, dei-
xou-nos um testemunho detalhado sobre isso. Um dia, chegou ao Oratório um príncipe com
seu séquito. Na ausência de Dom Bosco, cabia ao padre Rua recebê-lo. Ele, naquele momento,
estava celebrando a missa. A visita, que fora informada, e um seu acompanhante esperaram na
sacristia. Depois de vinte minutos o padre Rua voltou do altar. Correram para lhe dizer que
se apressasse. Mas ele, como se não houvesse ouvido, tirou bem devagar os paramentos sacer-
dotais. Quando voltou, o príncipe fez que ia se aproximar. Mas o padre Rua acenou para que
esperasse e se dirigiu ao genuflexório. Ocultou o rosto entre as mãos e permaneceu assim por
vinte minutos, absorto em oração. No fim, levantou-se e, com um sorriso angélico, os braços
abertos, foi na direção daqueles senhores, desculpando-se por não ter podido colocar-se logo à
sua disposição. Eles compreenderam, mostraram-se muito corteses e, em seguida, encontraram
modo de dizer como ficaram edificados com sua longa ação de graças.12
Ninguém mais que Dom Bosco podia dizer quanto o padre Rua progredia no caminho da
perfeição evangélica. O mesmo monge de Lérins, em setembro de 1874, se encontrava em
Lanzo, por ocasião dos exercícios espirituais dos salesianos, quando ouviu Dom Bosco afirmar:
“Se eu quisesse colocar um dedo sobre o padre Rua, num ponto onde não visse nele a virtude
em grau perfeito, não poderia fazê-lo, porque não encontraria aquele ponto”.13
Era o ano em que Roma, depois de uma longa e dura batalha, tinha finalmente emanado
(13 de abril) o decreto de aprovação das Constituições. Quantas orações o padre Rua havia ele-
vado em Turim para obter esse resultado! Dom Bosco sabia. No dia 14 de abril, ele enviou um
bilhete para que o lesse publicamente durante a boa-noite. Começava assim: “Vosso pai, vosso
irmão, o amigo de vossa alma, depois de três meses e meio de ausência parte hoje de Roma,
passa a noite e a quarta-feira em Firenze e espera estar com vocês na quinta-feira às 8 horas da
manhã. Não devem acontecer nem festas, nem música, nem recepção”. De fato, o Oratório
estava de luto pelo recente falecimento do padre Francisco Provera, sucessor do padre Rua na
prefeitura da casa.14
12 Carta ao padre Albera, Lérins, outubro de 1914. In: FdR 2835D3-6; cf. Ceria, Vita, p. 83.
13 Mesma carta; cf. Ceria, Vita, p. 84.
14 Carta de Dom Bosco a M. Rua, Roma, 14 de abril de 1874. In: Epistolario IV, p. 277-278.
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Capítulo 9
Padre Rua, visitador das casas filiadas
Padre Rua, “visitador” das casas salesianas
Estamos nos anos 1870-1875. O prefeito geral se sente responsável pela observância reli-
giosa, não somente do Oratório, onde mora, mas também dos outros centros da Congregação
nascente, das casas de Borgo San Martino, Lanzo, Sampierdarena, Varazze, Alassio e Turim-
-Valsalice. Quer ser continuamente informado sobre o andamento desses institutos para exer-
cer corretamente um dever que ele julga indispensável para o bom funcionamento de todo o
conjunto. Por isso, são necessárias inspeções sistemáticas. Ele as fará acompanhando-as com
conselhos e decisões disciplinares.
Dom Bosco visitava frequentemente as casas, mas sempre com atitude paterna e necessaria-
mente benévola. Padre Rua, de sua parte, as visitava como sábio administrador de obras edu-
cativas, preocupado tanto com as condições materiais como com as condições morais de cada
uma delas. Inspecionava instituições que, por vocação, deviam se ater às indicações dadas por
Dom Bosco nas Constituições, no Regulamento do Oratório e nas orientações que lhes deixara
quando tinha sido enviado como diretor para Mirabello. Substancialmente, devia verificar a
fidelidade ao espírito que Dom Bosco infundia na Congregação nascente.
Dispôs-se a desempenhar esse encargo de inspetor a partir de 1874, quando Dom Bosco
obteve a aprovação definitiva do texto constitucional.1 Entre 1874 e 1876, registrou sistema-
ticamente suas observações num caderninho, que foi conservado.2 Padre Rua, na qualidade de
inspetor, não parecia estar muito preocupado com a suscetibilidade dos diretores, primeiros
interessados em suas observações. Não era sutil quando fosse necessário expressar reprovação
ou denunciar negligências e abusos.
O programa do padre Rua “visitador”
Na qualidade de prefeito ele devia verificar se eram aplicadas nas obras as decisões tomadas
nas reuniões anuais dos diretores, que aconteciam em Valdocco por ocasião da festa de São
1 Este capítulo é devedor do artigo de P. Braido, “Don Michele Rua...”, p. 97-180.
2 Esse caderninho foi publicado em P. Braido, “Don Michele Rua...”, p. 136-170. O leitor curioso poderá
consultá-lo também em FdR 2955D2-2957A9.
76
Francisco de Sales. Suas observações eram endereçadas, em primeiro lugar, aos diretores e, num
segundo tempo, por sua mediação, ao pessoal salesiano.
Construíra para si um programa de visita escrito várias vezes num de seus caderninhos.
A inspeção dizia respeito, antes de tudo, aos locais, depois às pessoas, salesianos e alunos, e,
finalmente, ao ambiente em geral. Controlava cuidadosamente os registros da administração.3
Inspecionava os ambientes começando pela igreja e pela sacristia, com a verificação dos altares,
dos paramentos sagrados, das celebrações semanais, dos domingos e das festas religiosas.
Depois, passava para os quartos dos superiores e para os dormitórios dos jovens: havia
alguma coisa muito elegante nos quartos dos irmãos? Os dormitórios estavam limpos e sufi-
cientemente arejados? Os crucifixos, as imagens ou as estátuas de Maria ocupavam um lugar
digno? As celas dos assistentes nos dormitórios eram suficientemente pequenas a ponto de tirar
a tentação de transformá-las em escritórios? Depois, padre Rua descia ao andar térreo, aos cor-
redores, às escadas e aos pórticos, e verificava sistematicamente sua limpeza. Se tivesse ocasião
de entrar nas salas de aula, interrogava os alunos e controlava seus cadernos.
Os irmãos eram o objeto principal de todas as suas atenções. Verificava que fossem garanti-
das as conferências espirituais para os salesianos e para os aspirantes da casa. Com efeito, Dom
Bosco tinha determinado na circular do dia 15 de agosto de 1869: “Em todo mês serão feitas
duas Conferências: uma sobre a leitura e a explicação simples das Regras da Congregação.
A outra conferência, sobre matéria moral, mas de modo prático e apropriado às pessoas às quais
se fala”.
Na mesma circular se dizia: “Todo sócio, uma vez por mês, se apresentará ao diretor daquela
casa à qual pertence e lhe exporá tudo o que julgar vantajoso para o bem de sua alma, e se tiver
alguma dúvida sobre a observância das Regras, expô-la-á pedindo aqueles conselhos que lhe
pareçam mais oportunos para seu aproveitamento espiritual e temporal”. O inspetor devia,
portanto, verificar a regularidade dos rendiconti mensais. Depois, avaliava a vida religiosa dos
irmãos, em matéria de modéstia, de pobreza e de obediência. Era preciso muito rigor em tema
de castidade. “A coisa mais importante em nossas casas é promover, obter e garantir a morali-
dade, quer nos sócios, quer nos jovens. Garantido isto, tudo está garantido, faltando isto, falta
tudo”, lia-se numa deliberação do Capítulo dos diretores de 1875-1876.
Além disso, era preciso verificar se os cargos de prefeito e de catequista estavam sendo exer-
cidos corretamente como os descrevia a regra. Deve-se recordar que, segundo o regulamento
do Oratório de Valdocco, o catequista cuidava do bem espiritual dos jovens da casa, ocupava-se
dos doentes, formava e promovia companhias (de São Luís Gonzaga, da Imaculada Conceição
e do Santíssimo Sacramento).
3 Retoma-se aqui o título do caderninho do padre Rua: Cose da esaminare, publicado em P. Braido, “Don
Michele Rua...”, p. 136.
77

4.10 Page 40

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Padre Rua sabia que os jovens irmãos constituíam uma parte importante do pessoal das
casas visitadas. Eram em número suficiente? Tinham aulas regulares de filosofia e de teologia?
Recebiam boa formação para o serviço litúrgico, com lições adequadas? O que dizer de seu
comportamento quando exerciam as funções de assistente ou de professor? Participavam das
meditações e das leituras espirituais comunitárias?
A pesquisa devia dizer respeito também aos alunos. Qual era seu estado de saúde? Como
era conservada a enfermaria? No que dizia respeito à sua vida religiosa, havia a preocupação
de ensinar as orações e de iniciá-los no serviço do altar? Como eram assistidos na igreja, no
estudo, nas salas de aula, durante os recreios, nos dormitórios e nos passeios? O que dizer de sua
limpeza corporal e de sua saúde espiritual? Era convidado regularmente um confessor estranho
à casa? Existiam as companhias religiosas? O pequeno clero estava instituído? Os jovens estu-
davam com empenho? Como eram suas relações com os professores e assistentes? Havia alunos
externos? A casa tinha um “oratório festivo”? O padre Rua se interessava também pelo futuro
dos jovens. Havia alunos que pensavam em entrar para o clero? Os clérigos se preparavam para
prestar os exames de professor?
Como lhe havia sugerido Dom Bosco quando o mandara como diretor para Mirabello, o
padre Rua se interessava também pelas relações entre o colégio e o ambiente circunstante, o
pároco, a administração municipal etc.
Chegava finalmente o âmbito econômico. Como eram tratados os superiores e os alunos à
mesa? A direção se aventurara em empresas onerosas de construção e de manutenção? Quanto
se gastava em livros e em viagens? O ano anterior tinha sido fechado em crédito ou em débito?
A inspeção era feita com base nos registros que a direção da obra era convidada a apresentar.
Sua lista testemunha o espírito metódico e meticuloso do inspetor padre Rua: o registro das
missas, o do comportamento dos clérigos e dos coadjutores, o registro dos postulantes à vida sa-
lesiana, o dos alunos e dos internos, os registros dos depósitos em dinheiro dos jovens, das ofer-
tas, da administração, as listas dos enxovais entregues em sua entrada pelos coadjutores, as listas
dos diversos fornecedores, sapateiro, alfaiate, leiteiro, padeiro, açougueiro, fornecedor do arma-
zém, farmacêutico etc. Finalmente, registro das contas correntes. O caderninho mostra como
o padre Rua se preocupava em multiplicar os conselhos sobre o conteúdo dos vários registros.
As inspeções do padre Rua em 1874 e em 1875
As casas visitadas pelo padre Rua em 1874 e em 1875 foram Borgo San Martino, Lanzo,
Sampierdarena, Varazze, Alassio e Turim-Valsalice. Aqui o vemos aplicar seu programa de visita
detalhado.
Padre Rua, visitador em Borgo San Martino e Lanzo Torinese
No dia 1° de março de 1874, enquanto em Roma Dom Bosco estava ainda preocupa-
do com obter a aprovação total do texto constitucional, o padre Rua inspecionou rapida-
78
mente a casa de Borgo San Martino. O pequeno seminário ou colégio São Carlos de Mi-
rabello, que o tivera como primeiro diretor, tinha sido transferido para essa localidade
bem servida pela ferrovia, numa esplêndida vila inserida numa fazenda de 6 hectares, que
Dom Bosco adquirira do marquês Scarampi di Pruney. No início, nele se alojavam 100 in-
ternos, número que aumentou entre 1874 e 1877, passando para 160, depois para 200.
O padre João Bonetti, salesiano da primeira hora, muito estimado por Dom Bosco, dirigia
a obra. Depois da visita, o padre Rua se declarou discretamente satisfeito com seu andamento.
“As coisas são conduzidas bastante bem”, escreveu no caderninho. Todavia, considerou oportu-
no deixar para o diretor uma dúzia de recomendações, devidamente numeradas, que merecem
ser citadas ao pé da letra para nos familiarizarmos com seu estilo de inspetor:
1) Evitar as manchas de cera no altar quando se acendem as velas com a benzina. 2) Co-
locar um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora nas salas de aulas e nos dormitórios,
onde faltarem. 3) Adequar as celas dos assistentes nos dormitórios conforme o modelo do
Oratório. 4) Eliminar dos corredores os maus cheiros provenientes dos serviços higiênicos
que estão perto da sala de retórica. 5) Garantir regularmente as conferências mensais aos ir-
mãos e aspirantes e fazer de modo que se apresentem ao rendiconto todo mês. 6) Incenti-
var mais o estudo da teologia. 7) Garantir a regularidade do curso de liturgia para os cléri-
gos e para os jovens. 8) Instituir a Companhia da Imaculada. 9) Dar as notas mensais para
clérigos e coadjutores. 10) Manter atualizado o registro dos postulantes e o das despesas.
11) Confiar ao clérigo Ghione o encargo de catequista, exonerando-o, se possível, do en-
sino, até que possa ocupar-se da Companhia de São Luís, da do Santíssimo Sacramen-
to e do Pequeno Clero. 12) Alguns irmãos foram exortados a preparar os exames civis.
Padre Rua voltou a inspecionar o colégio de Borgo San Martino em abril de 1875 e pas-
sou nele dois dias inteiros. Diz-se satisfeito do ponto de vista material e moral, com alguma
reserva. Seria oportuno que os externos pudessem assistir diariamente à missa. Seria preciso
colocar em todas as classes e em todos os dormitórios os crucifixos bem visíveis. A limpeza de
algumas escadas e despensas deixava a desejar. O encargo de catequista devia ser exercido um
pouco melhor. Por isso, o interessado era convidado a se fazer ajudar pelo conselheiro padre
Chicco. Devia-se criar a Companhia da Imaculada, pelo menos entre os clérigos. O prefeito
era convidado a se fazer ajudar por um clérigo para a correspondência e a gestão do registro da
contabilidade. O diretor, ainda, devia vigiar com mais cuidado a regularidade dos rendiconti
dos irmãos e garantir que fossem dadas as notas de comportamento a clérigos e coadjutores.
O inspetor pediu, além disso, que os teólogos aprendessem de memória alguns textos da Bíblia
e dos Padres da Igreja e que fossem envolvidos na solução das objeções às teses teológicas for-
muladas durante os cursos.
Em março de 1874, depois da inspeção de Borgo San Martino, padre Rua dedicou um dia
e meio à visita da casa de Lanzo. Era uma escola elementar e ginasial situada numa colina, a
35 quilômetros de Turim. Porque era internato, acolhia certo número de alunos internos. Em
1873, tinha sido construído um edifício de três andares. Assim, no ano escolar de 1874-1875 o
grupo dos internos havia superado o número de 160. Dirigia-o o padre João Batista Lemoyne,
salesiano genovês que veio com Dom Bosco quando já era sacerdote.
79

5 Pages 41-50

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5.1 Page 41

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A satisfação do inspetor não foi total. A limpeza da igreja deixava a desejar e o primeiro
dormitório estava em desordem. Além disso, faltavam crucifixos e imagens de Nossa Senhora
nas salas de aula, nos dormitórios e em outros ambientes. As celas dos assistentes eram muito
espaçosas. Como regra geral, todos os dormitórios deviam permanecer fechados quando neles
não se encontravam os jovens, assim também as salas de aula e as outras salas. Pátios, escadas
e corredores estavam pouco limpos e era preciso evitar jogar rejeitos no pátio pequeno. O di-
retor era convidado a cuidar com maior regularidade das conferências mensais e dos rendiconti
dos irmãos. Os sacerdotes não deviam ser dispensados da escola para aceitar empenhos de
ministério noutro lugar. O prefeito devia ocupar-se mais do pessoal do serviço para ajudá-lo a
cumprir os deveres do bom cristão. Os clérigos ficavam muito entre eles e pouco no meio dos
jovens. Além disso, não levavam a sério o estudo da teologia. Todo dia devia-se fazer uma visita
ao Santíssimo Sacramento, individual ou comunitária, com um pouco de leitura espiritual.
O comportamento dos alunos da segunda ginasial deixava a desejar. Era desejável maior lim-
peza nas roupas dos rapazes. O prefeito, padre Costamagna, que tinha a tarefa de acompanhar
seu comportamento, não devia se ausentar com muita frequência. Era preciso convidar os
jovens melhores a entrar na Companhia da Imaculada. Faltavam vários registros: o das notas
de comportamento, o dos clérigos e dos coadjutores, o livro das despesas, o livro dos diversos
fornecedores. Finalmente, o visitador ordenou que se demolisse a parreira no meio do jardim.
Como se vê, as ordens eram minuciosas e o tom categórico.
O inspetor padre Rua esteve novamente presente em Lanzo um ano depois, no dia 3 de
março de 1875. Passou lá dois dias e constatou com satisfação que, quanto à disciplina e à
piedade, o colégio funcionava melhor que no ano anterior. Apesar de tudo, elencou uma longa
série de observações para uso do diretor. Podemos imaginar sua mortificação ao lê-las. Antes de
tudo, interessou-se pela igreja e pela formação religiosa: as toalhas do altar não estavam limpas.
Era preciso garantir a missa ferial para os externos; devia-se organizar um curso de liturgia para
os clérigos e pensar na formação do pequeno clero; devia-se dar maior importância ao ensino
do catecismo no ginásio; era indispensável criar uma classe de canto gregoriano e envolver nela
o maior número de alunos, reservando para este objetivo meia hora ou 45 minutos depois do
jantar; deviam ser mais bem cuidadas as Companhias de São Luís e do Santíssimo Sacramento,
com pequenas conferências. Depois, o prefeito era convidado a ter maior cuidado do pessoal,
reuni-lo regularmente, explicar-lhe o regulamento da casa etc. Era preciso garantir as aulas de
filosofia ou de teologia para os clérigos, três ou pelo menos duas vezes na semana. Deviam ser
dadas as notas de comportamento todo mês para clérigos e coadjutores. Os professores eram
convidados a fazer a leitura espiritual orientados pelo padre Scappini, enquanto a meditação
matutina dos assistentes era confiada à responsabilidade do padre Scaravelli. Aqueles que não
podiam participar das práticas de piedade comunitárias eram obrigados a fazê-las em parti-
cular. Era preciso reduzir posteriormente o espaço das celas para conformá-las às dimensões
regulamentares. A leitura à mesa não era facultativa, portanto não podia ser dispensada com
muita facilidade.
Padre Rua terminava sua relação sobre Lanzo expondo certo número de inovações discipli-
nares, que pudera observar, sinal de melhor organização e de mais cuidadosa assistência dos
alunos.
80
Padre Rua visitador em Sampierdarena, Varazze, Alassio e Valsalice
Do Piemonte o visitador se deslocou pela Riviera Ligure para a visita de outras três obras.
No dia 7 de abril, iniciou uma visita de três dias à casa de Sampierdarena. Como a obra de
Borgo San Martino, o internato de Sampierdarena era fruto de uma transferência. Em 1872,
Dom Bosco tinha deixado uma casa muito pequena, alugada em Marassi, onde se hospedavam
uns 40 jovens aprendizes, e tinha deslocado a obra para Sampierdarena, na periferia de Gênova,
num antigo convento perto de uma igreja abandonada. Em outubro de 1875 mandou para
lá 50 jovens adultos, vocações maduras da obra de Maria Auxiliadora, havia pouco fundada.
A ampliação do edifício permitirá em 1877 hospedar cerca de 200 alunos, entre os quais 70 vo-
cações adultas. Aquela casa, com características semelhantes ao modelo de Turim, era confiada
à direção do padre Albera, discípulo predileto de Dom Bosco.
Padre Rua gostava muito da obra. Encontrou-a bem dirigida e não se queixou do número
insuficiente do pessoal, padres, clérigos e coadjutores. A prática dos sacramentos era ótima.
Os jovens se comportavam muito bem na igreja. Fez notar apenas algumas coisas: era preciso
maior limpeza nos dormitórios; faltavam sinais religiosos em alguns ambientes comuns, classes
e dormitórios; as conferências mensais e os rendiconti dos irmãos deveriam ter sido mais fre-
quentes; a cada semana devia haver um curso de cerimônias sagradas para os clérigos; alguns
alunos não tinham o uniforme da festa; durante a semana, a limpeza de suas roupas deixava
a desejar; era preciso fundar a Companhia de São Luís Gonzaga; finalmente, no escritório do
prefeito faltavam alguns registros. Era tudo.
No dia 22 de julho de 1875, o padre Rua estava em Varazze. O Colégio de Varazze, fun-
dado como ginásio em 1871, não podia acolher mais que 120, 130 internos. Alguns alunos
externos também frequentavam os cursos. Além disso, os salesianos tinham aberto na cidade
dois “Oratórios festivos”, dependentes do colégio, coisa que agradou muito ao padre Rua.
O diretor do colégio era o padre João Batista Francesia, um dos primeiríssimos discípulos de
Dom Bosco.
A visita se concluiu com algumas observações, negativas e positivas. As celas dos assistentes
nos dormitórios eram muito grandes: não devia haver nem mesas, nem estantes, mas somente
um cabide, uma cadeira e um baú, se não pudesse mesmo ser dispensado. Teria sido melhor
colocar as celas no meio das camas dos rapazes. Depois, era preciso fazer de modo que os assis-
tentes estudassem juntos, por exemplo na biblioteca, assim os dormitórios poderiam permane-
cer fechados durante o dia, segundo a regra. As aulas de teologia eram muito irregulares, como
também as de liturgia. Devia-se fundar a Companhia da Imaculada. Os coadjutores que com
a permissão de Dom Bosco faziam estudos particulares deviam ter mais tempo à disposição,
com a garantia de aulas mais regulares. Outras anotações diziam respeito à alimentação: em
linha geral, os cardápios da comunidade estavam conformes aos usos do Oratório de Turim:
distribuía-se muito café e a cafeteira era deixada à disposição do pessoal, o que devia ser evi-
tado. Padre Rua havia se entendido com o prefeito da casa, padre Fagnano, a fim de que todo
o pessoal tivesse a roupa de cama e banho marcada com o próprio nome, para uso pessoal
exclusivo. O registro das entradas e das saídas estava bem controlado, e permitia conhecer a
situação de caixa.
81

5.2 Page 42

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No dia 26 de julho de 1875, o padre Rua começou a visita do Colégio de Alassio. A obra
tinha sido fundada em 1870, de acordo com o município, colocada num antigo convento
franciscano. Era uma escola importante, com classes primárias muito qualificadas e todo o
curso ginasial e o liceu. Os internos no ano escolar 1875-1876 eram 160, em 1877 superarão
os 200. Entre internos e externos, no ano 1876-1877, a obra de Alassio tinha um total de 415
alunos. Era confiada à sábia direção de Francisco Cerruti, outro salesiano da primeira geração,
um dos mais instruídos.
A visita do padre Rua a Alassio foi rápida e sumária. As observações eram simples: era pre-
ciso fazer de modo que os alunos externos do domingo pudessem assistir às funções religiosas;
em algumas salas de aula faltavam imagens religiosas; algumas celas dos assistentes eram muito
grandes e estavam colocadas no meio das camas dos jovens; havia salas de aulas muito sujas;
se se instituíssem a meditação e a leitura espiritual comunitária, poder-se-ia saber identificar
melhor quem não tomava parte nelas; finalmente, era preciso insistir mais sobre o estudo da
teologia. No dia 11 de março de 1875, o padre Rua começou a visita da casa de Valsalice, na
colina de Turim. Em 1871, Dom Bosco, atendendo à insistência do arcebispo Gastaldi, mas
com sérias oposições por parte do Capítulo Superior, havia aceitado a direção dessa instituição
para aristocratas que se encontrava em sérias dificuldades econômicas. O pessoal de serviço
pesava muito no balanço. Em 1872-1873 havia somente 22 alunos. No momento da visita
do padre Rua, seu número tinha passado para 35. O padre Francisco Dalmazzo dirigia a obra,
ajudado por um grupo de colaboradores: prefeito, catequista e 3 conselheiros, mais 4 irmãos
coadjutores e clérigos.
A visita do padre Rua foi brevíssima: realizou-a em meio dia. Tudo estava em ordem exem-
plar: igreja, limpeza dos locais, salas de aula, corredores, escadas e pátio. Lamentou-se somente
da falta de um bom provedor e de alguns registros (o do comportamento dos clérigos e dos
coadjutores, o do pessoal e o resumo das despesas). Gostaria que no instituto se instituísse uma
companhia religiosa, por exemplo, a de São Luís ou a do Santíssimo Sacramento. Desejou
maior empenho no estudo por parte dos alunos. O ensino das cerimônias sagradas aos clérigos
deixava a desejar. Finalmente, fez pressão para que o pessoal de serviço de Valsalice fosse todo
salesiano.
A instituição do inspetor na Sociedade de São Francisco de Sales
As anotações deixadas mostram que o padre Rua era um inspetor meticuloso, pouco preocu-
pado com a suscetibilidade dos diretores, primeiros interessados em suas observações. Deixan-
do as casas, entregava-lhes uma carta escrita com a mesma tinta e com a mesma concisão das
observações contidas no caderninho pessoal. Os destinatários, provavelmente pouco lisonjea-
dos com o conteúdo, não fizeram delas relíquias. De fato, desapareceram. Só uma chegou até
nós. Seu estilo é lapidar. Datada de 10 de março de 1875, era endereçada ao diretor de Lanzo,
o padre Lemoyne. Em 14 pontos são retomadas as observações apontadas no caderninho.
A carta começa com “caro Diretor”, e termina com “O seu afeiçoadíssimo padre Rua, Prefeito
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da Congregação de São Francisco de Sales”.4 Ele age evidentemente na qualidade de prefeito
de disciplina. Na ocasião é um personagem temível. Apesar de sua grande bondade, impõe-se
pelo rigor, pela austeridade, pela memória infalível, pelo olhar penetrante e pelo cuidado do
detalhe.
Agindo assim, não ganhava muito em popularidade, mas não se preocupava com isso. Sua
tarefa era dar forma às casas da Sociedade de São Francisco de Sales, como em anos anteriores
havia feito com os noviços. Contribuiu assim, talvez sem perceber, para imprimir nas institui-
ções uma identidade específica propriamente salesiana, a que, segundo ele, Dom Bosco havia
desejado para cada uma delas. E criou uma nova figura institucional na Sociedade nascente, a
do inspetor.
Padre Rua visitou as casas filiadas do Piemonte e da Ligúria até ao Capítulo Geral de 1877.
Até àquela data os vários centros dependiam todos do Capítulo Superior de Turim. Mas, com
a difusão geográfica das obras, sua administração ia se complicando. Em 1875, a Sociedade
tinha começado a se expandir para além das fronteiras italianas, para a França e para a América
do Sul. O Capítulo Geral de 1877 julgou necessário criar circunscrições e delegar o trabalho
de controle local, indispensável à unidade do conjunto e à observância da regra. Segundo um
esquema preparado por Dom Bosco em vista do Capítulo, os “provinciais” salesianos, papel
totalmente novo, seriam chamados de inspetores e as províncias postas sob sua jurisdição de ins-
petorias. No espírito do fundador, esses superiores eram encarregados de vigiar – paternamente
– irmãos e casas. Eles tinham o dever de conservar a unidade na Sociedade. O inspetor devia ser
o olho do Reitor-Mor, cujas Regras devia fazer obedecer, que eram as de toda a Congregação.
Encontramos aqui uma ideia que o padre Rua tinha tido em seu papel de visitador das casas
filiadas, entre 1874 e 1876. Mas Dom Bosco se preocupou em atenuar a severidade, como
explicou durante o Capítulo Geral: o inspetor devia ser “um pai, o qual tem por ofício ajudar
seus filhinhos a fazer andar bem os próprios negócios e, portanto, os aconselha, os socorre,
ensina-lhes o modo de sair dos embaraços nas circunstâncias críticas”. Portanto, o inspetor
salesiano – para o qual o Capítulo Geral de 1877 esboçou um regulamento, no qual se entrevê
o toque meticuloso do prefeito geral padre Rua – deveria procurar conciliar em si mesmo dois
personagens complementares, Dom Bosco e o padre Rua. Para se convencer disso, basta citar
dois artigos do regulamento intitulado Visita do Inspetor:
[...] – 2. Visitará a igreja ou a capela de forma canônica, isto é, de portas fechadas. Observará como
são conservados o Santíssimo Sacramento, o tabernáculo, os óleos santos, as relíquias, os altares, os
confessionários, a sacristia, os vasos sagrados, cálices, cibórios, ostensórios, o registro das missas e
os paramentos do culto divino. – 3. Visitará os quartos, os dormitórios, a enfermaria, a cozinha, a
cantina, a despensa; verificará atentamente que não se desperdicem livros, papel, roupas de cama,
roupas pessoais, comestíveis; anotará, quando necessário, aquilo que parecer contrário à religião, à
moralidade e à pobreza.
Estes artigos retomavam alguns pontos do caderninho do padre Rua relativos às visitas feitas
nos anos anteriores a Lanzo, Borgo San Martino, Varazze, Sampierdarena e Valsalice.
4 Carta publicada por E. Ceria em MB XI, p. 530-531.
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Capítulo 10
O braço direito de Dom Bosco
Padre Rua em Mornese, com as Filhas de Maria Auxiliadora
Padre Rua era o olho de Dom Bosco sobre as casas filiadas. Em junho de 1875 foi enviado
também a Mornese, para inspecionar o nascente instituto das Filhas de Maria Auxiliadora.
Seu caderninho não faz menção à visita, mas a crônica da obra diz que “ficou aqui alguns dias”
e nos fez “breves, mas intensas exortações”.1 Depois de 1875, quando o padre João Cagliero,
diretor desta segunda família de Dom Bosco, partiu para a América chefiando a primeira ex-
pedição missionária, o padre Rua assumiu seu encargo. Assim, em agosto de 1876 substituiu
Dom Bosco em Mornese para a vestição das noviças. Nessa ocasião, exerceu o ministério da
confissão, apresentou o pensamento do fundador sobre o estilo de vida das irmãs, tratou sobre
a eventual abertura de uma nova casa, examinou a oportunidade da transferência de algumas
irmãs, informou-se sobre o funcionamento moral e financeiro da obra, distribuindo explica-
ções, encorajamentos e conselhos. A comunidade, que nunca tinha sido objeto de controle tão
cuidadoso, gostou muito do presente que Dom Bosco lhe havia dado em sua pessoa.
Para as Filhas de Maria Auxiliadora, padre Rua foi o homem da regra. Não tolerava o míni-
mo comprometimento. Em 1877, a diretora da casa de Turim recebeu como presente grande
quantidade de frutas que queria distribuir de manhã, depois do café, para não deixá-las estra-
gar. Uma vez que a regra previa para o lanche ou café com leite ou fruta, teve algum escrúpulo
e consultou o padre Rua. Fiel à sua reputação, ele respondeu que era melhor deixar perder as
frutas que desobedecer à regra. E a aconselhou que as dessem como beneficência ou as dessem
às jovenzinhas.2
As circulares mensais aos diretores
Padre Rua, na qualidade de prefeito geral, esteve atento regularmente aos diretores das ca-
sas, cujo número, desde o fim da década de 1870, estava em contínuo crescimento. Presi-
diu a maioria das conferências gerais dos diretores, acontecidas em Turim, em fevereiro de
1876. Nessa ocasião, voltou às questões disciplinares levantadas durante suas visitas anteriores:
1 Como escreve a crônica de Mornese, retomada por Amadei I, p. 260.
2 Cf. E. Ceria, Vita del Servo di Dio Michele Rua. Torino, SEI, 1949, p. 87.
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o rendiconto regular dos irmãos, as conferências quinzenais, o cuidado das cerimônias sagradas,
a redução dos dias de férias dos salesianos. Além disso, lembrou aos diretores que a expulsão
dos irmãos e dos inscritos não era da competência deles.
Os diretores dependiam diretamente do centro da Congregação. Padre Rua o recordava
regularmente com circulares mensais manuscritas, endereçadas a cada um. O cabeçalho era
personalizado, enquanto o corpo da circular, escrita por um secretário, consistia numa série de
perguntas (por exemplo, sobre o número das missas celebradas no Oratório de Turim durante
o mês anterior ou sobre a prestação de contas administrativa do ano anterior), de informações
(como a expedição do catálogo da Congregação, a data dos exames para os estudantes de teolo-
gia residentes nas casas ou o estado de saúde de Dom Bosco), de recomendações (por exemplo:
“Nós nos encontramos em dificuldades financeiras excepcionais, também nosso querido Dom
Bosco me encarrega de recomendar economia e evitar toda despesa não indispensável”), de re-
clamações (por exemplo, a demora de alguns em enviar para Turim a lista do pessoal ou as notas
dos exames dos clérigos ou os folhetos de adesão dos novos cooperadores), e de indicações de
caráter formativo (como o cuidado dos retiros dos alunos ou a celebração do mês de maio).3 Ao
texto do secretário padre Rua acrescentava às vezes uma exortação espiritual, depois assinava a
carta. Acontecia também acrescentar um post-scriptum mais ou menos longo. A partir de 1876,
as obras da América tiveram circulares específicas. Foram enviadas ao padre Bodrato, depois ao
padre Costamagna, que faziam as vezes de inspetores. Nesse caso, as circulares se transforma-
vam em longas e detalhadas cartas, inteiramente escritas à mão pelo padre Rua, como aquela
em doze pontos enviada ao padre Costamagna no dia 21 de novembro de 1880.4
A partir de 1881, as cartas mensais aos diretores foram acompanhadas ou substituídas por
um questionário impresso, assinado pelo padre Rua, sobre o funcionamento das respectivas
escolas. Era intitulado “Rendiconto da casa de ... para o mês de... 188...”, e incluía novas per-
guntas: “Quantos alunos internos vocês têm? – 2) Quantos externos? – 3) Em geral, qual é
seu comportamento? – 4) Qual é o estado de saúde dos internos? – 5) Quantas missas são
celebradas durante o mês segundo as intenções do subscrito? – 6) Quantas vocês lhas atribuem
para serem celebradas? – 7) Os rendiconti mensais foram todos feitos? – 8) O exercício da boa
morte foi feito regularmente? – 9) Foram feitas as 2 conferências prescritas?”. Depois de cada
pergunta, era deixado um espaço em branco, para a resposta do diretor.5
Em 1881, entre os documentos do padre Rua encaminhados aos diretores, aparece tam-
bém uma tabela em sete colunas de “Informações sobre o pessoal” das casas. Ao lado de cada
nome, o diretor era convidado a expressar o próprio parecer sobre “ofícios e ocupações” do
interessado, sobre sua saúde, a “diligência nos próprios deveres; nos exercícios de piedade; no
estudo”, e a acrescentar “observações e explicações” à vontade.6 Esse sistema burocrático, quase
policialesco, faz refletir. Mas, em todo caso, este foi o modo com que Dom Bosco, primeiro
responsável por todos os centros por ele fundados, desde Turim se tornava presente em cada
3 Cf., por exemplo, as “cartas mensais” a dom Lazzero, em FdR 3909C123911D5.
4 Cf. as circulares para a inspetoria americana, em FdR 3973CB103977C1.
5 Um exemplar desse formulário se encontra em FdR 3910B1.
6 O formulário é conservado em FdR 3910B11.
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uma das obras, graças aos cuidados de seu braço direito, padre Rua, prefeito geral com funções
de ministro do interior.
As prestações de contas das casas talvez tivessem causado graves preocupações a nosso pre-
feito geral, sobretudo referindo-se à missão americana. O padre Bodrato se lamentava de contí­
nuas irregularidades na Argentina. No dia 4 de setembro de 1879, exclamava: “Clara nos
traiu”. E apontava casos de imoralidade, dois em San Nicolas de los Arroyos e dois em Villa
Colon. No dia 18 de março de 1880 anunciava que um coadjutor fora obrigado a se casar “às
pressas”, depois de ter enganado a todos. Suplicava: “Mandem-nos somente indivíduos moral-
mente seguros”. Padre Rua sofria.
Duas pretensas fundações
A partida dos missionários salesianos para a América despertara um vasto eco na Itália, e
começaram a se multiplicar os pedidos de fundações. Terminavam na mesa do padre Rua, que
devia examiná-las, começar as tratativas seguindo as instruções de Dom Bosco e, às vezes, veri-
ficar pessoalmente no local a situação. Em 1877, tratou-se do recebimento de uma escola num
cantão da Suíça, em Mendrisio, no Cantão Ticino. Depois de um longo intercâmbio epistolar,
no dia 30 de abril o padre Rua se dirigiu a Mendrisio para visitar o imóvel e colher informações
precisas. No dia 3 de maio fez o relato ao Capítulo Superior na presença de Dom Bosco.7 Dom
Bosco via nessa operação a possibilidade de entrar na Suíça. Por isso, estava disposto a fazer
muitas concessões. Seus conselheiros, ao contrário, se mostravam céticos. No fim de agosto, o
governo do cantão nomeou, de própria autoridade, um diretor leigo de sua escolha para chefe
da escola de Mendrisio. A entrada dos salesianos na Suíça foi provisoriamente suspensa.
Padre Rua foi envolvido de perto numa operação análoga, que deu em nada. O abade Louis
Roussel, em 1866, tinha fundado para as crianças abandonadas de Paris uma obra chamada dos
órfãos-aprendizes, num casebre de Auteuil, localidade havia pouco anexada ao 16º distrito de
Paris.8 Estava preocupado com os problemas dos trabalhadores: abrigo, formação profissional,
mentalidade (a sensibilidade operária). Queria abrir o coração e a mente dos rapazes pobres
e ao mesmo tempo prepará-los para sua profissão futura. Para suprir a falta dos pais ou sua
incapacidade queria prover pessoalmente dando uma casa a seus aprendizes. O projeto era
semelhante às iniciativas de Dom Bosco em Turim e em Gênova. No entanto, diversamente
do santo piemontês, que formava colaboradores para si, o sacerdote parisiense procurava ajuda
fora do próprio ambiente. Pio IX o havia aconselhado a se dirigir a Dom Bosco. Roussel visitou
o Oratório de Turim em setembro de 1878. Foi uma descoberta, que o fascinou a tal ponto
que propôs imediatamente a fusão dos dois institutos, o de Turim e o de Auteuil. Os salesianos,
muito interessados, pensaram que ele logo anexaria a obra à sua Congregação, reservando para
si somente a direção do periódico La France Illustrée, impresso no instituto. Parece que Dom
Bosco não tinha dúvida em aceitar a proposta. Já havia se situado solidamente na França, em
7 Ata do Capítulo Superior, 3 de maio de 1877, em FdB 1876C8-12.
8 Cf. a narração da pretensa entrada em Paris em Don Bosco en son temps, p. 1120-1123.
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Nizza e em Marsiglia, e agora apontava para a capital, onde alguns amigos insistiam que se
estabelecesse.
Pelas tratativas necessárias, o abade Roussel propunha como intermediário o conde Carlo
Cays, que havia conhecido em Turim, personagem que se tornara havia pouco sacerdote sa-
lesiano e que falava corretamente o francês. Sem demora, Dom Bosco propôs ao conde Cays
uma viagem a Paris em companhia do padre Rua, encarregado de preparar a convenção com o
abade Roussel e sondar o pensamento do arcebispo, cardeal Joseph-Hippolyte Guibert. Os dois
enviados partiram no dia 6 de novembro de 1878. O negócio parecia bem encaminhado. Dom
Bosco, representado pelo padre Rua, não pretendia fazer a parte do conquistador: o abade
Roussel permaneceria diretor vitalício do instituto; os salesianos o ajudariam e eventualmente o
sucederiam mais tarde. No dia 12 de novembro, depois de uma audiência com o arcebispo, que
se mostrara favorável à vinda dos salesianos à capital, o padre Rua apresentava a Dom Bosco
um primeiro projeto de convenção em quatro pontos: 1) Criação de uma sociedade civil, da
qual faria parte o abade Roussel, pela propriedade da obra de Auteuil e de suas sedes destacadas.
2) Os sócios proprietários se empenhavam em entregar a obra beneficente aos salesianos, que a
administrariam segundo suas Constituições. 3) Conforme as necessidades, o Capítulo Superior
sustentaria financeiramente a obra de Auteuil. 4) O abade Roussel permaneceria diretor. Dom
Bosco se limitava a pedir garantias de não exclusão para os seus.9 No dia 16 de novembro ele
escrevia ao conde Cays: “Todos [os membros do Capítulo Superior], porém, estão de acordo
em conceder todo favor e autoridade ao abade Roussel, contanto que seja fixada estavelmente
nossa moradia em Paris”.10 No mesmo dia, expressava ao padre Rua um duplo desejo: entrar
em Paris e não correr o risco de ser dela expulsos.11 As duas mensagens retornaram a Turim na
tarde do dia 30 de novembro.
Em Turim, o texto do acordo foi imediatamente redigido. Substancialmente, dizia que o
abade Roussel chamava Dom Bosco a Auteuil para ser apoio de sua Congregação; que manteria
vitaliciamente a direção da obra; que os salesianos ajudariam e substituiriam só gradualmente
seus colaboradores, à medida que viessem a faltar; que Dom Bosco era chamado pelo abade
somente como coadjutor com direito de sucessão.12 Esse acordo expedido em Paris no dia 16 de
dezembro de 1878 foi assinado pelo abade Roussel por volta do dia 20 de janeiro de 1879, em
Marselha, para onde se dirigira a fim de encontrar Dom Bosco. O curso dos acontecimentos
mudou radicalmente após o retorno de Dom Bosco a Turim. No fim de janeiro, os salesianos
decidiram se retirar. Dom Bosco temia não conseguir entrar em Paris e ser desacreditado.
O pretexto da desdita lhe foi oferecido pelo cardeal Guibert, que se reservava o direito de
mandar de volta os salesianos se não se adaptassem em Paris. Não quis se arriscar. No dia 6 de
fevereiro, na abertura da conferência anual dos diretores, Dom Bosco explicou sua posição.13
A anulação do contrato foi notificada ao abade Roussel no dia 10 de fevereiro. O conde Cays,
9 Carta de M. Rua a Dom Bosco, Paris, 12 de novembro de 1818. In: FdR 3862A7-9.
10 Carta de Dom Bosco a C. Cays, Turim, 16 de novembro de 1878. In: Epistolario Ceria III, p. 414-415.
11 Carta de Dom Bosco a M. Rua, Turim, 16 de novembro 1878. In: Epistolario Ceria III, p. 415-416.
12 Documento trazido por Lemoyne in Documenti XX, p. 79 (ASC A069). Ceria preferiu reproduzir sua
versão preparatória do conde Cays, que difere ligeiramente do texto assinado (MB XIII, p. 999, doc. 59).
13 A narração da reunião é trazida por Lemoyne em Documenti XX, p. 77-78 (ASC A069).
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5.5 Page 45

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numa carta de 13 de março, se explicou longamente e de todas as formas com o bravo sacerdote
parisiense, que não pareceu levar muito a mal a repentina mudança de direção.14 A bem da
verdade, a renúncia se revelou providencial para a obra de Auteuil. De fato, livrou-a de ser su-
primida quando, entre 1901 e 1903, na França foram promulgadas leis hostis às congregações
religiosas, que seriam fatais para muitas obras.
Padre Rua na controvérsia com o arcebispo Gastaldi
Entre 1871 e 1873, Dom Bosco sofreu muito por causa de seu arcebispo Lourenço Gas-
taldi.15 Parecia ignorar as razões da hostilidade inesperada por parte de um de seus melhores
amigos. Havia apoiado sua candidatura ao episcopado na década de 1860. Por ele tinha sido
abertamente apoiado nas práticas romanas para o reconhecimento da Congregação. Por ele, no
fim de 1871, obtivera do Vaticano a transferência da sede episcopal de Saluzzo para a muito
mais prestigiosa de Turim. A hostilidade que se manifestou abertamente em 1873-1874, quan-
do Dom Bosco procurava fazer aprovar o texto da regra pelas autoridades romanas, era, no
fundo, compreensível. Dom Gastaldi, prelado muito consciente de suas obrigações pastorais,
pretendia reformar a diocese, começando pelo clero, que queria digno, piedoso e instruído. An-
teriormente, com o arcebispo Riccardi di Netro, Dom Bosco tivera não poucas dificuldades a
propósito da formação de seus clérigos. Encontrou-as, infelizmente agravadas, com o sucessor.
Dom Gastaldi pretendia muito dos salesianos candidatos às ordenações. Isso inquietava Dom
Bosco. “As ordenações encontram dificuldades por parte do arcebispo?”, perguntava numa
carta ao padre Rua no dia 18 de novembro de 1875. As drásticas reformas de dom Gastaldi
irritaram uma parte do clero, que se queixou disso a Roma. O arcebispo suspeitou que Dom
Bosco, favorecido pelo papa e pelo secretário de Estado Antonelli, tivesse inspirado uma carta
de admoestação por parte de Pio IX. Assim, progressivamente, as relações entre a cúria ar-
quiepiscopal e Valdocco se tornaram tensas. No dia 27 de agosto de 1873, Dom Bosco ficou
muito amargurado com as críticas que o arcebispo lhe dirigira durante uma visita ao colégio
de Alassio.
Na discussão, padre Rua se viu várias vezes na linha de frente. Diferentemente de seus dois
irmãos salesianos Joaquim Berto e João Bonetti, se empenhou de toda forma para aparar as
arestas da questão. Mantinha a calma, explicava, justificava ou simplesmente se calava... Não
se sabe de nenhum ímpeto ou imprudência de sua parte. Os irmãos de Valdocco viam no
secretário do arcebispo, o cônego Tommaso Chiuso, um inimigo. Ele, ao contrário, o tratava
como “amigo muito querido”. Introduzia invariavelmente suas cartas com a expressão “Meu
teólogo caríssimo”, pedindo-lhe, na parte final, que “beijasse por nós [de Valdocco] a mão
de sua Excelência, sempre in Domino caríssimo e veneradíssimo”.16 Sua carta justificativa en-
viada ao arcebispo no dia 13 de janeiro de 1879 é uma “obra-prima de finura diplomática”,
como escreve o padre Ceria.17
14 Carta de C. Cays a L. Roussel, Turim, 13 de março de 1879, reproduzida em MB XIII, p. 1001-1002, doc. 61.
15 A controvérsia entre o arcebispo e Dom Bosco foi contada muitas vezes. Cf. a última reconstrução em
Arthur J. Lenti, Don Bosco: his pope and his bishop, the trials of a founder. Rome, LAS, 2006, p. 65-245.
16 Carta de M. Rua a T. Chiuso, Turim, 25 de outubro de 1875. In: FdR 3938C6-7.
17 MB XIV, p. 231.
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O revés, bem documentado, da imaginada suspensão de Dom Bosco, em dezembro de
1875, nos serve para compreender qual tenha sido o seu papel naquela que se pode chamar a
guerra entre Valdocco e o arcebispado. Padre Rua não era para Dom Bosco simples mediador
de conveniência. Intervinha habilmente, conjugando, nos desencontros mais ou menos borras-
cosos, a franqueza com a moderação, a precisão com a delicadeza, o amor incondicional a Dom
Bosco com uma perfeita deferência pelo seu arcebispo.
A licença de confessor de Dom Bosco não tinha sido renovada no tempo estabelecido.18
No dia 24 de dezembro, a padre Rua informou Dom Bosco sobre isso, que interpretou o fato
como se o arcebispo tivesse simplesmente recusado a renovação; uma falta de renovação que
equivalia, segundo ele, a uma suspensão dos poderes de confissão, medida que o arcebispo às
vezes adotava com seu clero. Dom Bosco se refugiou em outra diocese, em Borgo San Martino,
para não precisar se recusar no caso de ser solicitado a confessar em Turim. No dia 27, o cônego
Chiuso notificou ao padre Rua que dom Gastaldi deixava para Dom Bosco a autorização de
continuar a confessar, pois a faculdade nunca lhe havia sido revogada. No dia 29, um novo
bilhete do cônego convocou o padre Rua para estar com o arcebispo. Ele foi até ao arcebispo
na mesma tarde e fez o melhor possível para defender a linha pastoral de Dom Bosco. No dia
seguinte, retomava por escrito o sulco de sua argumentação numa carta a Gastaldi, na qual se
desculpava por ter sido muito veemente na sua apologia:
Há muitos anos estou a seu lado, admiro as muitas virtudes que o adornam, todos veem o grande
bem que vem fazendo e como o Senhor vai abençoando suas iniciativas. Vejo ainda como as coisas
que pareceriam mais estranhas por ele propostas e dirigidas chegam a bom termo e não posso dei-
xar de concluir comigo mesmo que realmente o Senhor lhe concede a graça do estado, isto é, que,
tendo-o destinado a realizar algumas obras providenciais, lhe é generoso nas ajudas para fazê-lo
conseguir, embora de vez em quando, como acontece a muitos outros santos fundadores, se veja
em contraste com personagens em todo sentido respeitáveis.19
A discussão logo foi retomada. No dia 31 de dezembro, a cúria arquiepiscopal endereçou
à Congregação Salesiana uma série de reprimendas oportunamente circunstanciadas. Não
podiam ser recebidos noviços sem as cartas testemunhais dos seus ordinários, não podiam
conservar num colégio jovens com a veste eclesiástica sem a permissão do bispo. Grave, em
relação à autoridade eclesiástica de Turim, era a afronta feita ao aceitar na Congregação pes-
soas dispensadas do seminário diocesano. A ruptura era, então, ainda mais evidente, pois,
por carta ou nos colóquios, os membros da Congregação faltavam com o respeito ao arce-
bispo. Era-lhes pedido, portanto, que se ativessem estritamente às Regras canônicas. Padre
Rua, no início de 1876, escreveu uma longa carta a dom Gastaldi, na qual retomava ponto
por ponto a série das repreensões. Um estilo direto, conciso, perfeitamente digno, submisso,
mas sem mesquinhez, sem rudeza. Toda afirmação era apoiada, se necessário, em referências
ao Direito Canônico.
18 Sobre esse acontecimento da licença de confessor não renovada, cf. MB XI, p. 485-488.
19 Carta de M. Rua a L. Gastaldi, Turim, 30 de dezembro de 1875. In: FdR 3903D6-9.
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5.6 Page 46

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O início dá uma ideia do teor da carta:
Excelência Reverendíssima. Cumpro o dever de lhe fazer os mais cordiais agradecimentos pelas
observações escritas no último 31 de dezembro, as quais confirmam a ideia corrente entre nós, isto
é, que unicamente a falta de esclarecimentos seja a verdadeira razão do descontentamento para com
Vossa Excelência por parte da Congregação Salesiana. Tenho motivos fundados para crer que, dado
o verdadeiro aspecto das coisas e deixando clara a nossa boa vontade, devamos também desfazer as
dificuldades ou não existentes ou não queridas. Como Prefeito da Congregação estive sempre a par
[atualizado] de tudo, e, por isso, se mo permite, exporei o meu modo de ver, submetendo depois
tudo à sua iluminada sabedoria.
Padre Rua concluía:
Percebo que fui muito longo. Espero que Vossa Excelência me perdoe este desabafo do meu co-
ração, para garantir-lhe que os salesianos nunca diminuíram nem a estima, nem a veneração para
com Vossa Excelência, nem quando era simples cônego nesta cidade, nem quando era bispo em Sa-
luzzo, nem quando a Divina Providência dispôs que se tornasse nosso Arcebispo. Será sempre uma
grande honra para mim toda vez que puder professar-me com a máxima gratidão muito humilde,
obediente servidor de Vossa Excelência Reverendíssima, padre Miguel Rua.20
Lembremos, brevemente, o papel exercido pelo padre Rua na controvérsia de João Bonetti.
Esse salesiano, escolhido por Dom Bosco como capelão e diretor do Oratório feminino de
Santa Teresa de Chieri, dirigido pelas Filhas de Maria Auxiliadora, tivera uma discussão com o
padre da paróquia. Parece que, depois de ter violado os direitos paroquiais, o insultara numa
carta. Por isso, em fevereiro de 1877 lhe fora suspensa a faculdade de confessar e foi proibido de
colocar os pés na obra. Recalcitrou violentamente. Dom Bosco se aliou a ele. Padre Rua serviu
de intermediário, para tentar esclarecer as divergências e fazer conservar a calma. Sem sucesso,
infelizmente. Por três anos, Chieri foi uma fonte interminável de dores para os salesianos, e o
prefeito geral caiu na armadilha.21
Acenemos a uma controvérsia sobre a qual estamos bem informados. Em novembro de
1880, uma irmã salesiana falecera na casa de Chieri. Tinha apenas sido sepultada quando
chegou à cúria de Turim denúncia de uma evidente violação dos direitos paroquiais e das leis
canônicas por parte dos salesianos. O advogado fiscal (o procurador do arcebispo), tomando
conhecimento da notícia, convocou o padre Rua ao arcebispado e lhe expôs os fatos: dois
salesianos haviam administrado os últimos sacramentos à irmã moribunda. Para esse objetivo
haviam usado os óleos santos da capela dos jesuítas; depois acompanharam o cortejo fúnebre
através da cidade até ao cemitério. Durante a conversa, o padre Rua forneceu ao advogado
fiscal as explicações que lhe pareciam mais plausíveis, procurando desculpar os irmãos, pouco
conhecedores dos regulamentos paroquiais. Depois, no dia 27 de novembro, expôs longamen-
te ao arcebispo sua versão dos fatos: um dos sacerdotes era o confessor habitual da irmã: os
dois sacerdotes estavam acostumados aos usos do Oratório de Turim em matéria de últimos
sacramentos e de cortejo fúnebre. No fim, o padre Rua pedia “humildemente perdão à Vossa
Excelência pelos dois sacerdotes envolvidos” e se dizia “disposto a fazer o mesmo com o pároco
20 Minuta da carta de M. Rua a L. Gastaldi, Turim, 8 de janeiro de 1876. In: FdB673B4-7.
21 A controvérsia é contada em Don Bosco en son Temps, p. 1087-1092, 1137-1141, 1158-1161.
90
local se Vossa Excelência julgar necessário”. “Se tivesse acontecido também alguma indignidade
por terem sido violados os direitos paroquiais, a um simples seu venerado aceno, nos dispomos
a fazer o quanto for necessário”.22 Mas parece que o padre Rua se enganou: de fato, os últimos
sacramentos não tinham sido conferidos pelos salesianos, mas por um cônego do colegiado
(adversário do pároco e favorável ao padre Bonetti), e o cortejo fúnebre era constituído somen-
te pelas moças do Oratório Santa Teresa...23
O ápice da disputa foi atingido quando o arcebispo acusou Dom Bosco de estar na origem
de alguns panfletos difamadores a seu respeito, publicados em Turim entre 1877 e 1879. Nes-
ses opúsculos, Dom Bosco era apresentado como vítima do arcebispo. Os autores estavam evi-
dentemente bem informados sobre as atividades internas da Congregação Salesiana. Um deles,
intitulado O arcebispo de Turim, Dom Bosco e o padre Oddenino, ou histórias cômicas, sérias e
dolorosas contadas por um habitante de Chieri, contando a história do padre Bonetti colocava em
ridículo tanto o bispo como o pároco de Chieri. O problema Bonetti e a questão dos panfletos
lamentavelmente se entrelaçavam. Dom Bosco não podia se defender nem defender o irmão.
No dia 27 de fevereiro de 1881 confiava ao padre Rua:
Recebi a carta do cardeal Nina que diz respeito ao problema do padre Bonetti. Eu nunca desejei
outra coisa senão acomodar esta e outras desavenças. Não vejo meio mais simples que o já usado
no ano passado: tirar uma suspensão que já foi tirada pelo mesmo nosso arcebispo e renovada no
dia seguinte. [Aqui é preciso dizer que ao mesmo tempo o fato citado de Chieri tinha chegado ao
conhecimento do arcebispo, para quem uma mudança parece absolutamente compreensível]. Exis-
te, porém, a grave dificuldade expressa pelo teólogo Colomiatti. Se Dom Bosco não permite uma
explicação por parte do arcebispo, fará um processo contra Dom Bosco por causa dos panfletos
difamadores publicados contra ele. E sou obrigado a afastar tal ameaça que visa acusar-nos como
culpados por aquelas publicações, nas quais nem diretamente nem indiretamente tomei parte;
tanto mais que pesa ainda sobre mim mesmo a ameaça escrita e renovada pelo mesmo arcebispo,
isto é, se Dom Bosco por si ou por outros com os impressos ou com manuscritos publicou ou espa-
lhou, ou o fará no futuro, a não ser ao Santo Padre e à S. Congregação dos Bispos e Regulares, seja
atingido pela suspensão ipso facto incurrenda. Estão pensando que Dom Bosco perdeu tanto a cons-
ciência e que se ocupa com tais publicações depois de tão graves ameaças? – Você pode comunicar
esses meus pensamentos ao senhor teólogo Colomiatti, dando-lhe faculdade de tratar e concluir
qualquer coisa no modo que considerar ser para a maior glória de Deus e para a salvação das almas,
mas sempre conservar avisado o padre Bonetti sobre as conclusões que lhe disserem respeito.24
Infelizmente a intervenção foi em vão.
A austeridade do prefeito geral
No dia 21 de junho de 1876, morria a mãe do padre Rua, Giovanna Maria.25 A santa
mulher sacrificara os últimos vinte anos de sua vida a serviço dos jovens de Dom Bosco. En-
22 Minuta de carta de M. Rua a L. Gastaldi. Turim, 27 de novembro de 1880. In: FdR 3903E1-2.
23 O incidente é narrado por Ceria em MB XIV, p. 249-250.
24 Carta de João Bosco a M. Rua, Roquefort, 27 de fevereiro de 1881. In: Epistolario Ceria, IV, p. 28.
25 Neste parágrafo, sigo Ceria, Vita, p. 88-99.
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contravam nela um coração materno. Sua ausência afligiu muitíssimo o filho. Toda a casa do
Oratório participou do luto. Padre Rua enviou o retrato da defunta ao irmão Antônio, gerente
da fábrica real de armas de Brescia. Ao mesmo tempo, lhe fez um relatório dos bens deixados
pela mãe. Tudo se reduzia a alguma roupa, a um pouco de ouro, num total de 58,5 liras, ao
anel do casamento, que era de prata e valia duas liras, a algum móvel no valor estimado de 80
liras. Tinha distribuído as roupas aos parentes. Quanto ao resto, escrevia: “Somando a metade
das joias, isto é, 30 liras, e a metade dos móveis, ou seja, 40 liras, eu lhe entrego aqui 70 liras,
e proporia que você distribuísse entre seus filhos e suas filhas, a fim de que todos possam ter
alguma pequena lembrança da sua avó”.
Diante desses dados, o leitor fará suas reflexões. Mas é evidente que um homem tão preciso
na liquidação de uma pequena herança era digno de ser o ministro da Providência na gestão das
grandes somas que chegavam a Dom Bosco. Certamente passou muito dinheiro pelas mãos do
padre Rua. Nunca um centavo lhe ficou preso entre os dedos. Nunca gastou ou deu mais do
que precisava. Nisto, como em todo o resto, se baseava num princípio de Dom Bosco: “A Pro-
vidência não nos faltou e não nos faltará nunca, sempre que nós não nos tornarmos indignos
dela, gastando o dinheiro e deixando enfraquecer o espírito de pobreza”. Disto derivava o rigor
do padre Rua na observância do voto de pobreza, rigor para todos, a começar por si mesmo.
Era pobre na roupa. Em 1877, um de seus secretários, o padre Giuseppe Vespignani, que
tinha sido encarregado de limpar-lhe a túnica, não ousou agitá-la com medo de rasgá-la de tão
gasta que estava. Era pobre nos sapatos. Não se envergonhava de usar sapatos consertados. Era
pobre no escritório: uma simples mesa sobre a qual trabalhava e na qual recebia as visitas, com
duas ou três cadeiras muito simples, duas humildes e pequenas imagens penduradas na parede
diante de si que representavam o Santíssimo Sacramento e Maria Auxiliadora. Nada mais.
Era atento ao espírito de pobreza dos irmãos. Haveria muito que dizer sobre este assunto.
Revelemos somente algum particular que remonta aos anos 1875-1880. O padre Rua devia se
ocupar dos missionários. Em 1876, um irmão estava partindo para a Argentina e queria um
breviário novo. O padre Rua lhe pediu que lhe mostrasse aquele que estava usando, depois
mostrou o seu, velho e em mau estado, e lhe propôs uma troca. O outro se inclinou e não
insistiu. Em 1877, o secretário, padre Vespignani, naqueles tempos ainda “noviço”, tendo re-
cebido uma caixinha de livros, pediu-lhe para conservá-la no quarto. O padre Rua respondeu
delicadamente: “Eu lhe digo como eu fiz: coloquei-os todos na biblioteca da casa”. A família de
Vespignani tinha doado uma estante com a qual poderia trabalhar estando de pé. Levou-a para
o escritório e perguntou ao padre Rua se poderia utilizá-la. “Veja – respondeu-lhe –, você é de
estatura alta. O meio mais cômodo para escrever em pé é colocar uma cadeira sobre a mesa”.
Num e noutro caso, comenta o padre Ceria, o padre Rua colocava o noviço à prova: proibia-lhe
todo o supérfluo e não lhe permitia que recebesse presentes para si, contra o ditado da Regra.
Fazia que os secretários examinassem o registro das saídas, para verificar aquilo que cada
um gastava para o vestiário, e pedia para que lhe entregassem a lista daqueles que precisavam
de mais de uma roupa e de mais um par de sapato por ano, para que o anotasse. Em uma ins-
tituição sempre em déficit, multiplicava os pedidos para toda possível forma de economia na
cozinha, na cantina, na roupa de cama, na lavanderia, na iluminação e no aquecimento. Esses
detalhes, que parecem exagerados em nossa sociedade consumista, nos são fornecidos pelo
92
padre Ceria. Ele considera que tal meticulosidade servia para imprimir na mente dos salesianos
a ideia de economia, não só de uma economia sadia, mas para recordar qual deve ser o uso do
dinheiro nas mãos de quem faz voto de pobreza. Para o religioso, o dinheiro é quase sagrado,
enquanto dom da Providência em benefício de um escopo bem preciso, isto é, “a maior glória
de Deus e o bem das almas”. Compreendemos por que o padre Rua mostrava tanta solicitude
em relação aos prefeitos encarregados da administração das casas. Acontecia convocá-los para
explicar-lhes as normas práticas da economia e planejar a contabilidade. Naquele momento,
era muito importante introduzir em toda parte sistemas conformes ao espírito genuíno da
nascente Sociedade Salesiana.
O austero padre Rua, de alguma forma, não era avaro, nem consigo mesmo nem com os
outros. Em sua pobreza, o hábito não somente era decente, mas limpo, e tudo isso o tornava
simpático. O espírito de pobreza não o fechava às necessidades dos outros. Não era mesquinho
nunca com os doentes e, quando teve a responsabilidade, com os missionários. Não fazia eco-
nomia quando se tratava do decoro da igreja e do culto. Eram dois os princípios que o guiavam
em matéria de pobreza, um de natureza ascética, o outro moral. Sem espírito de pobreza, pen-
sava, não pode haver fervor na oração, é impossível estar pronto para os sacrifícios da vocação
salesiana, impossível progredir espiritualmente e ser verdadeiros filhos de Dom Bosco.
O Oratório de Valdocco vivia de caridade. São conhecidas as habilidades de Dom Bosco
para convencer os ricos que viessem em seu auxílio. Aos poucos ensinou a seu segundo essa
arte, que o padre Rua deve ter achado muito trabalhosa. Cabia-lhe exercê-la durante as ausên-
cias, já prolongadas, de Dom Bosco. Então se punha a escrever para um e para outro, anun-
ciando uma próxima visita para receber aquilo que a caridade lhe sugeria doar. Às vezes, mesmo
estando Dom Bosco presente, o padre Rua não sabia mais onde bater a cabeça para suprir as
necessidades mais urgentes. O santo mantinha a calma, persuadido de que o céu lhe viria em
ajuda. O padre Rua, de sua parte, recebeu também alguma pequena lição, como a contada pelo
padre Lemoyne em forma dialógica. Na tarde do dia 29 de abril de 1879, depois do jantar,
na presença dos irmãos, Dom Bosco havia explicado ao padre Rua que muitos se lamentavam
porque, quando iam pedir-lhe dinheiro, os mandava embora de mãos vazias.
Isto acontece, respondeu o padre Rua, por um simples motivo: o caixa está vazio.
– Vamos vender aqueles papéis que nos restam, e assim se fará frente às necessidades mais urgentes.
– Alguns já estão vendidos, mas vender ainda mais um pouco não me parece conveniente, porque
todo dia acontecem casos graves e imprevistos, e não teríamos então nenhum dinheiro do qual
poder dispor.
– Paciência, o Senhor então proverá, mas por enquanto vamos pagar aquelas dívidas que são mais
urgentes.
– Sobre o pouco dinheiro que tenho, já fiz as minhas contas. Eu o reúno para pagar daqui a quinze
dias uma dívida de 28 mil liras que vai vencer [...].
– Mas não, isto é uma loucura... deixar de pagar as dívidas que poderíamos pagar hoje para colocar
de lado a soma que deve ser paga daqui a quinze dias.
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– Mas para as dívidas de hoje os pagamentos podem ser adiados; como faremos devendo pagar
uma dívida tão grande?
– Então o Senhor providenciará. Comecemos a nos desfazer hoje de quanto devemos... Querer
guardar o dinheiro para as necessidades futuras é fechar o caminho à Divina Providência.
– Mas a prudência sugere que se pense no futuro [...].
– Ouça-me. Se quiser que a Divina Providência tome conta diretamente de nós, vá para o seu
quarto, amanhã jogue fora tudo o que você tiver, pague todos aqueles que podem ser pagos, e o
que acontecer depois, deixemo-lo nas mãos do Senhor [...]. Não é possível encontrar um ecônomo
que me entenda inteiramente, isto é, que saiba confiar ilimitadamente na Divina Providência e
não procure amontoar alguma coisa para prover o futuro. Eu temo que, se nos encontramos tão
limitados de finanças, seja porque se querem fazer muitos cálculos. Quando o homem nessas coisas
entra, Deus se retira.26
Dois temperamentos, duas espiritualidades felizmente complementares.
Diferenciavam-se na visão social. Padre Rua era muito sensível à dignidade sacerdotal. Des-
de a constituição da Sociedade Salesiana, havia entrado na Congregação certo número de lei-
gos, na maioria aprendizes, mas também hortelãos e cozinheiros. O padre Rua, como sabemos,
havia se dedicado unicamente à formação dos clérigos. Deixava para Dom Bosco, e depois para
o padre Barberis, a tarefa da formação dos leigos, limitando-se a exortações gerais. Era forte
a tentação de considerar os coadjutores como salesianos de segundo nível. Durante o terceiro
Capítulo Geral (1883), uma das proposições dizia textualmente: “Os coadjutores devem ser
conservados numa situação inferior: é preciso criar para eles uma categoria diferente, e assim
por diante”. Dom Bosco, visivelmente contrariado, protestou: “Não, não, não! Os irmãos coa­
djutores são como os outros”.27 O padre Rua proporá, ainda em setembro de 1884, constituir
duas categorias distintas. Segundo ele, não convinha que “um advogado, um farmacêutico, um
professor fossem obrigados a encontrar a seu lado uma pessoa rude qualquer”.28 Dom Bosco
opôs uma seca recusa: “Não posso admitir duas classes de coadjutores”, acrescentando, no
entanto, que os espíritos rudes e mais simples não poderiam fazer parte da Congregação. Vol-
tando à carga, o padre Rua lhe perguntou se não era possível uma categoria semelhante à dos
terceiros franciscanos, mas não conseguiu fazê-lo mudar de parecer. O camponês Bosco não
seguia o educado cidadão Rua, sempre preocupado com as convenções sociais.
Apesar dessas divergências, as qualidades intelectuais, morais e religiosas do padre Rua eram
tão eminentes que saltavam aos olhos. A evidência reforçava todo dia a ideia de que deveria ser
o sucessor de Dom Bosco. Em 1879, este fez ao padre Cagliero, recém-chegado da América,
uma pergunta sobre seu eventual sucessor, acrescentando que em seu modo de ver três lhe
pareciam prováveis: “Mais tarde sim – respondeu Cagliero –, mas por agora há um só, o padre
Rua”. Dom Bosco não o contradisse. Ao contrário, exclamou: “Temos um só padre Rua! Ele
26 Cf. A. Amadei, Il Servo di Dio Michele Rua, 3v. Torino, SEI, 1931-1934. V. I, p. 294. Certamente só o
assunto tem a possibilidade de ser histórico. O diálogo é fruto de uma reconstrução plausível do cronista.
27 Citado de P. Braido, Religiosi nuovi per un mondo del lavoro. Roma, PAS, 1961, p. 27.
28 Annali I, p. 709.
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sempre foi e é o braço direito de Dom Bosco”. E Cagliero acrescentou: “Não somente braço,
mas cabeça, olho, mente e coração”.29
Padre Rua tinha certamente uma personalidade original. Todavia, em vez de manifestá-la
livremente, subordinou-a e, por assim dizer, quase a sacrificou a Dom Bosco e à sua obra, com
a convicção de conformar-se assim também a uma vocação vinda do alto.
29 Ceria, Vita, p. 99.
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Capítulo 11
Em viagem com Dom Bosco
Em Roma nos meses de abril e maio de 1881
Até 1881, quando Dom Bosco se ausentava de Turim, padre Rua o substituía no Oratório,
portanto não podia acompanhá-lo. No dia 5 de abril daquele ano, de volta de uma longa via-
gem à França, enquanto se encontrava na Ligúria, Dom Bosco lhe escreveu: “Você sabe me
dizer se é possível vir na quarta-feira santa a Sampierdarena para me acompanhar a Spezia, a
Firenze etc.? Preciso de você”.1 Na realidade, era sua intenção prosseguir a viagem até Roma.
No dia 13 de abril, chegava Dom Bosco em Sampierdarena. Passando por Firenze, onde
ficaram mais tempo que o previsto, nossos viajantes chegaram a Roma no dia 20 e foram
hospedados pelo padre Dalmazzo na igreja em construção dedicada ao Sagrado Coração. No
ano anterior a construção desse templo querido pelo papa tinha parado. O cardeal vigário se
lamentara com Dom Bosco, então presente em Roma. E ele tinha aceitado assumir a responsa-
bilidade da retomada dos trabalhos, com a condição expressa de construir ao lado da igreja um
instituto para os jovens da cidade. Junto com o despacho do problema Bonetti, esse enorme
empreendimento explica por que o santo recorreu ao padre Rua.
“Um lugar maravilhoso, agradável e salubre”, comentava este último ao diretor do Oratório,
padre Lazzero, já desde o dia 22 de abril. Lamentava somente o fato de haver lá ao lado um
ambiente “protestante”. O custo da igreja e da casa para os jovens o fazia tremer. “Não menos
de algumas centenas de milhares de liras, se não um milhão”. Mas continuava: “Dom Bosco
reza e trabalha e com todas suas forças para conseguir esta realização, não descuida nada até
consegui-la. E diz sempre que precisa do apoio e da oração dos jovens”.2
Não sabemos grande coisa sobre essa estadia em Roma, além da audiência de Leão XIII no
dia 23 de abril, que Dom Bosco relatou aos cooperadores no Boletim Salesiano do mês de maio
seguinte. O padre Rua o acompanhou na audiência.
A seguir, um fragmento do diálogo com o papa relatado no Boletim:
1 Epistolario di S. Giovanni Bosco, per cura di D. Eugenio Ceria, 4v. Torino, SEI, 1955-1959. IV, p. 40.
2 Cf. esta carta em FdR 3907E2.
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... – Mas e a igreja e o internato do Sagrado Coração de Jesus no Esquilino? Os trabalhos progri-
dem? Estão caminhando ou estão parados? – Eu pude responder que os trabalhos progridem cele-
remente, e que mais ou menos 150 operários empregam a própria arte e o próprio esforço na obra
muitas vezes abençoada por sua Santidade. Fiz observar que a caridade dos fiéis nos encorajava, mas
que o peso das despesas começava a nos fazer sentir a escassez do dinheiro. Um momento antes,
uma pessoa havia oferecido ao Santo Padre a soma de 5 mil francos para o óbolo de São Pedro.
– Eis, disse-me ele com hilaridade, este dinheiro vem a propósito: eu o recebi com a direita e lho
entrego com a esquerda. Tomem-no e sirva para os trabalhos começados no Esquilino.
A coleta dos fundos, da qual Dom Bosco se encarregava sempre inteligentemente, não era
senão um problema entre mil outros. Era preciso informar-se bem sobre os contratos estipula-
dos pela administração anterior com os fornecedores, entender-se com o arquiteto, examinar os
projetos do colégio. Na verdade, Francesco Dalmazzo tinha sido delegado para todas essas tare-
fas, mas Dom Bosco considerava que o olho experiente do padre Rua lhe seria muito precioso.
Durante este período, ocupar-se-ia pessoalmente, junto às congregações romanas, do problema
Bonetti e dos privilégios que procurava conseguir para a sua Congregação.
No dia 13 de maio, nossos dois viajantes deixaram Roma. Chegaram a Turim no dia 16,
para não faltar à abertura da novena em preparação à solene festa de Maria Auxiliadora.
Ajuda de Dom Bosco em Paris e Lille, em maio de 1883
Dois anos depois, no fim de abril de 1883, o padre Rua foi novamente chamado, junto com
Dom Bosco, para uma viagem à França.
No dia 31 de janeiro, Dom Bosco deixara Turim para a Ligúria e a Costa Azul francesa.
Queria recolher fundos para a Igreja do Sagrado Coração em Roma e estender a mão num país
onde não faltavam dinheiro e corações generosos.
No dia 30 de janeiro, escrevia ao cardeal vigário, o prelado a quem cabia a tarefa do Sagrado
Coração: “Amanhã pela manhã, se Deus quiser, parto para Gênova e, portanto, farei uma visita
às casas da Ligúria. Vou de casa em casa até Marselha e de lá, se a saúde e os acontecimentos
públicos mo permitirem, farei um giro até Lyon e Paris esmolando pelo Sagrado Coração e
recomendando o dinheiro de São Pedro”.3
Na realidade, depois do fracasso de Auteuil, em 1879, teria tentado novamente abrir insti-
tutos em Paris e em Lille. Por isso, queria apresentar-se pessoalmente.
Os meses de fevereiro e março, quando passou por Nizza, Cannes, Tolone e Marselha, foram
profícuos. No dia 19 de março, Dom Bosco anunciava ao padre Dalmazzo, encarregado dos
negócios em Roma, que lhe enviava 3 mil francos de Cannes e 2 mil francos de Hyères. “Faço
o que posso...”, escrevia-lhe humildemente.
3 Epistolario, Ceria IV, p. 210-211.
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No dia 2 de abril, Dom Bosco deixava Marselha diretamente para o norte, em companhia
do salesiano Camilo de Barruel, que lhe serviu de secretário. Não havia mais necessidade de
atrair o público com discursos de caráter social sobre a salvação da juventude periclitante.
As pessoas acorriam a ele espontaneamente pelas suas reconhecidas qualidades taumatúrgicas.
Quando passou por Avinhão, onde ficou no dia 3 e no dia 4, um jornal escreveu: “Desconhe-
cido até no dia anterior, esse venerável sacerdote foi imediatamente circundado por uma mul-
tidão de doentes [...]. Foi um espetáculo tocante ver esses cegos, esses paralíticos, esses mudos,
esses tísicos, esses epilépticos que se apinhavam a seu redor esforçando-se o mais possível para
atrair seu olhar e conseguir uma palavra sua”.4 Para se beneficiar mais de seus carismas, todos
queriam se aproximar de Dom Bosco, vê-lo, se possível falar-lhe e tocá-lo. Receber a comu-
nhão de sua mão era uma graça procurada pelos fiéis. “Não consegui chegar até ao senhor”,
lamentava-se uma pobre parisiense, acrescentando: “No domingo passado, tive a felicidade de
receber nosso Senhor de suas mãos. É a maior das graças...”.5 Na impossibilidade de encon­t­rá-lo
pessoalmente, lhe escreviam. Sua oração conseguia tudo de Deus.
Nossos dois viajantes chegaram a Paris fazendo algumas etapas: Avinhão, Valença, Tain,
Lyon e Moulins. Desceram para Gare de Lyon (Paris) no dia 18 de abril, por volta das 6 da tar-
de. Em cada cidade haviam se mobilizado católicos e curiosos. Apinhavam-se nas igrejas para
ver Dom Bosco, ouvi-lo, e, possivelmente, falar-lhe. Desde o momento da chegada a Paris, a
imprensa transformou sua presença na cidade num verdadeiro acontecimento.
Padre Rua havia seguido essa epopeia desde Turim. No dia 28 de abril, enviava uma longa
circular aos inspetores, informando-os sobre o entusiasmo desencadeado pela viagem de Dom
Bosco à França.6 Essa carta nos restitui (a bem da verdade, com algum compreensível erro de
data, que me permito observar) seus sentimentos durante a primeira metade da viagem a Paris.
Depois de referir três curas “milagrosas” atribuídas a Dom Bosco, a circular continuava:
[...] Esses fatos miraculosos despertaram tal entusiasmo e veneração pela pessoa do nosso superior
e pai Dom Bosco, que a multidão, realmente numerosa, o seguia para onde soubessem que ele
deveria ir, e chegaram até a cortar pedacinhos de sua batina para tê-los como relíquias preciosas.
No domingo, 8 de abril, Dom Bosco se encontrava em Fourvière, célebre santuário sobre uma co-
lina a breve distância de Lyon, muito frequentado, e lugar de grande devoção a Maria Santíssima.
Tamanha era a multidão que lá acorreu para vê-lo e receber sua bênção, que a Igreja na qual ele
assistia aos divinos ofícios e toda a praça ao redor regurgitavam. Foi preciso que, depois da saída,
Dom Bosco desse da janela do quarto do Reitor a bênção para aqueles que não puderam entrar
na igreja. Terça-feira, 10 de abril, na igreja paroquial de São Francisco de Sales em Lyon, era tão
grande a multidão que acorreu para lá para ouvir a missa do senhor Dom Bosco, vê-lo e receber
sua bênção, que por precaução, e ter por onde pudesse, depois, sair da igreja, foi preciso fechar
as portas da sacristia. No dia seguinte, uma multidão ainda mais compacta acorria pelo mesmo
motivo à paróquia mais importante daquela cidade, sob o título de Ainay, se aproximou também
dos Santíssimos Sacramentos e a distribuição da Sagrada Comunhão durou muito mais. Depois
4 Gazette du Midi, 5 de abril de 1883.
5 Carta de Mme. de Staplande a Dom Bosco (104, rue Du Bac, Paris), s.d. In: FdB 1613D10-E1.
6 Circular manuscrita, datada de 28 de abril de 1883, com assinatura manuscrita do padre Rua. In: FdR
3987C6-7.
98
da santa missa, o senhor Dom Bosco teve de aguentar o cansaço e empregar não breve tempo para
poder retornar à sacristia para depor os sagrados paramentos. Todos queriam ver, tocar, ter dele
uma bênção. No dia 11 de abril, depois de um afetuoso e irrecusável convite, o senhor Dom Bosco
foi almoçar na casa de campo dos seminaristas de Lyon.
Todos tinham se reunido lá, em número de mais ou menos 200, juntos com os seus superiores
e várias pessoas muito respeitáveis, entre as quais padre Guiol [o reitor da Faculdade católica de
Lyon, que recebia Dom Bosco em sua casa]. A acolhida a Dom Bosco foi cordial e magnífica ao
mesmo tempo, por parte do reitor, dos superiores e dos seminaristas. Almoçaram todos juntos num
vastíssimo refeitório, e no final, a pedido de todos, com muita insistência, Dom Bosco dirigiu aos
clérigos algumas palavras de conselho e de encorajamento, que foram acolhidas com religiosa aten-
ção e seguidas de fragorosos e unânimes aplausos. Visitou também, para sua grande consolação, a
casa das monjas do Sagrado Coração de Jesus.
Em Lyon, Dom Bosco fez duas conferências: a primeira para os membros de uma associação geográfi-
ca, a segunda, numa sala privada [tratava-se da obra dos laboratórios Boisard, em La Guillottière].
Na segunda-feira 23 [erro, tratava-se da segunda-feira 16 de abril] partia de Lyon para Moulins para
descansar, pelo menos um dia, dos graves cansaços e na terça-feira 25 chegava a Paris e o esperavam
pessoas muito notáveis, tanto eclesiásticas como seculares, desejosas de vê-lo, falar-lhe e ter dele
uma palavra, ora de conselho, ora de conforto. Muitos disputavam até a honra de hospedá-lo, e na
impossibilidade de fazê-lo fizeram pelo menos com que o senhor Dom Bosco prometesse uma visi-
ta, estimando a presença dele na própria casa como verdadeira bênção do Senhor e grande fortuna.
No domingo, 29 de abril, fará conferência aos cooperadores salesianos numa das igrejas mais cen-
trais e mais belas de Paris, chamada a Madalena, e esperamos que o Senhor o queira assistir onde
tiver de produzir abundantes frutos de salvação eterna.
Em todas as viagens e em meio a tantas ocupações cansativas, o Senhor conserva ao nosso caríssimo
superior uma saúde muito boa, mas é tanto o trabalho pela frente que, segundo o que o secretário
escreve, não seriam suficientes, para isso, dois outros para ajudá-lo.
Reze, portanto, e faça rezar muito por Dom Bosco, sem esquecer o seu etc.
Enquanto assinava a circular, o padre Rua provavelmente já estava decidido a ir até Dom
Bosco em Paris, para ajudar o secretário Camille de Barruel, que se dizia sobrecarregado pela
correspondência. De fato, chegou à condessa de Combaud na manhã da terça-feira 2 de maio
e, diante do acúmulo de cartas empilhadas sobre a escrivaninha de Dom Bosco, compreendeu
imediatamente o que se esperava dele. “Você não pode ter ideia da montanha de cartas que
estão aqui à espera de resposta – escrevia no mesmo dia ao diretor do Oratório de Turim –.
Seriam necessários não três, mas seis ou sete secretários. Felizmente, há um bravo religioso que
se colocou à nossa disposição.”
Padre Rua não exagerava. Encontramos a mesma observação dois dias depois, no artigo de
um correspondente do jornal La Liberté. No momento de sua visita a Dom Bosco no palácio
Combaud, ele tinha sido encaminhado para aquele que era chamado seu “secretário-geral”, isto
é, nosso padre Rua, “que é um homem de traços tipicamente italianos”.
Nunca vimos tantas cartas chegadas num só dia, escrevia o jornalista. Formavam uma pilha sobre a
escrivaninha e, embaixo, havia o monte daquelas que já tinham sido abertas. Entre as folhas espalhadas,
99

6 Pages 51-60

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6.1 Page 51

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viam-se traços sutis que revelam uma caligrafia feminina. O secretário-geral anotava de seu punho toda
carta que parecia merecer resposta. Colocava-a depois sobre o pacote diante dele. Quantas cartas! Quantas
cartas!.7
Em Paris, o padre Rua catalogava e, se fosse o caso, respondia. Nisto passou provavelmente
diversas noites de trabalho. Ficará perto de Dom Bosco até seu retorno a Turim, em fins de
maio. Acompanhou-o, portanto, a Lille entre o dia 5 e o dia 14, voltou a Paris com ele até à
partida definitiva da cidade, no dia 26. Depois o seguiu para Reims, onde, entre um trem e
outro, Léon Harmel lhe havia marcado encontro numa igreja. Continuaram a viagem até Di-
jon, onde pararam entre o dia 26 e o dia 29. Fizeram ainda uma breve parada junto ao conde
de Maistre em Dôle, no dia 29 e no dia 30. Finalmente, deixaram a França na tarde daquele dia
e chegaram ao Oratório de Turim no dia 31 de maio, pelas 9 horas da manhã.
Conhecemos todos os movimentos de Dom Bosco durante aquelas semanas: suas missas
nas igrejas, nos conventos e nos oratórios privados, as conferências, os sucessos na coleta dos
donativos, suas visitas aos doentes nas enfermarias e nos hospitais, as audiências, os jantares
com as autoridades eclesiásticas e civis, os banquetes oferecidos em sua honra (como em Lille),
as saídas de Lille para Roubaix ou de Paris para Versalhes. Padre Rua permanecia sempre na
sombra.
No mesmo dia da chegada a Turim, padre Rua redigiu uma circular aos diretores das casas
na qual escrevia: “Com a ajuda de Deus, nosso caro Pai voltou são e salvo, de volta de uma
longa viagem de bem quatro meses: uma viagem que foi um testemunho contínuo de afeto e de
veneração dos bons franceses em relação a ele e em relação à Sociedade Salesiana”. Convidava,
portanto, a dar graças ao Senhor e à Virgem e anexava à circular uma cópia do sonho que Dom
Bosco teve na noite do dia 18 de janeiro. Nele, o falecido padre Provera fazia a Dom Bosco uma
série de recomendações para os salesianos e seus alunos.8
Padre Rua continuava, portanto, à parte, sistematicamente à sombra de Dom Bosco. Mas
esse homem humilde impressionava. Eis o retrato que dele traçou durante a viagem uma tes-
temunha perspicaz:
De meia estatura, pálido, o rosto magro, olho vivo, o padre Rua é o típico italiano distinto e diplo-
mático. Sua voz é doce, o sorriso fino, mitigado por uma grande benevolência. Foi nos concedido
passar muitas horas com ele e saímos fascinados dessa conversa, onde à bonomia italiana se une um
conhecimento profundo da alma humana. É um grande caráter.9
No dia 27 de maio, os dois viajantes estiveram no Carmelo de Digione, onde Dom Bos-
co, celebrada a Missa, se dirigiu à enfermaria para abençoar a madre priora, muito doente.
Em 1933, uma carmelita testemunhará: “Há cinquenta anos de distância ainda vejo Dom
Bosco calmo, recolhido, semelhante a alguém que vive mais num outro mundo que neste
7 A travers champs”. Artigo com assinatura de x. em La Liberté, 5 de maio de 1883.
8 Esse sonho é relatado por E. Ceria em MB XVI, p. 15-17.
9 Don Bosco à Paris, par un Ancien Magistrat. Paris, 1883, p. 61. Penso que este “ex-magistrado” seja Albert
du Boÿs, que no ano seguinte publicaria uma feliz biografia de Dom Bosco.
100
[...]. O padre Rua nos causou a impressão de um santo de maneira diferente, um outro Luís
Gonzaga”.10
Com Dom Bosco em Frohsdorf
Para compreender o contexto da inesperada e fulminante viagem feita por Dom Bosco e
pelo padre Rua, no meio do mês de julho, à Áustria, em Frohsdorf, para visitar o conde de
Chambord, pretendente legítimo ao trono de França com o nome de Henrique V, recorramos
ao relato do próprio padre Rua:11
Pelo fim do mês de junho de 1883, caiu gravemente enfermo o conde de Chambord, sobre quem,
depois de Deus, estão apoiadas as esperanças dos católicos franceses pela reordenação dos negócios
políticos e religiosos naquela nação generosa. Logo que se espalhou a notícia, de todas as partes
da França se expediram cartas e telegramas a Dom Bosco para que rezasse e fizesse rezar a Maria
Auxiliadora pelo augusto enfermo. Foram centenas as cartas que, toda semana, lhe chegaram nesse
sentido. Também de Frohsdorf a flor da nobreza francesa que forma sua pequena corte mandou
cartas e telegramas pedindo a Dom Bosco que rezasse e fizesse rezar por ele, fazendo claramente en-
tender a total confiança que o conde nutria na proteção de Maria Auxiliadora, invocada por Dom
Bosco e pelos seus alunos. Respondia-se a quantos se podia garantindo orações e comunhões com
o fim de conseguir a cura do Príncipe, se isto não fosse contrário ao bem da sua alma.
No dia ... do mês de julho chegou um telegrama proveniente de Neustadt, assinado por Abbé Curé,
com resposta paga para vinte palavras. Nele se fazia caloroso pedido a Dom Bosco para que fosse
a Frohsdorf, porque o enfermo desejava vivamente sua visita. Estando Dom Bosco sobrecarregado
de afazeres e não muito bem de saúde, deveu-se, embora lamentando-se, responder que não lhe
era possível, por agora, empreender essa viagem. O telegrama foi perdido e a carta chegou ao seu
destino. O príncipe, ao ouvir que Dom Bosco não podia vir por ora, não perdeu a esperança de
tê-lo junto do seu leito algum dia. Pouco depois, telegrafando ao ótimo conde Joseph Du Bourg
de Tolosa, personagem muito devoto da causa da religião e de sua soberania, enquanto convidava a
retornar a ele, lhe suplicava passar por Turim, apanhar Dom Bosco e trazê-lo consigo.
Joseph Du Bourg, do partido monarquista, amigo dos De Maistre, hospedara Dom Bosco
em Tolosa, em 1882.12 Fez sua parada em Valdocco, no dia 13 de julho, mas, como relatará,
não teve partida fácil:
Este bom padre me acolheu com seu sorriso delicado e benévolo. Depois de ter respondido a todas
as perguntas sobre os meus, lhe expus o objeto de minha viagem e de minha visita. Sem hesitar,
me disse claramente um não, que indicava que já tinha feito uma ideia do problema. Então, me
explicou que sua viagem à França lhe tirara todas as forças; que desde quando voltara estava muito
doente e incapaz de fazer frente a suas obrigações; e ainda que suas pernas se recusavam a caminhar.
Parecia-lhe que tinha em seu lugar duas máquinas cambaleantes e inertes. De resto, o que iria eu
10 Cf. MB XVI, p. 275 (texto e nota).
11 “Viagem de Dom Bosco a Frohsdorf ”, manuscrito de 6 páginas. In: FdB 1349C4-9. Infelizmente essa
relação ficou incompleta.
12 Não seguimos a narrativa do mesmo Joseph Du Bourg, como aparece em sua obra, Les entretiens des
princes à Frohsdorf, 1873 et 1883. La vérité et la legende. Paris, Perrin et Cie, 1910, p. 112-168.
101

6.2 Page 52

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fazer naquele castelo? Não é lugar para Dom Bosco. Rezar pelo príncipe? Eu já rezo e faço toda a
Congregação rezar. Se o bom Deus quiser intervir pela saúde do príncipe, fá-lo-á. Mas quanto a
Dom Bosco, não pode fazer nada mais que rezar, e o faz em Turim como o faria lá.
O seu interlocutor estava “consternado”, mas não se deu por vencido. Insistiu de tal forma
que Dom Bosco aceitou a viagem. Iria a Frohsdorf com o padre Rua.
Outro problema: era preciso partir na mesma tarde. Em Valdocco concordaram. A viagem,
primeiro através da Itália do Norte, depois pela Áustria, na manhã do dia 14 de julho se tornou
difícil por um atraso causado pela não coincidência na estação de Mestre, perto de Veneza.
O trem expresso por Viena partira havia quarenta e cinco minutos. Nossos viajantes preci-
saram se resignar a tomar uma condução com intermináveis paradas. Nessas condições, empre-
garam vinte e quatro horas para chegar à estação de Wiener-Neustadt, na manhã do domingo
15 de julho, depois de duas noites e um dia de estrada de ferro.
Todavia, observou Joseph Du Bourg,
o tempo passou até depressa graças às interessantes conversas de meus dois companheiros de via-
gem. Durante as longas paradas de nosso trem, fiz tentativas inúteis para levar-lhe alguma coisa
que comer. O padre Rua, pelas duas horas da tarde, fez alguma coisa para se comer com dois
ovos e um benedicite como dessert. Ao mesmo tempo, Dom Bosco exercitava suas pernas já pesa-
das, nosso caro pobre homem! Passeando por todo o pórtico da estação, com os braços cruzados
atrás das costas. Sua túnica atraía a atenção de todas as pessoas. De fato, em toda a Áustria, fora
de casa, os padres vestem longas jaquetas e chapéus pretos redondos. Não me admiro que, com
essas dietas, esses dois religiosos sejam magros como dois cucos, mas são santos, o que compen-
sa tudo! Quanto a mim, as orações de Dom Bosco me elevaram o moral, comi por quatro.13
Uma carruagem levou velozmente os nossos viajantes da estação de Wiener-Stadt ao cas-
telo de Frohsdorf. O príncipe, preso ao leito, recebeu Dom Bosco depois que este celebrou
a missa. Logo que saiu, chamou Du Bourg: “Meu caro, vou lhe dizer logo, estou curado.
Não quis me dizer: mas compreendi muito bem; livrei-me dela também desta vez”. Du
Bourg estava no sétimo céu. Depois: “É um santo. Estou feliz por tê-lo visto. Eu o encar-
rego de mandar que sejam colocados dois pratos para esses dois religiosos à mesa de mi-
nha mulher”.14 Como aquele dia, 15 de julho, era a festa de Santo Henrique, onomástico
do conde de Chambord, em seguida foi autorizado que lhe prestassem homenagens, desfi-
lando diante da cama. O capelão do castelo, que nessa circunstância fechava o grupo, nos
refere que o conde lhe dirigiu estas palavras: “Queria vê-lo nestes dias, mas estou muito
cansado!”. E acrescentou, falando de Dom Bosco e do seu companheiro padre Rua: “Dom
Bosco afirma que ele não é o verdadeiro, mas que é o outro”. E como eu não entendia: “Sim,
repetiu, não é ele que faz os milagres, mas o seu companheiro, também ele um santo”.15
13 Joseph Du Bourg, Les entretiens des princes à Frohsdorf, p. 131-132.
14 Joseph Du Bourg, Les entretiens des princes à Frohsdorf, p. 146-147.
15 Carta de A. Curé ao núncio de Viena S. Mannutelli, 17 de julho de 1883, publicada por E. Ceria em
MB XVI, p. 573.
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Durante os dois dias que Dom Bosco e padre Rua passaram no castelo, o conde de Cham-
bord pareceu recuperar-se. Dom Bosco o deixou fazendo que prometesse visitar a Igreja de
Maria Auxiliadora, se continuasse a melhorar. Nossos dois santos viajantes deixaram Frohsdorf
no dia 17 de julho. E, desta vez, subiram num trem que os reconduziu depressa a Turim.
Como digna conclusão dessa viagem histórica, padre Rua se apressou a escrever para a con-
dessa Marie-Thérèse de Chambord em nome de Dom Bosco, para agradecer-lhe pela acolhida,
sua e de seu marido. Endereçava-lhe, ao mesmo tempo, algumas cartas coletivas dos alunos
e aprendizes, com suas fervorosas orações pela saúde do conde. Muito comovida, a condessa
respondeu:
Reverendíssimo padre Rua!
Sua carta me tocou diretamente o coração, eu logo a li a meu caro doente, que ficou comovido,
e ambos lhe agradecemos e ao caro Dom Bosco as palavra. Foi uma grande consolação para meu
marido e para mim receber sua bênção, e saber quantas almas puras e inocentes rezam pela cura do
meu tão caro e amado doente!
Graças a Deus, embora lentamente, se percebe, a cada dia, uma melhora progressiva, malgrado
as pequenas crises que ainda vão chegando, porém, sempre se dissipando depois, e dando novas
esperanças de uma cura completa, que, como disse Dom Bosco, com paciência se conseguirá.
Agradecemos também a ambos pelas tão expansivas e caras cartas escritas pelos filhos do Oratório
de Dom Bosco, pelos jovens estudantes e aprendizes. E meu marido me encarrega expressamente,
e justamente no momento em que estou lhe escrevendo, de pedir ao caro Dom Bosco que continue
suas santas orações, nas quais confia muito.
A memória daqueles dois dias em que Dom Bosco e o senhor, padre Rua, passavam aqui entre nós
ficará sempre muito cara para nós. Alegro-me que sua viagem tenha transcorrido tão felizmente;
e não me surpreende, porque duas almas boas e santas como as suas deviam ser acompanhadas de
modo especial por seus Anjos da Guarda.
E aqui termino, renovando ao caro Dom Bosco e ao senhor a garantia da nossa gratidão e sincera
afeição, com as quais me professo de coração,
Sua obrigadíssima Maria Teresa, condessa de Chambord.
Frohsdorf, 29 de julho de 1883.
Meu marido me encarrega de uma afetuosa saudação especial de sua parte para o senhor.16
16 Carta publicada por E. Ceria em MB XVI, p. 348. A melhora do estado de saúde do conde de Cham-
bord foi somente provisória. Teve uma recaída a partir do dia 15 de agosto e morreu no dia 24 de agosto
de 1883.
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6.3 Page 53

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Capítulo 12
Padre Rua, vigário geral de Dom Bosco
A intervenção de Leão XIII
O início de 1884 tinha sido funesto para Dom Bosco, enfraquecido pelas viagens do ano
anterior. Aos 68 anos, não era ainda tão velho. Mas lhe era atribuída, com razão, uma saúde
muito fraca. Os cansaços, os problemas, os sofrimentos morais tinham feito seu físico em pe-
daços. O médico pôde afirmar que “depois do ano de 1880, mais ou menos, o organismo de
Dom Bosco estava quase reduzido a um ambulatório patológico ambulante”.1
No dia 31 de janeiro, depois do lanche, dirigiu-se ao noviciado de San Benigno, onde se
celebrava a festa do patrono São Francisco de Sales. Sua fraqueza impressionou o mestre Júlio
Barberis. Na boa-noite do dia 1º de fevereiro falou dela aos noviços, dizendo que lhe parecia
chegado o momento de prometer alguma coisa extraordinária ao Senhor para que continuasse
a manter aquele santo homem na terra. Então, conta o padre Barberis, um jovem de 24 anos,
de nome Luigi Gamerro, ofereceu sua vida por Dom Bosco. Seu sacrifício foi aceito, e ele
morreu depois de alguns dias.2
Em fevereiro, uma fortíssima bronquite capilar fez temer pela vida do santo. Recuperou-se
um pouco. Mas seu estado de saúde piorou bem depressa. O papa pessoalmente ficou bastante
preocupado com ele.
No dia 9 de maio, Dom Bosco se encontrava em Roma, em companhia do padre Lemoyne,
para tentar obter os “privilégios” que facilitariam o governo da Sociedade Salesiana. Finalmen-
te, depois de ter esperado longamente um convite formal, foi recebido por Leão XIII. O papa,
sem deixar aquele ar de superioridade que o caracterizava, foi de extrema afabilidade em relação
a ele. E, impressionado com a sua fraqueza, o convidou energicamente a repousar e a fazer os
outros trabalharem para poder recuperar as forças. “O Senhor é de saúde fraca, tem necessidade
de ajuda, de ser assistido. É preciso que coloque ao lado pessoa que reúna suas tradições, que
possa fazer reviver tantas coisas que não se escrevem, ou, se se escrevem, não serão entendidas
como devem ser entendidas”.3
1 G. Albertotti, Chi era Don Bosco? Biografia fisico-psico-patologica scritta dal suo medico, Genova, Fratelli
Pala, 1934, p. 83.
2 Cf. Documenti XXVII, p. 33 (ASC A076).
3 Cf. Verbale del Capitolo Superiore, 24 de outubro de 1884. In: FdB 1881D1-3.
104
O cardeal Nina, protetor dos salesianos, era da mesma opinião. “Dom Bosco quer fazer
muito”, teria dito o papa naquela ocasião. Segundo a autoridade eclesiástica, portanto, em
1884 Dom Bosco não parecia mais em condição de dirigir sozinho o cargo de Superior Geral
dos Salesianos. Poderia morrer de um momento para outro. O que seria então da Sociedade
que tinha fundado? Não se identificava talvez perigosamente com ela? A sabedoria impunha
pensar em seu afastamento, ao menos parcial, e em sua sucessão.
Em setembro, o perigo pareceu iminente. No domingo, 14, enquanto se faziam os exercí-
cios espirituais em Valsalice, Dom Bosco precisou bruscamente voltar a Valdocco, enquanto
o inchaço das pernas o obrigava a estar deitado. O secretário, padre Lemoyne, pensava que se
tratasse de uma crise de erisipela, mas o edema dos membros inferiores poderia ter sido causa-
do também pela anemia, por uma fraqueza cardíaca ou por uma doença pulmonar. Em todo
caso, os seus o julgaram desenganado. Na sexta-feira 19, o Capítulo Superior, presidido pelo
padre Rua, no início da sessão, colocou não só o problema de seu próximo fim, mas também
dos funerais e da sepultura.4 Segundo a ata, “o padre Rua disse que, dada a doença de Dom
Bosco, não se pode deixar de refletir sobre uma dolorosa eventualidade. Seria oportuno pensar
nos funerais, no modo de organizá-los, e pensar também no lugar de sua sepultura. Poder-se-ia
pedir ao governo a permissão de sepultá-lo na igreja do Oratório”. Dom Bosco, de sua parte,
previa lucidamente o aproximar-se do fim. Tinha iniciado a escrever um testamento espiritual
nos inícios do ano de 1884. Em setembro concluiu a segunda parte, na qual falava serenamente
de sua morte.5
No decorrer daquelas semanas escurecidas por sombrias previsões, chegou ao cardeal arce-
bispo de Turim, Gaetano Alimonda, grande amigo de Dom Bosco, diferentemente de seu pre-
decessor, uma carta de dom Domenico Jacobini, secretário da Congregação para a Propagação
da Fé, em nome de Leão XIII. A primeira parte da carta dizia respeito ao padre João Cagliero;
a segunda, ao afastamento e à sucessão de Dom Bosco. Para o bem do instituto, o papa fazia
pedir a Dom Bosco, através do cardeal, para que designasse um sucessor – coisa que equivalia
à demissão de seu cargo de Superior Geral – ou um vigário com direito de sucessão. Eis o do-
cumento importante:
Sua Santidade nesta ocasião me pediu que escrevesse sobre outro assunto interessantíssimo. Ele vê
que a saúde de Dom Bosco definha a cada dia e teme pelo futuro de seu Instituto. Quereria, por-
tanto, que Vossa Eminência, com aqueles modos que sabe tão bem empregar, falasse a Dom Bosco
e o fizesse aceitar a ideia de designar a pessoa que ele acreditasse idônea para sucedê-lo, ou então a
tomar o título de seu vigário com [direito de] sucessão. O Santo Padre se reservaria a prover, num
ou noutro caso, segundo julgasse mais prudente. Deseja, porém, que Vossa Excelência o faça logo,
pois diz respeito muito de perto ao bem do Instituto.6
Parece que o cardeal procurou Dom Bosco na tarde do dia 10 de outubro, dia em que lhe
chegou a mensagem. É verossímil. Durante a reunião do Capítulo Superior do dia 23 de ou-
4 Cf. Ata do Capítulo Superior entre 30 de agosto de 1884 e 23 de fevereiro de 1885. In: FDB 1881.
5 Cf. F. Motto, Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel Sac. Gio. Bosco a’ suoi figliuoli Salesiani (Testamento
spirituale). Roma, LAS, 1985.
6 Documenti XXVIII, p. 450 (ASC A077), onde o documento é datado de 9 de outubro de 1884.
105

6.4 Page 54

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tubro, Dom Bosco comunicou aos irmãos os desejos de Leão XIII e os interrogou sobre o que
fazer. O Capítulo o convidou a designar ele mesmo seu vigário-administrador e a comunicá-lo
ao papa, que aprovaria certamente sua decisão. Dom Bosco optou pelo nosso padre Miguel
Rua que, no entanto, não se tornaria imediatamente superior geral, mas somente seu vigário.
Na verdade, preferia a segunda solução proposta por Leão XIII, não pensando ainda num
afastamento total. Não parece que lhe viesse à mente outro nome para sucedê-lo à frente da
Congregação Salesiana. Sua resposta ao papa foi entregue ao cardeal Alimonda, que, através do
cardeal protetor Nina, a transmitiu no dia 27 de novembro seguinte.7
Ao mesmo tempo, Leão XIII havia expressado seus cumprimentos ao padre Cagliero du-
rante uma audiência no dia 5 de novembro. Havia-o anunciado bispo, nomeando-o vigário
apostólico da Patagônia setentrional e central. Depois de lhe ter falado de sua missão, mostrou-
-se preocupado com a obra de Dom Bosco, quando o Fundador viesse a faltar. “Está velho”, ob-
servava, inclinando a cabeça de maneira significativa. Era preciso, portanto, pensar em reunir
sua herança espiritual para conservá-la e transmiti-la inalterada. Sem isso, o desenvolvimento
da Sociedade logo seria prejudicado. Não havia tempo a perder. Enquanto o Fundador ainda
estivesse em vida, poder-se-ia conhecer mais facilmente o espírito do Instituto. “Para isso, é
preciso um vigário capaz”, concluiu o soberano pontífice.
A oficialização do título de vigário geral
Durante o ano de 1885, o padre Rua continuou a exercer seu ofício de prefeito geral, en-
viando cartas mensais aos diretores das casas salesianas. O novo diretor da obra de Paris, Char-
les Bellamy, gozava de sua especial solicitude: entre janeiro e dezembro daquele ano lhe enviou
dezesseis cartas.8 O padre Rua pedia aos diretores que comunicassem os resultados dos exames
semestrais dos clérigos, recomendava os retiros espirituais dos alunos, dava notícias de Dom
Bosco ou da viagem dos missionários. Em abril, Dom Bosco o enviou em visita extraordinária
às casas dos salesianos e das Filhas de Maria Auxiliadora da Itália central e da Sicília. Foi muito
bem acolhido. Não se comportou como inspetor exigente preocupado com estruturas, como
fizera em 1874-1876 para as obras do Piemonte e da Ligúria. Essa tarefa agora cabia ao inspetor
local. Estava preocupado essencialmente em verificar se as obras cumpriam a sua função edu-
cativa em relação aos alunos internos e externos, como se constata nas anotações que restaram
da visita às obras de La Spezia e de Lucca.9
A visita à Sicília aconteceu num mau momento. A chegada dos salesianos a Catânia, dada
como iminente, inquietava os anticlericais do lugar. La Gazzetta di Catania se encarregara de
uma recente desavença para alertar a população. Uma moça acolhida pelas irmãs salesianas na
casa de Bronte, depois enviada para a casa mãe de Nizza Monferrato, apresentara distúrbios
mentais. Depois de breve período num hospital psiquiátrico de Turim, foi restituída à família.
7 Cf. MB XVII, p. 275-280.
8 Cf. FdR 3853C5-3854B4.
9 Anotações do caderninho publicadas em P. Braido, “Don Michele Rua...”, p. 167-168.
106
A pequena multidão, irritada por esta experiência, difundira comentários que foram ampli-
ficados por um jornalista de La Gazzetta. Disso saiu uma tragédia ambientada no mundo das
religiosas, com cenas inverossímeis. Zombavam das “filhas de Dom Bosco” e se manifestavam
contra aqueles que tinham confiado a estas “hienas travestidas de ovelhas” a direção do colégio
das meninas de Bronte. Quando chegou o padre Rua, a agitação estava no auge. Ele agiu com
calma, reuniu as informações e redigiu uma relação pontual e documentada endereçada ao
jornal que continuou sua campanha como se nada tivesse acontecido. Foi preciso que o jornal
clerical L’Amico della Verità publicasse a relação do padre Rua no número de 27 de abril para
que Catânia entendesse.10
O padre Rua voltou para Turim com sentimentos contraditórios sobre a obra de Magliano
Sabina, perto de Roma. O Capítulo Superior enfrentou a questão durante a reunião do dia 12
de junho de 1885. Dom Bosco queria que os salesianos se retirassem. O padre Rua e os outros
membros do Conselho eram de parecer contrário por causa das previsíveis reações das autori-
dades romanas. O confronto foi evidente. E Dom Bosco concluiu: “Façam como queiram”, e
predisse uma possível “catástrofe”, que aconteceu de fato alguns anos mais tarde. Os salesianos
precisaram então abandonar a obra.
Durante esses meses, Dom Bosco, sempre presente, reconhecia, no entanto, que não podia
exercer sozinho sua tarefa. Observava somente que, quando fosse assumida pelo padre Rua,
poderia dedicar-se à busca de fundos junto aos benfeitores com cartas, ou melhor, com visi-
tas.11 Mas tardava para ser oficializado o título de vigário geral para aquele que continuava a
ser somente o seu prefeito. Provavelmente lhe era difícil imaginar que a Congregação pudesse
gravitar em torno de outro centro. Este outro, tão diferente dele, não alteraria um pouco a ima-
gem? O passo foi dado somente no dia 25 de setembro de 1885, durante uma sessão histórica
que fez do padre Rua seu vigário e sucessor.
Dom Bosco tinha duas coisas para dizer naquele dia.12 A primeira dizia respeito à sua pessoa,
já definida, e à necessidade de ser substituído por outro. A segunda interessava ao vigário geral,
que se ocuparia dos afazeres até àquele dia exercidos por ele e de tudo aquilo que contribuísse
para o bom andamento da Congregação. Estava persuadido de que, ao tratar os afazeres, aceita-
ria de boa vontade seu parecer e não procuraria senão o bem da Sociedade Salesiana, de modo
que, depois de sua morte, nada seria mudado. O vigário devia fazer de modo que as tradições,
às quais a Sociedade estava ligada, fossem conservadas intactas. O Santo Padre o havia caloro-
samente recomendado. As tradições diferem da Regra, especificava Dom Bosco: elas ensinam
como compreendê-la e praticá-la. Era preciso fazer de modo que as tradições fossem mantidas
depois dele e fossem transmitidas tais e quais aos sucessores. E continua Dom Bosco:
10 Esse artigo, assinado “Sac. Michele Rua, Procuratore Generale della Società Salesiana”, foi reproduzido
em MB XVII, p. 823-824.
11 Cf. a sessão do Capítulo Superior do dia 22 de junho de 1885. In: Verbali del Capitolo Superiore. As atas
para o período março 1885 – fevereiro 1888 se encontram em FdB 1882-1883.
12 MB XVII, p. 281-282. O texto que segue retoma a ata dessa reunião. In: Verbali del Capitolo Superiore,
24 de setembro de 1885, FdB 1882E8.
107

6.5 Page 55

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Meu vigário geral na Congregação será o padre Miguel Rua. É o pensamento do Santo Padre que
me escreveu por meio de dom Jacobini. Ele, desejando dar a Dom Bosco toda a ajuda possível,
perguntava-me quem me parecia, entre nossos irmãos, apto a fazer minhas vezes na direção supre-
ma da Pia Sociedade Salesiana. Eu, agradecendo ao Santo Padre por sua benevolência, respondi
propondo para meu vigário o padre Miguel Rua, porque, também em ordem de tempo, é um dos
primeiros da Sociedade, porque há muitos anos exerce em grande parte esse ofício e porque, afinal,
esta nomeação encontraria o total agrado de todos os irmãos. E o Santo Padre, há poucas semanas,
por meio de nosso amado arcebispo, se dignificava significar-me que essa proposta era de seu total
agrado. Por isso, caríssimos filhos, depois de ter rezado por muito tempo ao Dador de todo bem,
depois de haver invocado nosso patrono São Francisco de Sales, valendo-me da faculdade conce-
dida pelo supremo pastor da Igreja, nomeio meu vigário geral o padre Miguel Rua, atualmente
prefeito de nossa Pia Sociedade. De agora em diante, portanto, ele fará minhas vezes no pleno e
inteiro governo da nossa Pia Sociedade, e tudo aquilo que eu posso fazer, poderá fazer também
ele com plenos poderes em todos os negócios públicos e privados que se referem a esta Sociedade
e sobre todo o pessoal, do qual a mesma se compõe [...]. Consequentemente, depois desta eleição
faço-vos saber que, valendo-me da faculdade que me atribuem as nossas Regras, nomeio prefeito
da Pia Sociedade Salesiana o padre Celestino Durando, exonerando-o do cargo de conselheiro
escolar [...].
Dom Bosco terminava pedindo ao secretário do Capítulo que redigisse a circular que anun-
ciaria a todas as casas da Congregação a nomeação do padre Rua como vigário geral. Uma vez
impressa, essa circular trazia a data do dia 8 de dezembro seguinte.13 E Dom Bosco programou
cuidadosamente a sua difusão.
No Oratório, no dia 8 de dezembro, Dom Bosco solenizou a nomeação. Fez questão de estar
presente à mesa no refeitório da comunidade, coisa que não fazia mais havia muito tempo,
pela dificuldade de subir e descer as escadas. Acontecia-lhe muito raramente presidir a bênção
com o Santíssimo Sacramento. Naquele dia ele o fez. Os assistentes subiram nos bancos para
vê-lo, enquanto caminhava lentamente vindo da sacristia. À noite, fez uma conferência para
os salesianos no coro da igreja de Maria Auxiliadora, como tinha o hábito de fazer, todo ano,
naquela data. Antes de tomar a palavra, fez o padre Francesia, inspetor das casas do Piemonte,
ler a circular da nomeação. Não a comentou, mas exaltou a bondade de Nossa Senhora, que
abençoava e protegia a obra salesiana. Foi uma retrospectiva das vicissitudes do Oratório, par-
tindo das origens. A comparação entre o passado e o presente colocava em evidência o longo
caminho percorrido e fazia bem esperar pelo futuro.
No dia 9 de dezembro, a circular foi expedida para os outros três inspetores da Europa e para
os dois da América. Para toda a Família Salesiana, o padre Miguel Rua já era de pleno direito o
vigário geral de Dom Bosco, e era considerado seu sucessor designado. A nomeação foi acolhi-
da não só favoravelmente, mas também com entusiasmo, como testemunham algumas cartas
da França e da América, conservadas nos arquivos salesianos. Citamos aqui somente a resposta,
de Paris, de Charles Bellamy, datada de 15 de dezembro de 1885. Ele escrevia ao padre Rua:
O dia da Imaculada Conceição sempre foi um dia de alegria para nossa Pia Sociedade. Neste ano,
nossa boa Mãe deu o presente de uma notícia que foi acolhida por todos os salesianos como o mais
13 A circular é reproduzida em MB XVII, p. 181-182.
108
precioso, o mais querido, o mais desejado dos presentes, quero dizer, sua nomeação oficial para
o duro mas doce cargo de ser Pai de nossa Pia Sociedade. Damos muitas graças por isso a Nossa
Senhora e prometemos com todo o coração ser para o senhor, como para o caríssimo Dom Bosco,
filhos obedientes e zelosos.
Não falamos dos salesianos da Itália, a começar de nossos velhos companheiros. Os senti-
mentos de João Cagliero, futuro cardeal, expressam bem os de todos:
Fui seu companheiro na juventude, quando clérigo, no sacerdócio e como diretor e membro do
Capítulo Superior, e posso garantir que em todas essas etapas da minha vida, foi sempre primus
inter pares, primeiro na virtude, primeiro no trabalho, primeiro no estudo e no sacrifício, como foi
sempre primeiro no amor santo e forte para com Dom Bosco e para com os jovens, pelo bem e pelo
desenvolvimento, dos quais era todo zelo, solicitude, fraterna e paterna caridade.14
Padre Rua tinha 48 anos completos. Vinte anos na qualidade de prefeito haviam impresso
nele um ar de severidade, não espontânea, mas querida pela natureza dos deveres inerentes
a essa tarefa. Feito vigário de Dom Bosco, mudou completamente, esforçando-se por imitar
dentro de si o sentido de paternidade do santo. A mudança foi notável. Agora os irmãos, que o
estimavam muito, lhe manifestavam um afeto filial. O padre Ceria, na biografia do padre Rua,
como testemunha ocular, o observa oportunamente nesta passagem: “Aqueles que não viveram
aqueles anos não podem compreender plenamente o valor daquilo que dizemos, não tendo
experimentado o que Dom Bosco vivo era para os salesianos”.15 Conservemo-lo presente!
Com Dom Bosco na Espanha
No dia 1º de março de 1886, o secretário de Dom Bosco, Carlo Viglietti, anotava em sua crôni-
ca: “A fome, dizia hoje Dom Bosco, faz o lobo sair do seu covil. Vejo-me, portanto, obrigado, de-
crépito e cansado, a empreender uma nova viagem e a ir, talvez, à Espanha. Já se fala do dia em que
vamos partir”. O santo projetava, portanto, dirigir-se à Espanha, país onde tinha já duas fundações,
Utrera, na Andaluzia, e Sarriá, na Catalunha, e onde tinha alguns generosos benfeitores.16
Na verdade, essa viagem parecia impossível aos íntimos de Dom Bosco, tanto ele parecia ex-
tenuado e sofredor. No entanto, no dia 12 de março, nas primeiras horas do dia, em companhia
do secretário Viglietti, deixou Turim para ir à Ligúria e à casa salesiana de Sampierdarena. A via-
gem seria realizada em pequenas etapas, com paradas mais ou menos longas, durante as quais ele
recolheria donativos para suas obras, para a igreja e para a casa do Sagrado Coração em Roma.
No dia 16 de março, continuando a viagem para Riviera, chegaram a Varazze, e no dia 17 a
Alassio; de lá passaram para a França. Chegaram a Nizza no dia 20; no dia 27 se transferiram
para Cannes: no dia 29 foram a Tolone e no dia 31 a Marselha.
14 Discursos citados por Amadei I, p. 348. Correspondem, quase palavra por palavra, ao depoimento do
cardeal João Cagliero sobre as virtudes do padre Rua.
15 E. Ceria, Vita del Servo di Dio Michele Rua. Torino, SEI, 1949, p. 120.
16 Sobre a viagem de Dom Bosco à Espanha, cf. MB XVIII, p. 66-138.
109

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Em Turim, havia dúvida sobre a oportunidade de continuar a viagem até à Espanha. “Huma-
namente falando, visto o estado de saúde de Dom Bosco, não seria sequer imaginável”, escrevia
no dia 28 de março o padre Giuseppe Lazzero a dom Cagliero. Mas as notícias provenientes
da França deixavam entender, ao contrário, que este tipo de cansaço, com as manifestações de
multidão que Dom Bosco suscitava, o revigorava mais que o enfraquecia. Sua tenacidade era
conhecida. Também o padre Rua decidiu fazê-lo chegar até Marselha.
No dia 2 de abril, estava no Oratório São Leão ao lado de Dom Bosco. Para se familiarizar
com o espanhol, levou consigo uma gramática elementar, o livreto Don Bosco y su obra de dom
Spínola e a tradução espanhola da Imitação de Cristo. Os progressos foram rápidos, visto que,
passada a fronteira, vai se dar bastante bem com o espanhol.
Em Marselha, Dom Bosco permitiu que fossem tomadas algumas precauções para lhe faci-
litar a viagem, mas iria a qualquer custo encontrar os amigos além dos Pireneus. No dia 4 de
abril, Viglietti anunciava a Lemoyne: “Nosso pai está cheio de coragem, apesar de sua fraqueza
física...”.
Para tratá-lo com a máxima atenção, partindo de Marselha no dia 7 de abril, padre Rua de-
cidiu que a viagem no território francês seria feita numa carruagem de primeira classe. Assim,
no dia 8, às quatro da manhã, Dom Bosco, o padre Rua e o padre Viglietti chegaram à estação
espanhola de Port-Bou, na fronteira com a França. Esperava-os o diretor da casa de Sarriá, o
padre Giovanni Battista Branda. Fizeram baldeação, para prosseguir a viagem até Barcelona
num vagão reservado.
Foram oferecidas bebidas aos passageiros. Dom Bosco as aceitou. Mas o padre Rua, que
queria estar em jejum para celebrar a missa em Barcelona, recusou. Durante o percurso,
entabulou-se uma conversa que, acidentalmente, envolveu nosso padre Rua. O diretor,
padre Branda, tivera, no dia 6 de fevereiro anterior, uma espécie de visão durante a qual
Dom Bosco, que estava em Turim, lhe apareceu, em plena noite, na porta do quarto, lhe
indicou um coadjutor e dois rapazes culpados de atos obscenos, depois foi com ele passe-
ando pelos dormitórios da casa de Sarriá. Naquela noite, portanto, Dom Bosco estivera ao
mesmo tempo em Turim e em Sarriá. Estaria consciente? Em Port-Bou, tomando lugar no
compartimento com Dom Bosco, Branda pôs-se a interrogá-lo sobre esse acontecimento.
“Conte”, retrucou simplesmente Dom Bosco, atendo-se ao testemunho do próprio padre
Branda. Mas não conseguiu nenhum esclarecimento. Ao contrário, Dom Bosco dormiu.
Então o diretor de Sarriá foi ao compartimento vizinho para contar toda a história ao
padre Rua, que a registrou cuidadosamente.17 A história salesiana oficial, na versão de
Lemoyne (1913) e de Ceria (1937), nunca duvidou da realidade do fato. Mas para poder
afirmar que tenha havido uma bilocação autêntica, como o padre Branda muitas vezes
solenemente afirmou, seria preciso que Dom Bosco tivesse tido consciência do seu des-
locamento. Infelizmente, para o visionário Branda, não existe documentação de que ele
17 Testemunhá-lo-á no processo de canonização de Dom Bosco, juntando esta narrativa a uma frase que
ouviu dele em Turim, no mesmo mês de fevereiro, sobre a intenção de ir visitar o padre Branda (Positio
super Introductione Causae. Summarium, p. 830).
110
tenha dado a impressão de alguma viagem espiritual de Turim para Barcelona em fevereiro
de 1886.18
Naqueles dias, o padre Rua estava para ser a testemunha estupefata da acolhida reserva-
da a Dom Bosco pela cidade de Barcelona. Nas estações francesas, o santo encontrava al-
gum benfeitor amigo. Em Barcelona foi recebido pelas autoridades civis e religiosas do país.
A rainha regente era representada pelo governador da cidade e o arcebispo (em visita pasto-
ral) por um vigário geral. Tinham se movimentado para a ocasião os dirigentes da Associação
Católica e diversas personalidades. Havia grande número de devotos e de curiosos. “Milhares
de pessoas, de todas as categorias sociais, acorreram à estação para ver Dom Bosco”, escre-
veu Ceria, talvez com certo exagero. As delegações oficiais representavam um protocolo de
prioridade. Este belo mundo se apresentava bem em ordem, explicará o secretário Viglietti.
Colocavam-se em evidência cooperadores e cooperadoras ricos. Entre eles, a senhora Do-
rotea Chopitea, que teve a honra, invejada por muitos, de acolher em sua carruagem Dom
Bosco, o padre Rua e o clérigo Viglietti. Depois da missa do padre Rua e um bom almoço
na casa da senhora, nossos viajantes se dirigiram ao Instituto de Sarriá, destinado a hospedá-
los durante a estadia em Barcelona, entre 18 de abril e 6 de maio. Lá Dom Bosco receberá
inumeráveis visitas, que, na maioria das vezes, poderá somente abençoar em grupos distin-
tos. Esses devotos e curiosos voltavam levando consigo medalhas de Maria Auxiliadora. Ele
tomou parte também nalgumas recepções dadas em sua honra em casa de amigos ricos, em
belíssimas igrejas ou em esplêndidos salões.
Nesse meio-tempo, o padre Rua se preocupava com o espanhol. Admirava-se Dom Bos-
co, que lhe perguntou se tinha aprendido somente alguma frase de uso corrente. “Um pou-
co mais”, lhe respondeu. “Bravo, bravo. Você vai me tirar muitas vezes de dificuldades”.
De fato, servia-lhe de intérprete, quando, pelo nível dos interlocutores, não era preciso
que outros salesianos exercessem essa tarefa. Uma carta endereçada no dia 9 de abril ao
irmão João Bonetti testemunha sua rápida familiarização com a língua. Começa a carta em
espanhol e então, depois de um parágrafo, finge se repreender: “Veja! Estou tão habituado
a falar em castelhano que quase não percebi que lhe escrevia nesta língua, que, apesar da
sua visita a esta cidade, não pôde ter muita prática da língua, pelo tempo muito breve. Para
não fazer você perder tempo, continuarei em italiano”. O prefeito geral padre Durando, de
vez em quando, endereçará às casas salesianas as relações da viagem a partir das informa-
ções fornecidas pelo secretário Viglietti. O nome do padre Rua não aparece senão numa
circular do dia 5 de maio. Nela se lê: “Não é preciso que eu me esqueça de dar-lhe notícias
também do amado padre Rua, que em todo o tempo da estada de Dom Bosco na Espanha
lhe serviu de verdadeiro vigário e apoio, em meio a muitas e variadas ocupações. Nenhum
cansaço, nenhum trabalho o abatem. Mas o que poderá parecer maravilhoso para alguns
será saber que para um público numeroso ele pregou em língua espanhola, na nossa igreja
de Sarriá”. Era o dia 26 de abril, segunda-feira de Páscoa.19
18 Sobre a “bilocação de Barcelona”, cf. Don Bosco en son temps, p. 1350-1356.
19 Ceria, Vita, p. 122-123.
111

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Padre Rua acompanhou sempre Dom Bosco durante todas as manifestações em sua honra,
na casa de Sarriá e em seus deslocamentos por Barcelona.20 Esteve a seu lado no dia 14 de abril,
no colégio das Damas do Sagrado Coração; no dia 15 de abril, por ocasião da noite na qual
a Sociedade Católica de Barcelona lhe concedeu o título de membro honorário; no dia 17 de
abril, no banquete oferecido por dom Narciso Pascual; no dia 29 de abril, no momento da vi-
sita ao presidente do Banco de Barcelona, Oscar Pascual; no dia 30 de abril, para a conferência
dos cooperadores salesianos na Igreja de Nossa Senhora de Belém; no dia 1º de maio, durante
a missa de Dom Bosco na mesma igreja; no dia 2 de maio, durante o almoço com o arcebispo
de Barcelona; no dia 3 de maio, na esplêndida recepção oferecida na vila de dom Luis Martí
Codolar; no dia 4 de maio à tarde, nas visitas à família Pons no colégio dos jesuítas e num
hospital fundado pela senhora Doroteia Chopitea; no dia 5 de março, por ocasião do encontro
com a marquesa de Comillas e de uma cerimônia na igreja de Nossa Senhora das Mercês. No
entanto, salvo poucas exceções, a crônica detalhada do secretário Viglietti não o cita. Lembra-
mos um desses casos.
No dia 11 de abril, Dom Bosco convocou o padre Rua, o diretor Branda e o secretário
Viglietti e relatou entre lágrimas um sonho que tivera naquela noite, do dia 9 para o dia
10. Tratava-se de um sonho “missionário”, no qual o santo viu multidões de jovens que lhe
gritavam: “Nós te esperamos”, e um grupo guiado por uma pastorzinha que lhe indicava
Valparaíso no Chile, e além dos montes, colinas e oceanos um outro lugar que se chamava
Pequim. A pastorzinha traçou uma linha que ia de Santiago a Pequim, através da África,
e disse: “Aqui você tem uma ideia exata daquilo que devem fazer os salesianos”. “Mas –
exclamou Dom Bosco –, como podemos fazer? As distâncias são imensas, os lugares de
difícil acesso e nós não somos suficientes”. Indicou-lhes, então, pontos da Índia ou da
China para o noviciado das novas adeptas. Os três ouvintes, maravilhados, exclamaram em
diversas vezes: “Oh! Maria, Maria!”. Nosso vigário geral registrava toda informação que
considerava de origem celeste. As missões seriam sempre sua preocupação. Um dia, não
terá dúvida de enviar seus discípulos à África e à Ásia. “Como Maria nos ama!”, teria ex-
clamado Dom Bosco, concluindo a narração. O padre Rua teve sempre confiança naquela
espécie de premonição.21
O retorno da Espanha
Nossos três viajantes deixaram Barcelona no dia 6 de maio para chegar à Itália em etapas,
em nove dias. Pararam sucessivamente em Gênova, Montpellier, Valence e Grenoble.22 Nessas
duas últimas cidades vemos o padre Rua passar para o primeiro plano.
20 Diário da estada de Dom Bosco em Barcelona. In: MBXVIII, p. 66-177. Baseio-me também na crônica
cuidadosa do secretário Viglietti.
21 Esse sonho, inserido na crônica de Viglietti (FdB 1224D6-7), é reproduzido, com alguma correção de
Lemoyne, em MB XVIII, p. 72-74.
22 Cf. Eventualmente o capítulo “Partenza dalla Spagna e ritorno a Torino”, em MB XVIII, p. 118-138.
112
Em Montpellier, o doutor Combal, consultado sobre o estado de saúde de Dom Bosco,
não pôde confirmar ao padre Rua e a Viglietti um diagnóstico formulado dois anos antes em
Marselha: “Dom Bosco não tem outra doença senão uma extrema prostração de forças. Se
Dom Bosco nunca tivesse feito nenhum milagre, eu acreditaria que este é o maior de toda a sua
existência. É um organismo desfeito. É um homem morto pelo cansaço e continua trabalhan-
do todo dia, come pouco e vive. Este é para mim o maior dos milagres”. Os dias passados em
Barcelona o haviam desgastado por completo.
Assim, em Valença, no dia 11 de maio, Dom Bosco não estava em condição de fazer a confe-
rência prevista na catedral. Substituiu-o padre Rua, que contou a história de Valdocco. Ele teve
ocasião de intervir também no dia 12, em Grenoble, desde a chegada à cidade. Logo que saí-
ram da estação, os três viajantes vislumbraram na Praça São Luís, ao lado da igreja homônima,
uma multidão reunida ao anúncio da chegada do taumaturgo Dom Bosco. As ruas adjacentes,
a praça da igreja regurgitavam de gente. O pároco, vestido com sobrepeliz e rodeado por seu
clero, esperava o santo na porta da Igreja. A população fez silêncio e o pároco, em voz alta,
convidou Dom Bosco para abençoar os paroquianos e para ouvir todas as suas intenções. Dom
Bosco obedeceu de boa vontade: abençoou a multidão e se dispôs a prosseguir o caminho para
a casa do bispo. Mas sua bênção geral não havia satisfeito a devoção do público. Segundo uma
expressão de seu secretário, na Praça São Luís o esperava uma “nova forma de perseguição”.
As pessoas, colhidas por um sentimento que Viglietti não soube se chamava “entusiasmo” ou
“furor”, se atiraram sobre Dom Bosco, que o padre Rua se esforçava por proteger. Tinham
trazido objetos de piedade: crucifixos, medalhinhas, rosários, que queriam absolutamente fazê-
-los tocar nele. Aqueles que não podiam se aproximar lhe atiravam de longe terços nos ombros,
nos joelhos, na cabeça e nos braços. “Uma piedosa flagelação”, testemunhará o padre Rua no
processo de canonização. Os devotos mais próximos lhe colocavam com mais força crucifixos
ou medalhas na boca. No fim se conseguiu fazê-lo andar mais depressa para que pudesse chegar
ao seminário maior, onde ficaria hospedado.
No dia seguinte, 13 de maio, o superior do seminário propôs ao padre Rua pregar aos semi-
naristas a “leitura espiritual” regulamentar, expressão que na linguagem sulpiciana traduz “lição
espiritual” ou “lição de espiritualidade”. Um seminarista testemunha contará a cena:
O piedoso confessor de Dom Bosco toma por tema o amor de Deus por nós. Suas palavras arden-
tes deixam transparecer uma alma de fogo. É mais uma contemplação que uma meditação. Para
o santo [Dom Bosco] essas palavras se tornam um êxtase. Em suas faces correm grossas lágrimas
e Messieur Rabilloud [o superior do seminário], com sua voz tão doce e envolvente, diz em voz
alta: Dom Bosco chora! Impossível expressar a emoção que esta simples palavra provoca em nossas
almas. As lágrimas do santo são mais eloquentes que os suspiros inflamados do padre Rua. Agora
estamos comovidos desde o mais profundo de nossa alma. Reconhecemos a santidade pelo gesto
de amor e não precisamos de milagres para expressar ao santo nossa veneração, enquanto vamos da
sala dos exercícios para o refeitório.23
23 Dom Pierre Mouton, “Séjour de saint Jean Bosco au séminaire de Grenoble, mai 1886”. In: Documenti
XXXII, p. 328 (ASC A081).
113

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Dom Bosco, seu vigário Rua e o secretário Carlo Viglietti voltaram para Turim no dia
15 de maio à tarde, para a abertura da novena em preparação da festa de Maria Auxiliadora.
Dom Bosco, abatido pelo cansaço, atravessou o pátio da escola lentamente, muito lentamente,
precedido pela banda de seus jovens, entre duas alas de rapazes. A viagem à Espanha deixará
no padre Rua a recordação do último triunfo do adorado mestre, do qual tinha se tornado o
humilde vigário.
114
Capítulo 13
A morte de Dom Bosco
Um vigário humilde e piedoso
O Padre Rua exerceu cuidadosa e humildemente o seu papel de vigário. Em agosto de 1886,
Dom Bosco lhe confiou a presidência do Capítulo Geral das Filhas de Maria Auxiliadora, que
acontecia em Nizza Monferrato. Concedia-lhe as faculdades especiais necessárias para toda de-
cisão considerada útil ao interesse do instituto. Na carta que lhe endereçou com esse objetivo,
acrescentava: “Coragem! O Senhor nos preparou muitas tarefas, esforcemo-nos para realizá-las.
Estou meio cego e a minha saúde está definhando”.1 Dom Bosco, que não podia fazer outra
coisa senão orar, se apoiava com tranquilidade no seu vigário.
Dom Bosco, em setembro, presenciou em Valsalice o Capítulo Geral dos salesianos, que
reunia todos os diretores das casas. Mas – e esta é uma novidade – por carta tinha enviado
oficialmente “o padre Miguel Rua, vigário geral da Congregação”, para receber em seu lugar o
rendiconto espiritual de cada um dos membros do Capítulo.2 O padre Rua interveio duas vezes
durante os trabalhos. Na sessão de abertura leu o regulamento capitular. Nas intervenções
finais, comunicou aos capitulares doze tarefas para os diretores, queridas provavelmente pelo
próprio Dom Bosco, mas marcadas com o rigor típico do antigo prefeito geral, em matéria de
observância da pobreza, da vida comunitária e da formação dos jovens salesianos educadores.3
Dom Bosco praticava ao extremo a pobreza que recomendava. Amadei, seu contemporâneo,
afirma que quando, atravessando o pátio do Oratório, acontecia encontrar uma pena nova
mostrava-a dizendo: “Olha o que eu encontrei: dá para escrever durante alguns meses!”.4 Um
de seus jovens secretários da época, Antonio Dones, contará que o padre Rua lhe pediu mais
de uma vez que levasse aos alfaiates ou aos sapateiros roupas ou sapatos seus para consertar,
dizendo-lhes, porém, que primeiro passassem pelo prefeito, para que lhes fizesse as autorizações
regulamentares. Quando este lhe fez observar que o vigário de Dom Bosco podia dispensar essa
exigência, replicou: “Absolutamente: somente o prefeito pode dar ordens nas oficinas”.5
1 Carta de João Bosco a Miguel Rua. Pinerolo, 8 de agosto de 1886. In: Epistolario Ceria IV, p. 359.
2 Epistolario di S. Giovanni Bosco, per cura di D. Eugenio Ceria, 4 v. Torino, SEI, 1955-1959, IV, p. 355-356.
3 Cf. MB XVIII, p. 188-189.
4 A. Amadei, Il Servo di Dio Michele Rua, 3 v. Torino, SEI, 1931-1934, I, p. 364.
5 Amadei I, p. 364-365.
115

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Era preciso tempo para tirá-lo da meditação cotidiana. O padre Alessandro Lucchelli (1864-
1938) contará no processo apostólico:
Seu comportamento era admirável. Exteriormente parecia que essa meia hora não fosse senão um
colóquio íntimo de sua alma com Deus. Nenhum acontecimento podia fazê-lo abandonar sua
atitude profundamente devota. Na manhã do dia 23 de fevereiro de 1887 – primeiro dia da Qua-
resma – estávamos fazendo a meditação na igreja (eu era o leitor). O tremor de um terremoto e o
enorme barulho foram tais que nos parecia que a cúpula de Maria Auxiliadora fosse desmoronar.
Todos fugimos para fora. Somente o padre Rua permaneceu, imóvel no seu lugar, para espanto de
quem o pôde ver.6
Em Roma para a consagração da igreja do Sagrado Coração
Dom Bosco desejava estar presente à consagração da igreja do Sagrado Coração em Roma,
pela qual havia tanto sofrido. No dia 20 de abril de 1887, partiu para a capital, em breves eta-
pas, em companhia do padre Rua e do padre Viglietti. Chegaram ao destino no dia 30. Dom
Bosco estava prostrado, como também o padre Rua, que, numa manhã, enquanto se preparava
para celebrar a missa, perdeu a consciência e precisou deitar-se numa cama. Mas recuperou-se
logo, com muita energia, e celebrou a missa como se nada houvesse acontecido.
No dia 13 de maio, véspera do dia da consagração, Leão XIII recebeu Dom Bosco no seu
escritório. No momento de se despedir, o santo pediu ao papa se podia fazer entrar o padre Rua
e o padre Viglietti, que esperavam na antecâmara. O cronista relatou as palavras do papa: “Ah!
Vocês são os vigários da Congregação. Muito bem, muito bem! Sei que desde a infância vocês
cresceram com Dom Bosco. Continuem, continuem a obra e conservem em vocês o espírito de
seu fundador. – Oh! Sim, Santo Padre, respondeu o padre Rua. Com vossa bênção, esperamos
poder gastar até ao último respiro por uma obra à qual nos consagramos desde nossa infância”.
Pediu depois a permissão para apresentar um pedido: um indulto para facilitar a entrada na
Congregação. O papa o escutou e deu seguimento a seu pedido. O indulto foi concedido por
cinco anos.7
Os três viajantes voltaram para Turim no dia 20 de maio à tarde. Logo que entraram no
Oratório, Dom Bosco quis agradecer a Maria no seu santuário. Era o sexto dia da novena em
preparação para a festa de Maria Auxiliadora. Toda a comunidade estava reunida para a celebra-
ção habitual. O Padre Rua presidiu a bênção com o Santíssimo Sacramento, que Dom Bosco
recebeu com devoção.
Tradicionalmente, por ocasião da festa de Maria Auxiliadora, havia uma conferência para os
cooperadores salesianos de Turim. Naquele ano, o padre Rua foi o encarregado. Encontramos
sua relação no Bollettino Salesiano do mês de julho.
6 Alessandro Lucchelli (1864-1938). In: Positio 1947, p. 586-587.
7 Verbali del Capitolo Superiore, 12 de setembro de 1887. In: FdB 1883C12.
116
Aconteceu no Santuário, na noite do dia anterior [13 de maio], na qual o sacerdote Rua, vigário
de Dom Bosco, narrou as festas celebradas pouco antes em Roma para a consagração da igreja do
Sagrado Coração, a audiência cordialíssima que o Santo Padre Leão XIII concedeu a Dom Bosco,
a bênção que o Sumo Hierarca invocou sobre todos aqueles que haviam concorrido para a cons-
trução da supracitada Igreja do Sagrado Coração, o progresso das missões salesianas da Patagônia,
e a proteção especialíssima de Maria Auxiliadora, que ainda nesses últimos meses salvou como por
milagre dom Cagliero da morte certa, chefe das mesmas [durante uma travessia da Cordilheira dos
Andes, precisara apear do seu cavalo, que se irritou improvisamente], eis as ideias principais de um
encontro muito interessante e instrutivo.
A substituição de Dom Bosco, que ficou sem voz
O padre Rua substituiu ainda Dom Bosco, antes que este se adoentasse, por ocasião de três
manifestações públicas. Nos dias 23 e 24 de junho, na festa de São João Batista, o Oratório fes-
tejava solenemente, como em todo ano, o onomástico do padre João Bosco. Os festejos trans-
corriam no pátio grande da casa, único lugar capaz de conter tanto os rapazes como os nume-
rosos convidados. Depois do momento musical e literário, na noite do dia 24, Dom Bosco não
conseguiu se expressar como de costume. Delegou o padre Rua para agradecer em seu nome a
“academia” e os presentes. O padre Rua o fez num “discurso comovido”, nos diz o cronista do
Boletim Salesiano. E o público foi tomado de grande emoção, também porque todos estavam
convencidos de que o acontecimento não se repetiria mais. Os ex-alunos costumavam organi-
zar um banquete no fim da festa. Dom Bosco naquele ano não pôde participar. Substituiu-o
o padre Rua e falou em seu nome. Exortou os convidados a manter o espírito e a imitar em
sua vida o comportamento, os conselhos e os desejos de seu benfeitor. Os ouvintes tiveram a
agradável surpresa de descobrir no padre Rua a conhecida paternidade de Dom Bosco.8
Naquele ano, o santo não pôde ir à França, como era seu costume desde 1876. Mas os
franceses vieram a ele. Eram mais de 900 operários, dirigidos por Léon Harmel, que, ao
longo do caminho para Roma, fizeram uma parada em Turim. Com sua peregrinação tinham
a intenção de honrar o jubileu sacerdotal de Leão XIII. Chegaram à estação de Turim no
dia 13 de novembro. Queriam encontrar Dom Bosco, mas o pouco tempo disponível não
permitia ir até Valdocco. Dom Bosco, portanto, foi a seu encontro junto com o padre Rua,
até ao parque do Valentino, onde um restaurante aguardava os peregrinos. Abençoou-os
solenemente e quereria falar, mas a voz chegava com dificuldade à primeira fila. Convidou,
portanto, o padre Rua a falar em seu nome. Ele o fez sem problemas e em francês. Dom
Bosco, disse, se alegra e agradece os peregrinos; pede-lhes que supliquem ao papa por toda a
Família Salesiana as graças, das quais ela precisa para cumprir sua missão; convida-os a visitar
em Roma a igreja do Sagrado Coração; promete celebrar a missa já na manhã seguinte para
obter os favores divinos sobre toda a peregrinação. Depois do discurso, os peregrinos des-
filaram diante de Dom Bosco, que dava a cada um uma medalhinha de Maria Auxiliadora.
8 E. Ceria, Vita del Servo di Dio Michele Rua. Torino, SEI, 1949, p. 130.
117

6.10 Page 60

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Muitos lhe faziam deslizar nas mãos uma moeda de prata, que ele entregava ao padre Rua.9
No dia 24 de novembro, a igreja de Maria Auxiliadora ficou repleta de fiéis para uma ceri-
mônia inédita. O príncipe polaco Augusto Czartoryski, que havia se encontrado pela primeira
vez com Dom Bosco em Paris em maio de 1883, realizava seu sonho e entrava na Congregação
Salesiana. Receberia das mãos de Dom Bosco o hábito religioso. Faziam-lhe companhia outros
3 adultos: 1 francês, 1 inglês e 1 polaco. Dom Bosco caminhou lentamente, no coro com os
4 postulantes. Depois do canto do Veni Creator, convidou-os com as palavras do ritual a se
despir do homem velho. Deixaram, então, casaco e gravata para os clérigos que assistiam. De-
pois os convidou a revestir o homem novo e entregou a cada um a veste. Então, o padre Rua
subiu ao púlpito e pronunciou o sermão de ocasião a partir da frase do profeta Isaías: Filii tui
de longe Venient (Os teus filhos virão de longe). Depois do canto do Te Deum, quando saíram
da igreja, os anciãos comentavam e diziam: “O padre Rua falou com o espírito e com o coração
de Dom Bosco”.10
A morte de Dom Bosco
A partir da metade de dezembro de 1887, a saúde de Dom Bosco piorou cada vez mais.
O padre Rua permaneceu sempre a seu lado, pronto para qualquer eventualidade. No dia 21
de dezembro, o fim pareceu iminente. Contorcia-se por causa das náuseas contínuas. Estava
febricitante. Seus enfermeiros, com medo de vê-lo vomitar, não sabiam o que lhe dar para
comer. Respirava com dificuldade. Pela tarde confiou a seus íntimos que, pelas 4 da tarde,
tinha percebido que era o momento da morte. “Não tinha mais consciência de nada.” Pediu os
últimos sacramentos. “Viglietti – disse ao secretário – faça com que não seja o único sacerdote
aqui. Preciso que haja algum pronto para me dar a extrema-unção”. “Dom Bosco – replicou-
lhe o secretário –, o padre Rua está sempre aqui”.11 Satisfizeram seu desejo na véspera do Natal.
Dom Cagliero lhe levou solenemente o viático na hora da missa comunitária, logo de manhã.
E lhe administrou a unção pelas 11 da noite.
Alarmado com a situação, entre o dia 26 e o dia 31 de dezembro, o padre Rua expediu a
cada dia aos diretores uma circular detalhada sobre a evolução da doença de Dom Bosco12.
A circular do dia 27 de dezembro falava de uma cardiopulmonite, isto é, uma doença que atin-
gia coração e pulmões. A habitual jovialidade do doente, no entanto, levava vantagem sobre
o mal e sobre a dor. Quando no dia 26 três médicos fizeram uma consulta sobre o estado de
saúde à sua cabeceira, confiou a Viglietti, como o doente da comédia de Molière: “Videamus
9 “Le pèlegrinage des ouvriers français à Rome”. In: Bulletin Salésien (ed. francesa), novembro 1887, p.
132-133.
10 Segundo E. Ceria, em MB XVIII, p. 466-468. A crônica original de Carlo Viglietti, na data de 24
de novembro, não cita senão uma única cerimônia no quarto de Dom Bosco. Suponho que, depois da
cerimônia na igreja de Maria Auxiliadora, bem documentada, a família Czartoryski tenha visitado Dom
Bosco. Cf. as crônicas de Viglietti em FdB 1222D2-127D8.
11 C. Viglietti, Cronaca primitiva, 23 de dezembro de 1887.
12 Cf. as circulares em FdR3980A10-B8.
118
quid valeat scientia et peritia trium doctorum” (Vejamos o quanto vale a ciência e a competência
de três doutores). No dia 27, enquanto 4 salesianos, entre os quais o padre Rua e um médico,
procuravam um modo de transportá-lo de uma cama para outra, disse: “É preciso fazer assim:
amarrar-me uma corda ao pescoço e puxar-me de uma para outra cama”. A transferência foi, de
resto, uma verdadeira confusão: o padre Rua se viu na nova cama com Dom Bosco estendido
sobre ele.
Os filhos intensificavam suas reflexões espirituais. Na circular do dia 30 de dezembro, o
padre Rua escrevia:
Ontem à noite, num momento em que podia falar com menor dificuldade, enquanto estávamos
ao redor do seu leito dom Cagliero, o padre Bonetti e eu, disse, entre outras coisas: “Recomendo
aos salesianos a devoção a Maria Auxiliadora e a comunhão frequente”. Eu acrescentei então: “Esta
poderia servir para a estreia do novo ano para ser mandada a todas as nossas casas”. Ele respondeu:
“Esta deve ser para toda a vida...” depois concordou que servisse também como estreia. Não esque-
çamos este precioso conselho do nosso amadíssimo pai. Meditemo-lo praticamente nós mesmos,
recomendemo-lo a nossos jovens e sirvamo-nos dele para implorar a graça de sua cura.
O mal pareceu debilitar-se. Dom Bosco estava melhor e os médicos falavam de uma possível
cura, anunciada alegremente pelo padre Rua no dia 31 de dezembro. Mas não era preciso se ilu-
dir. No dia 2 de janeiro, o padre Rua procurou diminuir o otimismo. “A grave doença do nosso
amado pai não piora, mas a melhora é muito lenta. O perigo de uma morte iminente parece
descartado. Deseja a todos para o ano novo uma boa saúde espiritual e corporal, com o objetivo
de poder progredir na virtude, no estudo e nas diversas ocupações cotidianas”. A pausa durou
três semanas. Dom Bosco recomeçou a falar, comia um pouco e recebia visitas. No entanto, es-
tava cético. No dia 6 de janeiro, advertiu o secretário Viglietti: “É bom que você diga ao padre
Rua que fique atento. Sinto-me um pouco melhor, mas a minha cabeça não sabe mais nada.
Não sei se é manhã ou noite, que ano e que dia é, se é dia de festa ou dia de semana... não sei
me orientar... não sei onde estou. Apenas conheço as pessoas... não recordo as circunstâncias...
parece-me que estou rezando sempre, mas não sei com certeza... Ajudem-me vocês!”.13
A partir do dia 24 de janeiro, recomeçou a piorar.14 A partir do dia 27, começou frequen-
temente a perder a consciência e a delirar. Quando retornava à lucidez, saudava os caros dis-
cípulos: Berto, Durando, Bonetti e o padre Rua. “Diga aos jovens que os espero no paraíso”,
repetia. A noite de 29 para 30 foi muito dolorosa para o pobre Dom Bosco, que não conseguia
respirar nem engolir. Pelas 2 da manhã, começou a tremer, a bater os dentes e a respirar com
dificuldade. Até sua cama tremia. Apavorado, o enfermeiro tentou levantá-lo. Dom Bosco o
apertou forte e, por um instante, o enfermeiro pensou que fosse expirar em seus braços. Mas
se acalmou. Com um fio de voz invocou Maria Auxiliadora e acrescentou: “Seja feita em tudo
a vontade de Deus!”. Quando o sol apareceu, observou-se que tinha um braço paralisado. Em
seguida, não falou mais, mas quereria dizer alguma coisa aos seus íntimos. Talvez tenha mur-
murado naquela manhã aos ouvidos de seu grande discípulo: “Faça-se amar!”. E o padre Rua
decidiu que os salesianos e os jovens passassem para beijar a mão do moribundo. Houve uma
13 Cf. Viglietti, Cronaca primitiva, dessa data; cf. MB XVIII, p. 511.
14 Sobre a morte de Dom Bosco, ver MB XVIII, p. 529-543.
119

7 Pages 61-70

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7.1 Page 61

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longa fila silenciosa nas escadas do quarto de Dom Bosco. Jazia inerte, com um braço caído,
um crucifixo no peito. Muitos o tocavam com medalhas, crucifixos, terços e imagens, transfor-
mados desde aquele momento em relíquias. Depois da triste cena da comunidade, os superio-
res principais, Cagliero, Rua, Bonetti, Belmonte, Sala..., chegaram ao quarto do moribundo
que estava perto da sala de jantar. Ajoelhados no pavimento ao redor do leito de sofrimento de
seu pai, rezavam e não se decidiam a procurar um pouco de repouso. Finalmente, pensaram em
passar a noite sentados no quarto ao lado, prontos para acorrer ao primeiro sinal. Pela 1h30 a
sua respiração se tornou terrivelmente dificultosa. Enria preveniu os superiores. O padre Rua e
dom Cagliero pronunciaram as fórmulas da recomendação da alma. Os assistentes choravam,
soluçavam e rezavam ao mesmo tempo. Depois, o respiro difícil parou e, com ele, o temor e a
dor dos presentes angustiados. O padre Rua teve, então, a ideia que melhor combinava com
a alma do caro Dom Bosco. Emprestou-lhe seu braço e sua voz para que pudesse abençoar
seus filhos espalhados pelo mundo inteiro. Aproximou-se do leito e disse, com voz sufocada
pela dor: “Dom Bosco, estamos aqui nós seus filhos, e imploramos sua bênção. Abençoa-nos e
abençoa também todos aqueles que estão espalhados pelo mundo e nas missões. E como não
pode mais levantar o seu braço direito, eu o sustentarei e direi a fórmula, e o senhor abençoará
certamente todos os salesianos, todos os jovens”.
Com extrema doçura, elevou o braço paterno e pronunciou as palavras da bênção sobre seus
irmãos prostrados que choravam pela emoção. Passaram-se ainda mais ou menos duas horas.
Ao sinal de Enria, os superiores chegaram-se ao moribundo para recitar as ladainhas dos agoni-
zantes e o proficiscere. Dom Bosco partiu às 4h45 daquela manhã, 31 de janeiro de 1888.
Os funerais e a sepultura do Fundador
Para anunciar a morte de Dom Bosco, o padre Rua escreveu imediatamente uma longa e
comovida carta circular “aos salesianos, às Filhas de Maria Auxiliadora, às cooperadoras e aos
cooperadores salesianos”, datada de 31 de janeiro. Nela prometia:
Encarregado de fazer as suas vezes, farei o melhor de mim para corresponder à expectativa comum.
Ajudado pela obra e pelos conselhos de meus irmãos, certo de que a Pia Sociedade de São Francisco
de Sales, sustentada pelo braço de Deus, assistida pela proteção de Maria Auxiliadora, confortada
pela caridade dos beneméritos cooperadores salesianos e das beneméritas cooperadoras, continuará
as obras de seu exímio e pranteado Fundador, iniciadas especialmente pelo cuidado da juventude
pobre e abandonada e das missões no exterior.15
Transparecia destas linhas seu futuro programa de Reitor-Mor, totalmente fiel a Dom Bos-
co. No dia 1º de fevereiro, o corpo de Dom Bosco foi colocado numa poltrona, vestido com
os paramentos sacerdotais, na igreja de São Francisco de Sales, para ser venerado pelos jovens
da casa e por uma multidão de devotos. Os salesianos o velaram durante toda a noite. O padre
Rua permaneceu ajoelhado por muito tempo, em oração, perto dos santos despojos. Chegada
a manhã, colocaram-no num tríplice ataúde. A missa fúnebre foi celebrada na igreja de Maria
15 Original impresso, suplemento ao Bolletino Salesiano, fevereiro de 1888, 3 p.
120
Auxiliadora, na manhã do dia 2 de fevereiro, e o cortejo dos salesianos e dos jovens do Oratório
percorreu as ruas do bairro diante de uma multidão imensa. Oito sacerdotes salesianos levavam
o ataúde. Atrás dele, entre o padre Durando e o padre Sala, o padre Rua caminhava com a ca-
beça inclinada, recolhido na sua imensa dor. O cortejo não parou no cemitério da cidade, mas
retornou para a igreja de Maria Auxiliadora.
O problema do lugar da sepultura de Dom Bosco atormentava naqueles dias os superiores
salesianos. Teriam desejado colocar o corpo do Fundador na cripta do santuário de Maria Auxi-
liadora, mas as autoridades civis não o permitiam. Finalmente, depois de muitas tentativas em
Turim e Roma, conseguiu-se sepultá-lo fora dos muros de Turim, na casa salesiana de Valsalice,
que de colégio para nobres tinha sido transformada, no início daquele ano escolar, em seminá-
rio para os jovens salesianos. Esses clérigos cuidariam dele. Para não provocar os comentários
dos anticlericais, o traslado foi organizado privadamente. E o padre Rua exortou os clérigos
a dirigir-se frequentemente ao sepulcro do Pai. Ele mesmo fará regularmente, a cada mês, o
percurso do Oratório a Valsalice para uma oração fervorosa.16
16 Sobre o problema da sepultura de Dom Bosco e a sua solução, cf. MB XVIII, p. 533-567.
121

7.2 Page 62

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Capítulo 14
Padre Rua, Reitor-Mor
A sucessão de Dom Bosco1
Na circular de 31 de janeiro, a padre Rua havia escrito, falando de Dom Bosco: “Encarrega-
do de fazer-lhe as vezes, farei de mim o melhor para corresponder à expectativa comum”. Por
que não dizer que o substituiria? Não se deu importância ao detalhe entre os salesianos. Era
óbvio que o padre Rua sucederia a Dom Bosco. Mas o padre Rua continuava a se considerar
simples vigário. Nada mais. Não conhecia nenhum decreto formal que fizesse dele vigário com
direito de sucessão. Dom Bosco nunca fizera menção disto, nem oralmente, nem por escrito.
Baseara-se nas comunicações do arcebispo Alimonda. Mas essas disposições não excluíam ab-
solutamente uma eleição regular por parte do Capítulo Geral.
Interrogou, portanto, o arcebispo, que o aconselhou a se dirigir a Roma. No dia 8 de feverei-
ro, o padre Rua fez a Leão XIII uma exposição da situação. Terminava com estas expressões:
Beatíssimo Padre, considerando a minha fraqueza e incapacidade, sou levado a vos fazer um hu-
milde pedido de querer colocar sobre outra pessoa mais apta e sábia vosso olhar, e dispensar o
escrevente do árduo ofício de Reitor-Mor, garantindo-vos, porém, que com a ajuda do Senhor
não deixarei de prestar, com todo ardor, minha pobre colaboração em favor da Pia Sociedade, em
quaisquer condições em que seja colocado.2
Os membros do Capítulo Superior não eram da mesma opinião. No dia seguinte, endere-
çaram ao cardeal Parocchi, protetor da Sociedade Salesiana, uma carta coletiva que expunha
as razões em favor da confirmação do padre Rua. Garantiram-lhe que toda a Congregação
não somente lhe seria submissa docilmente, mas sentiria uma alegria sincera e muito cordial.
Pediam-lhe, consequentemente, referi-lo ao Santo Padre.3
O documento contribuiu para calar as vozes daqueles que em Roma previam a inevitável
catástrofe da obra de Dom Bosco. Segundo alguns personagens da Cúria, não havia entre os
salesianos homens em condição de salvar a Congregação. O único remédio seria dissolvê-la e
1 Adapto aqui as páginas dedicadas ao problema tiradas de Ceria, Vita, p. 136-139, a partir dos documentos
reunidos em torno da circular coletiva assinada por dom Cagliero e pelo Capítulo Superior na data de
7 de março. Cf. esses documentos em L. C., p. 6-16.
2 Carta do padre Rua. In: FdR 3912B1-4.
3 L. C., p. 11-13.
122
englobar seus membros em outra sociedade com objetivos análogos. Essas preocupações ti-
nham chegado até Leão XIII e o haviam impressionado tanto a ponto de fazê-lo levar em consi-
deração medida tão radical. O papa não conhecia suficientemente o padre Rua, que tinha visto
uma única vez em maio de 1887. Seu comportamento simples e até ingênuo não lhe permitia
identificar nele as qualidades intelectuais necessárias para suceder Dom Bosco.
Providencialmente, naqueles dias se encontrava em Roma dom Emiliano Manacorda, bis-
po de Fossano, que admirava Dom Bosco e sua obra. Esse bispo conhecia a Cúria Romana,
onde tinha iniciado sua carreira. Logo que percebeu o perigo, empenhou-se em dissipar dúvi-
das e temores, procurando demonstrar que entre os salesianos não faltavam homens de valor.
Podia-se, portanto, ter confiança no futuro da sua Sociedade. A carta dos capitulares chegou
justamente naquele momento e foi lida com muito interesse, tanto mais que era assinada,
em primeiro lugar, por dom João Cagliero. O cardeal Parocchi se dirigiu imediatamente ao
papa. Terminada a audiência, comunicou o sucesso do colóquio a Cagliero: “Alegre por ter
conseguido da Santidade de Nosso Senhor a concessão do justo pedido de Vossa Execlência
e dos seus digníssimos irmãos, apresso-me em participar-lhe, caríssimo monsenhor, a bela no-
tícia. Neste instante, o Santo Padre reconfirmou a nomeação do padre Rua como Reitor-Mor
da Congregação Salesiana por doze anos. Seja louvado o senhor, qui mortificat et vivificat!”.
Depois, lhe transmitiu o decreto em latim que nomeava o padre Rua Reitor-Mor, a partir de
11 de fevereiro de 1888, com a reserva de que este procedimento valia somente por esta vez e
não podia, portanto, constituir um precedente em relação ao escrito das Constituições.4 Da-
quele documento se subentendeu que existia um decreto anterior, datado de 27 de novembro
de 1884, que remontava, portanto, ao tempo da nomeação do padre Rua para vigário geral.
O que havia acontecido? Mistério!
Na presença de Leão XIII
Na segunda quinzena de fevereiro, o padre Rua chegou a Roma. Como ex-aluno dos Irmãos
das Escolas Cristãs, quis assistir, no dia 19 de fevereiro, à cerimônia de beatificação de João Ba-
tista de La Salle, onde pôde ver Leão XIII. Desde esse momento, a preocupação será dar início
à causa de beatificação de Dom Bosco. A fama de santidade que havia acompanhado o mestre
durante a vida se transformara numa convicção geral durante a doença e no dia seguinte à mor-
te. O padre Rua, que acreditava com todo o coração na santidade de Dom Bosco, se preo­cupou
com isto já vinte e quatro horas depois do sepultamento. Reuniu o Capítulo Superior para con-
siderar a eventualidade de pensar na causa. Assim, em Roma, entre as personalidades da Cúria
que encontrou, estava o promotor da fé, dom Caprara, para saber como se poderia fazer para
iniciar sem demora a causa da beatificação de Dom Bosco. Soube, assim, que precisava reunir
o mais depressa possível todos os documentos sobre os milagres e as graças obtidas por sua in-
tercessão. O padre Rua confiou a tarefa ao padre João Bonetti.5 No dia 28 de fevereiro, durante
uma sessão do Capítulo Superior, Bonetti será convidado a redigir um esquema resumido dos
fatos e das virtudes de Dom Bosco, e a interrogar as testemunhas diretas.6
4 Cf. o documento assinado pelo cardeal L. M. Parocchi, L. C., p. 14-15.
5 Carta de M. Rua a João Bonetti, 20 de fevereiro de 1888. In: FdR 3859E5-7.
6 FdR 4240D8.
123

7.3 Page 63

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O papa recebeu o padre Rua em audiência privada na manhã de 21 de fevereiro. Do encon-
tro, do qual nos deixou uma longa relação anexa à circular aos salesianos de 19 de março, recor-
dou, sobretudo, a recomendação do pontífice: por algum tempo dever-se-ia conter a expansão
da Sociedade, para não correr o risco da desventura de outras congregações que tinham fun-
dado centros com somente duas ou três pessoas, e que depois precisaram fechar piedosamente.
Colheu de sua boca também uma série de lições sobre a formação ascética que deveria ser dada
aos noviços. O padre Rua deveria prestar atenção especial para acolher nas casas somente indi-
víduos de virtude comprovada e, para isso, era exortado a instituir um noviciado severo.
“E vocês o obrigam a fazer bem o noviciado? Por quanto tempo?”, perguntou o papa, certamente
sabendo do modo de proceder de Dom Bosco nesse âmbito. “Sim, Santo Padre – teria respondi-
do o padre Rua – o noviciado costuma ser feito entre nós por um ano pelos aspirantes à carreira
sacerdotal e por dois pelos coadjutores”. “Está bem – teria continuado o papa – mas recomende a
quem os dirige que se preocupem diligentemente com a reforma da vida dos noviços. Estes quando
entram trazem consigo a escória; e, portanto, precisam ser purificados e ser reformados no espírito
de abnegação, de obediência, de humildade e simplicidade e das outras virtudes necessárias à vida
religiosa; e, por isso, no noviciado, o estudo principal, e diria único, deve ser o de se preocupar com
a própria perfeição. E quando não conseguem se corrigir, não tenham medo de afastá-los. Melhor
algum membro a menos que ter indivíduos sem o espírito e as virtudes religiosas.”7
Dez anos antes, dom Gastaldi tivera a mesma linguagem sobre a formação espiritual dos
salesianos. Não se deixando enredar por Dom Bosco, como seu benévolo predecessor, este papa
tomava de contrapé as posições salesianas em matéria de formação dos inscritos. Um noviciado
não é nem um colégio nem um Oratório, mas uma instituição típica. Leão XIII exaltava as
virtudes passivas necessárias para quem quer viver como religioso. O padre Rua, homem da
ordem e da disciplina, não pedia nada mais que a aplicação das lições vindas do outro. Sob
seu reitorado, os noviciados salesianos, reformados segundo essa fórmula, se multiplicarão e
os institutos verão diminuir o número de inscritos formados alla buona por diretores mais ou
menos qualificados. Notar-se-á que as indicações do papa, embora o padre Rua as houvesse re-
produzido fielmente, ajustam-se parcialmente às do novo Reitor-Mor em sua circular anterior,
do dia 8 de fevereiro aos diretores. Também ele pedia aos salesianos que se acalmassem, mas
por razões financeiras. Previa o peso dos direitos de sucessão que a Sociedade deveria pagar.
Instruía os diretores valendo-se das indicações deixadas por Dom Bosco:
Que sejam suspensos os trabalhos de construção; não se abram novas casas (e se entende também
que não se assumam novos empenhos nas casas existentes que exijam necessidade de mais pessoal
ou de despesas extraordinárias), não se aumentem dívidas; mas se usem comuns solicitudes para
pagar as heranças, extinguir os passivos, completar o pessoal das casas existentes.
Terminava secamente: “Para norma a todos os salesianos e sem comentários”.8
Em sua primeira carta na qualidade de Reitor-Mor, datada de 19 de março de 1888, dia
de São José, não se percebeu a mesma tensão – aliás muito compreensível. Dois eram os pen-
samentos dominantes no início do seu mandato: a causa de Dom Bosco e a fidelidade a seu
7 L. C., p. 20-24.
8 L. C., p. 5.
124
exemplo. Escrevia que em Roma o cardeal Parocchi havia insistido: “Eu lhes recomendo a causa
de Dom Bosco, eu lhes recomendo a causa de Dom Bosco”. Instruído sobre os procedimentos
dos processos de canonização, o padre Rua exortava, portanto, todos os irmãos a escreverem
aquilo que soubessem de especial sobre a vida do Fundador, sobre suas virtudes cardeais, teo-
logais e morais, sobre os dons sobrenaturais: curas, profecias, visões e coisas análogas. As de-
clarações deveriam ser entregues ao padre João Bonetti, que, como diretor espiritual geral, era
encarregado de reuni-las, a fim de servirem de base para a introdução da causa. O padre Rua
prevenia as testemunhas que eram convidadas a confirmar as suas declarações sob juramento e
que, portanto, tinham todo interesse em ser extremamente precisas. De fato, somente no dia
2 de junho de 1890 o padre Rua promulgará o decreto que nomeou João Bonetti postulador
da causa de Dom Bosco.9
Por outro lado, o padre Rua considerava que os salesianos deviam sentir-se felizes filhos de
um pai como Dom Bosco. Sua solicitude devia ser apoiar e, a seu tempo, desenvolver cada vez
mais as obras por ele iniciadas, seguir fielmente seus métodos e ensinamentos, até no modo
de falar e de agir, procurando imitar o modelo que o Senhor em sua bondade nos deu na sua
pessoa. O padre Rua declarava solenemente: “Este, ó filhos caríssimos, será o programa que eu
seguirei em meu cargo; isto seja também o objetivo e o estudo de cada um dos salesianos”.10
Entre as grandes provas de sua vida haverá, realmente, algumas mudanças radicais impostas
pela autoridade romana à sua fidelidade absoluta à linha de Dom Bosco.
A Família Salesiana herdada de Dom Bosco
Na qualidade de Reitor-Mor, o padre Rua recebia de Dom Bosco uma árvore de muitos
ramos robustos, que deveria cultivar e desenvolver, uma verdadeira família religiosa, afinal,
composta da Sociedade de São Francisco de Sales, chamada de Salesianos, do Instituto das
Filhas de Maria Auxiliadora e da Pia União dos Cooperadores Salesianos.
As estatísticas da Sociedade Salesiana contavam então 768 professos perpétuos (dos quais 301
sacerdotes), 95 professos temporários, 276 inscritos (ou noviços) e 181 aspirantes (postulantes),
todos divididos em 56 casas. Além do Oratório de Valdocco e das 3 casas de formação no Pie-
monte, as outras 52 casas estavam agrupadas em 6 inspetorias religiosas, chamadas, conforme
sua região de sede: piemontesa, lígure, romana, francesa, argentina, uruguaio-brasileira. As casas
da Espanha, da Inglaterra e da Áustria (Trento) eram ainda dependentes da inspetoria romana.
Dom Bosco tinha deixado para seus filhos religiosos um “testamento espiritual” que merece
ser aqui transcrito, sobretudo porque o padre Rua o terá sempre em grande consideração, do
ponto de vista religioso.
Antes de partir para a minha eternidade, devo cumprir convosco alguns deveres e assim satisfazer
um vivo desejo do meu coração. Antes de tudo, eu vos agradeço com o mais vivo afeto da alma
9 O documento é trazido em MB XIX, p. 398.
10 L. C., p. 18-19.
125

7.4 Page 64

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pela obediência que me prestastes, e por quanto trabalhastes para sustentar e propagar a nossa
Congregação. Eu vos deixo aqui na terra, mas só por um pouco de tempo. Espero que a infinita
misericórdia de Deus faça que possamos todos nos encontrar um dia na eternidade feliz. Lá eu vos
espero.
Eu vos recomendo que não choreis a minha morte. Esta é uma dívida que todos devemos pagar,
mas depois nos será largamente recompensado todo cansaço suportado pelo amor de nosso mestre,
nosso bom Jesus. Em vez de chorar, fazei firmes e eficazes resoluções de permanecer firmes na
vocação até à morte.
Vigiai e fazei que nem o amor do mundo, nem o afeto dos parentes, nem o desejo de uma vida
mais cômoda vos movam ao grande despropósito de profanar os sagrados votos e assim trair a
profissão religiosa, com a qual nos consagramos ao Senhor. Ninguém retome aquilo que demos a
Deus. Se me amastes no passado, continuai a me amar no futuro com a exata observância de nossas
Constituições.
Vosso primeiro Reitor morreu. Mas vosso verdadeiro superior, Jesus Cristo, não morrerá. Ele será
sempre nosso mestre, nosso guia, nosso modelo, mas considerai que, a seu tempo, ele mesmo será
nosso juiz e remunerador de nossa fidelidade em seu serviço.
Vosso Reitor morreu, mas será eleito outro que cuidará de vós e de vossa salvação eterna. Ouvi-o,
amai-o, obedecei-o, rezai por ele, como fizestes por mim. Adeus, caros filhinhos, adeus. Eu vos es-
pero no céu. Lá falaremos de Deus, de Maria mãe e apoio de nossa Congregação, cuja observância
das Regras contribuiu poderosa e eficazmente para nos salvarmos.11
O Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, por vontade de Dom Bosco, estava comple-
tamente integrado na Sociedade de São Francisco de Sales. O Reitor-Mor dos salesianos era
também, por força das Constituições, seu Superior Geral. Essas Regras recalcavam a Regra
salesiana. Visavam garantir às irmãs deveres apostólicos análogos aos desenvolvidos pelos sale-
sianos em favor dos jovens. Com elas, havia dez anos, tinham fundado obras na América do
Sul. Agora eram 390 professas e 100 noviças, com 35 casas na Itália, 4 na França, 1 na Espanha,
6 na Argentina, 3 no Uruguai. Um total de 49 obras, das quais 4 eram sede provincial, as de
Turim, de Trecastagni na Sicília, de Almagro em Buenos Aires (Argentina) e de Vila Colón em
Montevidéu (Uruguai). A casa mãe de Nizza Monferrato e a casa de Almagro tinham também
o noviciado.
A Pia União dos Cooperadores Salesianos tinha sido uma criação de Dom Bosco em 1874
e fora reconhecida por Pio IX em 1876. Impossibilitado de unir à sua Sociedade membros que
vivessem fora da comunidade e que praticassem a Regra na medida das próprias possibilidades,
como projetava em um dos capítulos do projeto de Constituições na Sociedade – um dos mais
contestados pelas autoridades romanas –, tinha criado uma realidade nova com um regulamen-
to particular. Era, em seu espírito, uma espécie de ordem terceira salesiana, com o escopo prin-
cipal da santificação pessoal não tanto através de exercícios de piedade, mas de caridade para
com os jovens. Naturalmente, esses cooperadores o ajudariam, e de modo muito eficaz. Daqui
nasceria uma confusão sem fim entre cooperadores e benfeitores, de resto favorecida por Dom
11 Cf. F. Motto, Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel Sac. Gio. Bosco a’ suoi figliuoli Salesiani (Testamento
spirituale). Roma, LAS, 1985, p. 30-32.
126
Bosco mesmo, que incluía entre os cooperadores todos os assinantes do Boletim Salesiano. Essa
confusão se consolidou nos meses que se seguiram à morte de Dom Bosco, com uma pretensa
“Carta-testamento aos cooperadores”, impressa num fascículo de 8 páginas e acompanhada de
uma circular do padre Rua, de 23 de abril de 1888, enviada a todos os assinantes do Boletim
Salesiano.12 Abria-se, infelizmente, com o título: “Meus bons benfeitores e minhas boas benfei-
toras”, espelho da ideia errada que fizera seu verdadeiro redator, João Bonetti.13
É preciso observar: a intenção de Dom Bosco ao criar essa Pia União era somente carita-
tiva e social. No Regulamento de 1876 se afirmava claramente que “escopo fundamental dos
cooperadores salesianos é fazer o bem para si mediante um teor de vida, o quanto possível,
semelhante ao que se tem na vida comum”. E ainda:
Muitos iriam de boa vontade para um mosteiro. Mas, alguns por idade, alguns por saúde ou con-
dição, muitíssimos por falta de oportunidade, estiveram absolutamente impedidos. Esses, fazendo-
se cooperadores salesianos, podem continuar no meio de suas ocupações ordinárias, no seio das
próprias famílias, e viver como se de fato estivessem na Congregação. Por isso, esta Associação é
considerada pelo Sumo Pontífice como uma terceira ordem dos antigos, com a diferença de que na-
queles se propunha a perfeição cristã no exercício da piedade. Aqui se tem por objetivo principal a
vida ativa no exercício da caridade para com o próximo e especialmente a juventude periclitante.14
Fiel à ideia-mãe de seu antigo capítulo constitucional De externis, Dom Bosco fazia de seus
cooperadores uma espécie de religiosos no mundo. Mas essas nuances fugiam ainda dos cola-
boradores do padre Rua, enquanto assumia a responsabilidade de toda a Família Salesiana. Ele
mesmo as descobriria rapidamente, como se verá no Congresso dos Cooperadores de Bolonha.
Os cooperadores eram, então, milhares na Itália e na França. Numerosos membros do clero
tinham entrado em suas fileiras, como muitos leigos de toda condição: nobres, burgueses,
artesãos, comerciantes ou camponeses. A associação se abrira também para as mulheres. Os
cooperadores constituíam, segundo a fórmula do padre Ceria, a longa manus da Congregação
no meio da sociedade. O padre Rua recorreria à Pia União dos Cooperadores esforçando-se
por organizá-la bem. Mas será preciso esperar duas gerações para realizar corretamente a ideia-
-mãe de Dom Bosco sobre a terceira ordem salesiana, que em seu espírito era um exército de
benfeitores devotos.
A todos esses, mas particularmente aos salesianos e às Filhas de Maria Auxiliadora, o padre
Rua queria mostrar-se como pai amoroso, da mesma forma como soubera sê-lo Dom Bosco,
que lhe havia sussurrado aos ouvidos no leito de morte: “Faça-se amar!”. Seguiria inteligente-
mente os passos de seu mestre espiritual, cuja imagem o acompanharia durante todo o reitora-
12 FdR 3993B7-C4.
13 Depois de tê-la copiado em 1937, sem comentários, em MB XVIII, p. 621-623, como se tivesse sido
encontrada depois de sua morte nas cartas de Dom Bosco, uns vinte anos mais tarde o padre Ceria reco-
nhecerá, numa nota do seu Epistolario IV, p. 393, que esse documento apócrifo foi obra do redator do
Boletim Salesiano João Bonetti.
14 Cooperatori salesiani ossia un modo pratico per giovare al buon costume ed alla civile società. Albenga, Tip.
Vescovile di T. Craviotto, 1876, p. 27-28 (§ III).
127

7.5 Page 65

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do. Queria comunicar a ideia de que Dom Bosco não tinha ido embora do Oratório. Por isso,
deixou intacto o quarto no qual tinha falecido, colocou seu escritório na salinha ao lado, onde
Dom Bosco recebia nos últimos tempos. A única modificação na mobília foi o posicionamento
de uma poltrona que toda noite transformava em leito para o repouso da noite.15
15 Cf. Ceria, Vita, 148.
128
Capítulo 15
Os anos do aprendizado (1888-1892)
Nas pegadas de Dom Bosco
O cardeal Gaetano Alimonda não estava errado quando, na oração fúnebre pronunciada na
igreja de Maria Auxiliadora no dia 1° de março de 1888, trinta dias depois do falecimento de
Dom Bosco, afirmou que ele continuava a viver e trabalhar em Turim:
Deus não nos deu o coração só para chorar; deu-nos coração, mente, fantasia para substituir ao
pranto o suave conforto, nos deu um poder maravilhoso de reparação, o de reconstruir em nossas
ideias, em nossa imaginação e em nosso afeto a imagem das pessoas que não estão mais, de revesti-
-las, de recordá-las como se fossem coisa viva, trazendo-as sob nosso olhar. Eu quero, portanto, ver
o amigo, o benfeitor, o pai, ver e saudar João Bosco. [...] A morte, eu não sei, quando no-lo rapta,
no-lo esconde, o cinge como de uma auréola. Vê-lo-ei, portanto, com mais respeito que antes, mas
sempre com o mesmo afeto terno, sempre com o mesmo coração enamorado.1
Se havia um que, mais que qualquer outro, percebia a seu lado essa presença aureolada de
Dom Bosco, era, sem qualquer dúvida, nosso padre Rua. Suplicava-lhe que não o abandonasse
nunca.
De fato, se esforçava para ser um outro Dom Bosco. Durante meses continuou a reunir o
Capítulo Superior no mesmo quarto onde ele tinha expirado. Sua sombra tutelar continuava
a estar presente através da vontade do sucessor. Protegia com sua autoridade, tornada invisí-
vel, as decisões que eram tomadas. Certamente seus temperamentos eram diferentes. Nós nos
aproximávamos menos facilmente do padre Rua, que era sóbrio e essencial, em relação a Dom
Bosco sempre afável. Mas o conselho repetido pelo mestre no fim da vida, “Faça-se amar”!, não
deixava nunca de ecoar nele e de produzir frutos. O padre Rua nunca se abandonou à cólera
nem mesmo a ímpetos de voz inoportunos. Sabia manifestar seu desacordo, inevitável em cer-
tas situações, mas o expressava com uma calma tal que nunca irritava quem contradizia.
O dia 24 de junho, festa de São João Batista, recordava a todos os filhos de Valdocco, sobre-
tudo aos ex-alunos, os festejos tradicionais em honra do pai e mestre. Decidiu-se continuar a
manifestação, festejando o sucessor Miguel Rua. Em 1888, ano de luto, não se fez nada. Mas
1João Bosco e o seu século. Nos funerais dos trinta dias na igreja de Maria Auxiliadora em Turim, no dia 1º de
março de 1888. Discurso do cardeal-arcebispo Gaetano Alimonda, Turim, Tipografia Salesiana, 1888, p.
6. O texto da comemoração é trazido em trechos em MB XIX, p. 12-16.
129

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em 1889 as coisas mudaram. No dia 22 de junho, como preparação da festa, em Valsalice, foi
inaugurada a capela funerária de Dom Bosco, na presença de 2 mil pessoas. No dia seguinte,
às 5 da manhã, o padre Rua celebrava a primeira missa naquela capela, que lhe será muito cara.
Os “antigos alunos do Oratório salesiano” fizeram estampar um lenço: “À venerada memória
do padre João Bosco e ao amado padre Miguel Rua”.2 Entre o dia 23 e o dia 24 de junho, os
festejos se realizaram em Valdocco, com discursos e homenagens no dia 23 e uma academia
musical-literária no dia 24. Como testemunho significativo daqueles dias nos restam alguns
documentos: um álbum publicado pelos ex-alunos,3 um caderno de “Comunhões e visitas
ao Santíssimo Sacramento oferecidas pelos alunos do Colégio de Spezia por seu amado padre
Miguel Rua”,4 um álbum de 16 páginas, “Ao padre Miguel Rua, seus filhos de Alassio”, com
as assinaturas de professores, alunos e Filhas de Maria Auxiliadora,5 e, sobretudo, uma grande
folha impressa, intitulada: “Homenagem de filial afeto e reconhecimento ao padre Miguel Rua
no dia 23 de junho de 1889, dia dos festejos anuais ao padre João Bosco”, com um hino de cir-
cunstância em 12 estrofes assinado G.B.L., isto é Giovanni Battista Lemoyne, poeta inspirado
das grandes ocasiões. Muitas estrofes comoveram profundamente o austero padre Rua, sempre
preocupado em permanecer fiel à imagem deixada por Dom Bosco.6
Enxugai as lágrimas,
cessai os lamentos,
as antigas harmonias
retornem nas harpas.
As notas alegres
de amor se repitam,
Dom Bosco ainda vive,
ele morto não está.
Menino, alegre-se!
De várias regiões,
as portas não se fecham
destas mansões.
Ele vive no Superior
que Deus quer te dar,
transmite a parte
mais rica de si.
[...]
2 Torino, Tipografia Salesiana, 1889, 24p, FdR 2766A7-B6.
3 FdR 2766D9-10.
4 FdR 2758B8-C4.
5 FdR 2758C5-D8.
6 FdR 2758B6-7.
130
A ti, portanto, Superior,
que sempre és pai para nós,
do coração se elevem
os cânticos meus.
Que tenhamos sempre conosco
a mente e o coração
do caro Dom Bosco.
É seu aquele sorrir
que brilha em teu rosto,
é sua aquela palavra
amável que desce
de teu lábio à alma.
É seu aquele olhar
que infunde o ardor
em meu espírito fraco.
[...]
A festa se tornará uma tradição. No dia 23 e no dia 24 de junho serão festejados simultanea­
mente Dom Bosco e o sucessor. O nosso padre Rua, sem se deixar lisonjear pelos elogios de
ocasião, estava persuadido de estar no caminho certo, traçado por seu Pai e Mestre.
O peso das dívidas acumuladas
Depois da morte de Dom Bosco, as ofertas diminuíram. No verão de 1888, durante os
exercícios espirituais, o padre Rua explicou aos diretores que desde o fim de janeiro as doações
tinham diminuído pela metade. Dom Bosco conhecia o segredo para “fazer abrir os bolsos”.
O sucessor deveria fazer muito esforço para poder supri-lo, neste como em todos os outros cam-
pos. Agora, as dívidas da direção central salesiana, segundo o padre Ceria, acumulavam-se em
600 mil liras, importância enorme para a Congregação. Impunha-se uma economia drástica.
A primeira carta circular do padre Rua aos diretores ordenava-lhes, como sabemos, suspender
os trabalhos de construção, não abrir novas casas, não fazer outras dívidas e empregar toda a sua
solicitude “para pagar a herança, extinguir o passivo, completar o pessoal das casas existentes”.7
No dia 10 de março de 1888 o padre Rua enviava aos cooperadores e aos benfeitores uma
circular implorando sua ajuda “pelas centenas e milhares de pobres infelizes espalhados em
diversas partes do mundo”.8
A direção da Congregação devia acabar com as dívidas contraídas na construção da Igreja
do Sagrado Coração em Roma. O padre Dalmazzo, por falta de fundos, devera suspender os
trabalhos para a construção do internato querido por Dom Bosco ao lado da igreja. Além disso,
comportavam despesas consideráveis também as expedições missionárias, retomadas no dia 11
7 Circular do dia 8 de fevereiro de 1888, L. C., p. 3-5.
8 FdR 3993B5-6.
131

7.7 Page 67

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de março e no dia 30 de outubro de 1888, na espera do envio mais consistente do dia 7 de
janeiro de 1889, que mobilizou 30 salesianos e 20 Filhas de Maria Auxiliadora.
Para financiar o internato romano, foi criada a Pia Obra do Sagrado Coração. O padre Rua
aprendeu a arte de estender a mão, como vemos na primeira estreia aos cooperadores, de janei-
ro de 1889. Nela, imitando Dom Bosco, fez a prestação de contas do que já havia sido realizado
no ano anterior e apresentou os projetos para o futuro. Depois de um longo parágrafo sobre a
“caridade”, entendida como “meio eficaz para apoiar as obras”, oferecia aos cooperadores três
conselhos práticos:
1º. Coloquemos, em cada dia, ou pelo menos em todas as semanas ou em todos os meses, alguma
coisa à parte, para apoiar as obras de beneficência e de religião. Isso o apóstolo São Paulo já sugeria
que os primeiros cristãos fizessem, para alívio dos indigentes (1Cor 16,1-2). 2º. Façamos, de vez
em quando, algum sacrifício e economia para tal objetivo, ou numa viagem, ou numa diversão,
ou na compra de alguma roupa ou de um vestuário ou semelhantes, ou na cozinha, tornando-a
mais econômica, e assim por diante [...]. 3º. Quem quiser deixar alguma parte de sua herança em
benefício das obras de caridade, faça-o durante sua vida. Deixe mesmo que pouco, mas se garanta,
de tal modo que sua vontade seja cumprida, diria, quase sob os seus olhos...9
Uma preocupação imprevista aconteceu no fim de 1891, quando os agentes do fisco de Tu-
rim informaram ao padre Rua que, na qualidade de proprietário das casas da Itália, das quais
dependiam quer a Sociedade Salesiana, quer o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, era
titular de uma dívida tributável de 322.500 liras. Foi o início de uma longa controvérsia. O
padre Rua, assistido pelo advogado Carlo Bianchetti, apresentou recurso à comissão municipal.
Seguiu-se toda uma série de condenações. Primeiro, a do Tribunal de Turim, depois, a da Corte
de Apelo e da Corte de Cassação de Turim. Mas, seguindo o exemplo de Dom Bosco, em cir-
cunstâncias semelhantes, não se deu por vencido e recorreu à Corte Suprema de Roma. Ao mes-
mo tempo, sem descuidar os meios humanos, confiava nas orações dos irmãos. O seu secretário
particular, Angelo Lago, era parente de Giovanni Giolitti (1842-1928), então chefe do gover-
no. Foi até ao ministro, portanto, expor o estado da questão. Giolitti relatou à Corte Suprema e
pediu aos membros seu parecer. Deixaram as mãos livres a seu presidente, que emitiu as devidas
ordens aos agentes do fisco para que deixassem de molestar o padre Rua. Pouco depois, vindo
a Turim, o presidente quis receber o sucessor de Dom Bosco e comunicar-lhe pessoalmente
o resultado da controvérsia. Foi um grande conforto para ele, sempre curto de dinheiro.10
O problema dos estudos eclesiásticos
Os estudos eclesiásticos de filosofia e de teologia não foram uma prioridade para Dom Bos-
co, que tinha conservado uma lembrança não muito exultante dos estudos feitos antigamente
no seminário de Chieri. As discussões especulativas o faziam dormir, chegou a dizer a propósito
9 “Carta do Sacerdote Miguel Rua aos cooperadores salesianos e às cooperadoras”, Bollettino Salesiano,
janeiro de 1889, p. 7-9.
10 Testemunho de Melchiorre Marocco, in Positio super virtutibus. 1947, p. 513-514; reproduzida palavra
por palavra em Ceria, Vita, p. 21.
132
de Rosmini. Havia se interessado somente pela prática do sacramento da Penitência, pela his-
tória sagrada e pela história da Igreja, matérias descuidadas nos seminários da época. As críticas
aos poucos conhecimentos filosóficos e teológicos dos salesianos não faltavam, portanto. Dom
Bosco rezara muito antes de introduzir um capítulo sobre o assunto nas Constituições. Com
exceção do padre Luiggi Piscetta, que se especializou em teologia moral, os homens de cultura
do círculo do padre Rua se chamavam João Batista Francesia, Celestino Durando, João Caglie-
ro, João Batista Lemoyne e Júlio Barberis, e eram artistas ou literatos, não filósofos ou teólogos.
O mais competente parecia ser Francisco Cerruti, a quem será logo confiada a responsabilidade
geral dos estudos salesianos.
O papa Leão XIII não ignorava essa situação crítica. No dia seguinte à morte de Dom Bos-
co, expressou a dom Manacorda o desejo de uma renovação intelectual da Sociedade Salesiana
através da formação de homens aplicados às ciências especulativas. As Verbali del Capitolo Su-
periore do dia 21 de agosto de 1888 nos informam que sugeriu mandar algum jovem à Univer-
sidade Gregoriana de Roma. Padre Rua passou logo à ação. No novo ano acadêmico enviou à
Gregoriana os diáconos Giacomo Giuganino e Angelo Festa, que ficaram morando no colégio
do Sagrado Coração. Depois, no dia 29 de janeiro de 1889, expediu uma breve e intensa circu-
lar aos diretores unicamente dedicada ao problema do estudo teológico nas casas.11
A questão dos estudos eclesiásticos monopolizaria o quarto Capítulo Geral, realizado em
Valsalice, em setembro de 1889. Para compreender o debate, é oportuno tomar consciência da
situação do tempo, felizmente superada. Na Sociedade Salesiana, havia estudantados filosófi-
cos onde os clérigos seguiam cursos ministrados por ótimos professores. Logo que saíam, esses
jovens passavam para o estudo da teologia. Na ausência de centros de estudos adequados, sua
formação dependia dos recursos mais ou menos aleatórios das casas às quais eram destinados.
Poucos privilegiados, como vimos, frequentavam a Gregoriana. Algum outro fazia cursos nos
seminários diocesanos. Onde era possível reunir certo número deles, como no Oratório de
Turim, em Valsalice, em Marselha ou em Buenos Aires, organizavam-se aulas com professores
salesianos ou externos. Mas nas casas isoladas, que iam cada vez mais aumentando, o ensino
era confiado aos padres do lugar. A regra previa que, qualquer que fosse a sua situação, os
clérigos fariam os exames duas ou três vezes ao ano (a terceira para os tratados estudados nas
férias) diante de examinadores designados pelo conselheiro escolar geral ou pelos respectivos
inspetores. Diz-se, além disso, que se estudava teologia não a partir do ensino de um professor,
mas em manuais, cujos conteúdos precisavam ser memorizados.
Durante a primeira sessão do quarto Capítulo Geral, no dia 3 de setembro de 1889, enfren-
tou-se o esquema intitulado: “Estudos de teologia e de filosofia. Convém mudar os livros de
textos? Quais propor? Quais melhorias trazer para o estudo da filosofia, da teologia e da her-
menêutica bíblica?”. Foi logo sugerida a constituição de estudantados teológicos propriamente
ditos. Ao mesmo tempo, era preciso melhorar o estado das coisas. Muito dependia da escolha
dos manuais de teologia. A comissão responsável, presidida por Francisco Cerruti, discutiu so-
bre o Compendium Theologiae do jesuíta Giovanni Perrone, considerado muito difícil, e sobre a
edição da Theologia moralis universa, de Pietro Scavini, organizada por Giovanni Antonio Del
11 L. C., p. 30-31.
133

7.8 Page 68

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Vecchio. Mas não foi possível chegar a um acordo sobre a substituição do texto de Perrone que
todos esperavam. A decisão, remetida para o Conselho Superior, se prolongou até depois do
Capítulo Geral, dia 24 de outubro. Foram então propostas três obras, ad experimentum, por
um ano escolar: a teologia dogmática de dom Federico Sala (1842-1903) para o Oratório, o
compêndio do jesuíta Hugo Hurter (1832-1914) para o estudantado de Valsalice e o manual
do jesuíta François Xavier Schouppe (1823-1904) para a casa de Marselha. No final, a Medulla
Theologiae Dogmaticae (a quintessência da teologia dogmática), de Hurter, levou a melhor. Era
a síntese em 1 volume de 3 tomos intitulados Theologiae dogmaticae compendium (Innsbruck,
1876-1878), um manual de teologia dogmática que tivera grande aceitação nos seminários pela
vasta documentação, pela clareza e pela preocupação de estabelecer um liame com a pastoral.
A Medulla parecia o texto mais adequado às possibilidades dos modestos estudantes salesianos
da época, frequentemente obrigados, já comentamos, a se virar mais ou menos sozinhos, com
teses que não os entusiasmavam muito.
Sinal de certa preocupação no mérito foi a circular aos inspetores do prefeito geral Domeni-
co Belmonte, datada de 28 de janeiro de 1890, na qual, em nome do padre Rua, pedia a lista
das casas nas quais não havia cursos de teologia.12 No fim de 1891, o padre Rua informava os
inspetores de que “em certos colégios os cursos de teologia e de liturgia” eram “muito descui-
dados”. Recomendava-lhes: “Insistam para que esses cursos sejam regularmente garantidos e
lhes seja dada toda a importância que merecem”.13 Na maioria dos casos, de fato, os clérigos
salesianos engoliam aulas pelo simples dever e sem real proveito. Resultado deplorado pelo
padre Rua numa carta aos diretores sobre o estudo da teologia: nos exames se constatava uma
“deficiência na perfeita compreensão” das teses estudadas e uma consequente incapacidade
de expô-las de modo “claro e preciso”.14 A formação dos estudantes de teologia permanecerá
uma preocupação constante para o padre Rua. Nisto era apoiado eficazmente pelo conselheiro
escolar Francisco Cerruti, como testemunha a coleção das cartas circulares e dos programas de
ensino entre os anos 1885 e 1917, publicada por José Manuel Prellezo.15
Os estudos literários
O mundo salesiano, masculino e feminino, era constituído, em sua grande maioria, de pro-
fessores. Numa circular aos salesianos sobre os estudos literários, datada de 27 de dezembro de
1889, o padre Rua relembrou com insistência o exemplo de Dom Bosco. De fato, haviam se
manifestado sérias discordâncias no pessoal escolar salesiano da Itália sobre o sistema de ensino
e sobre os clássicos latinos. O padre Rua lembrou a prudente intervenção do santo na discussão
acontecida quarenta anos antes entre o abade Gaume e dom Dupanloup. A discussão tinha
sido orquestrada pelo polemista católico Louis Veuillot, paladino da liberdade do ensino, com
12 FdR 4064B10-C1.
13 Cf. L. C., p. 70.
14 Circular do dia 29 de janeiro de 1889. In: L. C., p. 30.
15 F. Cerruti, Lettere circolari e programmi di insegnamento (1885-1917). Introdução, textos críticos e notas
de J. M. Prellezo. Roma, LAS, 2006.
134
a publicação, em 1852, de um livro intitulado Ver rongeur ou le paganisme dans l’éducation (O
verme roedor ou o paganismo na educação). Esse caruncho roedor, no seu modo de ver, estava
inoculado na juventude pelo estudo dos clássicos latinos e gregos. Também o papa Pio IX pre-
cisou ocupar-se do assunto. Mais que denegrir os autores latinos cristãos, como São Jerônimo,
Dom Bosco tinha exortado os seus a exaltar as suas virtudes indiscutíveis. Uma vez que era ne-
cessário seguir os programas clássicos, empenhara-se na publicação de uma seleção de autores
profanos, devidamente expurgados daquilo que poderia ser contrário aos bons costumes. Se
quisermos ser-lhe fiéis, concluía o padre Rua, unamo-nos na aplicação de seus princípios. Os
autores clássicos profanos são necessários para aprender a elegância da língua, mas os autores
latinos cristãos são igualmente necessários porque veiculam a “verdade”. Os professores saibam,
portanto, valorizar os escritos dos Padres da Igreja.
Acontecera uma discussão também sobre a língua italiana. Alguns estavam enfastiados do
estilo clássico, outros afirmavam um uso da língua modelado sobre autores modernos. Con-
sideravam, portanto, necessária a leitura das suas obras. Também aqui o padre Rua apelou a
Dom Bosco, que tinha estudado os clássicos italianos a ponto de poder recitar, ainda na ve-
lhice, longos trechos de Dante. Mas este tipo de literatura não convinha à juventude. Assim,
quando foi preciso, fundou a Biblioteca dos clássicos italianos para a juventude, devidamente
selecionados e expurgados. Aquele que colocasse nas mãos dos jovens as obras modernas na
sua integralidade, afirmava o padre Rua, iria certamente contra a vontade de Dom Bosco.
Percebera, lamentavelmente, que em algumas casas haviam sido introduzidos livros de autores
contemporâneos, “conhecidos pela sua oposição e ódio à religião e à moralidade”. Já no dia 21
de setembro de 1888, o Capítulo Superior havia deplorado a introdução na casa de noviciado
de obras de Carducci e Leopardi.16 “Como Dom Bosco sofria – escreve o padre Rua – quando
sabia de coisas desse tipo!”, ele que, no início de cada ano escolar, exigia de cada aluno a lista
dos livros para eliminar preventivamente as obras perigosas.
Finalmente, concluía o sucessor de Dom Bosco, procuremos não nos censurar uns aos ou-
tros. Um professor não critique o outro sobre o modo de ensinar e sobre as matérias que ex-
plica. Falemo-nos diretamente ou o façamos com a intervenção dos amigos. “Que a caridade
e a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo reinem sempre em nossos corações”, augurava o padre
Rua, ao terminar a circular.17
Uns dez dias mais tarde, no dia 6 de janeiro de 1890, expedia uma circular paralela, desti-
nada às irmãs salesianas, as suas “caras filhas em Jesus Cristo”. Tinha a intenção de alertá-las
sobre os graves perigos que ameaçavam as coirmãs e as alunas, tanto internas como externas.
Parecia-lhe que a inundação de jornais ruins e romances péssimos fosse uma das feridas mais
graves da sociedade moderna. Essa imprensa perversa estava espalhada nas cidades, nos países
e nas campanhas através das livrarias, bancas e expedições postais. Também aqui se apelava a
Dom Bosco a fim de indicar o remédio contra esse flagelo: ele conhecia bem a literatura italiana
e não ignorava as dificuldades. Para isso tinha feito publicar edições expurgadas dos clássicos
adaptadas aos jovens. O padre Rua sugeria, portanto, às professoras que nunca citassem em
16Verbali del Capitolo Superiore, 21 de setembro de 1888. In: FdR 4240E7.
17 “Studi Letterari”, 27 de dezembro de 1889, L. C., p. 35-44.
135

7.9 Page 69

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classe um mau livro ou, pior ainda, tecessem elogios sobre ele. Se necessário, ao contrário,
exaltassem a sã doutrina para prevenir os danos. Em linha geral, era preciso sempre fornecer o
antídoto contra as obras perniciosas recomendando boas leituras, como as publicadas na co-
leção Leituras Católicas. Concluía a carta com conselhos práticos aos professores e, sobretudo,
aos catequistas: nunca violência, nunca humilhações, cuidar preferencialmente dos mais fracos,
evitar absolutamente a crítica recíproca.18
O padre Rua, portanto, incluía entre os seus deveres de Reitor-Mor dos salesianos e das
salesianas uma espécie de magistério intelectual.
Para uma direção sábia
Inspetores e diretores eram para os irmãos os intermediários indispensáveis do Reitor-Mor.
Desde a primeira sessão do quinto Capítulo Geral de 1889, dava-lhes conselhos operacionais,
que o secretário do Capítulo registrou com cuidado, e que revelam em sua simplicidade suas
ideias sobre o bom governo da Sociedade.
Os diretores são como luminares no meio dos outros: Constitui te in lumen gentium (Eu te cons-
tituí como luz para as nações]. Os subalternos observam o diretor em tudo, até nas pequenas
coisas, no falar, no tratar, no julgar. Assim ele mesmo experimentou. Isto os deve manter atentos
e deixá-los alertas, onde haja modelos de atividade, pontualidade etc. Por isso, os diretores cele-
bram, como se exige, pie, devote et atente [de modo piedoso, devoto e atento], como modelos de
piedade. Recitem sempre o breviário também no modo e no lugar conveniente, onde não haja
perigo de distrações. O diretor seja sempre exemplar na piedade. Esteja presente na meditação,
na leitura, e se não pode regularmente, pelo menos quando puder, onde puder, veja se também
os irmãos estão presentes, como estão e procure avisá-los oportunamente. Assim faça para o
exercício da boa morte etc. [...].
Entre as coisas principais, chama a atenção sobre o art. 1º dos Conselhos confidenciais dei-
xados pelo caro Dom Bosco aos diretores:
Nada te perturbe, como praticavam Santa Teresa e São Francisco de Sales. Assim: 1) Conser-
varão a serenidade em tudo, para julgar e decidir sobre as coisas da casa e que nos pertencem;
2) Igualdade de humor, tão necessária e de tanto proveito. Isto dá confiança e ganha o coração
dos dependentes.
Os diretores precedam assim aos outros no trabalho. Já se faz muito, e não se pode senão agradecer
ao Senhor. Deo gratias! Prestem atenção, no entanto, para não querer fazer tudo sozinhos. Espe-
cialmente preocupem-se em distribuir o trabalho para os outros. Isso é fundamento de boa ordem.
Numa oficina, se o chefe trabalha sozinho, trabalha com dois braços; se distribui o trabalho, tra-
balha com as mãos de todos.
Quando tiver de fazer alguma coisa fora de casa, se isso o distrai no desempenho do próprio ofício,
[o diretor] livre-se disso.
18 Torino, Tipografia Salesiana, FdR 3987D3-5.
136
Esteja atento para observar os registros do prefeito; se o catequista faz o seu dever; atenda
os professores, os trabalhadores. Se puder manter-se distante das ocupações fixas terá tempo
para dirigi-los melhor. Esta é e foi sempre recomendação de Dom Bosco, e especialmente
isto deve-se fazer com os irmãos novos que entram para o estudantado. Fazendo assim, o
diretor não se cansará e deixará muito contentes os subalternos.19
Mas quem não via nesse retrato do diretor aquilo que o próprio padre Rua queria ser dentro do
Capítulo Superior? Todos sabiam como ele era exemplo no trabalho e na piedade. Era um ponto de
referência para seus mais íntimos colaboradores. E sabia distribuir as tarefas de modo excelente.
Em 1893, depois da morte do padre Bonetti (1891) e de sua substituição pelo padre Al-
bera, o Capítulo Superior estava assim composto: Domenico Belmonte, prefeito geral; Paulo
Albera, diretor espiritual; Antonio Sala, ecônomo; Francisco Cerruti, conselheiro para as es-
colas; Giuseppe Lazzero, conselheiro profissional; Celestino Durando, conselheiro (de fato,
este conselheiro sem carteira era inspetor de uma província sui generis chamada de Todos os
Santos, que compreendia casas espalhadas pela Suíça, pela Espanha, pela Inglaterra, pela Po-
lônia, na espera de outras fundações na África e na Ásia); finalmente João Batista Lemoyne,
secretário. Ao Capítulo propriamente dito foram acrescentados também o mestre dos noviços,
Júlio Barberis, o procurador geral de Roma, Cesare Cagliero, e o vigário geral para as Filhas
de Maria Auxiliadora. O Reitor-Mor se interessava pelo trabalho de cada um, mas atento para
não invadir as competências alheias. Isso pode ser visto, por exemplo, nas relações com padre
Cerruti, padre Durando ou padre Barberis. Também nisto se mostrava fiel discípulo de Dom
Bosco, que queria na chefia de sua Sociedade não um presidente circundado de ministros que
formavam seu conselho, mas um Capítulo Superior, isto é, um colegiado no qual o presidente
seria somente o primus inter pares. Vale a pena citar um exemplo. No dia 25 de maio de 1888,
o Capítulo Superior debateu a proposta do padre Alberione de ceder a sua tipografia aos sale-
sianos. A aceitação incluiria a impressão do jornal l’Osservatore Cattolico. O padre Rua era pela
aceitação. Cagliero se declarou contrário: Dom Bosco, recordava, não queria absolutamente
que se imprimisse um jornal. E o Capítulo se alinhou com a opinião de Cagliero. A Congre-
gação se espalhou e se afirmou sob o reitorado do padre Rua, graças à sua determinação, mas
também à sabedoria de sua direção colegiada.
Tinha bem firmes nas mãos as rédeas do poder, como demonstram, desde os primeiros
meses do reitorado, as normas estabelecidas para inspetores e diretores “sobre o uso do livro
dos privilégios” (8 de junho de 1888)20 e sobre as “prestações de contas administrativas” (29 de
novembro de 1888),21 e também o seu pedido aos inspetores, através da mediação do prefeito
geral, de fazer entre dezembro e janeiro a visita de cada casa, de verificar as propriedades de cada
irmão, de fazer que os anciãos redigissem o testamento e enviassem cópia dele para Turim.22
Essas leis, certamente elaboradas com o Capítulo Superior, eram devidamente assinadas e res-
ponsavelmente assumidas pelo Reitor-Mor.
19 FdR 4013E4-5.
20 Intervenção transcrita em Ceria, Annali II, p. 40-41.
21 L. C., p. 25-29.
22 Circular do padre Belmonte aos inspetores, 23 de novembro de 1889. In: FdR 4064B2.
137

7.10 Page 70

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Capítulo 16
A vida cotidiana do Reitor-Mor em Valdocco
Padre Rua confessor1
O dia do padre Rua em Turim começava sistematicamente com a meditação comunitária, às
5h30 no inverno e às 5 horas no verão. Depois disso, se colocava no confessionário da velha sa-
cristia. Havia outros confessores na Igreja, mas quase todos os irmãos e, segundo o padre Ceria,
a maioria dos aprendizes e dos estudantes que assistiam à missa em dois momentos sucessivos se
confessavam com ele. As confissões duravam até às 8 horas, hora em que ele celebrava a missa.
No processo de canonização do padre Rua, alguns ex-filhos espirituais falaram de sua expe-
riência pessoal. Discreto nas perguntas, breve e conciso nos conselhos, o padre Rua confessor
fazia referência à liturgia e ao santo do dia. Acontecia-lhe frequentemente relembrar conselhos
dados anteriormente, coisa que conferia continuidade à sua direção espiritual. Encontramos,
a este propósito, dois testemunhos no processo diocesano de canonização. O primeiro é do
padre Rigoli, pároco de Soma Lombardo: “Foi também meu confessor, apresentando-me a ele
com muita frequência. Tinha toda minha confiança, como também a de muitos outros meus
companheiros. Com minha experiência de hoje, repensando naquela direção, digo que era
verdadeiramente iluminada e de sacerdote todo de Deus”.2 O outro testemunho é do professor
Pietro Gribaudi: “Inspirava grande confiança, tanto que, apesar de sua aparente austeridade, se
recorria a ele como confessor com alma aberta. Quando nalguma circunstância da vida sentia
necessidade de um exame completo de todos os meus atos, recorria ao padre Rua e sempre,
depois da confissão, me senti profundamente aliviado”.3 No processo apostólico, o salesiano
Melchiorre Marocco depôs: “Eu que o tive por quase dez anos como meu diretor espiritual
encontrei-o sempre de uma caridade, de uma prudência, de uma sabedoria e de uma piedade
verdadeiramente admiráveis”.4 Tinha uma elevadíssima consideração de seu ministério de con-
fessor e não tolerava ser perturbado enquanto o exercia. Um dia, estava confessando e vieram
1 Para descrever a vida cotidiana do padre Rua Reitor-Mor em Valdocco, atenho-me ao capítulo de Ceria
sobre suas “Ocupações diárias e periódicas” (Ceria, Vita, p. 198-206). Esse historiador honesto falava como
testemunha perspicaz e objetiva. Infelizmente o seu texto, portanto também o nosso, em seu conjunto, é
falho quanto às referências precisas às fontes.
2 FdR 4365C1-2; cf. Positio 1935, Summarium super dubio, p. 134.
3 FdR 4360A10; cf. Positio 1935m Summarium super dubio, p. 257.
4 FdR 4383E9-10.
138
avisá-lo que uma personalidade da classe alta pedia para encontrar-se com ele. Respondeu aspe-
ramente que não precisava chamá-lo quando estava no confessionário, por nenhum motivo.
Ele mesmo, toda segunda-feira ou, quando muito, sexta-feira, depois de ter ouvido a confis-
são do padre João Batista Francesia, lhe cedia o lugar e, de joelhos, se confessava com ele diante
de todos aqueles que esperavam por sua vez. Durante as viagens, quando chegava o dia de sua
confissão, pedia a um confessor salesiano que o atendesse. Às vezes, quem estava envolvido,
mais que embaraçado, buscava uma maneira para se esquivar; mas o padre Rua, séria e firme-
mente, o fazia entender que não era o momento de fazer cerimônias.
As audiências
Terminadas as confissões e celebrada a missa, retirava-se para o escritório e concedia audiên­
cias até ao meio-dia. Recebia todos aqueles que desejavam falar com ele. Às vezes eram per-
sonagens eminentes, salesianos e irmãs, senhoras e senhores, frequentemente benfeitores, mas
também, e frequentemente, pessoas pobres do povo. Havia quem lhe pedisse conselho, quem
buscasse conforto, outros imploravam socorro. Transpirava no seu semblante a participação
que demonstrava pelos sofrimentos dos outros. Escutava pacientemente intermináveis confi-
dências, para dar às almas aflitas a alegria de poder se expressar. Comovia-se quando ouvia a
narração das desgraças alheias. Muitas pessoas que os secretários tinham visto entrar no escri-
tório pensativas, preocupadas e tristes saíam dele com o semblante transformado. As entradas
e as saídas se sucediam sem parar por três horas. A sua fé viva e a sua caridade ardente davam
eficácia às suas palavras. O padre Ceria relata a confidência de um padre salesiano escrupuloso
que frequentemente precisava de uma voz amiga para sentir-se apoiado: “Minha caneta é in-
capaz de expressar verdadeiramente, como gostaria, as atenções delicadas que este santo e fiel
servo de Deus tinha para comigo, de dizer de qual e delicada caridade o seu coração era anima-
do pelo último de seus filhos”. Ouviu-se uma boa alma um tanto simples gritar: “Se é tão doce
conversar com os santos, quem sabe como será doce encontrar-se diante de Deus!”.
A correspondência
Padre Rua escrevia muito. O fundo do arquivo salesiano central, que guarda somente a
mínima parte da sua correspondência, inclui, por exemplo, entre janeiro e dezembro de 1889,
42 cartas enviadas a Cesare Cagliero, seu procurador em Roma. Essa correspondência – ainda
insuficientemente organizada e estudada – nos dá um aspecto característico do seu método
de governo. Como Reitor, conservou o hábito das relações pessoais com todos os irmãos in-
distintamente. O relacionamento tinha sido fácil quando a Congregação não contava senão
com algumas dezenas de membros. As relações pessoais, se tornaram complicadas quando se
aproximaram do milhar. Os salesianos não eram ainda 900 quando da morte de Dom Bosco.
O padre Rua, quando se tornou Reitor, tentou manter as relações pessoais mesmo quando o
número superou o milhar. Não contente em manter os contatos com a Congregação através de
cartas circulares coletivas muito paternas, gostaria de cultivar a mesma intimidade com cada
um, até com os desconhecidos, através de correspondências individuais diretas ou indiretas.
139

8 Pages 71-80

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8.1 Page 71

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Todos sabiam que podiam lhe escrever com total liberdade, certos de não ficar sem resposta.
Dirigiam-se a ele para falar de necessidades reais ou imaginárias, para confiar as próprias penas,
para expressar um desejo. Quando alguns pareciam querer se eclipsar, era o primeiro a quebrar
o gelo, convidando-os a lhe dar notícias.
Uma correspondência pessoal tão abundante, somada à do ofício, significava um grande
número de cartas cotidianas, que os seus pobres olhos doentes liam com cuidado e às quais
respondia ou fazia responder, conforme os casos. Esse trabalho exigia tempo e liberdade. Por
isso, entre as 15 e as 17 horas, às vezes se retirava na casa de algum benfeitor, onde não seria
perturbado. Lá se dedicava a responder às obrigações mais urgentes. As pessoas que o hospe-
davam ficavam felizes por colocar à sua disposição uma sala para escrever sem ser perturbado.
Frequentemente essas duas horas não lhe eram suficientes, então devia dedicar uma parte da
noite para expedir a correspondência.
Não é preciso ler muitas cartas para reconhecer o seu estilo muito seco. Grande número
delas era obra de secretários que, como ele, não se preocupavam em fazer literatura. Um estudo
consciencioso dessa correspondência deveria tê-lo presente. Parece-me que não se encontram
mais em suas cartas de Reitor-Mor as fórmulas frequentemente bruscas de quando era prefeito
geral na década 1870-1880.
Mas o padre Rua nunca foi um literato. Tem razão o padre Ceria de escrever que se procura-
riam em vão nas cartas do Reitor-Mor algum lampejo de imaginação, alguma originalidade na
forma ou nas ideias. Por razões de economia, suas correspondências frequentemente eram es-
critas em retalhos de papel. Também as cartas pessoais eram rápidas. No entanto, concordamos
certamente com o biógrafo, que admirava o estilo tranquilo, a amabilidade e a abertura de uma
alma simples e sóbria, mas singela e cordial, que delas transparece. Faziam refletir e comoviam
quem as recebia. O padre Ceria fala de uma “linguagem do coração”.
Transcrevo duas cartas manuscritas que me parecem significativas, uma escrita nos inícios
do seu mandato como Reitor-Mor, a outra no final. A primeira é uma resposta do dia 5 de
junho de 1892 ao padre Louis Cartier (1860-1945), diretor da casa de Nizza. Uma pitada de
humorismo – talvez involuntário – sobre a “bênção” das medalhas por parte de Dom Bosco,
morto quatro anos antes, lhe confere algo de tocante:
Caríssimo padre Cartier,
Respondo somente agora à sua agradável carta do dia 24 de maio.
Envio-lhe 12 medalhas bentas pelo Santo Padre, como você me pede. São as últimas que ainda
me restavam. Mande-as para aquela senhora que lhe pedia, bentas por Dom Bosco, e diga-lhe que
estiveram sobre a sua cama.
Não pude ler o artigo sobre o Oratório de São José, mas espero que vá bem.
Quanto à visita, poder-se-ia tentar com o padre Canepa. Quem sabe um pouco de movimento
possa lhe fazer bem!
Espero que sua festa de Maria Auxiliadora tenha saído bem. Eu lhe auguro as mais escolhidas bên-
çãos, enquanto me professo seu afeiçoado em Jesus e Maria
Padre Miguel Rua5
5 FdR 3879 C11.
140
O segundo exemplo é a resposta do dia 7 de março de 1907 a uma carta do inspetor de
Bogotá (Colômbia), Antonio Aime (1861-1921), ótimo missionário:
Caríssimo padre Aime,
Fico muito feliz com a boa notícia que me dá sobre a cura do nosso caro irmão: queira Maria Au-
xiliadora concluir a obra restabelecendo-o perfeitamente, se for para o bem da sua alma e o bem
dos outros. Nesta sua carta de 27 de janeiro, você me acena para o inconveniente de artigos inse-
ridos em novembro e dezembro no Boletim: parecia que se pudesse fazer, uma vez que as matérias
daqueles artigos eram tiradas quase inteiramente das informações publicadas muito provavelmente
por ordem, ou ao menos com o consentimento, do governo; visto, porém, o que agora você nos
escreve, deixaremos para falar disso no futuro. Você me pede três sacerdotes; mas onde podemos
encontrá-los? Muitos outros no-los pediram de vários outros lugares, mas devemos a todos respon-
der igualmente: não podemos, não temos. Tenha coragem, procure fazer fogo com seus cavacos,
e, enquanto isso, limitem as iniciativas na medida de suas forças. Não deixarei, porém, de rezar
por vocês.
Seu afeiçoadíssimo em Jesus e Maria
Padre Miguel Rua6
O padre Rua tinha sempre o cuidado de impressionar espiritualmente o destinatário. Quan-
do estava próxima alguma festa religiosa, não deixava de fazer-lhe alusão. Tinha atenções de-
licadas para os correspondentes por ocasião de festas ou aniversários. Atendia a pedidos um
tanto curiosos. Um clérigo do Equador, por exemplo, desejava uma dúzia de manuais para o
ensino do canto litúrgico. O padre Rua providenciou que lho mandassem logo. Do colégio de
Randazzo, na Sicília, o padre Trione pedia um hino de ocasião, para a celebração da próxima
festa do diretor Pietro Guidazio (1841-1902). A música já estava composta e o padre Rua se
apressou em mandar escrever os versos que desejava e em enviar-lhe de modo que chegassem
a tempo.7 Tinha muitas saídas paternas. Michele Borghino (1855-1929), jovem diretor no
Uruguai, pregava aos irmãos a doçura e a mansidão de São Francisco de Sales e de Dom Bosco,
mas tinha fama merecida de agir no sentido contrário. Um dia, viu chegar de Turim um pacote
postal, cujo endereço era claramente escrito pela mão do padre Rua. Abriu-o e encontrou nele
um vidrinho de mel com um bilhete: “Veja, meu caro padre Borghino, você vai tomar uma
colher de mel, todas as manhãs, padre Rua”. O padre Borghino será um superior enérgico, mas,
no final das contas, um bom salesiano.
As respostas do padre Rua o revelam cheio de compreensão pelos correspondentes. Se os
temperamentos coléricos superavam o limite, ele os chamava docemente, como pai compas-
sivo. Às vezes encontrava dificuldade, observa o padre Ceria, com pessoas extravagantes, que
enchiam de tolices páginas inteiras, acreditando que fossem verdades evangélicas. À primeira
vista, terá vontade de jogá-las na lixeira. Não era o caso do padre Rua. Para ele se tratava de
uma fraqueza humana e deveria ser tratada como tal. O doente pode ser chato, o médico o
cura igualmente. Depois de sua morte, foram encontradas, conta o mesmo Ceria, 115 cartas
de um padre salesiano desequilibrado, que multiplicava observações inconcludentes, tomando-
-as pelas coisas mais sérias do mundo. Pois bem, o padre Rua respondia, toda vez, com grande
6 FdR 3836 B4-5.
7 No reitorado do padre Rua, Pietro Guidazio foi diretor em Randazzo entre 1889 e 1902, ano da morte.
141

8.2 Page 72

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desvelo. Restam 56 dessas respostas, escrevia o padre Ceria; as outras 59 foram distribuídas pelo
destinatário a pessoas desejosas de ter um manuscrito do sucessor de Dom Bosco. Podiam ir
para as mãos de qualquer um: tamanhas eram a candura, a amabilidade, a capacidade de não
levar em consideração as fraquezas, que ninguém adivinharia a situação do correspondente.
O padre Rua era preciso nas respostas. Nas primeiras linhas especificava a data da carta que
respondia. Depois, passava aos detalhes, mostrando conhecer exatamente o seu conteúdo. Em
suma, a correspondência, embora simples e sem floreios, testemunhava a sua bondade de pai e
uma espiritualidade real, embora pouco aparente. “Quem o conheceu – conclui o padre Ceria
– o vê com os seus dotes e com as suas virtudes”.
As celebrações anuais
O Reitor-Mor tinha um papel central nas celebrações que se sucediam durante o ano na casa
de Turim. Desde 1868, o padre Rua, prefeito do Oratório e prefeito geral, participara todo 24
de maio, ao lado de Dom Bosco, nas solenidades de Maria Auxiliadora. Continuou a presidir
na qualidade de Reitor-Mor. Já se disse como, a partir de 1889, nos dias 23 e 24 de junho,
Valdocco celebrava ao mesmo tempo o onomástico de Dom Bosco e a festa do padre Rua. Até
que pôde, presenciou também a distribuição dos prêmios do Oratório no dia da Assunção e
não deixou de saudar, todo ano, na igreja, os alunos que partiam para as férias. De fato, con-
tinuava a manter contatos com os jovens da casa, embora sem se ocupar diretamente deles, e
aproveitava toda ocasião para se fazer ver na igreja e fora da igreja. Todos sabiam que podiam
se aproximar dele quando quisessem. Passeava à vontade entre os alunos durante o recreio da
tarde e normalmente, toda semana, dirigia a palavra aos alunos das classes superiores.
Preocupações extraordinárias o esperavam entre a metade de agosto e os primeiros dias de
outubro. Era o período dos exercícios espirituais para os Salesianos e para as Filhas de Maria
Auxiliadora. Limitava-se a fazer um aparecimento ou, quando muito, presidir o encerramento
dos exercícios espirituais das irmãs. Para os salesianos, ao contrário, o padre Rua fazia muito
mais: queria estar presente em toda mudança de exercícios, do início ao fim. Colocava-se à in-
teira disposição daqueles que participavam, sempre numerosos, em Valsalice ou em Borgo San
Martino. Depois de ter celebrado a missa – que na época era sempre individual – pela manhã,
confessava por várias horas. Retomava as confissões antes e depois do jantar. Era extremamente
exigente consigo mesmo e lhe aconteceu, confessando, cair desmaiado. Recompunha-se logo
e voltava ao confessionário. Durante o dia, recebia todos os que quisessem lhe falar. A maioria
dos irmãos não terminava o retiro sem ter se aproximado dele, apesar das filas de espera à porta
de sua sala. Passava o recreio “moderado” depois do almoço conversando com aqueles que o
rodeavam. Toda noite, os participantes do retiro ouviam sua boa-noite (o discursinho da noi-
te), depois das orações, um colóquio breve e sempre interessante. Finalmente, no encerramento
dos dias de retiros, fazia pessoalmente a pregação chamada “das lembranças”. Esses dois meses
de exercícios espirituais o cansavam enormemente. Quando fizeram-no observar, respondeu:
“É minha colheita”. Mas aquela colheita durava toda a estação, observa Ceria.
142
O biógrafo termina o capítulo com algumas considerações gerais sobre o problema sempre
delicado das nomeações dos inspetores e dos diretores. Quando o padre Rua devia nomear um
diretor, um inspetor ou um membro suplente do Capítulo Superior, não escolhia o indivíduo
que lhe agradava, mas um homem observante. Precisava de um superior fiel à Regra e às tradi-
ções salesianas. Depois, rezava e consultava separadamente cada um dos membros do Capítulo
Superior. O resultado habitualmente era satisfatório. É preciso dar crédito ao testemunho de
Júlio Barberis no processo informativo de canonização: “Não me recordo que tenha havido
graves queixas a esse respeito; deve-se, ao contrário, admirar o fato de que todos se tenham
resignado de boa vontade às suas decisões”.8 Não foi sempre assim, como testemunham as ten-
sões surgidas por ocasião das substituição dos inspetores padre Pietro Perrot e padre Giuseppe
Bologna, depois das vicissitudes francesas de 1904, sobre as quais teremos ocasião de falar. Mas,
olhando com atenção, descobre-se em toda situação difícil um Reitor sempre empenhado em
abrandar as providências tomadas em conselho pelo Capítulo Superior.
Em suma, na casa de Valdocco, para as pessoas próximas, para as externas que, numerosas,
vinham visitá-lo e para os jovens da escola, o austero e piedoso padre Rua conseguia ser um pai
benévolo, capaz de renunciar totalmente a si mesmo, feito tudo para todos, como seu mestre
Dom Bosco gostaria se ainda estivesse neste mundo.
8 Positio 1935; Summarium super dubio, p. 377.
143

8.3 Page 73

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Capítulo 17
A exploração do mundo salesiano na Europa
Na Itália
Em 1888, ano de luto pela morte de Dom Bosco, o padre Rua não saiu de Turim. No ano
seguinte, fez progressivamente a visita às casas salesianas da Europa, começando, naturalmente,
pela Itália.1
Façamos uma síntese de suas viagens pela Itália durante os primeiros anos de reitorado, entre
1889 e 1892, procurando colher delas, com a ajuda do padre Ceria, os detalhes mais salientes.
Em 1889, e no início de 1890, fez contato com as casas do Norte.
No verão de 1889, o vemos pregar os exercícios espirituais para as irmãs salesianas de Nizza
Monferrato, entre 31 de maio e 5 de junho, depois se deslocar pela costa lígure, para Sam-
pierdarena e Alassio, onde sua passagem é documentada por um álbum com as assinaturas
de todos os alunos das escolas superiores da casa. Esse volume se abre com uma dedicatória
comovente para um homem, cuja maior preocupação era seguir o mais possível as pegadas do
mestre: “Muito amado Pai, tua visita nos faz passar três dias felizes: tua presença, tuas palavras
provocaram em nós uma alegria puríssima, um santo entusiasmo. Ousaremos dizer que parecia
vindo até nós, não o sucessor, mas o mesmo Dom Bosco. Nós te agradecemos, portanto, com
todo o afeto do coração”.2
No dia 25 de junho, o padre Rua foi a Borgo San Martino para celebrar a festa de São Luís
Gonzaga. As irmãs da vizinha casa de Maria Auxiliadora lhe pediram que abençoasse uma das
irmãs que os médicos haviam desenganado. O padre Rua as convidou simplesmente a rezar
junto a seu leito três Ave-Marias por sua cura. Na boa-noite, antes de ir dormir, fez a mesma
recomendação aos alunos. A doente dormiu. No dia seguinte o médico encontrava nela somen-
te grande fraqueza. A notícia ofereceu ocasião ao padre Rua para exaltar o poder da intercessão
de Maria Auxiliadora. Irmã Filomena Bozzo, que as outras irmãs chamavam a “miraculada do
padre Rua”, morreu vinte e cinco anos mais tarde, no dia 22 de maio de 1914, diretora de um
instituto em Damasco, na Síria.3
1 Para as viagens do padre Rua entre 1889 e 1892, cf. a agenda Lazzero. In: FdR 3001A11-3002A7, aqui
citada na data; e Ceria, Vita, p. 163-222.
2 E. Ceria, Vita, p. 164.
3 E. Ceria, Vita, p. 165.
144
No dia 13 de julho encontramos o padre Rua na Emília, na bela cidade de Faenza, onde os
anticlericais tornavam difícil a vida dos salesianos. Devia-se benzer a capela interna do colégio.
Padre Rua admirou o entusiasmo eficaz dos cooperadores que apoiavam os salesianos. Foram
três dias de festa. Na última noite, depois do discurso de despedida, gastou mais de uma hora
para se separar da multidão, que queria se aproximar dele. Havia quem lhe pedisse uma bênção,
quem solicitasse um conselho, quem desejasse ouvir uma palavra, quem quisesse pelo menos
beijar-lhe a mão ou tocar-lhe as roupas. “Em suma – escrevia o padre Lazzero a dom Cagliero
–, não se fez nada de menos do que já se fazia para o nosso amado pai Dom Bosco”.4
Visitou, em seguida, as casas de Firenze e de Lucca. Voltou a Turim em tempo para se
ocupar dos exercícios espirituais dos salesianos e das salesianas, depois do Capítulo Geral que
aconteceu em Valsalice entre 2 e 7 de setembro.
Em janeiro de 1890, desceu para Roma, onde a construção do colégio do Sagrado Coração
caminhava muito devagar. Na segunda-feira, 13, estava a postos esperando o bilhete de convite
para uma audiência privada de Leão XIII.5 O papa o recebeu na quarta-feira, 22, com o padre
Cesare Cagliero e o padre Lazzero. Podemos imaginar sua satisfação quando o ouviram excla-
mar: “As obras daquele santo homem que foi Dom Bosco foram abençoadas durante sua vida,
continuarão a ser protegidas depois da sua morte”. Interessou-se especialmente pela obra dos
salesianos nos territórios de missão, sobretudo na Colômbia. O papa abençoou os projetos mis-
sionários que os salesianos queriam iniciar na África e na Ásia, onde ainda não tinham entrado.
“Podemos estar tranquilos – escreverá o padre Rua na circular do dia 1º de fevereiro – quando
nos for feito pedido de missionários para aquelas regiões, teremos a missão do vigário de nosso
Senhor Jesus Cristo, e, portanto, do próprio Deus”. Houve um intercâmbio de pareceres sobre
a paróquia do Sagrado Coração. “Coragem! – exclamou o papa –. Continuem a trabalhar. Vê-
se que onde se trabalha, apesar das dificuldades dos tempos, o povo colabora e se faz o bem”.
O padre Rua retomou a viagem de volta para Turim no sábado, 25. Parou para visitar a obra de
La Spezia. Depois fez uma conferência eficaz aos cooperadores na igreja de São Siro de Gênova.
“Com o amor de um pai e a caridade de um irmão, recomendou o cuidado e a proteção da
juventude abandonada”, escreverá um jornal no dia 28 de janeiro.6
Nos meses de abril e maio de 1891, completou a visita das obras salesianas da Itália do norte,
primeiro com os institutos de língua italiana de Trento (então no Império Austro-Húngaro) e
de Mendrisio (no Cantão Ticino), onde havia um colégio municipal aberto por Dom Bosco
não sem alguma hesitação. Em Trento, os salesianos tinham assumido a direção de um orfanato
que dependia de uma fundação local. Um artigo do regulamento impedia a aceitação de órfãos
que não fossem da cidade. O padre Rua, na conferência aos cooperadores, contou como, pouco
antes, em Nizza os salesianos encontraram, numa tarde, um menino de 11 anos enregelado de
frio, e o acolheram logo em sua casa. O pobre menino era trentino. Abandonado pelo irmão
4 Citado em Ceria, Vita, p. 167.
5 A narração dessa audiência se encontra na circular do padre Rua aos diretores salesianos de 1º de fevereiro
de 1890, em FdR 3978D3-6, e na circular para as Filhas de Maria Auxiliadora, do dia 2 de fevereiro de
1890, em FdR 3987D6-7.
6 Ceria, Vita, p. 171.
145

8.4 Page 74

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maior, mendigava à porta de um grande albergue. E sabe Deus onde acabaria se mãos caridosas
não tivessem cuidado dele. Os presentes ficaram muito comovidos pela narração. Até quem se
demonstrava mais obstinado em conservar a cláusula restritiva mudou de opinião, de tal modo
que o artigo foi suprimido.7 Em Mendrisio, o padre Rua ficou agradavelmente impressionado
pelo excelente funcionamento do Oratório festivo. No dia 12 de maio seguinte, confiou ao
Capítulo Superior que em Mendrisio “os salesianos são bem-vistos por todas as autoridades e
por todos os partidos, sobretudo por esse Oratório Festivo”.8 Durante todo o reitorado, o padre
Rua será o apóstolo do Oratório, num contexto salesiano que preferia muito mais o internato
e o ensino.
Em abril de 1891, depois de um breve retorno a Turim, partiu novamente para o Vêneto.
Da visita ao colégio Manfredini di Este, lembramos a viva satisfação por uma missa solene
inteiramente cantada em gregoriano por todos os alunos. Causou-lhe grande alegria: na sua
circular anterior, do dia 1º de novembro, de fato, recordara o amor de Dom Bosco pelo canto
da Igreja e o convite dirigido a dom Cagliero para que preparasse um manual de ensino do
canto gregoriano. Escrevia: “Em vários estados católicos se faz atualmente um estudo diligente
desse canto, e em colégios de grande reputação, deixada de lado a música, os jovens alunos se
aplicam no estudo do canto gregoriano”.9 Gostou que isto tivesse acontecido também no colé-
gio de Este. Desceu depois para a Emília Romagna, para Bolonha, Ímola e Faenza, e subiu para
Parma, cumprimentando-se pelos progressos daquelas florescentes obras salesianas, sobretudo
a de Parma, graças ao genial padre Carlo Baratta (1861-1910), numa região na qual triunfava
o laicismo mais ou menos anticlerical.
O padre Rua visitou as obras da Itália Meridional somente entre janeiro e março de 1892.10
Acompanhado pelo padre Francesia, na metade de janeiro, foi a Roma, onde Leão XIII o rece-
beu em audiência, pedindo-lhe gentilmente notícias de “seus salesianos”.11 Constatando que o
papa considerava “Dom Bosco grandemente merecedor diante de Deus, da Igreja, dos homens,
do mundo”, o padre Rua escreveu aos salesianos: “Felizes nós, que pertencemos à escola de
um mestre tão virtuoso e tão santo!”.12 De Roma desceu para Nápoles, onde embarcou para a
Sicília. Em Palermo, encontrou alguns cooperadores, chegando então a Marsala. Lá se discutia
havia tempo a oportunidade de confiar um orfanato aos salesianos. Conseguiu concluir as
tratativas. Em Catânia, teve a satisfação de constatar a estima que rodeava o Oratório cotidia-
no, frequentado e muito movimentado. Multidões de jovens acorriam a ele. A juventude de
Catânia adorava o diretor do Oratório, o jovem sacerdote Francesco Piccollo (1861-1930).
O colégio de Randazzo, primeira obra salesiana na ilha, tinha conhecido um tempo de crise,
entre 1885 e 1889, pela transferência para Lanzo do diretor-fundador, padre Francesco Guida-
zio. Agora, voltando o padre Guidazio, o colégio estava reencontrando a antiga vitalidade.
7 Ceria, Vita, p. 173-174.
8 Atas do Capítulo, 12 de maio de 1891.
9 Carta circular, 1º de novembro de 1890, L. C., p. 50-51.
10 Ceria, Vita, p. 212-216; “Don Rua in Sicilia”, Bollettino Salesiano, abril, 1892, p. 74-76.
11 Conforme a relação do padre Rua no Capítulo Geral, no dia 9 de março seguinte.
12 Carta de M. Rua a G. Costamagna, Marsala, 2 de fevereiro de 1892. In: FdR 3891D5-8.
146
Não se esqueceu das Filhas de Maria Auxiliadora. Visitou as obras de Catânia, Bronte, Tre-
castagni, Mascali, Acireale, Alì Marina. A acolhida em Alì Marina foi especialmente entusiasta.
Logo que se soube de sua chegada iminente, os jovens acorreram à estação para fazer-lhe festa.
O Reitor, em meio às aclamações, chegou ao Oratório onde em sua honra foi apresentado um
“espetáculo musical-literário”. Voltando para o continente, na Calábria, subiu através de Ta-
ranto e Bari até Macerata, para ver o colégio salesiano inaugurado recentemente. Numa auto-
biografia inédita, o padre Francesia escreve que a casa de Macerata, “aberta há pouco, já estava
cheia e transbordante. Parecia a Arca de Noé: havia estudantes, aprendizes, jovens do Oratório.
Lá somente o amor podia manter a ordem”.13 Depois de uma piedosa peregrinação a Loreto,
para venerar a Casa Santa, o padre Rua subiu para o Vêneto, com breves escalas em Ancona,
Rimini e Veneza. De lá, retornou para o Piemonte, em Novara. O bispo da cidade tinha feito
construir um magnífico Oratório, destinado a se tornar o início de uma obra salesiana especial-
mente florescente. Quando, finalmente, no dia 8 de março, voltou a Turim, não havia ninguém
para esperá-lo, pois a sua chegada não tinha sido anunciada. Mas podia dizer-se satisfeito por
ter feito o giro completo das obras salesianas da Itália.
No meridiano da França
Entre fevereiro e maio de 1890, o padre Rua realizou uma longa viagem que incluía França,
Espanha, Inglaterra e Bélgica.14 Não era ainda conhecido nessas regiões onde a lembrança de
Dom Bosco permanecia muito viva. Voltou a Turim no dia 27 de janeiro, no final de uma
expedição que o tinha levado até Roma. No dia 4 de fevereiro partia novamente para a França,
via Sampierdarena.15
A primeira casa francesa a se beneficiar de sua presença foi a de Nice, fundada por Dom
Bosco em 1875, primeira entre as obras salesianas fora da Itália.16 O título de Patronage Saint-
-Pierre não nos deve estranhar. Não era um “patronato” propriamente dito: como o Oratório
de Turim, o internato de Nice tinha as duas seções dos estudantes e dos aprendizes. A visita do
padre Rua, bem documentada na crônica da casa, pode ser contada em detalhes. Chegou às
20 horas do sábado, 8 de fevereiro. Estava escuro e fazia frio. A entrada e o pátio do patronato
estavam enfeitados com bandeiras e luzes. Quando apareceu, a banda musical e os aplausos
dos jovens o acolheram com alegria. Gritava-se: Viva o padre Rua! Viva o padre Rua! Uma
passagem do discurso de boas-vindas, lido por um rapaz (e composto pelo padre Cartier), está
em sintonia perfeita com seus sentimentos de imitador fiel de Dom Bosco: “Hoje vem até nós,
amado Pai. Descobrimos no senhor a alma, o espírito e o coração daquele que perdemos. Ou
melhor, reencontramos no senhor o mesmo Dom Bosco, todo inteiro. Nossos olhos se abrem
13 Ceria, Vita, p. 215.
14 Apresentação interessante em Ceria, Vita, p. 179-197.
15 Segundo a agenda do padre Lazzero, que fazia função de secretário, cópia datilografada. In: FdR
3001E5-6.
16 Sobre o padre Rua em Nice, cf. a longa prestação de contas em Bulletin Salésien, fevereiro de 1890, p.
25-29; abril de 1890, p. 44-45.
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à luz e sentimos no fundo do coração que nosso Pai, nosso Mestre não está morto. Também
nós podemos dizer: – Não ardia talvez de amor nosso coração enquanto ouvíamos sua voz?”.
O padre Rua, comovido, respondeu mais ou menos assim:
A lembrança de Dom Bosco, embora fazendo reviver em mim uma dor profunda, é especialmente
útil para lembrar-nos tudo aquilo que nosso venerado pai fez e aquilo que nós devemos fazer. Agora
Dom Bosco está no céu. Sentimos muitas vezes o seu benéfico apoio. Ele recomendou a vocês que
me amem como vocês o amaram, que vocês me obedeçam como vocês o obedeceram. Seguindo
suas recomendações, vocês tornarão mais doce e fácil minha tarefa, que consiste, sobretudo, vocês
sabem, em fazer o bem às almas de vocês.
No dia seguinte, domingo, 9 de fevereiro, a casa celebrava a festa de São Francisco de Sales.
O padre Rua entrou no confessionário às 6h30, assediado pelos irmãos e pelos jovens. Con-
fessar-se com o padre Rua era para todos como uma bênção. Deixou o confessionário às 7h30
para celebrar a missa da comunidade. Os cooperadores foram convidados para a conferência
regularmente na igreja de Notre Dame, depois das vésperas das 15 horas. O padre Rua falou na
presença do bispo de Nice. No seu “sermão de caridade”, segundo a expressão do jornal Semai-
ne Religieuse, pediu a colaboração dos ouvintes para três tipos de instituições: oratórios festivos,
orfanatos e outros institutos educativos; missões. Como Dom Bosco, não se envergonhava de
estender a mão. Essas obras de fato exigiam contínuos recursos econômicos. Podiam sobreviver
somente graças à caridade dos cooperadores e das cooperadoras.17
Na segunda-feira, 10 de fevereiro, as duas associações de apoio da casa de Nice, a Comissão
Protetora dos Trabalhadores do Patronato e as Damas Patronas, participaram quase por com-
pleto da conferência do padre Rua. Congratulou-se com eles pelo trabalho desenvolvido na
casa, mas lamentou a falta de um “oratório externo” masculino, junto do “oratório interno”,
visto que nas vizinhanças já existia um oratório festivo para as meninas, animado pelas Filhas
de Maria Auxiliadora. “Dom Bosco se alegra com o bem que vocês fazem aos jovens operários.
Mas muitas crianças ainda precisam ser socorridas.” É somente nessa condição que a obra de
Nice poderá dizer-se completa segundo a ideia de Dom Bosco.18
O resto da semana passou-o em visitas aos cooperadores e ao Círculo Católico, em recep-
ções, em reuniões com os irmãos, em longas sessões no confessionário. Tudo se concluiu, na se-
gunda-feira, 17 de fevereiro, vigília da partida, com grandes jogos e uma representação teatral.
O dia 18 era terça-feira gorda. Assim, o padre Rua, segundo a comovida crônica do Boletim
Salesiano francês, no discursinho de despedida acontecido na tarde do dia 17, recomendou a
todos que na manhã seguinte fizessem a comunhão e rezassem as orações pelos defuntos, que-
rendo que esse dia, vivido pelo mundo de modo pouco cristão, levasse pelo menos um pouco
de alívio às almas do purgatório.19
Na terça-feira, 18, enquanto os jovens de Nice faziam o exercício da boa morte e se prepa-
ravam para festejar o carnaval, o padre Rua se transferiu para a casa vizinha de Navarre, onde
17 Segundo o Bulletin Salésien, art. cit., p. 26.
18 Os discursos estão no Bulletin Salésien, art. cit., p. 27-28.
19 Bulletin Salésien, art. cit., p. 45.
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permaneceu quatro dias, interrompidos por uma chegada a Tolone para uma hora de confe-
rência na igreja principal de Santa Maria, e para a visita a alguns benfeitores.20 Em La Navarre,
no dia 19, foi recebido com as boas-vindas. As Companhias e as várias classes lhe dirigiram
homenagens poéticas e composições literárias. No sábado, 22, se fez o exercício da boa morte.
O padre Rua confessou os alunos por longo tempo, seguindo também nisto as pegadas de Dom
Bosco, que definia a confissão como a “melhor pedagogia”. Às 10 horas, com a autorização
do bispo, administrou o batismo a dois órfãos protestantes acolhidos pelo diretor da casa de
Tolone, Pietro Perrot. À tarde, de volta a Nice, parou em Cannes, onde Dom Bosco tinha feito
numerosos amigos. Lá, no dia seguinte, domingo, na igreja de Notre-Dame Du Bon Voyage,
fez um “sermão de caridade” sobre Dom Bosco, suas obras e seus cooperadores. O fruto da
coleta foi generoso (2 mil francos, segundo a agenda do padre Lazzero). Em Cannes, ficou
cinco dias, visitando benfeitores e comunidades religiosas. Na quarta-feira, 26, foi ao orfanato
de St. Isidore em St. Cyr-sur-Mer, cuidado pelas Filhas de Maria Auxiliadora. Foi acolhido pelo
capelão, padre Antonio Varaia.21 Na manhã seguinte, fez uma conferência aos cooperadores;
participou de um almoço com o clero local e o conde de Villeneuve; finalmente, colocou-se à
disposição das irmãs durante toda a tarde.
Na noite do dia 28 de fevereiro, anunciado por um telegrama, chegou ao Oratório Saint-
Léon de Marselha. Ficou ali oito dias. Marselha era sede da casa provincial, com o inspetor
padre Paulo Albera. Mas não se limitou à casa de Saint-Léon. De fato (salvo erros, dado que a
crônica do Bulletin e a do padre Lazzero não concordam sobre as datas), o padre Rua dedicou
dois dias, quarta-feira e domingo, 4 e 9 de março, ao noviciado de La Providence, no bairro
Sainte-Marguerite de Marselha. Os 30 noviços salesianos franceses celebraram sua chegada
com uma bela “academia”. Depois, o padre Rua recebeu em particular todos aqueles que pedi-
ram para fazer a profissão ou vestir o hábito clerical. Interessou-se também pela sede da fazenda
e pelos campos.22 Nos dias 7 e 8 foi visitar o padre de Aubagne, depois o conde de Villeneuve
em Roquefort, dois afeiçoados amigos de Dom Bosco. Nos dias passados em Saint Léon, o
padre Rua recebeu as visitas, confessou os irmãos e os alunos, falou às comissões protetoras,
masculinas e femininas. Dirigiu também aos rapazes dois discursinhos à noite – muito longos
–, um para encorajá-los a se aproximar dos sacramentos, o outro sobre a devoção a São José. No
dia 6 de março, fez uma longa conferência aos cooperadores, na qual fez o elogio dos oratórios
festivos: “Os resultados obtidos são realmente consoladores. Numa cidade abrimos o oratório
num bairro de má fama. Uma pessoa respeitável não podia atravessá-lo sem ser surpreendida
com pedradas ou atacada pelos meninos que atiravam barro. Seis meses depois da abertura do
Oratório salesiano, o bairro estava irreconhecível. Eu mesmo pude constatar que aqueles meni-
nos não só nos respeitam, mas são educados e atenciosos”. Falou também das missões salesianas
entre os “selvagens”.23
20 Sobre o padre Rua nas casas de La Navarre, Tolone, Cannes e Marselha, cf. Bulletin Salésien, abril de
1890 p. 45-51.
21 A crônica do Bulletin Salésien não diz nada sobre o padre Rua em St. Cyr. Informações lacônicas emergem
na agenda do secretário Lazzero, cit. na data.
22 Segundo a agenda Lazzero, cit., na data.
23 Discurso publicado com o título: “Conférence des Coopérateurs salésiens”, no Bulletin Salésien, abril
de 1890, p. 49-50.
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Na Espanha
Na tarde de segunda-feira, 10 de março de 1890, em companhia do padre Júlio Barberis, o
padre Rua deixou Marselha rumo à Espanha. Estava voltando quatro anos depois da memorá-
vel viagem de 1886 ao lado de Dom Bosco.24 Visitou duas obras salesianas muito distantes uma
da outra: Sarriá, em Barcelona, e Utrera, na região de Sevilha. O percurso o obrigou a percorrer
longos trechos com meios de transporte lentos e complicados.
No dia 11 de março, depois de uma noite no trem e uma esplêndida acolhida na estação de
Barcelona, pôde celebrar a missa na capela particular da benfeitora dona Dorotéia Chopitea.
Depois se apressou em visitar o bispo, que lhe demonstrou uma “extraordinária bondade” (Bar-
beris). Às 16 horas, finalmente, chegou a Sarriá, onde ficou por oito dias, de 11 a 20. Música
instrumental, cantos e aplausos saudaram sua chegada. O pátio da casa tinha sido enfeitado
com luminares colocados sob os pórticos do andar térreo, do primeiro e do segundo andar.
Nem mesmo Dom Bosco tinha recebido uma acolhida tão magnífica. Júlio Barberis, no dia
15 de março, escrevia ao padre Luigi Piscetta: “Todos os barcelonenses veneram muito o padre
Rua e reconhecem realmente nele um outro Dom Bosco”.25 Passou os dias recebendo pessoas
e visitando benfeitores, em especial o senhor Marti-Codolar. Como digna coroação da estadia
em Barcelona, no dia 18 de março o padre Rua inaugurou uma obra popular num bairro muito
pobre. Dona Chopitea tinha feito construir, com os próprios recursos, um complexo que com-
preendia a escola e o oratório festivo e confiava aos salesianos a missão de instruir e formar a
população do bairro. O bispo abençoou o edifício. Depois, numa das salas foi organizada uma
recepção com discurso de ocasião, com dedicação de homenagens, poesias e trechos musicais
confiados aos jovens de Sarriá. O Correo Catalan do dia seguinte escreveu: “Sob o suntuoso
baldaquino preparado para sua Excelência o bispo, presidente da recepção, tinham colocado
um belo retrato de Dom Bosco; à direita do prelado tomaram lugar o padre Miguel Rua, su-
perior geral da Congregação Salesiana, o vigário geral da diocese e o presidente das Associações
Católicas”.26
No último dia, o padre Rua, os membros da comunidade e os jovens de Sarriá celebraram
a festa de São José, uma devoção a ele muito querida, que os alunos solenizaram à noite com
um espetáculo teatral. No dia seguinte, 20 de março, nossos dois viajantes se encaminharam
para a segunda obra salesiana da Espanha, Utrera, via Madri e Sevilha. No momento de co-
meçar a descrição desse itinerário, Barberis escrevia a Luigi Piscetta: “In primis et ante omnia é
preciso que lhe diga que a viagem de Barcelona até Utrera é longa, muito longa, alguma coisa
mais que de Turim a Barcelona. E acrescento que na Espanha os trens não são tão velozes e há
pouquíssimos diretos, de modo que a viagem parece mais longa”.27 É verdade que em Barce-
lona dona Chopitea havia comprado para eles bilhetes de primeira classe, mas resta o fato de
que, partindo de Barcelona no dia 20 de março às 8 horas, chegaram a Madri, na metade do
24 Informações sobre essa viagem à Espanha nas cartas do padre Barberis FdR 3002A8ss. Cf. o artigo “Don
Rua in Spagna”, Bolletino Salesiano, junho de 1890, p. 78-80.
25 FdR 3002B9.
26 Cf. o artigo citado pelo Bolletino Salesiano, junho de 1890, p. 78-79.
27 FdR 3002B12-C1.
150
percurso, no dia seguinte à mesma hora. O padre Rua, indisposto, não pôde dormir e se sentia
extremamente cansado. Mas não se importava. Logo que chegaram a Madri, de onde parti-
riam à tarde, procuraram um lugar para a missa. Ele celebrou na capela particular de um rico
benfeitor; Barberis, ao contrário, numa igrejinha nas proximidades da estação. Depois foram
cumprimentar o cardeal de Sevilha, que se encontrava em Madri, o bispo da cidade, o núncio
apostólico e o vigário geral da diocese. A viagem por ferrovia até Sevilha durou outras treze
horas. Partindo de Madri no dia 21 de março às 18h30, chegaram ao destino no dia seguinte
às 7h30. Apesar das poucas comodidades do trem, desta vez o padre Rua conseguiu dormir
um pouco. Em Sevilha, celebraram a missa, provavelmente na catedral, “uma das maravilhas
do mundo”, escreve Barberis. Naquele momento, várias centenas de operários estavam traba-
lhando na sua restauração. Depois da visita a Alambra e algumas famílias de benfeitores, reto-
maram o trem para a última etapa. A viagem, desta vez, durou “não mais que 45 minutos”.28
Como era previsível, na estação de Utrera foi preparada uma recepção grandiosa. A casa
salesiana da cidade era realmente muito apreciada. Esperavam o padre Rua umas vinte carrua-
gens, com os dois párocos da cidade, o prefeito, o pretor, o Capítulo da casa salesiana, todos os
sacerdotes do lugar, os diversos dignitários, e os amigos, como escreve o padre Barberis, numa
carta do dia 25 de março. Todos queriam “ter um contato com o sucessor de Dom Bosco e
honrar nele o próprio Dom Bosco”. Foi um belo cortejo de carruagens até à casa salesiana. “Ó
Utrera! Utrera! Eu não te esquecerei jamais”, exclamou Barberis, tanto se encantara com a viva-
cidade dos jovens andaluzes.29 Logo que o portão se abriu, 130 jovens bem alinhados com seus
assistentes começaram a gritar Viva!, a aplaudir e a se dirigir para aquele que esperavam com
tanta impaciência. Foi entoado um hino de boas-vindas. A presença do padre Rua confortou
os irmãos: a casa, aberta havia dez anos, não recebera ainda a visita de um superior. O dia 23
era domingo. Todos os jovens procuraram se confessar com o padre Rua, que, diferentemen-
te de Barberis, conhecia o espanhol. À noite houve uma grande academia musical-literária.
A Católica Espanha impressionou o padre Barberis e provavelmente também o padre Rua. “O
Andaluz não pode falar sem exaltar seu Santo Hermenegildo, seu São Fernando, Santo Isidoro,
e sem recordar o tempo da dominação moura, que eles com a ajuda de Maria venceram. Várias
composições versavam sobre esses assuntos”.30 Durante sua breve estadia, o Reitor-Mor quis
fazer uma peregrinação a Nossa Senhora do Consolo, padroeira de Utrera e de toda a Andalu-
zia. Visitou o prefeito, o arcipreste e duas ou três famílias de benfeitores. No dia 24, fez uma
conferência aos cooperadores. “Sua palavra simples e cheia de doçura tocou os corações”, e teve
tal sucesso que o clérigo que cuidava das esmolas tinha dificuldade em ter nas mãos a bande-
ja, pesada pelas moedas que nela tinham sido colocadas.31 Finalmente, na tarde do dia 25 de
março, os dois viajantes se dispuseram a retomar o caminho para Turim, onde previam chegar
na manhã do dia 30, domingo de Ramos. Chegaram cheios de admiração pela Espanha, pela
generosidade de seus cooperadores e pela afeição do país à pessoa de Dom Bosco.
28 FdR 3002C5-6 e 8.
29 FdR 3002C6.
30 Barberis. In: FdR 3002C12.
31 Barberis, em FdR 3002D2-3.
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Em Lyon e em Paris
Depois de duas semanas passadas em Turim na oração e em longas reuniões capitulares, o
padre Rua, embora tivesse pressa de chegar à recentíssima obra de Battersea (Inglaterra), fez
ainda duas breves etapas em Lyon e em Paris.32 Estava acompanhado pelo padre Louis Roussin,
redator do Bulletin Salésien francês.33 Partindo de Turim na manhã do dia 14 de abril, foram
recebidos na estação de Lyon pela família Quisard, que os hospedou. No dia 15, o padre Rua
celebrou a missa na capela das clarissas da rua Sala, perto do lugar onde morrera São Francisco
de Sales, coisa à qual o padre Rua deu muito destaque. Depois, fez aquelas poucas visitas que
o tempo lhe permitia, especialmente ao vigário geral dom Belmont, na ausência do cardeal ar-
cebispo Foulon, e à Obra da Propagação da Fé. Essa obra apoiava os missionários salesianos da
América do Sul. Informados sobre a viagem do padre Rua a Lyon, dom Cagliero, vigário apos-
tólico na Patagônia, e dom Fagnano, prefeito apostólico da Terra do Fogo, por seu intermédio
se recomendavam à Obra. O secretário-geral mostrou numa vitrine do museu algum objeto
proveniente das missões. No dia seguinte, o padre Rua subiu a colina de Fourvière, onde estava
em construção a grande basílica que a tornará famosa. Celebrou missa na capela histórica anti-
ga, que Dom Bosco já tinha visto em 1883. O Echo de Fourvière elogiou seu traçado. O padre
Rua, escrevia, “está habituado a contar com a Providência, que dá o pão cotidiano a 100 mil
crianças, tiradas da miséria, e à valorosa falange de missionários que levam a boa-nova às regiões
longínquas da Patagônia. Padre Rua não é nada menor que seu santo saudoso mestre, pelo zelo,
pela mansidão e, sobretudo, por essa fé vivíssima que remove as montanhas”.34 À noite, deixava
Lyon num trem noturno que o conduziria a Paris, onde não pensava parar mais que dois dias,
deixando para lá parar mais demoradamente quando retornasse da Inglaterra.
Dedicou o dia 17 de abril ao pequeno internato aberto em Paris-Ménilmontant em 1884
perto do Oratório, berço da obra. Acolheram-no com a fanfarra. Para sua grande satisfação,
celebrou a missa acompanhada em canto gregoriano pelos alunos. À tarde, ofereceram-lhe um
espetáculo, na presença de poucos íntimos. O Oratório Saints Pierre et Paul, embora paupérri-
mo, era vivo e o demonstrava. Padre Rua passou quase todo o dia 18 fora de casa. De manhã,
visitou as beneditinas do Santo Sacramento, na rua Monsieur, para as quais celebrou a missa
em gregoriano, depois teve um “bate-papo muito paterno” com a comunidade, como escreve
Louis Roussin no Bulletin Salésien, para contar os progressos das obras salesianas na Europa e
nas missões americanas, e expressar o reconhecimento dos salesianos por aquelas religiosas que
os apoiavam com as orações e as ofertas. Na primeira tarde, acompanhado pelo diretor Joseph
Ronchail, o padre Rua foi recebido pelo núncio dom Rotelli, que elogiou a obra de Ménilmon-
tant, onde o campo de ação oferecido aos salesianos era vasto. A seguir fez uma conferência aos
cooperadores, realizada na igreja da Assunção, na rua Saint Honoré, diante de uma assembleia
reduzida “por causa do mau tempo”. Padre Rua retomou simplesmente aquilo que já dissera
em Nice e em Marselha sobre Dom Bosco, sobre seu apostolado pela juventude pobre e aban-
donada, sobre os progressos das obras salesianas, sobretudo nas missões. Insistiu muito “sobre
32 Etapas minuciosamente narradas em Bulletin Salésien, junho de 1890, p. 76-79.
33 A presença de Roussin ao lado do padre Rua é citada numa carta deste último ao padre Durando,
Londres, 21 de abril de 1890. In: FdR3897A4.
34 L’Echo de Fourvière, 19 de abril de 1890. Cf. Bulletin Salésien, art. cit., p. 77.
152
a absoluta necessidade de aumentar a casa de Ménilmontant”, onde, diante de 800 pedidos de
admissão havia somente 90 lugares. Os cooperadores eram convidados a pôr a mão no bolso.
O padre Rua mesmo passou entre eles para recolher as ofertas. Depois da bênção com o Santís-
simo Sacramento, deu audiência na sacristia. Teve, assim, como constatar o quanto estava viva
em Paris a lembrança de Dom Bosco.
Padre Rua na Inglaterra, no norte da França e na Bélgica
Pouco antes da morte, Dom Bosco tinha aceitado uma missão católica muito pobre num
bairro operário de Londres, em Battersea.35 Os inícios tinham sido difíceis. O primeiro supe-
rior, Edward Mac Kiernann, morrera em 30 de dezembro de 1888. Padre Rua dedicou a essa
obra nascente seis dias, entre 19 e 25 de abril. A obra era dirigida pelo padre Charles Macey.
Nossos dois viajantes encontraram, perto de uma igreja muito pobre, uma casinha que servia
de casa para o padre, uma florescente escola mista de 315 alunos confiada a religiosas, sub-
vencionada parcialmente pelo Estado, mas administrada financeiramente pela paróquia, um
oratório festivo para os meninos e um princípio de orfanato com 3 crianças ainda alojadas na
casa do padre.36 Na paróquia eram mais ou menos 2 mil católicos, irlandeses em sua maioria.
Escrevia o padre Rua ao padre Durando, no dia 21 de abril:
A igreja e as escolas são bem frequentadas, o bem que se faz pelos católicos do bairro é grande e é
também grande pelos protestantes, uma vez que frequentemente se obtêm conversões e às vezes de
numerosas famílias inteiras, o que acontece muito raramente. Também o oratório festivo continua
bem: não é ainda numeroso como o do padre Pavia [em Valdocco], mas esperamos que aos poucos
possa competir com ele.
Continuava projetando o envolvimento das Filhas de Maria Auxiliadora na missão inglesa:
“Se pudermos acertar algum negócio que temos em vista, será conveniente enviar para cá tam-
bém nossas irmãs para cuidar do oratório festivo das meninas, que viriam em número muito
grande e forneceriam também bom contingente de vocações se pudessem ser cultivadas”.37
O padre Rua inspecionou cuidadosamente os ambientes. Ficou satisfeito com a construção
do muro de separação que protegia os dois pátios ao redor da igreja: as crianças não poderiam
mais escalá-lo para quebrar os vidros; lamentou-se de que a cobertura de zinco da igreja não
protegesse suficientemente os fiéis da chuva, e, sobretudo, pediu ao padre Macey que ampliasse
a escola já insuficiente, para duplicar o número dos alunos.
Depois, começou as visitas. A primeira foi ao bispo da diocese (Southwark), dom Butt,
que o levou para ver nas vizinhanças uma escola de uns mil alunos que tinha construído com
a ajuda dos diocesanos. Esse bispo dava prioridade à escola católica, coisa que o padre Rua
compreendia e apreciava. Depois, cumprimentou o clero da paróquia Notre Dame du Mont
35 Descrição numa notícia de Francesco Dalmazzo, traduzida no Bulletin Salésien, dezembro de 1887, p. 149-150.
36 Descrição prolixa dos dias do padre Rua na Inglaterra em Bulletin Salésien, junho de 1890, p. 79-85.
37 Carta de Miguel Rua a C. Durando, Londres, 12 de abril de 1890. In: FdR 3897A4-6.
153

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Carmel, o vigário e o pároco, que tinham apoiado os primeiros salesianos chegados a Battersea.
Visitou a comunidade das irmãs de Notre Dame de Namur, responsáveis pela escola, muito
ativas no serviço aos pobres. Interessou-se pela qualidade das celebrações litúrgicas, quer na
igreja anglicana de Westminster, quer na comunidade dos imigrados italianos. A atmosfera
de Westminster pareceu-lhe especialmente fria, enquanto encontrou na comunidade italiana
fiéis que cantavam, devotos e cordiais. Muitos protestantes, conforme a crônica, assistiam às
funções dos italianos e aos concertos que organizavam em sua igreja.
No dia 25 de abril, o padre Rua atravessou de volta o canal da Mancha e chegou ao con-
tinente. No dia 26, podia despachar de Guînes, nas proximidades de Calais, uma carta para
Cesare Cagliero.38 Aqui as Filhas de Maria Auxiliadora administravam um orfanato aberto re-
centemente. Padre Rua abençoou sua capela particular.39 À noite chegou ao orfanato salesiano
de Lille. A recepção foi solene, com luzes, fanfarra, homenagens e cantos da schola cantorum.
Depois da oração da noite, o diretor Ange Bologne anunciou aos meninos que no dia seguinte
iniciariam os exercícios espirituais e que o Reitor-Mor estaria à sua disposição durante todo o
tempo, no confessionário e no escritório. O padre Rua fez a pregação de abertura no dia 27
de abril e a de encerramento no dia 1º de maio. Entre 2 e 6 de maio dedicou-se às numerosas
personalidades civis e eclesiásticas amigas de Dom Bosco e da obra de Lille. O diretor Bologne
estava buscando fundos para a aquisição de uma construção próxima da casa, para duplicar os
locais do orfanato. Apresentou seu projeto detalhado no dia 6 de maio, durante a conferência
aos cooperadores, presidida pelo reitor das Faculdades Católicas de Lille.40 O padre Rua ex-
pressou seu acordo com o orador. Lemos na crônica: “Em três quartos de hora, com uma sim-
plicidade cheia de candura, expõe o estado, os progressos e as necessidades das obras salesianas.
Insiste sobre a necessidade de aumentar o orfanato de Lille e recomenda calorosamente esse
empreendimento à caridade dos cooperadores da região do Norte”.
No dia 7 de maio, o padre Rua, com os irmãos Bologne e Roussin, entrou na Bélgica. Algu-
mas semanas antes da morte, Dom Bosco aceitara a proposta do bispo de Liège, Victor Doutre-
loux, de criar na cidade uma obra semelhante à de Valdocco. O padre Rua tinha a intenção de
realizar o projeto. No dia 8 de maio, presenciou a bênção da primeira pedra do orfanato sale-
siano Saint Jean Berchmans, no bairro industrial de Laven. A cerimônia solene, presidida pelo
núncio apostólico de Bruxelas e por dom Doutreloux, aconteceu em dois momentos: na igreja
Sainte-Véronique fez-se o discurso, e depois, no canteiro de obras, celebrou-se a missa ao ar
livre e se deu a bênção propriamente dita.41 Em Sainte-Véronique o padre Rua foi o protagonis-
ta. Depois do canto do Veni Creator, como conta a Gazette de Liège, “vimos dirigir-se ao púlpito
um sacerdote estrangeiro, de tez escura, magro como um anacoreta. O que impressiona, não
menos que a sua magreza, é a vivacidade serena do olhar que brilha nas pálpebras avermelhadas
pelas muitas horas de vigília [...]. Expressa-se com coração e com riqueza de linguagem, correta
e simplesmente, com um acento no qual a palavra francesa se amolda, sem nunca se mascarar,
38 FdR3863A10.
39 Sobre o padre Rua em Guînes, Lille e Liège, cf. o longo artigo do Bulletin Salésien, julho de 1890, p. 89-98.
40 Quem estiver interessado, pode lê-lo por extenso, em Bulletin Salésien, art. cit., p. 92-94.
41 Descrição minuciosa dessa dupla cerimônia num artigo assinado por L. H. Legius na Gazette de Liège,
10-11 de maio de 1890, reproduzido no Bulletin Salésien, 1890, p. 63-68.
154
com pronúncia francamente italiana”. O padre Rua narrou, por alto, capítulos da vida de Dom
Bosco, o nascimento da Sociedade Salesiana e, sobretudo, a aceitação até aventurosa da nova
obra de Liège. Concluiu pedindo com fervor o apoio de todos os habitantes da cidade a uma
casa que não poderia viver sem a caridade pública. A alocução, escreve a Gazette, “pronunciada
simplesmente, mas com o coração, com convicção e cheia de uma fé comunicativa, bastou para
dar a todos a impressão de que Dom Bosco não poderia ter encontrado substituto mais digno
e mais capaz”.
Depois da festa, foi oferecido, na sede do bispado, um banquete alegrado por alguns brin-
des. Também o padre Rua falou e agradeceu o núncio com uma lembrança simpática: os sa-
lesianos puderam fundar em Catânia uma casa para a juventude pobre, graças aos numerosos
benfeitores. Entre estes, bem “em frente ao edifício, há uma senhora que as crianças chamam
com o doce nome de ‘mamãe’. É a digníssima mãe... de dom Nava, núncio apostólico de
Bruxelas”.42
Entre 9 e 17 de maio, percorreu quase toda a Bélgica para visitar numerosos benfeitores
e amigos dos salesianos no país.43 Foi a Namur, Lovaina, Bruxelas, Malines, Anvers, Gand,
Bruges, Courtrai e Tournai. Depois, voltou a Paris. De lá, no dia 19 de maio, padre Rua visi-
tou o orfanato agrícola salesiano Le Rossignol, recentemente aberto em Coigneux (Somme).
O responsável pelo orfanato era o padre Jean-Baptiste Rivetti, de 39 anos.44 Parecia uma segun-
da Belém: de fato, era uma construção “muito antiga”, com paredes de argila batida, colocada
no centro de um terreno sem árvores de 90 hectares. Uma pequena sala no piso térreo tinha
sido transformada em capela. Os órfãos dormiam no paiol, onde não havia um canto livre.
O orfanato não possuía senão 2 vacas e 2 porcos. Padre Rua abençoou as crianças e prometeu
reencontrar proximamente esta casa equipada com tudo o que fosse necessário, graças à gene-
rosidade dos benfeitores da Somme e do Pas-de-Calais. O Bulletin francês fazia a lista de tudo:
“Objetos e ornamentos para o culto divino, roupa de cama, móveis, roupas, tecidos diversos,
utensílios e instrumentos para arar; veículos, animais de tração e gado, adubo etc., etc.”. Em
1890, o orfanato agrícola salesiano Le Rossignol vivia na miséria mais negra.
No dia 20 de maio, o padre Rua e Louis Roussin tomaram a estrada para Paris. Pararam em
Amiens para cumprimentar o bispo e algum benfeitor.45 No Oratório Saint Pierre et Paul de
Paris, os meninos os acolheram no pátio com bandeiras ao vento e ao som da fanfarra. No dia
21, como escreve o redator do Bulletin, “o sucessor de Dom Bosco retomava a série de visitas
que seu cargo e os interesses de nossas obras exigem”. No dia 22 de maio, ficou muito tempo
nas oficinas dos assuncionistas da rua François Ier, editores do jornal La Croix e do Pèlerin.
Depois visitou o cardeal arcebispo François Richard, muito amigo de Dom Bosco. Finalmente
foi para Ménilmontant para cumprimentar o núncio dom Rotelli, que vinha retribuir a visita
que lhe fizera por ocasião de sua passagem anterior por Paris. Naqueles dias, os jovens faziam
42 Bulletin Salésien, julho de 1890, p. 97.
43 Cf. a narração circunstanciada dessa longa viagem num artigo do Bulletin Salésien, agosto de 1890, p. 105-109.
44 Sobre o padre Rua em Le Rossignol, cf. Bulletin Salésien, setembro de 1890, p. 117-120.
45 Relação detalhada desta última parte da viagem do padre Rua num artigo do Bulletin Salésien, outubro
de 1890, p. 129-133.
155

8.9 Page 79

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os exercícios espirituais anuais, pregados por um padre redentorista. O padre Rua fez a prega-
ção de encerramento no dia 25 de maio, domingo de Pentecostes, insistindo sobre o modo de
cumprir os propósitos. À tarde, no pátio, debaixo de uma ampla tenda, houve uma festa intro-
duzida por um discurso do presidente da comissão do oratório. Recitou-se o drama Le Prêtre,
mas foi interrompido desde o primeiro ato por causa de “um verdadeiro furacão”.
Nos dias 26 e 27 de maio, o padre Rua quis fazer ainda alguma visita de despedida: às be-
neditinas da rua Monsieur, aos redentoristas do bulevar Ménilmontant etc. Na noite do dia
27 (para não perder tempo escolhia sempre trens noturnos), retomou o caminho para Turim,
com paradas mais ou menos longas, em Paray-le-Monial, Cluny e Laizé (na família Quisard,
de Lyon). Chegou à estação de Turim Porta Nuova na sexta-feira, 30 de maio, às 8 horas da
manhã.
Terminava, assim, sua primeira grande viagem de exploração das obras salesianas da Europa.
Ao mesmo tempo, trabalhava num projeto que visava introduzir a Congregação Salesiana na
Terra Santa. Isto comportaria para ele outra viagem inesperada.
156
Capítulo 18
O Oriente Médio
O padre Antonio Belloni na Terra Santa
Na ata da reunião capitular do dia 25 de agosto de 1890 lemos: “O padre Rua lê a proposta
confidencial do cônego Belloni de incorporar sua Congregação da Infância abandonada da
Terra Santa, em Belém, Betgialla, Nazaré etc., à Congregação Salesiana, cedendo a esta todas
as suas propriedades. Seus principais coadjutores estão de acordo. Belloni virá à Europa, e o
Capítulo, enquanto responde concordando em geral, espera essa vinda para deliberar”.1 Estava
começando uma das maiores aventuras do reitorado do padre Rua, que preparava a entrada dos
salesianos no Oriente Médio.
O cônego Antonio Belloni (1831-1903) não era conhecido do padre Rua.2 Esse Vicente de
Paulo da Terra Santa, italiano de origem, missionário na região desde 1859, professor de Sagra-
da Escritura e diretor espiritual do seminário, ficara profundamente chocado com a miséria das
crianças, vítimas de exploradores corruptos e completamente ignOrãtes em matéria de religião.
Iniciara acolhendo em sua casa o filhinho abandonado de um cego. Logo chegaram outros
3 meninos pobres. Encontrou trabalho para cada um deles, enquanto lhes dava algumas aulas.
Desde o momento em que não eram bem-vistos no seminário, alugou um casebre nas proxi-
midades e viu, assim, aumentar seu pequeno rebanho. Ajudavam-no alguns benfeitores. Esta-
beleceu sua obra em Belém, na estrada da Santa Gruta. Dispensado do ensino no seminário,
com autorização do patriarca latino, foi lá morar. Estava preocupado com o futuro. Em 1874,
rodeado por 45 meninos, decidiu dar vida a uma congregação diocesana de Irmãos da Sagrada
Família que o ajudassem em sua obra de beneficência. Os primeiros 3 aspirantes vinham do
próprio orfanato. Em 1875, depois de uma volta de propaganda pela Europa, padre Belloni le-
vou consigo um colaborador precioso, o sacerdote italiano Raffaele Piperni (1842-1930). Mas
a iniciativa não lhe pareceu suficiente. Em 1878, acreditando num testemunho pouco seguro
e muito posterior,3 encontrando Dom Bosco em Turim, lhe ofereceu sua obra na Palestina.
Adquiriu então um terreno em Beitgemal para lá fundar um orfanato agrícola e o confiou a um
1 Verbali del Capitolo Superiore, 25 de agosto de 1890. In: FdR 4241B6.
2 Sobre o padre Antonio Belloni, veja-se a biografia de G. Shalhub, Abuiatama. Il padre degli orfani nel
paese di Gesù. Torino, SEI, 1955.
3 Artigo anônimo: “Un’era della carità in Palestina. Abuna Antun Belloni”, Osservatore Romano, 21 de
agosto de 1935; transcrito em MB XVII, p. 896.
157

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padre vindo da Itália. Em 1885, os jovens acolhidos eram 80 em Belém e 56 em Beitgemal.
Naquele ano, abriu também um externato em Belém com 150 alunos. Em 1886, fundou um
terceiro centro em Cremisan, perto de Belém, para acolher os aspirantes da Sagrada Famí-
lia. Finalmente, adquiriu um terreno na colina de Nazaré, tendo em vista um quarto centro.
O conjunto dos imóveis constituía, portanto, um belo patrimônio, apesar de sua dependência
sempre angustiante da caridade pública.
A fusão da Congregação da Sagrada Família com a Sociedade Salesiana
A questão da fusão da obra Belloni com a Sociedade Salesiana tomou corpo rapidamente.
A ata da reunião do Capítulo Superior presidido pelo padre Rua no dia 6 de outubro de 1890
nos informa que o “cônego Belloni, fundador das obras para jovens abandonados em Belém,
Betgialla e Nazaré”, estava presente. “São examinadas, uma por uma, as perguntas que o cône-
go Belloni apresentou por escrito para a fusão de sua Congregação com a nossa e o Capítulo
responde a todas afirmativamente. O padre Durando foi encarregado de fazer, em cima delas,
a convenção em artigos para serem apresentados à [Congregação da] Propaganda em Roma”.
Três dias depois, aconteceu uma segunda reunião com a presença do cônego. Segundo a ata,
“padre Durando leu a convenção para a fusão das duas sociedades, que é aprovada por ambas
as partes”.4 O padre Júlio Barberis iria verificar a situação no local. O padre Belloni não perdeu
tempo. Foi logo a Roma para apresentar o plano a Leão XIII, que o aprovou, lhe deu como
presente 7 mil liras e o convidou para fazer contatos com a Propaganda Fide. Seu prefeito, o
cardeal Simeoni, lhe pediu somente que verificasse se o patriarca latino da Terra Santa, dom
Piavi, presente em Roma, não colocaria obstáculos ao acordo. Tudo caminhou da melhor for-
ma, de modo que no dia 9 de novembro o rescrito estava pronto.
Era preciso passar à ação. Na reunião capitular do dia 7 de fevereiro de 1891, “o padre Rua
expôs como o cônego Belloni havia escrito pedindo que, além do visitador, fossem mandados
com ele a Belém 2 salesianos para lá se estabelecerem no fim de maio. O Capítulo é propenso
a aceitar e, então, escolhe 2 padres que parecem muito capazes para trabalhar na Palestina”.5
São o padre Giovanni Battista Useo e o padre Ruggero Corradini. No dia 15 de junho de
1891, o cônego e os salesianos Barberis, Useo e Corradini desembarcavam em Jaffa. No dia
8 de outubro seguinte chegaram a Belém 4 clérigos, 3 coadjutores salesianos e 5 Filhas de Maria
Auxiliadora. Outros 17 salesianos, guiados pelo padre Antonio Varaia, 6 clérigos e 9 coadjuto-
res, chegarão no dia 29 de dezembro. A fusão tinha se concretizado.6
Mas a operação se revelou muito difícil. Diversos colaboradores abandonaram o padre Bello-
ni e se incardinaram no Patriarcado latino. Outros recalcitravam. Circulavam vozes hostis. Os
salesianos ameaçaram retirar as irmãs. Faltava dinheiro. O fundador era contestado diante do
Patriarcado pela cessão de bens em favor do padre Rua. De fato, dizia-se, as doações lhe foram
4 Verbali del Capitolo Superiore, 6 e 9 de outubro de 1890. In: FdR 4241B12.
5 Verbali del Capitolo Superiore, 7 de fevereiro de 1891. In: FdR 4241C3-4.
6 Cf. Annali II, p. 180-184.
158
feitas não a “título pessoal” (intuitu personae), mas “a título do Patriarcado” (intuitu Patriar-
catus). O negócio tomou um rumo tão difícil que o padre Rua mandou para a Palestina um
visitador extraordinário para acalmar os espíritos. O padre Celestino Durando chegou no dia
23 de julho de 1892. Quando, acompanhado do padre Belloni, se apresentou ao patriarca, este
lhe perguntou à queima-roupa: “Você veio à Palestina para retirar os salesianos?”. “Vamos ver,
vamos ver”, replicou Durando. Mas o padre Belloni logo interveio: “Se os salesianos partirem,
parto também eu”. O patriarca se acalmou. Foi somente imposta ao padre Belloni a restituição
dos títulos de cônego, o que fez de muito bom grado nas mãos dos 2 enviados do Patriarcado.
Entrou assim formalmente no mundo salesiano. Durante o verão de 1893, fez solenemente a
profissão perpétua nas mãos do padre Giovanni Marenco, que viera para pregar os exercícios
espirituais. O padre Rua pagou as dívidas da obra e lhes destinou, a partir daquele ano, uma
ajuda anual de 20 mil francos.
A peregrinação do padre Rua à Terra Santa
Aos poucos, nas três casas do padre Belloni, tornadas salesianas, as críticas se acalmaram.
Nada poderia conciliar melhor a união entre os espíritos que uma visita do padre Rua. Ele
decidiu partir em 1895.7
Acompanhado do diretor espiritual geral, padre Paulo Albera, embarcou para Marselha no
sábado, 16 de fevereiro de 1895, no navio Druentia, da companhia marítima Cyprien Fabre,
direto para Alexandria do Egito. O marquês de Villeneuve-Trans, cooperador de Marselha,
viajava com eles. Na realidade, num primeiro tempo, estava previsto um navio a vapor das
Messageries Maritimes, mais confortável, mas, visto que o navio não partia no dia marcado
pelo padre Rua, optaram por outro. Os primeiros dias foram agitados: um vento violento do
Oeste obrigou duas vezes o comandante a parar e modificar a rota para se aproximar da costa
italiana. Os passageiros sofriam balançados pelas ondas. Na manhã do domingo, 17, o padre
Rua saiu pálido da cabine com a intenção de celebrar uma missa já anunciada. Precisou desistir
e ficar deitado durante todo o dia no beliche, obrigado, de vez em quando, a se agarrar para não
ser atirado ao chão. As malas caíam da cama. Os barris rolavam, fazendo um grande barulho na
ponte. No entanto, conta o padre Albera, ele permanecia calmo, lia ou rezava. Finalmente, na
noite entre segunda e terça-feira a tempestade se acalmou. E no dia 19 o padre Rua e o padre
Albera puderam celebrar a missa. Transformaram sua viagem num retiro espiritual, celebrando
a liturgia das horas, fazendo juntos a meditação e a leitura espiritual cotidiana.
A travessia Marselha-Alexandria durou uma semana. O navio atracou no domingo, 24 de
fevereiro. Naquele dia, celebrada a missa a bordo, saudaram o comandante e a tripulação, que
se tinham demonstrado muito gentis com eles, e desembarcaram. Alexandria pareceu-lhes uma
7 Sobre a viagem do padre Rua à Terra Santa, temos longas cartas do padre Paulo Albera ao padre
Domenico Belmonte, prefeito geral, depois impressas e enviadas aos diretores. Encontram-se em FdR
3003C10-3004A11. Cf. a narração “Don Rua in Palestina”, Bollettino Salesiano, junho de 1895, p. 151-
157, atribuída mais ou menos legitimamente ao marquês de Villeneuve-Trans, que acompanhava o padre
Rua.
159

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cidade pitoresca, como lemos na bela descrição do padre Albera ao padre Belmonte. Antes de
embarcar novamente para chegar à Palestina, hospedaram-se no colégio São Francisco Xavier,
dos jesuítas, que “cumularam de gentilezas o nosso venerando superior”. O padre Rua quis visi-
tar o delegado apostólico dom Corbelli, que insistiu sobre a necessidade de criar em Alexandria
um centro profissional salesiano. Evidentemente, conseguiu convencê-lo, visto que o desejo
será ouvido no começo do ano seguinte. O padre Rua tentou também, sem grande sucesso,
encontrar alguns cooperadores, tarefa complexa numa cidade com ruas sem nome e com casas
sem número civil.
Na quarta-feira, embarcaram num navio a vapor de uma companhia turca. Durante a via-
gem, o padre Rua encontrou um canto tranquilo para escrever a correspondência. No dia
seguinte, aportaram em Jaffa, sem poder celebrar a Eucaristia. Mas tiveram a alegria de ser
acolhidos por alguns salesianos que tinham vindo ao navio para desembarcá-los junto com as
bagagens, poupando-lhes alguns incômodos. No convento franciscano da cidade esperava-os
impaciente o padre Belloni.
Belém e Jerusalém
Finalmente, em terra palestina, nossos viajantes, preocupados, antes de tudo, em fazer uma
verdadeira peregrinação, se apressaram em procurar uma igreja para recitar o Te Deum, um Pai-
-nosso e uma Ave-maria para obter a indulgência plenária concedida aos peregrinos na chegada
à Terra Santa. O padre Rua, com Belloni e Albera, chegou à estação de onde partia o trem para
Jerusalém. Esteve atento para identificar os lugares citados na Bíblia, inclusive os apócrifos, ou
santificados pela passagem de Jesus, de Maria e dos apóstolos: a casa de Simão, o curtidor de
peles de Jaffa; Jope, onde ressuscitou Tabita; Ramlah, a antiga Arimateia, pátria de José e de
Nicodemos, que cuidaram da sepultura de Jesus; o vale do Saron, recordado pelas 300 raposas
de Sansão, e assim por diante.
Na estação de Jerusalém, um grupo de padres, clérigos e jovens acolheu o sucessor de Dom
Bosco. Os três viajantes partiram logo num carro para Belém. Eram escoltados por jovens em
cavalos ou burros. Outros corriam a pé. Passando, saudaram o poço dos reis Magos e o túmu-
lo de Raquel. A 1 quilômetro de Belém, uma parte das crianças do orfanato, com lanternas,
esperava o carro do padre Rua. Gritaram de alegria. Aos poucos a multidão se tornou tão com-
pacta que bloqueou o carro, e o padre Rua decidiu continuar a pé. A “confusão é indescritível”
(Albera). Finalmente, todos os festejadores chegaram à capela. À porta, os padres esperavam
paramentados, os clérigos com a sobrepeliz. A banda tocou uma peça. O padre Rua foi acom-
panhado ao altar, onde foi exposto o Santíssimo Sacramento e entoado o Te Deum entre as
espirais do incenso e o brilho das luzes.
O padre Rua estava muito cansado. Concordou, no entanto, em ir a uma sala para um dis-
curso de boas-vindas, ao qual respondeu com grande cordialidade. Depois, toda a comunidade
do orfanato se reuniu no mesmo refeitório para o jantar. Assim, os meninos puderam admirar
“o aspecto doce e todo paterno de nosso venerado superior” (Albera). Sem dúvida, em seu
papel de Reitor-Mor, ele havia abandonado completamente o ar severo do prefeito geral atento
às mínimas infrações da regra.
160
Na sexta-feira, 1º de março, o padre Rua participou na meditação comunitária, depois
celebrou a missa, constatando com prazer que, no orfanato de Belém, a primeira sexta-feira
do mês era dedicada ao Sagrado Coração de Jesus. Visitou o padre Guardião dos franciscanos
e se dirigiu para a gruta da Natividade. A situação o deixou triste: a nave da antiga basílica
de Santa Helena tornara-se um ginásio para exercícios dos soldados turcos, o coro tinha sido
transformado numa igreja dos gregos ortodoxos (cismáticos, como escreve Albera a Belmonte).
Na gruta, uma estrela de prata sob um altar avisava: Hic de Virgine Maria Jesus Christus natus
est (Aqui Jesus nasceu da Virgem Maria). O padre Rua se ajoelhou e rezou longamente. Mas
o altar estava reservado para os ortodoxos e para os armênios e não se podia celebrar a missa.
Alguns passos mais ao lado, uma manjedoura de mármore indicava o lugar onde “os pastores e
os Magos adoraram o divino infante” (Albera). Aqui havia um segundo altar, destinado exclu-
sivamente aos católicos. O padre Rua nele celebrará a Eucaristia no dia seguinte. Nos arredores
da Basílica, não faltavam lugares mais ou menos históricos para ser visitados: a gruta do sonho
de São José antes da fuga para o Egito, a gruta onde foram massacrados os cadáveres dos Ino-
centes, o sepulcro de São Jerônimo, Santa Paula e Eustóquio, o Oratório de São Jerônimo...
Lugares santificados que deixavam feliz o devoto padre Rua, sensível à memória histórica e às
relíquias. No dia 2 de março, se entretém longamente com os irmãos e as crianças do orfanato.
No domingo, 3, junto com Albera e com o marquês de Villeneuve-Trans, foi convidado para
uma assembleia da Conferência de São Vicente de Paulo, organizada em Belém por iniciativa
do padre Belloni. O padre Albera notou aí o mesmo espírito de caridade, as mesmas ora-
ções, as mesmas preocupações de apoio às famílias pobres das conferências irmãs da Europa.
O marquês saiu dela entusiasmado. Quando voltou, os jovens tinham preparado um espetá-
culo em italiano, o drama do padre Lemoyne intitulado A Patagônia. “Era preciso aplaudir
calorosamente esses atores, que, por mais árabes que fossem, tinham, com grande esforço,
aprendido suas partes em italiano e as representavam de modo admirável” (Albera).
A segunda, 4, foi dedicada à visita a Jerusalém. Pouco antes de entrar na cidade, os pere-
grinos costearam o vale da Geena, tornado uma espécie de cloaca de água podre. O padre
Rua tinha pressa de se ajoelhar diante do Santo Sepulcro. Mas precisou antes se apresentar ao
patriarca latino, dom Piavi, que tempos antes quisera se livrar dos salesianos. “Este, embora
muito doente, o recebeu com grande bondade, manifestou-lhe várias vezes seu prazer de ver o
sucessor de Dom Bosco, e recordou aqueles superiores salesianos que já conhecia” (Albera). Do
escritório do patriarca, o padre Rua passou ao do coadjutor, dom Apodia, e ao seminário perto
do Patriarcado. De seu terraço estava contemplando, recolhido, a cidade, quando chegaram os
seminaristas para lhe beijar a mão e ouvir alguma palavra. O padre Albera descreve a cena na
carta de 7 de março a Belmonte: “O padre Rua os atende de boa vontade e com uma linguagem
simples e cordial os exorta a cultivar o estudo e a piedade para fazer grande bem nessas missões
cobiçadas pelos cismáticos, pelos protestantes e até pelos maçons, que nesses dias se reúnem
em congresso em Jerusalém trazendo de países longínquos seu ódio contra Jesus Cristo e contra
sua Igreja”. A França exercia, na época, uma espécie de protetorado sobre os católicos orientais.
O padre Rua foi também saudar o cônsul francês, que o recebeu com veneração, apresentou-
lhe a família e se mostrou muito interessado nas obras salesianas, considerando-as providenciais
em todos os países, especialmente na Palestina. A visita protocolar ao cônsul italiano foi reser-
vada para a tarde. Durará muito tempo.
161

9.2 Page 82

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Finalmente, o padre Rua pôde visitar o Santo Sepulcro, o Calvário, a igreja de Santa Helena,
“onde foi descoberta a Santa Cruz”, e “muitos outros lugares que se tornaram objeto da venera-
ção dos fiéis e que estão todos compreendidos na grande basílica do Santo Sepulcro” (Albera).
À tarde jantou com os franciscanos que o hospedaram e lhes pediu que permitissem celebrar a
missa no Santo Sepulcro no dia seguinte, às 4 horas da manhã. Compartilhou o quarto com os
outros 2 peregrinos. Pouco lhes importava! Por outro lado, não dormiu muito porque, como
conta Albera, subiu nas galerias superiores e lá, com “o olhar fixo no Santo Sepulcro, prolongou
suas orações até muito tarde da noite”.
No dia seguinte, o padre Albera e o marquês de Villeneuve ajudaram a missa do padre
Rua, que estava “visivelmente comovido”. Albera celebrou depois dele, enquanto ele, ajoelhado
na pedra, fazia sua ação de graças. Depois, os peregrinos caminharam parcialmente pela Via
Dolorosa pelas pegadas de Jesus, visitaram diversas estações da Via-Sacra, entraram na igreja
das Mulheres de Sião para ver o arco do Ecce homo. Dirigiram-se, então, ao Getsêmani, sem
entrar, e subiram o monte das Oliveiras. No caminho encontra-se o convento das carmelitas,
construído “no mesmo lugar onde Jesus Cristo ensinou o Pai-nosso”. Lá se encontra também a
Gruta do Credo, “porque parece que lá os apóstolos se reuniram quando, antes de se separarem,
compuseram o Símbolo apostólico”. As carmelitas os fizeram acompanhar até à igrejinha da
Ascensão, onde beijaram a pedra que “traz a marca dos pés de Nosso Senhor”. Visitaram depois
Betfagé, de onde Jesus havia contemplado Jerusalém e anunciado sua destruição, o horto em
que Jesus foi traído por Judas, a gruta da Agonia, o sepulcro da Virgem Maria, “que – lamenta
o padre Albera – está nas mãos dos cismáticos”.
Sua emoção religiosa foi constante e intensa, como documenta a narrativa detalhada de
Albera sobre a visita da tarde. Encontraram muitos ingleses, “entre os quais muitos pastores
protestantes”. “Eles visitam tudo como turistas e não demonstram o mínimo sinal de piedade
e de devoção. Eis o fruto de ter abolido o culto externo!”. Nossos 3 peregrinos, ao contrário,
sobretudo o devoto padre Rua, permaneceram o tempo todo em oração.
Cremisan
Voltando a Belém, o padre Rua dedicou o dia 6 de março à casa de Cremisan, um pouco mais
distante, para onde quis se dirigir a pé, apesar da irregularidade do percurso. Em Cremisan mora-
vam os jovens destinados à vida salesiana, clérigos e coadjutores. O padre Rua esperava fazer deles
um canteiro de ótimos salesianos. Era o dia do exercício da boa morte: os costumes salesianos já
estavam radicados nas antigas casas da Sagrada família. Depois do exercício, houve uma acade-
mia com composições em latim, em italiano, em francês e em árabe. À tarde, foi apresentado um
drama em italiano. Parecia estar na Itália, contará o padre Albera. O padre Rua visitou os cam-
pos e a cantina. Lamentou que a produção do ano anterior ainda não tinha sido comercializada.
“Como é difícil vendê-la! E, no entanto, há tanta necessidade de dinheiro!”. Depois, recebeu as
prestações de contas espirituais dos irmãos e de todo o pessoal que desejava conversar com ele.
No dia 9 de março, chegaram a Belém 5 irmãos de Beitgemal. Tinham caminhado oito
horas debaixo de chuva para encontrar o Reitor-Mor, imaginando que poderia dedicar bem
162
pouco tempo à sua casa.8 O padre Rua passou os dias 10 e 11 de março em diversas visitas:
aos que trabalhavam no hospital de São João de Deus, que festejavam seu fundador; a várias
pessoas em Jerusalém, sobretudo ao patriarca Piavi, com o qual deviam ser tratados os negó-
cios importantes para as casas da Palestina. O padre Albera, presente ao encontro, escreveu:
“Também nessa circunstância pude compreender quanta estima o patriarca tinha pelo nosso
Reitor-Mor e como eram grandes a atenção e a prudência do padre Rua”.9
Beitgemal
A visita a Beitgemal estava prevista para o dia 12. Embarcando no trem na estação de Jeru-
salém, o padre Albera leu no jornal Italia Corriere a notícia de que um seminarista diocesano
de Catanzaro tinha atirado em seu Reitor, o salesiano padre Francesco Dalmazzo. A tristeza do
padre Rua foi imensa. Durante a viagem continuou a voltar sobre o fato dramático, desejando
que a ferida não fosse mortal. A esperança vai se revelar vã. O trem os levou de Jerusalém a
Deyroban. De lá foram para a colônia agrícola de Beitgemal. Foram-lhes oferecidos alguns
cavalos, mas o padre Rua preferiu ir a pé, apesar da distância e do calor.
Na entrada da propriedade foi acolhido com cantos e discursos de boas-vindas. Descobriu
a impaciência e a alegria com que os jovens e seus mestres o esperavam. Admirou o jardim em
flor e subiu para a casa, uma espécie de castelo no alto da colina. Os jovens o rodearam, escu-
tando todas as suas palavras, enquanto alguns cavaleiros continuavam a circular nas proximi-
dades em sinal de alegria. Em casa, cantou-se um Te Deum e o padre Rua visitou os ambientes
com satisfação evidente. O almoço era composto quase completamente de alimentos produ-
zidos na colônia e preparados pelas Filhas de Maria Auxiliadora que cuidavam da rouparia e
da cozinha. Surpresa: quando levantou a tampa da sopeira, voou uma pomba branca em sinal
de boas-vindas. Foi-lhe também oferecido javali, caçado pelo pastor da fazenda. Depois da
refeição, seguiram-se algumas composições e um interminável concerto do músico da aldeia,
que não conseguiu encantar grandemente nossos italianos, não acostumados à música árabe.
O padre Rua visitou as estrebarias e toda a casa minuciosamente. O domingo, 3 de março,
foi dia de festa: bem cedinho houve a missa com a comunhão geral; às 10 horas, outra missa
cantada em gregoriano. Depois, a bênção de uma gruta de Lourdes no pátio do instituto.
À tarde, o padre Rua recebeu os rendiconti espirituais de todos os irmãos. Em suma, a acolhida
da colônia agrícola tinha sido perfeita.
No dia 14 de março, montado num burrinho e rodeado por todos os meninos de Beitgemal,
o padre Rua se despediu. Augurou prosperidade àquela casa, que atravessava uma grave crise
econômica. Partiu para Nazaré, onde o padre Belloni tinha adquirido um terreno destinado a
um orfanato semelhante ao de Belém.
8 Neste ponto, na narrativa do padre Albera, entra em cena o salesiano francês Athanase Prun (1861-1917),
futuro criador do orfanato Jesus Adolescente de Nazaré, ordenado subdiácono naquele mesmo dia.
9 Carta do dia 19 de março. In: FdR 3003E6.
163

9.3 Page 83

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Nazaré
Da estação de Deyroban, o Reitor-Mor e seus dois companheiros chegaram por trem ao
porto de Jaffa. Deslocaram-se para Haifa num barco, depois chegaram a Nazaré de carro.
O mar estava calmo. Em Jaffa foram recebidos pelos carmelitas, apesar da hora muito avançada
(era quase meia-noite). No dia seguinte, 15 de março, partiram de manhã, às 7.
Em Nazaré, hospedaram-se com os franciscanos. Depois do almoço apressaram-se em ve-
nerar a Casa Santa, a casa de Maria. Com grande emoção, o padre Rua se prostrou no altar
encimado pela inscrição: Verbum caro hic factum est. Segundo o relato do padre Albera, viram
“os traços dos fundamentos daquela casa que os anjos transportaram para Loreto, as suas di-
mensões, a gruta escavada na pedra sobre a qual estava construída a casa e outra cavidade que,
conforme se diz, servia de cozinha para Maria Santíssima”.10 O padre Rua gostaria de parar
mais longamente em meditação naqueles lugares santificados por Jesus e Maria. Mas devia su-
bir a colina para inspecionar o terreno da futura construção e decidir seu uso. Vendo não longe
uma instituição protestante, sentiu-se estimulado no zelo. Desceram novamente e entraram
na casa do proprietário do terreno. Foi-lhes oferecida alguma coisa para beber e banquinhos
para se acomodar, enquanto a família, para seu grande espanto, se sentava num tapete. No
dia seguinte, pelas 5 horas, o padre Rua e o padre Albera tiveram a alegria de celebrar a missa
no santuário de Nossa Senhora. Também aqui os peregrinos não deixaram de visitar algum
lugar memorável: a fonte da Virgem, a capela erigida no lugar da oficina de São José, com a
inscrição: Hic Jesus subditus erat illis, a mensa Cristi, que não é outra coisa senão uma imensa
pedra sobre a qual, se diz, Jesus Cristo se alimentou com seus discípulos. O padre Albera, que
nos deixa essas notícias, mostra que está informado sobre as piedosas tradições locais. O padre
Rua visitou também a sinagoga, na qual Jesus, aberto o livro, comentou as palavras: “Ele me
enviou para evangelizar os pobres e para sarar os arrependidos de coração”. Foi-lhe também
mostrado o abismo sobre o qual os hebreus arrastaram o Senhor para de lá precipitá-lo. De lá
viram também o monte Tabor, que, lamentavelmente, não puderam visitar.
Depois de ter almoçado com os franciscanos (era Quaresma), partiram novamente em carro
para Haifa e para o monte Carmelo, hospedados cordialmente pelos carmelitas. Terminado o
ofício religioso, esperava-os um bom jantar. O padre Rua queria recusar por motivo do jejum
quaresmal. “Eu o dispenso em força da faculdade que me concedeu o patriarca de Jerusalém”,
informou o prior, e ele teve que ceder.
Volta para Belém
Tinham um bilhete do barco para Jaffa e precisavam se encontrar no porto de Haifa no dia
seguinte, domingo, 17 de março, às 3 horas da manhã. Por volta de 1h30, um irmão carmelita
convidou os 2 sacerdotes para celebrar a missa. Depois de um rápido lanche, os 3 partiram à
procura do seu “vaporzinho”. Mas o mar agitado e o espetáculo dos passageiros que desembar-
cavam em condições de causar dó levaram o padre Albera a assumir a responsabilidade de uma
10 FdR 3003E9-10.
164
decisão que não deixará de ter suas consequências. Pensava que “o superior geral de uma Con-
gregação não devia se aventurar daquela maneira, que os irmãos teriam razão de culpá-lo caso
acontecesse algum desastre”. Convenceu dificilmente o padre Rua, que acabou se resignando
quando o capitão o avisou de que provavelmente seria obrigado a ir até Port-Saïd. Não poderia,
assim, voltar a Belém para a festa de São José, como havia programado fazer. Os bilhetes foram
reembolsados.
No final, os 3 se viram na estrada para Jaffa num carro com um condutor alemão. Lan-
çavam-se numa aventura imprevisível. Tiveram momentos agradáveis, como a passagem por
uma colônia judaica muito bem conservada, onde visitaram a sinagoga, e a travessia pitoresca
de um acampamento de beduínos com tendas e rebanhos... outros momentos foram menos
simpáticos. As coisas se complicaram ao cair da noite. A partir das 19 horas, naquelas regiões,
não se pode mais circular, explicará Albera. O condutor não pode ver a estrada e poderia ser
assaltado por beduínos. O carro parou numa aldeia de cabanas pobres de argila. O chefe que-
ria hospedá-los, mas eles não quiseram comer rodeados de espectadores curiosos nem dormir
num daqueles casebres, no chão sobre esteiras. Agradeceram e recusaram. Jantaram um ovo,
alguma sardinha e um pouco de vinho. Procuraram descansar no carro, enquanto o condutor
deitou-se no chão. Um turco armado vigiava o acampamento. Infelizmente soprou um vento
forte durante toda a noite. Penetrava no veículo pela parte anterior, que ficara aberta. Assim, às
2 horas, com os membros entorpecidos pelo ar úmido e pela posição incômoda, começaram a
se impacientar. O padre Rua, envolto no capote, não podia se proteger do frio e se encontrava
com as pernas rígidas. Insistiu várias vezes para que o condutor recomeçasse a viagem. Este
fingia não entender. Finalmente, os cavalos foram atrelados, e pelas 3 horas o carro se colocou
novamente em movimento. “Eu lhe garanto – escreve Albera a Belmonte – que nos pareceu
muito oportuno não somente fazer o sinal da cruz, como já fazíamos em cada vez que o carro
se punha em movimento, mas recomendar-nos de coração a nosso Anjo da Guarda”. A estrada
era acidentada e compreenderam por que o condutor pedia tanto para retomar a viagem depois
do nascer do sol. Prendiam a respiração toda vez que passavam por um buraco. O carro pendia
perigosamente de um lado e do outro, parecia que ia tombar. Faltou pouco: uma das rodas
bateu bruscamente num galho grosso no caminho e o condutor evitou a queda fazendo de con-
trapeso numa extremidade do assento. Quando chegaram a uma ponte estreita e sem parapeito
ficaram apavorados. O padre Rua pediu ao cocheiro para descer e segurar os 3 cavalos pelas
rédeas. Este não lhe deu ouvidos, aproximou os animais com as rédeas, fustigou-os e os fez
avançar um perto do outro, enquanto os passageiros prendiam a respiração e se recomendavam
a Maria Auxiliadora. Embaixo, a água corria profunda e rumorosa. O padre Albera escreve:
“O padre Rua não perdeu essas ocasiões para dizer a seus companheiros de viagem: o que são
essas misérias em comparação com aquilo que sofrem nossos missionários? E acrescenta que é
o Senhor que o guiou naqueles países para que se fizesse uma ideia de seus perigos e de seus in-
cômodos”. Seu pensamento voava continuamente a seus salesianos nas florestas amazônicas ou
equatoriais. Finalmente raiou o dia. Os 2 padres, que já tinham recitado as orações da manhã,
abriram o breviário. Por volta das 9 horas o condutor, saindo de seu silêncio, mostrou ao longe
o campanário e a igreja de Jaffa. Às 10 horas entraram na casa do peregrino da cidade.
A volta para Belém foi mais tranquila: viajaram de trem de Jaffa para Jerusalém. Na breve
parada na estação de Deyroban, foram saudados por irmãos, irmãs e jovens de Beitgemal.
165

9.4 Page 84

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Em Jerusalém, os amigos ofereceram seus carros para a viagem até Belém, aonde chegaram
finalmente às 18h30 daquele aventuroso 18 de março.
No dia seguinte, festa de São José, concluía-se dignamente a peregrinação na Terra Santa.
O padre Rua cantou a missa solene na capela do orfanato. Depois do almoço, recebeu diversas
profissões religiosas e entregou o hábito aos noviços. A cerimônia se concluiu com a bênção do
Santíssimo. Depois, era esperado no Oratório feminino dirigido pelas irmãs salesianas para a ves-
tidura de uma irmã de Belém. “Nunca foi vista essa função. Portanto, incrível o entusiasmo das
filhas do Oratório e também de seus parentes”, escreve o padre Albera. O padre Rua se expressou
em italiano e as meninas, embora não compreendessem, ouviram “muito recolhidas e silenciosas”.
Naquela tarde, a última no país de Jesus, o padre Rua falou aos salesianos, deu conselhos e
os encorajou. Todos se comoveram. Quando, no dia seguinte, antes de deixar definitivamente
a casa, às 6h30 da manhã abençoou ainda uma vez jovens e irmãos, “quase todos os olhos es-
tavam cheios de lágrimas”.
A volta à Europa
Embarcaram no dia 20 de março em Jaffa, no Sindh, vapor destinado a levá-los até Mar-
selha, via Port-Saïd e Alexandria. Mas como havia tempo suficiente decidiram desembarcar
em Port-Saïd no dia 21 para chegar por ferrovia ao porto de Alexandria, onde tomariam o
mesmo vapor. A bordo fizeram algumas amizades. Um médico francês de origem polonesa,
que conhecera o marquês de Villeneuve em Marselha numa casa de exercícios espirituais dos
jesuítas, se apressou a oferecer sua cabine ao padre Rua, quando soube que era o superior geral
dos salesianos. O sucessor de Dom Bosco se viu como numa capela, as paredes da cabine esta-
vam enfeitadas com imagens piedosas. Lá celebrou a missa com a assistência do médico. Certo
senhor Descamps, comerciante rico de Lille, perfeito conhecedor da Palestina e do Oriente,
se declarou cooperador salesiano. Conversando com o marquês de Villeneuve, descobriu que
tinham sido companheiros no colégio Rollin em Paris. Para agradar a nossos peregrinos, desceu
com eles em Port-Saïd para acompanhá-los, por trem, até Alexandria.
No dia 22, fizeram uma parada no Cairo. Hospedaram-se com os jesuítas. O padre Rua
seguiu os caminhos dos cooperadores locais, que insistiam em ter uma escola profissional sa-
lesiana também no Cairo. Seu desejo será realizado no reitorado do padre Albera. Excepcio-
nalmente, o padre Rua aceitou a proposta do padre ministro (ecônomo) jesuíta de um passeio
até às pirâmides: na volta, puderam visitar Matarieh, onde a tradição recorda uma parada da
Sagrada Família na fuga de Herodes. Atravessaram o Nilo, pensando no pequeno Moisés no
cesto, vigiado pela irmã maior. A enormidade das pirâmides os impressionou, mas o seu prazer
foi estragado por um grupo de árabes vociferantes, que queriam ser guias ou fazê-los subir nos
camelos ou pediam insistentemente dinheiro. O padre ministro precisou até ameaçar com a
rédea do cocheiro um homem especialmente violento.
Em Matarieh, admiraram a árvore “sob a qual se acredita tenha repousado a Sagrada Famí-
lia. Ela é objeto de veneração até para os muçulmanos”. Depois beberam água da fonte que
dessedentou Maria, José e o Menino. Depois de um desvio para Heliópolis, os cocheiros os
166
conduziram à parte velha da cidade, à “casa que se acredita foi habitada pela Sagrada Família
em seu exílio no Egito”. O padre Albera anota: “A tradição de que aquela mesma casa tenha
sido habitada por São José e por Maria Santíssima não parece sem fundamento”. E acrescenta:
“O lugar está nas mãos dos coptas”.
No dia seguinte, depois da missa, o superior dos jesuítas acompanhou pessoalmente o pa-
dre Rua à estação do Cairo. Ao meio-dia, o grupo estava em Alexandria no belo instituto dos
jesuítas, onde já haviam se alojado algumas semanas antes. No dia 24, reencontraram o Sindh
com seus numerosos passageiros. Conduzi-los-ia diretamente a Marselha. Por causa de uma
distorção, o amigo médico não podia caminhar e devia conservar a perna estendida. O padre
Rua quis lhe restituir a cabine, agora que precisava dela. Mas ele não quis ouvir razões. Durante
a travessia, toda manhã se arrastava até lá para assistir à missa.
Na hora das refeições, durante a estadia, os 5 ou 6 sacerdotes presentes no navio se reuniam
na mesma mesa, rezavam juntos e conversavam sobre temas religiosos. Estava-se ainda na Qua-
resma e o padre Rua não esquecia. Fará jejum durante toda a travessia: “O padre Rua, com
uma constância que nem todos conseguem imitar, dispõe as coisas de modo que uma refeição
sirva como almoço e a outra como jantar, e assim continua o seu jejum. É verdade que às vezes
deve se contentar no jantar com algumas olivas ou uma pera, tudo preparado “al grasso”.11
As exceções sobre a aplicação rigorosa das normas eclesiásticas invocadas pelos casuístas nunca
o interessaram. Foi sempre muito exigente consigo mesmo.
O tempo era variável e, às vezes, uma tempestade imprevisível tornava o navio mais vagaro-
so. Alguns dos viajantes estavam de tal modo incomodados que foram vistos somente em Mar-
selha, como narra o padre Albera. Não foi assim com o padre Rua, talvez graças à austeridade
de seu regime. O tempo desaconselhou o capitão a passar pelo estreito de Bonifácio. Fez-se o
contorno da Córsega e a viagem durou dez horas mais que o previsto. Na sexta-feira, 29 de
março, às 15 horas, o Sindh entrou no porto de Marselha. Para sua grande surpresa, os sale-
sianos vindos para acolhê-lo encontravam um padre Rua com a barba longa: tinha-se imposto
retomar um uso antigo dos peregrinos na Terra Santa e a havia deixado crescer.
A peregrinação tinha permitido ao padre Rua alimentar sua devoção percorrendo os lugares san-
tificados pela presença do Senhor, reforçar definitivamente os laços entre a Congregação Salesiana
e a obra do padre Belloni, tomar contato com as populações orientais, sobre as quais até àquele
momento não sabia nada. Voltou a Turim muito mudado, para celebrar a Semana Santa e preparar
o iminente congresso dos cooperadores, que aconteceu em Bolonha no mês de abril.
11 FdR 3004A10.
167

9.5 Page 85

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Capítulo 19
O Congresso salesiano de Bolonha
A organização dos cooperadores salesianos
Em 1876, com a instituição da Pia União dos Cooperadores, Dom Bosco havia realizado,
de alguma forma, seu antigo projeto sobre “salesianos externos”. Havia até projetado um re-
gulamento formal. Agora os cooperadores tinham se multiplicado na França e na Espanha,
sobretudo na Itália. Em julho de 1894, durante a viagem de um mês através da Suíça, da Alsá-
cia-Lorena e da Bélgica, o padre Rua esteve em contato com grupos de admiradores fervorosos
da obra de Dom Bosco nos cantões suíços do Ticino (Lugano) e de Argovia (Muri), na Alsácia
(Obernai, Andlau, Sainte-Marie-aux Mines), na Lorena (Metz), na Bélgica (Liège, Hechtel,
Bruxelas) e até em Maestricht, nos Países Baixos.1 Sentia o quanto era importante organizar e
animar aqueles católicos generosos. Sua razão de ser, frequentemente mal compreendida, tinha
sido ilustrada por Dom Bosco numa conversa com Lemoyne do dia 19 de fevereiro de 1884:
“Seu verdadeiro escopo direto não é ajudar os salesianos, mas prestar ajuda à Igreja, aos bispos,
aos párocos, sob a alta direção dos salesianos nas obras de beneficência, como catecismos,
educação de crianças pobres e similares. Socorrer os salesianos não é outra coisa senão ajudar
uma das muitas obras que se encontram na Igreja Católica”.2 Assim, o padre Rua pensou que
fosse necessário interessar diretamente as dioceses. Convocou, portanto, para os dias 12 e 13 de
setembro de 1893, junto ao túmulo de Dom Bosco em Valsalice, o 1º Congresso dos Diretores
Diocesanos dos Cooperadores da Itália. Vinte e seis dioceses responderam ao convite. Depois
da sessão de abertura da reunião, quis demonstrar como Dom Bosco, no respeito à hierarquia,
tinha a ambição de agrupar todos os cooperadores do bem em torno dos bispos e, deste modo,
em torno do vigário de Jesus Cristo.3 Ficou muito satisfeito com o resultado do encontro, como
escreveu depois de alguns dias na afetuosa carta coletiva de agradecimento.4
Um passo posterior organizativo aconteceu em 1894, quando o padre Rua fez publicar uma
espécie de guia para os coordenadores locais, o Manuale teorico-pratico ad uso dei decurioni e
1 “Visita di don Rua ai Cooperatori della Svizzera, Alsazia, Belgio e Olanda”, Bollettino Salesiano, setembro
de 1894, p. 186-189.
2 O discurso original está anotado no caderninho do padre Lemoyne, Ricordi di gabinetto, p. 58; cf. MB
XVII, p. 25.
3 Cf. Bollettino Salesiano, outubro de 1893, p. 187-188.
4 “La ringraziamo...”. In: FdR 3995B9.
168
direttori.5 Na primeira parte do livreto se estabelecia o papel do “decurião”, responsável pelo
grupo local dos cooperadores e cooperadoras; ilustrava-se a tarefa do diretor diocesano, do vice-
-diretor (previsto para as cidades mais importantes), da comissão salesiana, das subcomissões
das cooperadoras, dos “zeladores” e das “zeladoras”. A segunda parte, dedicada integralmente às
“obras de zelo”, continha alguns elementos-chave de uma verdadeira e própria espiritualidade
apostólica. Sugeria o modo de coordenar ação e oração, catequese (“todo cooperador deverá ser
catequista”) e cuidado das vocações eclesiásticas (na família, na escola), promoção da imprensa
(para ser difundida entre o povo, nos catecismos, nos oratórios, nas oficinas e nos hospitais)
e interesse pela juventude abandonada (que deve ser ajudada com a cooperação com as obras
educativas e o apoio à ação dos salesianos). Finalmente, convidava a fazer bom uso do dinheiro,
meio poderoso para realizar o bem, e exortava a empregá-lo com fruto nas obras.6
A preparação do Congresso de Bolonha
O cardeal Domenico Svampa, arcebispo de Bolonha, admirador de Dom Bosco, desejoso de
ter seus filhos em sua própria cidade, veio a Turim para o Congresso eucarístico em setembro
de 1894. Consciente do sucesso obtido pelo Congresso dos Diretores Diocesanos dos Coope-
radores, propôs ao padre Rua a ideia de uma grande manifestação, extensa não só aos quadros
dirigentes mas também a todos os cooperadores da Itália. O projeto agradou imediatamente
ao sucessor de Dom Bosco. Em novembro, escreveu ao cardeal sugerindo Bolonha como sede
do Congresso. Svampa não se limitou a aceitar a proposta, mas considerou o trabalho como
próprio. Para comunicar ao público o evento escolheu o salesiano padre Stefano Trione (1856-
1935), orador eficaz e organizador perfeito.7 Este, em 26 de novembro, diante do arcebispo,
de membros eminentes do clero, “de patrícios, de matronas, de operários, de empregados e de
mulheres do povo”, pronunciou um discurso sobre Dom Bosco e a juventude do século XIX,
durante o qual anunciou a convocação para Bolonha, na primavera de 1895, do 1º Congresso
dos Cooperadores Salesianos.
A preparação foi rapidíssima. Na manhã seguinte, com a ajuda do cardeal, o padre Trione
formou a comissão organizadora. Os componentes foram imediatamente avisados e na tarde
do mesmo dia se reuniram numa sala do arcebispado. O padre Trione explicou o projeto.
O acontecimento foi fixado para os dias 23, 24 e 25 de abril próximos. O objetivo era fazer
conhecer a utilidade e a oportunidade das obras fundadas por Dom Bosco para a educação dos
filhos do povo – através de oratórios festivos, escolas, internatos, orfanatos, escolas de artes e
ofícios –, para a assistência dos imigrados italianos, para as missões na Ásia, na África e entre
os “selvagens” da América meridional. O congresso dilataria a colaboração e encorajaria o zelo
5 Manuale teorico-pratico ad uso dei decurioni e direttori della Pia Associazione dei Cooperatori salesiani.
Torino, Tipografia Salesiana, 1894.
6 Análise de M. Wirth, Don Bosco et famille salésienne. Paris, Éditions Don Bosco, 2002, p. 415-416.
7 Sobre o Congresso de Bolonha, cf. Atti del primo Congresso Internazionale dei Cooperatori salesiani tenutosi
a Bologna ai 23, 24 e 25 aprile 1895. Torino, Tipografia Salesiana, 1895 (de agora em diante Atti del primo
Congresso). Cf. Também a relação detalhada em Ceria, Annali II, p. 409-444.
169

9.6 Page 86

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e a atividade dos cooperadores salesianos, “que são no mundo como Terciários de Dom Bosco,
desejosos de retomar seu espírito e imitar suas obras”.8 A comissão se organizou escolhendo
como presidente dom Nicola Zoccoli, vigário geral do arcebispo, que escreveu ao padre Rua
pedindo-lhe que apoiasse o projeto e informando-o de que o cardeal Svampa aceitaria a presi-
dência de honra do Congresso. O padre Rua respondeu:
Deixo Vossa Excelência imaginar com que prazer aprovo tão belo projeto, dando sobre ele, a seu
tempo, toda publicidade, todo apoio de que posso ser capaz junto aos nossos beneméritos coope-
radores. Se ainda parecer conveniente que, como superior dos Salesianos , eu assuma a presidência
efetiva desse congresso, embora com algum receio, aceito o benévolo convite, confiando, de minha
parte, no apoio da comissão e na benignidade dos cooperadores que nela tomarão parte.9
O padre Rua acompanhou com admiração e reconhecimento o trabalho minucioso de pre-
paração das assembleias. A comissão estabeleceu 6 comissões preparatórias: a primeira era a
indicada para a procura e a preparação da sala do Congresso. A segunda, responsável por
arrecadar fundos e providenciar reduções sobre os bilhetes ferroviários; a terceira, adida à hos-
pitalidade dos congressistas; a quarta, encarregada da sala para a imprensa; a quinta tinha a
tarefa de examinar os discursos e estabelecer uma ordem para eles; a sexta encarregar-se-ia do
cuidado das cerimônias religiosas e dos festejos. O programa foi subdividido em 4 seções: edu-
cação e instrução; missões salesianas; boa imprensa; organização dos cooperadores. Era preciso
também despertar o interesse das autoridades eclesiásticas. Em janeiro de 1895, o presidente
da comissão enviou duas circulares ao episcopado italiano, uma para anunciar oficialmente o
congresso e convidar os bispos para a participação, a outra para pedir-lhes que designassem
em cada diocese uma pessoa com a qual a comissão pudesse se corresponder, encarregada de
distribuir as circulares e os convites. As adesões mais prestigiosas chegaram logo. Cardeais e
bispos se congratularam pela organização de uma assembleia capaz de restaurar a vitalidade da
Igreja e da sociedade. Para lhe dar o devido peso, em sua carta pastoral da Quaresma, o cardeal
Svampa anunciou o congresso a todos os diocesanos. Sob a responsabilidade da comissão para
a imprensa foram publicados e difundidos dois “números únicos” sobre o Congresso com arti-
gos e ilustrações de ocasião. Os Boletins salesianos nas várias línguas fizeram sua parte. Assim,
a notícia se espalhou também fora da Itália. Quando a presidência da comissão teve a certeza
da participação de cooperadores de pelo menos sete nações europeias, não hesitou em falar de
“Congresso Internacional”. Assim, a iniciativa se tornou um acontecimento sensacional tam-
bém para a cidade de Bolonha.
A realização do Congresso
Acompanhado pelo padre Felipe Rinaldi, inspetor na Espanha, o padre Rua chegou à esta-
ção de Bolonha no dia 21 de abril à tarde. Esperavam-no numerosos membros da comissão.
Com o cardeal Svampa pôde examinar a magnífica sala das reuniões, situada na barroca Igreja
da Santa (que guarda o corpo de Santa Catarina de’ Vigri, fundadora do mosteiro das clarissas).
8 Atti del primo Congresso, p. 4.
9 Atti del primo Congresso, p. 8.
170
Uma imensa tenda, com o busto de Leão XIII no centro, sobressaía na parte alta do coro, onde
estava colocado um estrado em dois níveis para a presidência de honra e a presidência efetiva.
Dos dois lados do coro estavam colocados os bustos de Pio IX e de Dom Bosco.10
A cerimônia de abertura aconteceu na manhã do dia 23 de abril, na basílica de São Domin-
gos. Às 8 horas, por entre uma multidão imensa, desfilou uma longa procissão que partia da
sacristia: clérigos, sacerdotes, curas, cônegos, o padre Rua, 21 bispos e arcebispos com capa,
mitra e báculo pastoral, os cardeais de Ravenna, de Ferrara, de Milão, e finalmente o cardeal
Svampa, que celebrou a missa pontifical do Espírito Santo. A música de Palestrina contribuiu
perfeitamente para a solenidade do momento.
Terminada a liturgia, os congressistas, de posse de um bilhete de identificação, se dirigiram
para a Igreja da Santa, preparada para a assembleia. Os lugares foram rapidamente ocupados.
Nos bancos da imprensa sentavam-se os representantes de 39 jornais italianos de todas as
tendências, de 4 revistas espanholas, 7 austríacas, 4 francesas, 1 alemã, 3 suíças e 2 inglesas.
A entrada dos 25 prelados foi saudada com aplausos. Um jornal de Milão descreve assim a
chegada do padre Rua: “Enquanto diminuíam as vozes e as últimas palmas, eis que de novo,
fragorosamente aplaudem, todos em pé, esticando o pescoço, arrumando as sobrancelhas: um
pobre padre, magro, macilento, ressequido, acanhado e humilde, mas com o rosto radiante de
riso afável, sobe o estrado da presidência. Era o padre Rua, aquele que recebeu a herança de
Dom Bosco, e, copiando em si as virtudes de seu pai, não nos deixou chorar por muito tempo
sobre o túmulo do apóstolo de Turim”.11
O cardeal Svampa saudou a assembleia, começando pelos dignitários eclesiásticos e pelo
padre Rua que, dizia, recebeu junto com o cargo de Reitor o mesmo espírito de Dom Bosco.
O secretário-geral leu o breve de Leão XIII, que exaltava o trabalho dos salesianos pela edu-
cação da juventude e a difusão da civilização e da fé cristã entre populações ainda pagãs. Em
nome da comissão promotora, seu presidente explicou a origem e o significado do Congresso.
Finalmente, o padre Rua agradeceu aos organizadores, especialmente ao cardeal de Bolonha,
fervoroso admirador de Dom Bosco desde quando, ainda jovem seminarista em Fermo, fora
escolhido para ler a composição poética durante uma visita do santo ao seminário. Um aplauso
imenso se elevou enquanto o padre Rua beijava a mão do cardeal e este o abraçava.
O Congresso foi subdividido em 4 seções: 1) Educação e instrução; 2) Missões salesianas;
3) Imprensa; 4) Organização da Pia União dos Cooperadores Salesianos. Cada uma das seções
devia eleger um presidente, um secretário e um relator. O programa diário era denso.
Às 8 horas havia a missa, celebrada por um cardeal. Às 8h30 começavam as reuniões
por seções, encarregadas de preparar as moções que deviam ser submetidas à assembleia; às
10 horas acontecia a assembleia geral; às 13 horas retomavam as reuniões por seção, e às 15 ho-
ras havia nova assembleia. Finalmente, às 17 horas acontecia um sermão feito por um arcebispo
e a bênção do Santíssimo na basílica de São Domingos. Na tarde do terceiro dia foi organizada,
10 Fotografia da sala no apêndice, no fim do volume dos Atti del primo Congresso.
11 Alfonso Ferrandini em La Scuola Cattolica, maio de 1895, citado por Ceria, Annali II, p. 421.
171

9.7 Page 87

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na mesma sala do Congresso, uma academia em honra dos congressistas. O acontecimento foi
coroado no dia 26 de abril por uma peregrinação diocesana ao santuário da Virgem de São
Lucas.
As intervenções tinham sido cuidadosamente preparadas. A lista dos títulos demonstra a va-
riedade e a amplitude de interesses dos congressistas: Dom Bosco e as suas obras; a cooperação
salesiana; a origem e a missão dos cooperadores salesianos; o sistema educativo de Dom Bosco;
os oratórios festivos e os catecismos; a aula de religião; as escolas primárias e secundárias; os
colégios e os internatos; a educação das meninas e o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora;
a educação dos jovens trabalhadores; as colônias agrícolas salesianas; as Missões Salesianas; o
cuidado dos migrantes; a colaboração econômica para as obras salesianas; a imprensa popular;
os livros escolares; a obra salesiana a serviço da Igreja pelo bem da humanidade; finalmente,
“o papa e Dom Bosco”. É preciso acrescentar as numerosas moções elaboradas em cada seção
e aceitas pela assembleia, que são espalhadas cá e acolá nos Atti, sobretudo referindo-se à con-
tribuição dos cooperadores para a educação religiosa dos jovens: sua colaboração na catequese
familiar e nos catecismos paroquiais; o empenho para introduzir nas escolas elementares públi-
cas o ensino religioso na forma e no sentido queridos pela Igreja; a escolha de escolas e colégios
inspirados na fé e na moral católica para a educação dos filhos; a necessidade de fazer valer a
própria autoridade ou prestígio para que, nos concursos, as administrações municipais prefe-
rissem professores que por educação, estudos e qualidades morais dessem garantia de exercer
bem sua tarefa do ponto de vista pedagógico e religioso; a ajuda aos migrantes; a batalha contra
a imprensa imoral e ímpia e a cooperação por uma imprensa popular e de boa qualidade; a
necessidade por parte dos pais de verificar com cuidado a instrução dos filhos. As 11 moções
sobre a condição dos jovens operários, em perfeita sintonia com “a admirável encíclica Rerum
Novarum” de Leão XIII (1891), mereceriam ser citadas por extenso, tanto são significativas
do impacto da doutrina social da Igreja sobre o mundo salesiano. O conjunto constituía um
vasto programa apostólico, sobretudo para os cooperadores da Itália, diretamente interessados.
Restava somente o desafio de colocá-lo em ato.
O encerramento do Congresso
A última assembleia aconteceu na tarde do dia 25 de abril.12 Na qualidade de presidente
efetivo, o padre Rua guiou com tato todas as reuniões. Tomou a palavra, com “voz trêmula
pela emoção”, como escreve a crônica. Foi um discurso de agradecimento: ao papa por seu
breve, aos quatro cardeais por sua presença, aos arcebispos e bispos, aos padres, aos leigos, aos
cooperadores e cooperadoras que vieram numerosos. Concluiu: “Na história da Congregação
Salesiana, as datas 23, 24 e 25 de abril de 1895 serão marcadas com caracteres de ouro, e no
meio delas brilhará o nome do Eminentíssimo Cardeal Svampa”. O vice-presidente Achille
Sassoli-Tomba agradeceu aos organizadores e ao público em nome dos cooperadores salesianos
da cidade de Bolonha. Depois, falou o cardeal Svampa, presidente honorário. Nos Atti, seus
discursos estão reunidos à parte, como foram pronunciados. Parece-nos útil retomá-los, ape-
12 Descrição em Atti del primo Congresso, p. 70-76.
172
sar de seu caráter retórico mais ou menos evidente, porque nos ajudam a entrar no clima do
acontecimento.
Ele disse que sua felicidade pelo êxito perfeito da manifestação estava prejudicada
por um sentimento de tristeza, porque esta é a última sessão, porque devemos separar-nos de
muitas e caras pessoas, porque não ouviremos mais esses discursos tão práticos e interessantes que
animaram a esperança de nosso coração. Oh! Por que esses discursos não são esculpidos com letras
eternas! Mas a recordação está viva no coração de todos e é consolador pensar que de tudo o que
foi dito será difundida exata e minuciosa informação. De resto, é também uma pena para meu
coração dever tão depressa me separar de pessoas tão caras que nestes dias nos honraram por sua
presença e trouxeram muita contribuição para a obra dos promotores; destas pessoas que agora nos
agradecem pela hospitalidade recebida, enquanto somos nós que devemos agradecê-las por terem
aceitado nosso convite; dessas pessoas que aqui acharam tudo bom, porque têm o coração bom.
Mas, enquanto nossa separação não é senão de espaço e de pessoas, conforta-me o pensamento de
que teremos outras ocasiões de nos encontrarmos. Sinto também o dever de dar adeus a meus ca-
ríssimos salesianos, e especialmente a meu caríssimo padre Rua, a alma deste Congresso; mas é por
pouco, já que ele me disse, e a palavra do padre Rua nunca foi desmentida (aplausos entusiastas), é
como a assinatura de uma letra de câmbio com data memorável. E nós teremos os salesianos, não
como hóspedes, tê-los-emos nossos: não de passagem, mas estavelmente (aplausos).13 [...].
Cada um, partindo do Congresso, voltará para a própria residência inflamado de novo ardor pela
santa causa do bem. Trabalhemos, sim, trabalhemos compactos, cooperemos todos unidos. Esta
seja nossa aspiração. Unidos na fé, no coração e na caridade, procuremos que não entrem nunca
entre nós separações funestas que matam as boas obras. Saibamos dominar a nós mesmos e refree-
mos as paixões mortíferas do orgulho, da ambição, da vaidade. Deus fortaleça os santos propósitos
e os abençoe. E a Virgem de São Lucas, que nos assistiu e guiou neste nosso Congresso, amanhã
nos espera em seu Santuário da Guarda para nos abençoar novamente. Levemos-lhe as flores perfu-
madas da nossa devoção, e ela abençoará nossas obras agora e sempre e fará com que, como nestes
dias fomos tão alegremente acolhidos nesta igreja da Santa, transformada em nosso cenáculo, assim
também possamos nos encontrar alegres ao obter de Deus aquela hospitalidade que o padre Rua
nos augurava e que é o prêmio reservado aos perseverantes.14
No fim do discurso, escreveu o cronista, o público explodiu em longos e intermináveis
aplausos.
Os sentimentos do padre Rua
Logo que chegou a Turim, o padre Rua se apressou em endereçar aos salesianos uma circular
dedicada ao Congresso de Bolonha.15
Por bem quatro dias tive o grande prazer de assistir a um sublime espetáculo de fé, de zelo, de
caridade e, digamos também, de simpatia para com nossa humilde Sociedade, de modo que ainda
13 O Instituto salesiano de Bolonha será fundado em 1896.
14 Atti del primo Congresso, p. 74-76.
15Uma nota da circular dizia da intenção do padre Rua de mandar cópia do Breve de Leão XIII a cada casa
salesiana para que fosse conservada nos arquivos.
173

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meu coração está todo comovido e minha mente toda cheia dele. Não tento sequer colocar diante
de vossos olhos tudo o que me foi concedido ver e ouvir; apesar de todo esforço, não conseguiria
senão dar-vos uma desbotada e pálida imagem daquilo que aconteceu. Deveria narrar coisas tão
belas, tão extraordinárias e maravilhosas que pareceriam exageradas para aquele que não foi teste-
munha ocular.
Deixando, portanto, a outros a tarefa de traçar a história e a fisionomia de um Congresso,
“que representará uma das mais belas páginas dos anais da nossa Pia Sociedade”, ele se limitou
a notar que o acontecimento tinha colocado em imenso destaque a bondade do Senhor “para
com os humildes filhos de Dom Bosco”. A ideia do congresso, o entusiasmo desencadeado
na cidade de Bolonha, a atividade incansável da comissão organizadora, a escolha da Igreja
da Santa para as assembleias, a competição entre as mais ilustres famílias para hospedar os
congressistas, a participação devota do povo nas cerimônias religiosas diárias na basílica de
São Domingos, capaz “de acolher 15 mil pessoas”..., tudo lhe parecia conter alguma coisa de
extraor­dinário. Como, no dia seguinte ao do encerramento, a peregrinação de 50 mil fiéis
subindo o Monte da Guarda junto com os congressistas para agradecer à Virgem de São Lucas
por sua feliz realização.
Não quer esquecer a benevolência especial das autoridades da cidade para com os parti-
cipantes. Nada foi poupado para a manutenção da ordem pública. Os congressistas foram
tratados em toda parte com fina gentileza. Puderam visitar gratuitamente os museus de Bolo-
nha, simplesmente apresentando os seus bilhetes de adesão. Na ocasião, o episcopado, não só
italiano, deu “a mais bela prova de seu afeto e de sua estima pelos pobres filhos de Dom Bosco”.
Quatro cardeais e mais de 30 bispos intervieram pessoalmente no congresso. “E outros, em
quantidade incalculável, lhes haviam enviado sua adesão em termos tão delicados e com tais
elogios que nos deixaram muito confusos.” Além do mais, uma estupenda carta de aprovação
de Leão XIII, endereçada ao cardeal Svampa, lida na abertura do congresso, garantia sua bên-
ção. De alguma forma, poder-se-ia dizer que a manifestação aconteceu sob sua presidência,
pois seu busto majestoso dominava sobre a sala. Certamente o papa esteve presente com o
coração e com o espírito.16
O que mais impressionou o padre Rua foram a genuína fraternidade, a união íntima dos
espíritos, o perfeito acordo de sentimentos e de vontade que se podiam ler no semblante dos
congressistas. Na sala se respirava uma atmosfera toda salesiana. Eram membros de uma única
família, reunidos para falar com atenção comovida e nobre de seu pai comum, Dom Bosco,
de obras salesianas que eram também suas, que acolhiam com sinais de aprovação e fragorosos
aplausos aquilo que era proposto para o bem das almas. Cardeais, bispos, sacerdotes, assim
como doutos e zelosos leigos tinham pronunciado discursos muito eloquentes que fizeram
vibrar as fibras mais delicadas dos corações. Falara-se amplamente dos salesianos para encorajá-
los a prosseguir em suas obras. Com muita eficácia os cooperadores foram exortados a levar
seu apoio moral e material. O cardeal Svampa com razão podia concluir dizendo que todos os
congressistas tinham aprendido alguma coisa.
16 L. C., 130-134.
174
Vós ficaríeis talvez maravilhados sabendo que houve alguém que, transportado pelo entusiasmo,
chamou a este congresso um triunfo, uma apoteose da Congregação Salesiana? Eu sequer ousaria
referir-vos esta palavra que parece ferir aquela modéstia que todo salesiano deveria praticar, a não
ser para lhes recordar que, parece, tudo isso estava predito por aquele sonho que Dom Bosco teve
na noite de 10 para 11 de setembro de 1881. Depois de nos haver santamente assombrado descre-
vendo-nos os graves perigos que a Congregação correria pelo relaxamento de alguns seus membros,
Dom Bosco nos reanimava dizendo: mais ou menos em 1895, grande triunfo. Pai amabilíssimo, a
vossa palavra se cumpriu.17
O padre Rua continuava sua carta procurando tirar lições do Congresso em vantagem para
os salesianos. Tal sucesso os obrigava, antes de tudo, a reconhecer a bondade de Deus, que,
através da intercessão de Maria Auxiliadora, tinha feito chegar a feliz resultado um empreen-
dimento tão difícil. “Graças a Deus e à Virgem Maria, o resultado superou em muito nossa
expectativa. O céu nos guarde de nos atribuir que seja uma mínima parte daquilo que é uni-
camente a obra de Deus. Somente a ele toda a honra, a ele a glória!”. Os salesianos deviam
então exultar com o pensamento de que seu primeiro Congresso tivesse alegrado “o Augusto
velhinho do Vaticano, que quis estar minuciosamente informado de todo ato de nossas assem-
bleias”. Portanto, convidava os salesianos a reforçar os laços que uniam a Família Salesiana ao
Vigário de Jesus Cristo; exortava-os a se alegrar em ver que os bispos “estão contentes com os
esforços que nós fazemos para auxiliar seu zelo, para combater a seu lado as batalhas do Senhor.
Demos, em toda parte, o exemplo do respeito para com suas pessoas sagradas e da obediência
a suas ordens”. O esplêndido resultado do Congresso devia também fazer crescer seu apego à
Pia Sociedade, na qual tinham entrado para responder a um chamado de Deus. Se já tiveram
muitas provas de “que Deus abençoa e protege de modo especial o instituto”, o Congresso os
devia tornar ainda mais convencidos de sua missão e estimular a merecer cada vez mais os favo-
res celestes. “Como verdadeiros filhos de Dom Bosco, demos vivas graças ao Senhor por haver
permitido que durante este Congresso, tanto nas salas das reuniões, como na basílica de São
Domingos, por bem quatro dias tivesse sido glorificado seu servidor fiel, nosso veneradíssimo
fundador e Pai. Cardeais e bispos celebraram do púlpito seus louvores não diversamente de
como fariam com um santo, e inspiraram seus devotos ouvintes à mais elevada estima de sua
virtude e de sua obra, que chamaram a toda hora impulso providencial”.
O padre Rua exortava os salesianos a um exame de consciência sobre a qualidade de sua vida
moral e religiosa. Mereciam verdadeiramente ter sido tão exaltados?
Confesso-lhes, caríssimos filhos em Jesus Cristo, que estive coberto de confusão ao ver a elevada
estima que por toda parte se tem dos pobres salesianos. Eles foram apresentados no congresso como
modelos de religiosos, como ardorosos de santo zelo pela salvação das almas, como mestres valentes
na arte dificílima de educar a juventude, no informá-la na piedade. Mais vivo se torna em muitos
bispos e cooperadores o desejo de ver surgir em suas cidades institutos salesianos, prometendo-lhes
verdadeiros milagres para a regeneração da sociedade moderna. Mas vocês vão me perdoar, se no
fundo do coração eu perguntava a mim mesmo se nós realmente somos como somos acreditados?...
Assaltou-me, muitas vezes, a dúvida desconfortável de que nossos cooperadores não teriam sido tão
benévolos acreditando, se colocassem o dedo para examinar de perto o comportamento de certos
irmãos... Ah! se aqueles que são relaxados na piedade, pouco observantes da santa Regra, negligen-
17 Cf. o sonho em MB XV, p. 183-187.
175

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tes em seus deveres estivessem presentes no Congresso, não tenho dúvida, teriam feito o propósito
de mudar de vida. Eu vos peço, unamo-nos todos para conservar a honra de nossa Pia Sociedade.
Vivamos no espírito de Dom Bosco e apresentemo-lo da melhor maneira que pudermos onde quer
que nos conduza a mão de Deus.
Concluía a circular com o auspício de que o Capítulo Geral, previsto para o mês de setem-
bro seguinte, ajudasse concretamente os salesianos a corresponder às expectativas dos coope-
radores. Com a graça de Deus, os diretores das casas, reunidos em torno do túmulo de Dom
Bosco em Valsalice, poderiam buscar zelo e fervor para inflamar todos os seus irmãos.18
18L. C., p. 135-136.
176
Capítulo 20
A expansão salesiana na América
O zelo missionário do padre Rua
As missões salesianas foram um dos temas centrais do Congresso de Bolonha. O padre Rua,
por sua vez, nunca deixou de alimentar nos salesianos o amor à vocação missionária, aceso por
Dom Bosco em 1875, de modo que não media esforços para encontrar indivíduos necessários
para novas expedições missionárias, que se repetiram todo ano sob o seu reitorado.1 Para nós,
hoje, não é fácil compreender o que significavam aquelas partidas. No decorrer do século trans-
portes e comunicações tiveram uma evolução radical. Na época, as separações eram drásticas
e duradouras. A correspondência demorava no mínimo um mês para atravessar o Atlântico.
O padre Rua se preocupava em preparar cuidadosamente aqueles que se tornavam disponíveis
para essa aventura.
Tinha o hábito de reuni-los em Turim na capelinha antiga no quarto de Dom Bosco, antes
da cerimônia tradicional de adeus na igreja de Maria Auxiliadora. Lá, depois de havê-los enco-
rajado a se mostrar dignos filhos de tal pai, com o zelo, a caridade e a observância, os abençoava
em seu nome. Reunia-os naquele lugar apertado, embora às vezes fossem muitos, para falar-
-lhes familiarmente, como disse, como um pai aos filhos. Quando, no fim da cerimônia em
Maria Auxiliadora, desfilavam um depois do outro diante dele para abraçá-lo, murmurava ao
ouvido palavras afetuosas, que iam diretas ao coração. Não as esqueceriam mais.
Uma vez que partiram, o padre Rua não os perdia de vista. Pedia para ser informado detalha-
damente sobre suas peregrinações. Lemo-lo nas primeiras linhas de uma longa carta de Bernardo
Vacchina de Rawson, sobre sua visita aos índios Tehuelches, em novembro-dezembro de 1895:
Muitas vezes o senhor, querido pai, nos recomendou que lhe escrevêssemos do lugar das missões,
alegando-nos que as relações de seus filhos missionários, além de alimentar no coração os afetos
do amor fraterno que nos une in Domino, lidas em comunidade ou entregues à imprensa são um
poderoso meio de educação sacerdotal e de mútua edificação, um argumento de glória a Deus e
de consolação para a Santa Igreja, um suave conforto e um estímulo eficaz para nossos generosos
cooperadores...”.2
1 Retomo aqui os capítulos de Ceria, Vita, p. 258-274, completados por Annali II, e M. Wirth, Don Bosco
et la famille salésienne, p. 293-307, todos destinados à aventura missionária na América.
2 Carta de B. Vacchina a M. Rua. Rawson, junho de 1896, em Bollettino Salesiano, agosto de 1896, p. 210.
177

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Ele mesmo lhes escrevia frequentemente, também durante suas viagens, sobretudo para
aqueles que tinham responsabilidades, como os inspetores ou os mestres dos noviços. Por
exemplo, somente no ano de 1890, endereçou 8 cartas ao padre Giuseppe Vespignani, mestre
dos noviços na Argentina: a primeira em fevereiro, de Nice, a segunda de Bruxelas, a terceira
de Turim, uma de San Benigno, a última em novembro de Turim. Na realidade, as verdadeiras
cartas aos missionários eram muito raras. Habitualmente, para economizar tempo e despesas
postais, o padre Rua fazia pacotinhos de bilhetinhos pessoais com algumas linhas, que seriam
lidos avidamente, e religiosamente conservados.
Respondia da melhor forma que podia aos pedidos de dinheiro dos missionários. O cardeal
Cagliero testemunhará que, quando se encontrava na Patagônia, o padre Rua se dobrava gene-
rosamente para atender a seus pedidos de ajuda. Agiu do mesmo modo com dom Fagnano, que
pela imensa atividade apostólica se encontrava frequentemente em sérios embaraços financei-
ros. O padre Rua visava unicamente expandir o Reino de Deus naquelas terras longínquas.
A América do Sul
Na época da morte de Dom Bosco, a Congregação contava na América do Sul com duas
inspetorias, Argentina-Chile e Uruguai-Brasil, e estava entrando no Equador. A atividade mis-
sionária estritamente entendida era exercida em duas circunscrições eclesiásticas recentemente
erigidas pela Santa Sé: um vicariato apostólico que compreendia o Norte e o Centro da Pata-
gônia, e uma prefeitura apostólica que englobava a Patagônia meridional e a Terra do Fogo.
Durante o reitorado do padre Rua, sob o seu impulso prudente, os salesianos fundaram obras
em sete novos países da América Meridional e Central: Colômbia (1890), Peru (1891), México
(1892), Venezuela (1894), Bolívia e Paraguai (1896), El Salvador (1897).
A Colômbia e o episódio de Agua de Dios
A Colômbia está na cabeça da lista. Os arquivos conservam repetidos pedidos e pressões do
governo daquele país e do arcebispo de Bogotá ao Reitor-Mor e à Cúria Romana.3 Queriam a
todo custo os salesianos em Bogotá. O negócio tomou um aspecto talvez ofensivo para o padre
Rua. Em 1889, quando, pelo convite insistente do papa para não criar novas obras, resistia às
pressões, recebeu do cardeal protetor Parocchi um bilhete datado de 30 de março que o deixou
mal:
Volto da audiência pontifícia, triste porque meus caríssimos salesianos, sem querer, desgostaram
Sua Santidade de Nosso Senhor. O Santo Padre ardentemente deseja que seja aceita pela nossa
Congregação a nova casa na Colômbia, e a Congregação recusa. Compreendo as dificuldades da
fundação, vista a escassez de sujeitos e a multidão das necessidades para serem providenciadas. Mas
diante do papa convém dobrar-se, por assim dizer, até ao impossível, com a fé que transporta as
montanhas.
3 Cf. Annali II, p. 124-130.
178
“Não pode imaginar quanta dor essa notícia trouxe ao nosso coração – respondeu logo o pa-
dre Rua ao cardeal Parocchi – E eu me apresso em responder para colocar as coisas em claro...”.
Não correspondia à verdade afirmar que os salesianos recusavam a fundação na Colômbia.
Desde o mês de maio do ano anterior, tinham preparado um contrato com o representante
do governo colombiano. O problema é que este quereria que os salesianos chegassem já em
janeiro de 1890, e, ao contrário, eles “insistiam para 1891”.4 As discussões foram retomadas.
O representante colombiano assistiu também em Turim a uma reunião do Capítulo Superior
no fim de abril de 1889. Leão XIII continuava a insistir. No fim, os missionários para a Colôm-
bia embarcaram em San Nazaro no dia 10 de janeiro de 1890, sob a direção do padre Miguel
Unia, sacerdote de 40 anos. Ao mesmo tempo, no Chile, o padre Evasio Rabagliati recebia a
ordem de fazer as malas para assumir a direção da nova obra de Bogotá.
A missão colombiana assumiu um aspecto particular pelas vicissitudes do padre Unia em
Agua de Dios.5 Haviam-no informado de que naquele lugar, a dois ou três dias de caminhada
de Bogotá, havia uma aldeia isolada onde viviam, numa degradação material e moral quase
total, várias centenas de leprosos. Até suas cartas não vinham abertas por temor do contágio.
Lendo a narração evangélica dos dez leprosos curados por Cristo, Unia sentiu o chamado para
se colocar a serviço daqueles infelizes, rejeitados por todos, miseramente assistidos pelo go-
verno com insignificantes subsídios, sem nenhum sacerdote para o socorro espiritual. Obteve
do superior a licença para ir até lá, com a condição de pedir a autorização definitiva ao padre
Rua. Antes de se pôr a caminho, portanto, Unia enviou ao Reitor-Mor uma carta datada de 18
de agosto de 1891. O arcebispo de Bogotá abençoava uma iniciativa que, aos olhos de todos,
parecia incrível.
Para os leprosos, sua chegada pareceu a de um anjo. Não acreditavam nos próprios olhos.
O grupo dos mais sadios, homens, mulheres e crianças, o rodeou e se pôs a dançar de alegria.
Unia entrou, então, no lazareto para visitar aqueles que eram obrigados a estar deitados. Cha-
gas repelentes cobriam-nos da cabeça aos pés. Alguns não tinham mais forma humana. Apesar
da recomendação de não tocá-los e de uma inevitável repugnância, ele chegou até a abraçá-los.
O arcebispo o nomeou capelão de Agua de Dios. No dia 28 de agosto, Unia escreveu novamen-
te ao padre Rua, expressando-lhe sua intenção de permanecer no seu posto, apesar de todos
os riscos que corria. O padre Rua pareceu não compartilhar aquele apostolado extraordinário,
mas se tratou de um contratempo. De fato, as cartas de Unia cruzaram sobre o oceano com
uma carta do Reitor que, desconhecedor da obra, lhe pedia que ficasse no México para assumir
a direção de uma nova casa. Convencido de que o padre Rua não aprovava seu ministério,
Miguel Unia obedeceu imediatamente, deixou o lazareto entre os prantos e os lamentos de
todos aqueles infelizes. As autoridades de Bogotá se comoveram e telegrafaram para Turim e
para Roma a fim de que o padre Rua repensasse sua decisão. Mas já estava decidido. Enquanto
isso, chegaram ao padre Rua também as cartas de Unia e um comovente pedido dos leprosos,
datado de 17 de outubro, com 54 assinaturas. Choravam pelo afastamento de seu capelão e lhe
suplicaram que lhes conservasse esse conforto.
4 Cf. essas cartas em Annali II, p. 126-128.
5 Sobre a aventura de Agua de Dios, retomo Annali II, p. 141-154.
179

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10.1 Page 91

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No dia 13 de outubro o padre Rua comunicou a Unia sua bênção:
Fiquei muito feliz com a generosa resolução de você se sacrificar em favor dos leprosos. Dou-lhe
meu total consentimento e imploro de Deus para você as mais escolhidas e abundantes bênçãos.
Você está disposto a sacrificar sua vida e eu me congratulo com isso. Recomendo-lhe, no entan-
to, que use as devidas precauções para não contrair aquela terrível enfermidade ou, pelo menos,
contraí-la o mais tarde possível. Pode ser que algum outro salesiano, atraído por seu exemplo, se
disponha a ir fazer-lhe companhia para se ajudarem reciprocamente nas necessidades espirituais
e temporais. Embora você se encontre entre os leprosos, nós o consideramos sempre como nosso
caro irmão salesiano; antes, consideramos Agua de Dios como uma nova colônia salesiana, e bem
que gostaríamos que fosse possível ajudar de algum modo esses enfermos. Com que prazer o fa-
ríamos! Por agora, basta. Saúde afetuosamente seus enfermos por nossa parte e diga-lhes que os
amamos muito e que rezamos por eles.6
Unia se desdobrou em quatro por seus caros leprosos. Construiu uma casa para as crianças,
lançou uma subscrição para construir um grande hospital, restaurou a igreja, fez chegar água
potável de uma colina vizinha, organizou festas religiosas e cultivou a música. Quatro anos de
trabalho massacrante bastaram para acabar com ele. Morreu na Itália, para onde tinha voltado
com o objetivo de se curar, no dia 9 de dezembro de 1895. Estava para completar 46 anos.
Entretanto, a obra salesiana se expandia na Colômbia. Depois da escola profissional Leão
XIII de Bogotá, em 1892, os salesianos receberam a incumbência de uma paróquia em Bar-
ranquilla, o maior porto da Colômbia no Atlântico. Em 1893 foi aberto em Fontibon um
noviciado que será depois transferido para Mosquera. Eram estudados projetos de missões na
província de San Martin para as regiões amazônicas no oeste do país, mas vieram obstáculos da
revolução de 1895 e da escassez de pessoal.
Em Agua de Dios, enquanto isso, os salesianos Crippa e Variara tinham assumido e feito
prosperar a obra iniciada pelo padre Unia. Em 1896, constituiu-se a inspetoria colombiana. Em
1905, para favorecer a renovação das técnicas agrárias, será criada a escola agrícola de Ibagué.
A despeito das dificuldades políticas, endêmicas neste continente, que terão sempre graves
contragolpes nas obras sustentadas pelos governos locais, no reitorado do padre Rua a inspeto-
ria colombiana continuou a crescer.
A chegada dos salesianos ao Peru
Como fizera para a Colômbia, a Santa Sé fez pressão para a ida da Congregação ao Peru. Em
março de 1890, o cardeal Rampolla informava o padre Rua de que Leão XIII desejava, o mais
depressa possível, o envio de salesianos para a capital Lima, a fim de se ocuparem da juventude.
Com o objetivo de evitar que se repetisse o problema colombiano, o padre Rua respondeu cate-
goricamente ao cardeal: “Pode garantir à Sua Santidade que faremos tudo o que pudermos para
responder a seus venerados desejos”. As tratativas exigiram, de alguma forma, algum tempo.
6 A carta está reproduzida em Annali II, p. 145-146.
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O texto do contrato é interessante para conhecer as ligações de interesse que os governos
da América do Sul procuravam com a Congregação Salesiana. No dia 6 de junho, o Capítulo
Superior modificou algum ponto de um projeto preparado pelos peruanos. Seu governo acei-
tou o acordo. No dia 25 de julho, o ministro plenipotenciário do Peru na Itália, Carlos Elias,
participou, em Turim, de uma reunião capitular sobre a criação de um orfanato masculino em
Lima. No documento aprovado nessa ocasião lemos:
Animados pelo caridoso escopo de providenciar a instrução e a educação cristã da juventude po-
bre e abandonada da cidade e província de Lima, entre Sua Excelência o Ministro do Governo e
o Reverendíssimo padre Miguel Rua, Reitor-Mor da Pia Sociedade Salesiana, se contrata: 1º O
Governo, de sua parte, cederá em propriedade absoluta ou em uso perpétuo uma casa com anexos
pátios e jardins capazes de abrigar pelo menos trezentos alunos. – 2º Providenciará todos os móveis
e utensílios necessários para os dormitórios, oficinas, escolas, cozinha, refeitório etc. e a roupa con-
veniente. – 3º Providenciará também todos os paramentos sagrados e os bancos para a capela; ou
então, além do local, como acima, dará, para implantação, a soma de 50 mil liras [o Governo prefe-
riu o segundo modo, depositando a soma na Sociedade de Beneficência, que a transmitiu ao padre
Rua, em duas parcelas, por intermédio do ministro peruano em Roma]. – 4º Por dez anos, a pri-
meira viagem de cada um do pessoal adido ao orfanato será por conta do Governo. – 5º O senhor
padre Rua se obriga a abrir em Lima no ano [...] um instituto de artes e ofícios e também de escolas
elementares e de instrução superior para aqueles que tiverem capacidade para tal. – 6º O diretor
do orfanato, como representante do padre Rua, poderá livremente encaminhar para um ofício ou
para os estudos cada um dos jovens acolhidos. – 7º A administração e a disciplina do instituto serão
inteira e livremente confiadas ao mesmo diretor. – 8º Serão sempre preferencialmente acolhidos no
instituto os jovenzinhos recomendados pelo governo, contanto que estejam na idade não inferior
aos 10 anos nem superior aos 14 e sejam de constituição física sadia e sem defeitos corporais. – 9º
Para cada um de seus recomendados, o governo pagará ao orfanato 40 francos por mês, em ouro.
Quando algum apresentar mau comportamento, sendo de escândalo para os companheiros, ou es-
tiver afetado por doença contagiosa ou crônica, deverá retirá-lo, logo que tiver recebido o aviso do
diretor. – 10º Este contrato durará por cinco anos, e se entenderá renovado por outro quinquênio,
se de uma das partes não tiver sido dado aviso prévio dois anos antes do término.7
O padre Rua queria respeitar escrupulosamente as indicações de Dom Bosco: garantir o
apoio da sociedade civil, mas também a total liberdade na educação dos jovens.
O padre Ângelo Sávio preparou a posse no país através do contato com uma associação
beneficente de Lima. Três salesianos e nove Filhas de Maria Auxiliadora chegaram à capital no
final de 1891. O padre Antonio Riccardi, até àquele momento na Argentina, foi o primeiro
diretor do orfanato e o organizou como escola de artes e ofícios. Ao lado, abriu-se um oratório.
A sociedade de beneficência da capital confiou às irmãs uma escola profissional para meninas.
Em 1896, no fim do quinquênio de experiência, o Senado peruano aprovou a criação de
outras escolas salesianas. Naquele momento, estavam disponíveis vários salesianos, expulsos do
Equador depois de uma revolução anticlerical. Surgiram, assim, duas novas obras, uma escola
agrícola em Arequipa, em 1897, e um colégio em Callao, no ano seguinte. Outras obras serão
fundadas em Cuzco e Piura em 1905 e 1906.
7 Impresso em Annali II, p. 136.
181

10.2 Page 92

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A aventura equatoriana
Desde a chegada dos salesianos a Quito, no dia 28 de janeiro de 1888, a obra no Equador foi
florescente. A casa tinha 14 oficinas em plena produção. No início da década de 1890, atraiu
a atenção dos vários presidentes. Então foram abertas outras obras em Riobamba (1891) e em
Cuenca (1892) e um noviciado em Sangolqui. Em 1894, o padre Rua decidiu a criação de uma
inspetoria equatoriana e confiou sua responsabilidade ao padre Luigi Calcagno (1857-1899).
Ao mesmo tempo, a Santa Sé ofereceu à Congregação uma missão importante na zona
oriental do país, povoada por tribos indígenas ainda não civilizadas.8 No dia 26 de março de
1889, o Capítulo Superior estudou uma carta do secretário da Congregação dos Negócios Ex-
traordinários que oferecia aos salesianos o novo vicariato apostólico de Mendez e Gualaquiza.
No dia 6 de setembro, o cardeal Rampolla explicitava ao padre Rua: “Sua Excelência Flores,
presidente da República equatoriana, me endereçou, há pouco, uma carta com a qual pede
à Santa Sé que a missão de Mendez e Gualaquiza seja confiada aos sacerdotes da benemérita
Congregação presidida pelo senhor”. Os salesianos aceitaram. Em 1892, o padre Ângelo Sávio
foi enviado para conhecer os lugares; mas, infelizmente, no dia 17 de janeiro de 1893, morreu
por causa de uma congestão pulmonar, contraída dormindo no chão numa noite muito fria.
Em Turim, se esperou até o dia 8 de fevereiro o documento da Congregação dos Negócios Ex-
traordinários, que anunciava a instituição e os limites do novo vicariato. A proximidade com
Cuenca, onde havia pouco fora aberta uma casa, facilitava as coisas. A exploração até Guala-
quiza foi confiada ao jovem padre Gioachino Spinelli (1868-1949) e ao coadjutor Giacinto
Pankeri (1857-1947). Partiram para uma caminhada de 36 dias, no começo de outubro de
1893. Entre mil dificuldades, em Gualaquiza foi logo criada uma pequena escola profissional.
A missão de Gualaquiza era muito pobre. As oficinas, as salas de aula, a capela e a própria mo-
radia não eram senão cabanas de madeira cobertas de folhas.
Em 1894, o presidente da República, Antonio Flores, indicou à Santa Sé na qualidade de
vigário apostólico de Mendez e Gualaquiza o salesiano Tiago Costamagna, inspetor da Argen-
tina, que conhecera em Quito.9 O padre Rua aceitou e sem demora lhe mandou a obediência.
No dia 3 de dezembro, Costamagna saudou o colégio de Almagro. No dia de Natal estava no
Oratório de Turim.10 No consistório secreto de 18 de março de 1895, Leão XIII lhe conferiu
a sede titular de Colônia da Armênia. No dia 23 de maio, o arcebispo de Turim, Riccardi, as-
sistido pelos auxiliares, o consagrou bispo, na igreja de Maria Auxiliadora. Era o terceiro bispo
missionário salesiano depois de João Cagliero e Luís Lasagna. Lamentavelmente, o vigário
apostólico de Mendes e Gualaquiza, muito esperado, foi ordenado num momento de graves
perturbações políticas no Equador. Com a mudança de presidente, sua presença não foi mais
grata, por ter sido escolhido pelo deposto presidente Flores.
Com a revolução liberal de 1895, surgiram graves dificuldades para os salesianos do Equa-
dor. Tratava-se, de fato, de um liberalismo anticlerical. Os amigos do governo anterior passa-
8 Sobre as origens do vicariato de Mendez e Gualaquiza, cf. Annali II, p. 283-296.
9 Verbali del Capitolo Superiore, 23 de agosto de 1894. In: FdR 4241E12.
10 Sobre o episódio Costamagna, cf. Annali II, p. 291-293.
182
ram para inimigos do novo regime. Em 1896, aconteceu a catástrofe. Acusados de manobras
antigovernistas, os salesianos foram presos e suas obras requisitadas. Nove religiosos, entre os
quais o inspetor Calcagno, foram obrigados a uma viagem terrível até à fronteira peruana.
A odisseia durou quarenta dias e os deixou mais mortos que vivos.11
O padre Rua, avisado, solicitou a intervenção do ministro italiano dos Negócios Exteriores,
Emilio Visconti-Venosta, que escreveu ao cônsul italiano de Guayaquil no Equador e ao seu
ministro plenipotenciário de Lima, o comandante Castelli, para esclarecer as coisas e intervir
em favor dos salesianos, todos de nacionalidade italiana. Iniciou-se uma complexa negociação
diplomática. O inspetor Calcagno apresentou suas queixas. No início de 1897, a confusão
pareceu se resolver. Mas foi uma ilusão. Em setembro, o padre Rua insistiu ainda junto ao
ministro do Exterior para conseguir do governo equatoriano um julgamento formal. O coad-
jutor salesiano Giacinto Pankeri, que ficara em Quito, fazia o melhor que podia para proteger
os bens da Congregação. O ministro italiano preferiu confiar a tarefa de defender os interesses
salesianos ao ministro espanhol junto ao governo de Quito. No dia 29 de março de 1898, o
governo equatoriano concordou com Pankeri sobre a criação de uma comissão de arbitramen-
to. As conferências da comissão duraram até 1902,12 quando a obra salesiana, no seu conjunto,
apoiada em Quito por cooperadores enérgicos, de maneira alguma resignados a vê-la persegui-
da, recomeçou novamente.13
O México
Em outubro de 1892, o padre Rua decidiu enviar um primeiro grupo de seus religiosos
para o México, país que já os esperava havia quase quatro anos.14 Enquanto se encontrava em
Roma para a consagração da igreja do Sagrado Coração, no dia 12 de maio de 1887, Dom
Bosco tinha recebido a visita de um grupo de eclesiásticos alunos do Colégio Sul-americano.
Alguém lhe perguntou quando os salesianos iriam para o México. Respondeu: “Não vou ser eu
quem vai enviar os salesianos para o México; o meu sucessor fará aquilo que eu não posso fazer.
Podem estar certos”. O padre Rua não deixou de realizar o desejo do Fundador.
Depois da morte de Dom Bosco, a fama de sua obra se estendeu por toda a América Latina.
No dia 23 de junho de 1889, 7 membros da comissão católica do México, querendo que seu
país se beneficiasse de presença tão interessante, se reuniram a fim de estudar os meios mais
adequados para conseguir o escopo. Quando um dos membros se declarou cooperador salesia-
no, todo o grupo decidiu se inscrever na Pia União. Foi constituída uma comissão promotora
presidida por Angel G. de Lascurain. Conseguida a bênção do arcebispo Pelagio Labastida,
11 Sobre as acusações aos salesianos e seu exílio, cf. Annali, II, p. 549-577.
12 Sobre o detalhe dessas tratativas, cf. Annali II, p. 590-598.
13 Sobre esse renascimento, cf. Annali II, p. 598-602.
14 Sobre a entrada dos salesianos no México, cf. as 18 cartas de Angel G. de Lascurain e dos seus amigos,
escritas entre 1889 e 1891. In: FdR 3005D9-3307A11. Cf. também Annali II, p. 137-140, e F. Castellanos,
“El nacimiento de la obra salesiana en México”, RSS, 8 (1989), p. 399-429, que coloca em relevo o papel
dos cooperadores na vinda dos salesianos.
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entraram em contato com o padre Rua. Este, contente pela iniciativa, expediu para cada um o
diploma de cooperador. Aquele núcleo de entusiastas amigos de Dom Bosco espalhou o conhe-
cimento do santo e de sua obra por toda a República. Até alguns bispos pediram para entrar na
Pia União dos Cooperadores. O nome de Dom Bosco se tornou popular, sobretudo na capital,
onde muitos começaram a querer a chegada dos salesianos a serviço da juventude.
Finalmente, uma cooperadora rica ofereceu a própria casa à comissão promotora para que
fosse transformada em colégio. Como os salesianos estavam demorando, os bons cooperadores
decidiram agir por sua espontânea vontade. Abriram um instituto sob a direção do sacerdote
Enrico Perez Capetillo, com oficinas de tipografia e de sapataria, e cursos elementares noturnos
para 9 órfãos, número que subiu logo para 37, todos entre os mais pobres da capital. O padre
Rua, informado, abençoou a iniciativa, prometendo enviar os salesianos no menor tempo pos-
sível. Depois a história se complicou. No dia 4 de fevereiro de 1891, o arcebispo do México,
grande protetor e benfeitor da obra, morreu. O padre Capetillo se retirou. Tudo parecia desmo-
ronar. Nesse ponto, o padre Rua, cedendo às repetidas instâncias dos mexicanos e encorajado
pela Santa Sé, decidiu enviar para o México, em outubro de 1892, um primeiro contingente
de filhos de Dom Bosco.
Chegaram a Vera Cruz no dia 1º de dezembro, recebidos com entusiasmo pelos coopera-
dores. Eram 5: 3 padres, inclusive o diretor padre Angelo Piccono, 1 clérigo e 1 coadjutor.
Apresentaram logo ao novo arcebispo Alarcon uma carta de recomendação do cardeal Ram-
polla (datada de 19 de outubro de 1892), transmitida diretamente pelo padre Rua. O cardeal
expressava a satisfação do Santo Padre pela partida dos missionários:
Apresentar-lhe-á esta minha carta o chefe dos sacerdotes salesianos que chegam para tomar posse
da casa que foi aberta para eles nessa metrópole. Embora eu esteja plenamente convencido de que
Vossa Eminência lhes dará a mais paterna acolhida e que se valerá de seu poder e sua influência
para apoiá-los e protegê-los em sua missão e facilitar assim para eles a consecução do nobre escopo
pelo qual abandonam a pátria, e se dirigem a essas regiões longínquas, com tudo isso, não quis
deixar de muni-los desta minha comendatícia, onde Vossa Eminência saiba que assim fará coisa
agradável ao Santo Padre e a mim. Porque esses beneméritos filhos de Dom Bosco merecem todo o
apoio da Santa Sé pelo bem que fazem espiritualmente e também materialmente, de modo especial
educando a juventude nas letras e nas artes, prestando-se a satisfazer às necessidades dos fiéis nas
suas formas variadas.15
Iniciada sob tais auspícios, a obra salesiana no México tomou forma rapidamente. No dia
3 de janeiro de 1893, o padre Piccono expôs seus projetos para uma assembleia de cooperado-
res salesianos. Logo uma dama, Giulia Gomez, lhe ofereceu um terreno de 2 hectares e o enge-
nheiro Sozaya preparou o projeto de um colégio com capacidade para receber 400 jovens. As
ofertas chegaram. No dia 29 de janeiro, o arcebispo já podia abençoar a primeira pedra diante
de uma multidão de fiéis. A República mexicana adquiria uma posição de destaque entre os
países com sedes salesianas na América.
15 Publicada em Annali II, p. 139.
184
Venezuela, Bolívia, Paraguai, El Salvador
Retomemos os acontecimentos relativos à entrada dos salesianos em outros quatro países
americanos durante o governo do padre Rua.
A Venezuela figurava havia vários anos na lista de Dom Bosco e do padre Rua.16 Entre os
precursores da obra salesiana no país, como no México, esteve, sobretudo, um padre, Ricar-
do Arteaga, e um grupo compacto de cooperadores. O arcebispo Crispolo Uzcategui apoiou,
junto ao padre Rua, seu pedido de ter os salesianos na cidade de Caracas.17 Simultaneamente
intercedia junto ao papa e fazia intervir a seu favor a Congregação da Propagação da Fé.18
Tudo isso facilitou o trabalho dos salesianos, uma vez chegados a seu lugar. Embarcaram em
Gênova no dia 1º de novembro de 1894. A população venezuelana os festejou, mas também
aqui sobrevieram as desilusões. Em Caracas, o governo entregou uma escola de artes e ofícios já
existente, mas só na aparência. De fato, administração e disciplina ficavam nas mãos dos leigos,
sob a dependência direta do governo, com infiltração de elementos anticlericais e subversores.
Os salesianos foram obrigados progressivamente a se retirar da escola. Ajudados pelo arcebispo,
encontraram outros campos de apostolado.
Um sacerdote venezuelano de alma salesiana, Vittore Arocha, tinha sido enviado a Turim
pelo arcebispo Uzcategui para obter do padre Rua outros salesianos para a cidade de Valencia.
Esperou um ano, mas conseguiu seu projeto. O diretor Andrea Bergeretti (1846-1909), sa-
cerdote diocesano que havia pouco fizera profissão salesiana, partiu no dia 23 de setembro de
1894. Dois clérigos o seguiram em novembro, acompanhados pelo padre Arocha. Numa casa
alugada em Valencia abriram uma escola elementar, para a qual, não tendo o domínio do es-
panhol, precisaram recorrer a professores leigos. Não era senão o início. O afluxo dos jovens os
obrigou a encontrar outro ambiente. Adquiriram um terreno com algumas casas antigas, mas
sólidas. Essa foi a origem do Colégio Dom Bosco de Valencia. Em 1897, o ministro da Instru-
ção Pública, em visita à obra, foi saudado na estação pela banda musical do instituto salesiano.
O colégio se desenvolvia de ano em ano, à medida que o pessoal salesiano se robustecia: classes
primárias, classes secundárias, belas festas religiosas que atraíam muita gente. Em 1899, o pa-
dre Bergeretti se distinguiu por sua abnegação por ocasião de uma terrível epidemia de varíola
que devastou a cidade. O governo lhe conferiu uma medalha de honra ao mérito.
O padre Luís Costamagna (1866-1941), sobrinho de dom Tiago Costamagna, foi o pri-
meiro salesiano a entrar na Bolívia, vasto país no coração da América do Sul, entre o Brasil, o
Chile e o Paraguai.19 Com carta de dia 23 de setembro de 1889, o arcebispo de La Paz, dom
Borgue, tinha apelado ao espírito apostólico do padre Rua para a fundação de uma escola de
artes e ofícios em sua cidade. O padre Rua não pôde senão lhe dar alguma esperança para o
16 Sobre os salesianos na Venezuela, cf. Annali II, p. 513-524.
17 Cf. a carta Crispolo Uzcategui ao padre Rua, de 26 de maio de 1890. In: FdR 3224; e a minuta da
resposta do padre Rua. In: FdR 3224C3-5.
18 Cf. a carta do secretário dessa Congregação ao padre Rua. Roma, 28 de abril de 1891. In: FdR
3224D2-3.
19 Sobre a fundação da obra boliviana, cf. Annali II, p. 525-534.
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futuro. Depois, no dia 10 de junho de 1891, o ministro plenipotenciário da Bolívia em Buenos
Aires, Mariano Baptista, propôs, em nome do governo, um contrato para a fundação de dois
colégios de artes e ofícios, um em La Paz, o outro num lugar a combinar. As condições eram
muito favoráveis.20 O padre Rua aceitou, mas a negociação exigiu tempo. Entretanto, Batista,
tornado presidente da República, conferiu a seu embaixador na França, Manuel de Argandoña,
plenos poderes para estabelecer os termos do contrato com o padre Rua. O documento, econo-
micamente interessante para os salesianos, foi assinado no dia 8 de outubro de 1895. Eis seus
pontos de maior destaque:
1º O Reverendíssimo padre Miguel Rua se empenhará em ter pronto um pessoal de pelo menos
10 salesianos, que possam partir para a Bolívia, quando muito, em novembro deste ano de 1893.
2º O superior destinado à Bolívia, de acordo com o representante do governo desse país, adquirirá
e enviará todos os instrumentos e utensílios necessários para os dois institutos que serão fundados.
3º O governo da Bolívia pagará as despesas de viagem para todo o pessoal que deverá ser mandado
para os colégios da Bolívia durante os primeiros dez anos, e também viagens que o interesse de
cada instituto poderá exigir.
4º O governo da República da Bolívia cederá ao sacerdote ou sacerdotes prepostos pela Sociedade
de São Francisco de Sales o uso do local ou locais com os relativos anexos, pelo dito governo es-
tabelecidos para a fundação dos colégios de artes e ofícios, com todo o mobiliário, maquinário e
aparelhos que devem ser comprados na Europa.
5º O governo providenciará para o superior destinado à Bolívia, ou então para o sacerdote por ele
indicado, todo o dinheiro necessário para as despesas de instalação.
6° A Sociedade Salesiana e suas casas serão isentas dos impostos nas alfândegas e das outras taxas fis-
cais e gozarão das imunidades e de todos os outros privilégios concedidos às associações religiosas.
7º Se por causas imprevistas os salesianos precisarem abandonar os imóveis, deverão restituí-los ao
governo no estado em que se encontrarem e avisarão, sobre a retirada, um ano antes.
8º Se o governo quiser rescindir o contrato, deverá avisar sobre isso o superior quatro anos antes e
pagar as despesas necessárias para a transferência do pessoal.
9º Os alunos externos serão todos gratuitos e para seu ensino o governo estabelecerá uma subven-
ção mensal para cada estabelecimento, ou atribuirá um honorário a cada salesiano ou empregado
admitido pelos salesianos.
10º Os alunos internos pagarão uma pensão que deverá ser estabelecida de acordo entre o governo
e o superior do colégio respectivo.
11º A direção e a administração internas como também todas as disposições disciplinares depen-
derão única e exclusivamente da Sociedade Salesiana.21
Assinando o contrato, o padre Rua evitava aos salesianos as desventuras de Caracas,
onde se viram na dependência de uma administração leiga. De fato, já antes da assinatura
do documento, havia sido designado o pessoal da missão boliviana. Os salesianos seriam
14, dos quais 7 para a capital La Paz. Chegaram a Buenos Aires no dia 23 de novembro se-
guinte. Mas os contratempos e as complicações de uma viagem pelo Chile, parte de trem,
20 Cf. o documento em FdR 3267A4-7.
21 Publicado em Annali II, p. 527-528.
186
parte de barco, parte numa espécie de diligência, atrasarão a sua chegada a La Paz e a Sucre
até fevereiro de 1896. Também aqui a acolhida foi entusiasta.22
As tratativas entre a Santa Sé e Dom Bosco deveriam ter feito os salesianos entrarem no
Paraguai já em 1879. Mas o país estava sacudido por revoluções que envolveram também o
clero da única diocese de Assunção.23 Os desarranjos políticos bloquearam os salesianos, que
estavam prontos em Buenos Aires. Portanto, o delegado apostólico se dirigiu aos lazaristas, que
aceitaram a difícil missão.
Treze anos mais tarde, encontramos no Paraguai o salesiano Ângelo Sávio, em viagem explo-
ratória na vastíssima região do Gran Chaco.24 Voltando para Assunção, ele escreveu ao padre
Rua os resultados de sua expedição numa região antigamente evangelizada pelos jesuítas (as
Reduções do Paraguai). De tudo teve uma impressão triste. “Milhares de indígenas selvagens se
encontram nas margens dos rios e quantos serão a 100, 200, 300 quilômetros para o interior?
[...] São tribos numerosíssimas e algumas, me parece, conservaram alguma recordação das anti-
gas missões, mas agora são novamente selvagens, não havendo entre eles o sacerdote que ensine
a religião, única fonte de verdadeira civilização. Os tolos governos do passado caçaram o padre,
mataram os bispos e pretendiam governar sem Deus”. Acrescentou que o governo militar lhe
havia pago a passagem de volta e manifestado o desejo de ver voltarem os sacerdotes, mas talvez
somente por objetivos políticos.25 O padre Sávio se entendeu também com o administrador da
diocese, que, no mesmo dia, escreveu ao prefeito da Propaganda Fide para que fosse confiada
aos salesianos uma missão no Gran Chaco.26 O cardeal Rampolla, instruído por Leão XIII, in-
teressou o padre Rua no projeto.27 Mas as negociações não serão concluídas em seu reitorado.
Entrou, então, em cena o intrépido salesiano Luís Lasagna (1850-1895), ordenado bispo
titular de Tripoli em 1893. Ele visitou o Chaco e fez contato com os índios. Mas, num país ar-
ruinado pela guerra, parecia-lhe mais urgente ocupar-se da formação da juventude das cidades.
No dia 19 de maio de 1894, convenceu o padre Rua a abrir na capital um internato para os
meninos pobres.28 As autoridades políticas o apoiaram. No dia 19 de agosto de 1895, o parla-
mento paraguaio votou até uma lei, pela qual o país cedia a dom Lasagna, enquanto superior
dos salesianos, um velho mas sólido edifício, com terrenos adjacentes, em Assunção, com capa-
cidade de hospedar 100 internos, para lá criar uma escola de artes e ofícios sob a total depen-
dência dos salesianos. Graças à sua amizade com o presidente da República paraguaia e à sua
ação eficaz, dom Lasagna tinha conseguido restabelecer as relações entre o Paraguai e a Santa
Sé, rompidas depois do assassinato do legítimo bispo de Assunção e, mais tarde, de seu usurpa-
dor. Infelizmente, a morte acidental desse exímio bispo salesiano num desastre ferroviário em
Juiz de Fora (Brasil), no dia 6 de novembro de 1895, pareceu anular a entrada dos salesianos
22 Sobre a vinda salesiana para La Paz, cf. as cartas de L. Costamagna a M. Rua, 1896. In: FdR 3267B10-E1.
23 Sobre o Congresso dos salesianos na República paraguaia, cf. Annali II, p. 535-548.
24 Carta de A. Savio a M. Rua, do Chaco, 8 de julho de 1892. In: FdR 3812E11-3813A2.
25 Carta de A. Savio a M. Rua. Assunção, 24 de julho de 1892. In: FdR 3813A11-12.
26 Cf. Ceria, Annali II, p. 539.
27 Carta do cardeal Rampolla a M. Rua. Roma, 14 de dezembro de 1892. In: FdR 3800A11-12.
28 Carta de L. Lasagna a M. Rua. Assunção, 19 de maio de 1894. In: FdR 3755E5-3756A4.
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na capital. Todavia, aconselhado por dom Costamagna, o cônsul paraguaio em Montevidéu,
Matia Alonso Criado, pediu ao padre Rua que honrasse os compromissos assumidos com dom
Lasagna. “Minha infeliz República – dizia – é a principal vítima da pavorosa morte de dom
Lasagna, que todos deploramos com imensa dor. Somente o senhor, como digníssimo Reitor-
-Mor dos salesianos, pode atenuar para o Paraguai as consequências de tão grande desventura”.29
Em Assunção, os que apoiavam os salesianos conseguiram fazer suprimir um artigo maldoso
em relação a eles contido na lei de 19 de agosto de 1895.
Os primeiros salesianos destinados ao Paraguai partiram de Montevidéu (Uruguai) para
Assunção no dia 14 de julho de 1896. Eram quatro, todos da inspetoria do Uruguai: o
diretor, padre Ambrogio Turriccia, outro padre, um clérigo e um coadjutor. Guiava-os o
inspetor, padre Giuseppe Gamba. Viajaram num barco, antes para Buenos Aires, depois
para a capital através dos rios Paraná e Paraguai. Desembarcaram em Assunção no dia 23.
Apresentaram-se às autoridades religiosas e civis. Foi-lhes destinado um imóvel construí-
do antigamente pelos jesuítas. O padre Turriccia escreveu ao padre Rua: “Deus ajude que
nós, os últimos vindos a esta porção da vinha do Senhor, possamos pelo menos fazer a
milésima parte do grande bem que fizeram os ilustres filhos de Loyola. Ainda agora, depois
de muitos anos de sua expulsão, se vê muito bem a grande fé que eles souberam infundir
naquelas nações”.30 Como em outras partes, também em Assunção os salesianos começa-
ram abrindo, a partir do mês de outubro, um oratório festivo para os meninos do bair-
ro, depois um internato de artes e ofícios para uns 30 órfãos, o Colégio Dom Lasagna.
Em 1895, o vigário geral da única diocese da república de El Salvador, o italiano dom
Michele Vecchiotti, atraiu a atenção do padre Rua para aquele país.31 Uma comissão católica
o havia encarregado de tratar com Turim.32 O padre Rua respondeu que antes de 1898 não
poderia fazer nada, por falta de homens. Mas os salvadorenhos recorreram a Roma. Assim, o
padre Rua, alguns meses depois, recebeu uma carta do cardeal Rampolla:
O Senhor Presidente da República de El Salvador recentemente fez conhecer ao Santo Padre quanto
de sua parte vai se esforçando para promover a instrução e a educação da juventude, e tem de modo
especial mostrado ter grande confiança na obra dos salesianos, e de querer apressar sua definitiva
posse naquela nação. Daí seu vivo desejo de que Vossa Senhoria, antes de esperar 1898 para realizar
o envio de alguns padres, como lhe prometeu, se decida a marcar sua partida imediata. Portanto, para
secundar as louváveis disposições do mencionado Senhor Presidente da República, Sua Santidade
julgou conveniente fazer chegar a seu conhecimento, a fim de que com seu habitual zelo e prudência
possa adotar aquelas providências que julgar mais convenientes para a boa realização da obra.33
Também neste caso precisou obedecer, prometendo fazer o possível e dizendo que esperava
detalhes do presidente de El Salvador. Junto com a carta do presidente lhe acrescentou uma
outra missiva do secretário de Estado. O ministro das Finanças da República salvadorenha ti-
29 Annali, II, p. 542.
30 Cf. Annali II, p. 543.
31 Sobre a entrada dos salesianos em El Salvador, cf. Annali II, p. 578-587.
32 Carta de M. Vecchiotti a M. Rua. San Salvador, 25 de janeiro de 1895. In: Annali II, p. 579.
33 Vaticano, Secretaria de Estado, 22 de junho de 1895. In: Annali II, p. 579.
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nha chegado a Roma, munido da recomendação do presidente e do bispo, com a tarefa de fazer
o necessário para a construção de uma escola, que seria confiada aos salesianos. Pouco depois,
o ministro foi para Valdocco com uma recomendação do cardeal Rampolla, a fim de que tudo
caminhasse bem “segundo os desejos comuns, para o bem da juventude daquela república
longínqua”.34 O padre Rua pediu, então, ao vigário geral Vecchiotti que entrasse em contato
com o padre Angelo Piccono, diretor no México, com o fim de redigir o projeto de contrato
com o governo para a construção em El Salvador de uma escola de artes e ofícios e de agricultu-
ra. O projeto Piccono, revisto por Rua, foi oficialmente aceito pelo governo no dia 28 de abril
de 1897. Os salesianos entraram em San Salvador no dia 3 de dezembro seguinte, conduzidos
pelo padre Calcagno, inspetor no Equador expulso pelos revolucionários. Acompanhavam-
-no 2 padres, 3 clérigos e 3 coadjutores. O bispo tomou conta deles da melhor maneira que
pôde. Os salesianos foram logo estimados pela população e os cooperadores se multiplicaram.
O presidente os visitou várias vezes.35 Mas o padre Calcagno não tinha ilusões. No dia 17 de
janeiro de 1898 escreveu ao padre Rua: “Sabendo por experiência onde vão terminar as casas
dependentes do governo, devemos temer que esta, que ocupamos atualmente, termine como
as outras: sua existência é precária”. Em fevereiro, insistiu: “Precisamos de casas independentes
do poder político”.36 Naquele momento se apresentava uma oportunidade na cidadezinha de
Santa Tecla, perto da capital. O padre Piccono havia recomendado ao Reitor-Mor um médico
rico do lugar, Manuel Gallardo, coração de ouro e ótimo católico. O padre Rua lhe mandou o
diploma de cooperador salesiano. Gallardo, agradecendo-o, escrevia: “Estou fazendo o possível
para merecer a alta honra que me foi concedida por Vossa Reverendíssima e para tal efeito em
poucos dias será terminado um edifício que estou fazendo construir para acolher crianças órfãs,
que espero educar sob a direção dos padres salesianos, contanto que Vossa Reverendíssima me
queira conceder esse insigne favor”.37 O padre Calcagno o encorajava, pois pensava que naque-
la casa os salesianos seriam plenamente livres em seus movimentos.
O padre Rua pediu que Gallardo tivesse paciência até 1901, e isto o indispôs. Com efeito, no
início de 1899, com uma mudança de governo, começaram as dificuldades para os salesianos da
capital: não foram mais pagas as mensalidades e fizeram ouvidos de mercador às reclamações.
No fim de janeiro, uma parte dos irmãos, com o padre Calcagno, passou para Santa Tecla, onde
a casa, pequena mas cômoda, estava pronta para recebê-los. Os outros esperaram. Os aconte-
cimentos se precipitaram a tal ponto que em 1900 também eles precisaram ir com os irmãos.
Assim, em Santa Tecla surgiu um verdadeiro colégio salesiano, com aprendizes e estudantes,
sob o patrocínio de Santa Cecília, nome de batismo da falecida mulher do doutor Gallardo.
Com El Salvador, durante os primeiros dez anos do reitorado do padre Rua, os salesianos
haviam colocado os pés em 7 novos países da América Latina. A experiência ensinara-lhes com
que prudência era preciso se mover na estipulação de contratos com os governos. De resto,
precisaram manobrar continuamente para se adaptar às mutações políticas num continente
perpetuamente instável.
34 Vaticano, Secretaria de Estado, 23 de agosto de 1895. In: Annali II, p. 583.
35 Annali II, p. 583-584.
36 Carta de L. Calcagno a M. Rua, 17 de janeiro de 1898. In: Annali II, p. 583.
37 Carta de M. Gallardo a M. Rua, Santa Tecla, 15 de fevereiro de 1898. In: Annali II, p. 584.
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Nos Estados Unidos
Nos mesmos anos, os salesianos penetraram no norte do continente americano. Era uma
época de grande emigração italiana para os Estados Unidos, sobretudo para a costa oeste. Em
1896, o padre Angelo Piccono, do vizinho México, para onde tinha sido enviado, visitou os
compatriotas de San Francisco. No dia 2 de julho, o arcebispo Patrick Riordan o convocou
para lhe dizer que oferecia aos salesianos: “além da paróquia dos italianos [SS. Pietro e Paolo,
no centro da cidade] uma grande extensão de terra nos arredores dessa cidade como proprie-
dade para fazer nela o que quisessem”.38 As tratativas com Turim se concretizaram rapidamente.
No dia 23 de novembro daquele ano, o arcebispo aceitava uma fórmula de contrato proposta
pelo padre Rua nestes termos:
1º Sua Excelência dom Riordan oferece aos salesianos a paróquia dos italianos existente na cidade
de San Francisco.
2º Providencia as despesas de viagem e das primeiras indispensáveis provisões para os salesianos que
irão no próximo dezembro de 1896.
3º O senhor padre Rua mandará, por agora, dois padres, um clérigo e um leigo para cuidar da
citada paróquia e, à medida que se puder, abrir-se-á um oratório festivo, escolas diurnas e notur-
nas, e, depois, também um internato e escolas de artes e ofícios, especialmente para jovenzinhos
abandonados.
4º Limita os salesianos a exercer o sagrado ministério em favor dos italianos.39
O arcebispo estava preocupado em prevenir eventuais conflitos com o clero local. Assim, no
início de 1897, os salesianos tomaram posse da paróquia italiana de San Francisco. Em 1898,
era-lhes confiada uma segunda paróquia num outro bairro da cidade e outra ainda para os imi-
grados portugueses. No mesmo ano, na costa oeste, em Nova York, onde residiam quase 400
mil italianos, os salesianos se estabeleceram na paróquia de Santa Brígida. O padre Rua apoiou
com empenho especial aquelas obras apostólicas que marcaram o início da expansão salesiana
nos Estados Unidos.
38 Carta de A. Piccono a M. Rua. San Francisco, 2 de julho de 1896. In: FdR 3788E4-7.
39 Minuta de contrato. In: FdR 3347A8; o contrato definitivo, em inglês, é trazido em A. Lenti, “The
Founding and Early Expansion of the Salesian Work in the San Francisco Area from Archival Documents”,
Journal of Salesian Studies, 7 (outono 1996), p. 18.
190
Capítulo 21
A Argélia e a Polônia
Durante a década de 1890, o padre Rua introduziu a obra salesiana em dois novos países:
a Argélia e a Polônia. As vicissitudes da chegada na Argélia não fizeram grande barulho. Na
Polônia, ao contrário, a situação se tornou muito mais dificultosa.
Os salesianos na Argélia
Em 1883, em Paris, Dom Bosco prometera ao cardeal Charles-Martial Lavigerie (1825-
1892), arcebispo de Cartago, na Tunísia, que enviaria os salesianos para a África.1 Era o dia
21 de maio e se encontravam ambos na igreja parisiense de Saint-Pierre Du Gros-Caillou. Ao
cardeal, que, do alto do púlpito, lhe pedia os salesianos, Dom Bosco respondeu: “Estou nas
vossas mãos, Eminência, para realizar na África tudo aquilo que a divina Providência pedir de
mim. Sim, sim, esteja certo de que, se nós pudermos fazer alguma coisa na África, eu e toda a
Família Salesiana estaremos à disposição de Vossa Eminência. Enviarei meus filhos, italianos
e franceses”.2 Havia vários anos o cardeal esperava os salesianos na Tunísia. Em 1891, o padre
Rua o informou, por delicadeza, de uma fundação iminente na diocese de Orã. O cardeal res-
pondeu no dia 2 de julho com um tom muito ressentido:
Reverendíssimo Padre,
Recebi em Cartago sua carta de 16 de junho, junto com a do padre Bellamy. Fiquei, devo real-
mente confessar, muito surpreso ao constatar que dois santos (na verdade ainda não canonizados)
como Dom Bosco e o padre Rua puderam faltar a uma promessa que me foi feita em público, de
fundar uma casa salesiana na Tunísia, e que o senhor, Reverendíssimo Padre, hoje me anuncia com
toda calma e serenidade a abertura de uma obra na diocese de Orã. Posso certamente perdoar as
injúrias, e o devo, porque Nosso Senhor nos deu a ordem e o exemplo. Mas agradecer e felicitar-
-me com os autores está acima de minha virtude, sem dúvida muito frágil. Portanto, limito-me a
notificar que recebi a carta que o senhor me enviou no mês passado, e me professo seu
Humilíssimo e obedientíssimo,
mas não desesperado servidor,
Charles Card. Lavigerie.3
1 Sobre as origens da missão salesiana em Orã, cf. o dossier Orã, anos 1890-1892. In: FdR 3517A11-
3518A6. Cf. Também a narração de Annali II, p. 306-312.
2 Segundo Don Bosco à Paris, par un ancien Magistrat, Paris, 1883, p. 108-111.
3 FdR 3758C9-10.
191

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O principal autor da manobra tinha sido o bispo de Orã, Géraud-Marie Soubrier (1826-
1899). Em outubro de 1889, encarregara seu vigário geral de encontrar em Marselha o inspetor
padre Paulo Albera. Era urgente ocupar-se da juventude de Orã. A cidade tinha, então, quase
60 mil habitantes de diversas nacionalidades, sobretudo espanhóis. Grande número de rapazes
vagava pelas ruas, sem qualquer noção de catecismo, sem o que não se podia ser admitido à
primeira comunhão.4 O padre Rua respondeu ao bispo que aceitava a proposta, mas esperava
detalhes posteriores. Eles chegaram. O padre Rua não respondeu imediatamente. Assim, no dia
31 de agosto de 1890 dom Soubrier escrevia:
O reverendíssimo padre Albera, numa carta que chegou ontem, se diz muito admirado de que o
senhor ainda não me escreveu nada. Conhecendo suas grandes preocupações, não me admiro e lhe
faço a mesma pergunta dirigida pelos discípulos de São João Batista ao Divino Mestre: Tu es qui
venturus es, an alium expectamus? [Tu és o que deve vir ou devemos esperar outro?]. Não tenho dú-
vida alguma de que tenha intenção de responder ao meu apelo, mas me permita dirigir-lhe a oração
dos macedônios a São Paulo: Transiens ad civitatem nostram episcopalem adiuva nos [Passando por
nossa cidade episcopal, ajuda-nos].5
Prudentemente, o padre Rua lhe anunciou que enviaria dois padres para visitar as casas que o
bispo queria dar aos salesianos. De fato, o padre Celestino Durando e o padre Charles Bellamy,
então mestre dos noviços em Marselha, foram até Orã em dezembro de 1890. Na volta, o
padre Durando explicou ao padre Rua e ao Capítulo Superior que o bispo cedia aos salesianos
2 casas de sua propriedade, uma no centro da cidade, outra na região elevada de Eckmühl.
A primeira era um antigo tribunal situado ao lado de um edifício chamado de “Escola do coro
da catedral”, com uma sala muito grande para as audições, para ser transformada em capela.
Essa casa, segundo o bispo, poderia abrigar o oratório festivo, a escola da catedral (isto é, o
pequeno clero que o bispo tinha intenção de fazer restaurar, doando para isso 12 mil francos).
A outra casa poderia servir para o colégio. Duas irmãs cooperadoras estavam prontas a ceder
aos salesianos um belo terreno adjacente para o desenvolvimento dessa segunda obra.
Os acordos entre Turim e Orã chegaram rapidamente a bom termo. O contrato foi assinado
em Turim pelo padre Rua no dia 2 de fevereiro de 1891, festa da Purificação, e em Orã por
dom Géraud Soubrier, no dia 12 de abril seguinte, domingo do Bom Pastor.6 O contrato com-
preendia 10 artigos: a introdução expressa bem as intenções dos dois contratantes e evidencia a
vontade do padre Rua de dar seguimento à promessa feita por Dom Bosco ao cardeal Lavigerie
em 1883:
Sua Excelência dom Soubrier, preocupado com a educação cristã dos jovens da cidade de Orã,
especialmente dos pobres e abandonados, propõe ao reverendíssimo padre Rua abrir nessa cidade
obras inspiradas no espírito e na regra da Pia Sociedade fundada por Dom Bosco, de feliz e venera-
da memória. O padre Rua aceita com reconhecimento a proposta, feliz por poder assim realizar o
desejo de Dom Bosco de enviar seus filhos às regiões africanas para a salvação das almas.
4 Carta de P. Albera a M. Rua, Marselha, 22 de outubro de 1889. In: FdR 3676B2-4.
5 FdR 3517B8-10.
6 FdR 3517E5-7.
192
Os salesianos realizariam o projeto nos termos estabelecidos pelo contrato. Como estabelecia
o 1º artigo, em outubro de 1891 o padre Rua enviaria a Orã o pessoal necessário para começar
a obra, pelo menos seis salesianos, entre sacerdotes, clérigos e leigos. Eles assumiriam a direção
da escola da catedral Saint Louis, incrementando com as escolas elementares e com o acrésci-
mo de um oratório (art. 2). Em outubro de 1892, seriam iniciados os cursos de latim (art. 3).
As aulas seriam pagas (art. 4). Além disso, “dado que o escopo principal da Pia Sociedade Sale-
siana de Dom Bosco é cuidar da juventude pobre e abandonada, os superiores fariam o possível
para abrir um internato ou orfanato, logo que a Divina Providência dispusesse dos recursos
indispensáveis” (art. 7). Em vista dessa fundação, dom Soubrier cedia aos salesianos a casa e
o terreno de sua propriedade ao lado da igreja paroquial de Orã-Eckmühl (art. 8). Os outros
artigos diziam respeito a questões financeiras, que o padre Rua, como também dom Soubrier,
procurava sempre deixar claras e possivelmente fixar nos detalhes: despesas para a adaptação
do antigo tribunal, despesas de viagem e de organização dos religiosos, salário dos professores.
O salesiano francês Charles Bellamy (1852-1911), originário de Chartres, foi designado
pelo padre Rua como diretor-fundador da obra. Tinha causado boa impressão ao bispo durante
sua viagem de exploração. “Espero que os salesianos façam grande bem em Orã. Parece-me
que o padre Bellamy é dotado das melhores qualidades”, havia escrito para o padre Rua em
4 de janeiro de 1891.
A fundação de Orã em 1891
Os 7 membros da expedição de Orã, padre Bellamy, 1 sacerdote, 2 clérigos, 1 coadjutor
mestre carpinteiro e 2 jovens coadjutores viticultores, participaram em Turim, no dia 16 de
agosto, da cerimônia tradicional de adeus aos missionários na igreja de Maria Auxiliadora.
Cyprien Beissière, um do grupo, contará que o padre Rua os havia reunido de manhã na capela
vizinha ao quarto de Dom Bosco para se entreter familiarmente com eles. “Eu os envio como
cordeiros no meio de lobos”, teria dito.7 De fato, os aborrecimentos administrativos, muito
complexos para serem narrados aqui, não faltarão. De Turim, os 7 chegaram a Marselha e ao
Oratório Saint Léon. Lá, o inspetor, padre Albera, solenizou sua partida. Seu discurso, mui-
to intenso e comovente, como era costume, desenvolveu um tema bíblico: “Como são belos
os pés daqueles que vão longe para anunciar o Evangelho da paz!”. O público se comoveu.
“O cansaço, as provas, as dores dos missionários, o sangue que manchará talvez suas coroas,
nada foi esquecido”. Saudou de modo especial três salesianos do grupo que tinham sido “me-
ninos do Saint Léon”. E, segundo a crônica do Bollettino Salesiano, “alguma palavra cheia de
delicada cordialidade recordou a todos que o chefe da expedição [Charles Bellamy] tinha sido
um benfeitor querido a Dom Bosco, do qual se mostrou constantemente digno filho”.
No dia 22 de agosto, os sete embarcaram no vapor La Città di Roma diretamente para Orã.
No dia 2 já estavam no destino. Nenhuma personalidade civil ou eclesiástica os acolheu: esses
senhores estavam em férias na Europa. Os salesianos, guiados pelo padre Bellamy, que conhecia
7 C. Beissière, Cinquante ans d’apostolat en Afrique du Nord. Túnis, 1941, p. 21.
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os lugares, se dirigiram logo à catedral para saudar o Senhor e encontrar o pessoal: o secretário-
-geral do bispo e os vigários da catedral, que deram o melhor de si para atendê-los. Depois,
foram fazer o reconhecimento na rua Ménerville para verificar o estado do antigo tribunal:
encontraram-no em condições de fazer dó. Mas tinham coragem e espírito de sacrifício em
abundância, como testemunha, no dia 26 de agosto, uma carta de Bellamy ao padre Rua.8
Arregaçaram as mangas e se adequaram à situação. O bispo, de volta da França, compadeceu-
se e fez uma oferta generosa. No dia 5 de outubro começaram as aulas (classes elementares e
classes médias), não no ex-tribunal, ainda em obras, mas na escola paroquial colocada à dispo-
sição por dom Soubrier. Queriam abrir o oratório no dia 1º de novembro, mas conseguiram
somente no dia 15 de dezembro (dia em que a diocese festejava a Imaculada), com a presença
de dom Soubrier, que abençoou a capela no antigo tribunal. Um espetáculo alegre concluiu
o dia. Graças a algum ator jovem improvisado, mas muito esperto, se representou o pequeno
drama de Dom Bosco La casa della fortuna, para grande satisfação do bispo, que estava na
primeira fila entre os espectadores.
Faltava concretizar os artigos 7 e 8 do contrato. A propriedade cedida por dom Soubrier
nas alturas de Eckmühl compreendia uma casa e um vasto jardim. Os salesianos nela se esta-
beleceram no dia 31 de janeiro de 1893. A propriedade cresceu e se embelezou rapidamente.
Plantaram árvores, prepararam dormitórios, classes, salas. Logo foram organizadas 4 oficinas
para aprendizes, uma seção de estudantes (de idade entre 10 e 12 anos), um setor de aspirantes
ao sacerdócio, com alguma vocação adulta. Foi aberto também um segundo oratório com sua
Joyeuse Union, réplica da Sociedade da Alegria do jovem Dom Bosco. A obra de Eckmühl na
década de 1890 não era mais que uma “casa salesiana em miniatura”, com cerca de 90 alunos.
Mas havia grandes sonhos de desenvolvimentos.
Até 1896, as duas obras funcionaram sob a direção do fundador, Charles Bellamy. Por vezes,
houve alguns problemas sérios. Em 1895, o jornal Le Petit Africain organizou uma campanha
feroz contra os salesianos. No dia 26 de outubro, a administração municipal ordenou, sem
explicações, o fechamento da capela de Ménerville, “nos mesmos dias em que autorizava a
abertura de uma loja maçônica”, observou amargamente o padre Bellamy. Sua reação chegou
no dia 30 de outubro com uma carta aberta ao prefeito. E, felizmente, a coisa parou por ali.9
O salesiano polonês Bronislau Markiewicz
Mudemos completamente o horizonte e passemos da África para a província polonesa da
Galícia, que esteve sob a administração austríaca até 1919. A pedido do bispo de Przemysl, o
padre Rua enviou para lá, em 1892, o padre Bronislau Markiewicz como vigário da paróquia
de Miejsce Piastowe, que se tornou a primeira obra salesiana na Polônia.
8 Cf. “Les Salésiens en Afrique”, Bulletin Salésien, novembro de 1891, p. 179-181, que traz a carta do
padre Bellamy.
9 Sobre as origens das casas de Orã, cf. o longo artigo de Charles Bellamy, “Les oeuvres salésiennes d’Orã”,
Bulletin Salésien, abril de 1899, p. 97-107.
194
Naquele ano, Bronislau Markiewicz (1842-1912) ainda era, apesar dos seus 50 anos, um
“jovem salesiano”.10 Nascido em Pruchnik, perto da cidade episcopal de Przemysl, na Galícia,
entrou, não sem hesitação, no seminário maior com a idade de 21 anos e foi ordenado sacerdo-
te depois de três anos. Sacerdote muito dotado, estudou pedagogia e filosofia, antes em Leopo-
li, depois em Cracóvia. Pôde assim prestar com sucesso o exame de concurso paroquial (27 e 28
de outubro de 1875). Durante sete anos foi pároco de Gac (1875) e de Blazowa (1877-1882).
Entregou-se com zelo ao ministério: catecismos, pregações, confissões, cuidado dos pobres
e dos doentes, fundação de “irmandades dos abstêmios”, numa região na qual o alcoolismo
era doença endêmica. Era muito estimado. Assim, o bispo, dom Lukasz Solecki, testemunha
de suas qualidades, o promoveu a professor de teologia pastoral no seminário maior (1882).
No entanto, Bronislau, aos 43 anos, começou a sonhar uma vida espiritual mais exigente em
harmonia com a prática do ministério. Em novembro de 1885, de acordo com o bispo, par-
tiu para Roma em busca de uma congregação religiosa capaz de responder às suas aspirações.
No começo pareceu pensar nos teatinos. Mas, tocado pelo estilo de vida e pela espiritualidade
dos salesianos de Roma, com os quais tinha ido celebrar a missa, decidiu dirigir-se diretamente
a Dom Bosco. No dia 30 de novembro de 1885 encontrou-o em Turim e, fascinado, pediu para
entrar em sua Congregação.
O catálogo geral da Sociedade de 1887 o coloca entre os inscritos (noviços) da casa de San
Benigno Canavese. Começou o noviciado em março de 1886, depois de dois meses de postu-
lado. Não existem documentos sobre sua profissão religiosa. Afirmará sempre que fez profissão
nas mãos de Dom Bosco no dia 25 de março de 1887. O secretário Viglietti registrava todos
os deslocamentos de seu superior. Naquela data Dom Bosco estava em Turim. No dia 25 de
março, portanto, Bronislau o encontrou em Valdocco, onde, fazendo talvez valer sua idade e
sua qualidade de padre experimentado, conseguiu pronunciar diante dele só, na intimidade do
seu quarto, os votos perpétuos de obediência, pobreza e castidade. Provavelmente, o secretaria-
do geral não foi informado sobre o fato, e por isso o catálogo da Sociedade Salesiana, no ano
1888, não o inclui nem na lista dos professos temporários nem na dos professos perpétuos.
No entanto, encontramo-lo nas edições entre 1889 e 1892 com o título de professo perpétuo.
Passou dois anos na casa de São João Evangelista, de Turim, e dois anos na casa de repouso de
Mathí. De fato, tinha contraído tuberculose. Nessas casas, confessava, se ocupava dos clérigos,
dava aulas de história ou de teologia e, às vezes, pregava aos salesianos. Sua visão da vida espi-
ritual era muito exigente. “A espiritualidade de Dom Bosco – escreveu no dia 30 de agosto de
1888 em suas notas espirituais – consiste no esquecimento de si mesmos por amor de Deus e
do próximo. O próximo confiado aos nossos cuidados se mostra frequentemente hostil para co-
10 A bibliografia de Bronislau Markiewicz é importante. Aqui me refiro somente aos documentos e às
narrativas que dizem mais ou menos diretamente respeito a ele: Archivio Salesiano Centrale di Roma,
especialmente FdR 4206B2-4209A5; Congregatio de Causis Sanctorum, Premislien. Latinorum Canoniza-
tionis Servi Dei Bronislai Markiewicz, Positio super vita et virtutibus, Roma, 1990; Id., Premislien. Latinorum
Beatificationis et Canonizationis Servi Dei Bronislai Markiewicz... Relatio et Vota congressus peculiaris super
virtutibus die 30 novembris an. 1993 habiti, Roma, 1993 ; Maria Winowska, Aux portes du Royaume. Père
Bronislau Markiewicz, curé de paroisse et fondateur des Michaélites, nouvelle édition, Paris, Téqui, 1994;
Mariano Babula, P. Bronislao Markiewicz, Fondatore della Congregazione di San Michele Arcangelo, Roma,
2000.
195

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nosco: é preciso calar, suportar pacientemente as afrontas, as suspeitas, os insultos, as calúnias,
sempre respondendo com a caridade. Se o próximo não quer receber nada de nós, é preciso
permitir caridosamente que outros se ocupem dele. É preciso, portanto, sempre esquecer-se de
si mesmo, desprezar o próprio eu”.11 Pregará sempre a abnegação, a doçura e a humildade.
No momento da profissão, Bronislau sonhava voltar para a Polônia para se dedicar a serviço
do próprio país, sobretudo da pobre Galícia, que internamente confrontava com o rico Pie-
monte. Seus amigos o queriam como salesiano na paróquia de Miejsce, que dependia de sua
diocese de origem, mas era de patronato leigo.12 Quando a paróquia se tornou livre, o “patro-
no’’ da paróquia escreveu oficialmente para o padre Rua pedindo-lhe que aceitasse a paróquia
como obra da Congregação e que fizesse do padre Markiewicz o pároco do lugar. De pleno
acordo com a proposta, no dia 19 de outubro de 1891 o padre Rua escrevia (em latim) ao bis-
po de Przemysl: “Há muito tempo tenho intenção de abrir uma obra na Polônia para acolher
jovens, sobretudo pobres. Mas até este momento, a falta de padres e de professores sempre me
impediu. Se a messe é abundante, os operários são poucos. Agora, para satisfazer seu piedoso
desejo, concedo de boa mente ao padre Bronislau Markiewicz o direito de se dirigir para lá e
de assumir o cargo da paróquia”.13 O padre Markiewicz mesmo iniciou as práticas no fim de
1891,14 e o padre Rua o autorizou oficialmente.15
A fundação polonesa de 1892
De volta para a Polônia, o padre Bronislau chegou a Miejsce Piastowe no dia 24 de março
de 1892. Colocou-se a serviço da paróquia, mas, sobretudo, dedicou-se ao cuidado dos jovens
abandonados. Sabia que o padre Rua pensava numa obra salesiana regular. Assim, deu início ao
Instituto Don Giovanni Bosco (é este o título atribuído pelos catálogos salesianos entre 1894
e 1897 à “casa” de Miejsce).
O padre Markiewicz lançou-se à obra com toda a paixão. Abrigou na casa canônica e em
suas dependências meninos e meninas abandonados. Trabalhavam na fazenda e nos campos do
“benefício” paroquial. Para eles, em 1895, criaram-se também as oficinas de sapataria, alfaiata-
ria e outras. Começou a escolher os meninos melhores para fazer deles salesianos a serviço dos
companheiros. As meninas tinham a própria organização feminina. O padre Markiewicz apli-
cava com uns e outras um método educativo inspirado na melhor tradição salesiana, baseado
na razão, na religião e no carinho.16 Na lista do pessoal de Miejsce, o catálogo salesiano de 1894
11 Positio super vita et virtutibus, p. 61.
12 Documentação em Positio super vita et virtutibus, p. 53-57.
13 Carta publicada em Positio super vita et virtutibus, p. 64.
14 Cf. suas cartas de 23 de novembro e de 21 de dezembro de 1891. In: FdR 4207C11-D4.
15 Cf. a carta ao bispo Solecki, 3 de janeiro de 1892. In: FdR 4207E8-9; e as cartas testemunhais que
trazem a data do mesmo dia. In: FdR 4207E6.
16 Cf. eventualmente os testemunhos de L. Bialoczynski e W. Michulka, em Positio super vita et virtutibus,
p. 72-75.
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inclui 11 “aspirantes”: 3 coadjutores e 8 estudantes. Em 1895, 3 deles aparecem como “ins-
critos”, isto é, noviços, e o número dos aspirantes sobe para 17 (5 aprendizes e 12 estudantes).
Esses números deixaram Turim curiosa. Os catálogos de 1896 e de 1897 enumeram só mais
2 “inscritos”, mas não apresentam aspirantes. Em 1898, a mesma casa de Miejsce desaparece
do catálogo. Veremos logo o motivo.
Na carta aos cooperadores no Bollettino Salesiano de janeiro de 1895, o padre Rua se ale-
grava com o trabalho de Markiewicz: “Na Polônia, há alguns anos, um sacerdote salesiano,
enviado para lá para servir como pároco em Miejsce, cidade da Galícia, começou a recolher na
casa paroquial jovens pobres necessitados de instrução e apoio. O pequeno internato se desen-
volveu aos poucos. Já foi preciso mandar socorro de pessoal para o pobre pároco, que, sozinho,
já não dava conta de tanto trabalho; e, no final do ano passado, chegava a mais ou menos
50 o número dos abrigados”.17
Em 1896, o padre Rua autorizou uma irmã salesiana a participar na formação das educado-
ras (eram quase consagradas) que queriam abraçar a vida religiosa.18 Mas as iniciativas cada vez
mais audazes do padre Markiewicz estavam para estragar tudo, como nos diz, em tom lacôni-
co, a ata da reunião do Capítulo Superior de 23 de novembro de 1896: “De Miejsce, o padre
Markiewicz propõe novas inscrições [de noviços] e algumas profissões. Decide-se mandar a essa
casa o padre Veronesi, para fazer uma ideia clara daquilo que lá se estava fazendo. No entanto,
não são concedidas nem as inscrições nem as profissões”.19
A crise de 1897
Na casa Don Giovanni Bosco de Miejsce Piastowe reinava a pobreza. O número dos jovens
acolhidos se aproximava de 100. Mas estava se desenhando uma grave crise. Em junho de 1897,
o padre Rua, preocupado com as notícias que lhe chegavam daquele orfanato fora de controle,
colocou em prática a decisão do Capítulo e enviou como visitador o inspetor padre Mosé
Veronesi. A acolhida foi calorosa. Mas suas conclusões desconcertaram Bronislau Markiewicz.
Depois de fazê-las aprovar pelo padre Rua para que fossem transmitidas ao interessado por
carta (que não foi conservada), o visitador, que residia em Mogliano Veneto, expôs suas deci-
sões ao pároco decano de Rymanow em carta do dia 14 de outubro de 1897.20 As mulheres de-
veriam ser alojadas numa casa separada; os rapazes não poderiam mais residir na casa paroquial;
a comida dos jovens e dos religiosos devia ser diversificada; o número dos rapazes não podia ser
superior a 20; as meninas não deveriam ter entrado no instituto; o padre Markiewicz ocupar-
-se-ia da paróquia, dos 20 rapazes restantes, e mandaria os outros para outro lugar. 21
17 Bolletino Salesiano, janeiro de 1895, p. 3.
18 Carta de G. Marenco a B. Markiewicz, 21 de setembro de 1896. In: Positio super vita et virtutibus, p. 76-77.
19 Verbali del Capitolo Superiore, 23 de novembro de 1896. In: FdR 4242A9.
20 Cópia datilografada, ASC, dossiê Markiewicz.
21 Cf. Também a carta de B. Markiewicz a dom T. Lekawski, citada em Positio super vita et virtutibus, p. 82.
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Diante de posições tão drásticas, o padre Markiewicz decidiu sair da Congregação do padre
Rua e criar uma Sociedade mais fiel, pensava, às intenções originais de Dom Bosco. No dia
29 de dezembro de 1897, o secretário do Capítulo Superior escrevia na ata: “Lê-se a relação de
perseverança de Markiewicz na deserção. Fez vestiduras clericais e admitiu aos votos algumas
filhas”. É tudo.22 Possuímos a longa carta do padre Markiewicz, datada de 28 de dezembro
de 1897, em resposta ao bispo de Przemysl, que o havia interrogado sobre as razões de sua
ruptura com os salesianos. Estes são os pontos principais: 1) Os salesianos mudaram a regra
primitiva, na qual reinava o mote “Trabalho e temperança”; voltaram-se para as classes médias
em prejuízo dos “pobres e dos abandonados”. 2) Centralizaram o noviciado. 3) Centralizaram
a gestão econômica em vantagem dos italianos. 4) Querem italianizar os poloneses que vão até
eles. 5) A mesma tendência existe nas missões: “Italianizar esses países, sobretudo a América
do Sul, é o objetivo principal dos missionários salesianos, e não a conversão dos selvagens”.
Consequentemente, “depois de ter esgotado por onze anos todos os meus argumentos, agora
sei claramente que, para mim, para meu instituto, para a Polônia e para a Igreja, é mais útil
que eu me separe dos salesianos italianos e funde uma congregação à parte atendo-me à regra
primitiva de Dom Bosco. E com este objetivo, no dia 23 de setembro deste ano apresentei
pedido ao Reverendíssimo bispo de Przesmysl e ao Santo Padre”.23 Nascerá, assim, a Sociedade
Trabalho e Temperança, para a qual o nosso pároco conseguiu sem dificuldade o beneplácito
da administração civil.
O bispo, por sua vez, não acreditou que “deveria se opor ao seu desígnio de fundar uma con-
gregação segundo o espírito primitivo de Dom Bosco, inspirando-se em exemplos semelhantes
na história da Igreja”, como lemos na ata do Capítulo Superior do dia 14 de março de 1898.
O padre Rua fez responder que Markiewicz se recusou a obedecer depois de nós lhe haver-
mos escrito que organizasse sua casa segundo as informações que o próprio bispo nos havia
passado; que nós não podíamos permitir que essa nova congregação tivesse o mesmo título da
nossa; que nós, segundo as Regras, desligamos Markiewicz dos votos, e que, consequentemen-
te, não participava mais dos nossos privilégios.
O Capítulo decidiu enviar ao procurador romano Cesare Cagliero uma cópia da carta do
bispo e da resposta para que, na ocasião, pudesse apresentá-la à Sagrada Congregação dos Bis-
pos e Regulares, isto é, à Santa Sé.24
De fato, o padre Markiewicz insistia com Roma, onde faziam ouvidos de mercador. No fim
de uma longa carta ao papa, datada de 5 de abril de 1898, depois de ter elencado suas reservas
sobre aquela que chamava a “nova Sociedade Salesiana”, escrevia:
[...] Quando este último [padre Veronesi], primeiro à viva voz, depois por carta, insistiu, em nome
da obediência, sobre sua introdução [dos costumes italianos], o subscrito obrigado pela voz da
consciência, terminou os contatos com seus superiores e constituiu uma Congregação à parte,
22 Verbali del Capitolo Superiore, 29 de dezembro de 1897. In: FdR 4242C2.
23 Carta de B. Markiewicz ao bispo de Przemysl, Miejsce, 28 de dezembro de 1897, que me foi fornecida
e traduzida por Tadeusz Jania, Cracóvia.
24 Verbali del Capitolo Superiore, 14 de março de 1898. In: FdR 4242C4.
198
segundo a Regra primitiva e a observância de Dom Bosco, porque, sem falar dos exercícios anuais
no espírito de Santo Inácio de Loyola, a casa de Dom Bosco em Miejsce se distingue com vanta-
gem das outras casas salesianas da Itália, sobretudo porque seus alunos apresentam aquelas virtudes
aconselhadas insistentemente por Dom Bosco, como o trabalho e a temperança, sobretudo pelo
lado excelente da temperança que é a humildade.
O subscrito tem consigo 4 clérigos e 4 irmãos professos perpétuos e também 40 noviços. Pede,
portanto, humildemente, que Vossa Santidade conceda a essa Congregação os privilégios concedi-
dos pela Santa Sé à Congregação fundada por João Bosco, de gloriosa memória, de quem é o filho
e o imitador mais fiel.25
O padre Markiewicz colocou sua Sociedade sob o patrocínio de São Miguel Arcanjo. Foi
essa a origem da congregação masculina e feminina dos micaelitas, reconhecida por Roma
depois da morte do fundador.
Nesta aventura, somente os sentimentos do padre Rua nos dizem respeito diretamente. Nós
os conhecemos através das cartas que endereçou, em 1897 e em 1898, ao bispo de Przemysl,
dom Solecki. No dia 19 de dezembro de 1897, anunciava simplesmente a saída do padre Mar­
kiewicz da Congregação Salesiana:
Diante de sua contumácia e da persistência de suas opiniões, depois de três meses de espera pa-
ciente para que se retratasse, não nos resta outro caminho senão desligá-lo [padre Markiewicz, dos
votos e cancelá-lo da lista dos membros de nossa Congregação. No entanto, não queremos dar este
último passo sem informar previamente vossa Excelência e sem conhecer antes sua sábia opinião.
Se Vossa Excelência está de acordo conosco, a partir de agora, com a presente, colocamos o reveren-
do Markiewicz sob sua jurisdição e o tiramos da lista dos membros de nossa Congregação.26
No dia 27 de março de 1898, depois da carta do bispo, supracitada, examinada na reunião
do Capítulo Superior do dia 14, o padre Rua enviava outra carta em latim, na qual considerava
detalhadamente as principais críticas:
Agradeço-lhe de todo coração sua carta, cheia de grande humanidade e de benevolência, que tive o
prazer de receber. Não acrescentarei muita coisa sobre o sacerdote Bronislau Markiewicz que, com
sua desobediência e sua teimosia, fez-me sofrer pessoalmente e aos outros superiores. Vossa Exce-
lência sabe que criou na aldeia de Miejsce uma casa para rapazes e para meninas, o que é contra
as Regras da nossa Pia Sociedade, é muito perigosa para os bons costumes e, consequentemente,
é contra a minha vontade. Quando o visitador, padre Veronesi, por mim enviado a Miejsce, lhe
fez com espírito de caridade todas as observações e as admoestações que se impunham e lhe deu
diretivas segundo a vontade de Vossa Excelência, o padre Markiewicz, perseverando audazmente
na própria opinião, afirmou que somente ele seguia a Regra da Pia Sociedade de São Francisco de
Sales, e que todos os outros superiores tinham se desviado do antigo e bom caminho. Que audácia!
Ou melhor, que estupidez! Quando todos sabem que nem mesmo um i nunca foi mudado nas
Regras recebidas do nosso veneradíssimo Fundador. A infidelidade e a desobediência de alguns não
alteram as Regras. Antes de tudo, portanto, o caríssimo padre Markiewicz aprenda a obediência e a
humildade; constatará então que nada mudou nessas Regras. Por causa de tão grave desobediên­cia
e fuga, conforme nossas Constituições (cap. II, art. 5), o padre Markiewicz foi justamente excluído
25 Documento fornecido por Tadeusz Jania, Cracóvia.
26 Citada em Positio super vita et virtutibus, p. 83.
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da Pia Sociedade de São Francisco de Sales, coisa que confirmo com esta carta. Volta a ser, por-
tanto, simples sacerdote secular, submisso ao seu bispo, e não se beneficiará mais do privilégio dos
Regulares. Recomendo-o a Vossa Excelência, esperando que seja um excelente pároco. Mas não
permitirei nunca que usurpe, de qualquer forma, o nome dos salesianos e do nosso veneradíssimo
Dom Bosco. A isto eu me oporei com todas as minhas forças. Se tiver intenção de instituir alguma
Pia Sociedade, poderá dar-lhe o nome de Santo Estanislau Kotska ou de São João Berchmans. Mas
não nos usurpe um nome conhecido, coisa que geraria grandíssima confusão, contra o parecer do
Santo Padre Leão XIII, que se esmera, de toda forma, para levar as famílias religiosas à unidade.
Embora indigno, confio a mim mesmo e à minha pia Sociedade às poderosas orações de Vossa
Excelência.
Seu humilíssimo e devotíssimo servidor,
Miguel Rua, sacerdote,
Reitor-Mor da Pia Sociedade Salesiana. 27
Em abril de 1898, numa nova carta em latim ao bispo, escrita a pedido de seu auxiliar,
dom Weber, o padre Rua retomou toda a história do padre Markiewicz na Polônia.28 É muito
longa para ser reproduzida inteiramente. Cito somente as nove queixas contra ele. Embora a
Regra o permitisse, o padre Markiewicz tinha proibido aos salesianos que lhe foram enviados
como ajuda confiar suas queixas aos superiores. Pretendia que os salesianos tivessem dinheiro
recolhido na Polônia para uso próprio, enquanto, de fato, servia para a manutenção dos jovens
poloneses em formação nas casas de Foglizzo, Ivrea ou Lombriasco. Esta última casa era comu-
mente chamada a casa dos poloneses. “Como admirar-se de que os cooperadores poloneses,
com conhecimento de causa, nos tenham ajudado”, exclamava o padre Rua, “e que aprovem o
uso que nós fazemos do dinheiro que nos enviam!”. “Não foi possível enviar de volta à pátria
alguns desses jovens para se ocuparem da juventude, porque ainda não terminaram os estudos,
mas todos sabem que esta é a minha intenção.” Ele mesmo ajudou pessoalmente os emigrantes
poloneses na América ou na Inglaterra: “Basta isto para refutar a objeção do padre Markiewicz,
segundo quem, até agora, os salesianos não fizeram nada pela Polônia”. Terminava a carta,
claramente amargurado, com a questão, segundo ele, mais grave:
Não se surpreenda, Excelência, se eu lamento, com muita dor, o cisma provocado em nossa Socie-
dade pelo padre Markiewicz, por sua desobediência, sobretudo por sua audácia em caluniar toda
a Congregação como se houvesse traído totalmente o espírito das origens. Se verdadeiramente o
padre Markiewicz quer servir a Deus e trabalhar pela salvação das almas, independentemente dos
seus legítimos superiores, não é justo que usurpe o nome dos salesianos, que se diga filho de Dom
Bosco e que afaste de sua vocação outros padres e clérigos poloneses.
É doloroso realmente que o padre Markiewicz, com numerosas cartas, tenha exortado outros sale-
sianos a deixar a Congregação para se unir a ele. Vários rejeitaram a proposta, mas um clérigo de
nome Orlemba, depois da profissão, foi a Miejsce e, para que não se arrependesse de seu gesto, foi
nomeado por Markiewicz diretor do colégio. O clérigo Orlemba nunca foi dispensado dos votos.
Dê outro nome a sua Congregação e não se permita afastar de sua vocação padres e clérigos, e
escrever aos cooperadores para pedir dinheiro, criando muita confusão. Isto aconteceu em algumas
cartas do dia 2 de abril passado, com as quais exortava os sacerdotes a celebrar missas em seu favor
e a destinar os honorários àquela que chama a “casa de Dom Bosco”.
27 Cópia latina em FdR 4207E10-12.
28 Cópia manuscrita atribuída a abril de 1898. In: 4208A8-B3.
200
Prostrado aos pés de Vossa Excelência, recomendo-me a suas fervorosas orações, eu pessoalmente e
a Pia Sociedade na chefia da qual me encontro, apesar de minha indignidade.
O postulador da causa do padre Markiewicz me disse: “Houve uma discórdia entre dois
santos”. Certamente, visto que a Igreja, reconhecendo a heroicidade de suas virtudes, beatificou
um e outro, Miguel Rua em 1972, Bronislau Markiewicz em 2005... Mas é preciso confessar
que em 1897 e em 1898 quem sofreu demais na “batalha entre dois santos” foi certamente
nosso padre Rua. A primeira fundação salesiana em solo polonês o fez sofrer enormemente.
Ele, tão escrupuloso na imitação de Dom Bosco, ele que ia adiante seguindo fielmente as suas
pegadas. Acusá-lo publicamente de faltar à fidelidade a seu mestre, imaginar que na origem
tenha havido uma Regra mais austera, que de fato nunca existiu, e criar assim uma corrente
antagonista, e tudo isso levou a um verdadeiro cisma na Congregação: seria difícil ter-lhe en-
contrado um suplício mais refinado.
Em 1898, a nova fundação, certamente difícil, mas conseguida, da casa de Oswiecim será
como um bálsamo para o seu coração.29 Miejsce será esquecida, Oswiecim tomará o primeiro
lugar entre as obras salesianas polonesas.
29 Sobre a fundação de Oswiecim, cf. Annali II, p. 679-685.
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11.2 Page 102

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Capítulo 22
Viagem pela Península Ibérica (1899)
Seria cansativo acompanhar o padre Rua nas numerosas viagens pela Europa. É interessan-
te, de alguma forma, deter-se na viagem feita à Espanha, a Portugal e à Argélia, em 1899. Foi
tamanho o entusiasmo demonstrado a ele pelos jovens e pelas multidões de várias cidades, que
se pode lembrar daquele entusiasmo suscitado pelo próprio Dom Bosco em Paris e em Lille em
1883. Como acontecera ao mestre dezesseis anos antes, no padre Rua se percebia e se venerava
um santo vivo.1
Na Catalunha e nos Países Baixos
Chegou a Barcelona no dia 5 de fevereiro de 1899, nas primeiras horas da noite, proveniente
da França, em companhia do padre Giovanni Marenco, seu vigário geral junto às Filhas de
Maria Auxiliadora, e do padre Felipe Rinaldi, que se encontrara com ele na fronteira. Uma
multidão o esperava na estação para lhe dar as boas-vindas. Alguns jovens trabalhadores, que
frequentavam o Oratório Salesiano São José, tentaram desatrelar os cavalos da carruagem en-
viada por um cooperador, para puxá-la à mão na grande rua Las Ramblas, toda iluminada,
que atravessa a cidade, mas fizeram-nos educadamente renunciar. Nossos viajantes chegaram à
escola salesiana de Sarriá, também ela iluminada para festa. O padre Rua passou pelo meio de
400 jovens muito curiosos por vê-lo, dispostos em duas filas.
Quinze dias apenas lhe foram suficientes para visitar os cooperadores de Barcelona, fazer
conferências, apresentar sua homenagem às autoridades religiosas e civis e conceder audiência
às pessoas desejosas de se encontrarem com ele. O Oratório São José, última obra criada pela
santa cooperadora Doroteia Chopitea, lhe causou grande impressão. Recordá-lo-á em Bolonha
no dia 30 de maio seguinte:
Há poucos anos, reinava o mau costume e a irreligião até nos rapazes, que, petulantes e descarados
pelo exemplo dos adultos, insultavam e ofendiam vilmente os que passavam, de modo a provocar
frequentes intervenções da força pública. Encontrei aqueles cidadãos tranquilos e corteses, e os
1 Cf. sobre essa viagem as cartas de G. Marenco ao padre Belmonte. In: FdR 3004A12-C; faço frequente-
mente referência a elas sem citações precisas. Para a viagem pela Península ibérica, cf. “Il viagio del Ven.do
nostro Superiore Don Rua”, Bolletino Salesiano, maio de 1899, p. 120-122; junho de 1899, p. 145-147;
sobretudo, sigo de perto a narração de Ceria, Vita, p. 295-308.
202
rapazes ruidosos e alegres, mas muito respeitosos para com o sacerdote, que cumprimentam e de
quem se aproximam com grande confiança. Eles mesmos atribuem essa mudança maravilhosa ao
oratório festivo salesiano, que há poucos anos funciona regularmente no meio deles, e bendizem
aquela instituição que, instruindo e educando os filhos, age tão eficazmente também sobre os pa-
rentes e sobre toda a família.2
A propósito das primeiras 4 casas visitadas, 2 dirigidas pelos salesianos e 2 pelas Filhas
de Maria Auxiliadora, o padre Rua, no dia 15 de fevereiro, escrevia ao prefeito geral padre
Belmonte: “Aqui as coisas funcionam bastante bem. Estas casas gozam de grande simpatia”.
Dedicou dois dias a uma quinta casa, o noviciado de Sant Vicenç dels Horts, relativamente
perto da cidade. Eram os últimos dias do carnaval. Os noviços estavam fazendo os exercícios
espirituais. O padre Rua confessou, deu a boa-noite e fez o discurso de encerramento. A po-
pulação local se associou de tal forma à festa do noviciado que pareceu esquecer as mascaradas
tradicionais. Nas proximidades não se viu nenhuma máscara. O padre Rua estava satisfeito. Do
noviciado, escrevia ao prefeito geral: “Também lá parece que as coisas vão bem”. O Reitor-Mor
não desperdiçava nunca seus advérbios e pesava as palavras. Queria dizer que, apesar de alguns
defeitos e fraquezas inevitáveis, o essencial estava assegurado. As casas de Barcelona e o vizinho
noviciado agradaram-no por seu ótimo espírito salesiano.3
De volta a Sarriá, teve a agradável surpresa de participar de um congresso de ex-alunos, o
primeiro que acontecia na Espanha. “Foi um espetáculo realmente admirável, como nunca vi-
mos”, afirmará um semanário do lugar.4 Encorajados pelo padre Rua, esses jovens constituíram
uma associação permanente, destinada a reunir todos os ex-alunos da escola de Sarriá.
Na sexta-feira, 17 de fevereiro, o padre Rua chegou à casa de Gerona, onde devia benzer a
primeira pedra de uma igreja dedicada a Maria Auxiliadora. Na sua chegada, chovia a cântaros,
a chuva continuou durante toda a noite, e nada fazia prever que pararia. O povo, angustiado
por longa seca, deu graças ao céu e também ao padre Rua, cuja chegada parecia ter desencadea­
do aquela bênção. Mas a chuva colocava em agitação os salesianos, que temiam pelo êxito da
festa. O padre Rua percebeu e os tranquilizou. Sugeriu que no sábado fossem bem recitadas as
orações da manhã e da noite. Assim tudo daria certo. De fato, no domingo, 19, um sol prima-
veril permitiu a cerimônia de lançamento da primeira pedra com grande comparecimento do
povo. No dia 21 de fevereiro, deixou a Catalunha e se dirigiu para Portugal. A viagem foi mais
longa e cansativa do que havia previsto. Quatro etapas dividiram o percurso. Parou nas casas
de Bilbao, Santander, Bejar e Salamanca. Em todos os lugares o acolheram “com verdadeiro
entusiasmo, com afeto, e, estou para dizer, com devoção, não somente os irmãos e os alunos,
mas também os externos, especialmente os cooperadores”, escrevia o padre Marenco ao padre
Belmonte no dia 5 de março seguinte.5 O padre Rua foi continuamente assediado por pessoas
que pediam conselho, por jornalistas em busca de entrevistas, por doentes que imploravam
suas bênçãos. “Renovam-se os fatos de Dom Bosco, inclusive o de ver o padre Rua criticado
2 Amadei II, p. 534-535.
3 Ver a carta em FdR 3756D9-10.
4 El Sarrianes, 25 de fevereiro de 1899, citado em Ceria, Vita, p. 297.
5 Bollettino Salesiano, maio de 1899, p. 121.
203

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duramente”. O povo até pagava caro as relíquias. Como na Catalunha, vieram encontrá-lo as
autoridades, o povo e o clero. Os bispos e os jesuítas de Bilbao e de Salamanca, os esculápios de
Saragoça, que lhe deram hospitalidade, os carmelitas de Alba de Tormes, onde, para satisfazer
o desejo do bispo de Salamanca, o padre Rua foi venerar as relíquias de Santa Teresa. Todos, de
diversas maneiras, lhe manifestaram sua estima.
Em Portugal
No dia 4 de março, depois de Salamanca, o padre Rua interrompeu provisoriamente as
visitas das casas da Espanha para ir diretamente a Braga, ao norte de Portugal. A viagem reser-
vou uma desagradável surpresa a nossos três visitadores. Na entrada da estação de Quegigal, o
trem, por uma negligência do manobrista, avançou para um trilho morto onde estacionavam
alguns vagões de carga. O choque foi terrível. O padre Rua, o padre Rinaldi e o padre Marenco
foram bruscamente atirados contra os passageiros que estavam diante deles e caíram por terra,
enquanto as bagagens caíam sobre eles. O padre Rua sofreu uma leve ferida na testa e uma
hemorragia no nariz. Os outros passageiros da cabine ficaram ilesos. Em outras cabines houve
feridos mais graves e contusões. A locomotiva conseguiu ainda arrastar o comboio até à estação
seguinte, onde foi substituída.
A hora tardia da chegada a Braga não impediu aos portugueses acolherem com homenagens
o sucessor de Dom Bosco. No dia seguinte, 5 de março, dom Sebastião Leite de Vasconcelos,
grande admirador dos salesianos de Portugal, organizou no seminário a recepção em honra
do padre Rua. Um orador famoso desenvolveu toda sua eloquência para engrandecer Dom
Bosco, descrever sua obra e traçar o perfil do cooperador salesiano. O arcebispo, simpático e
muito amado por sua caridade, pronunciou um breve mas caloroso discurso. Depois, o padre
Rua, em português, agradeceu a cada um, da melhor forma que pôde. Os seminaristas esta-
vam entusiasmados. No dia 9 de março, o padre Marenco podia escrever ao padre Belmonte:
“A academia feita em Braga em honra do padre Rua foi esplêndida e coisa de muita importân-
cia na cidade”. Continuava: “Quando o senhor padre Rua partiu para Vigo, o que aconteceu na
terça-feira às 11h30, a estação estava apinhada de gente. Os mais distintos benfeitores estavam
lá para saudá-lo e agradecer-lhe pela honra concedida a Braga com sua visita. A banda da cidade
tocava, enquanto o povo prorrompia em aplausos e vivas, até o trem desaparecer. Não se deve
esquecer que na passagem entre a carruagem e o trem haviam espalhado flores”.6
A estação de Vigo estava distante 3 quilômetros da cidade. Havia alguns meninos esperando
o padre Rua. Acompanharam-no gritando com toda força “Viva o padre Rua!”, e escoltaram
sua carruagem correndo até ao oratório salesiano. Seus gritos anunciavam a chegada do su-
cessor de Dom Bosco aos cidadãos, surpresos pela manifestação. O padre Rua falará disso em
Bolonha como fizera para o Oratório San José de Barcelona. Dirá: “Numa pequena cidade
fui acolhido por uma multidão de meninos de todas as idades e de toda condição e fui acom-
panhado por esse cortejo de honra por alguns quilômetros entre gritos de alegria, e os sinais
6 Bollettino salesiano, maio de 1899, p. 122.
204
mais sinceros de estima e de afeto”. Os cooperadores e as cooperadoras o esperavam à entrada
do colégio, enquanto muita gente se amontoava no pátio. No dia seguinte, desceu ao bairro
dos pescadores, à beira do mar, onde os salesianos se abasteciam havia três anos. Essa gente
simples o esperava na igreja e queria ouvi-lo. Falou-lhes muito familiarmente, prometeu que
os salesianos cuidariam de suas necessidades espirituais e pediu publicamente aos cooperadores
que os ajudassem nessa missão. Seu desejo será realizado quando, pouco depois, os salesianos
assumirem o cuidado da paróquia local.
De Vigo, no dia 9, o padre Rua chegou a Portugal. Depois de um dia em Porto entre alguns
amigos que o receberam de braços abertos, entrou em Lisboa na manhã do dia 11 de março.
A bela capital parecia querer reservar-lhe a melhor acolhida. A imprensa, também a liberal,
tinha anunciado sua chegada. As principais autoridades e a mais elevada aristocracia não pou-
param nem gestos nem palavras para testemunhar-lhe respeito e estima. Naquele tempo e na-
quele país, as classes sociais não se misturavam. Ora, como escreverá o padre Ceria, no colégio
salesiano onde se queria aproveitar a presença do padre Rua para festejar a entrega dos prêmios
aos alunos, “viram-se mãos aristocráticas não se humilharem por entregar aos pequenos apren-
dizes as recompensas que tinham merecido” – na prática, utensílios para seu ofício.
O marquês de Liveri, “um compatriota de Dom Bosco, residente em Portugal há vários
anos”, segundo uma carta do padre Marenco do dia 14 de março, organizou um banquete
em homenagem ao padre Rua. Estavam com ele personalidades importantes, como também
os provinciais dos dominicanos, dos franciscanos, dos jesuítas, dos lazaristas e dos padres do
Espírito Santo. O padre Rua respondeu com elegância aos brindes que se sucederam, coisa
que pareceu aumentar a generosidade do marquês, muito amigo dos salesianos de Lisboa.
Trabalhavam, então, numa casa pequena e pouco adequada e esperavam, um dia, organizar
sua escola de maneira mais decente. O marquês ofereceu ao sucessor de Dom Bosco 100 mil
francos e um vasto terreno onde seus filhos poderiam construir um edifício capaz de responder
a seus projetos. Esse gesto, tornado público, encorajou outros a dar sua oferta e seu apoio aos
salesianos... Em Lisboa, o padre Rua fez uma conferência em francês, língua então compreen-
dida por muitos.
Quando compreendeu que sua visita seria agradável à Corte, para lá se dirigiu. Encontrou,
primeiro, a rainha Amélia, que o recebeu com grande amabilidade. Ela quereria que os sale-
sianos se encarregassem de um reformatório onde, dizia, os jovens entravam moleques e saíam
bandidos. “Mas – acrescentava –, visto que se trata de um instituto do governo, não vai ser
fácil. Pelo menos, com o tempo! Entretanto, desenvolvam sua obra, conservando sua liberdade.
Eu continuarei a protegê-la. Faz realmente o bem”. O padre Rua passou, depois, nos aposentos
dos dois principezinhos, seus filhos; mas não encontrou senão o menor, com o qual se entreteve
por alguns minutos; deu-lhe a bênção e lhe deu uma medalha de Maria Auxiliadora. No dia se-
guinte, foi até ao herdeiro do trono, Luís Felipe, que lhe falou de sua próxima primeira comu-
nhão. O padre Rua lhe passou ao redor do pescoço uma medalhinha de Maria Auxiliadora e lhe
deu sua bênção, que o príncipe recebeu de joelhos e com muita devoção. Finalmente, no dia 14
de março, visitou a rainha-mãe, Maria Pia de Saboia, que o acolheu com muita cordialidade.
205

11.4 Page 104

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Em Pinheiro de Cima, localidade não distante da capital, os noviços esperavam febrilmente
o Reitor-Mor, que, por outro lado, queria contentá-los. Para lá se dirigiu no dia 16 de março
e recebeu a profissão de 2 clérigos portugueses. No dia seguinte, de manhã, deixou Lisboa.
Amigos e admiradores se encontraram na estação para lhe renovar o testemunho de seu afeto.
O padre Rua disse ao diretor: “Acredite, deixo em Lisboa uma parte de meu coração!”. No dia
seguinte, o diretor, enviando-lhe o projeto do ato de doação do terreno por parte do marquês
de Liveri, lhe escrevia: “Nossos jovens não se conformam com sua partida”. Um deles, muito
tocado por aquilo que vira e ouvira, pedia para se tornar salesiano, até missionário. O Correo de
Andalucia, que anunciava o próximo retorno do padre Rua à Espanha, escreveu: “O padre Rua
comove as cidades que visita e os traços de sua passagem não serão apagados tão cedo”.
Na Andaluzia
De Lisboa, o padre Rua se dirigiu diretamente para Sevilha, ponto de partida para suas
visitas às casas salesianas da Andaluzia.
A acolhida em Sevilha foi sensacional. Logo que desceu do trem, cooperadores e cooperado-
ras se aglomeraram em torno dele. O santo arcebispo dom Marcelo Spínola e Maestre – a quem
se deve o pequeno livro Don Bosco y su obra, publicado em Barcelona, em 1884 – o saudou
por primeiro. No largo da estação, no meio de uma multidão que o aplaudia, havia uma fila
de carruagens esperando. O arcebispo fez subir o padre Rua na sua. Uma multidão, sobretudo
de trabalhadores, esperava perto do instituto salesiano. Ao se aproximar a carruagem episcopal,
elevou-se um clamor misto de disparos e de raios luminosos, que cobria o canto da multidão
de jovens acompanhados pela banda musical. O padre Rua, quase levado pelas pessoas, se
dirigiu para a grande igreja, que bem depressa ficou repleta. Os alunos puderam finalmente
fazer-se ouvir e cantar um Te Deum entoado solenemente do altar. Seguiram-se as saudações
no pátio: um breve mas brilhante discurso de um professor universitário, as palavras afetuosas
do arcebispo e uma resposta comovida do padre Rua num bom castelhano. Depois, precisou
sofrer todas as dificuldades do mundo para se libertar, tanto era atirado por todo lado. Depois
que entrou no quarto, percebeu que lhe haviam cortado a pobre veste. Lamentou-se com o
diretor, padre Pedro Ricaldone, e lhe pediu que interviesse para que não se repetisse mais um
ato semelhante. O padre Ricaldone prometeu, mas para tranquilizá-lo lhe fez notar com uma
pitada de humorismo: “Fique tranquilo, amanhã terá outra veste. Permita-me dizer que a mim
nunca me cortaram o hábito”. O padre Rua sorriu. Nos dias seguintes, as famílias mais aqui-
nhoadas mandaram para a escola toalhas, serviços de mesa, roupa de cama, cobertas, tapetes,
alfaias, com a esperança de que se servisse delas pelo menos uma vez, para, depois, conservar
esses objetos como relíquias.
A série das visitas durou dois dias. No dia 19 de março, o padre Rua quis tomar parte, com
os aprendizes, na festa de São José. Depois, dirigiu-se às Filhas de Maria Auxiliadora para ver
uma casa salesiana aberta recentemente, dedicada a São Benedito de Calatrava. No dia 21 de
março interrompeu sua estadia em Sevilha para se dirigir, primeiro, ao colégio de Carmona,
depois a Valverde do Caminho para visitar as Filhas de Maria Auxiliadora. Depois, visitou
os salesianos e as irmãs de Ecija, na nova casa de Montilla, no instituto de Utrera e na escola
206
dirigida pelas irmãs em Jerez de La Frontera, todas cidades pequenas da província de Sevilha.
Em Ecija, enquanto o trem entrava na estação, os sinos da cidade repicaram. Nenhum notável
deixou de apresentar suas homenagens. E no dia seguinte uma manifestação de entusiasmo
popular saudou a partida do “santo”. No dia 25 de março, em Utrera, a primeira casa salesiana
fundada na Espanha, a cidade o acolheu, se dizia, com o mesmo aparato de um rei ou de um
membro da família real. O padre Rua cantou a missa de Ramos, depois acompanhou os jovens
nos exercícios espirituais nos primeiros três dias da Semana Santa, confessou-os, falou-lhes na
boa-noite e na pregação de encerramento. No dia 30 de março, Quinta-feira Santa, estava de
volta a Sevilha, em tempo de presidir, à tarde, a cerimônia do lava-pés.
Na Sexta-feira Santa, ficou profundamente impressionado, como escreveu o padre Rinaldi,
assistindo com devoção à procissão tradicional da “morte de Cristo”. As pessoas não paravam
de admirá-lo, tanto estava imerso em profundo recolhimento. Na tarde do Sábado Santo, con-
clusão da Quaresma, os jovens do Círculo Católico do Oratório São Benedito vieram buscá-lo.
E os oratorianos não o deixaram um instante. Antes de tudo, houve uma academia com discur-
sos, cantos e música. Depois o fizeram assistir a uma representação dramática, obra do padre
Pedro Ricaldone. O padre Rua, ardoroso defensor dos oratórios, se prestava a tudo com uma
serenidade que Ceria define sobre-humana. Quando tudo terminou, passou pela Igreja, onde
os papais e as mamães o esperavam para que lhes abençoasse as crianças. Cantos andaluzes sob
o belo céu de Sevilha tornaram alegre aquela tarde, concluída tarde da noite com magníficos
fogos de artifício.
Para a segunda-feira de Páscoa, estava prevista uma manifestação como conclusão dos dias
de Sevilha. Realizou-se num belo salão do palácio episcopal. Nela tomaram parte todas as
autoridades, a aristocracia, os cidadãos mais notáveis. No fim, o padre Rua agradeceu em caste-
lhano, depois pediu ao arcebispo que abençoasse em sua “humilde pessoa” a Congregação Sale-
siana e todos os presentes. O arcebispo quis dizer antes algumas palavras, primeiro dirigindo-se
ao padre Rua, depois aos cidadãos de Sevilha. Ao padre Rua disse: “Volte para casa contente e
satisfeito. Seus filhos salesianos fazem grande bem e a cidade os conhece e estima”. Depois, vol-
tando-se aos cidadãos, acrescentou: “Vocês são um povo que sabe valorizar os benefícios, que
reconhece os serviços prestados, que distingue o mérito onde ele existe, que aplaude e honra
aquele que compreende e responde às necessidades dos tempos atuais. Um povo que possui tais
recursos é um grande povo capaz de se regenerar”. A cena que se seguiu produziu uma emoção
indescritível. O arcebispo protestou que não podia aceitar o convite do padre Rua para abençoá-
-lo. Ele mesmo queria ter a honra de receber, junto com todos, a bênção do sucessor de Dom
Bosco. O padre Rua tentou antecipar-se ajoelhando-se, mas o arcebispo o obrigou gentilmente
a se levantar e a dar sua bênção a ele e a todos os presentes. Pôs-se então de joelhos. Houve um
instante de espanto no silêncio da sala. As testemunhas afirmaram que quando o padre Rua
pronunciou as palavras da bênção conseguia-se perceber, na voz, as palpitações de seu coração.
Em Sevilha e nos arredores, o padre Rua encorajou os salesianos, conversou com os alunos
internos, dirigiu-se a uns e a outros nas exortações da boa-noite, confessou toda a manhã e se
interessou especialmente pelo oratório festivo. No Congresso de Bolonha, no dia 30 de maio
seguinte, falará longamente, depois dos benéficos resultados do oratório de Barcelona, daqueles
obtidos “numa localidade próxima a Sevilha”:
207

11.5 Page 105

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Os meninos da cidade estavam divididos em duas facções, entre as quais havia frequentes lutas
com tiros de fundas que todos sabiam manejar com grande destreza. Muitas vezes os guardas da
segurança pública se interpuseram, mas com pouco ou nenhum êxito. Ao contrário, os moleques
conseguiam, algumas vezes, fazê-los recuar, unindo-se todos juntos contra eles; e, no entanto,
continuavam as cenas selvagens e nem sempre incruentas a perturbar aquela cidade. Foi então que
se sentiu a necessidade de alguém que educasse aquela juventude abandonada. Surgiu o oratório
festivo, para onde foram todos aqueles moleques, atraídos pelos jogos e divertimentos, e, depois de
poucos meses, sofreram seu influxo benéfico. Como troféu da vitória que a educação religiosa tinha
trazido sobre aqueles caracteres indomáveis e selvagens foram penduradas em torno da imagem
de Maria, colocada na capela do oratório, 300 fundas, das quais se desarmaram espontaneamente
aqueles pequenos convertidos, terminando, por amor de Nossa Senhora, aquele triste e perigoso
jogo. E esta me parece realmente uma bela página da história dos oratórios festivos.7
No dia 4 de abril, de manhã, o padre Rua disse adeus a Sevilha entre as demonstrações de
afeto que se pode imaginar. Tinha prometido fazer uma conferência em Mura para os coo-
peradores. Já estivera lá durante a semana santa, mas não pôde falar em público. Voltou para
dedicar todo seu tempo àqueles amigos especialmente afeiçoados aos salesianos.
Depois passou para Málaga. Também lá os salesianos eram admirados por todos, por sua
abnegação a serviço da juventude. O oratório transbordava de meninos. Entre os dias 7 e 12
de abril, o padre Rua visitou tudo e tomou conhecimento de todos. Os cooperadores tinham
preparado em sua homenagem uma recepção solene. Foi presidida pelo bispo. Reuniu quase
800 pessoas, “a nata da cidade”, como escreve o padre Ceria. E quando, na noite do dia 12
de abril, embarcou para Almeria, uma grande multidão afluiu ao porto. Quando levantou a
âncora e o padre Rua se fez ver na ponte, o povo, como se fosse um só homem, se pôs de joe­
lhos, pedindo em alta voz uma última bênção. Abençoou-os e, enquanto todos o saudavam,
respondeu agitando os braços.
Chegou a Almeria na manhã do dia 13 de abril. De lá devia embarcar para Orã. Embora
não houvesse casas salesianas nem muitos cooperadores, foi-lhe reservada uma acolhida solene
pela população local: clero e leigos. O comandante do porto o levou em sua barca. Umas vinte
carruagens o escoltaram até ao palácio de um rico cooperador. Mas uma improvisa borrasca
o obrigou a atrasar a partida para Orã. O padre Rua estava tão cansado que o padre Marenco
lhe propôs renunciar à viagem à África. Ele não queria desiludir aqueles que lá o esperavam.
Esperava-se um sinal do céu. Passando perto do porto, lançou no mar uma medalha de Maria
Auxiliadora: “Se de agora até amanhã o vento se acalmar, partirei”. No dia seguinte de manhã,
o mar parecia ter se acalmado, e embarcou. Mas era uma ilusão: a travessia na Argélia foi tão
difícil que para chegar a Orã o navio, em vez de oito horas, empregou dezenove.
De Málaga, o padre Marenco, que não era muito sentimental, escrevera ao padre Belmonte
resumindo suas impressões sobre a viagem ibérica do padre Rua:
Estamos, portanto, para deixar esta terra espanhola, onde ainda hoje vive a fé operosa em muitos
corações e onde o senhor padre Rua teve tais provas de afeto e de veneração que nunca [vi] maio-
res. A viagem do Superior foi um verdadeiro triunfo ininterrupto. Em certos momentos, como
7 Citado por Amadei II, p. 535.
208
em Carmona, em Ecija, em Montilla, eu dificilmente acreditava naquilo que estava vendo; e, em
meio a esse entusiasmo extraordinário de povos e de cidades inteiras, ia pensando comigo mesmo:
Quanto é grande o nome de Dom Bosco no meio das pessoas!8
As casas da África
O padre Rua passou somente quatro dias na África, mais exatamente na Argélia.9 Espe-
ravam-no para o dia 15 de abril. Acompanhado do padre Marenco, desembarcou em Orã
somente no domingo, 16, às 6 horas, depois de uma noite extenuante. Mas reagiu com sua
habitual coragem. São Luís, a obra colocada no centro da cidade, esperava ter a primícia de
sua visita. No entanto, as circunstâncias (um atraso imprevisto) fizeram que o Oratório Jesus
Adolescente, situado nas alturas de Eckmühl, tivesse a prioridade.
Aquele era o dia das primeiras comunhões, que, segundo o costume francês, tinha grande
importância no Oratório. O padre Rua celebrou a missa às 8h30, e, como diz a crônica um
pouco sentimental do Bulletin Salésien, antes da comunhão dirigiu aos meninos “o discurso
mais simples e mais apropriado à sua idade e à circunstância. Seus lábios pareciam destilar fé,
piedade, amor”. A casa lhe deu as boas-vindas numa sala enfeitada com guirlandas. Uma das
inscrições deve ter agradado especialmente ao padre Rua. Nas folhas de um imenso livro en-
treaberto, podia-se ler um verso tirado do Eclesiastes (30,5): “Mortuus est pater... et quasi non
est mortuus, similem enim reliquit sibi post se”, que poderíamos interpretar assim: “Nosso pai
Dom Bosco morreu, no entanto, por assim dizer, não está morto, pois deixou a si mesmo no
padre Rua”. A alegria do padre Rua foi especialmente grande quando lhe foram apresentados
os primeiros 4 salesianos da Argélia.
As mesas tinham sido preparadas ao ar livre para o banquete, que conseguiu reunir toda a
família Orãense: alunos, ex-alunos, familiares e irmãos das duas casas de Orã. A chuva per-
turbou um pouco as atividades da tarde. Então, todos se amontoaram na capela rural Mater
Admirabilis para cantar algum louvor e as ladainhas, e ouvir o padre Rua “com respeitosa fami-
liaridade”. A oração da noite, com os jovens ajoelhados ao redor do padre Rua, como conta a
crônica, “com a boa-noite pronunciada por seus lábios e colhida como uma relíquia, terminou
aquele dia que alguns de nossos rapazes chamaram de o mais belo de sua juventude, feito todo
de piedade, de alegria, de intimidade salesiana”.
O segundo dia africano foi dedicado às visitas na cidade. Inspecionou com cuidado a casa
de Eckmühl, que o hospedava. Depois se dirigiu à rua Ménerville, ao Oratório São Luís, que
lhe recordava as tratativas de 1890-1891 com o bispo, dom Soubrier. Todo o edifício estava
enfeitado em sua homenagem. Admirou suas decorações. Mas podemos acreditar no cronista
quando escreve: “O mais belo ornamento da casa foi, aos seus olhos, a multidão de meninos
8 Carta de G. Marenco para D. Belmonte. 11 de abril de 1899, Bollettino Salesiano, junho de 1899, p. 145.
9 Sobre essa viagem, cf. o artigo, provavelmente redigido por Charles Bellamy, “Première visite de Don
Rua aux Missions d’Afrique”, Bulletin Salésien, julho de 1899, p. 175-180. As citações são todas tiradas
desse artigo.
209

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que se apinhavam e que, com seus ‘vivas’, seus cantos e seus cumprimentos, lhe manifestavam
um caloroso afeto”. O padre Rua quis visitar o novo bispo, Edouard-Adolphe Cantel, e seu
predecessor, dom Géraud-Marie Soubrier, com quem havia conduzido o negócio para o edi-
fício destinado aos salesianos na cidade. Dom Cantel gostaria de ver os salesianos “empreen-
derem em Orã obras de ensino e de zelo em favor da classe rica”. O padre Rua, recordando-se
provavelmente do negócio de Valsalice, acontecido com Dom Bosco, prometeu refletir sobre
o assunto.
A terça-feira, 17 de abril, foi reservada aos cooperadores salesianos. Ele dava muita im-
portância à sua Pia União e “desejava vivamente fazer seu reconhecimento”. Para evitar des-
locamentos muito longos, tinha sido decidido que haveria dois encontros: um de manhã, no
Oratório São Luís, e outro à tarde, em Eckmühl. O bispo, dom Cantel, presidiu a conferência
da manhã. Segundo o cronista, o padre Rua falou “de Dom Bosco, o instrumento dócil da
Providência, o filho privilegiado da Virgem Auxiliadora, e o fez com uma modéstia no porte
e uma simplicidade de palavra que encantaram cada um e deram a todos a ilusão de ouvir o
próprio Dom Bosco contar sua vida”. Esta foi, em todo caso, a impressão do bispo que, em sua
intervenção, se alegrou e se congratulou com a assembleia por ter visto e ouvido no padre Rua
outro Dom Bosco, um verdadeiro filho cheio do espírito do seu venerado Pai e tornado, por
assim dizer, sua encarnação”. Em Eckmühl a reunião dos cooperadores teve caráter recreativo e
foi representada a tragédia O afilhado de São Luís, felizmente entremeada com intervalos cômi-
cos. No fim, o padre Rua se colocou à disposição dos cooperadores, que partiram, alguns com
um conselho, alguns com uma medalha, alguns com uma bênção.
O dia de quarta-feira foi reservado às irmãs salesianas de Mers-el-Kébir. No bairro de Saint
André ocupavam uma casa bem espaçosa, da qual haviam apenas reformado duas magníficas
salas por vez, transformadas em capela. O encarregado municipal dos fogos anunciou “com
fragorosas e numerosas detonações a chegada do sucessor de Dom Bosco”. O padre Rua, “es-
crupuloso observador dos ritos sagrados, abençoou canonicamente a capela, dedicada a Maria
Auxiliadora”. Depois celebrou nela uma missa acompanhada pelos cantos do coral da escola.
Naquela manhã, recebeu também a profissão de uma jovem religiosa recebida no Instituto das
Filhas de Maria Auxiliadora. No almoço, o prefeito de Mers-el-Kébir, indisposto, se fizera re-
presentar pelo seu primeiro adjunto. O padre Rua agradeceu-o “pela confiança e pelas cortesias
com as quais a municipalidade honra as irmãs de Maria Auxiliadora”. À tarde, diz a crônica,
ao rumor dos tiros disparados pela artilharia, repetidos com notável precisão em cada um dos
encontros principais do dia, e que duplicaram então de intensidade, o padre Rua saudou as dignas
irmãs, suas crianças, o bravo povo de Mers-el-Kébir, sobretudo o senhor pároco, agradecendo-os
todos pela acolhida, da qual conservaria uma lembrança duradoura, tanto mais que não se esperava
encontrar em terras da África tal manifestação de afeto.
Voltou para Eckmühl, onde a casa se preparava para fazer, no dia seguinte, o exercício da
boa morte. Colocou-se, portanto, à disposição dos jovens, recebendo-os em confissão. Partiu
para Orã no dia 20 de abril. A missa que celebrou de manhã foi cantada “em música palestri-
niana” para “satisfazer um desejo expresso várias vezes”. No fim da tarde, alunos e irmãos foram
correndo para o porto, onde o navio Abd-el-Kader esperava o padre Rua e o padre Marenco
para levá-los a Marselha. A separação não foi sem lágrimas. Dois dias depois, os Orãenses re-
210
cebiam um telegrama: “Viagem boa. O padre Rua saúda afetuosamente caro diretor, irmãos,
benfeitores, jovens da Argélia. Compartilha os mesmos sentimentos. Marenco”. Mais tarde,
chegava um bilhete escrito pessoalmente pelo padre Rua: “Porto de Marselha, 22 de abril de
1899. – Tenho ainda o espírito cheio da lembrança de Orã, dos nossos caros irmãos, dos nos-
sos caros jovens etc. etc. Que o Senhor os abençoe a todos! Graças a Deus a travessia foi boa,
desembarcaremos daqui a pouco. Saúdem cordialmente irmãos, jovens e ex-alunos, em nome
de seu afeiçoadíssimo em Jesus e Maria. Miguel Rua, sacerdote”.
O périplo ibérico que levara o padre Rua à Catalunha, aos países bascos, a Portugal, à
Andaluzia, para passar depois pela Argélia, se concluía com a entrada no porto de Marselha.
A passagem tinha despertado por toda parte entre as populações sentimentos evidentes de
afeto e de veneração. Muitos reencontravam nele Dom Bosco, o mestre que ele se esforçava
por imitar. O bispo de Orã tinha até falado de sua “reencarnação” no padre Rua. Nada podia
comovê-lo mais que isso.
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Capítulo 23
Os Capítulos Gerais dos primeiros dez anos
Os Capítulos Gerais no reitorado do padre Rua
O Capítulo Geral representa sempre para uma congregação, portanto para seu superior
geral, um fato de grande importância. É um encontro fecundo entre as personalidades mais
relevantes do instituto, que discutem e tomam decisões de interesse comum para a conservação
ou a consolidação da instituição. Na origem da Congregação Salesiana, os Capítulos Gerais
eram trienais. Durante os primeiros dez anos do seu reitorado, o padre Rua convocou quatro
Capítulos Gerais (1889, 1892, 1895, 1898). Depois, nos doze anos que se seguiram até à sua
morte, foram celebrados somente dois (1901, 1904).
As quatro assembleias da primeira década reuniam normalmente os membros do Capítu-
lo Superior, os inspetores, todos os diretores das casas, o mestre dos noviços e o procurador
geral de Roma.1 A distância obrigava a adotar medidas especiais para os centros americanos.
Assim, em 1889, depois de ter decidido que interviriam no Capítulo somente os inspetores
americanos ou seus delegados, mais um diretor de cada inspetoria, escolhido pelo inspetor de
acordo com o Reitor-Mor, viu-se chegar a Turim somente o inspetor Tiago Costamagna e os
dois diretores e párocos Stefano Bourlot e Domenico Albanello. Os Capítulos, sempre breves,
eram realizados em Valsalice, perto do túmulo de Dom Bosco. As propostas e as intervenções
do padre Rua, na qualidade de Reitor-Mor, eram cuidadosamente registradas pelos secretários
durante as sessões.
O quinto Capítulo Geral (1889)
O quinto Capítulo Geral da Sociedade Salesiana foi inaugurado na tarde da segunda-feira,
2 de setembro de 1889, e concluído na manhã do sábado, 7. Os capitulares eram 42. Desde
o início, primeiro na capela, depois no momento da reunião de abertura, o padre Rua comu-
nicou aos participantes o sentido que pretendia dar à assembleia. O Capítulo, dizia, visava ao
progresso de cada casa, à manutenção do verdadeiro espírito na Congregação e ao bem das
1 Para esses Capítulos Gerais, baseio-me nas diversas atas das assembleias em FdR 4005D12-4035C10,
e nos relatos contidos em Annali II, p. 37-47, p. 238-249, p. 445-460, p. 732-742, procurando destacar
as intervenções próprias do padre Rua.
212
almas a ela confiadas. Era preciso, portanto, rezar por seu bom êxito. O grande problema do
momento era manter a plena conformidade com as ideias e com as intenções de Dom Bosco.
O padre Rua temia qualquer forma de desvio. Assim se manifestou na sessão de abertura:
Um pensamento me entristece, falta Dom Bosco [...]. Porém, consolemo-nos, estamos perto de
seus despojos, e, como as relíquias dos santos são fonte de bênção, assim serão para nós os despojos
de Dom Bosco; mas não somente os despojos, como também seu espírito nos guiará e nos obterá
luzes nas deliberações das várias comissões e sessões... Rezemos, mas conformemo-nos especial-
mente a seus sentimentos. Indaguemos bem quais eram os seus pensamentos, pois se vê como foi
guiado por Deus nas suas iniciativas... Ele pretendia sempre, em tudo, [trabalhar para] a glória
de Deus e o bem das almas. Recomendei ao oratório que rezasse e fizesse rezar, mas o recomendo
especialmente a vocês, a fim de que nenhuma paixão escureça o intelecto, e somente esteja em mira
o bem da juventude e das almas. Coloquemo-nos sob a intercessão de Maria Santíssima como sede
da Sabedoria, de São Francisco de Sales para que obtenha que tudo façamos com o seu espírito.
Com essas ajudas e a de Dom Bosco, tudo sairá bem. Tenhamos confiança nisso, e todas nossas
deliberações servirão para o bem da Igreja, da sociedade civil e para a maior glória de Deus.2
No dia 3 de setembro, no fim da sessão dedicada aos estudos dos clérigos, problema sobre o
qual falamos por alto (cap. 15), o padre Rua sentiu a necessidade de dar uma lição aos diretores
reunidos, afirmando que devem ser como faróis para seus jovens irmãos. No dia 4 de setembro,
interveio ainda sobre o estilo de comportamento do diretor: quando pecisar repreender um ir-
mão, mantenha a calma; sobretudo evite expressões inconvenientes, como se verificou às vezes,
pois o interessado se recordará delas por toda a vida. Encontramos nessas advertências o padre
Rua inspetor das casas filiadas no ano 1870.
Durante a terceira sessão, quando o Capítulo discutia sobre as férias dos aspirantes, dos
noviços e dos irmãos, tomou a palavra para recordar como Dom Bosco recomendava sempre
ocupar utilmente os irmãos durante as férias, como ele mesmo fizera como clérigo e com os
jovens dos primeiros tempos. Foi então levantada a questão da oportunidade de os aspirantes
participarem nos exercícios espirituais com os salesianos durante as férias, depois da Assunção.
A esse propósito, o padre Rua observou: “Neste ano mesmo, de 54 jovens do oratório [que
tomaram parte nesses exercícios espirituais] somente 4 ou 5 passaram para o século, outros para
o seminário e uns 42 para a Congregação. Foram os exercícios que fizeram que decidissem bem.
Se tivessem ido primeiro para casa, quantos talvez teriam voltado?”.3 Seu parecer foi aprovado:
os aspirantes não iriam logo para as férias com a família, mas participariam com os salesianos
dos exercícios espirituais de verão.
No dia 5 de setembro, de manhã, o padre Rua retomou o discurso aos diretores, insistindo
sobre alguns pontos decisivos: os dependentes devem ser tratados como irmãos, confiando-lhes
tarefas proporcionais às forças de cada um. Proíbam-se o uso dos meios violentos e, mais ainda,
as afetividades com os jovens e as carícias. Sejam cuidados com muita caridade os coadjutores
e os familiares, não os considerando nunca como domésticos. Haja interesse não somente pela
instrução dos jovens, mas também pela sua saúde física e espiritual. Finalmente, o diretor deve
2 Relazione del quinto Capitolo Generale in Valsalice. In: FdR 4014B4-5.
3 Relazione del quinto Capitolo Generale in Valsalice. In: FdR 4014C8.
213

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se empenhar pessoalmente para cultivar as vocações, ensinando aos jovens o modo de se con-
fessar bem: “Dom Bosco dedicava a isso muito tempo, imitemo-lo”. O padre Rua tinha sempre
presente o magistério e o exemplo de Dom Bosco.
O sexto Capítulo Geral (1892)
O sexto Capítulo Geral aconteceu em Valsalice de 29 de agosto a 7 de setembro de 1892.
Na carta de convocação de 12 de março, o padre Rua confiava ao Capítulo a tarefa de estudar
os meios melhores para garantir a consolidação e o desenvolvimento da Sociedade Salesiana,
como também o proveito espiritual e científico dos seus membros. Desta vez o Capítulo foi
realmente “geral”! Foram convidados todos os diretores das casas, também os das comunidades
menores. Talvez justamente por isso durante o Capítulo será colocada a questão sobre a opor-
tunidade de sua participação. O moderador designado, padre Francisco Cerruti, comunicou:
“O Reitor-Mor remeteu para o próximo Capítulo Geral a resposta a esta questão e decidiu que,
por este ano, nos conformaremos com a tradição dos anos anteriores, isto é, que os diretores
dessas casas tomarão parte no Capítulo Geral, como na eleição do Capítulo Superior, mas estão
dispensados de trazer consigo um irmão professo”. No dia da abertura os capitulares eram 69.
Eram submetidos ao exame do Capítulo sete esquemas, que enumeramos aqui: 1) Estudos
teológicos. 2) Rever e coordenar num só volume as deliberações dos vários Capítulos Gerais.
3) Um manual único das práticas de piedade para os salesianos e para os jovens, e normas para
compilá-lo. 4) Regulamento para as casas dos inscritos (noviços) e para os estudantados dos
clérigos. 5) Regulamento para o provedor inspetorial e para o chefe na direção das oficinas.
6) Estudo da encíclica Rerum Novarum, do Santo Padre, sobre a questão operária e o modo
de fazer sua aplicação prática nos nossos internatos e oratórios. 7) Propostas várias dos irmãos.
O programa previa que os trabalhos fossem interrompidos na quarta-feira, 31 de agosto, para
a eleição dos membros do Capítulo Superior.
Na cerimônia introdutória, que se realizou na capela de Valsalice, o padre Rua falou aos ca-
pitulares. Fez notar que pela primeira vez na ausência de Dom Bosco se celebrava um Capítulo
com eleição dos superiores, “mas sua lembrança está de tal modo viva entre nós que podemos
realmente considerá-lo presente”. Disse que a obra salesiana tivera considerável expansão nos
últimos seis anos: entre 1886 e 1892, o número dos irmãos e o das casas tinha mais que dupli-
cado. Via-se claramente a mão de Dom Bosco, que em dezembro de 1887, alguns dias antes
da última doença, dissera a um grupo de cooperadores: “Rezem para que eu possa ter uma boa
morte. De fato, no paraíso poderei fazer por meus filhos e por meus pobres meninos muito
mais do que posso fazer na terra”.
Na tarde do dia 30 de agosto, dia consagrado ao trabalho em comissão, antes da bênção
com o Santíssimo Sacramento, o padre Rua quis responder a algumas críticas que circulavam.
Naquele tempo, a distribuição do pessoal nas casas da Congregação era estabelecida pelos su-
periores maiores, na realidade pelo padre Cerruti, conselheiro escolar geral. Havia quem pen-
sasse que o Capítulo Superior aceitava muito facilmente a proposta de novas obras e assim se
encontrasse na impossibilidade de enviar o pessoal necessário para as casas existentes. O padre
214
Rua fez notar que os superiores maiores resistiam energicamente aos pedidos, exceto quando
as autoridades romanas intervinham obrigando-os. Segundo outros, o pessoal designado não
respondia sempre às necessidades locais: certamente, respondeu o padre Rua, o Capítulo não
podia ter presentes exatamente as diversas situações.4 Finalmente, alguém se interrogava sobre
a formação dada aos clérigos. O padre Rua afirmou que a formação era correta, mas, dadas as
inevitáveis carências individuais, cabia às casas colocar o remédio ajudando os jovens irmãos.
No dia 1º de setembro, diante do problema de reunir todas as deliberações dos capítulos
num único volume, os capitulares julgaram mais sábio pedir ao Reitor-Mor que constituísse
uma comissão que se encarregasse do assunto. No dia 2 de setembro, a reflexão sobre o manual
de piedade dos jovens e dos irmãos levou os capitulares a pedir que se mantivesse o latim nas
orações comuns: Pater, Ave, Credo, Agnus Dei, Angelus. O padre Rua aproveitou a ocasião para
fazer a apologia daquela língua:
Como os déspotas visam abolir a língua própria de um povo para reduzi-lo à servidão, assim os
inimigos da fé católica quereriam abolido o latim para romper a unidade da Igreja. Por isso, deve-se
insistir em nossa obra, mesmo contrastando com o costume inveterado, insinuando o mais possível
o latim como é praticado na Liturgia da Igreja romana.5
O Vaticano II seria inaugurado somente sessenta anos depois: talvez algumas de suas deci-
sões tivessem entristecido nosso padre Rua.
Naquele dia, enquanto se deliberava sobre o regulamento do ecônomo inspetorial e sobre
o do responsável pela direção das oficinas nas escolas profissionais, o padre Rua encontrou um
modo de fazer algumas recomendações inspirando-se nas Lembranças confidenciais:
Recomenda-se aos diretores que conheçam bem seu pessoal, chamando a si os indivíduos à parte,
lendo juntos a parte do regulamento que lhes cabe e dando assim conselhos oportunos. Em segun-
do lugar, se recomenda aos diretores que empreguem toda solicitude para bem conhecer as relações
morais entre os assistentes e mestres entre si e com os alunos e entre os próprios alunos. Em terceiro
lugar, recomenda-se que no rendiconto, com o regulamento em mão, interroguem os subalternos e
conheçam as dificuldades que esses encontram nas suas oficinas. Finalmente, recomenda-se incul-
car constantemente a devoção a Maria Santíssima e ao Santíssimo Sacramento, que são duas fontes
inesgotáveis de graças.6
No dia 3 de setembro, introduzindo a assembleia geral, o padre Rua falou amplamente
sobre as vocações e sobre o modo de cultivá-las. É preciso, disse entre outras coisas, armar os jo-
vens contra o espírito do mundo, que, através de jornais, livros maus e más companhias, sufoca
as vocações nascentes. Quando se apresentar a ocasião, recomende-se o cuidado das vocações
aos párocos e aos padres da paróquia. Tenha-se muita atenção no empenho do jovem para con-
servar a virtude da pureza: poder-se-ia transigir facilmente sobre capacidades intelectuais, mas
não neste âmbito. O trabalho e o exemplo dos salesianos são os meios mais eficazes para atrair
os jovens e levá-los a abraçar o estado religioso ou eclesiástico. Passou-se, depois, para a questão
4 Nós consideramos, de nossa parte, que era hora de confiar essa tarefa aos inspetores.
5 Sesto Capitolo Generale - Agosto-Settembre 1892. In: FdR 4019E11-12.
6 Sesto Capitolo Generale - Agosto-Settembre 1892. In: FdR 4020A1.
215

11.9 Page 109

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das férias, período que o padre Rua, como já Dom Bosco, olhava com desconfiança. Se não
podemos abolir as férias de verão, disse, procuremos pelo menos diminuí-las. O diretor mostre
muita paciência e doçura para com as vocações nascentes, se recomende às suas orações, garanta
que reza por elas. No fim do ginásio aconselhe os alunos a preferir o estado de vida que dará
mais consolação na hora da morte. Mas desaconselhe o jovem de escolher o estado eclesiástico
unicamente pelo bem de sua família ou por meros interesses econômicos...
No mesmo dia, a discussão sobre o regulamento dos noviciados (na época se preferia falar
de “casas para os inscritos”) e dos estudantados levou o Reitor-Mor a dar algumas indicações.
Convinha identificar logo, nas casas, eventuais candidatos aptos a se tornar salesianos clérigos
ou coadjutores, aos quais se devia fazer pelo menos duas conferências mensais. Nestas conviria
partir do manual de piedade em uso, O jovem instruído, para ensinar como se comportar como
bons cristãos, mas sem nunca falar de votos ou de Congregação. Depois virá o noviciado, que
como uma peneira separa o joio do grão bom. A Congregação Salesiana não é feita para aqueles
que já experimentaram uma vida mundana. “Nós precisamos de sócios seguros, que venham
até nós com o fim de atingir a perfeição cristã.”7 Consequentemente, o mestre dos noviços
admita aos votos e os diretores apresentem para as ordenações somente sujeitos de moralidade
perfeitamente garantida.
O padre Rua concluiu a assembleia geral do dia 5 de setembro com uma exortação sobre a
humildade coletiva:
Nós devemos agradecer ao Senhor, que continuou a abençoar nossa Congregação de modo a não
deixá-la encalhada: tanto que se pode dizer que nihil habentes..., não nos falta nada.8 Com tudo
isso, importa-nos conservar-nos humildes e pequenos, e, em relação às outras congregações, consi-
derarmo-nos os últimos. Não sejam nunca censurados, antes, sejamos reconhecidos a eles, porque
todas de alguma forma concorreram para dar-nos ajuda em toda parte na Europa e na América.
Por isso, não devem nunca ser censuradas e muito menos desprezadas. Tudo nos pode fazer bem e
salvar-nos de muitos aborrecimentos.9
No dia 6 de setembro, na sessão de encerramento, o padre Rua deixou aos capitulares
três tarefas que o secretário transmitiu sinteticamente, isto é: “1º Promover a Pia União dos
Cooperadores Salesianos. 2º Fazer conhecer e difundir as Leituras Católicas. 3º Fazer conhecer
e difundir a Associação do Sagrado Coração de Jesus”.10
Os resultados desse sexto Capítulo Geral serão comunicados aos irmãos na carta circular do
dia 11 de novembro de 1892.11
7 Sesto Capitolo Generale - Agosto-Settembre 1892. In: FdR 4019E12-4020A1.
8 Adaptação de 2Cor 6,10: “Tamquam nihil habentes et omnia possidentes”.
9 Sesto Capitolo Generale - Agosto-Settembre 1892. In: FdR 4020B5-6.
10 Sesto Capitolo Generale - Agosto-Settembre 1892. In: FdR 4020B7-8.
11 “Relação do sexto Capítulo Geral e das novas Inspetorias”. In: L. C., p. 85-92.
216
O sétimo Capítulo Geral (1895)
O sétimo Capítulo Geral foi especialmente breve. Realizou-se de 4 a 7 de setembro de 1895.
Segundo as atas das sessões, o padre Rua fez poucas intervenções. No início de cada sessão,
lia e comentava brevemente uma passagem das Lembranças confidenciais de Dom Bosco aos
diretores, uma adaptação ligeiramente ampliada dos conselhos que ele mesmo tinha recebido
quando fora diretor em Mirabello.
Quando foi examinada a questão da instrução religiosa nas escolas salesianas, o padre Rua
pediu, como Dom Bosco, que o catecismo fosse ensinado e recitado ad litteram, ao pé da letra,
e se evitassem as longas explicações. O problema do tempo para se dedicar à instrução religiosa
dos aprendizes despertou muitas discussões. Durante esses confrontos, não há intervenções do
padre Rua. Somente é registrada sua queixa pelo fato de em algumas casas, sobretudo no ora-
tório de Turim, a instrução religiosa ter sido reduzida a uma hora semanal e somente por seis
meses do ano escolar. Observava, no entanto, que diversamente de instituições educativas mais
exigentes, como as apontadas pelos capitulares, os salesianos dispunham também de outros
meios para garantir a instrução religiosa aos jovens: a boa-noite, a pregação dominical, as exor-
tações em sala de aula etc. Graças a isso, dizia, “nossa instrução é completa como a dos outros”.
Finalmente, quando se falou dos cooperadores e foi levantada a questão da contribuição das
casas para as despesas do Bolletino Salesiano, insistiu para pedir aos diretores somente o mínimo
de uma lira anual para cada assinatura.
No dia 7 de setembro, durante a assembleia de conclusão, o padre Rua leu a carta de um
admirador que tinha participado do Congresso de Bolonha. Augurava que os salesianos conti-
nuassem a se distinguir pela humildade, pela pureza dos costumes e pela grande caridade. A ata
da última assembleia foi assinada por 96 capitulares.
O oitavo Capítulo Geral (1898)
O oitavo Capítulo Geral reuniu cerca de 217 capitulares. Realizou-se em Valsalice entre
29 de agosto e 7 de setembro de 1898.
Foi preparado em sete meses, sob a responsabilidade do moderador Francisco Cerruti. To-
dos os membros participaram da sessão de abertura na tarde do dia 29, sob a presidência do pa-
dre Rua. Estavam os superiores gerais (com exceção do padre Lazzero, doente), os bispos João
Cagliero e Tiago Costamagna na qualidade de vigários do Reitor-Mor para as duas vertentes da
América do Sul, o procurador geral Cesare Cagliero, o mestre dos noviços Júlio Barberis, o vi-
gário das irmãs salesianas Giovanni Marenco, 10 inspetores, 124 diretores, e 71 irmãos delega-
dos (as comunidades inferiores a 6 irmãos não tinham direito de eleger os acompanhantes dos
diretores). O trabalho foi subdividido em 10 comissões; 3 eram os temas a ser enfrentados: a)
Como perseverar na vocação. b) Como estruturar o ensino da filosofia e da teologia. c) Como
conservar intacto entre os salesianos o espírito de Dom Bosco. Eram assuntos com os quais o
padre Rua se preocupava especialmente, mas as atas não documentam suas intervenções nos
dias dedicados à discussão (31 de agosto, 1º e 2 de setembro). O dia 30 de agosto foi reservado
para a eleição dos membros do Capítulo Superior. O mandato de seis anos, iniciado em 1892,
217

11.10 Page 110

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terminava exatamente no dia 31 de agosto. O próprio padre Rua quis submeter a eleição o seu
mandato de Reitor-Mor.
O padre Rua é reeleito Reitor-Mor
Realmente, os anos passavam e estava para se concluir o século XIX. O padre Rua pensava
na sucessão. A Santa Sé o havia confirmado por doze anos em 1888. Seu mandato terminaria
em 1900. Mas ele tinha boas razões para querer interrompê-lo antes.12 Apresentou-as numa
circular de 20 de janeiro de 1898. Nela dizia que seus doze anos regulamentares terminariam
no dia 11 de fevereiro de 1900. No entanto, continuava:
Neste ano nosso amado pai Dom Bosco completaria o segundo período de doze anos de sua con-
firmação como Reitor-Mor, acontecida em 1874, quando nossas Constituições foram aprovadas
pela Santa Sé. Eu, eleito pelo Santo Padre Leão XIII para sucedê-lo, durante seus segundos doze
anos, cumpro neste ano meu mandato, com o completar-se do período de doze anos. Se tivesse
de cumprir doze anos no cargo, levar-se-ia a um tempo muito incômodo a eleição do Reitor-Mor,
e isso seria causa de gravíssimos problemas para nossas casas. Convido, portanto, os membros do
oitavo Capítulo Geral para a eleição do Reitor-Mor no mesmo tempo que a dos outros membros
do Capítulo Superior.13
Tinha o direito de renunciar a dois anos do cargo. No entanto, para proceder em perfeita
regularidade e não dar a impressão de se subtrair à missão que o papa lhe havia confiado, no
dia 4 de novembro de 1884 o padre Rua pediu a seu procurador, Cesare Cagliero, que falasse
com o Santo Padre ou com o prefeito da Congregação dos Bispos e dos Regulares ou ainda,
se necessário, com outras pessoas para que fosse aprovada a medida que propunha por pura
conveniência. O procurador dirigiu ao papa uma súplica que se concluía nos seguintes ter-
mos: “O Senhor padre Rua vos dirige com insistência este pedido, não para ser exonerado de
seu cargo, mas para evitar graves problemas de uma nova convocação de aproximadamente
300 irmãos de todas as partes do mundo, e despesas de milhares e milhares de liras para as
viagens de tantas pessoas”. A resposta chegou no dia 20 de agosto através do cardeal Parocchi,
protetor da Congregação. Informava o padre Rua que o Santo Padre, “atentis specialibus casus
adiunctis attentoque insuper consensu Rectoris Maioris Sodalium Salesianorum” (considerando o
caráter especial da medida e dado, além disso, o consentimento do Reitor-Mor da Sociedade
Salesiana], concedia todas as faculdades necessárias e oportunas. Sete dias mais tarde, o secre-
tário de Estado, Rampolla, numa carta ao procurador, comunicava ao padre Rua uma bênção
especial do papa:
O Santo Padre soube, com satisfação, que acontecerá em Turim, no dia 29 de agosto próximo, a as-
sembleia de todos os diretores e dos irmãos com direito à eleição do Reitor-Mor e dos membros do
Capítulo Superior. Soube também com satisfação que, depois disto, acontecerá o Capítulo Geral
dos Salesianos de Dom Bosco. Sua Santidade, querendo conceder a esta Congregação um sinal de
sua benevolência, tem a satisfação de dar a todos os irmãos de uma e de outra assembleia a bênção
12 Sigo, neste parágrafo, Annali II, p. 732-737, de onde vêm as citações.
13 Circular de 20 de janeiro de 1898. In: L. C., p. 162-175.
218
apostólica, pedindo a Deus queira espalhar sobre eles abundantes graças, para que tudo suceda da
melhor forma para a maior glória de Deus e pelo bem da Igreja.
Assim, ninguém poderia censurar o padre Rua por sua iniciativa. Conseguida a bênção do
papa, ele pareceu até mais alegre.
Na manhã do dia 30 de agosto, depois da invocação do Espírito Santo, o padre Rua expôs
seu caso nos termos que conhecemos. Depois, passou à leitura das Regras e das Deliberações
capitulares sobre as eleições. Os bispos Cagliero e Costamagna fizeram, cada um, um pequeno
discurso. Cagliero, que não gostava das mudanças no Capítulo Superior, pediu aos capitulares
que respeitassem “os antigos estatutos” da Congregação. E Costamagna o aprovou. Presidia
o prefeito geral padre Belmonte. Os dois bispos tomaram lugar à mesa presidencial. O padre
Rua, solicitado a sair, se recusou categoricamente e se acomodou na primeira fila em compa-
nhia dos secretários das sessões. Cantou-se o Veni Creator e dom Cagliero leu, no mais religioso
silêncio, a carta do cardeal Rampolla que comunicava a bênção do papa à assembleia. Depois,
o moderador fez a chamada, à qual responderam presente 217 capitulares dos 227 do dia an-
terior (10 estavam ausentes com justificativas). Foi lido um bilhete do padre Rua: avisava que
os dois bispos não eram elegíveis e que convinha nomear Reitor-Mor um irmão de idade não
muito avançada, coisa que lhe permitiria exercer uma tarefa difícil em condições melhores.
A mesa era composta por três escrutinadores e dois secretários. Avisou-se a assembleia que
a maioria absoluta seria de 110 votos. O padre Rua foi logo eleito com 213 votos. Faltavam
4 votos para a unanimidade. Soube-se, em seguida, que dois irmãos, impressionados com o
bilhete do padre Rua, tinham escolhido o conselheiro Bertello e que um terceiro, um coadjutor
delegado de Montevidéu (Uruguai), tinha simplesmente escrito na cédula “Viva Dom Bosco”.
O quarto voto, que optava pelo padre Giovanni Marenco, então vigário das Filhas de Maria
Auxiliadora, não podia vir senão do padre Rua.
No fim das eleições dos outros membros do Capítulo Superior, o padre Rua tomou a palavra
para agradecer aos presentes por seu acordo na sua reeleição. Via nisto somente uma homena-
gem prestada a Dom Bosco, que o havia escolhido para vigário, e um sinal de devoção ao So-
berano Pontífice, que o havia eleito sucessor de Dom Bosco. Exortou a assembleia a perseverar
nos mesmos sentimentos, garantia eficaz de prosperidade para toda a Congregação.
No dia 3 de setembro, todos os capitulares participaram na bênção da primeira pedra da
nova igreja que devia ser construída em Valsalice “como homenagem internacional a Dom Bos-
co”, segundo os termos da comissão promotora do empreendimento. A cerimônia se realizou
na presença do cardeal Manara, bispo de Ancona, do arcebispo de Turim, de seis bispos e de
numerosas personalidades civis. A festa concluía alegremente os belos dias do oitavo Capítulo
Geral.
219

12 Pages 111-120

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12.1 Page 111

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Capítulo 24
A aurora de um novo século
Os diretores salesianos confessores de seus subordinados
O padre Rua iniciava, assim, o segundo mandato de doze anos, que seria marcado por
provas frequentemente mais pesadas de suportar. Comecemos com o problema dos diretores-
-confessores.1
Para entender esse problema, que obrigou o padre Rua a abandonar uma tradição muito ra-
dicada na Congregação, é preciso voltar ao Oratório das origens. Dom Bosco, único sacerdote,
era também o confessor daqueles que viviam próximos dele. Mais tarde, outros padres se uni-
ram, mas, embora ele não hesitasse em recorrer à ajuda de confessores externos, a maioria dos
meninos e dos irmãos continuava a procurar Dom Bosco para a confissão. O fato de ele ser su-
perior não impedia que os dependentes lhe confiassem os segredos de sua consciência, porque,
no exercício da autoridade, mais que superior se mostrava pai. Quando, na década de 1860,
começou a fundar os colégios, os diretores, formados segundo seu espírito, se comportaram do
mesmo modo, procuraram ganhar o afeto e a confiança de todos, exercendo paternamente sua
autoridade. Interessavam-se muito pelas questões ascéticas, mas, aos olhos dos irmãos, pare-
ciam revestidos de uma autoridade espiritual feita de doçura indulgente que abria todos para a
confiança. Portanto, todo diretor era, antes de tudo, o confessor da comunidade. No entanto,
Dom Bosco, com o exemplo pessoal e com a palavra, havia sugerido uma precaução, à qual
acenou em dois parágrafos de seu testamento espiritual, que convém não separar para entender
a fundo seu pensamento:
6º Em geral, o diretor é o confessor ordinário dos irmãos. Mas com prudência procure dar ampla
liberdade a quem precisasse se confessar com outro. Fica, porém, entendido que tais confessores
particulares devem ser conhecidos e aprovados pelo superior, segundo nossas Regras.
7º Como, então, quem vai procurar confessores excepcionais demonstra pouca confiança no dire-
tor, assim este, o diretor, deve abrir os olhos e colocar atenção especial na observância das outras
Regras e não confiar àquele irmão certas incumbências que parecessem superiores a suas forças
morais ou físicas.2
1 Para o assunto dos diretores-confessores, sigo de perto Ceria, Vita, p. 338-348. A documentação salesiana se encontra
reunida num Summarium additionale de 30 páginas, no final do volume composto que chamamos Positio 1947.
2 F. Motto, Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel Sac. Gio. Bosco a’ suoi figliuoli salesiani, RSS 4 (1985), p. 117.
220
Assim, embora o salesiano tivesse a incontestável liberdade de escolher um confessor que
não fosse o próprio diretor, essa liberdade era, no espírito de Dom Bosco, fortemente visada.
Quem não se confessava com o diretor parecia um tanto suspeito.
Esse estilo, certamente perigoso com o multiplicar-se das novas comunidades, continuou
pelos doze anos seguintes à morte do santo. O diretor confessava os próprios subordinados e
também os alunos da casa.
Mas, com o tempo, começaram a surgir as queixas, provavelmente a partir dos próprios sa-
lesianos. No dia 26 de setembro de 1896, o cardeal Parocchi escreveu uma carta ao padre Rua
que denunciava a falta de liberdade nas casas salesianas na escolha dos confessores.3 O padre
Rua se defendeu afirmando que nas casas salesianas realmente havia variedade de confessores.4
Depois disso, o Santo Ofício pediu que as precauções do padre Rua fossem observadas rigoro-
samente na Sociedade Salesiana.5 Mas nosso Reitor, alertado por esta advertência, recomendou
aos diretores, através do prefeito geral, padre Belmonte, que convidasse regularmente em suas
casas, todo mês, melhor ainda, a cada quinze dias, um confessor extraordinário.6 Assim, a liber-
dade de consciência lhe parecia garantida. Mas Roma pensava diferente.
O decreto do Santo Ofício (5 de julho de 1899)
A Igreja obrigou os salesianos a mudar o método. A razão era, segundo uma carta do pro-
curador geral, padre Marenco, a dom Cagliero, que a Santa Sé, vendo a difusão mundial da
Sociedade Salesiana, não queria que se introduzisse uma prática que não estava em tudo con-
forme ao espírito da Igreja.7 A bem da verdade, Roma temia três coisas: a) que nos colégios
salesianos a liberdade dos jovens na confissão de suas culpas estivesse condicionada em prejuízo
da integridade sacramental. b) que os superiores ligados pelo segredo sacramental estivessem
menos livres no exercício do seu cargo. c) que eram suspeitos de usar as informações colhidas
na confissão. Era puro e simples bom senso.
A Santa Sé procedeu por etapas. Antes de tudo, com o decreto do Santo Ofício de 5 de ju-
lho de 1899, proibiu nas comunidades religiosas, nos seminários ou nos colégios de Roma que
qualquer superior, maior ou menor, recebesse a confissão dos súditos e dos alunos residentes
na casa. O decreto dizia respeito, exclusivamente, à cidade de Roma, mas foi introduzido tam-
bém em outras dioceses. O cardeal bispo de Frascati, por exemplo, imediatamente o aplicou
à própria jurisdição. Assim, o diretor salesiano do colégio do Sagrado Coração de Roma e o
do colégio de Frascati precisaram deixar de confessar em casa. Entretanto, correu voz de que
estivesse em preparação uma providência radical.
3 Sintetizada em Annali III, p. 166.
4 Carta de M. Rua ao cardeal L. M. Parocchi, 6 de outubro de 1896. In: Annali III, p. 166.
5 Annali III, p. 167.
6 Circular do padre Domenico Belmonte, 29 de março de 1897. In: FdR 4067E1-3.
7 Carta de G. Marenco a dom Cagliero, Roma, 27 de junho de 1901. In: Ceria, Vita, 339.
221

12.2 Page 112

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O padre Rua sentiu-se no dever de tomar posição, tanto mais que o decreto tinha sido
publicado em algumas revistas especializadas. No dia 29 de novembro de 1899, escreveu aos
inspetores uma longa circular dedicada ao sacramento da Penitência, na qual se destacam cla-
ramente os princípios de Dom Bosco.8 A circular começava afirmando que o documento do
Santo Ofício dizia respeito somente às confissões dos alunos (alumni) por parte do superior.
Recordava que, segundo dois decretos pontifícios anteriores, o confessor dos noviços era o
mestre e que os superiores religiosos podiam confessar os súditos se esses o pedissem esponta-
neamente. De resto, uma vez que o decreto em questão não tinha força de obrigação fora de
Roma, os diretores podiam continuar a confessar como antes. Todavia, dava sobre esse ponto
sete diretivas: não exercer a própria autoridade nas “questões odiosas”; deixar para outros as
medidas disciplinares; confiar aos prefeitos as relações com os pais dos alunos; não intervir na
atribuição das notas de comportamento; não lê-las em público; convidar, todo sábado, con-
fessores externos para suas casas e situá-los num lugar ao qual os jovens pudessem ter acesso
sem serem vistos pelo diretor; conquistar os corações de todos os próprios dependentes com a
piedade e a caridade doce e paciente.
Nesse ponto, passava a falar da responsabilidade dos diretores em relação aos irmãos, sem
esquecer os meninos. Eles, dizia, devem ser “os guias dos outros irmãos no caminho da perfei-
ção, as sentinelas vigilantes dos jovens que são confiados a eles, os guardas do espírito de Dom
Bosco, os intérpretes autorizados das intenções dos superiores, e até os representantes de sua
autoridade”. O diretor, portanto, é o primeiro responsável pelo progresso dos súditos no “cami-
nho da perfeição”. Abandonados a si mesmos, muitos não saberiam fazer qualquer progresso.
“A vocês é especialmente dirigida a ordem do Salvador: Euntes docete. Ensinem esta ciência das
ciências, a ciência dos santos, a única verdadeiramente necessária, e cujo ensinamento vocês
não podem e não devem confiar a outros. Ensinem a prática da perfeição nas conferências, nas
confissões e nos rendiconti; ensinem-na em cada conversa, como Dom Bosco fazia”. O diretor
de uma comunidade deve, então, cuidar muito especialmente dos jovens professos. “Não se
espantem se encontrarem neles defeitos, se vocês precisarem repetir muitas vezes a mesma ad-
vertência; vocês sabem que ninguém se torna perfeito de repente.”
Evidentemente, a confissão não era senão um instrumento entre outros nas mãos do diretor.
O padre Rua, por exemplo, dava maior importância ao rendiconto do que Dom Bosco. Todavia,
nos últimos dias do século XIX, ele continuava a insistir constantemente na fidelidade à tra-
dição herdada do Fundador, que fazia do diretor o confessor normal dos irmãos para garantir-
lhes o progresso espiritual.
O decreto de 24 de abril de 1901
O padre Rua procurou ganhar tempo. A ideia de ter de quebrar uma tradição cara a Dom
Bosco, que durava mais de sessenta anos, lhe fazia mal. Diante da eventualidade de se estender
8 A impressão original pode ser lida em FdR 3973E4-3974B7; cf. L. C., p. 190-206 (mas o texto publicado
nas L. C. foi curiosamente cortado).
222
a medida romana a toda a Congregação, começou a serpear certo descontentamento também
entre os irmãos, sobretudo os mais idosos. De fato, Roma acompanhava com preocupação o
costume salesiano. No dia 26 de novembro de 1900, o cardeal Gotti, prefeito da Congregação
dos Bispos e Regulares, lamentou com o procurador, padre Marenco, o fato de fora de Roma
os diretores serem obrigados a confessar os dependentes e o fato de o rendiconto dizer respeito
ao foro íntimo.9
Em 1901, pouco depois do encerramento das festas de Maria Auxiliadora, chegou de Roma
a notícia de que estava pronto um documento do Santo Ofício que proibia expressamente aos
superiores salesianos ouvir as confissões dos seus súditos. Saiu logo depois. Trazia a data de
24 de abril, mas foi comunicado ao procurador salesiano somente no dia 29 de maio.10 A for-
mulação era severa. Lia-se num folheto anexo: “O comissário do Santo Ofício, entregando a
cópia autêntica do decreto de 24 de abril de 1901, pede ao Reverendíssimo Procurador Geral
dos Salesianos que o faça saber, o mais depressa possível, por escrito que este decreto não so-
mente é aceito pelo Instituto, mas que será rápida e plenamente aplicado em todas as casas do
citado Instituto”.11 Recebido o texto, o padre Rua se apressou em encarregar o procurador de
transmitir ao Santo Ofício a seguinte declaração: “Tenho a honra de fazer saber à Vossa Exce-
lência que comuniquei ao Reitor-Mor o decreto de 24 de abril da Suprema Inquisição Romana
e que não somente foi aceito pelo Instituto, mas será plenamente aplicado em todas as suas
casas com a rapidez exigida pelo mesmo decreto”.
Mas o padre Rua estava preocupado e retardava aplicação, com o risco de enervar o Santo
Ofício. Perguntou logo se a comunicação oficial do decreto podia ser remetida até ao próximo
Capítulo Geral de setembro. No dia 22 de junho foi intimado a fazer a comunicação do decreto
sine mora, sem demora. Expediu, então, um novo recurso. O sine mora devia ser entendido em
senso estrito ou podia conciliar-se com a ordem que estava no mesmo decreto de comunicar a
execução das ordens intra annum (dentro do ano) à Sagrada Congregação? Consequentemente,
seria lícito enviar a comunicação do decreto a toda a Congregação depois do encerramento do
próximo Capítulo Geral?
Nesse meio-tempo, o padre Rua fez uma breve conferência aos irmãos do Oratório, recolhi-
dos na igreja de São Francisco de Sales. Muitos estavam admirados de encontrar havia algum
tempo, no confessionário, o secretário em vez dele. Justificou-se relatando a história dos dois
decretos, o que dizia respeito a Roma e o que foi estendido a toda a Congregação. Perguntava-
-se: o que faria Dom Bosco em circunstância semelhante? Certamente obedeceria imedia-
tamente. Era isso que ele pretendia fazer, deixando de confessar. Pedia, portanto, que não
fosse colocado em situação difícil pretendendo confessar-se com ele. Depois, leu o decreto de
24 de abril, em latim, e, logo depois, em italiano. Sem acrescentar mais nada, recitou a oração
de conclusão e dissolveu a assembleia.
9 Annali III, p. 170.
10 O decreto Quod a Suprema do Santo Ofício pode ser lido no Summarium Additionale, p. 2-4.
11 Este anexo, datado de 24 de maio de 1901, em Summarium Additionale, p. 5. O intercâmbio de cartas
de junho de 1901 se encontra em Summarium Additionale, p. 5-9.
223

12.3 Page 113

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No dia 6 de julho, estendeu a comunicação a toda a Congregação através dos inspetores.
Sua circular ordenava que cada diretor reunisse os irmãos professos e lesse o decreto em voz alta
e compreensível; que, sem comentários, explicasse seu sentido àqueles que não conheciam o
latim; e que o documento fosse religiosamente conservado enquanto emanado pela autoridade
suprema da Igreja. Concluía:
Até agora, como norma das deliberações dos Capítulos Gerais tínhamos um caminho que nos pa-
recia mais adequado às nossas circunstâncias: agora, quem foi encarregado por Deus de ensinar os
povos, e também os seus mestres, nos faz conhecer que devemos modificá-lo. E nós, reconhecidos
e respeitosos, com total e submissa obediência, executamos o que nos é prescrito, imitando assim
nosso bom Pai Dom Bosco, que sempre dedicou tanta veneração e obediência a qualquer aceno da
Santa Sé. Não se procure como foi dada esta ordem, por causa de quem ou de qual acontecimento:
consideramos que é disposição da amável Providência Divina, que é Jesus mesmo que se digna
falar-nos por meio de seu vigário, e procuremos cumprir as ordens com a maior fidelidade.12
Todavia, nesse ínterim, o padre Rua organizava um estudo teológico que lhe criaria muitas
dores de cabeça. Eram previsíveis duas dificuldades na aplicação imediata da decisão romana.
Como encontrar, na prática, em cada casa, um confessor que tivesse as qualidades necessárias e
estivesse livre de cargos incompatíveis com o teor do decreto? Como superar a repugnância de
muitos irmãos, sobretudo dos mais idosos, a uma mudança tão brusca? Pediu ao padre Luigi
Piscetta, moralista salesiano muito estimado que estudasse o problema. Ele consultou o auxiliar
do arcebispo de Turim, dom Giovanni Battista Bertagna, que, como escreveu o padre Rua, “há
mais de quarenta anos ensina, com aplauso universal, a moral casuística aos sacerdotes que se
preparam para o ministério das confissões”. Depois de reflexão madura, o padre Piscetta entre-
gou suas conclusões ao padre Rua, que se apressou em fazê-las publicar. No dia 15 de julho de
1901, enviou-as aos inspetores, junto com uma circular que lhes explicava a origem.13
Apesar das precauções tomadas, as respostas de Piscetta caíram nas mãos do Santo Ofício,
que considerou o fato muito grave. Imediatamente, o procurador salesiano foi convocado pelo
comissário do Santo Ofício, que lhe fez uma dura admoestação: parecia à Sagrada Congregação
que o padre Rua estava procurando todo meio para se subtrair à total aplicação do decreto;
era reprovado por ter querido interpretar o documento, coisa estritamente reservada ao Santo
Ofício. O comissário se expressou em termos severos e obrigou o procurador a informar o
padre Rua que estaria sendo ordenada a imediata revogação das interpretações do teólogo, e
que, depois, o Santo Ofício responderia às questões colocadas. Tudo isso não teria acontecido
se o padre Rua tivesse presente que a interpretação dos decretos do Santo Ofício é permitida
somente a quem os emana. Apesar de ter tido a boa intenção de fazer as coisas para o bem, dava
a impressão de certa rebelião, cujas consequências teve de suportar. Manteve a calma e, no dia
15 de agosto, escreveu aos inspetores revogando as respostas do padre Piscetta:
12 Ceria, Vita, p. 344-345.
13 Original em FdR 3974E7-10. Essa circular aos inspetores, à qual estava anexa a “Solução de alguns
casos relativos ao Decreto de 24 de abril de 1901”, assinada pelo padre Luigi Piscetta, não foi inserida na
coleção das circulares publicada em 1910.
224
Tenho uma grata notícia para lhes comunicar: estou sabendo que a veneranda Congregação da
Suprema Romana e Universal Inquisição nos dará a solução oficial de várias dúvidas que surgem na
execução do Decreto Quod a suprema, de 24 de abril do corrente ano. Na espera do muito desejado
documento, revogo as soluções por mim publicadas, manuscritas e à viva voz a quem me inter-
rogava no passado sobre o assunto. Agradecemos o Senhor que se digna nos dar guia tão segura e
continuamos a pedir que nos ajude a ser sempre fiéis em seguir seus ensinamentos.
Mas sua alegre espera durou muito pouco. As questões submetidas às quais devia dar um pa-
recer produziram, como efeito inesperado, a convocação a Roma do próprio padre Rua. Partiu
imediatamente e, chegado ao destino, sofreu pessoalmente as repreensões que lhe tinham sido
feitas com a intermediação do procurador. Além disso, foi intimado a deixar imediatamente a
cidade. O péssimo tratamento sofrido em Roma lhe provocou um edema no peito e o agrava-
mento da inflamação nos olhos, que já o atormentava havia alguns anos. Somente Deus sabe
a intensidade do sofrimento moral por ele suportado naquela ocasião, certamente mais grave
que os sofrimentos físicos.
Entre os dias 1º e 15 de setembro, devia realizar-se em Valsalice o nono Capítulo Geral da
Congregação. Três dias antes da abertura, chegou, da parte do Santo Ofício, a solução para
suas dificuldades, com data de 21 de agosto. Repetiam-se, de forma ainda mais imperativa, as
disposições anteriores. O padre Rua ordenou imediatamente a impressão de mil exemplares
das respostas de Roma. Queria distribuí-las aos capitulares. Estava prescrita a leitura do do-
cumento aos membros do Capítulo Geral. O procurador, padre Marenco, leu-o no início da
assembleia. Depois, como diz a ata, o padre Rua se expressou brevemente sobre as perguntas e
sobre as respostas, confessando que ignorava que os problemas referentes aos decretos do Santo
Ofício deviam ser resolvidos exclusivamente pelo próprio Santo Ofício. Revogou, portanto, as
soluções que dera anteriormente e recomendou:
Devemos absolutamente eliminar qualquer suposição maligna. [O decreto] nos vem do papa, e,
por isso, de Deus. Portanto, devemos aceitar com submissão absoluta e pronta e até agradecer a
Deus que nos deu tamanha luz por meio dos nossos supremos superiores, emanando tal decreto
como ato de especial benevolência, querendo que nós nos tornemos conformes às outras sociedades
e congregações religiosas que têm semelhança com a nossa.14
As ordens deviam ser colocadas em prática. No decorrer de um ano, a partir da data da pu-
blicação do decreto – portanto até 24 de abril de 1902 – era preciso apresentar ao Santo Ofício
um exemplar das Deliberações dos Capítulos Gerais corrigidas sobre todos os pontos referen-
tes às confissões e aos confessores. O tempo não era suficiente. Pediu-se e se conseguiu uma
prorrogação. Mas, na circular de 9 de março de 1902,15 o padre Rua teve o cuidado de avisar
os irmãos que o atraso na impressão dos documentos não os dispensava de maneira alguma da
aplicação integral do decreto.
14 Os quesitos impressos podem ser encontrados em FdR 3983D5-7; em FdR 3983D8 são reunidas as
respostas lapidares datadas e aprovadas pelo papa no dia 21 de agosto.
15 FdR 3983EI-3984A2; L. C., p. 269-285.
225

12.4 Page 114

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Os jovens se adaptaram sem problemas. Muitos salesianos professos, ao contrário, tiveram
dificuldade em se confessar com sacerdotes que, muitas vezes, tinham sido seus subordinados.
Eis um exemplo tirado da ata de uma reunião do Capítulo Geral de 1905: no dia 16 de feve-
reiro, o comissário do Santo Ofício convocou o procurador Marenco para informá-lo de que
numa casa salesiana, “os indivíduos eram moralmente obrigados a se confessar com quem não
gozava da confiança comum; que, na dúvida, o Santo Ofício se dirigiu, como de costume, para
informar o ordinário, por quem a coisa foi confirmada, e, depois disso, o Santo Ofício encar-
regou o bispo para tomar providências”.16 O padre Rua, por sua vez, respondia laconicamente
às objeções que lhe eram apresentadas. Queria evitar, evidentemente, qualquer discussão, pois
obedecia plena e totalmente às decisões romanas.
Consagração da Sociedade Salesiana ao Sagrado Coração de Jesus
O padre Rua tinha inaugurado aquele doloroso primeiro ano do século XX com um ato
que, provavelmente, considerava o mais importante de seu reitorado.17
Havia muitos anos pensava satisfazer um desejo expresso pelo heroico salesiano Andrea Bel-
trami (1870-1897), que, no fim de um livreto sobre a apóstola do Sagrado Coração Margarida
Maria Alacoque, escrevera: “Queiram o nosso doce Redentor e sua mãe Maria Santíssima con-
siderar sempre a Sociedade Salesiana como sua filha predileta e embelezá-la com as flores das
mais eleitas bênçãos. E, se minha voz não é muito ousada, faço votos que a Sociedade Salesiana
seja solenemente consagrada a esse Coração adorável, do qual tirará novas graças de vida eterna”.
Em 1899, o padre Rua tinha augurado que cada salesiano fizesse sua consagração pessoal ao Sa-
grado Coração. Mas tinha conhecimento do desejo do padre Beltrami e pensava realizá-lo. Tanto
mais que, naquele tempo de grande devoção ao Sagrado Coração, lhe era pedido de muitas par-
tes, sobretudo dos estudantados, um gesto extraordinário. Depois de ter refletido longamente e
ter se aconselhado com o cardeal protetor sobre a oportunidade e as modalidades de uma con-
sagração de toda a Sociedade Salesiana ao Sagrado Coração, considerou chegado o momento de
agir.18 Na circular de 21 de novembro de 1900, escreveu aos salesianos: “Agora quero que cada
um se consagre novamente, de modo todo especial, a esse Coração Sacratíssimo; ainda mais:
desejo que cada diretor lhe consagre inteiramente a casa que preside e convide os jovens a fazer,
também eles, esta santa oferta de si mesmos; que os instrua sobre o grande ato que estão para rea­
lizar e lhes dê toda comodidade a fim de que possam se preparar convenientemente para ele”.19
Propunha celebrar o ato público na noite do dia 31 de dezembro de 1900, no início do novo
século. E para isso propunha a fórmula:
Jesus, nós já somos vossos por direito, porque nos comprastes com vosso Sangue preciosíssimo,
mas queremos também ser vossos por escolha e consagração espontânea, absoluta. Nossas casas
16 Verbali del Capitolo Superiore, 27 de fevereiro de 1905. In: FdR 4244E4-5.
17 Neste parágrafo sobre a consagração ao Sagrado Coração, sigo de perto Ceria, Vita, p. 332-337.
18 Verbali del Capitolo Superiore, 27 de novembro de 1900. In: FdR 4242C7.
19 L. C., p. 223-224.
226
já são vossas por direito, sendo vós Senhor de todas as coisas, mas nós queremos que elas sejam
vossas, e somente vossas, também por nossa espontânea vontade; a Vós as consagramos. Nossa Pia
Sociedade já é vossa por direito, pois Vós a inspirastes, Vós a fundastes, Vós a fizestes sair, por assim
dizer, do vosso próprio Coração. Então, nós queremos confirmar este vosso direito; queremos que
ela, graças à oferta que dela vos fazemos, se torne como um templo, no meio do qual podemos
dizer, com verdade, que mora o senhor, dono e rei nosso Salvador Jesus Cristo! Sim, Jesus, vences-
tes toda dificuldade. Reinai, imperai no meio de nós: Vós tendes o direito, Vós o mereceis, nós o
queremos.20
Pediu também que a consagração solene fosse preparada por um tríduo de orações e de
pregação, a partir do dia dos Santos Inocentes, 28 de dezembro, aniversário da morte de São
Francisco de Sales. O padre Rua desejava que o ato envolvesse a todos: jovens, noviços, irmãos,
superiores e o maior número possível de cooperadores. Recordou que o papa concedeu, para a
noite do dia 31 de dezembro, poder celebrar uma missa solene à meia-noite, com a exposição
do Santíssimo. Era, portanto, necessário que a assembleia se reunisse meia hora antes para a
adoração eucarística e, depois de quinze minutos, todos renovassem as promessas batismais,
e os irmãos repetissem seus votos religiosos. Depois far-se-ia a consagração pessoal, a da casa
e a de todo o gênero humano ao Coração de Jesus, segundo a fórmula preconizada no ano
anterior. ContempOrãeamente, em Turim, o padre Rua e o Capítulo Superior consagrariam
toda a Congregação. Em seguida, dever-se-ia celebrar a missa, dar a bênção com o Santíssimo
Sacramento, cantar o Te Deum e recitar as outras preces previstas pelo papa e pelos bispos para
a ocasião. Nos oratórios festivos, a função poderia ser feita na manhã seguinte.21
Como chefe da Congregação, o padre Rua sugeria uma fórmula especial, devidamente apro-
vada. No dia 6 de dezembro escreveu a Leão XIII:
O impulso dado por Vossa Santidade à devoção ao sacratíssimo Coração de Jesus e a ordem ema-
nada no ano passado de consagrar todas as dioceses e todos os povos àquele divino Coração fizeram
nascer em nós o desejo de fazer com toda solenidade uma consagração especial da Pia Sociedade
de São Francisco de Sales, fundada pelo nosso inesquecível Pai Dom Bosco, e de todas as obras e
pessoas dela de alguma forma dependentes, na noite que divide o século que morre do novo século,
noite em que pela paterna bondade de Vossa Santidade se poderá também neste ano celebrar a
Santa Missa. Na confiança de fazer coisa agradável ao vosso coração ardente de devoção ao Cora-
ção Santíssimo daquele Jesus de quem sois vigário, nos permitimos apresentar-vos a fórmula de tal
consagração, a fim de que, acompanhada de vossa Bênção, lhe torne mais agradável e nos atraia
em maior abundância as graças e os favores dos quais precisamos para trabalhar com sempre maior
entusiasmo na dilatação do Reino de nosso Senhor Jesus Cristo e na salvação das almas.22
A Santa Sé devolveu a súplica ao padre Rua com a aprovação: “O Santo Padre elogiou benig-
namente a piedosa proposta, e de todo coração a abençoou”. Assim, no dia 31 de dezembro de
1900, enquanto em todas as casas salesianas se fazia a consagração, o padre Rua, prostrado com
os outros membros do Capítulo Superior diante do Santíssimo, exposto sobre o altar de Maria
Auxiliadora, pronunciou com intensa participação a fórmula especial. Com ela consagrava ao
20 L. C., p. 224.
21 Cf. L. C., p. 222-227.
22 Ceria, Vita, p. 335.
227

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Divino Coração pessoas, casas, obras da Sociedade Salesiana, o Instituto das Filhas de Maria
Auxiliadora, a Pia União dos Cooperadores e a juventude confiada aos salesianos e às irmãs.23
O ato de consagração é breve, o padre Rua observava no fim da circular, mas seus frutos
deviam ser duradouros. Por isso, julgou oportuno recomendar aos salesianos certo número
de práticas devotas aprovadas pela Igreja e “pela mesma enriquecida de muitas indulgências”.
Sugeriu, portanto, no seu devoto fervor, solenizar em todas as casas a festa anual do Sagrado
Coração; celebrar uma cerimônia especial em todas as primeiras sextas-feiras do mês com a
recomendação a cada irmão e a cada jovem de fazer naquele dia a “comunhão reparadora”;
inscrever cada irmão na “prática dos Nove Ofícios” (ou nove Serviços ao Sagrado Coração, que
são os serviços de Adorador, de Amante, de Vítima, de Discípulo, de Servidor, de Promotor, de
Suplicante, de Zelador, de Reparador). Convidou toda a comunidade a se associar à confraria
da Guarda de honra. Sugeriu instituir nos noviciados e nos estudantados a Hora Santa (na noi-
te entre a quinta e a sexta-feira, lembrando a oração de Jesus no Getsêmani). Não podia certa-
mente imaginar que todas aquelas práticas cairiam em desuso no decorrer de poucas décadas, a
ponto de até seu significado, ilustrado na longa “instrução sobre a devoção ao Sagrado Coração
de Jesus” que acompanhava a circular,24 fugir completamente às gerações futuras. O tranquilo
padre Rua, como muitos dos seus contemporâneos, era capaz de se entusiasmar quando se
tratava de honrar o Coração de Jesus.
A cerimônia do dia 31 de dezembro de 1900 abria um século que veria a Sociedade Salesiana
desenvolver-se maravilhosamente, mas também sofrer muito. E os sofrimentos não demoraram
a chegar. O ano de 1901 foi para os salesianos franceses um tempo de perseguição.
23 O Formulário do qual se servirá o Reitor-Mor com os superiores do Capítulo para consagrar ao Sagrado
Coração toda nossa Pia Sociedade e suas obras está anexado à circular; pode ser encontrado em L. C., p.
255-257.
24 L. C., p. 228-254. O autor desta instrução, de estilo muito escolar, não nos é conhecido.
228
Capítulo 25
Vicissitudes na França
O 25º aniversário da obra salesiana na França
A primeira casa salesiana francesa foi fundada em Nice no fim de 1875. No ano de 1901
completava 25 anos de idade. O diretor, padre Louis Cartier, estava ocupado em celebrar o
jubileu nos primeiros anos de fevereiro, com a presença do Reitor-Mor. Cartier pensava que,
na mesma ocasião, o padre Rua pudesse celebrar as bodas de prata de toda a obra salesiana
francesa, então muito florescente. O catálogo geral de 1900 nos informa que as inspetorias de
Paris e de Marselha tinham globalmente 18 casas, 212 irmãos e 94 noviços.
Infelizmente, as relações entre as duas inspetorias não eram cordiais. Em especial, o inspetor
de Paris, o efervescente Giuseppe Bologna, mal suportava o inspetor de Marselha, o discreto e
preciso Pietro Perrot. Além disso, o clima político borrascoso, enquanto se elaborava uma lei
sobre as congregações religiosas, desaconselhava aos salesianos manifestações muito vistosas.
Naquele momento, por exemplo, a origem italiana da Congregação despertava certa animosi-
dade contra a casa de Dinan na Bretanha e, às vezes, também em Paris. Podia-se temer que a
presença do padre Rua na festa fosse entendida como uma espécie de provocação. No dia 9 de
janeiro de 1901, numa carta a Cartier, o padre Bologna expressava fortes reservas e anunciava
que, de sua parte, não julgava oportuno participar dos festejos. Houve, então, muita pressão
sobre o superior geral, nosso padre Rua.
Sua opinião, caracterizada por um sentido religioso refinado e por uma sadia prudência,
com certeza não tímida, é expressa numa carta significativa, do dia 19 de janeiro, ao padre
Cartier:
De várias partes da França escrevem-me sobre as festas jubilares de Nice: há quem me diz que serão
um pouco custosas e que, sabendo de tantas despesas, os cooperadores perderão o ânimo conosco.
Há quem me diz que nesses momentos em que se discute a lei sobre as congregações fazer festas
parece um contrassenso. Há quem diz que seria conveniente consultar o núncio em Paris. Sem
desprezar essas observações, penso que as festas poderão ser feitas como tributo de reconhecimento
a Deus e também aos benfeitores, porém será conveniente evitar o mais possível fazer barulho,
especialmente nos jornais; será bom também limitar as despesas. E se alguém de longe tiver de
ser convidado será oportuno buscar todas as possíveis facilitações nas ferrovias: limitando assim as
coisas, de modo a dar o aspecto de simples festas de devoção e de família, espero que ninguém terá
que dizer nada e que não aconteça pedir permissão e conselho a propósito. [...]
229

12.6 Page 116

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Fiz que os inspetores soubessem de meu desejo de vê-los ambos comigo em Nice: espero que me
deem esta satisfação. Digo isso confidencialmente a você, que demonstra tão louvável desejo de
união entre o norte e o sul.
O Senhor nos assista: e Maria Auxiliadora, que já várias vezes nestes últimos trinta anos favoreceu
tão visivelmente a França, digne-se protegê-la também nesta grave circunstância. Espero que Dom
Bosco, que amava tanto essa nação, também ele interceda.
Seu afeiçoado em Jesus e Maria
Sacerdote Miguel Rua
P.S. Para sua norma, penso levar comigo o novo conselheiro, o senhor padre Bertello.1
Assim, entre os dias 3 e 8 de fevereiro, as festas se realizaram discretamente e não se precisou
lamentar consequências desagradáveis. Delas participaram quase todos os diretores das casas.
Também o padre Bologna, um pouco mais tranquilo, se uniu aos irmãos no dia 4 de fevereiro.
O padre Rua chegou a Nice na tarde do dia 2 de fevereiro. Os festejos começaram no do-
mingo, 3, sob sua presidência, com um dia familiar que reunia ex-alunos e alunos do patronato
Saint Pierre. O bravo superior foi extremamente discreto e ficou quase na sombra durante as
celebrações. Seu nome não apareceu no programa das manifestações públicas realizadas entre
os dias 5 e 8, a não ser na reunião das comissões e dos amigos da obra, que aconteceu dentro
do Patronato na tarde do dia 5 de fevereiro. As manifestações previstas na cidade o ignoraram.2
Nas manhãs de terça-feira e de quarta-feira, dias 5 e 6, o padre Rua falou aos diretores das casas
da França. O resto do tempo era dedicado ao instituto. Salesianos, alunos e ex-alunos gosta-
vam de seu contato caloroso, no qual descobriam Dom Bosco, sempre caro ao seu coração.
O ex-aluno que escreveu a crônica do acontecimento repete com insistência:
O motivo maior de nossa felicidade era viver perto do padre Rua, sentir sua presença, alegrar-nos
com sua conversa. Na Sociedade Salesiana voltaram-se para ele a veneração e o amor que se sentia
por Dom Bosco: um conselho, uma palavra saída de seus lábios, às vezes um olhar, são para o irmão
salesiano ou para o membro da associação dos ex-alunos o encorajamento mais forte. [...] Quando
o padre Rua atravessava os pátios, era difícil abrir uma passagem no meio dos jovens alunos ao re-
dor dele; disputavam para ver quem lhe pegava a mão, quem conseguia se aproximar mais. O padre
ficava feliz com essas manifestações, que, no entanto, lhe subtraíam um tempo precioso, e somente
as exigências do regulamento ou as instâncias dos visitadores conseguiam distanciá-lo disso. [...]
Durante o dia era um vaivém interminável diante da porta do venerado Pai: mestres e alunos fica-
vam felizes por abrir-lhe seus corações. Muitas pessoas vindas de fora recorreram à sua experiência
e ao seu zelo sacerdotal, felizes por obter dele uma bênção. Depois da oração, o padre Rua dizia
aos rapazes a boa-noite, em uso na Sociedade Salesiana. Os órfãozinhos ouviam suas palavras com
uma atenção que nada podia distrair. Via-se por sua atitude imóvel, pelo olhar fixo no padre Rua.
Percebia-se que consideravam o bom Pai não como um pregador comum, mas como o intérprete
de Dom Bosco.
Oficialmente, as festas terminaram na noite do dia 8 de fevereiro. O padre Rua deixou o
Oratório Saint Pierre de Nice no dia seguinte de manhã. Como explica o cronista, “os jovens
1 FdR 3881B4-5.
2 Esse programa foi publicado em XXVème anniversaire de l’Oeuvre de Don Bosco en France et de la fon-
dation du Patronage St Pierre à Nice, par S. B. Ancien élève du Patronage, Nice, Imprimerie de la Société
Industrielle, 1902, p. 27.
230
se dispuseram formando duas filas ao longo das arcadas e ele passou pelo meio. Tiveram uma
última vez a alegria de beijar-lhe a mão; depois, voltaram para suas ocupações habituais”.3
Seria a última vez que o padre Rua poderia saudar publicamente seus filhos da França.
A lei francesa sobre as associações
No entanto, partia de Nice com o coração muito angustiado sobre o futuro de toda a obra
na França, da qual acabava de celebrar o 25º aniversário. Já havia um ano estava visivelmente
preocupado. O que aconteceria se fosse dado andamento aos projetos do governo da III Repú-
blica sobre as congregações religiosas? Turim queria encontrar uma solução jurídica preventiva
para as medidas hostis que lhe pareciam iminentes. No dia 26 de junho de 1900, no início
das férias escolares, o padre Rua convidou o padre Cartier para ir a Turim, em companhia de
dois conselheiros leigos, o advogado Gaston Fabre e o senhor Vincent Levrot. Combinariam
com os inspetores da França.4 Mas, provavelmente iludidos pelos amigos políticos de direita,
os inspetores Bologna e Perrot, aos quais se juntara Charles Bellamy, superior na Argélia, foram
de parecer contrário. O padre Rua aceitou, pelo menos provisoriamente, sua opinião. Assim,
no dia 19 de julho, escrevia outra carta a Louis Cartier analisando a situação:
Caríssimo padre Cartier, agradeço-lhe pela solicitude empregada no assunto das leis iminentes.
Devo, porém, observar-lhe que o padre Bologna, o padre Perrot e o padre Bellamy, interpelados,
não sabiam que deviam vir a Turim ou a outro lugar para tratar sobre o assunto. Eles esperam que
essas leis devam sofrer tantas modificações a ponto de se tornarem quase inócuas ou a ponto de
abrir o caminho para novas alternativas. Por isso, não será talvez necessário perturbar esses caros
amigos [Fabre e Levrot], se não se manifestar nenhuma necessidade urgente. Agradeça-lhes, porém,
de nossa parte...5
Visivelmente preocupado, no dia 1º de agosto voltava sobre a questão da reunião em Turim,
que, acima de tudo, podia ser realizada de forma restrita.6 Segundo o parecer do padre Rua, a
melhor alternativa – que já Dom Bosco tinha usado – consistia em deixar de parecerem reli-
giosos. Rigorosamente falando, os salesianos não faziam parte de uma congregação religiosa,
mas de uma “sociedade de beneficência”. Constituíam uma associação de eclesiásticos e de
leigos com escopos humanitários. Durante as pesquisas realizadas em Nice, teria sido preferível
apresentar-se como “Société de prêtres e de bourgeois livres”, fazia observar ao padre Cartier, no
dia 3 de janeiro de 1901, num francês correto, mas de sentido duvidoso, pois precisava suben-
tender no termo bourgeois o italiano borghesi, isto é, cidadãos ou civis.7
3 XXVème anniversaire..., p. 125-128.
4 Carta de M. Rua a L. Cartier, Turim, 26 de junho de 1900. In: FdR 3881A1.
5 Carta de M. Rua a L. Cartier, Turim, 19 de julho de 1900. In: FdR 3881A3-4.
6 Carta de M. Rua a L. Cartier, Turim, 1º de agosto de 1900. In: FdR 3881A5-7.
7 Carta de M. Rua a L. Cartier, Turim, 3 de janeiro de 1901. In: FdR 3881B3.
231

12.7 Page 117

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Enquanto os meses passavam, a lei do governo francês sobre as associações tomava forma.
Um dos projetos, apresentado no dia 14 de novembro de 1899, distinguia dois tipos de asso-
ciações. Em linha de princípios, os contratos de associação podiam ser concluídos livremente,
por meio de uma declaração à prefeitura; mas as associações, denominadas eufemisticamente
“pequeno-burguesas”, “que incluem a renúncia aos direitos comerciais” seriam proibidas, exce-
to com autorização do governo.8
A lei foi promulgada pelo presidente da República, Emile Loubet, no dia 1º de julho de
1901. Muito liberal para a sociedade civil, a lei se tornava restritiva somente no longo pará-
grafo terceiro, destinado unicamente às organizações religiosas. Essas associações causavam
sérios problemas ao Estado francês, naquele momento decididamente anticlerical. Lia-se nele:
“Nenhuma congregação religiosa pode ser formada sem uma autorização conferida pela lei, que
determinará as condições de seu funcionamento. Não se poderá fundar nenhum instituto a não
ser por decreto expresso do Conselho de Estado. O Conselho de ministros poderá promulgar
decretos que ordenam a dissolução de uma congregação ou o fechamento de qualquer institu-
to” (art. 13). Os redatores da lei previram que as congregações procurariam pretextos. Vinte
anos antes, esse gênero de subterfúgios tivera sucesso, a despeito dos políticos de esquerda.
Assim, a lei se premunia contra todo subterfúgio: “A ninguém é permitido dirigir, diretamente
ou por pessoa interposta, um instituto de ensino, de qualquer ordem, nem ensinar, se pertencer
a uma congregação não autorizada”; os transgressores seriam punidos, os institutos interessados
poderiam ser fechados (art. 14). “Toda congregação formada sem autorização será declarada
ilícita. Aqueles que tiverem feito parte dela serão punidos [...]. A pena aplicável aos fundadores
ou administradores será duplicada” (art. 16). Um artigo declarava nulos todos os atos entre
vivos ou os testamentos, a título oneroso ou gratuito, realizados tanto diretamente como por
via indireta, que tivessem por objeto permitir às associações legal ou ilegalmente formadas
subtrair-se às disposições da lei (art. 17). Finalmente, segundo o artigo 18, as congregações
existentes não autorizadas anteriormente – era o caso da maioria das sociedades religiosas,
tanto masculinas como femininas, e especialmente dos salesianos e das salesianas – deveriam
requerer, no prazo de três meses, a autorização para subsistir; na falta disso, seus bens seriam
colocados à venda legal, isto é, confiscados e liquidados.
A tática salesiana diante da nova lei
As autoridades salesianas, e o padre Rua à frente, deveriam, portanto, decidir o comporta-
mento a ser adotado até 1º de outubro. Os meses de julho, agosto e setembro de 1901 foram
críticos para o Reitor-Mor e para os inspetores franceses. As decisões podiam ser tomadas
somente em Turim, sob o controle do padre Rua. Não fazer nada significava condenar-se a
morrer em curto prazo. Depois da promulgação da lei, o padre Rua escreveu a Louis Cartier:
[...] Naquilo que diz respeito à nova lei sobre as congregações, convirá que você tome informações
exatas de outras congregações e de pessoas legais que conheçam a fundo a questão e depois venha
para cá logo depois da Assunção, trazendo consigo algum bom amigo que julgar mais capaz de dar-
8 Cf. eventualmente J.-P. Machelot, La République contre les libertés, Paris, 1976, p. 369-370.
232
-nos luz sobre o assunto espinhoso [...] Procure vir bem preparado sobre todos os pontos e combine
com o padre Perrot sobre o tempo em que virão.9
As decisões se faziam urgentes. De fato, o eventual pedido de autorização deveria ser en-
tregue, quando muito, nos primeiros dias de outubro. Depois de duas semanas, o padre Rua
anunciava a Cartier que a reunião fora antecipada para o dia 29 de julho, e aparecia o nome
“caro amigo”: “Veja se pode encontrar-se, também você, com o advogado Favre [Fabre] e algum
outro que lhe parecer oportuno”.10 O advogado Gaston Fabre será o principal conselheiro jurí-
dico de Louis Cartier e, consequentemente, dos salesianos sobre a vicissitude das congregações
durante a primeira fase do debate.
No verão de 1901, aconteceram em Turim duas séries de reuniões sobre o problema,
sob a égide do padre Rua.11 A primeira, de 31 de julho a 2 de agosto, sob a influência de
personalidades amigas do padre Bologna, concluiu que seria preciso requerer, em nome de
todas as casas salesianas do país (da Argélia, inclusive), a autorização para existir nas devidas
formas, para uma Congregação de Dom Bosco, cuja sede principal seria em Paris. Nesse
caso, o padre Rua mostrava muita confiança em seus filhos franceses, aos quais permitia criar
outra congregação, diferente da sua. Mas, no início de setembro, no momento da segunda
reunião, as coisas mudaram.
Naquele momento, todos os diretores das casas da França se encontravam em Turim para
o nono Capítulo Geral. Conversaram. Surgiu um fato novo: o diretor da escola salesiana de
Montpellier, Paul Babled, tinha recebido uma carta do bispo daquela cidade, dom de Cabrières
(1830-1921), que desaconselhava o pedido de autorização. Segundo ele, causaria, se fosse acei-
ta, aborrecimentos de todo tipo. Sugeria a “secularização” dos salesianos franceses, providência
que a própria Congregação dos Bispos e Regulares havia projetado numa carta circular para os
superiores das congregações, datada de 10 de julho de 1901. A opinião de dom de Cabrières
tinha certo peso para os salesianos, sobretudo para os do sul da França, que por ele tinham
sido sempre favorecidos. Com o apoio de Louis Cartier, sua proposta, vista por todos como
vantajosa, levou a melhor no momento do voto: no início de setembro os 22 diretores presentes
se declararam favoráveis à secularização. O padre Rua concedeu seu assentimento, com a con-
dição de uma aprovação romana. Louis Cartier se dirigiu imediatamente a Roma e voltou de
lá com todas as autorizações possíveis do cardeal Parocchi, protetor da Congregação Salesiana,
e do cardeal Gotti, prefeito da Congregação dos Bispos e Regulares.
9 Carta de M. Rua a L. Cartier, Turim, 5 de julho de 1901. In: FdR 3881C1.
10 Carta de M. Rua a L. Cartier, Turim, 22 de julho de 1901. In: FdR 3881C2.
11 As fontes para a reconstrução dessas vicissitudes se encontram em ASC, dossiê Nice. Sobre o episódio
francês, cf. o documentado capítulo de Annali III, p. 124-143; cf. também F. Desramaut, Don Bosco à
Nice. La vie d’une école professionelle catholique entre 1875 et 1919. Paris, Apostolat des Éditions, 1980, p.
103-116.
233

12.8 Page 118

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Em assembleia, os salesianos franceses tomavam seis decisões em vista de sua secularização.
1) Secularização: todos os padres e todos os salesianos com ordens maiores (subdiáconos e
diáconos) apresentariam pedido de secularização ao padre Rua, o qual a concederia. Os coadju-
tores seriam considerados como assalariados e assinariam todo mês um recebimento de salário
(fictício). As irmãs usariam roupas civis, modestas, mas não uniformes, por razões fáceis de
intuir. Em suas casas não autônomas, isto é, contíguas às obras salesianas, seriam oficialmente
pagas e nas casas autônomas seriam consideradas oficialmente instituidoras de escolas livres.
2) Noviciados: os dois noviciados da França (Saint-Pierre des Canons e Rueil) seriam agrupados
num só e os noviços enviados para fora do país. 3) Bens: os imóveis estariam sempre dependen-
tes de sociedades civis, enquanto os bens móveis seriam entregues aos respectivos diretores das
obras. 4) Correspondência: as cartas destinadas aos superiores ou escritas por eles seriam coloca-
das num envelope duplo e expedidas para endereços combinados. Assim, parecia fácil esconder
a identidade dos correspondentes que se tornavam, mais que “pais” ou “irmãos”, simplesmen-
te “senhores”, “amigos” ou “tios”. 5) O Bulletin Salésien daria explicação da secularização,12
tranquilizando, porém, os cooperadores sobre a continuidade da obra salesiana na França.
6) Finalmente, o Catálogo geral da Congregação não diria mais nada sobre as obras francesas.
A hostilidade dos governantes obrigava os salesianos à clandestinidade.
Mas surgiu uma nova e grave desventura: numa carta datada de 6 de setembro de 1901, o
velho cardeal arcebispo de Paris, François Richard (1819-1908) – aquele que deveria acolher
em seu clero o padre Giuseppe Bologna, provincial de Paris e diretor da obra parisiense – de-
saconselhava a secularização em favor da autorização. A unanimidade conseguida na véspera se
rompeu. Louis Cartier não mudaria de opinião; o grupo dos diretores da inspetoria do sul se
juntou ao redor dele para apoiá-lo. Também o padre Rua continuou a pensar na secularização.
Na inspetoria do norte, Angelo Bologna, diretor da importante casa de Lille e irmão do inspe-
tor de Paris, fez o mesmo, distribuindo aos irmãos os rescritos romanos que os secularizavam
oficialmente. Mas o inspetor do norte, que seguia uma política de conciliação com as autorida-
des e queria continuar em boas relações com seu bispo, rendeu-se à fórmula do cardeal Richard
e arrastou progressivamente nessa linha toda a inspetoria.
Voltando para casa, a fim de dar os últimos retoques no seu pedido de autorização, quis
a todo custo apresentar uma frente salesiana unida e, com uma manobra de último minuto,
conservada escondida, englobara região do Midi13 em seu pedido. O padre Bologna tentou
até convencer o padre Rua. No dia 1º de outubro, na antevéspera do dia em que o pedido de
autorização devia ser apresentado, telegrafava para “Miguel Rua, Turim: Pergunta se a autori-
zação deve ser apresentada por todas as casas ou somente pelo norte”. Os arquivos salesianos
conservaram esse telegrama com a minuta da sábia resposta do superior geral: “Apresentem
o pedido somente para o norte”. O padre Rua não mudara de opinião e prestava, assim, um
imenso serviço à inspetoria do Midi, que se salvaria. Essa espécie de desautorização não desar-
mou o padre Bologna, que – sem nenhum sucesso – fez pressão sobre o inspetor de Marselha.
Os traços da sua intervenção, onde figura o nome do padre Rua, aparecem numa carta que o
inspetor Pietro Perrot escreveu a Louis Cartier no dia 4 de outubro:
12 “Heure d’angoisse”, Bulletin Salésien, outubro de 1901.
13 Midi (Meio-dia), região situada no sul da França (N. T.)
234
[...] Se o consultei por telegrama hoje, é porque entendi de uma carta do padre Bologna, chegada
ontem mesmo, às 3 horas, que pedia, com a permissão do padre Rua, a autorização para o Norte
e me animava a fazer igualmente. O senhor respondeu negativamente e acredito que tem razão.
Consultei os diretores somente por escrúpulo, visto que o tempo muito limitado não me permitia
convocar as pessoas. Nós não mudaremos nada das decisões tomadas.
P. Perrot.
A inspetoria de Paris seguirá seu caminho. De Turim, o padre Rua não podia fazer nada
mais senão observar os desenvolvimentos da crise. A nova Congregação Salesiana, com seus
diversos centros devidamente registrados, dependentes todos da inspetoria de Paris, pare-
ceu, num primeiro momento, ter um tratamento favorável. Enquanto o governo submetia
à Câmara dos deputados – mais anticlerical – a maioria dos pedidos de autorização e os
subdividia em blocos por graus pejorativos (monges professores, monges pregadores, mon-
ges comerciantes...), o pedido do padre Bologna foi desviado para o Senado com o de cinco
outras associações religiosas. Emile Combes, assumindo a presidência do Conselho de minis-
tros, se encarregou dela pessoalmente no dia 2 de dezembro de 1902. Mas associou o pedido
salesiano com considerações caluniosas sobre a exploração do trabalho infantil por parte de
religiosos membros de uma Congregação estrangeira e sobre a ideologia que eles instilavam
em seus alunos. Estava convencido de que os salesianos eram nocivos ao comércio e à indús-
tria particular. Era preciso, portanto, recusar seu pedido de autorização. Os salesianos (Louis
Cartier e Giuseppe Bologna) protestaram com duas breves publicações para tentar fazer
mudar tal opinião. Não conseguiram.
Depois, a questão dos salesianos passou para o Senado. Apesar das lembranças favoráveis
que tiveram de seus ex-alunos e amigos de Lille, Dinan, Orã e Paris, apesar de um debate muito
correto que se prolongou por duas sessões, nos dias 3 e 4 de julho de 1903, e faria mudar os
espíritos se fossem menos sectários, o voto final resultou contrário aos salesianos. No dia 4 de
julho, 98 senadores se declararam favoráveis à aplicação da lei, portanto à autorização, mas
158 votaram contra. “O Senado não aprovou”, concluiu o Journal Officiel. Os salesianos do
norte da França perderam. Durante o verão desocuparam todas as casas (Paris, Lille, Dinan,
Mordreuc, Rueil, Ruitz, Coigneux, Saint-Denis). Encontrá-los-emos no exterior, em alguns
casos, com um grupo de órfãos: na Suíça, na Bélgica, em Guernesey, na Itália, e também nos
territórios de missão. Outros se refugiaram nas casas do Meio-dia.
Essas casas do sul, cujos membros eram oficialmente “secularizados” e, do ponto de vis-
ta legal, não dependiam mais da administração de Turim, seguiram cada uma o seu cami-
nho. As obras pequenas (Nizas, Montmorot) desapareceram bem depressa. Uma delas (Ro-
mans) conseguiu, no entanto, fazer-se reconhecer pelo poder civil sob a aparência de uma
administração declaradamente “leiga”. Quanto às casas importantes – Nice, Marselha, La
Navarre e Mont­pellier –, apesar da constituição de administrações leigas, não conseguiram
sobreviver senão a preço de investigações e citações em tribunal por reconstituição ilícita
de congregação religiosa, com pagamento de multas, venda de bens e outras vexações. Mas
não desanimaram. Durante os últimos anos do reitorado do padre Rua, encontravam-se
no território francês ainda algumas obras salesianas com verdadeiros religiosos e religiosas,
todos oficialmente secularizados.
235

12.9 Page 119

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Nosso Reitor-Mor não poderia fazer mais pelas casas. Os problemas mais sérios vieram-
-lhe dos inspetores Pietro Perrot e Giuseppe Bologna. Foram tão complicados que convém
apresentá-los num capítulo próprio. Assim, teremos modo de aprofundar o método de governo
do padre Rua, personagem-chave nas suas vicissitudes.
236
Capítulo 26
A crise dos inspetores franceses
O poder foge do inspetor Pietro Perrot
A agitação da Congregação Salesiana na França colocava os inspetores Perrot e Bologna
numa situação inédita que criaria grande embaraço ao Reitor-Mor. Os desenvolvimentos que
se seguiram à sua destituição, que parecem excessivos, nos permitem conhecer melhor o méto-
do de governo do padre Rua, sempre cheio de doçura, equilíbrio e compreensão. Comecemos
pelo Meio-dia, onde a questão do inspetor Perrot se tornou aos poucos explosiva.1
O infeliz inspetor de Paris, Giuseppe Bologna, tinha conseguido a nacionalidade francesa.
Depois da votação fatal de julho de 1903, podia, portanto, viver num apartamento em Paris
na qualidade de ex-salesiano, para tentar ajudar os religiosos franceses, agora dispersos por toda
parte, na França, em Guernesey, na Suíça, na Bélgica ou na Itália. Não foi assim com o inspetor
de Marselha, Pietro Perrot, que com todos os salesianos italianos da província do sul precisou
voltar para a Itália, seu país de origem. Em 1904, definitivamente exilado da França, residia
em Bordighera, na costa lígure entre San Remo e Ventimiglia, onde, num lugar chamado Il
Torrione, os salesianos tinham uma escola e cuidavam de uma paróquia. De lá o inspetor do sul
procurava seguir os seus. Mas o padre Rua compreendeu que a situação se tornara insustentável
e pensou em sua substituição em território francês.
Em 1904, o fechamento oficial da casa de Montpellier deixou disponível o padre Paul Vi-
rion, que tinha assumido sua direção depois da morte de Paul Babled. Paul Virion (1859-1931)
era um francês de origem alsaciana, prudente e bom administrador. Lemos na ata da reunião
do Capítulo Superior, presidida pelo padre Rua, realizada no dia 12 de janeiro daquele ano:
“O Capítulo decide encarregar o padre Virion da visita aos irmãos do sul da França, porque o
padre Perrot, por enquanto, não pode ir à França. Que ele seja avisado desta disposição”.2 O
poder começava a escapar das mãos do padre Perrot. Procurou segurá-lo de novo reunindo em
torno de si os salesianos obrigados ao exílio na Itália. Por que não imitar o inspetor de Paris,
que estabelecia seu centro inspetorial na casa salesiana belga de Tournai, perto da fronteira
francesa? No dia 25 de junho de 1904, a ata do Capítulo Superior registrava a proposta: “O
1 Retomo aqui meu artigo “Les crises des inspecteurs de France (1904-1906)”, RSS 16 (1997), p. 7-56
(aqui citado: “Les crises...”) .
2 Recordamos que todas as deliberações do Capítulo Superior da época do padre Rua se encontram, nas
respectivas datas, em FdR 4240D8-4250D7.
237

12.10 Page 120

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padre Perrot propõe que para a inspetoria do sul seja destinada uma parte da casa de Bordi-
ghera, com o objetivo de lá acolher os irmãos que viessem da França; e que o educandário [a
escola] fosse transferido para Varazze”, um colégio salesiano perto de Savona. “O Capítulo não
aprova.” Compreende-se a recusa de deslocar uma escola para nela acolher irmãos destinados a
outra escola com alunos franceses.
Entre 23 de agosto e 13 de setembro de 1904, devia realizar-se em Turim-Valsalice um
importante Capítulo Geral (do qual falaremos). Pela primeira vez, cada inspetoria elegera um
delegado do inspetor, membro de direito do Capítulo. Na França, Angelo Bologna faria com-
panhia a seu irmão, o inspetor do norte. O Meio-dia tinha optado por Paul Virion. A escolha
convinha totalmente ao padre Rua, que lhe escreveu para Estrasburgo a carta afetuosa que aqui
trazemos:
Turim, 4-VIII-1904.
Caríssimo padre Virion,
Soube que você foi eleito para acompanhar o inspetor. Na ocasião, me parece oportuno que você
passe alguns dias em Dilbeck, perto de Bruxelas, para controlar os trabalhos desse estudantado
[Virion tinha sido arquiteto profissional] e depois parta com o inspetor para vir [a Turim]. Aqui se
falará sobre Montpellier, sobre Marselha e se decidirá sobre o futuro.
Todos os meus respeitos à sua mãe e a nossos amigos, sobre os quais imploro de Deus, como sobre
vocês, toda sorte de bênçãos.
Seu amigo afeiçoado,
Sac. Miguel Rua.3
O padre Rua preparava, assim, o padre Virion para novas responsabilidades.
O padre Perrot é exonerado do cargo
O padre Perrot participou regularmente no Capítulo Geral de Valsalice. No dia 3 de setem-
bro foi convocado com o padre Bologna para uma reunião do Capítulo Superior. Discutiu-se
se era o caso de fechar as casas da França do sul. A ata é lacônica: “O bispo de Montpellier
consente que se retirem de sua diocese os sacerdotes salesianos. Tomam-se várias deliberações
temporárias para colocar pessoal nas várias casas ainda existentes”.
O inspetor Perrot podia ainda manter um cargo que tinha dificuldade de exercer? A maioria
do Capítulo Superior pensava que a coisa não era possível. Essa posição era apoiada pelo padre
Paulo Albera, diretor espiritual e predecessor de Perrot em Marselha. Depois de dez dias do
encerramento do Capítulo Geral, o Conselho Superior se encontrou diante da proposta de
“exonerar o padre Pietro Perrot do cargo de inspetor da França do sul, pois expiraram os seis
anos fixados pelas Regras”. A ata continuava com uma observação que será preciso ter presente
na sequência da questão: “O padre Rua quereria que fosse confirmado. Passa-se aos votos se-
cretos. Com quatro votos contra um o padre Perrot é exonerado do cargo de inspetor. No seu
lugar se decide colocar um simples encarregado que ocupe seu lugar”. Somente o padre Rua se
3 Arquivos inspetoriais salesianos de Paris, dossiê Paul Virion.
238
opusera à proposta.
O encarregado foi Paul Virion, que no dia seguinte ao voto recebia um bilhete de apresenta-
ção em nome do padre Rua e uma nota com o timbre da Congregação Salesiana. O primeiro,
destinado, sobretudo, às Filhas de Maria Auxiliadora, comunicava-lhes: “Dado que o padre
Perrot concluiu seu mandato de inspetor, foi encarregado o padre Virion para substituí-lo nos
negócios de nossa Pia Sociedade e no cuidado do pessoal de ambos os sexos que reside na antiga
inspetoria do sul da França”. A nota, ao contrário, datada de 27 de setembro de 1904, declarava
que o reverendo Paul Virion era encarregado dos negócios da Pia Sociedade de São Francisco de
Sales e, como tal, recomendado pelo padre Rua à benevolência de cooperadores e benfeitores
das obras salesianas.4 Era preciso, sobretudo, informar os salesianos. No dia 28 de setembro, o
padre Rua, numa circular explicitamente destinada “aos irmãos salesianos residentes na França
do sul”, anunciava-lhes que a votação pela “reeleição” do padre Perrot para inspetor lhe tinha
sido “desfavorável” e que, consequentemente, seu mandato estava terminado.5
A notícia não agradou ao exonerado porque, segundo ele, não era proposto nada de satisfa-
tório em troca. Cansou-se de esperar em Bordighera e decidiu fazer ouvir sua voz em Turim.
A partir da designação do encarregado, o padre Rua foi bombardeado pelos seus protestos. São
conservadas doze de suas cartas ao Reitor-Mor somente do período de 20 de outubro a 30 de
dezembro. Repetiam que ele aceitaria somente um cargo de dignidade equivalente àquela da
qual o haviam privado. A direção de uma importante casa italiana não lhe bastava, não gostaria
de ser colocado como chefe de uma expedição missionária ao Extremo Oriente etc. Depois da
primeira carta, o padre Rua, que compartilhava o sofrimento do padre Perrot, foi solicitado a
não mais lhe responder: o secretário do Capítulo se encarregaria disto. E no dia 6 de dezembro
uma ata do Capítulo Superior fez um balanço dos intercâmbios entre Bordighera e Turim:
[...] O padre Perrot escreveu várias vezes que deseja lhe seja dado um cargo equivalente ao grau que
tinha antes, como, por exemplo, visitador das casas das irmãs da Espanha. Coisa que não lhe pôde
ser concedida. O padre Rua propõe a direção da casa de Sampierdarena, que não foi considerada
correspondente a seus desejos; a assistência em Nápoles dos emigrantes italianos, muito difícil para
sua saúde; a direção da missão da China, respondeu que não é mais jovem e termina ameaçando
recorrer a Roma. O padre Rinaldi diz que lhe seja proposto ser secretário de dom Cagliero. O padre
Rua concluiu que lho proporá e, depois, faça o que quiser. Isso, porém, [acrescenta o redator] faz
ver que não merecia realmente o cargo que tinha.
O padre Perrot relutou. Em janeiro de 1905, partiram ainda quatro cartas de Bordighera
para Turim: duas endereçadas ao padre Rua e duas ao conselheiro Celestino Durando. Suas
reclamações enervavam os capitulares. Na ata de 1º de fevereiro de 1905 lemos: “O padre Du-
rando fica encarregado de escrever ao padre Perrot que o Capítulo não tem mais nada a acres-
centar àquilo que escreveu anteriormente, que faça aquilo que julgar preferível”. O ex-inspetor,
no entanto, não se calou. No dia 3, no dia 5 e no dia 24 de fevereiro, e depois no dia 5 de
março, prosseguiu sua campanha de reabilitação com cartas ao padre Durando. Revoltava-o o
4 Esses dois documentos manuscritos do padre Rua se encontram nos Arquivos inspetoriais de Paris,
dossiê Paul Virion.
5 Manuscrito assinado do padre Rua. In: FdR 3984C9-10.
239

13 Pages 121-130

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13.1 Page 121

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tratamento totalmente diferenciado dado ao inspetor da França do norte, padre Bologna, que,
apesar do parecer favorável da maioria dos irmãos, recusara a secularização e pedira a autoriza-
ção governamental para sua inspetoria, perdendo assim todas as casas. Também ele tinha sido
nomeado em 1898 e o vencimento do seu mandato em 1904 não lhe fora fatal, e seu erro não
lhe fez perder nem título nem poder.
A defesa impetuosa do padre Perrot e seu recurso a Roma
Estamos em 1905. Agora, o inspetor “exonerado” reclamava para seu caso uma perícia ju-
dicial elaborada por dois teólogos que, no seu modo de ver, seriam de fato seus advogados.
Eram Giuseppe Bertello e o teólogo moralista Luigi Piscetta. Conseguiu deles um memorial
destinado a criar graves transtornos para o padre Rua.
Perrot acreditava poder afirmar ter sido eleito oficialmente inspetor somente no dia 19 de
março, data da confirmação canônica de seu mandato por seis anos, portanto era vítima de
uma medida injusta e podia reclamar sua reintegração ou um lugar equivalente. O juízo dos
teólogos, segundo ele, lhe era favorável em alguns pontos fundamentais, que explicava assim:
“Não validade da primeira nomeação (a de 1898); consequentemente, é válida somente a de
1902. Necessidade de um motivo grave para tirá-lo do cargo. Obrigação do Reitor-Mor de
defender a honra do irmão. Conselho, ad suavius regimen [para um acordo amigável], de fazê-lo
conhecer os motivos de sua deposição”.6 A questão se tornava espinhosa. O padre Rua evitou
decidir sozinho a medida a ser adotada. No dia 5 de março, uma ata do Capítulo definiu com
cuidado a posição dos superiores:
Depois das cartas do padre Perrot de 24 de fevereiro e de 3 de março, o Capítulo encarrega o
pró-secretário de responder: a) ele espontaneamente com sua carta de 5 de fevereiro propôs uma
consulta teológica, formulou seus quesitos e expôs o nome dos dois teólogos que desejava fossem
consultados, concluindo que: Embora esse modo de proceder não me ofereça senão uma garantia
relativa, todavia me contento com ele”. Os superiores satisfizeram rigorosamente os seus desejos;
b) na carta de réplica à resposta dada pelos dois teólogos consultados acrescenta: “Agora a última
palavra ao Reverendíssimo senhor padre Rua”; c) o senhor padre Rua não quis dá-la sozinho, mas
com seu Capítulo, que o convida a não pensar mais no inspetorado ou em outro posto de igual
dignidade e que se coloque incondicionalmente sob a obediência de seus legítimos superiores.7
O padre Perrot respondeu que nunca havia desobedecido porque nada lhe fora ordenado.
Com essa reação disse alguma coisa muito inoportuna em seu próprio prejuízo... No dia 10 de
abril, o conselheiro escolar Francisco Cerruti foi encarregado de propor (ou melhor, de impor)
ao padre Perrot a direção da casa de Oulx, próxima à fronteira francesa.8 A carta de obediência
partiu no dia seguinte, 11 de abril. O inspetor exonerado, que sonhava com um retorno à hie-
rarquia da Congregação, considerou-a uma afronta. O Oratório do Sagrado Coração de Jesus,
6 Segundo a memória escrita do padre Perrot, “Na conferência de ontem à tarde...”, em ASC, dossiê Pietro
Perrot. Diversas cartas de Perrot, que aqui estão sem referência, estão no mesmo dossiê.
7 Verbali del Capitolo Superiore, 5 de março de 1905. In: FdR 4244E7.
8 Verbali del Capitolo Superiore, 10 de abril de 1905, em FdR 4245A1.
240
fundado em 1895, em Oulx, era uma casa sucursal de 3 ou 4 irmãos, perdida nos Alpes. Por-
tanto, não se moveu e mandou, uma depois da outra, duas cartas de protesto ao padre Rua. De
tal modo que, no dia 18 de abril, exasperado com sua resistência, o Capítulo lhe ordenou, atra-
vés do pró-secretário Gusmano, que obedecesse no prazo de quinze dias, isto é, até no início
do mês de maio.9 O pobrezinho se resignou, com a morte na alma. No dia 4 de maio escrevia
de Oulx para comunicar sua obediência. Mas não estava absolutamente resignado e colocou
em ato a ameaça de recurso à Santa Sé com o envio à Congregação dos Bispos e dos Regulares
de uma carta, na qual pedia ser reintegrado numa função análoga àquela da qual tinha sido
injustamente privado. A Congregação romana tomou nota. Por infelicidade do interessado, a
Congregação tinha ideias muito simples sobre a obediência que os religiosos devem aos supe-
riores em força dos votos. A casuística de Perrot não agradou. Seu recurso foi respondido com
somente uma palavra suficientemente explícita: remittatur (seja devolvida).
Todavia, o padre Rua, que, em sua bondade, teria preferido prolongar o mandato do inspe-
tor do sul da França, tomava sensivelmente seu partido. A Congregação romana tinha apenas
enviado ao remetente sua queixa quando, de Turim, chegava outro recurso, acompanhado de
uma carta do Reitor-Mor e da consultoria Bertello-Piscetta. Esse contra-ataque da autoridade,
à qual apenas se dera razão, que pedia fosse reconsiderado um juízo expresso em seu favor, irri-
tou a Congregação romana. O dossiê passou pelas mãos do consultor Gennaro Bucceroni, que,
sendo provavelmente o autor da devolução da primeira queixa, sintetizou sua solução ao re-
presentante dos superiores salesianos em Roma. Tommaso Laureri (1859-1918), no Vaticano,
exercia o papel de substituto do procurador geral no cargo, Giovanni Marenco. O consultor o
convocou e lhe expressou seu parecer com certa brutalidade (estando as relações como nós co-
nhecemos). O padre Perrot era um péssimo religioso e não tinha nenhuma razão; a Congregação
romana teria respondido assim a Turim. O consultor fazia depois uma advertência paternal à
direção salesiana, portanto, ao padre Rua pessoalmente. Sua fraqueza excessiva e a constituição
de um tribunal para julgar a causa tinham impressionado desfavoravelmente a Congregação
romana. O padre Laureri foi enviado para dizer ao superior: 1) que não escreva mais ao padre
Perrot, porque assim se compromete; 2) que não se dê mais nenhum cargo a esse irmão, por
toda a sua vida; 3) que não se cometa mais o erro de fazer julgar as queixas dos irmãos por
consultores salesianos, mas o superior deve tomar sua decisão e deixar ao interessado a possibi-
lidade de recorrer à Congregação dos Bispos e dos Regulares.10
O padre Rua recebeu a dura repreensão em silêncio.
Não tinha certamente vontade de repetir, em favor do padre Perrot, o erro cometido em
1901 na questão dos diretores-confessores. De resto, ainda antes da injunção romana de não
lhe confiar nenhum cargo de direção, já o fizera nomear em Bordighera “confessor dos irmãos
e auxiliar no trabalho paroquial”, intimando-o a se dirigir para lá dentro de quinze dias. Como
de costume, o interessado bateu o pé. Como a obediência tinha sido assinada pelo conselheiro
escolar Francisco Cerruti, o padre Perrot respondeu que somente o Reitor-Mor podia mandar
9 Verbali del Capitolo Superiore, 18 de abril de 1905, em FdR 4245A3.
10 Tudo isso, segundo a ata da sessão do Capítulo Superior, datada de 11 de outubro, na qual se comentou
a correspondência do padre Laureri.
241

13.2 Page 122

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em toda a Congregação. Imediatamente, o Capítulo decidiu não lhe responder senão depois
de sua chegada ao destino. Depois de três semanas, o novo confessor de Bordighera ainda não
tinha obedecido. Havia errado totalmente, e sua obstinação fazia dele um rebelde passível de
penas canônicas. Pesava sobre ele o parecer do padre Bucceroni. Durante as sessões de 23-25
de outubro de 1905, o pró-secretário do Capítulo Superior foi encarregado de informar a Con-
gregação dos Bispos e dos Regulares sobre todo o problema e de escrever ao padre Perrot que
devia se dirigir ao seu lugar antes do dia de Todos os Santos. Na falta disso, a partir do dia 9 de
novembro, o ex-inspetor da França do sul não poderia mais celebrar a missa. O padre Perrot
conservava a sua “honra”, que considerava ofendida, mas era, de alguma forma, um bom padre.
Respondeu ao Capítulo que obedeceria, mas mandaria um terceiro recurso a Roma. No dia
31 de outubro voltava para Bordighera.
Depois de suas aventuras, o problema não diz mais respeito à nossa história. Escreveu e pu-
blicou um longo memorial justificativo onde afirmava reconhecer no padre Albera e no padre
Bologna os responsáveis pela sua destituição irregular em 1904.11 Os anos passaram. Em 1910,
perdeu toda esperança de ser reintegrado, com a eleição de Paulo Albera como Reitor-Mor. Em
1914, aproveitando a guerra, retornou à França, para a casa de La Navarre que tinha fundado
em 1878. Confessor estimado, morreu serenamente no dia 24 de fevereiro de 1928.
O padre Bologna reconstitui a inspetoria da França do norte
Ocupemo-nos agora do colega do padre Perrot, o inspetor francês do norte, padre Giuseppe
Bologna, que viveu uma crise análoga entre 1905 e 1906. Homem ativo, sempre agitado e
fecundo em projetos, não se resignou nunca ao desaparecimento de sua inspetoria, acontecido
em julho de 1903.
Tinha um apartamento em Paris, na rua Montparnasse, e com o consentimento de Turim
pôde estabelecer a sede inspetorial na casa belga de Tournai, perto da fronteira francesa.12
Pensava que as ofertas dos benfeitores voltariam. A redação (de Turim) do Bulletin Salésien
francês devia dar conhecimento disto aos leitores. Daqui derivou uma discussão com o redator
responsável que não aceitava suas intromissões. Considerava como seus não só os noviços e os
irmãos espalhados pela França, mas também os refugiados na Itália, na Bélgica, em Portugal
ou na Inglaterra. O conselheiro escolar geral, padre Cerruti, que era o encarregado de todo
o pessoal, tolerou suas decisões durante os anos escolares de 1903-1904 e 1904-1905, mas
tornou-se mais exigente no início do ano escolar 1905-1906. Essa desordem institucionalizada
o incomodava muito. Deu conhecimento ao Capítulo durante as reuniões realizadas entre
2 e 11 de outubro de 1905. A ata resume assim o debate: “O padre Cerruti pergunta se o padre
Giuseppe Bologna depende ou não de seus superiores; observa que fez de tudo para separar dos
superiores os irmãos que tem sob sua dependência. O senhor padre Rua queria que alguém do
11 Memória do padre Perrot, “na conferência de ontem à tarde...”, publicada em 1906 (em 12 páginas
duplas), onde os nomes de seus adversários são substituídos por espaços em branco que o autor preencherá
à mão. Cf. ASC dossiê Pietro Perrot.
12 Verbali del Capitolo Superiore, 10 de outubro de 1904. In: FdR 4244B12.
242
Capítulo fosse observar tudo bem e relatar, antes de tomar uma decisão definitiva a respeito do
padre Bologna”.13 O inspetor da França do norte, sem saber, corria o risco de seguir o mesmo
caminho de seu colega do sul.
Interrogado sobre suas iniciativas recentes, defendeu-se. Tinha criado, sem permissão, uma
tipografia em Paris. Certo! Mas era para usar as máquinas da casa salesiana de Lille, que estava
fechada. Registraram sua explicação.14 Os meses passavam e ele continuava, como queria, na
reconstrução de sua inspetoria a partir da casa de Tournai. Precisava de homens. Segundo
ele, oitenta irmãos ainda dependiam dele. Escreveu cartas aos franceses refugiados na Itália,
em Portugal, talvez também em outros lugares, para chamá-los novamente ao serviço em sua
inspetoria de origem. Parecia-lhe indispensável ter um noviciado sob seu controle, pois, com
grande pesar, em 1903-1904, não tinha sido consultado sobre as profissões e as destinações
de seus noviços transferidos para a Itália. Depois da supressão de um noviciado reservado aos
franceses em Avigliana e a união de inscritos franceses e alemães em Lombriasco, em 1905, os
postulantes franceses do norte foram desviados para o noviciado da inspetoria belga, estabele-
cido em Hechtel. Lá se sentiam bem, mas estavam fora da jurisdição do inspetor de Paris. Ele
pensava que seria preciso remediar essa falha.
No dia 12 de abril de 1906, colocou o padre Rua a par de seu último mirabolante
projeto. Acabava de reunir seu Conselho inspetorial por ocasião de uma visita à casa de
Tournai. Somente o padre Pourveer, diretor de Guernesey, estava ausente. A discussão
girava sobre os interesses principais da inspetoria. Aproveitando as boas disposições de
uma rica senhora, os conselheiros presentes projetavam alugar, por 600 francos ao ano,
uma bela propriedade que incluía uma casa espaçosa e um grande jardim, situada em
Froyennes, a 25 minutos de Tournai, perto da fronteira francesa. “Pensamos convocar
e lá colocar nossos noviços no próximo ano, isto é, em setembro.” E ilustrava as van-
tagens da situação: uma horta que forneceria verdura para o noviciado e para Tournai;
a possibilidade de lá hospedar os “filhos de Maria” (as vocações “adultas”); um parque
tranquilo e sombreado; um trem perto de casa que, em 10 minutos, levava à estação
local e, em 25 minutos, ao Oratório Saint Charles de Tournai. A senhora favoreceria
certamente os salesianos, e poder-se-ia esperar mais. Poderiam construir um grande edi-
fício na propriedade. Seria equipado com aquilo que fora salvo de Lille. Não se devia
temer nenhum novo encargo econômico. As pensões recebidas atualmente pelos noviços
de Hechtel ajudariam a cobrir as despesas de Froyennes. Ter noviços “nas mãos” pare-
cia uma necessidade indiscutível para o inspetor padre Bologna. A criação desse centro
não exigiria nenhum procedimento canônico especial. O noviciado de Rueil (fechado
em 1903) seria transferido oficialmente para Froyennes. Isso é tudo! O Conselho previa
dez noviços em 1906-1907. O padre Henri Crespel seria um excelente mestre etc. etc.
O padre Bologna apresentava e elogiava seu projeto num manuscrito de sete páginas.15
13 Verbali del Capitolo Superiore, 2 de outubro de 1905. In: FdR 4245C3.
14 Verbali del Capitolo Superiore, 18 de dezembro de 1905. In: FdR 4245D8.
15 Carta do padre Bologna a M. Rua, Tournai, 12 de abril de 1906. In: FdR 3636E9-3637A3; publicada
em “Les crises...”, p. 45-47.
243

13.3 Page 123

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O Capítulo Superior leu a carta na atmosfera de desconfiança que suas iniciativas, consi-
deradas fantasiosas, tinham suscitado. Sua vontade de criar um noviciado na Bélgica só para
sua inspetoria devia ser-lhe fatal. O padre Rua se consultou em particular com o prefeito geral,
padre Rinaldi, e com o diretor espiritual, padre Albera. Depois, no dia 22 de maio, o Capítulo
Superior avaliou a resposta que seria dada. As maravilhosas vantagens da situação, da forma
como as pintava o padre Bologna, não o entusiasmavam: “À proposta do padre Bologna de
abrir um noviciado perto de Tournai, o pró-secretário responda que o Capítulo Superior não
considera conveniente; que continue a mandar seus noviços para Hechtel, onde poderão se
formar melhor e os atuais inscritos estão contentes”. O texto continuava com uma frase amea-
çadora para o inspetor muito empreendedor: “O padre Rua convida o Capítulo a rezar e a ver
se não é o caso de trazer o padre Bologna para a Itália”.16
A destituição dolorosa do padre Bologna
O interessado estava bem longe de imaginar a tempestade que sua última proposta havia
desencadeado. Cinco dias depois da reunião em Turim, de seu apartamento em Paris, depois de
ter evocado os problemas jurídicos e financeiros de Lille e de Dinan e anunciado que em Paris
se estava propondo um oratório com a única condição de ter um padre disponível, anotava no
quinto ponto de uma carta enviada ao padre Rua que a concorrência das Oblatas da Assunção
tinha tornado necessária a assinatura do contrato de locação de Froyennes.17
A carta do pró-secretário chegada nesse meio-tempo não o convenceu a voltar atrás. Parecia-
-lhe que o Capítulo Superior não estivesse suficientemente informado sobre a situação da ins-
petoria francesa do norte. Para explicá-la, no dia 1º de junho de 1906, despachou um memo-
rial de 3 longas páginas, distribuído em 21 pontos e intitulado “Sobre a Inspetoria S. Denis.
França do norte. Noviciado”. Era fruto de suas reflexões sobre a absoluta necessidade de ter
um noviciado para a própria inspetoria. Escrevia que, antes de tudo, a inspetoria continuava
a subsistir “diante da Igreja e da Congregação”. Em segundo lugar, tinha um noviciado cano-
nicamente ergido, por decreto de 20 de janeiro de 1902, e estabelecido em Rueil, na diocese
de Versalhes. Transferido para a Itália, em Avigliana, esse noviciado havia sido fechado, sem
explicações. Era preciso encontrar uma substituição para ele. Seguro de si, terminava o memo-
rial com uma frase temerária: “21º – As razões aduzidas na carta do secretário do Capítulo que
tendem à recusa da autorização solicitada são inconsistentes e provam somente que o Capítulo
não está suficientemente documentado para julgar sobre a conveniência ou não conveniência
com conhecimento de causa”.18 Com essa reação pouco diplomática, o padre Bologna dava um
passo em falso.
16 Verbali del Capitolo Superiore, 22 de maio de 1906. In: FdR 2947A3-4.
17 Carta de G. Bologna a M. Rua, Paris, 27 de maio de 1906. In: FdR 3637ª4-7; publicada em “Les
crises...”, p. 47-48.
18 Essa memória, datada de 1º de junho de 1906, se encontra em FdR 3640A7-9; publicada em “Les
crises...”, p. 48-50.
244
O Capítulo Superior não ignorou suas objeções sem refletir sobre elas. No dia 12 de junho
remeteu para uma sessão posterior as deliberações para a administração salesiana na França.19
Mas os jogos estavam feitos. A faca caiu no dia 19 de junho durante uma sessão dedicada intei-
ramente ao caso do padre Bologna. A seguir, a ata dessa sessão decisiva.
O senhor padre Rua e o padre Albera dão notícias sobre como o padre Bologna escreve aos irmãos
franceses de Portugal, da Itália e de outros lugares convidando-os a voltar para a França e sobre as
novas obras que gostaria de fazer. É lembrada a relação feita pelo padre Bologna, em nome de seu
conselho, que é pouco respeitosa para com o Capítulo Superior e se decide:
Que a casa de Tournai, pertencente à inspetoria belga e cedida temporariamente ao padre Bologna,
volte novamente para a Bélgica.
Será nomeado inspetor da França do sul o padre Paolo Virion, até agora simples encarregado da
Inspetoria: a proposta em votação secreta resultou de 6 votos a zero.
Com 6 votos sobre 6 se estabelece que o padre Paolo Virion, inspetor da França do sul, seja tem-
porariamente encarregado do governo da inspetoria do norte.
Acrescenta-se que, em vista disto, o senhor padre Rua chame para Turim o padre Bologna, comuni-
que da forma que lhe parecer oportuna a tomada de decisão e lhe confie o cargo que julgar melhor.
Mas conviria que nenhum dos superiores dissesse as razões pelas quais foi tirado do cargo de inspe-
tor, limitando-se a dizer que se acreditou melhor tomar essa decisão para o bem da Congregação.
Isto evitará não poucos inconvenientes.20
Giuseppe Bologna foi, portanto, destituído do cargo e substituído por Paul Virion. A con-
clusão da ata pode surpreender, mas tem uma razão. As medidas eram provocadas pela con-
duta incorreta do padre Bologna, como se compreende das primeiras linhas da mesma ata.
Mas os membros do Capítulo não poderiam revelá-las a ninguém, sobretudo ao interessado.
A motivação do juízo permanecia, portanto, secreta. Turim temia, evidentemente, um debate
complicado, não somente com o inspetor destituído, mas com seu conselho, seus irmãos e seus
amigos da França. Mas havia o reverso da medalha. O silêncio, cômodo para os superiores,
exasperaria, no entanto, o pobre padre Bologna, obrigado a se curvar diante de uma punição,
para ele evidente, sem poder explicar seu motivo para si mesmo e para os outros. Vai ter que
“falar grosso” durante três meses.
Chamado pelo padre Rua a Turim, para ser informado das decisões tomadas no dia 19 de
junho, o padre Bologna passou lá uns dez dias no mês de julho. No dia 13, o Capítulo encarre-
gava o conselheiro escolar, padre Cerruti, e o ecônomo padre Rocca de explicar-lhe que a casa
de Tournai, da qual fizera sua sede inspetorial, voltaria para a inspetoria da Bélgica. Além disso,
os irmãos de origem francesa, no momento espalhados em outras inspetorias, não dependiam
mais juridicamente dele, de nenhum modo. Os superiores não consideravam oportuno supri-
mir a inspetoria da França do norte. Mas, naquela conjuntura, não sendo mais necessários dois
inspetores no país, o inspetor do Sul dirigiria também a inspetoria do norte.21 Depois de quatro
dias, o padre Cerruti prestava contas ao Capítulo do colóquio com o padre Bologna: dele se
deduzia que obedeceria e que concordava, mesmo a contragosto, em se retirar da inspetoria
19 Verbali del Capitolo Superiore, 12 de junho de 1906. In: FdR 3947A8.
20 Verbali del Capitolo Superiore, 19 de junho de 1906. In: FdR 3947A9-10.
21 Verbali del Capitolo Superiore, 13 de julho de 1906. In: FdR 3947B3.
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da França do norte. O padre Rua, que tinha em mãos algumas anotações escritas pelo padre
Bologna depois da conversa com o padre Cerruti, não se mostrou tão otimista. Esperava, no
entanto, convencer o inspetor destituído. Mais que uma nomeação como inspetor na Itália, o
padre Rua achava que ele estaria disposto a aceitar um cargo no Oratório de Valdocco.22
O padre Bologna se considerou deposto do cargo sem motivos explícitos e escreveu um
protesto contra a destituição. Reclamava um procedimento formal que justamente o Capítulo
Superior tentava evitar. Nesse caso, o Capítulo quis mostrar sua determinação. A ata do dia
27 de julho diz: “O senhor padre Rua escreverá ao padre Giuseppe Bologna que o Capítulo
Superior examinou tudo o que ele escreveu e que, apesar disso, unanimemente, decidiu que o
padre Bologna, depois de entregar ao padre Virion tudo o que de direito, venha para Turim,
onde é esperado para outubro”.23
No fim de julho, o padre Bologna voltou a Paris desiludido e irritado. Os membros do
Capítulo Superior haviam respeitado o pedido de reserva que lhes tinha sido ordenado. A cor-
dialidade dos colóquios deixava transparecer isso. O inspetor desiludido não encontrava mais
a atmosfera salesiana calorosa que sempre conhecera em Turim. Aqueles que habitualmente o
haviam animado, consolado e tranquilizado agora o atormentavam. No dia 29 de julho, escre-
veu, em francês, uma longa carta de 15 páginas para o padre Albera:
O Conselho parece não ter previsto as vastas consequências que, neste momento, minha transfe-
rência comporta. Em Turim, percebi que me havia tornado agora um estranho. Nos dez dias passa-
dos na porta de uns e de outros membros do Conselho, não ouvi de ninguém uma palavra paterna.
Ninguém me revelou abertamente seu pensamento. O que eu havia feito, então? Não peço favores,
mas somente a observância exata daquilo que a Regra, o Regulamento e as Normas determinam e
prescrevem. Tenho muitas coisas urgentes para fazer, cujo atraso não saberia como justificar e seria
prejudicial para muitas pessoas. Se ainda me é permitido rezar, faço-o com toda a minha alma para
pedir que me concedam a paz da alma deixando as coisas tais e quais até o fim do meu sexênio.
Pensava, portanto, ter sido confirmado por seis anos em 1904, ano do término do primeiro
sexênio, iniciado em 1898.
De que era acusado? Teria se tornado indigno, ele que se dedicara tanto à Congregação? O que
poderia dizer aos irmãos? Não o comparariam talvez ao padre Perrot, o rebelde de Bordighera?
Devo fazer que todos os nossos irmãos franceses acreditem, sem motivo, que me encontro nas
condições de um indigno, como uma expressão do padre Rua quase me deixou entender? –
removemos aquele padre Perrot –. Não queria ser comparado a ele e não posso deixar acreditarem
que fui punido, tendo a consciência de não ter me tornado desmerecedor, e em se acreditando
o contrário, peço para ser convencido por um processo. Deve haver avisos preliminares; não os
recebi e não acredito tê-los merecido. É minha firme intenção não dar nenhum mau exemplo a
ninguém. Por isso, guardo comigo tudo o que eu escrevo e não falo com ninguém sobre aquilo que
sou obrigado a escrever.
22 Verbali del Capitolo Superiore, 17 de julho de 1906. In: FdR 3947B4.
23 Verbali del Capitolo Superiore, 27 de julho de 1906. In: FdR 3947B6.
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Deveria ainda se justificar, um dia ou outro, pelo menos diante do seu Conselho, de que,
como lhe comunicava um despacho, no dia 27 de julho devia se reunir “para despachar os ne-
gócios em andamento”. Mas dessa vez, pelo menos, não diria nada. E se esforçaria para tomar
certa distância diante dos acontecimentos: “Pensando na situação que será criada pelos salesia-
nos no período de dez ou quinze anos, acredito que a história deverá fazer muitas interpretações
forçadas para legitimar a intervenção atual do Capítulo Superior na direção das coisas relativas
às inspetorias da França. Precisaria deixar-lhes sua pequena autonomia, segundo as Regras”.
Quando acenou ao “processo”, Turim imaginou que faria chegar sua queixa a Roma. Mas
Bologna não era Perrot. Não queria magoar ninguém. Fazia muito barulho, mas era profunda-
mente bom e deixou as coisas claras em sua carta ao padre Albera:
Se pedi que se inicie um processo para fazer-me conhecer os motivos que determinaram minha de-
posição tamquam indignus, entendia dizer dentro da Congregação e nunca citei Roma. Já lhe disse
meu desejo de não causar incômodo a ninguém, mas tenho também o direito de fazer-me defender
porque a mudança que se me apresenta, a meu ver, não tem motivos suficientes e, para mim, tem
todo o ar de uma punição, que não posso aceitar sem julgamento.24
Era muito difícil aceitar que Tournai, a sede inspetorial de onde partiam suas instruções aos
irmãos franceses espalhados cá e acolá, fosse tão bruscamente anexada à província da Bélgica. No
seu modo de ver, era preciso fazer viver suas casas, para as quais lhe eram pedidos clérigos. No dia
1º de agosto, escrevia ao padre Barberis: “Eu lhe peço e suplico que me restitua aqueles que
ainda estão em Ivrea. No ano passado, havia lhe pedido Moitel; não mo deixou vir e, depois,
o deu ao Midi.25
O padre Bologna, no dia 6 de agosto de 1906, expediu seu protesto ao Reitor-Mor. O padre
Rua nele leu, entre outras coisas: “Sendo a casa de Tournai casa inspetorial e as condições atuais
as mesmas do momento em que foi atribuída à inspetoria, ela não pode ser tirada sem deixar o
tempo necessário para fazer recurso, isto é, pelo menos três anos depois da diffida”. Posto que a
passagem da casa para a província belga equivalia, para seu pessoal, a uma mudança de pátria,
teria o direito de ser consultado sobre o assunto. Havia-se “passado por cima” dessa exigência,
continuava o padre Bologna, ele mesmo ficaria com o diretor Patarelli e quatro outros padres
franceses. De resto, era de se temer uma fuga geral desse pessoal. “Que cada um reconheça sua
responsabilidade!”, este era o seu parecer.
Naquele momento, persuadido de que a manobra tinha o objetivo de fazer desaparecer a
obra salesiana na França, não queria nenhum Virion ao seu lado antes do término de um man-
dato que acreditava devesse se prolongar até 1910. O que pensaria Dom Bosco de tal obra de
demolição? “É inútil me mandar o padre Virion ou qualquer outro antes do fim do meu man-
dato. Considerar-me-ia um criminoso se não empregasse todas as minhas forças para impedir
que se completasse a destruição da obra de Dom Bosco na França. Ouço agora nosso bom pai,
24 Carta de G. Bologna a P. Albera, Paris, 29 de julho de 1906. In: FdR 3640B7-C3; publicada em “Les
crises...”, p. 50-51.
25 Carta de G. Bologna a J. Barberis, s. 1., 1º de agosto de 1906. In: FdR 3640A11-12; publicada em “Les
crises...”, p. 52.
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em Marselha, exclamar: é difícil afrancesar uma Congregação. Dom Bosco amava a França e a
França prestou serviços à sua Congregação. Dom Bosco semeou e nós regamos o campo durante
29 anos.” A revolta o atraía, sendo a separação do centro totalmente previsível, depois dos atos
do verão de 1901, sobre a secularização dos salesianos franceses. “Tenho a terrível tentação de
me servir de suas cartas de dispensa (subentendido: dos votos religiosos) e das cartas de seculari-
zação de Roma para tomar, em nosso nome, o cuidado das obras que ainda nos restam na França
e que tivemos tanta dificuldade para criar”, escrevia ao padre Rua. Mas, neste ponto, despertava
nele o espírito do religioso leal. “Espero, de alguma forma, que não me leve até tal ponto. Se
ouvisse o desgosto e a indignação pelos procedimentos, sem um mínimo de clareza e franqueza,
que foram usados para me conduzir até onde estou, temeria cometer alguma loucura”. E termi-
nava a carta com esta invocação: “Que a Auxiliadora e Dom Bosco me ajudem. – G. Bologna”.26
Sua virulência não diminuiu durante as semanas de julho-agosto de 1906. Apelou para as nor-
mas canônicas a fim de ter explicações sobre a deposição e sobre a modificação das inspetorias re-
ligiosas. Parecia-lhe que se havia urdido uma espécie de complô contra a obra salesiana na França.
O objetivo que parece quererem perseguir é o de destruir a obra salesiana na França – escrevi
textualm­ ente ao padre Rua no dia 17 de agosto –. Note isto. Fomos recebidos em Avigliana, de-
pois em Lombriasco, mas furtivamente usurparam a autoridade do inspetor, tiraram-lhe o pessoal
que, até àquele momento, dependia dele. O padre Albera exerceu um ato de autoridade e toda a
inspetoria foi desmembrada, e o golpe que se queria ainda infligir-lhe acabaria por destruí-la defi-
nitivamente. Seria realmente lamentável.
Os treze parágrafos de sua carta de 17 de agosto ao superior geral eram todos igualmente
duros. Concluía a carta em tom seco: “Ouso esperar que quererão encontrar uma justificativa
para o meu modo de reclamar a proteção das normas da Igreja, considerando que parece terem
me tratado como se me tivesse tornado indigno da Congregação, coisa que não acredito abso-
lutamente. – G. Bologna”.27
Turim lia e compreendia suas recriminações. O padre Rua e o padre Albera, os principais
interpelados que gostavam desse válido colaborador, também eles sofriam com sua dor. Esses
homens de ação não tinham um diário, ao qual, em caso de necessidade, pudessem confiar suas
dores. Mas, preocupado com a boa ordem geral, o Capítulo Superior mantinha o seu dever de
regularizar a situação na França do norte. A questão de Tournai devia ser sistematizada antes
da abertura do novo ano escolar. Na Bélgica, o inspetor Francesco Scaloni (1861-1926) queria
saber como devia se comportar. No dia 11 de setembro, o Capítulo decidia que a casa de Tour-
nai, que só provisoriamente e por razões especiais tinha sido separada da província belga, devia
ser reintegrada, quando muito, no dia 1º de outubro. “Para conseguir que tudo seja realizado
da melhor maneira possível, pede-se que o padre Albera vá até ao lugar e faça também o padre
Bologna compreender que os superiores estão firmes na resolução tomada.”28 O diretor espiri-
tual geral, de fato, foi a Paris nos dias seguintes. O padre Bologna dirá que o padre Albera não
26 Carta de G. Bologna a M. Rua, Tournai, 6 de agosto de 1906. In: FdR 3647B5-9.
27 Carta de G. Bologna a M. Rua, Tournai, 17 de agosto de 1906. In: FdR 3637C1-4; publicada em “Les
crises...”, p. 53-54.
28 Verbali del Capitolo Superiore, 11 de setembro de 1906. In: FdR 4246 C2.
248
lhe havia comunicado nada de novo; mas de Liège, de onde continuou sua viagem, com uma
carta escrita de seu próprio punho lhe fez saber claramente, dado que o Capítulo Superior lho
havia imposto, que seus recursos contra a destituição não tinham convencido ninguém.
No dia 24 de setembro, a resignação levou finalmente a melhor sobre o ânimo do
ex-inspetor. Com grande tristeza, o “humilde e miserável” Giuseppe Bologna expressou sua
total submissão ao superior geral. Não conseguia se convencer de que a providência de desti-
tuição tivesse vindo dele. De fato, escrevia, “Tudo o que fiz, eu o fiz com sua ordem”. Apesar de
tudo o que aconteceu, se tal era sua vontade, a partir de 1° de outubro, comportar-se-ia como
um simples irmão e não exerceria mais qualquer autoridade na inspetoria da França do norte.
Todavia, até ao final do ano, deveria ajustar seus negócios como melhor lhe parecesse oportu-
no.29 E Turim percebeu o eco do fermento que fervia forte dentro dele. No dia 24 de outubro,
o padre Rua se queixou com o Capítulo de que em Paris o padre Bologna queria vender tudo
com muita pressa. Prometeu escrever-lhe e lhe pedir que deixasse para seu sucessor tudo como
estava, “o ativo e o passivo”. “Que aja como habitualmente em outras circunstâncias quando
um superior é transferido!”, intimou-lhe a ata do Capítulo Superior.30 Havia a preocupação
pelo desaparecimento de toda a presença salesiana em Paris. Testemunha-o uma nota curiosa
do Capítulo Superior, escrita no dia 5 de novembro de 1906, sobre o salesiano Noguier de
Malijay, que tinha aberto um internato para estudantes. “O padre Virion deve supervisioná-
lo”, lia-se.31 Esta última frase nos diz que naquele momento, em Paris, a mudança de direção se
tornara efetiva. O inspetor do sul assumia a “regência” da província do norte.
Estoico, o padre Bologna se apresentou em Turim no dia 1º de janeiro de 1907.32 Foi-lhe
destinado um quarto perto da igreja de Maria Auxiliadora. No dia 4 de janeiro, celebrou re-
gularmente a missa no santuário. Depois de uma breve saída pela cidade, foi visto voltar pelas
10h30. Às 11 horas, foi encontrado estendido junto à mesa de trabalho, o olhar apagado,
fulminado, pensou-se, por um ataque apoplético. Não tinha ainda 60 anos. O redator do
Bulletin Salésien nos informa que “o padre Rua e os principais superiores da nossa Sociedade
não puderam senão chorar diante dos despojos daquele que tinham aprendido a amar há mais
de quarenta anos”. A opinião comum, documentada pelo Bulletin Salésien, atribuiu o fim pre-
maturo desse homem valoroso às suas desventuras de 1903: o voto hostil do Senado francês,
o fechamento das casas do norte, a diáspora dos salesianos e o confisco de seus bens imóveis.
“Com suprema dor, viu vender, como por encanto, essas casas de trabalho e de oração, das
quais cada pedra tinha para ele uma história. É preciso acrescentar que emoções tão fortes e
abalos tais tinham definitivamente ferido seu organismo e que a verdadeira e própria causa do
seu passamento, é preciso perguntá-la a essas angústias que ameaçaram sua existência sem fazer
barulho.”
29 Segundo a carta de G. Bologna a M. Rua, Paris, 24 de setembro de 1906. In: FdR 3637C5-10; publicada
em “Les crises...”, p. 55-56.
30 Verbali del Capitolo Superiore, 24 de outubro de 1906. In: FdR 4246D10.
31 Verbali del Capitolo Superiore, 5 de novembro de 1906. In: FdR 4246D12.
32 Sigo aqui a nota anônima “Don Joseph Bologne”, em Bulletin Salésien, fevereiro de 1907, p. 40-42.
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Os padres Rua, Albera, Rinaldi, Cerruti, Rocca, Gusmano, membros do Capítulo Superior
que tinham lido ou ouvido o grito de angústia do padre Bologna durante os meses anteriores, não
podiam compartilhar esta explicação tão simples. Sabiam que sua destituição e aquilo que acredi-
tava (injustamente) ser uma vontade de demolição sistemática de sua inspetoria justamente por
parte daqueles que deviam apoiá-la, o haviam enchido de amargura e lhe tiraram a “paz da alma”.
No início desse ano de 1907, ir a Valdocco não lhe restituiria certamente a serenidade. A prova
de 1903 não conseguira enfraquecê-lo, foi a crise de 1906, ao contrário, que venceu sua vida.
O governo do padre Rua
A narração das desventuras dos inspetores Pietro Perrot e Giuseppe Bologna, durante o
reitorado do padre Rua, nos fornecem informações preciosas sobre o método de governo deste
último.
Seu governo era colegiado. Nada autocrático, ele confiava no Conselho Superior. Seus
colaboradores, autênticos conselheiros, não se consideravam nunca obrigados a obedecê-lo.
Aconteceu-lhe várias vezes dobrar-se ao parecer contrário da maioria, como na questão do pa-
dre Perrot, a quem defendeu denodadamente. É legítimo pensar que se submeteu ao silêncio,
contra sua vontade, sobre os verdadeiros motivos da destituição do padre Bologna, origem
dos gravíssimos tormentos do desventurado, deposto sem lhe comunicar os motivos. Esse seu
modo de governar estava totalmente conforme à ideia que Dom Bosco tinha do Capítulo Su-
perior na sua Sociedade.
O governo do padre Rua era orientado para o bem comum, muito além dos interesses par-
ticulares. A questão do padre Bologna nos indica que, muito embora os sofrimentos que suas
providências podiam causar às pessoas que amava, lhe interessava especialmente, sobretudo,
o bem geral. O ex-aluno dos Irmãos das Escolas Cristãs não gostava da desordem. E os acon-
tecimentos futuros lhe dariam razão. A obra salesiana na França não sofreu por suas decisões
em relação ao padre Perrrot e ao padre Bologna. Muito ao contrário. O sábio Paul Virion,
nomeado para seu lugar – que desempenhou o papel de inspetor nas províncias do norte e do
sul até 1919 –, preparou na tranquilidade (e no sofrimento) a retomada após a Primeira Guerra
Mundial. A obra, fundada por Dom Bosco na França em 1875, conhecerá no norte, a partir de
1925, meio século de verdadeiro e próprio renascimento.
Na história dos dois desventurados inspetores, o governo do padre Rua se revelou ao mes-
mo tempo firme, suave, longânime, sábio e iluminado. Nunca voltou atrás. Nunca vacilou.
Prosseguia depois de ter refletido profundamente e rezado. Por outro lado, pode-se pensar que
o diretor espiritual geral, Paulo Albera, que conhecia bem a situação das inspetorias francesas,
um mundo no qual ele mesmo tinha sido inspetor de 1881 a 1892, o apoiasse e o aconselhasse.
Sua firmeza não era desumana. O padre Perrot e o padre Bologna não tiveram a impressão de
ser maltratados por ele pessoalmente. Bologna acusou o Capítulo, nunca o Reitor. Muito ao
contrário, em julho de 1906, não gostou de não encontrar um tom paterno no padre Rua. Mas,
neste caso, o Reitor se conformava à política imposta por seu Capítulo.
250
Capítulo 27
Os Capítulos Gerais de 1901 e de 1904
O nono Capítulo Geral (1901)
As dolorosas desventuras francesas coincidiram com os dois mais importantes Capítulos Ge-
rais do reitorado do padre Rua, que aconteceram em Turim-Valsalice. Esses Capítulos tiveram
papel decisivo na evolução da Sociedade Salesiana, sobretudo o segundo. Na época, a Congre-
gação estava assumindo proporções tais que exigia atenções e cuidados específicos. Em 1888,
eram 773 professos e 276 noviços, subdivididos em 64 obras. Em 1901, os professos eram
2.916 e os noviços 742, em 265 obras. Em 1904, os professos subirão para 3.223, os noviços
para 764 e as casas para 315.1 Estes números exigiam estruturas e sistemas de formação novos.
O padre Rua estava consciente disso.
O nono Capítulo Geral aconteceu de 1º a 5 de setembro de 1901.2 Reuniu 154 capitulares.
Alguém havia colocado em dúvida a validade dos atos produzidos pelos Capítulos anteriores,
além de algumas decisões desse. Além disso, algumas decisões desse capítulo tinham sido man-
dadas para o parecer da Santa Sé. Assim, o padre Rua precisou esperar até março seguinte para
prestar contas aos irmãos de modo satisfatório.3 Em nossa exposição temos presente a circular
de 19 de março de 1902.
No momento da assembleia preliminar, na tarde do dia 1º de setembro, o padre Rua apre-
sentou o decreto relativo ao ministério das confissões, do qual se falou antes (cap. 24). Com esse
ato, se submetia plenamente às decisões do Santo Ofício. No dia 2 de setembro, foi levantada
a questão da oportunidade de instituir os Capítulos Inspetoriais e a questão da composição
dos Capítulos Gerais da Congregação. Este será um dos problemas deixados provisoriamente
para definição futura. Até então, os Capítulos Gerais aconteciam a cada três anos e reuniam,
além dos membros do Capítulo Superior e dos inspetores, também todos os diretores das casas.
O Capítulo Geral propôs que, no futuro, os Capítulos Gerais fossem celebrados a cada seis
anos, com a participação dos membros do Conselho Superior, do procurador geral da Socieda-
de, dos inspetores e de um, quando muito dois delegados eleitos pelos Capítulos Inspetoriais.
1 Convém aqui recordar que o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, ainda parte integrante da Socie-
dade Salesiana, em 1904 contava com 2.143 professas e 358 noviças, distribuídas em 248 casas.
2 Atas, em FdR 4036C11-4041D10; narração em Annali III, p. 144-169.
3 L. C., p. 269-285.
251

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No fim de 1901, o padre Rua interpelou a Congregação dos Bispos e dos Regulares sobre esse
assunto e a surpreendeu. No dia 2 de fevereiro de 1902, o procurador padre Marenco podia
explicar ao Capítulo Superior que a Congregação dos Bispos e dos Regulares aceitara a pro-
posta de o Capítulo Geral se reunir a cada seis anos e que, em cada inspetoria, se realizasse o
Capítulo Inspetorial a cada três anos.4 Consequentemente, a circular de 19 de março de 1902
comunicou: “No Capítulo Geral de 1904, durante o qual acontecerão as eleições, tomarão
parte somente os inspetores acompanhados de um irmão por inspetoria, eleito pelos professos
da inspetoria”.
Inspetores e inspetorias adquiriam, assim, maior importância. A mudança tinha sido pro-
jetada havia vários anos. Já durante uma reunião de 12 de julho de 1897, o padre Rua fazia
notar aos membros do Capítulo Superior que “seria preciso, com as devidas Regras, atribuir aos
inspetores e aos seus Capítulos a aceitação das novas casas, pois o Capítulo Superior não pode
continuar, em meio a tantos afazeres, a examinar os pedidos, que continuam tão numerosos
a ponto de causar perdas de tempo incalculáveis”.5 Era preciso descentralizar. O padre Rua
aproveitou a circular de 19 de março para notificar aos inspetores aquilo que agora se esperava
deles. Foi muito claro e exigente.
Em primeiro lugar – escreveu – procurem eles, com mão firme, manter em cada casa a obser-
vância perfeita das Regras e o verdadeiro espírito de Dom Bosco. Aqui está o eixo de todo o futuro
de nossa Sociedade. Se os inspetores não forem vigilantes ou se forem fracos, em breve se introdu-
zirá alguma desordem, a inspetoria decairá e toda a Congregação sofrerá prejuízo com isso. Re-
cordem que esta é talvez a maior responsabilidade que eles têm diante de Deus. Finalmente, que
em suas províncias trabalhem na formação de licenciados em teologia, filosofia, letras, ciências
etc., para todo ramo de ensino e para a pregação, sem esperar que tudo lhes deva chegar de Turim.
Iniciava-se a regionalização da Sociedade Salesiana
Na tarde de 2 de setembro, o Capítulo Geral votou decisões importantes sobre a forma-
ção dos clérigos. Até àquele momento, depois do curso de filosofia, a maioria deles estudava
teologia, permanecendo nos vários colégios. Agora, era preciso criar estudantados teológicos
adequados para melhorar sua formação. Aprovou-se a proposta: “O Capítulo Superior insti-
tuirá estudantados de teologia, onde julgar oportuno, a serviço de uma ou mais inspetorias”.
Dado que, como notava a comissão encarregada do problema, com tal decisão as casas seriam
privadas da ajuda importante fornecida pelos clérigos, propôs-se que, no fim dos estudos filosó-
ficos e antes do curso de teologia, eles fossem enviados, por três anos, para trabalhar nas obras.
O Capítulo deu o seu consentimento. O padre Rua podia escrever na prestação de contas de
19 de março de 1902: “Foi deliberado que, depois do curso de filosofia, os clérigos façam um
triênio de trabalho prático nas casas da nossa Pia Sociedade, e, depois desse triênio, se retirem
por um quadriênio nas casas de estudantado para atender seriamente ao estudo da teologia, fa-
4 Verbali del Capitolo Superiore, 12 de fevereiro de 1902. In: FdR 4243D4-5.
5 Verbali del Capitolo Superiore, 12 de julho de 1897. In: FdR 4242B7.
252
zendo lá todo o curso de dogmática, sacramentária, moral etc.”. E apresentava suas razões: “Era
uma necessidade sentida que os nossos clérigos fossem bem formados nas ciências sagradas;
e era tão mais urgente providenciar, que até competentes autoridades eclesiásticas já haviam
feito observações a respeito”. De fato, a Congregação Romana dos Bispos e dos Regulares e o
próprio Leão XIII haviam deplorado a insuficiência da formação teológica dos salesianos.
Na Congregação, às vezes se atribuía a culpa de tudo isso ao Capítulo Superior. O padre Rua
respondeu claramente a esta acusação na manhã de 3 de setembro. Seu discurso aos membros
do Capítulo Geral merece ser citado. Como sempre, Dom Bosco lhe servia de modelo:
Muitas vezes nosso bom Pai também nos exortava a evitar o espírito de contradição, de crítica, de
reforma e quis inserir esta recomendação entre os avisos especiais que ele dava a seus filhos: evitar
o prurido de reforma. Esta recomendação, eu a repito a vocês. A crítica aos superiores é fatal para
uma comunidade, especialmente se proviesse dos diretores ou dos inspetores. Os súditos ficam
desanimados em relação à obediência, desconfiarão dos superiores, como de vocês, e ao mesmo
tempo da própria autoridade de vocês. Deve-se evitar não somente essa crítica aos superiores,
mas também contra os próprios colegas e predecessores. Suas realizações não sejam criticadas:
informar-se sobre o método usado por eles; não demolir ou reformar construções senão depois de
pelo menos dois anos de comprovada necessidade. Evitar a crítica aos próprios dependentes. Isto é
sinal de soberba: pensemos que eles também têm a razão e os olhos para ver e julgar; é contrário à
caridade querer sempre impor a própria opinião; cuidar para não repreender não ouvindo senão o
próprio mau humor; em cada caso, colher as devidas informações. Dom Bosco era ainda admirável
no elogiar e no se mostrar satisfeito com o trabalho de seus dependentes: isso servia para encorajar
ao dever e conciliar seus afetos.6
Na mesma manhã, realizou-se um debate sobre os estudos universitários dos clérigos.
Uma circular da Congregação dos Bispos e dos Regulares, endereçada aos bispos e superio-
res gerais (21 de julho de 1896), proibia aos clérigos seculares e regulares a frequência das
universidades antes de terminar os estudos filosóficos e teológicos. Suas mentes podiam ser
influenciadas negativamente pelos livros, pelos professores e pelo ambiente. Também os
salesianos tiveram de obedecer. Mas como conseguir que os irmãos se resignassem a reto-
mar os estudos literários ou científicos depois de sete anos de abandono (triênio de filosofia
e quadriênio de teologia)? Faltariam nos colégios os títulos acadêmicos; seria preciso recor-
rer a professores externos, com graves despesas e com desvantagem do espírito e dos estudos
dos jovens. A comissão responsável pediu, portanto, que aprovassem um artigo regulamentar
assim redigido: “Os clérigos portadores dos títulos exigidos e julgados capazes por seus su-
periores podem, depois do curso de filosofia, frequentar os estudos universitários e outros
estudos superiores”. Era preciso, portanto, pedir à Congregação dos Bispos e dos Regulares
a dispensa, necessária pelas condições especiais da Sociedade Salesiana. À questão assim co-
locada pela comissão, em 146 votantes, 131 responderam sim, 9 não, 6 se abstiveram. O
padre Rua, nas semanas que se seguiram, apresentará o pedido bem argumentado à Con-
gregação romana,7 que no dia 21 de dezembro concederá por três anos a dispensa desejada,
limitando-a aos indivíduos julgados aptos para o ensino e com todas as precauções necessárias.
6 Citado em Annali III, p. 149-150.
7 Cf. o pedido em Annali III, p. 160-161.
253

13.8 Page 128

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Na abertura da sessão vespertina de 3 de setembro, o padre Rua falou da alegria e da sereni-
dade que Dom Bosco infundia na comunidade. É por isso que ao redor dele eram felizes:
Como nos assemelharmos a ele? Primeiro meio: exatidão nas práticas de piedade, sem a qual não
podem reinar em nós nem em nossas casas a felicidade e a caridade. Erraria quem confundisse a ca-
ridade com o passar por cima de tudo. Segundo meio: fazer observar as Regras de modo agradável e
carinhoso. Terceiro meio: mostrar-se atencioso também no promover o bem físico dos próprios de-
pendentes; ajudá-los nas suas necessidades em caso de tristeza, de indisposições etc. Quarto meio:
não ser muito rígido nas próprias ideias. Também nas reuniões, ouvir de bom grado seu parecer e
segui-lo quando não houver perigo de consequências desagradáveis. Mostrar certa flexibilidade de
caráter. Assim se vai adiante com paz, tranquilidade e alegria.8
Na manhã do dia 4 de setembro, o padre Rua fez algumas recomendações sobre a “caridade
fraterna”. Considerava necessário “ajudar-se mutuamente e apoiar, ajudar e difundir nossas
obras e as de nossos irmãos”. Deu algum exemplo concreto: divulgar as Leituras Católicas,
recorrer aos negócios salesianos para os artigos de ofício, pagar as próprias dívidas às casas sale-
sianas, entregar a cota devida às casas de noviciado.9 Como premissa da assembleia vespertina
daquele dia, julgou-se oportuno expressar seu parecer sobre a modalidade de recrutamento dos
cooperadores e dos irmãos. Como Dom Bosco já fizera, simplificava muito (demais?) as coisas
para os cooperadores.
Dom Bosco dava muita importância à União dos Cooperadores e se esforçava para difundi-la cada
vez mais. É preciso imitá-lo. Para isso não é preciso interpelá-los; basta mandar o regulamento.
Conhecendo-se alguma pessoa bem-intencionada, deve-se mandar-lhe o diploma. Para não haver
duplicidades, perguntar se recebe o Bolletino, sem acenar para obrigações, mas dizer que se trata so-
mente de fazer um pouco de bem, sem ser obrigado em consciência. É preciso aumentar o número
dos irmãos [...]. Primeiro meio: fazer gostar das coisas da Sociedade, falar frequentemente de Dom
Bosco, das missões e de outras obras salesianas. Não aliciar com falsas promessas, mas induzir a sen-
timentos generosos no abraçar a vida religiosa, que é vida de sacrifício. Segundo meio: perguntar
aos párocos com os quais podemos estar em contato, para ver se conhecem algum adulto apto para
ser coadjutor ou familiar; ter, depois, todo o cuidado e, com isso, fazê-los amar nossa Sociedade.
Estamos, por isso, todos interessados neste assunto.10
Toda a intervenção durante esse capítulo revela o espírito organizado, classificador, lógico
do padre Rua e a vontade de seguir fielmente as pegadas de Dom Bosco.
A coroação de Maria Auxiliadora (1903)
O dia 17 de maio de 1903 “será escrito com caracteres de ouro nos anais de nossa Congrega-
ção”, anunciava o padre Rua na “carta edificante”, do dia 19 de junho seguinte, aos salesianos.11
Nesse dia, de fato, o cardeal Agostino Richelmy, a pedido do padre Rua, procedia à solene
8 Citado em Annali III, p. 160-161.
9 Annali III, p. 162.
10 Annali III, p. 164.
11 L. C., p. 475.
254
coroação da imagem de Maria Auxiliadora em seu santuário de Turim.12 A devoção do padre
Rua a Maria Auxiliadora era conhecida. No dia 20 de janeiro de 1900, por exemplo, escreveu
aos irmãos: “É da intercessão de Maria Auxiliadora que devemos esperar luz para a mente, força
para a vontade, vigor para o corpo, prosperidade nos empreendimentos, e todas aquelas ajudas,
também temporais, que são necessárias para nossas casas. Ela que consegue tantas graças para
os nossos cooperadores, quantas delas não conseguirá para nós, seus filhos primogênitos, se a
invocarmos e a honrarmos verdadeiramente como bons filhinhos?”.13
A ideia da coroação da imagem de Maria Auxiliadora tinha vindo de um sacerdote do Ora-
tório, em 1902. O padre Rua logo a fez sua. A tarefa não era simples: para esse rito especial
exigia-se o aval de Roma. O Reitor-Mor decidiu aproveitar o jubileu de Leão XIII, que no dia
20 de fevereiro entrara em seu 25º ano de pontificado, acontecimento raro na história dos pa-
pas. Os salesianos queriam celebrar o jubileu com ênfase especial. Inspirado pelo padre Rua, o
Bolletino Salesiano lançou a proposta a todos os diretores e diretoras das várias obras salesianas
de abrir entre seus jovens um abaixo-assinado que seria reunido num grande álbum a ser apre-
sentado ao papa com o óbolo de São Pedro. No álbum, seriam escritos os nomes dos que assi-
naram com a contribuição mínima de 10 centavos. Dessa campanha, resultaram dois grossos
volumes com 70 mil assinaturas e uma soma de 12.400 liras. O padre Rua decidiu apresentar
tudo pessoalmente a Leão XIII, acompanhado de uma delegação de jovens. Nessa ocasião, pe-
dir-lhe-ia a faculdade de fazer coroar a imagem de Maria Auxiliadora no santuário de Valdocco.
Partiu de Turim, no fim de dezembro de 1902, em companhia de quatro sacerdotes sale-
sianos, dois alunos e dois aprendizes, escolhidos pelos companheiros com escrutínio secreto.
A audiência foi marcada para o dia 5 de janeiro de 1903. Aos turinenses se agregou o procura-
dor geral Giovanni Marenco com dois jovens romanos, que representavam, um o oratório festi-
vo e o outro o internato do Sagrado Coração. Primeiro fizeram entrar só o padre Rua. Expôs ao
papa a razão de sua visita, que era uma homenagem jubilar em nome das três famílias de Dom
Bosco. Falou de um próximo Congresso dos Cooperadores Salesianos, para o qual pediu uma
bênção especial. Finalmente, entregou o pedido da coroação. Depois, foram introduzidos seus
acompanhantes. Dois jovens turinenses apresentaram ao papa o álbum e o óbolo de São Pedro.
E a conversa se prolongou serena. Com grande satisfação do padre Rua, Leão XIII concluiu
com estas palavras, referidas na crônica: “Vosso superior nos diz que foi feito tanto bem com
a Pia União dos Cooperadores, que, graças a ela, a fé se mantém em muitos países, sobretudo
com a devoção à Auxiliadora. Para o desenvolvimento dessa devoção nos foi apresentada uma
petição que acolhemos favoravelmente. Nós concedemos o favor. Reservamo-nos somente es-
tudar como proceder para a realização”. Saindo, o padre Rua estava exultante.
A questão se delongou. No dia 17 de fevereiro, chegou um motu proprio ao cardeal Richel-
my, arcebispo de Turim. O papa decretava a coroação da imagem e o delegava para realizar,
segundo o rito, em seu nome e com sua autoridade. Segundo o padre Ceria, o documento
continuava com estas expressões: “Quando o dileto filho Miguel Rua, Reitor-Mor da Pia Socie-
dade Salesiana, em seu nome e de toda a Família Salesiana, nos fez calorosa e humilde súplica
12 Para este parágrafo, sigo de perto um capítulo de Ceria, Vita, p. 374-382.
13 L. C., p. 466.
255

13.9 Page 129

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para que nós, neste ano em que celebramos felizmente o 25º de nosso pontificado, quiséssemos
coroar aquela veneradíssima imagem, nós, que nada temos de mais caro e de mais doce que
o ver crescer, cada dia mais, entre o povo cristão a piedade para com a augusta Mãe de Deus,
de boa mente julgamos bem atender ao pedido”.14 A notícia foi acolhida com entusiasmo pela
população. Uma comissão de damas se encarregou de mandar um joalheiro da cidade confec-
cionar as coroas.
Entre 14 e 16 de maio, em Turim-Valdocco, devia acontecer o terceiro Congresso Interna-
cional dos Cooperadores Salesianos. O arcebispo de Turim teria sua presidência de honra, o
padre Rua a presidência efetiva. O acontecimento faria confluir para a cidade uma multidão de
amigos e de benfeitores de Dom Bosco.15 A festa da coroação foi colocada no dia do encerra-
mento do Congresso, 17 de maio. Deixamos para o próprio padre Rua a tarefa de nos descrever
aquele dia memorável.
Desde as 2 horas da manhã começaram a acorrer à porta do Santuário os devotos peregrinos. Nun-
ca se viu uma multidão tão numerosa na igreja, na praça de Maria Auxiliadora e em todo o bairro
de Valdocco. E, como se expressa nosso eminentíssimo cardeal arcebispo, o pensamento de todos é
um só, um só é o desejo de todos, ver a fronte da Augusta Rainha do Céu cingida de rico diadema.
Finalmente, chegou aquele momento tão esperado. Sua Eminência o cardeal Richelmy, delegado
de Sua Santidade para realizar a cerimônia sagrada, primeiro na igreja para a taumaturga imagem e,
depois, na praça na devota estátua, impõe com a mão trêmula a coroa adornada de gemas na cabeça
da Virgem Auxiliadora, e, com voz forte, mas velada pela comoção, do alto do palco, pronuncia
as palavras do ritual: Sicut te coronamus in terris, ita et Christo coronari mereamur in coelis [Como
nós te coroamos na terra, possamos merecer ser coroados por Cristo no céu]. Àqueles acentos não
é possível conter a piedade e o entusiasmo dos fiéis, que explodem em fragorosos aplausos, de cada
peito rompe o grito de Viva Maria Auxiliadora! E um coro de milhares de vozes entoa a grandiosa
antífona: Corona aurea super caput ejus [uma coroa de ouro sobre sua cabeça]. Que maravilha se,
com tal demonstração de fé, de piedade e de amor por Maria, corressem abundantes lágrimas dos
olhos! Não posso dizer-vos mais nada, pois as palavras não servem para expressar a alegria daquele
momento, o êxtase suavíssimo no qual todos os corações estão absortos, o tumulto dos afetos, o
ardor das orações que se elevam à nossa dulcíssima Mãe.
Terminou a função da coroação, mas aquela onda extraordinária de povo não se dispersa. Ela quer
expandir sua piedade para com a poderosa Auxiliadora dos Cristãos, por isso invade o templo a ela
dedicado, que ressoa durante todo o dia com cantos e orações. No final da tarde, os turinenses e
os peregrinos afluem ao bairro de Valdocco para assistir à soleníssima procissão na qual a estátua
de Maria Auxiliadora coroada é levada em triunfo pelas ruas da cidade, e para receber a bênção
do Santíssimo Sacramento, que é dada do altar e da porta maior da Igreja, seguida de novos e
fragorosos aplausos e do canto de louvores ao Santíssimo Sacramento e à gloriosa Rainha. Já é
noite avançada e a multidão continua a apreciar o espetáculo da iluminação da igreja, da praça e
de quase toda a cidade de Turim, e parece não saber se separar de Maria Auxiliadora. Por dez dias
foram contínuas as peregrinações dos devotos que vinham até de regiões distantes para venerar a
Virgem coroada.16
14 Ceria, Vita, p. 377.
15 Sobre esse bem-sucedido congresso, no qual o padre Rua interveio raramente, pois toda a organização
estava nas mãos experientes do padre Stefano Trione, cf. Annali III, p. 310-339.
16 Carta edificante de 19 de junho de 1903. In: L. C., p. 473-477.
256
Esta relação comovida do acontecimento demonstra o quanto a coroação da Virgem Auxi-
liadora tocou o coração do devoto padre Rua.
Homenagens do padre Rua a Pio X
No dia 20 de julho de 1903, entre o 9º e o 10º Capítulo Geral, morreu o papa Leão XIII.
No dia 4 de agosto seguinte, substituiu-o Pio X. Indo prestar-lhe homenagem, com o apoio do
cardeal Svampa, de Bologna, o padre Rua tentou conseguir um abrandamento do decreto do
Santo Oficio que proibia os diretores salesianos de confessar seus dependentes.17
No dia 26 de setembro, o cardeal Svampa escreveu ao cardeal Rampolla, protetor da Socie-
dade Salesiana, uma carta assim concebida, da qual deu cópia ao padre Rua:
Não lhe escondo que nesses últimos anos os salesianos foram muito humilhados pelo conhecido
decreto do Santo Ofício, que chegou de repente e em termos muito graves, convulsionando não
pouco o organismo disciplinar que, desde os tempos de Dom Bosco, havia controlado o instituto.
O padre Rua, homem de virtude não ordinária, ao qual os filhos recorriam confiadamente para
abrir-lhe a própria consciência, e que nas frequentes visitas às casas influenciava salutarmente na
formação dos ânimos, graças ao tribunal da penitência, viu-se improvisamente privado da facul-
dade de confessar os próprios súditos, e, assim, todos os superiores (ou seja, diretores) em relação
aos próprios dependentes. Esta medida foi tomada sem ouvir o próprio padre Rua, e sem levar
em consideração a índole especial dos salesianos, para os quais os diretores (e com eles o preposto
geral) têm, mais que qualquer outra coisa, o ofício de pais espirituais, deixando aos prefeitos, aos
conselheiros e ao Supremo Conselho a tarefa das partes de rigor e de punição. Eu fui testemunha
da imensa dor sentida pelos salesianos nessa penosa circunstância e da obediência exemplar com a
qual se submetem às ordens peremptórias da Suprema.18
O cardeal Rampolla prometeu intervir junto ao papa.
O padre Rua esperou o fim de outubro para se dirigir a Roma e foi recebido por Pio X no
dia 3 de novembro. Havia apresentado ao papa três pedidos que podem ser assim sintetizados:
1) que ele mesmo, durante as viagens, pudesse confessar aqueles que lhe pedissem; 2) que, em
caso de necessidade evidente, os diretores salesianos pudessem confessar quem se dirigisse a
eles; 3) que, em caso de necessidade, as Filhas de Maria Auxiliadora e suas alunas pudessem
aproximar-se de confessores salesianos. Durante um longo face a face extremamente cordial, o
papa escreveu embaixo do folheto: Juxta preces; pro gratia. Ex aedibus Vaticanis, die 3 novembris
1903, Pius P.P. X, fórmula que significa que concedia os favores pedidos.19
Assim, o papa abrandava um pouco os efeitos do decreto do Santo Ofício, que, de resto, não era
absolutamente revogado. É preciso acrescentar que o padre Rua se serviu desse privilégio com extre-
ma discrição e recusou-se a confessar os salesianos que tinham adquirido o hábito de procurá-lo.
17 O episódio é contado em Ceria, Vita, p. 383-391.
18 Ceria, Vita, p. 385.
19 O documento se encontra em FdR 3832E10-3833A1.
257

13.10 Page 130

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O décimo Capítulo Geral (1904)
O décimo Capítulo Geral da Sociedade Salesiana, convocado pelo padre Rua no dia 6 de
janeiro de 1904, em Turim-Valsalice, para o próximo 23 de agosto, foi preparado com cuidado
especial.20 Teria como moderador o padre Francisco Cerruti e por objetivo principal a eleição
dos membros do Capítulo Superior, cujo mandato terminava no final de agosto; além disso,
pretendia-se rever e organizar as decisões tomadas nos Capítulos anteriores.21
Pela primeira vez na história da Congregação, o Capítulo Geral seria composto somente
por inspetores e delegados das inspetorias, não mais pelos diretores das casas. Essa novidade
implicava a organização preliminar dos Capítulos Inspetoriais, entidades jurídicas até àquele
momento desconhecidas no mundo salesiano. O padre Rua, portanto, naquele mesmo dia 6 de
janeiro, assinou também um fascículo de Informações e normas sobre a modalidade de prepara-
ção do Capítulo Geral.22 O documento estabelecia as regras que diziam respeito à composição
e ao escopo dos Capítulos Inspetoriais. Sob a presidência do inspetor, reunir-se-iam todos os
diretores da inspetoria e um delegado para cada casa, escolhido pelas comunidades. O texto
do padre Rua determinava também o papel desses Capítulos: antes de tudo, deviam eleger o
delegado inspetorial e seu suplente ao Capítulo Geral; em segundo lugar, para a Itália, tinham a
tarefa de nomear o mestre dos noviços e os membros da comissão encarregada da admissão dos
votos. Finalmente, deviam formular propostas para serem apresentadas ao Capítulo Geral.
A preparação do Capítulo Geral se desenvolveu sem obstáculos. Todavia, das 35 inspeto-
rias então instituídas canonicamente, somente 32 enviaram seus representantes para Turim:
faltavam as inspetorias do Equador, de El Salvador e dos Estados Unidos, cujos representantes
estavam ausentes por motivo de doença ou por razões de força maior. Durante a sessão prepa-
ratória, na tarde de 23 de agosto, o padre Rua sugeriu que o primeiro ato da assembleia fosse
o envio de um telegrama de submissão filial ao Santo Padre, para invocar sua bênção sobre os
trabalhos capitulares. O telegrama, redigido pelo padre Bertello, foi expedido imediatamente.23
Depois, o padre Rua saudou paternamente os capitulares: “O pensamento de Dom Bosco,
que foi verdadeiramente o homem de Deus e da caridade, daquela caridade que deve penetrar
todas as nossas discussões, me levou a convocar este Capítulo aqui, em Valsalice, onde repou-
sam seus venerados despojos”. E recomendou tratar as várias questões com calma e caridade,
sem ofender nunca nenhum dos presentes ou dos ausentes, “certos de que foi movido pelas
melhores intenções”.
Preliminarmente, decidiu-se também sobre a participação ativa, no Capítulo Geral, dos
bispos Cagliero e Costamagna, que chegavam da América do Sul. Assim, depois da verificação
e da solução de casos duvidosos, o número global dos capitulares atingiu 65 pessoas.
20 Sobre esse Capítulo, o ASC conserva um dossiê de quase 1400 páginas. Cf. FdR 4041D11-4064A5.
Cf. o relato em Annali III, p. 537-557.
21 Circular do padre Rua “Caríssimos filhos...”, de 6 de janeiro de 1904. In: FdR 4041D11-E2.
22 Informazione e Norme pel X Capitolo Generale, 9 páginas impressas. In: FdR 4041E4-12.
23 Esse telegrama se encontra em FdR 4042B6.
258
No dia 24 de agosto foram realizadas as eleições dos componentes do Capítulo Superior,
que reconfirmaram todos os membros no cargo. No dia seguinte, o Reitor-Mor comunicou a
notícia aos salesianos do mundo inteiro, recomendando-lhes vivamente que continuassem a
rezar “pelo feliz resultado de um dos fatos mais importantes de nossa Pia Sociedade”.24 Com
efeito, o Capítulo se dedicava ao problema difícil da classificação das deliberações anteriores,
diferenciando-as em artigos chamados “orgânicos”, que têm valor constitucional, e em artigos
puramente regulamentares, problema que, por outro lado, não pôde ser levado a bom termo.
Redigiu-se, ad experimentum, um Regulamento dos Capítulos Gerais, uma nota regulamentar
sobre as inspetorias ou províncias, um regulamento para os noviciados e para os estudantados
filosóficos e um regulamento-programa para os estudantados teológicos.25 O Capítulo termi-
nou no dia 13 de setembro, depois de 33 assembleias gerais.
O padre Rua interveio frequentemente durante as assembleias. Como dizem as testemunhas,
todos o ouviam religiosamente. Infelizmente, dessas intervenções, sempre breves segundo seu
estilo, nos restaram somente as notas esquemáticas dos secretários e as que ele mesmo anotou,
dia a dia, num caderninho manuscrito com o título Recomendações feitas durante o 10º Capítulo
Geral.26 Delas citamos algumas, que nos parecem mais representativas de suas preocupações.
O padre Rua interveio na tarde de 25 de agosto sobre o uso da língua italiana. Convidou os
irmãos não italianos a estudá-la, por três razões:
a) porque esta é a língua da Casa Mãe, do nosso venerado pai Dom Bosco e do papa; b) porque
será um meio para podermos nos entender mais facilmente nas futuras reuniões do Capítulo Geral;
c) porque isto facilitará as relações dos súditos com os Superiores Maiores, não podendo, sempre
eles, visitá-los pessoalmente nem aprender sua língua. Insistir para que os superiores das casas no
exterior inculquem em seus dependentes que escrevam aos Superiores Maiores em italiano ou em
latim: disto podem estar isentos os provenientes da Itália, os quais, para demonstrar seu proveito,
poderão também escrever na língua da nação onde se encontram.”
Concluiu dizendo que “estes eram também os desejos do nosso venerado Pai e Fun­
dador.”27
No dia 26 de agosto, de manhã, recomendou aos inspetores que somente com muita pru-
dência aceitassem as capelanias e outras obrigações semelhantes fora de casa. Sejam aceitas
somente na falta de padres do lugar, capazes de exercer tais funções, mas sejam abandonadas
imediatamente quando um sacerdote secular estiver em condição de se ocupar delas. Evitar-
-se-ão, assim, os ciúmes do clero local e as negligências nos interesses internos da casa salesiana.
Durante a sessão da tarde, o padre Rua recomendou aos capitulares que levassem em atenta
consideração as cartas mensais ou as extraordinárias do Capítulo Superior e também todos os
impressos por ele enviados às casas.
24 Manuscrito e impresso em FdR 3984C7-8.
25 Esses textos se encontram em FdR 4050C8-4052D4.
26 Recomendações feitas durante o 10º Capítulo Geral, 5 páginas manuscritas. In: FdR 4042A9-B1. Aqui,
seguimos esse esquema.
27 L. C., p. 316-330.
259

14 Pages 131-140

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14.1 Page 131

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No dia 31 de agosto à tarde, o padre Rua interveio difusamente sobre as Conferências de
São Vicente de Paulo. A Sociedade Salesiana deve muito àquelas instituições, observava:
Por elas os salesianos entraram na França e por elas foram e são eficazmente ajudadas muitas obras
salesianas, de modo especial nas Américas. Nosso caro pai Dom Bosco, ainda, gostava muito dessa
obra e dela nos falava com verdadeiro entusiasmo. Dom Davide dos Contos Riccardi costumava
dizer que aqueles que dão esmola criteriosamente são também sempre os Senhores das Conferên-
cias, porque não têm somente em mira o bem material, mas também e sobretudo o espiritual, e
não se contentam em dar uma esmola, mas eles mesmos visitam os pobrezinhos de Cristo e se
interessam pelas suas misérias. Recomenda, portanto, aos inspetores que levem realmente em con-
sideração e as divulguem por toda parte.28
Naquele ano (1904), a questão modernista animava as discussões dos intelectuais católicos.
No dia 16 de dezembro de 1903, o Santo Ofício havia colocado no Índice quatro livros do
professor Alfred Loisy. Os defensores “modernos” do professor e seus adversários conservadores
se enfrentavam sobre a historicidade dos evangelhos. Os progressistas colocavam em discussão
as posições do papa e de sua Cúria, julgada fechada. Nesse contexto, compreendemos por que,
durante a sessão vespertina de 2 de setembro, o padre Rua interveio sobre o respeito devido ao
papa e às autoridades romanas:
Recomendou, de modo especial aos inspetores, que em suas visitas, em todas as mudanças de exer-
cícios, nas conferências, nas boas-noites etc. inculquem nos irmãos e nos jovens o amor para com
o Sumo Pontífice Vigário de Jesus Cristo e para com as Congregações romanas que são seu órgão.
Nosso venerado pai Dom Bosco costumava dizer: – Desconfiem daqueles que vêm falar-nos contra
o papa e contra as congregações romanas. Considerem-nos inimigos da Igreja e das almas –. Dom
Bosco, portanto, sempre prestou muita reverência ao Sumo Pontífice e sempre demonstrou esse
respeito para com o papa. Sejamos, pois, também nós, dignos filhos de tão grande pai.29
Na manhã de 5 de setembro, enquanto se elaborava o regulamento dos inspetores, o padre
Rua recomendou-lhes que dessem importância à formação dos diretores: durante as visitas,
entretenham-se com os novos diretores por todo o tempo necessário; recebam seus rendiconti
e, depois da conferência regulamentar para todo o pessoal da casa, ainda falem separadamente
com eles e deem conselhos oportunos com muita paternidade. Procurem, sobretudo, infundir
o amor à santa regra e o respeito escrupuloso das menores observâncias. Releiam junto com
eles o regulamento dos diretores e verifiquem se o observam. Depois, leiam também os outros
regulamentos sobre os pontos que lhes dizem respeito e façam, a partir deles, as observações
mais oportunas para o bem da casa. Informem-se se os diretores visitam regularmente as classes
e as oficinas, se controlam os registros. Certifiquem-se de que fazem as conferências regula-
mentares aos irmãos e cumprem tudo aquilo que é necessário nas casas salesianas. Em especial,
verifiquem se os diretores cuidam suficientemente do pessoal: de fato, o bem dos irmãos é o
dever principal de todo diretor.
O padre Rua voltou ao assunto na tarde de 5 de setembro, desta vez dirigindo-se aos di-
retores: “O diretor não seja muito austero nem muito condescendente. Alguns acreditam fal-
28 Annali III, p. 222.
29 FdR 4055B10.
260
samente que para ganhar a confiança dos próprios dependentes devam ser liberais com eles
em passeios, merendas etc. Siga-se um meio-termo e não se introduza nenhum abuso. Assim
será mantido o espírito de nosso querido fundador e pai”.30 Encontramos, nessas instruções,
o padre Rua “regra viva” e o visitador atento das casas afiliadas quando era prefeito geral da
Congregação.
A Congregação Salesiana já se tornara internacional. No dia 6 de setembro o padre Rua se
preocupou com isto concretamente:
Com o objetivo de manter melhor a paz e a tranquilidade nas casas e afastar o mau humor, encar-
regou especialmente os inspetores de impedir as discussões de nacionalidade. Não se exalte nunca
a própria nação com desprezo das outras. Em todas existem bem e mal. Recomendou, depois,
que não se fume em nossas casas. Dom Bosco não queria realmente que se fumasse, porque dizia
que com o fumo vêm outras coisas. Assim também se modere o uso de tomar tabaco [de cheiro].
Quem já tivesse contraído esse hábito, se não puder absolutamente abandoná-lo, sirva-se dele em
particular. Sobretudo se evite oferecê-lo a outros.31
No dia 9 de setembro, antes de passar à ordem do dia, o regulador deu a palavra ao padre
Stefano Trione sobre a questão dos emigrantes italianos. O padre Trione concluiu com dois
augúrios: 1º) Ganhar a simpatia das colônias italianas com a difusão da língua pátria e a ins-
tituição de secretariados dos emigrados, de capelães de porto etc. 2º) Instituir uma comissão
permanente da emigração. O padre Rua aplaudiu as propostas do padre Trione, que nomeou
ali mesmo o presidente da esperada comissão, com a tarefa de escolher seus membros de acor-
do com o Capítulo Superior: “Desejo muito, muito, que se trabalhe em favor desses nossos
italianos. Não é preciso desanimar, com constância se consegue tudo: ensina [o exemplo do]
padre Coppo em Nova York. O Senhor talvez dispôs que nossos pobres emigrados, junto com
os poloneses e irlandeses, sejam os semeadores e os conservadores da fé nas virgens nações ame-
ricanas, e isso por meio de nossa obra entre os emigrados. Recomenda, além disso, cuidar dos
emigrados das outras nações”.32
Naquele mesmo dia, o padre Rua se pronunciou contra as férias em família. Somente depois
de vários anos de ausência o inspetor pode permitir ao irmão passar oito dias, no máximo, em
família. Excepcionalmente, poder-se-á autorizá-lo a passar com ela quinze dias. O inspetor
tome nota dessas autorizações e se informe sobre os abusos. Se for o caso, tome providências e
os corrija imediatamente.
O longo Capítulo Geral foi encerrado com um hino de reconhecimento por tudo o que se
conseguira fazer. O padre Rua escreverá em sua circular: “Há vinte dias estávamos reunidos e
os inspetores eram esperados impacientemente nos institutos dependentes deles, especialmente
para os exercícios espirituais. No entanto, todos os membros do Capítulo Geral ficaram em
Valsalice até à tarde do dia 13 de setembro, quando se cantou o Te Deum”.
30 FdR 4056A10-11.
31 FdR 4056B2-3.
32 FdR 4056D2.
261

14.2 Page 132

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As conclusões do décimo Capítulo Geral
O padre Rua vai esperar até 19 de fevereiro (1905) para entregar aos irmãos os resultados
do décimo Capítulo.33 Foi preciso esperar a aprovação das autoridades romanas. O padre Rua
se cumprimentou pela qualidade dos debates da assembleia: “Sinto-me confortável em poder
afirmar que uma calma imperturbada, uma caridade verdadeiramente fraterna e uma condes-
cendência exemplar, em caso de pareceres diferentes, foram as notas características desse último
Capítulo Geral, onde um dos membros mais idosos me escreveu que tais reuniões tinham sido
verdadeiramente escola de sabedoria, de humildade e de caridade”.
Na circular, explicou também que no dia 3 de setembro, na presença do cardeal Richelmy,
tinha sido feita, de forma solene, a abertura da urna mortuária de Dom Bosco para o reconhe-
cimento previsto pelos processos canônicos, e a contemplação de seus traços havia tocado pro-
fundamente o coração dos capitulares. Os capitulares temiam que a autorização não chegasse
a tempo e, assim, não se pudesse rever o semblante tão amado de Dom Bosco, sepultado perto
da sala das conferências. Mas houve quem providenciou, de tal modo que naquele dia todos os
membros do Capítulo Geral tiveram a oportunidade de contemplar à vontade os restos mortais
de Dom Bosco. Escrevia o padre Rua:
De fato, o féretro foi transportado para o grande salão no andar térreo da nova construção. Lá,
depois de serem celebradas muitas missas em sufrágio de sua alma bendita, pelas 9h30, foi aberto
o caixão, e os olhos de mais de duzentas pessoas se fixaram nos despojos de nosso bom Pai, que
por dezessete anos não tinham visto mais. Foi encontrado muito bem conservado. A pele e a car-
ne do rosto e das mãos estavam intactas. Tinham, porém, desaparecido aqueles olhos que tantas
vezes nos olharam com bondade inefável, e estava também meio aberta a boca pelo abaixamento
da mandíbula inferior. De resto, a figura de Dom Bosco ainda conservava quase todos os traços
daquela fotografia que tinha sido tirada no dia de sua morte. Alegramo-nos, sem dúvida, por tê-lo
encontrado em tal estado, mas, ao mesmo tempo, nos afligiu não pouco ver que a morte, passando,
tinha também deixado traços profundos naquele semblante venerável.
Segundo o padre Rua, o principal resultado do Capítulo consistia nas decisões tomadas a
respeito das inspetorias. No dia 27 de janeiro de 1902, foram instituídas 31 inspetorias.34 A So-
ciedade Salesiana, até àquele momento fortemente centralizada nas dependências do Capítulo
Superior, se regionalizava, com vantagem para todos. O padre Rua observava em sua circular:
Com razão foi considerado um grande progresso na nossa Pia Sociedade a instituição das inspeto-
rias que a Santa Sé aprovou canonicamente. É imenso o bem que se espera do se encontrar reunidos
os institutos de uma mesma região, e no ser os mesmos colocados sob a especial vigilância de um
Superior que representa o Reitor-Mor. Bem persuadidos da importância dessa divisão, os membros
do décimo Capítulo Geral fizeram um estudo especial dos deveres dos inspetores e das relações
que devem existir entre eles e as casas que deles dependem. Disso resultou um breve regulamento
que me apressei em mandar para cada casa, mesmo antes de ter obtido a aprovação da Santa Sé, a
fim de que sirva, por enquanto, como guia, reservando-nos introduzir nele, em seguida, aquelas
modificações que a Santa Sé julgasse oportunas. Portanto, convirá que, em geral, os diretores re-
33 L. C., p. 316-324.
34 Verbali del Capitolo Superiore, 20 de janeiro de 1902. In: FdR 4243D4.
262
corram aos inspetores toda vez que precisarem de pessoal, de algum socorro pecuniário especial,
ou quando encontrarem dificuldade com as autoridades eclesiásticas ou civis. Não duvido que os
inspetores terão a máxima solicitude de ir em socorro de seus dependentes, e, se alguma vez não
puderem fazê-lo, garantirão, pelo menos, a seus diretores que recorrerão ao Capítulo Superior para
conseguir aquilo que eles mesmos não podem dar. Aos inspetores igualmente serão pedidas aquelas
licenças que cada irmão acreditar se deva pedir. Faço os votos mais ardentes para que por parte
dos inspetores haja todo o empenho de praticar aquela doçura e afabilidade da qual Dom Bosco
foi mestre para nós, e por sua vez, os irmãos se habituem em ver nos superiores a pessoa de Jesus
Cristo. Assim, se estabelecerão entre superiores e dependentes aquelas relações íntimas e cordiais
que garantem o bom governo da Congregação e a paz de cada sócio.35
O décimo Capítulo Geral tornou a Congregação Salesiana mais flexível, mais forte e cada
vez mais apegada a Dom Bosco. A descentralização do governo foi a obra mais importante do
reitorado do padre Rua. Assim, a Congregação estará em condição de enfrentar, com menos
riscos, a expansão em países de cultura não italiana.
35 L. C., p. 323-324.
263

14.3 Page 133

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Capítulo 28
A paz social
Rerum Novarum
O período do reitorado do padre Rua é caracterizado pela publicação e pela aplicação da
célebre encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, datada de 15 de maio de 1891.
Naqueles anos que fechavam o século, a indústria se desenvolvia, as cidades e os bairros
operários se multiplicavam, enquanto os Estados liberais dificultavam a promulgação de leis
sociais. A recessão dos anos 1885-1890 havia colocado em forte evidência a urgência da assim
chamada “questão social”: a classe operária estava tomando consciência da própria força e ia se
organizando consequentemente. Em 1884, na França, havia se organizado finalmente o sindi-
calismo. O socialismo estava se desenvolvendo com a fundação, em 1890, da Segunda Inter-
nacional Operária. Os católicos, por sua vez, estavam, sobretudo, preocupados com a questão
política: era preciso lutar pela restauração do Ancien Régime ou era necessário aceitar um regime
liberal leigo? No plano social, muitos se contentavam em atenuar os defeitos do liberalismo
através das obras de caridade, o “paternalismo” das classes superiores. Indubitavelmente, Dom
Bosco, grande pregador da caridade e da esmola dos ricos para os pobres, e seus amigos conser-
vadores e “contrarrevolucionários” tinham ficado parados nesta visão estática da história.
A promulgação da encíclica Rerum Novarum colocou novo fermento no mundo católico.
O texto se dividia em quatro partes: crítica do socialismo; doutrina da Igreja; papel do Estado;
importância das associações livres. Disso derivavam algumas orientações fundamentais:
A sociedade econômica deve apoiar-se sobre o direito à propriedade privada, sobre a livre iniciativa
e sobre o mercado, ao contrário do socialismo, que abriria “o caminho para o ódio, para as recri-
minações, para as discórdias: assim, as próprias fontes da riqueza secariam, tirado todo estímulo
ao talento, à criatividade”; de fato, “a comunhão dos bens proposta pelo socialismo [...] prejudica
aqueles mesmos aos quais se deve levar socorro” (n. 12).
O capitalismo não pode ser deixado a si mesmo: a economia deve estar submissa à ética. É preciso
rejeitar o simples “deixar fazer, deixar passar”, o jogo livre das pretensas “leis naturais”, como se
uma “mão invisível”, cara a Adam Smith, garantisse automaticamente o melhor resultado social.
“O operário e o patrão, então, façam também, por mútuo consentimento, o acordo e, declarada-
mente, o valor do salário. Nisto entra, porém, sempre um elemento de justiça natural, anterior e
superior ao livre-arbítrio das partes” (n. 34). Há uma “justa recompensa”, e é a justiça que deve
dominar a economia.
264
Primeira encarnação dessa disciplina moral é a ação legisladora do Estado, cuja intervenção é, so-
bretudo, esperada pelos mais fracos. “A classe dos ricos, forte por si mesma, precisa menos da defesa
pública; as míseras plebes, que não têm apoio próprio, têm necessidade especial de encontrá-lo no
patrocínio do Estado” (n. 29).
Para evitar o estatismo, é preciso voltar a um sistema de corpos intermediários. Na encíclica, a
apresentação de associações adaptadas ao mundo contemporâneo é muito detalhada. Todavia,
a ordem corporativa não é apresentada como obrigatória: os cidadãos têm “o livre direito de se
unirem em sociedade” e de “escolherem sua forma de consórcios que consideram mais adequada à
sua finalidade.” (n. 42). E, sobretudo, a escolha do sindicalismo permanece aberta; de fato, escreve
Leão XIII, “vemos com prazer formar-se por toda parte associações deste gênero, quer somente de
operários, quer mistas de operários e patrões, e é desejável que cresçam em número e em operosi-
dade” (n. 36).
O Reitor-Mor padre Rua era homem de disciplina, não tinha nada de revolucionário, mas
teve sempre em mente as lições de Leão XIII sobre a defesa dos pobres trabalhadores e sobre o
salário justo.
Os trabalhadores franceses peregrinos no túmulo de Dom Bosco (1891)
Sob o impulso de Léon Harmel, a “França do trabalho” quis logo descer a Roma para
agradecer a Leão XIII por sua encíclica sobre a condição operária.1 Propondo a peregrinação,
o “bom Père” de Val des Bois havia escrito na circular de 2 de agosto de 1891: “Não estamos
talvez comovidos ao ouvir o tocante apelo de Leão XIII? Não estamos talvez prontos para todos
os sacrifícios a fim de levar consolação a seu coração, para testemunhar diante do mundo nossa
obediência à sua voz? Se alguém objetar as despesas, nós lhes recordaremos a cena de Maria
Madalena. Partamos numerosos, vamos a Jesus Cristo que vive em seu Vigário. É ele que nos
salvará com a justiça e o amor”.
Léon Harmel, grande amigo de Dom Bosco e do padre Rua, previu para os peregrinos
franceses a caminho de Roma uma parada em Turim, no túmulo de Dom Bosco. No dia 1º de
setembro, havia se dirigido a Valdocco, nos diz a crônica, para “estabelecer definitiva e preci-
samente os detalhes da peregrinação dos sete trens de Paris ao túmulo de Dom Bosco”, que se
encontrava em Valsalice.
Tudo foi organizado com precisão. Sob as grandes árvores do pátio inferior de Valsalice,
um restaurante de Turim tinha organizado um “refeitório campestre”, protegido do sol e das
intempéries por uma grande tenda. Havia quatro longas mesas preparadas, dispostas perpen-
dicularmente ao túmulo de Dom Bosco, diante da qual estava organizada “a mesa de honra,
que ocupava toda a parte anterior das filas longitudinais”. Era lá que os peregrinos poderiam
descansar em sua parada entre Paris e Roma.
1 Seguimos aqui a ampla relação do acontecimento feita pelo Bollettino Salesiano (outubro de 1891, p.
190-197, de onde são tiradas as citações seguintes.
265

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Muito tempo antes o próprio padre Rua quis se ocupar, e com uma solicitude toda paterna, organi-
zando da melhor maneira que podia uma recepção digna de Leão XIII e da França. E no dia 17 de
setembro, dia em que era esperado o primeiro trem de Paris, ele quis interrogar cada um daqueles
aos quais havia confiado a execução de suas ordens, a fim de se certificar de que nada tinha sido
deixado ao acaso. Finalmente, pelas 14 horas, se dirigia a Valsalice, onde viu com prazer interpreta-
dos completamente todos os seus pequenos desejos. Os peregrinos podiam vir: tudo estava pronto
para festejá-los.2
Com efeito, os 464 peregrinos dessa primeira viagem encontraram tudo organizado perfeita-
mente: na estação de Porta Nuova antes, depois ao longo do trajeto até Valsalice, no momento da
acolhida com música por parte das delegações operárias turinenses, que formavam suas alas sob
o pórtico da casa e a função na capela com o canto do Magnificat... No lugar do almoço, sobre
a mesa de honra, um grande painel anunciava: “À França do trabalho, os filhos de Dom Bosco.
Saúde, reconhecimento, respeito”. A refeição foi naturalmente interrompida por vários discursos.
Dispomos somente de um resumo muito magro da intervenção do padre Rua. Ei-lo:
Recordando que o trabalho e os operários, considerados sob o ponto de vista cristão, foram sem-
pre o centro das preocupações sacerdotais de Dom Bosco, e que se tornaram a principal razão de
ser de sua Pia Sociedade, o padre Rua se alegra em ver a flor dos operários da França rodeando o
túmulo de Dom Bosco. A oração dos operários, vindos de tão longe, estreitará ainda mais os laços
que unem Dom Bosco à França e a todas as obras nas quais ele deixou a marca de sua fé. O padre
Rua pede em seguida aos peregrinos que se humilhem aos pés do Soberano Pontífice e prestem a
homenagem da profunda veneração e da devoção sem limites da Pia Sociedade Salesiana por sua
sagrada pessoa. Ele termina invocando, junto com eles e seus irmãos italianos, seu título de presi-
dente honorário de uma seção dos Círculos Católicos de Turim, para aclamar com toda a efusão
do coração: Viva Leão XIII! Viva o papa dos operários! 3
Às 17 horas, todo o grupo voltou para a estação. A banda tocou na passagem dos peregrinos,
que fizeram “uma verdadeira ovação aos nossos jovens artistas”.
Cenas idênticas se repetiram à passagem de outros trens de operários católicos peregrinos a
Roma, durante o outono de 1891. No dia 15 de outubro, Léon Harmel estava novamente em
Turim-Valdocco para agradecer aos salesianos por sua acolhida às peregrinações operárias. Como
escreveu Il Corriere Nazionale no dia seguinte, em seu discurso no fim do almoço organizado na
casa-mãe dos salesianos, Léon Harmel recordou “que [os operários franceses] chegavam a Roma
cheios de gratidão entusiasta recordando a acolhida afetuosa e fraterna de Valsalice”.4
As lições do Congresso de Bologna (1895)
A encíclica Rerum Novarum trouxe seus frutos para o 1º Congresso Internacional dos Coo­
peradores Salesianos, presidido pelo padre Rua, realizado em Bolonha, em 1895.5 Nele se
2 Cf. Bolletino Salesiano, outubro de 1892, p. 192.
3 Bolletino Salesiano, outubro de 1892, p. 194.
4 Bollettino Salesiano, outubro de 1892, p. 196-197.
5 Sobre esse Congresso, ver acima, capítulo 19.
266
dedicou um capítulo inteiro à questão operária, do ponto de vista dos “jovenzinhos operários”,
segundo a sensibilidade típica do ambiente salesiano. A análise da situação, apresentada em
dez considerações, reflete o olhar social-católico médio da época sobre a condição do rapaz
de família operária, numa sociedade ainda prevalentemente artesanal, na qual começava a se
implantar a grande indústria. Ei-la em síntese:
1° A primeira e mais eficaz educação das crianças é garantida por mães cristãs em famílias
honestas e sadias. 2º Hoje, sobretudo nos grandes centros, muitas casas populares não apre-
sentam nenhuma garantia, nem do ponto de vista higiênico nem do ponto de vista moral. São
abjetas e “mortíferas”, enquanto matam o corpo e a alma das crianças. 3° Por outro lado, as
exigências da indústria moderna obrigam as mães operárias a abandonar, durante o dia inteiro,
a casa para não faltar ao trabalho coletivo na fábrica, coisa que as impede de se dedicar à tarefa
educativa natural dos filhos. 4º A oficina que o jovem trabalhador frequenta para aprender o
ofício não pode concorrer para sua boa educação se quem a dirige não está “informado nos sen-
timentos santos e delicados da moral cristã”. 5° O repouso festivo não é somente um dever, mas
um direito dos trabalhadores. 6º A participação do jovem operário na instrução catequética
festiva na paróquia é o “meio mais seguro para confirmar a boa educação recebida na família”.
7º Já é fato conhecido que a maioria dos rapazes de classe popular, mesmo que tenham mães
cristãs, quase sempre abandonam a prática religiosa depois da primeira comunhão, ou porque
corrompidos por maus companheiros, ou por tantos escândalos dos quais são testemunhas.
8° Esses jovens, e, pior ainda, aqueles que não tiveram mães que se ocupassem deles, ou porque
impedidas pelo trabalho ou porque desprovidas de sentimentos cristãos, são abandonados a si
mesmos e confiados a patrões que não sabem interpretar suas almas. Sem instrução religiosa
suficiente, esquecem aquele pouco que aprenderam quando crianças, “crescem na ignorância
de Deus e de seus deveres de cristãos e de cidadãos”. 9° Consequentemente, aqueles que forma-
rão a geração do futuro são cristãos só de nome, privados da luz e da esperança do cristianismo,
portanto fatalmente destinados a desprezar as leis mais santas e mais universais e a aumentar
“aquelas multidões que são um perigo e uma ameaça para a sociedade civil”. 10º Somente a
caridade cristã, animada pelo espírito de sacrifício e de abnegação, está em condição de afastar
tal desventura “com os pacientes cuidados e com as santas iniciativas”.6
A partir destas constatações, o Congresso formulava então onze “votos”, conotados por
certo tom paternalista, então natural, mais ou menos inspirados na encíclica. Ei-los em sua
versão integral:
O Congresso deseja:
Que os Cooperadores Salesianos se unam a todos os homens de coração e de boa vontade para
conseguir, onde possível, disposições legislativas que moderem as exigências das grandes indústrias,
conciliando os únicos verdadeiros interesses legítimos destas com a obrigação que têm de respeitar
os sagrados direitos e deveres da maternidade.
Que apoiem as associações que tenham por escopo a melhoria das casas operárias.
Que zelem e facilitem com sua influência a colocação das crianças negligenciadas ou abandonadas
6 Atti del primo Congresso Internazionale dei Cooperatori Salesiani, Turim, Tipografia Salesiana, 1895, p.
186-187.
267

14.5 Page 135

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das classes operárias nas creches ou asilos de infância, especialmente naqueles dirigidos por pessoas
religiosas, naqueles casos em que a primeira boa educação dos mesmos, por meio da mãe no domi-
cílio doméstico, se tornou impossível.
Que zelem pela colocação dos operários naquelas oficinas onde se respeitam as regras da fé e da
moral cristãs.
Que os cooperadores salesianos, patrões de oficinas ou chefes de lojas, se interessem pelos jovens
aprendizes a eles confiados como se eles fossem seus filhos, e lhes deem o exemplo de uma vida
efetivamente cristã.
Que cuidem, por isso, não só de sua instrução técnica, mas também da educação religiosa e moral
e da higiene de seu corpo.
Que promovam a observância do repouso e da santificação do dia festivo, apoiando também, da
melhor forma, as iniciativas que, conforme a necessidade, fossem tomadas por outros.
Que cuidem, portanto, de sua frequência nos catecismos paroquiais, nos oratórios festivos e nas
escolas católicas noturnas e festivas, vigiando para que não faltem ao cumprimento de seus deveres
religiosos.
Que longe de permitir-lhes ocasião de escândalo com palavrões, blasfêmias ou farras, inculquem-
-lhes com as palavras e com o exemplo o respeito a Deus e a si mesmos, a fuga do ócio e o amor
ao trabalho.
Que os façam inscrever-se desde jovenzinhos nas sociedades de auxílio mútuo e de previdência, e
os habituem à economia, para que não faltem recursos necessários nos dias das enfermidades, da
velhice e da desventura.
Que, finalmente, no determinar a recompensa ou o salário de seus trabalhadores, se uniformizem
às máximas solenemente proclamadas pelo Sumo Pontífice Leão XIII em sua admirável encíclica
Rerum Novarum.7
Nada de revolucionário nessas moções de teor moralizador. Não aparece a palavra justiça;
predomina o sentido de caridade. Não se invoca sequer a proibição de empregar as crianças
nas fábricas, nem a redução do horário de trabalho, que era então habitualmente de dez horas
e meia e até onze horas ao dia. Somente a primeira moção deixa aberta a fresta neste sentido.
Essa assembleia presidida pelo nosso padre Rua foi, de alguma forma, sinal de grande boa
vontade em favor dos jovens operários, muito frequentemente descuidados por patrões nada
interessados em sua educação.
A sociedade Nacional do Patronato e Auxílio Mútuo para as Jovens Operárias
Durante aqueles anos, o padre Rua apoiou a criação, em torno de Cesarina Astesana (1858-
1946), de uma Sociedade de Auxílio Mútuo das Jovens Operárias Católicas.8 Cesarina Astesa-
na, celibatária, católica convicta e empreendedora, estava preocupada com o destino das cos-
tureiras e das outras trabalhadoras de Turim. Os horários das costureiras eram muito flexíveis,
dependiam das ordens e do vencimento das entregas. O trabalho se prolongava até de noite e
continuava nos dias festivos, se a clientela o exigisse. Sua condição moral e física a preocupava
muito. Com a ajuda de algumas pessoas generosas, Cesarina fundou um oratório, indo ao
7 Atti del primo Congesso Internazionale dei Cooperatori Salesiani. Turim, Tipografia Salesiana, 1895, p. 187-188.
8 Informações incertas em Auffray, p. 252-257; mas confiáveis em Ceria, Vita, p. 437-438.
268
encontro de uma exigência expressa delas. O padre Rua, ao qual se dirigiu para se aconselhar,
não se limitou a lhe dar sugestões, mas lhe ofereceu sacerdotes para a celebração da missa e para
as conferências. A conferência que teve mais sucesso foi a do padre Stefano Trione, na igreja de
Santa Bárbara. A igreja ficou muito pequena para conter a multidão que acorreu. O pregador
encantou o público. Foi assim que, na ocasião, foi criada a Sociedade de Auxílio Mútuo para
as Jovens Operárias Católicas. No verão seguinte, o padre Rua conseguiu das Filhas de Maria
Auxiliadora a disponibilidade de duas casas: a de Giaveno aos pés dos Alpes e a de Varazze
na Riviera lígure, a fim de que as jovens operárias pudessem, por alguns dias, respirar o ar da
montanha e do mar.
Cesarina estendeu sua ação também fora de Turim. Procurava apoios. O padre Rua a aju-
dou. “Quanto à senhorita Astesana – escrevia, em 1904, ao diretor da casa de Firenze – pode
tranquilizar a excelente marquesa Alfieri que é pessoa digna de toda confiança, que está traba-
lhando numa obra digna de muito interesse por parte dos bons, a de proteger as jovens operá-
rias garantindo-lhes o repouso dominical, a de impedir sua exploração com um trabalho muito
prolongado, com prejuízo de sua saúde física e moral etc.”. Encorajada pelo cardeal Richelmy,
arcebispo de Turim, e abençoada pelo papa, a obra se espalhou e se reforçou em benefício
das jovens operárias. Nas dificuldades, Cesarina Astesana, recorria ao padre Rua, que nunca
deixou de aconselhá-la e apoiá-la. Em 1901, nasceu assim a Sociedade Nacional do Patronato
e Auxílio Mútuo para as Jovens Operárias, que em 1906 contava com 1.505 patronnesses e
15.168 operárias. Em 1910, ano da morte do padre Rua, seu número havia triplicado.
A greve da empresa Anselmo Poma (1906)
No entanto, as propostas da Rerum Novarum caminhavam muito lentamente. Os primeiros
anos do novo século foram um tanto turbulentos nas regiões industrializadas. Os socialistas
reclamavam, com razão, a redução do horário de trabalho nas fábricas. O Parlamento italiano
discutia sobre o trabalho feminino e infantil. Quando julgavam necessário, os operários entra-
vam em greve. Mas o sindicato cristão não se resolvia facilmente a se dobrar diante de sua força.
São significativas a esse respeito, em Turim, as vicissitudes da manufatura têxtil Anselmo Poma,
entre maio e julho, nas quais, em certo sentido, também o padre Rua foi envolvido.9
Anselmo Poma era um grande amigo do padre Rua. Na periferia de Valdocco, sua fábrica de
algodão dava trabalho a uma centena de operários e operárias. Houve, no início, uma questão
de horários, depois de salários. Na empresa Poma, o dia de trabalho durava onze horas e meia.
Em maio de 1906, os operários, apoiados pela Câmara do trabalho da cidade com seus sindica-
tos, pediram que o reduzisse para dez horas, como em outras fábricas. O industrial aceitou essa
diminuição, mas pediu, em troca, para reduzir proporcionalmente os salários dos operários.
Depois de várias tentativas infrutuosas para procurar mantê-los no mesmo nível, no dia 22 de
maio operários e operárias entraram em greve. Anselmo Poma, mesmo sendo gentil-homem,
9 A narrativa minuciosa e redundante de Amadei III, p. 247-254, talvez não seja totalmente precisa. Nós
aqui seguimos a síntese mais clara e provável de Ceria, Vita, p. 433-437.
269

14.6 Page 136

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prezava muito sua autoridade: recusou absolutamente ceder à força. Os grevistas resistiram e se
opuseram a qualquer volta ao trabalho.
O padre Rua procurou dissuadir o industrial de sua posição, fazendo-o considerar a razoabi-
lidade dos pedidos dos operários. Mas ele pensava que se fizesse um acordo com os dependentes
perderia seu prestígio. O padre Rua lhe propôs, como solução de compromisso, confiar as
tratativas a seus filhos. Amadei traz uma sua carta a Poma do dia 29 de maio de 1906:
Prezado senhor Poma,
Penso muito na questão que atualmente preocupa Vossa Senhoria, e sempre me informo sobre
como vão as coisas. Ouço que o mau humor continua em sua massa operária. Na quinta-feira
passada [24 de maio, festa de Maria Auxiliadora], como lhe disse, percebi que sua saúde sofre
com isso. Tenha paciência. Afaste-se por alguns dias. Saia de Turim. Vossa Senhoria tem filhos
inteligentíssimos e muito afeiçoados, que o representam muito bem; dê-lhes as instruções que
julgar oportunas: eles o manterão informado sobre tudo o que acontecer. Enquanto isso, saia dessa
confusão. Aceite meus respeitos, e, enquanto lhe imploro do Senhor paz e tranquilidade, creia-me
seu afeiçoadíssimo e muito agradecido servo e amigo
Sac. Miguel Rua.10
O padre Rua mantinha-se informado através do padre Rinaldi, seu prefeito geral, que, com
muito tato, servia de intermediário junto ao industrial. Mas este acreditou não dever aceitar
a sugestão do padre Rua. Insistia com os trabalhadores que o sistema de salários seria reajus-
tado depois das operações administrativas indispensáveis. Eles não desistiam. A greve, mais
ou menos violenta, continuou. No dia 19 de junho, um referendo aprovou-a com a quase
unanimidade dos trabalhadores. Elementos subversivos haviam se infiltrado na massa operária
e assopravam o fogo. Rejeitavam as soluções pacíficas e levavam ao confronto. A câmara do
trabalho, dominada pelos socialistas, lhes dava cobertura. Nas assembleias, os ânimos se infla-
mavam. A empresa foi literalmente assediada. Os elementos fortes estavam prontos a apedrejar
aqueles que queriam voltar ao trabalho.
Todavia, os colóquios entre Anselmo Poma e o padre Rua continuaram. O padre Rua
persua­diu o industrial a fazer um apelo às mulheres, munido de boas promessas, para que
voltassem ao trabalho. Responderam 650, encorajadas e apoiadas por Cesarina Astesana.
Juntaram-se 150 operários. Começou uma verdadeira e própria batalha, de dia e de noite,
entre os trabalhadores e os grevistas. As trabalhadoras não grevistas acamparam dentro da
empresa. Amadei descreve as peripécias da resistência. A câmara do trabalho subvencionava
os grevistas e os impelia à luta a todo custo. Do outro lado, o patrão não cedia e enviava
dinheiro ao padre Rua para apoiar as operárias fechadas na fábrica. No domingo, 8 de julho,
o pároco da paróquia foi até lá celebrar a missa e o industrial estava presente. Ao mesmo
tempo, os trabalhadores da cidade, solidários com seus companheiros, ameaçavam organizar
uma greve geral. Os dirigentes socialistas, então, se preocuparam com as possíveis compli-
cações e disseram estar prontos a pedir a volta dos trabalhadores, com a condição de que a
decisão parecesse tomada pela mesma câmara do trabalho. Chegou-se, assim, à metade de
julho sem dar nenhum passo, nem de uma parte nem de outra. Mas, graças à mediação do
padre Rua, projetou-se finalmente uma solução. No dia 17 de julho, o jornal (de direita)
10 Amadei III, p. 249.
270
Il Momento publicava uma carta sua, acompanhada de uma declaração de Anselmo Poma.
O padre Rua escrevia assim ao diretor do jornal:
Na tentativa de fazer voltar a calma nos ânimos longamente exasperados e fazer cessar um estado de
coisas muito prejudicial à classe operária, dirigi-me ao senhor Anselmo Poma para que manifestasse
suas intenções a respeito de suas operárias. Tive a resposta que lhe comunico. Confiante de poder,
com a publicação da mesma, facilitar a solução por todos esperada dessas dolorosas questões, peço-
-lhe dar-lhe um espaço em seu precioso jornal. Seguro de que Vossa Senhoria compartilhará comi-
go esse sentimento humanitário, professo-me, com toda consideração etc.
Seguia a carta de Anselmo Poma:
A empresa, na volta ao trabalho, não pode deixar, por necessidade do estado ao qual o estabeleci-
mento foi reduzido, quase completamente destruído, de escolher gradativamente aqueles operários
que lhe possam ser úteis. As concessões feitas com total satisfação dos operários que atualmente
trabalham, em curso desde o dia 8 de julho, são extensíveis a quantos puderem voltar. Com tais
concessões, há evidentemente um aumento para as tecedeiras, retorcedeiras e parte das espuladei-
ras, de aproximadamente 5% sobre os salários passados.
No dia seguinte, o padre Rua endereçava outra carta ao diretor de Il Momento, anunciando
ter conseguido que a empresa readmitisse todos os operários, tendo presentes, evidentemente,
as normas morais sempre exigidas nas aceitações. Continuavam suspensos apenas 200 tecelões,
100 tecedeiras e 100 consertadoras, mas se esperava reativá-los no espaço de alguns meses.
Enfim, nenhum dos operários que voltarem ao trabalho com atitude correta será despedido
por ter participado na luta. O Il Momento acrescentava essas considerações: “E nós que sempre
defendemos a causa da liberdade e da justiça, combatendo com absoluta sinceridade todas as
tentativas de exploração, não temos senão que nos alegrar com uma solução que restabelece a
harmonia entre um grande industrial e seus operários, e consagra, ao mesmo tempo, o triunfo
da obra paterna daquele venerando sacerdote que é o padre Rua e a derrota da câmara do tra-
balho e dos seus representantes violentos”.11
Foi assim que, no dia 19 de julho, Anselmo Poma pôde assistir ao cortejo de mais de 900
operárias que voltavam ao estabelecimento depois de uma parada de quase dois meses. No dia
21 de julho, todos os teares estavam em movimento porque todas as operárias haviam voltado,
com exceção daquelas que encontraram emprego noutro lugar.
O padre Rua procurou, em diversas circunstâncias, durante seu reitorado, defender e honrar
a classe operária. Tinha um ideal de sociedade certamente hierarquizada, como então era de
rigor, mas unida pelo acordo de todos com todos. Em sua visão, as relações humanas deviam
ser controladas por uma justiça sempre marcada pela caridade.
11 Cf. as cópias manuscritas das cartas do padre Rua ao jornal (16 e 17 de julho) em FdR 3926B3-4. As
citações são tiradas de Amadei III, 252-253.
271

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Capítulo 29
As Filhas de Maria Auxiliadora
A direção das Filhas de Maria Auxiliadora
Até 1906, o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora permaneceu, nos termos estabelecidos
por suas Constituições, “sob a alta e imediata dependência do Superior Geral da Sociedade de
São Francisco de Sales, a quem dão o nome de Superior Maior” (título II, art. 1). Certamente,
o instituto era governado e dirigido por um Capítulo Superior, composto pela Superiora Geral,
por uma vigária, por uma ecônoma e por duas assistentes, mas “dependentemente do Reitor-
Mor da Congregação Salesiana” (título VI, art. 1).
O padre Rua era, portanto, o superior geral do instituto e devia zelar pelo seu bom funcio-
namento material e espiritual. A madre Catarina Daghero (1856-1924), superiora geral desde
a morte de Santa Maria Domingas Mazzarello (1881), desempenhava muito bem sua tarefa.
O instituto era sabiamente governado e se desenvolvia louvavelmente. Como se fazia no tempo
de Dom Bosco, a Madre Geral recorria sempre ao padre Rua em caso de dificuldade. Fazia-se
aconselhar para a abertura das casas e para a criação das missões. Com sua ajuda estipulava os
contratos com autoridades civis e eclesiásticas e com as diversas administrações.
Esse sistema respeitava a jurisdição dos bispos. Não impedia seu exercício. Escrupuloso
na matéria, o padre Rua procedia sempre com extrema delicadeza. O padre Ceria cita justa-
mente como exemplo a carta endereçada pelo padre Rua, em 1901, ao inspetor da Argentina,
Giuseppe Vespignani. Vespignani lhe havia perguntado como se comportar em relação aos
problemas das irmãs com o arcebispo de Buenos Aires e das autorizações que precisava pedir.
O padre Rua respondeu:
O modus tenendi que lhe sugiro é tratar com simplicidade o reverendíssimo arcebispo, obter dele as
autorizações que julgar conceder, obedecê-lo respeitosamente naquilo que exige e evitar qualquer
questão. Já respondi assim também a outros. Nós ajudamos os bispos. As Filhas de Maria Auxilia-
dora nos ajudam e fazem para as jovenzinhas aquilo que os salesianos fazem para os jovenzinhos.
E como elas devem ser informadas no espírito de seu e nosso Fundador e Pai, acredito que os
excelentíssimos bispos só quererão auxiliar a elas e a nós enquanto fazemos um pouco de bem para
a juventude pobre, principal objeto de nossos cuidados. Portanto, procure ir adiante com simpli-
cidade e prudência, com muita deferência à autoridade dos bispos. Creio que este será o melhor
modo de proceder.1
1 M. Rua – G. Vespignani, Turim, 12 de setembro de 1901. In: FdR 3945 B7-8.
272
O instituto continuou, assim, a crescer sob a égide salesiana, que o colocava a salvo dos
perigos, das incertezas, dos abandonos e dos problemas econômicos. Pôde-se escrever que esse
apoio permanente e benévolo constituiu de fato o “eixo de sua existência”.2 A direção salesiana
não havia em nada dificultado o livre funcionamento do organismo interno. Ao contrário, ha-
via ajudado a produzir os melhores resultados. As estatísticas são eloquentes. Em 1881, quando
madre Daghero se tornou superiora, o instituto contava com 202 professas e 77 noviças, dis-
tribuídas em 32 centros. Em 1906, ano da separação entre as duas congregações, as professas
tinham subido para 2.354, as noviças eram 312 e as casas 272. O padre Rua, superior maior das
irmãs, considerava o cuidado espiritual do ramo feminino da Sociedade Salesiana uma de suas
tarefas principais. Encorajava as irmãs com visitas frequentes à casa-mãe de Nizza Monferrato
na ocasião de vestiduras e de profissões, com sua participação nos exercícios espirituais na mes-
ma casa, fazendo pelo menos a pregação de encerramento. Durante seus deslocamentos na Itá-
lia, na Espanha, na França e na Bélgica, visitava seus oratórios festivos, suas escolas, seus asilos.
Associava-as aos salesianos nas cerimônias anuais realizadas no santuário de Maria Auxiliadora
por ocasião das expedições missionárias para a América. Enfim, tornava-se presente com subs-
tanciosas cartas circulares, que constituem para os pósteros a documentação mais segura de seu
ensinamento (as notas das crônicas, de fato, sobretudo as transmitidas por Amadei, são pouco
dignas de fé). Podem ser encontradas nessas circulares as intenções, as ideias e os sentimentos
do padre Rua em relação às Filhas de Maria Auxiliadora.
As cartas circulares do padre Rua às Filhas de Maria Auxiliadora
O Fundo Padre Rua (Fondo Don Rua), no Arquivo Salesiano Central, conserva 35 cartas
circulares por ele enviadas às Filhas de Maria Auxiliadora.3 Muitas eram ocasionais. Sua leitura
é instrutiva para compreender seu cuidado em manter o instituto informado. Assim, por exem-
plo, no dia 24 de agosto de 1888, o padre Rua apresenta às irmãs seu novo livro de oração. No
dia 1º de fevereiro de 1890, conta a audiência que lhe foi concedida por Leão XIII no dia 22
de janeiro. No dia 6 de junho do mesmo ano, as avisa sobre a abertura do processo de beatifi-
cação de Dom Bosco, sugerindo as orações a ser recitadas de manhã e de noite pelo bom êxito.
No dia 29 de junho de 1891, agradece-lhes pelos augúrios enviados por ocasião da festa do
Reitor-Mor. No dia 21 de novembro, explica como festejar o jubileu da obra salesiana no dia
8 de dezembro seguinte. No dia 19 de março de 1892, avisa-as de que em agosto acontecerá
seu terceiro Capítulo Geral; no dia 25 de março de 1894, assina o prefácio das “deliberações”
de seus Capítulos Gerais, um documento – escreve – que as diretoras deverão estudar e comen-
tar com as outras irmãs. No dia 16 de julho de 1897, se delonga sobre o 25º aniversário do
nascimento do Instituto (1872). No dia 15 de outubro de 1897, comunica os favores conce-
didos pela Santa Sé pela celebração desse aniversário. No dia 10 de janeiro de 1899, recorda o
10º aniversário da morte de Dom Bosco. No dia 31 de janeiro avisa sobre a iminente abertura
2 Ceria, Vita, p. 405.
3 Cf. FdR 3987C8-3992B9.
273

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de seu quarto Capítulo Geral, com a eleição do Conselho Superior. No dia 21 de novembro de
1899, anuncia que o falecido procurador geral em Roma, Cesare Cagliero, foi substituído por
seu diretor geral Giovanni Marenco e Clemente Bretto tomará seu lugar como diretor geral
do instituto. No dia 22 de fevereiro de 1903, fala da solene coroação de Maria Auxiliadora
que acontecerá em Turim no mês de maio seguinte, grande acontecimento para toda a Família
Salesiana. No dia 22 de janeiro de 1905, anuncia a abertura de seu quinto Capítulo Geral
durante o verão. Finalmente, no dia 29 de setembro de 1906, agradece-lhes pelos augúrios e
pelas orações na ocasião da festa de São Miguel. Como se vê, o padre Rua acompanhava suas
salesianas nos acontecimentos significativos de sua vida comunitária.
O padre Rua cuidava, sobretudo, da estreia anual para as Filhas de Maria Auxiliadora. Sobre
os anos 1889 e 1891 não encontrei nenhuma documentação. Em 1890, existe somente uma
circular (6 de janeiro) de 4 páginas sobre as boas ou más leituras, destinada, sobretudo, às
professoras.4 Mas, a partir de 1892, as estreias do Reitor-Mor se tornaram sistemáticas. Num
primeiro momento, entre 1892 e 1901, se apresentavam somente em forma de prefácio dos
elencos anuais, publicados em janeiro. Mas porque, como bom mestre espiritual, sentia o
desejo de se comunicar mais longamente, assim, de 1902 a 1905, as estreias foram impressas
como fascículo à parte, para serem distribuídas no início do novo ano. Cada uma delas gira
em torno de um tema central. Os leitores vão me perdoar se as apresentamos, mas elas são do-
cumento interessante das principais preocupações do padre Rua em relação às Filhas de Maria
Auxiliadora.
Em 1892, o Reitor-Mor fala da maravilhosa expansão do instituto, sinal da proteção divina.
Em 1893, sublinha o quanto é necessária a caridade dentro de cada comunidade, que deve
formar “uma pequena família”. Em 1894, coloca em evidência a união indispensável entre as
superioras e as outras irmãs. Em 1895, afirma que os oratórios festivos “no instituto devem
ser considerados um dos meios principais e mais eficazes para promover o bem e exercer a
caridade para com o próximo”. Em 1896, busca o motivo no dramático acidente ferroviário
no Brasil, onde encontraram a morte dom Lasagna, seu secretário, madre Teresa Rinaldi e suas
companheiras, para recomendar: “Estejam prontas. De fato, o Filho do Homem virá quando
menos o esperarem”, e “Façamos o bem enquanto temos tempo”. Em 1897, a carta anual é
uma exortação para observar cuidadosamente a “santa Regra” e as deliberações capitulares,
“dom precioso que o Senhor lhes dá [...], guia no caminho da perfeição religiosa [...], laço de
união entre vocês todas”. Em 1898, retoma um discurso de Dom Bosco às primeiras irmãs
em 1872, sobre o desapego da própria vontade, a franqueza com as superioras, a modéstia
religiosa. Em 1899, anunciando a publicação, em 1898, do primeiro volume das Memórias
biográficas convida as irmãs a se impregnar das “amáveis e esplêndidas virtudes” de Dom Bosco.
Em 1900, para o ano santo, exorta-as a purificar e a santificar a própria alma evitando todo
pecado deliberado e seguindo atentamente a santa Regra. Em 1901, apresenta uma exortação
argumentada para viver na santidade durante o novo século, enchendo o próprio coração com
o amor de Jesus Cristo e com o desejo de imitá-lo. Em 1902, o padre Rua se delonga sobre a
santa alegria, típica do espírito de Dom Bosco, uma alegria que não somente torna felizes, mas
facilita o serviço de Deus. Em 1903, exorta as irmãs a imitar as virtudes do Sagrado Coração
4 FdR 3987D3-5.
274
de Jesus, que dizia de si mesmo: “Sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Em 1904, se
delonga sobre a vida de fé, com páginas consteladas de citações bíblicas, exortando as Filhas de
Maria Auxiliadora a pensar em Deus durante todo o dia. Finalmente, em 1905, dedica a estreia
à paciência, virtude frequentemente mal compreendida, que deve ser alimentada de caridade.
Em 1906, enquanto estava em andamento o processo de divisão, o padre Rua pensou que não
seria oportuno escrever a estreia habitual.
Todas essas circulares estão impregnadas de afeto paterno. O padre Rua as endereçava às
suas “boas”, “caras”, “caríssimas” e até “diletíssimas” “em Jesus Cristo” Filhas de Maria Auxi-
liadora. E as assinava: “vosso afeiçoadíssimo em Jesus Cristo”, e até (no dia 31 de dezembro de
1903): “Afeiçoadíssimo pai em Jesus Cristo”. O tom era, de fato, o de um pai que fala a filhas
que leva no próprio coração.
O conteúdo dessas circulares era muito concreto, alcançava as irmãs em sua atividade coti-
diana de professoras, de educadoras de meninas ou de crianças, de enfermeiras, de cozinheiras,
de roupeiras, de ecônomas nos asilos ou nos colégios, e até nas distantes missões americanas.
Elas mesmas se viam nos ensinamentos do padre Rua sobre a vida religiosa e sobre a vida
comunitária com suas humildes exigências. A orientação espiritual das cartas era claramente
escatológica. No fim da vida terrena, se delineia sempre a salvação ou a perdição eterna:
Conhecemos que esse é justamente o fim para o qual fomos criados, conhecer a Deus: ut cog-
noscant Te (Jo 17,3), amá-lo: diligens Dominum Deum (Dt 6,5), e servi-lo: illi soli servies
(Mt 3,10); que a este se reduzem os preceitos divinos: hoc est maximum, et primum mandatum
(Mt 22,38), que por nenhuma outra razão nós existimos; que se nós visássemos a outra coisa,
nos chocaríamos contra a vontade divina, contra as próprias necessidades de nossa natureza in-
teligente. Erraríamos inteiramente nossa vida e deveríamos, um dia, exclamar: ergo erravimus!
(Sb 5,6). Conhecemos como nos exporíamos a tremendos castigos divinos, in ignem aeternum
(Mt 25,41), que nos feririam por toda a eternidade, se nós nos opuséssemos à vontade de Deus.
Assim, nossa vida, se é cordialmente passada no serviço divino, tem para si as promessas mais
atraentes de uma felicidade celeste no seio de Deus: ego... merces tua magna nimis (Gn 15,1),
onde as vicissitudes desta mísera terra não perturbarão mais nosso coração: neque luctus, neque
clamor, neque dolor erit ultra (Ap 21,4), onde nosso espírito, elevado num êxtase de amor, go-
zará as inefáveis doçuras do paraíso: mecum eris in paradiso (Lc 23,43). Contemplando Deus
em si mesmo: facie ad faciem (1Cor 13,12), e degustando exuberantemente sua inefável sua-
vidade: quoniam suavis est Dominus (Sl 33,8), estaremos eternamente imersos e confirmados
na felicidade de Deus, que é em si mesmo feliz de uma felicidade infinita e incompreensível.5
Na vida espiritual da religiosa, a virtude ocupa um lugar central. É através dela, quer se trate
da paciência, da abnegação, da religião, da fé e, sobretudo, da caridade, que a Filha de Maria
Auxiliadora progride na santidade e abre para si as portas da vida eterna. Por exemplo, no dia
24 de agosto de 1888, apresentando às irmãs o novo livro de oração, o padre Rua descreve a
virtude religiosa e suas exigências de maneira muito eficaz:
Aproveitando a ocasião, eu as exorto calorosamente, minhas boas filhinhas em Jesus Cristo, que
coloquem em prática a recomendação que nos fez nosso divino Salvador, de sempre rezar e de
5 Carta de 31 de dezembro de 1903. In: FdR 3987D6-8.
275

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nunca nos cansarmos (Lc 18). Mas vocês me perguntarão: como podemos rezar sempre? Eu lhes
respondo com os sagrados intérpretes e com os mestres de espírito dizendo que especialmente de
três maneiras nós podemos rezar sempre. Primeiramente, adquirindo o hábito, ou seja, a virtude e
o espírito da oração, porque da mesma forma que se diz, por exemplo, que uma pessoa é caridosa,
porque adquiriu o hábito, a facilidade, a prontidão de fazer atos de caridade, e os pratica sempre
quando se lhe apresenta a ocasião, assim também quem tem a virtude, ou seja, a disposição de rezar
toda vez que deve ou que pode, pode dizer merecidamente que está sempre em oração, como quer
o Senhor, porque ele conhece nossa boa vontade. O hábito, portanto, e o espírito da oração assídua
se adquirem rezando frequentemente, mas, sobretudo, quando a santa Igreja e a Regra o exigem.
Da mesma forma se cumpre o preceito de sempre rezar com o uso frequente das jaculatórias tão
insistentemente recomendadas por todos os mestres de espírito, e com as quais elevamos a mente
e o coração a Deus e nos unimos a Ele.
Finalmente, se observa a recomendação divina da oração contínua fazendo todo nosso trabalho e
ação com diligência e por amor de Deus, como nos exorta o apóstolo São Paulo (1Cor 10,31). Por
isso é que o São Beda, o venerável, escreve: Sempre reza quem sempre age segundo a vontade de
Deus. E São Basílio diz: Quem age sempre bem reza sempre. E agimos sempre bem quando temos
reta intenção de dar glória a Deus.6
O padre Rua sabia, portanto, mostrar-se suavemente exigente para com suas “queridas fi-
lhas”. Talvez até um pouco meticuloso, para nossos gostos, como quando na parte conclusiva
da estreia de 1904 sobre a vida de fé convida as irmãs a viver todo o dia entre o céu e a terra.
Deus deve ser o primeiro pensamento, a ele são consagradas as primeiras horas do dia. Não
somente: nas ocupações cotidianas deve ressoar frequentemente “o nome de Jesus e o nome
dulcíssimo de sua Virgem Mãe”. E as irmãs não se saúdem “senão invocando Jesus” em seus
corações; ou então, ouvindo soar as horas, levem imediatamente à própria mente “uma lem-
brança da vida de Maria Santíssima e um pensamento a Jesus”.
Esses conselhos, certamente, observados ao pé da letra por almas escrupulosas, poderiam
suscitar comportamentos artificiais, estranhos ao espírito de Dom Bosco. Mas, nas mesmas pá-
ginas, o padre Rua se mostra mais realista, fazendo notar às irmãs que as paredes de suas casas,
ornadas de quadros religiosos, e as imagens pias que embelezam seus livros são suficientes para
elevá-las naturalmente para Deus. O próprio hábito que vestem recorda-lhes que foram sepa-
radas do mundo “para serem todas de Jesus”. O crucifixo da profissão religiosa “lhes diz qual
deve ser a própria vida”. Concluindo, “como poderia eu supor que, continuamente, vocês não
tenham um pensamento de fé, se de fé sempre lhes fala aquilo que veem, aquilo que ouvem,
aquilo que fazem, aquilo que vocês mesmas são?”.7
O padre Rua não se contentava, portanto, em governar de longe o instituto das Filhas de
Maria Auxiliadora. Estava atento para infundir nelas uma espiritualidade, “uma ascética tipi-
camente salesiana”, segundo a observação feita pela irmã Maria Esther Posada numa comuni-
cação sobre “A formação das Filhas de Maria Auxiliadora entre 1881 e 1922”, apresentada em
Viena durante o seminário europeu de 2003. O instituto ficará por muito tempo marcado por
essa ascética característica.
6 FdR 3987C10-11.
7 Circular de 31 de dezembro de 1903, p. 35. In: FdR 3990C1.
276
Projeta-se a separação
Mas chegaria o dia em que o padre Rua deveria aceitar a separação dolorosa. No dia 29 de
setembro de 1906, expressou simplesmente os seus agradecimentos pelos cumprimentos na
ocasião da festa de São Miguel, às “ótimas” Filhas de Maria Auxiliadora. Os adjetivos afetuo-
sos, caras, caríssimas, diletíssimas, tinham desaparecido.8 Naquele ano teve que renunciar ao
título de superior maior do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora. Conforme as disposições
romanas, o instituto não fazia mais parte da Sociedade Salesiana. Daquele momento em diante
seria totalmente autônomo.
Depois do desaparecimento dos diretores-confessores nas próprias casas, tratou-se de uma
segunda grave ferida naquela herança de Dom Bosco que o padre Rua quereria transmitir
intacta aos sucessores. Mas, como sublinhou o padre Ceria, nosso reitor não se comportou do
mesmo modo nos dois casos. Na questão dos diretores-confessores, enquanto estava correndo
o processo romano, se esforçou o quanto pôde para retardar ou atenuar sua aplicação. Depois,
dobrou-se docilmente diante da vontade romana, tanto que não tolerou mais nenhuma alter-
nativa. Neste caso, ao invés, se manteve à devida distância, deixando para as irmãs o trabalho
de agir como julgassem melhor. É certo, como se verá, que os salesianos apoiaram as irmãs. Ele
mesmo, sem dúvida, sofreu com a direção que a aplicação do regulamento romano tomou, mas
manteve a calma, convidando-as a uma perfeita e religiosa submissão.
Eis as peripécias dessa história, relativamente complexa. Embora muita coisa se diga hoje,
as Filhas de Maria Auxiliadora nunca tomaram a iniciativa da separação. A vicissitude é con-
duzida por uma opção precisa da Santa Sé. No fim do século XIX, Roma pretendia tornar as
congregações femininas independentes das análogas congregações masculinas. A multiplicação
das congregações de irmãs com votos simples levou a Santa Sé a adotar medidas de regulamen-
tação. No dia 28 de junho de 1901, a Congregação dos Bispos e dos Regulares promulgou
um decreto que elencava as normas às quais deviam se adequar essas congregações, para obter
a aprovação de suas Constituições. O documento iniciava com as palavras Normae secundum
quas. O artigo 202 estabelecia que uma congregação feminina de votos simples não podia
depender de uma congregação masculina da mesma natureza. Este era o caso do Instituto das
Filhas de Maria Auxiliadora. O procurador salesiano em Roma se alarmou. Imaginou que os
votos das irmãs fossem canonicamente nulos. A ata do Capítulo Superior de 30 de julho de
1901 nos informa: “Lê-se uma carta do padre Marenco, que, tendo conversado com o car­deal...
nos adverte de que, canonicamente, os votos de nossas irmãs são nulos e, portanto, [expõe] a
necessidade de fazer aprovar por Roma seu Instituto e suas Regras, de modo que fiquem sob
nossa direção. Há também o perigo de serem separadas de nós”.9 O padre Rua se esforçou, en-
tão, simplesmente para regularizar a situação existente. No dia 1º de outubro, uma circular do
prefeito geral Felipe Rinaldi, em nome do Reitor-Mor, comunicava aos inspetores e diretores
as diretivas a respeito das Filhas de Maria Auxiliadora: suas casas deviam ser completamente
separadas das dos salesianos; seu confessor não podia, em nenhum caso, ser o diretor da obra
salesiana na qual residiam ou que tivesse alguma ingerência material com elas; no caso de elas
8 Cf. Annali III, p. 646-666; Ceria, Vita, p. 403-413.
9 Verbali del Capitolo Superiore, 30 de julho de 1901. In: FdR 4243C3.
277

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se confessarem numa igreja pública, seu confessor ordinário devia ser mudado ou confirmado
depois de um triênio, de acordo com o bispo e, se salesiano, de acordo com o Reitor-Mor.10
Depois, a questão começou a caminhar. Em 1902, o cardeal Gotti, prefeito da Congregação
dos Bispos e dos Regulares, pediu ao padre Rua uma relação detalhada sobre a situação do Ins-
tituto das Filhas de Maria Auxiliadora, isto é, um exemplar de suas Constituições, as “delibera-
ções” dos Capítulos Gerais e a aprovação por parte dos Ordinários. Pediu também informações
sobre sua origem e o objetivo perseguido, sobre o pessoal e sua retribuição, sobre sua situação
material e financeira. Tudo foi cumprido pontualmente. As irmãs juntaram até um catálogo
das atividades desenvolvidas em cada casa. Em 1904, o cardeal Ferrata, novo prefeito da Con-
gregação, repetiu o mesmo pedido. Depois, no dia 10 de maio de 1905, através de uma carta
ao procurador padre Marenco, ordenou-se ao Instituto, em nome do papa, que modificasse as
Constituições para torná-las conformes ao decreto Normae secundum quas.
No dia 14 de maio, o procurador transmitiu a carta ao padre Rua. Depois de dez dias, foi
convocado pelo auditor da Congregação. Após ter dado algumas explicações, se disse encarre-
gado de comunicar que eram reconhecidas as benemerências dos salesianos para com o Institu-
to das Filhas de Maria Auxiliadora e a validade dos benefícios e abundantes resultados obtidos,
mas não era mais possível continuar na forma em que o Instituto tinha surgido e na qual se
encontrava. Finalmente, confiou-lhe o encargo oficial por parte da Sagrada Congregação de
modificar as Constituições do instituto no sentido querido pelas Normae secundum quas.11
No dia 25 de maio, o padre Rua foi para Roma, passando por Pisa e Livorno. No dia 28,
devia presidir a festa do 25° aniversário da obra salesiana romana, dia em que seria celebrada
Maria Auxiliadora. Aproveitou a oportunidade no início de junho – segundo o padre Amadei12
– para conversar com o cardeal Ferrata sobre o problema da possível separação do Instituto das
Filhas de Maria Auxiliadora da Sociedade Salesiana. Naquela ocasião, o cardeal se esforçou para
tranquilizá-lo, dizendo-lhe que se tratava essencialmente de uma separação material.
O alerta no verão de 1905
As semanas passavam e já se impunha a aplicação prática das Constituições modificadas.
Ao mesmo tempo, surgiram alguns problemas para os salesianos e para as irmãs. As atas das
reuniões do Capítulo Superior salesiano permitem reconstituir detalhadamente a questão. O
problema foi claramente delineado na reunião do dia 21 de agosto de 1905, presidida pelo
padre Rua, com a presença do diretor geral do instituto, Clemente Bretto:
O padre Bretto escreve que se deverá adquirir logo uma propriedade para as irmãs e deseja que o
Capítulo Superior lhe sugira o caminho a seguir. A esse propósito, vários capitulares observam que
o assunto é muito grave. Dizem que das casas, atualmente habitadas pelas Filhas de Maria Auxilia-
dora, parte é propriedade exclusiva dos salesianos, que não poderão ou não convirá ceder; parte é
10 Circular Rinaldi, 1º de outubro de 1901. In: FdR 4070B3-4.
11 Este parágrafo faz referência à relação feita pelo padre Marenco ao Capítulo Superior, durante a sessão
de 2 de setembro de 1905. In: FdR 4245B7-8.
12 Cf. Amadei III, p. 156-157.
278
também propriedade dos salesianos, mas doadas pelas FMA ou adquiridas com dinheiro ou parte
de dinheiro das FMA, e estas poderão ou convirá serem cedidas; parte, finalmente é propriedade
exclusiva das FMA. Foi dito que o padre Rinaldi prepare uma lista bem detalhada. E, então, se
aproveitou a ocasião para dizer que o Instituto das FMA é parte importante da obra de Dom Bos-
co, que seria preciso, por isso, estar atentos para não desnaturá-lo ao se fazer a reforma imposta.
Ainda mais, buscar todos os meios para que conserve o objetivo, a índole e o espírito que lhe infun-
diu seu Fundador e precisaria que, sem mais, isso transparecesse nessas atas: que os salesianos não
deixaram passar despercebido assunto de tamanha importância. Alguém observa que isso compete
unicamente ao Reitor-Mor. O padre Rua acrescenta: “Muito bem, eu os chamo à parte e peço a
ajuda de todos para poder realizar melhor essa obra da melhor forma possível”. O Capítulo aceita e
encarrega o pró-secretário de preparar uma cópia das Constituições preparadas pelo padre Maren-
co, para que possamos estudá-la. O senhor padre Rua desejaria também que o padre Marenco lesse
para o Capítulo a carta com a qual foi encarregado de fazer o trabalho citado.13
O problema das Filhas de Maria Auxiliadora voltou uns dez dias mais tarde. Durante o con-
selho de 2 de setembro, o procurador Marenco traçou, nos termos que conhecemos, a origem
da tarefa que lhe fora designada pela Congregação dos Bispos e dos Regulares.
Posto isso, o Capítulo Superior, que havia lido as novas Constituições preparadas pelo padre Ma-
renco, feitas algumas observações sobre vários artigos que poderiam ser eliminados ou modificados,
inspirando-se na ideia de evitar repetir nas Constituições aquilo que está prescrito pelos decretos
particulares e não obrigatório para se inserir nas Constituições, observa que seria preciso fazer notar
que essa Congregação das FMA:
• No seu passado: foi obra de Dom Bosco que pensou com ela fazer com as meninas e com as jovens
aquilo que os salesianos fazem com os meninos e com os jovens, e isto com um projeto harmônico
e completo. O Instituto reconhece em Dom Bosco o Fundador e Pai. Dom Bosco, morrendo, o
recomendou a seu sucessor, que exerceu até agora um ministério de paterna vigilância sem impedir
o livre funcionamento da organização interna, e isto deu bom resultado, como se vê pelo desenvol-
vimento maravilhoso, pelas comendatícias dos vários bispos e pelo Breve de Leão XIII.
• No seu presente: os vários milhares de meninas se consagraram a Deus no Instituto com a
persuasão e a confiança de serem assistidas pelos cuidados paternos do sucessor de Dom Bos-
co. Cuidados e apoio tornados, pelo costume, quase necessários à vida do instituto, e, sem dú-
vida, um número grande das casas, especialmente das missões, desapareceriam sem esse apoio.
Na direção espiritual dada geralmente pelos salesianos sempre se procedeu em conformidade
com os cânones e de acordo com os bispos: a interrupção poderia vir em prejuízo também do
bom nome dos dois institutos.
• Para seu futuro: mesmo estando plenamente dispostos a fazer tudo o que a Santa Sé prescreve,
expressa-se o desejo de que, para conservar a tranquilidade nas FMA e para fomentar seu bem
espiritual e material se deixe ao sucessor de Dom Bosco essa autoridade paterna até agora exercida
ou, ainda, uma semelhante ou maior como delegado da Santa Sé.
Conclui-se dizendo que tudo seja simplesmente manifestado ao próximo Capítulo Geral das FMA,
e que elas façam o que julgarem oportuno, mas não se esqueça aquilo que diz Bathandier, muito
prático nesses assuntos, que frequentemente o bom êxito depende de fazer conhecer as coisas como
realmente estão e não como se pensa, de saber expô-las e se esforçar nos termos combinados.14
13 Verbali del Capitolo Superiore, 21 de agosto de 1905. In: FdR 4245B5.
14 Verbali del Capitolo Superiore, 2 de setembro de 1905. In: FdR 4245B7-8.
279

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O anúncio às Filhas de Maria Auxiliadora
Quando começaram a circular vozes sobre uma eventual separação dos salesianos, as irmãs
foram tomadas de grande apreensão. O padre Rua havia decidido não falar sobre o assunto antes
de seu quinto Capítulo Geral, que devia se realizar em setembro em Nizza Monferrato.15 Preven-
do as reações, propôs ao diretor geral Clemente Bretto reunir as componentes do Capítulo Geral
durante o curso de exercícios espirituais preparatórios e apresentar-lhes, com máxima prudência,
a nova situação do instituto. Clemente Bretto o fez em 4 de setembro. O efeito da comunicação
inesperada se nota na carta enviada ao padre Rua, no dia seguinte, pela secretária geral, em nome
da superiora Catarina Daghero e das Capitulares. Nela se dizia, entre outras coisas: “O anúncio
de uma possível subtração das Filhas de Maria Auxiliadora da dependência do sucessor de Dom
Bosco, embora feito com caridosa e prudentíssima tática, provocou em toda a assembleia uma
consternação indizível”. Seguia uma súplica destinada a evitar a ruptura e resumida no grito:
“Caro Pai, não nos abandone!”. A fim de que nenhuma delas pudesse manifestar uma opinião
pessoal, foi feita uma votação secreta dizendo se queriam ou não continuar na obediência a Dom
Bosco e a seu sucessor legítimo. Todas responderam que sim.
No dia 8 de setembro, o padre Rua dirigiu-se a Nizza para abrir o Capítulo e presidi-lo,
conforme as Constituições do instituto. Durante a sessão de abertura, falou sobre a carta e
sobre a votação, dizendo-se comovido e consolado por uma e por outra, mas acrescentou
logo: “Todavia, nós obedecemos à Santa Igreja! Se estivesse vivo, Dom Bosco quereria que nós
obedecêssemos à Santa Igreja, mesmo quando se pedisse alguma coisa diferente daquilo que
ele havia estabelecido”. Durante o Capítulo, o procurador apresentou às capitulares o texto
das Constituições por ele modificado, convidando-as a dar seu parecer sobre as mudanças
introduzidas. Constatar que a separação estava se concretizando as entristeceu enormemente.
Disseram-no ao procurador.
Voltando para Roma, o padre Marenco referiu à Congregação dos Bispos e dos Regulares a
impressão produzida pela leitura de seu projeto e os desejos que algumas capitulares expressa-
ram por escrito. Sua relação fez tal impressão que foi autorizado a introduzir no texto os desejos
expressos, acrescentando-lhes os motivos numa folha à parte. Concluía-se a nota nestes termos:
“Com o objetivo de conservar no instituto a união, a regularidade e o espírito do fundador, o
Reitor-Mor dos salesianos, sucessor pro tempore de Dom Bosco, de santa memória, continuará
a exercer para com o mesmo uma direção e uma vigilância paternas, as quais não revogarão
absolutamente os direitos que, conforme os sagrados cânones, competem aos Ordinários”.16
Mas os salesianos não deviam alimentar ilusões. Não era suficiente a simples separação
dos bens das duas congregações: impunha-se uma separação total, precisou o cardeal Ferrata
numa conversa com o padre Stefano Trione. Diversamente, seria tomada uma medida severa.17
15 Neste parágrafo, sigo Ceria, Vita, p. 407-413.
16 Ceria, Vita, 408. Cf. a carta de G. Marenco a M. Rua, Roma 18 de setembro de 1905. In: FdR
4598D6-8.
17 Segundo uma ata anexa aos atos do Capítulo Superior realizado entre 2 e 10 de outubro,. In: FdR
4245C5.
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A separação dos bens dos dois institutos
No dia 25 de novembro de 1905, com uma circular rigorosamente reservada aos inspetores,
depois de ter resumido a questão, o padre Rua recordava que a Congregação dos Bispos e dos
Regulares havia ordenado ao Capítulo Superior que procedesse à “separação administrativa
e disciplinar das duas obras”. Observava que a separação total dos bens, se imediata, exigiria
despesas enormes. Por esse motivo, de acordo com a Congregação romana, decidiu-se proceder
a “um pouco por vez”. Algumas creches de propriedade dos salesianos já tinham sido cedidas
às Filhas de Maria Auxiliadora. Explicava ainda como proceder nas casas salesianas onde resi-
diam irmãs adidas à cozinha, à lavanderia e à rouparia: dever-se-ia admitir pessoal masculino
ou então seria necessário encontrar nas vizinhanças uma residência para as irmãs, que lhes
permitisse garantir o serviço sem estarem alojadas em casa. Nesse caso, para realizar a separação
administrativa, era preciso retribuir-lhes adequadamente.
Para permitir a separação disciplinar, continuava o padre Rua, as Filhas de Maria Auxilia-
dora tinham dividido suas casas em várias inspetorias dirigidas por inspetoras próprias. Con-
sequentemente, também as diretoras que, de algum modo, dependiam dos salesianos deviam
se dirigir diretamente às respectivas inspetoras e, através delas, ao próprio Capítulo Superior.
Se aparecessem outros problemas, dever-se-ia aguardar o parecer da Congregação romana, pois
“não se pretende se afastar sequer minimamente das prescrições sagradas”.18
Os recursos das Filhas de Maria Auxiliadora a Roma
Então, a conselho dos salesianos, as Filhas de Maria Auxiliadora tentaram uma ação pró-
pria. No dia 4 de dezembro, o padre Rua leu para o Capítulo uma carta da Madre Geral que,
em nome do conselho e de todo o instituto, implorava claramente, de modo formal, que não
fossem alteradas as condições de fundação por parte de Dom Bosco e suplicava que não as
abandonasse. Não pediam para depender de uma congregação masculina, no caso específico da
Sociedade Salesiana, mas unicamente do sucessor de Dom Bosco. Foi-lhe proposto ir a Roma,
para consultar um advogado, expor-lhe seus desejos e seguir seus conselhos.19
Não se fizeram esperar. Alguns dias depois, em 13 de dezembro, o Capítulo soube que a
Madre Geral tinha chegado a Roma para tentar convencer a Congregação dos Bispos e dos
Regulares sobre a necessidade de permanecerem ligadas ao Reitor-Mor.20 A bem da verdade,
Madre Daghero, a secretária Vaschetti e a irmã Marina Coppa, uma das conselheiras, impuse-
ram-se três tarefas em Roma: proceder à revisão minuciosa do texto das novas Constituições
para submeter ao exame da Congregação; preparar um longo memorial para ser entregue aos
cardeais daquela Congregação, acompanhado de um exemplar impresso das Constituições;
visitar cardeais e outros prelados interessados, para explicar as condições reais do instituto. No
memorial, pretendiam ilustrar e motivar seus desejos, que já conhecemos.
18 Circular aos inspetores, Turim, 25 de novembro de 1905. In: FdR 3975D7-10. Essa Circular não foi
inserida em L. C.
19 Verbali del Capitolo Superiore, 4 de dezembro de 1905. In: FdR 4245D4.
20 Verbali del Capitolo Superiore, 13 de dezembro de 1905. In: FdR 4245D7.
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No dia 15 de dezembro, a assistente Marina Coppa escrevia ao padre Rua sobre o êxito de
uma conversa que havia pouco tinham mantido com o cardeal Vivés, membro da Congregação
dos Bispos e dos Regulares. “Dom Bosco vos fundou, esta é a vossa força; mas hoje a Igreja
aplica outras disposições para o governo das congregações femininas. [...] É um fato que fazeis
grande bem, sois apóstolas no mundo, e se não tivésseis sido bem dirigidas não vos teríeis
espalhado tão prodigiosamente”. O cardeal tinha concluído a conversa sorrindo: “Mas Dom
Bosco continuará a ajudar-vos do paraíso: dizem que os fundadores veem do céu, como num
espelho, tudo o que acontece aqui embaixo em suas congregações. Portanto, ele procurará que
tudo esteja em conformidade com a vontade de Deus e para o bem”.21
Como as três superioras se sentiam sozinhas e visto que o postulador Marenco tinha muito
que fazer, no dia 18 o padre Rua decidiu enviar com urgência o padre Bertello para ajudá-las.22
Esta notícia as confortou. No dia 19, a secretária Luisa Vaschetti escrevia ao diretor geral Cle-
mente Bretto: “Ouvi dizer que amanhã estará aqui o reverendíssimo senhor padre Bertello. Deo
Gratias! Percebe-se que temos superiores que nos querem bem de verdade! Eu, por mim, toda
vez que penso nisso, sinto renascer em mim a vocação para me tornar Filha de Maria Auxilia-
dora do Instituto fundado por Dom Bosco, onde espero perseverar até ao último respiro”.23
Depois, as irmãs tentaram conseguir o apoio do próprio Pio X. Na manhã do dia 7 de
janeiro de 1906, o papa recebeu em audiência particular Madre Daghero e suas assistentes.
A amabilidade extrema do Santo Padre abriu o coração da superiora, que lhe manifestou te-
mores comuns, ouvidos com muita atenção. O papa se mostrou satisfeito com as explicações
e repetiu-lhes quatro ou cinco vezes para que estivessem tranquilas. Como certas expressões
pareciam deixar entender que poderiam continuar a ter seu superior salesiano, uma delas pediu
permissão para comunicar às irmãs de Turim essa notícia, que as consolaria em sua aflição ex-
trema: “Não – disse o papa –, não digam nada; rezem e fiquem tranquilas”. Entregaram, então,
ao papa a súplica redigida em setembro por seu Capítulo Geral. E no momento de se despedir,
viram que folheava o documento.24 As novas Constituições foram entregues à Congregação dos
Bispos e dos Regulares no dia 12 de janeiro. As irmãs deviam somente esperar o veredicto.
Nesse meio-tempo, também o conselheiro escolar geral Francisco Cerruti, que se encontrava
em Roma para resolver alguns problemas com o ministério italiano da Instrução Pública, no dia
1° de abril, durante a audiência pontifícia, tentou defender a posição das Filhas de Maria Auxi-
liadora e ouviu boas promessas. Mas, no fim, todos aqueles passos para conseguir um abranda-
mento se revelaram inúteis. As Constituições das Filhas de Maria Auxiliadora foram corrigidas de
modo a estarem estritamente conformes ao decreto Normae secundum quas. No dia 26 de junho,
a Congregação ordenou que fossem comunicadas as últimas modificações ao Superior Geral dos
salesianos e que fossem entregues, a ele e ao arcebispo de Turim, as novas constituições corrigidas
por ordem do papa. A carta para o padre Rua, datada de 17 de julho, dizia:
21 Carta de M. Coppa a M. Rua, Roma, 15 de dezembro de1905, em FdR 4591B1-8.
22 Verbali del Capitolo Superiore, 18 de dezembro de 1905. In: FdR 4245D8.
23 Annali III, p. 615.
24 Segundo a relação da secretária Luisa Vaschetti, Annali III, p. 615.
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Reverendíssimo Padre,
São enviadas, aqui unidas, à Vossa Reverendíssima, as Constituições do Instituto das Filhas de
Maria Auxiliadora corrigidas, por ordem do Santo Padre, por esta Sagrada Congregação dos Bispos
e dos Regulares. E se lhe participa ser vontade de Sua Santidade que essas Constituições sejam
exatamente observadas no citado Instituto, considerando revogadas todas as Constituições e Deli-
berações Capitulares anteriores, enquanto não concordam com elas. Outro exemplar das mesmas
já foi enviado ao Eminentíssimo Arcebispo de Turim com a ordem de comunicar à moderadora
do citado Instituto as relativas disposições do Santo Padre. O subscrito cardeal se alegra de po-
der, nesse encontro, garantir a vossa Reverendíssima a especial benevolência do Santo Padre pela
benemérita Congregação Salesiana de Dom Bosco. E com distinta consideração se diz de Vossa
Reverendíssima.
D. Cardeal Ferrata, Prefeito 25
As irmãs não puderam fazer nada mais a não ser submeter-se chorando. No dia 20 de agos-
to, a Madre Geral, devendo escrever ao padre Rinaldi para uma questão administrativa, apro-
veitou a oportunidade para se desabafar: “Vivemos até aqui como filhas à disposição de nossos
venerados superiores, gozando de seu afeto paterno, de sua benigna condescendência, tantas
vezes quantas precisávamos, e agora... Agora sobreveio a prova: mas justamente na crueza dessa
prova nós vimos que o coração de nossos superiores não mudou, e que, ao contrário, aumentou
de ternura e de compaixão para com essas pobres filhas de Nossa Senhora e de Dom Bosco.
Este pensamento é conforto, é bálsamo para nossa alma resignada sim, mas profundamente
consternada.26
A separação efetiva
O padre Rua se retirara, desde julho, da gestão do instituto. No dia 29 de setembro, apro-
veitou a ocasião da festa de São Miguel Arcanjo para anunciar o novo estatuto às Filhas de
Maria Auxiliadora. Para atenuar a dramaticidade da situação escolheu expressar-se com certa
bonomia e em tom mais distendido...
Turim, festa de São Miguel Arcanjo
29 de setembro
Caríssimas Filhas de Maria Auxiliadora,
Sou-lhes vivamente reconhecido pelos cumprimentos que me fizeram em várias circunstâncias do
ano e especialmente pelas orações e comunhões que me oferecem ao Senhor. E eu, neste dia ono-
mástico, pretendo dar-lhes um presente fazendo-lhes o alegre anúncio de que, em breve, receberão
de sua Reverenda Superiora Geral as Constituições do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora
fundado por Dom Bosco. Foram revistas no seu quinto Capítulo Geral realizado no ano passado
e modificadas pela Sagrada Congregação dos Bispos e dos Regulares, em conformidade com as
normas emanadas pela mesma Congregação no dia 28 de junho de 1901.
Tendo o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora crescido notavelmente, a Santa Sé o levou em
benévola consideração, como aqueles que estão para receber a aprovação pontifícia e que depen-
dem diretamente da mesma Santa Sé.
25 Annali III, p. 617-618.
26 Annali III, p. 618-619.
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Queiram, portanto, receber as novas Constituições com a máxima veneração e como um atestado
do interesse que por vocês tem o Vigário de Jesus Cristo. Estudem-nas e, sobretudo, pratiquem-
-nas para se tornarem boas religiosas segundo as santas orientações da Igreja, e mantenham-se no
espírito de nosso Pai Dom Bosco, que era todo respeito, obediência, afeto ao Sumo Pontífice e
aos outros Pastores, como facilmente vocês podem observar nos seus escritos e nos seus exemplos.
E tanto mais serão suas dignas filhas se, à imitação dele, acrescentarem observância cordial, carida-
de ardente e zelo vivo pela glória de Deus e pela salvação das almas.
Sempre disposto, junto com os outros superiores dos salesianos, a ajudá-las enquanto puderem
precisar de apoio e de conselho, imploro do Senhor as mais abundantes bênçãos sobre seu instituto
e sobre cada uma de vocês e me professo
Seu, em Jesus e Maria,
Padre Miguel Rua27
Alguns dias depois, durante a sessão de 3 de outubro, o Capítulo Superior salesiano se
ocupou da separação. Seriam enviadas instruções detalhadas às casas. Além disso, segundo
a ata, explicar-se-ia à Madre Geral que o Reitor-Mor, de acordo com os desejos da Santa Sé
agradeceria a saída das irmãs de todas as casas onde não estivessem suficientemente separadas
dos salesianos ou, pelo menos, que a superiora obtivesse diretamente de Roma as autorizações
necessárias ou alguma prorrogação para poder adequar-se às normas. O padre Rua enviava
depois a comunicação de sua completa submissão ao cardeal Ferrara, prefeito da Congregação
dos Bispos e dos Regulares. A carta é um ótimo exemplo de suas relações epistolares com os
dignitários eclesiásticos:
Eminência,
Com a carta N. 17358/15 de Vossa Eminência, na data de 17 de julho de 1906, mas a mim en-
tregue mais tarde, recebi as Constituições do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora corrigidas
por ordem do Santo Padre. Agora soube da Reverenda Superiora Geral do citado Instituto que, no
dia 22 de setembro p. p., por sua Eminência o cardeal arcebispo de Turim lhe fora entregue outro
exemplar das mesmas Constituições, como Vossa Eminência havia acenado.
Acredito que não será preciso multiplicar palavras para entender que os filhos de Dom Bosco
cumprirão escrupulosamente e de bom coração não somente aquilo que o Santo Padre quer, mas
também aquilo que ele mostrasse desejar.
Aproveitando, no entanto, a ocasião que se me apresenta, renovo os sentimentos de minha mais
profunda veneração por Vossa Eminência e, enquanto lhe beijo em espírito a sagrada púrpura,
tenho a honra de poder me professar
De Vossa Eminência
Humílimo e obedientíssimo servidor
Miguel Rua
Reitor-Mor da Pia Sociedade de São Francisco de Sales28
No dia 15 de outubro, de Nizza Monferrato, a madre Daghero comunicou às Filhas de
Maria Auxiliadora as novas Regras, reunidas num livrinho intitulado intencionalmen-
te Constituições do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora fundadas por Dom Bosco. Agora,
só esta lembrança das origens já as aproximava dos salesianos. A superiora não disse explici-
27 Circular às Filhas de Maria Auxiliadora, Turim, 29 de setembro de 1906. In: FdR 3991A8-9.
28 Annali III, p. 619-620.
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tamente, mas resultava do documento que o padre Rua deixava de ser seu superior geral.29
No dia 21 de novembro, o padre Rua endereçou aos inspetores disposições claras para
agilizar a separação entre salesianos e Filhas de Maria Auxiliadora. Depois de uma breve in-
trodução, o Reitor-Mor condensou as normas em oito pontos devidamente numerados, como
costumava fazer:
1° Elas, como as outras congregações femininas, não devem depender de alguma congregação de
homens, mas de sua Superiora Geral assistida pelo próprio Capítulo, sob a vigilância direta da
Sagrada Congregação dos Bispos e dos Regulares, e dos Ordinários, conforme as normas das novas
Constituições e dos Sagrados Cânones.
2º Elas devem ter uma administração e contabilidade absolutamente distinta e separada. Porém,
onde elas prestam seu trabalho na cozinha ou na rouparia, devem ser remuneradas como qualquer
outra congregação que prestasse serviços semelhantes.
3° Onde, para tais trabalhos, salesianos e irmãs tivessem casas vizinhas, devem ter entrada separada
e nenhuma comunicação entre suas casas. Ainda, onde a esse respeito surgisse dúvida de que hou-
vesse alguma irregularidade, o Inspetor peça ao Ordinário para verificar e depois sugerir o que fazer.
4º Devem ser consideradas como de sua propriedade as casas de sua moradia; para essas casas
elas devem assumir todas as obrigações de impostos, reparos etc. Quanto à cessão legal, far-se-á
na medida em que se tornar fácil, não podendo ser feito tudo de uma vez por causa das enormes
despesas de transferência que seriam encontradas. Para as novas casas, que precisassem no futuro,
elas deverão adquiri-las no próprio nome.
5º Porém, tendo as Filhas de Maria Auxiliadora em comum com os salesianos o espírito e o Funda-
dor, entre elas e nós haverá grande caridade, reconhecimento e respeito. Mas sem qualquer direito
de superioridade ou dever de submissão.
6º Quanto ao espiritual, elas dependem dos respectivos Ordinários, a quem compete nomear os
confessores, diretores etc. Os salesianos poderão se ocupar de sua direção somente quando forem
encarregados ou autorizados pelo Ordinário da diocese onde elas moram. Aquilo que se diz em
relação à direção espiritual das Filhas de Maria Auxiliadora deve ser entendido também em relação
a qualquer outra congregação feminina.
7° Da obra dos salesianos, prestada com as devidas autorizações, como acontece com outras religio-
sas, também podem se valer as Filhas de Maria Auxiliadora especialmente para serem ajudadas a se
manter no espírito de nosso Pai comum Dom Bosco. Mas, quando as Filhas de Maria Auxiliadora
tivessem de usar da obra dos salesianos, convirá que elas façam, a respeito, pedido ao Ordinário.
8° Os superiores salesianos, com o exemplo e com a palavra, inculquem em seus dependentes que
não se dirijam com frequência a comunidades religiosas femininas a não ser por obediência e com a
permissão regularmente conseguida, não permaneçam além do necessário e se comportem sempre
da maneira mais edificante.
Confio que praticando estas normas resultará sempre maior glória de Deus e vantagem para as al-
mas, o que nosso venerado Pai nos ensinou a procurar em todo nosso trabalho, em toda nossa ação.
Digne-se a Virgem Maria, da qual hoje se celebra a festa da Apresentação no Templo, tornar-nos
cada vez mais dignos de nos apresentar e de servir na casa de Deus mediante o fervor na piedade e
a pureza de nossas almas.
Rezem, por favor, pelo
Seu afeiçoadíssimo em Jesus e Maria
Padre Miguel Rua30
29 Madre Catarina Daghero, circular do dia 15 de outubro de 1906. In: FdR 4610A8-9.
30 L. C., p. 357-359.
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Os números 5, 6 e 7 regulavam as novas relações entre salesianos e salesianas, agora obri-
gadas a depender das hierarquias locais. Mas neles se percebia o firme desejo do padre Rua de
que as Filhas de Maria Auxiliadora continuassem a defender seu bem precioso: o espírito das
origens, o espírito de Dom Bosco.
Por agora, as Filhas de Maria Auxiliadora não tinham conseguido mais que isso. A guia pa-
terna do sucessor de Dom Bosco, que tanto desejavam conservar, não fora concedida. Mas elas
foram tenazes e o padre Rua não as esqueceu nas muitas provas. Contentemo-nos em citar os
acontecimentos dos meses de setembro e outubro de 1907. Em setembro de 1907, as Filhas de
Maria Auxiliadora realizaram em Nizza Monferrato seu primeiro Capítulo depois da separação.
Foi presidido pelo bispo de Acqui. Elegeram as superioras, depois pediram a participação dos
salesianos. O padre Marenco chegou no dia 18 e o padre Rua no dia 26 para o encerramento.
Seu discurso desenvolveu a oração: “Ó Senhor, ensina-me a bondade, a disciplina, a ciência”.
E as capitulares assinaram uma declaração de devoção filial a Dom Bosco e ao padre Rua em
nome do instituto.31 Um mês depois, no dia 24 de outubro, na igreja de Maria Auxiliadora, o
padre Rua dirigia seu encorajamento a um grupo de salesianas que se dispunham a partir para
as missões: “Vão trabalhar no seu campo de apostolado, mas somente para a glória de Deus e
o bem das almas”, recomendava-lhes substancialmente. E, dois dias depois, umas 30 Filhas de
Maria Auxiliadora se uniam a 50 missionários salesianos para a cerimônia tradicional de adeus
na mesma igreja. Finalmente, no dia 27, o padre Rua dirigia ainda um discurso especial às
salesianas de Turim: “Trabalhem para a maior glória de Deus”.32
Onze anos depois da separação, no dia 19 de junho de 1917, as irmãs conseguiram um de-
creto da Santa Sé graças ao qual o Reitor-Mor dos salesianos era nomeado delegado apostólico
junto às Filhas de Maria Auxiliadora. A administração do instituto permaneceria autônoma e
os direitos dos bispos seriam salvaguardados, mas a cada dois anos o Reitor-Mor ou um seu de-
legado deveria visitar as casas das Filhas de Maria Auxiliadora paterno consilio. Madre Daghero
estava ainda no cargo. Durante a audiência que lhe foi concedida no dia 14 de janeiro de 1919,
Bento XV lhe perguntou o que pensava do decreto. “Vossa Santidade atendeu ao meu mais
profundo desejo, Santíssimo Padre”, ela respondeu.33 De fato, satisfazia ao pé da letra o desejo
de guia paterna augurado pelas capitulares em setembro de 1905. As Filhas de Maria Auxilia-
dora reviveriam, embora limitadamente, o tempo feliz em que o padre Rua as acompanhava e
as aconselhava em sua admirável expansão.
31 Cf. Amadei III, p. 342-343; Ceria, Vita, p. 412.
32 Cf. Amadei III, p. 351-352.
33 M. Wirth, Don Bosco et la Famille salésienne, p. 404.
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Capítulo 30
A expansão salesiana na passagem do século
Na Tunísia
O padre Rua não se contentou em multiplicar a presença dos salesianos no continente ame-
ricano. Teve a audácia de criar novas obras também na África e até na Ásia.
A Argélia tinha visto os salesianos chegarem em 1891. Na época, o cardeal Lavigerie se la-
mentou de que o padre Rua tivesse preferido Orã a Cartago, na Tunísia, apesar de uma promes-
sa que Dom Bosco lhe havia feito em Paris, em 1883. Em 1894, o sucessor, Clément Combes
(Lavigerie tinha falecido em 1892), conseguiu, sem dificuldade, a vinda dos salesianos para La
Marsa (1895), nas proximidades de Túnis, depois na própria Túnis (1896).
Os processos caminharam rapidamente. No dia 11 de agosto de 1894, o Capítulo Superior
aceitava a oferta de um novo arcebispo.1 Um contrato assinado em 7 de dezembro seguinte,
entre o arcebispo de Cartago e o padre Rua, estabelecia no primeiro artigo: “O arcebispo de
Cartago confia aos salesianos de Dom Bosco a direção do orfanato agrícola atualmente situado
em La Marsa, Tunísia”.2 O Instituto Perret, do nome de seu fundador, o lionês Perret, era uma
casa apertada, capaz de hospedar somente uma dezena de órfãos, mas possuía um vasto terreno.
O arcebispo pediu que para lá fossem enviados um sacerdote e dois colaboradores, eclesiásticos
ou leigos, e ele se empenharia em remunerar “por conta da diocese”. E gastaria anualmente
400 francos para cada órfão “indicado pela diocese” (art. 3). No dia 31 de dezembro, o diretor
designado, Antonio Josephidis (1861-1919), acompanhado do coadjutor, Serafino Proverbio,
partiu da Sicília para Túnis e La Marsa. O diretor era um homem empreendedor. Logo acolheu
uns 20 outros jovens, conseguiu do Capítulo Superior a autorização para construir locais mais
espaçosos e chegou o dia em que, em 1898, em Valdoco, dom Cobes aceitou a proposta do
padre Rua de criar em La Marsa também um curso de escolas secundárias. Nascia, assim, uma
obra que fará germinar belas vocações salesianas, entre as quais se distinguirá Louis Mathias,
futuro arcebispo de Madras (1887-1965).
Depois de outro contrato entre o arcebispo e o padre Rua (4 de março de 1896), os salesia-
nos se instalaram em Túnis, onde lhes foi confiada a capela Sainte-Lucie, ponto de partida da
1 Verbali del Capitolo Superiore, 11 de agosto de 1894. In: FdR 4241E11.
2 O contrato é reproduzido em FdR 3497A3-5.
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Paróquia do Rosário, com seus florescentes oratórios.3 As irmãs salesianas assumiam a direção
de uma obra feminina em La Manouba, não distante de La Marsa.
Durante uma viagem realizada à Tunísia entre 23 e 30 de março de 1900, o padre Rua po-
derá felicitar-se pelo sucesso dessas fundações recentes no país.4
A Associação Nacional italiana em Alexandria do Egito
Passando da Tunísia para o Egito, encontramo-nos diante de um organismo presente em
todo o Oriente Próximo, no qual o padre Rua confiou, com o risco de italianizar abertamente
as obras salesianas na região. A Associação Nacional Para Socorrer os Missionários Italianos
Católicos – este era o nome oficial – tinha então como secretário um douto egiptólogo de
nome Ernesto Schiaparelli. A Associação Nacional, criada por personalidades declaradamente
católicas, apoiadas pelo governo italiano, tinha sido reconhecida como entidade moral em
decreto régio de 12 de novembro de 1891. O reconhecimento lhe dava liberdade de ação no
âmbito político.
Falava-se do envio dos salesianos para o Egito pelo menos desde 1887, como testemunha
uma carta do cardeal prefeito da Propaganda Fide, Giovanni Simeoni, datada de 26 de feve-
reiro de 1887.5 Em Alexandria, havia uma comunidade numerosa de italianos e de malteses.
A corrupção precoce de muitos jovens incomodava os observadores mais sensíveis, sobretudo
os franciscanos, que esperavam pela criação de uma escola salesiana de artes e ofícios para a for-
mação humana e cristã da juventude. Ernesto Schiaparelli fazia parte desse número. Em 1890,
escrevia ao padre Durando: “Há agora em Alexandria do Egito centenas de crianças abandona-
das, de toda nacionalidade e religião, mas especialmente italianos e malteses, católicos, para os
quais aprender um ofício e receber um pouco de educação significaria sua saúde neste mundo
e no outro”.6 E garantia aos salesianos o apoio da Associação Nacional.
Em 1895, o padre Antonio Belloni, de passagem pela Itália, foi encarregado pelo padre Rua
de encontrar em Alexandria do Egito um terreno adequado para a escola salesiana de artes e
ofícios já projetada. O padre Belloni pôs os olhos num espaço edificável no bairro Bab-Sidra.
O negócio foi complicado pela concorrência francesa de uma escola dos Irmãos das Escolas
Cristãs. Mas os salesianos conseguiram o apoio de dom Guido Corbelli, delegado apostólico
do Egito e da Arábia, e, assim, da Santa Sé. No final, foi assinado um acordo, que merece ser
citado por inteiro, pois, promovendo a italianização das obras salesianas – não sem uma razão
tática, de fato evitava-lhes toda dependência francesa –, condicionará, em certos aspectos, seu
3 Cf. o projeto de contrato está em FdR 3497A1-2.
4 Sobre essa viagem, cf. eventualmente as cartas de F. Rinetti ao padre Belmonte, nos dias 23, 25, 29 de
março e 1° de abril de 1900. In: FdR 3008D7-E8.
5 FdR 3165E8-9. Em geral, sobre a fundação e os inícios da obra salesiana de Alexandria, cf. FdR 3165E8-
3167E12, e o relato de Annali II, p. 316-323.
6 Carta de E. Schiaparelli a C. Durando, Firenze, 3 de junho de 1890. In: FdR 3169D2-3; cf. Annali II,
p. 316.
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futuro em todo o Oriente Próximo. O documento, intitulado Contrato Entre o Reverendo Su-
perior Geral da Congregação dos Salesianos e a Associação Nacional Para Socorrer os Missionários
Católicos Italianos, estabelecia:
Hoje, dia 1º de março de 1897, entre o subscrito Reverendíssimo Senhor padre Miguel Rua,
Superior Geral da Congregação Salesiana, e o subscrito Professor Ernesto Schiaparelli, Secretário
Geral e representante da Associação Nacional Para Socorrer os Missionários Católicos Italianos, foi
contratado quanto segue.
A Associação Nacional se obriga a pagar o aluguel do local do Instituto Profissional de Artes e Ofícios
e todas as despesas decorrentes da instalação e da manutenção do sobredito Instituto. Por sua vez, o
Reverendíssimo Senhor Superior da Congregação Salesiana assume a obrigação de prover o pessoal
idôneo para o citado Instituto que a Associação Nacional pretende instituir em Alexandria do Egito.
No citado Instituto será obrigatório, para todos os alunos, o estudo da língua italiana.
Como externos serão admitidas crianças de toda nacionalidade e [toda] religião.
Serão comemorados os dias aniversários de nascimento de Sua Majestade o Rei e da Rainha da
Itália, e o dia do Estatuto.
Em qualquer outra coisa, o Instituto terá total autonomia...
O presente contrato tem a duração de um ano, a partir do presente dia, e se entende renovado
indefinidamente, de ano em ano, caso não seja distratado por uma das partes, não menos de três
meses antes de seu vencimento anual.
Confirmam quanto segue:
O Superior Geral da Congregação Salesiana
Padre Miguel Rua
O representante da Associação
E. Schiapparelli.7
O padre Ceria comentará, em 1943, as vantagens (pelo menos provisórias) dessa solução
que colocava o instituto salesiano sob o controle da Associação Nacional Italiana:
Nos institutos assim administrados pela Associação, os religiosos adidos não comparecem como
missionários, mas simplesmente como professores, e a Associação tem a representação das escolas
tanto diante das autoridades apostólicas como diante do governo local e das autoridades consu-
lares italianas. Por isso, os religiosos vivem numa condição de autonomia de todas as autoridades
consulares, limitando-se, diante do consulado italiano, ao puro ato de obediência, que é de dever
de todo bom cidadão.8
Nosso historiador não previa, todavia, que estivesse tão perto o momento em que os salesia-
nos presentes não seriam mais somente italianos e, sobretudo, que toda a região reivindicaria
sua autonomia política e cultural.
Constantinopla e Esmirna
Alguns anos depois, o padre Rua entrou em acordo com a Associação Nacional para criar
simultaneamente duas fundações na Turquia, uma em Constantinopla, outra em Esmirna.
7 Conservado em FdR 3170A8-9; cf. Annali II, p. 321.
8 Annali II, p. 322.
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O contrato para Constantinopla foi assinado conjuntamente pelo padre Rua e pelo professor
Schiaparelli no dia 20 de julho de 1903. O padre Rua se empenhava para abrir em Constan-
tinopla, em setembro daquele ano, uma escola elementar para rapazes, à qual se juntaria, no
ano seguinte, uma seção de artes e ofícios e, gradualmente, outras classes, como parecesse mais
conveniente. A Associação faria, antes de 15 de setembro, um pagamento de 7 mil liras para as
despesas de organização, forneceria o material escolar e garantiria o apoio material e moral.9
No dia 26 de junho anterior, através de Schiaparelli, a Associação Nacional tinha propos-
to ao padre Rua, para o mês de outubro, duas escolas para rapazes abertas em Esmirna pelo
governo italiano em 1878. As escolas estavam decaindo “por não haver nelas educação cristã
esmerada”. A Associação se encarregava nos mesmos termos de suas escolas no Egito e em
Trípoli.10 O padre Rua e seu Capítulo se apressaram em dar uma resposta positiva ao secre-
tário Schiaparelli. A ata da reunião do Capítulo Superior de 21 de agosto de 1903 anotava:
“Os salesianos partirão em setembro e assumirão as escolas de Esmirna”.11
Mas nem tudo caminhou às mil maravilhas na Turquia. No dia 21 de agosto de 1905, o
Capítulo Superior registrava uma queixa enviada pelo cônsul italiano a Schiaparelli. Dizia-se
pouco satisfeito com o trabalho dos salesianos em Esmirna: esperava-se mais. Visto que as aulas
seriam retomadas no dia 5 de setembro, telegrafou-se para Alexandria para que o padre Car-
dano fosse a Esmirna por duas ou três semanas com o objetivo de iniciar as aulas e as oficinas.
O Capítulo era também convidado a refletir sobre o diretor que colocaria à frente da obra.12
A Associação Nacional, por sua vez, encontrava dificuldade para honrar os compromissos
financeiros assumidos para as escolas de Esmirna, como testemunham os documentos dos anos
seguintes, sobretudo um Pró-memória sobre a casa de Esmirna, não assinado, mas datado de
17 de fevereiro de 1906. Seu tom é muito irritadiço: o passivo da obra soma 35-40 mil liras.
Consequentemente, impõe-se o fechamento, pelo menos temporário, do curso comercial, o
mais custoso, na hipótese de a Associação manter a contribuição anual de 6 mil francos, “ape-
nas suficiente (e talvez não) para sustentar a Escola Popular da Punta”; essa medida não deve
parecer “injusta”, e não é, segundo o Pró-memória, porque a Associação Nacional, por primei-
ro, não respeitou o contrato, não cumprindo o artigo sobre o material escolar e suprimindo as
despesas para água, gás e o combustível para o aquecimento.13
A Associação Nacional e as obras salesianas da Palestina
Nesse meio-tempo, o professor Schiaparelli e nosso Reitor-Mor voltavam sua atenção para
as obras salesianas da Palestina, as únicas do Oriente Próximo pelas quais a Associação Nacio-
9 Cf. Annali III, p. 414-421.
10 Cf. carta de E. Schiaparelli a M. Rua, Turim, 26 de junho de 1903. In: FdR 3486B3-5.
11 Verbali del Capitolo Superiore, 21 de agosto de 1903. In: FdR 4244A3.
12 Verbali del Capitolo Superiore, 21 de agosto de 1905. In: FdR 4245B6.
13 Esse pró-memória se encontra em FdR 3486C8-D1. Em geral, sobre Esmirna (Izmir) nos tempos do
padre Rua, cf. FdR 3484E10-3487C6.
290
nal ainda não se interessara. A conjuntura política, naquele começo de século, favorecia uma
mudança do sistema dos protetorados. O governo francês, tornado anticlerical, estava abando-
nando sem saudades seu antigo protetorado para os católicos e para as missões católicas da re-
gião. Portanto, seria suficiente passar as casas de Belém, Beitgemal, Cremisan e Nazaré para o
protetorado italiano, a fim de tornar possível um contrato que as unisse aos beneficiários da
Associação Nacional para socorrer os Missionários Católicos Italianos. O negócio foi tratado
em Constantinopla e em Roma.14 A Itália entraria em acordo com a França através dos respec-
tivos embaixadores. Como era necessário o consentimento da Santa Sé, junto à qual a Itália não
tinha representação diplomática, a Associação se encarregou dos procedimentos. Assim, no dia
9 de setembro de 1904, o padre Rua assinava, conjuntamente com Schiaparelli, um contrato que
vale a pena citar, dadas as futuras repercussões sobre o pessoal salesiano árabe da Palestina.
Premissa: 1° Como resulta dos atos registrados no Consulado da Itália em Jerusalém, os imóveis
de Belém, Cremisan, Beitgemal e Nazaré, com tudo o que está contido neles, já pertencentes ao
falecido cônego Belloni, súdito italiano, são passados para propriedade, salvos os direitos de pro-
paganda, de vários indivíduos particulares, todos súditos italianos. 2º Por tais circunstâncias, os
mesmos imóveis e os institutos que neles estão sediados devem se encontrar politicamente sujeitos
ao natural e direto protetorado do Senhor Cônsul da Itália. Entre o Reverendíssimo Senhor padre
Miguel Rua, Superior dos Salesianos, representando a mesma comunidade, e o professor Ernesto
Schiaparelli, Secretário da Associação Nacional Para Socorrer os Missionários Católicos Italianos e
na representação da mesma, chegou-se ao seguinte contrato:
Artigo 1°. O reverendíssimo senhor padre Miguel Rua coloca todos os institutos salesianos da
Palestina sob o Protetorado exclusivo dos Senhores Cônsules da Itália.
Artigo 2°. O mesmo senhor padre Rua se obriga: a) a acrescentar no instituto de Belém um curso
técnico-comercial; b) a reconhecer como obrigatório o ensino da língua italiana, que, com a língua do
país, será língua oficial dos institutos, e usada pelos alunos na conversação, e pelos professores no ensino
de todas as matérias; c) a hastear a bandeira nacional em todos os citados institutos, em lugar central e
eminente, em todos os dias festivos e no aniversário de Suas Majestades os Soberanos da Itália.
Artigo 3°. Aos diretores dos citados institutos é expressamente reservada plena autonomia na di-
reção religiosa, moral, educativa, disciplinar e didática; mas eles se honrarão com as visitas e com
a intervenção dos delegados da Associação para constatar os bons resultados do ensino e com as
visitas e a intervenção dos senhores cônsules, notadamente nas circunstâncias solenes.
Artigo 4º. A Associação, por sua vez, a título de apoio, se obriga: a) a atribuir aos citados institutos,
em conjunto, um subsídio anual de 12 mil (doze mil) liras, pagáveis em parcelas trimestrais de
3 mil (três mil) liras; b) a fornecer aos mesmos institutos o material escolar italiano estritamente
necessário.
Artigo 5º. O presente contrato entrará em vigor no dia 15 de outubro de 1904, e considerar-se-á
renovado de ano em ano, indefinidamente, caso não seja distratado por uma das partes três meses
antes do seu vencimento normal.
O presente contrato é redigido em Turim no dia 9 de setembro de1904, em dois originais que são
assinados por ambas as partes.
Pe. Miguel Rua,
Reitor-Mor da Pia Sociedade de São Francisco de Sales.
Ernesto Schiaparelli,
Secretário Geral A.N.15
14 Cf. Annali III, p. 536-537.
15 O texto original é reproduzido em F. Desramaut, L’Orphelinat Jésus Adolescent, p. 290-291.
291

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Em relação aos itens sobre a propriedade das casas salesianas da Palestina e sobre a obrigação
de utilizar a língua italiana na conversação e no ensino, poder-se-iam prever muitas resistências
no heterogêneo ambiente palestino. Mas Turim tinha a intenção de ignorá-las. Na época, em
1904, ao anúncio do contrato, o diretor de Belém, padre Carlo Gatti, que não gostava da mu-
dança de protetorado e se entendia bem com o cônsul francês, pediu demissão.16 Quanto ao de
Nazaré, Athanase Prun (1861-1917), que era francês e tinha certo temperamento, recusou toda
dependência italiana e tentou voltar para o protetorado francês, coisa que levará Schiaparelli a
cortar um quarto de seu subsídio anual para as casas da Palestina.17
Alguns anos mais tarde, sob o reitorado do padre Albera, as tensões aumentarão por causa
do movimento árabe. Os discípulos árabes do padre Belloni recordarão aos superiores que eles
não eram italianos e se recusarão a catequizar seus pequenos compatriotas numa língua que
compreendiam mal ou quase nada. Chegou-se ao ponto de, em 1917-1918, tomarem o poder
em Belém, no tempo do inspetor Luigi Sutera (1869-1948), que não gostava deles, enquanto
estava em andamento a guerra entre Turquia e Itália. Os salesianos italianos de Beitgemal e de
Belém, então, sofrerão muito e, em alguns casos, serão até denunciados por seus próprios ir-
mãos de Congregação. A rebelião árabe será severamente dominada no fim da guerra, em 1919,
pelo visitador Pedro Ricaldone, e provocará a passagem de uma parte dos padres salesianos
árabes para o clero do patriarcado latino.
O padre Rua, inconscientemente, prestava um serviço à causa da italianidade, destinada
mais tarde a se desenvolver orgulhosamente, sob Mussolini, entre as duas guerras mundiais.
E os salesianos, que se saíram mal no contrato de 1904 com a Associação Nacional italiana,
terão falência em sua esperada inculturação no Oriente Próximo.18
Os salesianos na China
Durante os primeiros anos do século XX, o padre Rua fez os salesianos entrarem também no
Extremo Oriente, na China, na colônia portuguesa de Macau, e na Índia, em Mylapore, perto
de Madras (hoje Chennai).
No ambiente salesiano da década de 1890, havia a comum convicção de que Dom Bosco,
em outubro de 1886, falando das missões na China com o padre Arturo Conelli (1864-1924),
o tivesse designado para, um dia, se dirigir para lá.19 O interessado falou sobre isso com um
amigo jesuíta da Civiltà Cattolica, padre Francesco Saverio Rondina, que lhe havia proposto
preparar a opinião pública para a chegada dos salesianos com o envio a Macau e Hong Kong
de uma documentação sobre Dom Bosco e sobre sua obra. Assim, a imprensa local publicaria
16 Verbali del Capitolo Superiore, 15 de outubro de 1904. In: FdR 4244B12.
17 As queixas de Schiaparelli sobre Nazaré foram registradas pelo Capítulo Superior nas sessões do dia
10 de abril, dos dias 7 e 8 de agosto, e do dia 18 de novembro de 1905. In: FdR 4244 E10, 4245B1-2.
18 Sobre a aventura dos protetorados, sobre suas consequências para os salesianos durante a Primeira Guerra
Mundial, cf. F. Desramaut, L’Orphelinat Jésus Adolescent, p. 49-63, p. 127-139.
19 Sobre a fundação de Macau, cf. Annali III, p. 596-605.
292
alguns artigos.20 O padre Rua encorajou o padre Conelli a satisfazê-lo.21 E este expediu ao padre
Rondina as biografias de Dom Bosco escritas por Charles d’Espiney e Albert Du Boÿs, uma
publicação de dom Spinola, e algumas circulares do padre Rua.
O enxerto vingou. Depois de nove anos, o núncio apostólico em Lisboa, Andrea Ajuti,
arcebispo titular de Damietta, transmitia ao padre Rua o seguinte pedido do bispo de Macau,
dom José Manuel de Carvalho, datado de 2 de abril de 1899:
Falta-me um orfanato para o sexo masculino, onde sejam ensinados artes e ofícios, com o objetivo
de poder ver se por esse meio se consegue atrair meninos pobres, que sendo nele educados pos-
sam conseguir a graça da conversão à nossa Santa Religião. Para isto, pensei no Instituto de Dom
Bosco. Venho, portanto, recorrer à ajuda e proteção de Vossa Excelência para esse meu problema,
pedindo-lhe o especial favor de conseguir do Superior Geral do instituto 2 ou 3 irmãos para come-
çar, porque os meios não são muitos. E quando Vossa Excelência me autorizar a fazê-lo, então me
dirigirei a ele para estarmos de acordo sobre as condições com as quais eles desejam vir para cá.22
Não era possível prever uma obra salesiana reduzida a 2 ou 3 coadjutores. Seria contrário às
Constituições, observou o padre Rua: impunha-se a participação de pelo menos um sacerdote.
Mas, a princípio, concordou. No dia 20 de junho de 1899, o núncio respondia que dom Car-
valho – provavelmente de passagem por Lisboa – aceitava que se acrescentasse aos coadjutores
do orfanato pelo menos um sacerdote e algum clérigo.23 O padre Conelli parecia já designado
para chefiar a expedição chinesa. O padre Rua mandou lhe dizer no dia 4 de dezembro: “Se
você acredita, entre o sério e o jocoso, faça Sua Eminência o Cardeal Vanutelli saber de sua
designação, feita por Dom Bosco, para a primeira casa salesiana na China, e sobre as atuais
tratativas para Macau”.24 Mas o bispo dom Carvalho morreu (1904).
O sucessor, dom João Paulino de Azevedo e Castro, que tivera a ocasião de admirar as ofici-
nas salesianas de Lisboa, estava informado sobre os passos dados por dom Carvalho. De Macau
escreveu para o padre Rua – em português – no dia 17 de abril de 1904:
Aceito plenamente o projeto contratado entre o Reverendíssimo Superior Geral e o meu prede-
cessor, do qual tomei conhecimento graças à Vossa Reverendíssima por ocasião de sua recente
passagem por Lisboa. A obra será composta de órfãos chineses destinados a aprender algum ofício.
Unido a ela haverá um internato de meninos, filhos de europeus ou portugueses de Macau que, em
sua maioria, se orientam para o comércio. Estes receberão educação e instrução no internato e irão
ao seminário para a escola e os cursos comerciais, acompanhados por um assistente. [...] Para que
o internato e as oficinas possam começar a funcionar sob a direção dos salesianos, parece-me que
serão necessários, pelo menos, 1 diretor, 3 prefeitos e 3 mestres de arte: alfaiataria, sapataria e arte
tipográfica. Esse é o pessoal que me parece indispensável [...]
20 Cf. as dez cartas de P. Rondina a A. Conelli durante o ano de 1890. In: FdR 3281B4-C12.
21 Cf., por exemplo, a carta de M. Rua a A. Conelli, Anversa, 14 de maio de 1890. In: FdR 3888A5.
22 Carta de A. Ajuti a M. Rua, 25 de maio de 1899. In: FdR 3281A6-7.
23 Carta de A. Ajuti a M. Rua, 2 de junho de 1899. In: FdR 3281A9-10.
24 Carta de M. Rua a A. Conelli, Turim, 4 de dezembro de 1899, em FdR 3888B5.
293

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E o bispo expressava o desejo de que um dos assistentes fosse capaz de ensinar música e
dirigir uma fanfarra.25
O padre Rua preparou tudo, mas esperou um documento formal antes de deixar seus mis-
sionários partirem para a China. Finalmente, em Macau, no dia 29 de dezembro de 1905, dom
Azevedo redigiu uma minuta de contrato em doze pontos, válido por sete anos. O padre Rua
enviaria pelo menos um diretor, um assistente e quatro irmãos leigos para a direção e adminis-
tração de um orfanato (art. 1). O ensino seria ministrado tanto nas escolas como nas oficinas
(art. 3). O diretor escolhido pelo padre Miguel Rua teria plena liberdade na disciplina interna
do instituto (art. 4). As despesas seriam por conta do bispo (art. 6). Este último conseguiria
do governo viagens gratuitas (art. 9).26 A expedição já organizada devia ser dirigida pelo padre
Conelli, que havia vinte anos esperava o acontecimento. Mas infelizmente, ele ficou doente
no começo de janeiro e foi obrigado a ficar na Itália. Assim, no dia 17 de janeiro de 1906,
os missionários para Macau embarcavam em Gênova, sob a direção do padre Luís Versiglia
(1873-1930).
Chegando ao destino, a primeira tarefa de Versiglia era concluir o contrato como represen-
tante do padre Rua. Aprovou os 12 artigos e os assinou juntamente com o bispo no dia 20 de
fevereiro de 1906.27
Infelizmente, o padre Versiglia deveria logo renunciar a algumas esperanças, talvez porque
a situação política de Portugal, de que Macau era colônia, estava progressivamente se deterio-
rando. De fato, com o pretexto de acalmar as sublevações causadas pelos republicanos sob o
regime desacreditado do rei Carlos I (1889-1908), o país, entre 1906 e 1908, foi submetido à
ditadura de João Franco. No dia 1º de fevereiro de 1908, Carlos I e o príncipe herdeiro foram
assassinados. O segundo irmão, Manuel II, subiu ao trono com a idade de 16 anos. Pode-se
imaginar as tensões políticas e nacionalistas suscitadas na pequena colônia chinesa por esses
acontecimentos. Aqui, “tudo por Portugal”, escreverá o padre Versiglia no dia 22 de novembro
de 1908, no relatório ao padre Rua, do qual trataremos.
As coisas começaram bem. No dia 6 de maio de 1906, numa carta ao padre Rua, o padre
Versiglia se alegrava pela abertura de um oratório festivo.28 “Nossa obra prospera”, havia anun-
ciado o bispo de Macau ao padre Rua, no dia 16 de novembro.29 Mas, depois da euforia dos
inícios, a situação dos salesianos em Macau se deteriorou. O bispo introduzira na estrutura do
orfanato uma comissão que obedecia a ordens do governo, como explicava o padre Versiglia em
1908. Contrariamente ao contrato, os salesianos não eram mais livres. O padre Luís Versiglia
sugeria modificar o contrato e empreender uma verdadeira e própria missão na região. Por isso,
pedia ao padre Rua 3 clérigos que aprendessem o chinês e fossem destinados a uma missão
25 Carta de J. P. de Azevedo a M. Rua, Macau, 17 de abril de 1904. In: FdR 3282A11.
26 A minuta de contrato é conservada em FdR 3281D7-9.
27 O documento se encontra em FdR 3282A12-B2.
28 Cf. Bollettino Salesiano, agosto de 1906, p. 242-343.
29 Carta de J. P. de Azevedo a M. Rua, Macau, 16 de novembro de 1906. In: FdR 3282B3-C5; cf. Annali
III, p. 605.
294
propriamente dita na China. Era preciso, nesse projeto, conseguir o apoio da Congregação de
Propaganda Fide e da Sociedade Nacional Para Socorrer os Missionários Italianos Católicos.
Por outro lado, suspeitava que o bispo esperasse o vencimento dos sete anos do contrato para
despedir os salesianos italianos. Convinha sair em tempo daquele beco sem saída onde tinham
ido parar por engano.30
Os acontecimentos políticos fizeram precipitar as coisas. Em Portugal, o rei Manuel II, que
tinha renunciado ao regime ditatorial, logo foi derrubado por um golpe militar de Estado. No
dia 5 de outubro de 1910, os revolucionários proclamaram a República. Uma constituinte dis-
solveu as congregações religiosas, rompeu as relações entre Igreja e Estado, anunciou o ensino
leigo obrigatório nas escolas, concedeu o direito de greve... Consequentemente, na metrópole
e nas colônias, começou a expulsão dos religiosos dos conventos. Os salesianos de Macau,
expulsos em 1911, partiram na direção de Hong Kong. Mas a Providência estava atenta. Com
aquela desventura, o sonho missionário do padre Versiglia podia finalmente ser realizado. Os
salesianos se estabeleceram em território chinês, na região de Heung-Shan, entre Macau e Can-
tão. Finalmente começava a verdadeira obra missionária dos salesianos na China.
A obra salesiana na Índia
A entrada dos salesianos no início de 1906, precisamente em Mylapore, perto de Madras, é
o resultado de uma longa série de tratativas entre o bispo do local e o padre Rua.31
No dia 6 de dezembro de 1898, o bispo de Mylapore, Antonio José de Souza Barroso escre-
via (em francês) uma longa carta ao padre Rua para ter os salesianos em sua diocese. Fazia-o
habilmente, evocando as intenções de Dom Bosco sobre a Índia:
Conheço os padres salesianos, cujas obras tive ocasião de admirar. Dom Bosco desejava ardente-
mente fundar uma casa nas Índias. [...] Tomo, portanto, a liberdade, reverendo e caro padre, de
convidá-lo a abrir um orfanato em Bandel, às margens do Hoogly: tenho lá uma bela casa e um
mosteiro antigo muito grande, com terrenos que coloco inteiramente à sua disposição; tenho a
impressão de que Bandel responderá admiravelmente às exigências de seus institutos para os jovens
indígenas, como Beitgemal na Palestina. Em segundo lugar, tenho um colégio frequentado por
300 alunos de toda religião e, perto, um seminário para a formação de jovens europeus e, sobretu-
do, nativos destinados ao clero da diocese: ofereço-lhe também a direção deles.32
De uma anotação manuscrita do padre Rua na margem da carta entendemos que ele respon-
deu ao bispo no dia 6 de fevereiro de 1899: “Seja-nos concedido algum ano de trégua e, depois,
conversaremos de boa mente”. Mas, no momento em que recebia a resposta, dom Barroso, no
dia 11 de abril, anunciou ao padre Rua que tinha sido transferido para a diocese de Porto, em
30 Carta de L. Versiglia a M. Rua, Macau, 22 de novembro de 1908. In: FdR 3281A12-B3. Os Annali
ignoram este documento.
31 Sobre a fundação salesiana na diocese de Mylapore (ou Meliapore), cf. FdR 3515B11-3516D10 e a
narração dos Annali III, p. 606-613, em que se inspira.
32 Carta de A. de Barroso a M. Rua, 6 de dezembro de 1898. In: FdR 3515 C3-6.
295

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Portugal, e que transmitiria a promessa ao sucessor. Este se chamava Theotonio Manuel Ribei-
ro Vieira de Castro. Tinha um motivo pessoal para se dirigir aos salesianos:
A alma apostólica de Dom Bosco quer realmente uma ou mais fundações na Índia. Quando, em
agosto de 1885, terminados meus estudos em Roma, passei por Turim e fui a uma sua casa de
campo para receber a bênção de vosso santo fundador, ele, colocando a mão sobre minha cabeça,
disse-me que abençoava minhas obras. E que obra abençoaria mais que uma obra tão necessária e
oportuna para cooperar na salvação eterna de 300 milhões de infiéis que povoam as Índias?33
Para iniciar os procedimentos necessários à fundações de um orfanato salesiano em sua
diocese, dom Ribeiro começou enviando a Turim um de seus sacerdotes, L. X. Fernandez,
que, no dia 3 de abril de 1901, se apresentou ao padre Rua com um bilhete em latim.34 Na sua
prudência habitual, o padre Rua respondeu em quatro pontos na mesma língua: 1º “Scribat
nobis Episcopus” [o bispo nos escreva]. 2º Conceda-se aos salesianos uma trégua de quatro anos
para preparar o pessoal. 3º providencie-se a viagem de 6 pessoas até Mylapore e, pelo menos
uma vez, o seu retorno. 4º Preveja-se, além da moradia para os salesianos e para seus alunos,
o necessário para eles por cinco anos.35 O padre Rua não queria lançar seus missionários em
aventuras sem saída. Mas a resposta do padre Rua ao bispo foi perdida e a questão se prolongou
por muito tempo. De tal modo que, no ano seguinte, dom Ribeiro pediu ao “patriarca” de
Goa, Antonio Sebastião Valente, de passagem por Roma, que interviesse junto ao procurador
salesiano, padre Marenco, que relatou ao padre Rua no dia 8 de abril de 1902.36 No dia 30
de abril, o padre Rua, imperturbável, repetiu suas condições. Isso levou o bispo de Mylapore
a lhe escrever, no dia de Natal, uma longa carta que reiterava sua proposta de um orfanato
detalhando-a: “Depois de ter considerado todas as circunstâncias, escolhi, entre as Missões de
minha diocese, a de Tanjore para o lugar do nosso orfanato salesiano. Mas se, quando os filhos
de Dom Bosco chegarem à Índia, acharem melhor outro lugar da diocese, de minha parte
não haverá dificuldade”. E apresentava em detalhes as vantagens da cidade de Tanjore.37 Os
intercâmbios epistolares continuaram, entre o bispo para o qual urgia atingir seu objetivo, e o
padre Rua, muito decidido a não enviar seus missionários à Índia antes de 1905. No final, no
dia 19 de dezembro de 1904, o contrato foi assinado em Turim pelas duas partes interessadas,
o Reitor-Mor e dom Ribeiro, em viagem ad limina. Aí se percebeu a preocupação de proteger
o mais possível os salesianos contra os riscos de uma expatriação sem renda própria, nos confins
da Ásia. Se bem ajudados, no entanto, teriam as mãos livres para seu trabalho. Podemos ler o
texto interressante do Contrato:
Contrata-se:
O superior dos salesianos enviará para a diocese de Mylapore pelo menos 6 pessoas para a direção
e a administração de um orfanato masculino tendo anexas escolas de artes e ofícios.
O bispo providenciará a viagem gratuita (na primeira ou na segunda classe) de ida para 6 pessoas
e, para seu retorno, de pelo menos uma vez; e para as despesas daquelas trocas que, durante os
primeiros cinco anos, se devessem fazer por causa de saúde ou outro motivo razoável.
33 Annali III, p. 607.
34 Cf. o documento em FdR 3515C10.
35 Minuta da carta de M. Rua a T.M. Ribeiro Vieira de Castro. In: FdR 3515C11-12.
36 Carta de G. Marenco a M. Rua, Roma, 8 de abril de 1902. In: FdR 3515D3.
37 Carta de T.M. Ribeiro Vieira de Castro a M. Rua, 25 de dezembro de 1902. In: Annali III, p. 569.
296
O bispo providenciará, durante os primeiros cinco anos, não somente a casa, a comida e as roupas
para os salesianos e seus alunos, mas também fará todas as despesas necessárias para o Instituto.
Embora esse Instituto esteja sob a jurisdição do bispo diocesano, todavia, o diretor nomeado pelo
Superior terá plena liberdade na direção, na administração e na disciplina interna do Instituto.
A aceitação dos alunos compete tanto ao bispo como ao diretor, cuidando, porém, que os alunos
sejam sadios, vacinados e de idade não inferior a 8 anos e não superior a 15.
O diretor, porém, poderá dispensar aqueles internos que considerar inaptos para o orfanato, mas
sobre isso avisará o bispo.
Os salesianos procurarão aprender o tâmil e o inglês, que são as línguas mais usadas na diocese.
O diretor e o bispo procurarão estar sempre de acordo em todas as coisas para a edificação dos
padres e dos indígenas e para o bem das almas e vantagem do instituto.
As partes se reservam o direito de introduzir, depois de dois anos de experiência, aquelas modifica-
ções que parecerem oportunas.
Turim, Oratório salesiano, aos 19 de dezembro de 1904.
Assinam:
Theotonio, bispo de Mylapore
padre Miguel Rua, Reitor-Mor dos Salesianos de Dom Bosco.38
A expedição missionária, composta de 3 sacerdotes, 1 clérigo, 1 coadjutor professo e 1 aspi-
rante, tinha como superior o padre Giorgio Tomatis (1865-1925). A expedição embarcou em
Gênova, no dia 18 de dezembro de 1904. O padre Rua tinha implorado para eles uma bênção
especial do papa. Este fez responder pelo secretário de Estado Merry del Val: “O Santo Padre
envia especial bênção ao sacerdote Giorgio Tomatis e aos companheiros que com ele estão para
se dirigir às Índias e augura que Deus não só os acompanhe na longa viagem, mas também
torne frutuosos seus trabalhos, a fim de que a nova missão faça os filhos de Dom Bosco cada
vez mais beneméritos da Igreja”.39
Desembarcados em Bombaim no dia 6 de janeiro de 1905, chegaram a Tanjore no dia 14.
Assim nasceu na Índia uma obra missionária destinada, com o passar dos anos, a assumir
uma amplitude extraordinária. Era a segunda instalação conseguida no Extremo Oriente por
obra de nosso padre Rua. Seu reitorado foi, para o desenvolvimento mundial de sua Congrega-
ção, tão decisivo para a Ásia quanto o de Dom Bosco para a América do Sul.
38 O contrato é reproduzido e conservado em FdR 3516C8-12; cf. Annali III, p. 570, nota.
39 Annali III, p. 571.
297

15.10 Page 150

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Capítulo 31
O ano de 1907
A causa de beatificação de Dom Bosco
O ano de 1907 foi para o padre Rua de grande alegria, perturbada, entretanto, por uma
prova terrível.
A causa de Dom Bosco, que o padre Rua tomava tanto a peito, chegou a uma etapa decisiva.
O leitor nos permitirá retornar a 1888, para compreender profundamente o caso. De fato, o
processo de uma causa de beatificação e de canonização é complexo, assemelha-se, por assim
dizer, a uma corrida com obstáculos. O padre Rua, ajudado em Roma pelo cardeal protetor e
pelos procuradores salesianos, conseguiu superar a primeira fase. Em 1907, poderá anunciar
à Congregação que “Dom Bosco é Venerável”. Mas depois de ter sofrido dezenove anos para
chegar àquele primeiro resultado significativo.1
No início, foi necessário obter a aprovação do arcebispo de Turim para abrir o processo
diocesano de beatificação e de canonização, que encaminharia os procedimentos. O padre Rua
começou enviando, no dia 6 de julho de 1889, uma carta coletiva aos bispos do Piemonte e da
Ligúria sobre a reputação de santidade e os milagres de Dom Bosco.2 Para encorajá-los, no dia
16 de agosto mandou-lhes uma segunda carta que documentava algumas curas humanamente
inexplicáveis, conseguidas por intercessão de Dom Bosco.3 Alguns arcebispos responderam de
modo elogioso. De tal forma que no dia 6 de setembro ele pôde fazer que os 49 membros do
Capítulo Geral, então reunidos em Valsalice, assinassem um pedido muito documentado ao
cardeal Alimonda para a abertura rápida do processo. Anexou ao documento as cartas que lhe
chegaram dos bispos. A petição dos capitulares dizia:
Nós esperamos que Vossa Eminência queira acolher favoravelmente este nosso pedido. Nossa espe-
rança se anima ao ver que também os Excelentíssimos bispos do Piemonte e da Ligúria, que pude-
ram conhecer bem as virtudes eminentes e as grandes obras do Servo de Deus, são de nosso parecer,
e nutrem o mesmo desejo, como Vossa Eminência pode relevar das cartas que lhe apresentamos.
1 Aqui faço referência principalmente ao estudo, muito documentado, de P. Stella, Don Bosco nella storia
della religiosità cattolica, vol. III: La canonizzazione. Roma, LAS, 1988, p. 61-148.
2 Cf. MB XIX, p. 35-36.
3 Cf. MB XIX, p. 36.
298
A súplica, acompanhada de uma carta do padre Rua, foi entregue ao cardeal de Turim
somente no dia 31 de janeiro de 1890, provavelmente para poder reunir, nesse meio-tempo,
um número maior de cartas dos bispos.4 O cardeal respondeu favoravelmente no dia 8 de fe-
vereiro, mas pediu um pouco de tempo, talvez por temor de alguma oposição no episcopado.
Tudo se resolveu no dia 8 de maio, quando ele mesmo acenou ao problema por ocasião de uma
assembleia geral dos bispos das províncias de Turim e de Vercelli. A petição dos salesianos foi
aprovada por unanimidade, ou melhor, alguns bispos (Manacorda e Richelmy) se fizeram des-
tacar por seu entusiasmo em favor de Dom Bosco. No mesmo dia, o cardeal Alimonda decidiu
abrir o processo informativo.
Os trabalhos assim preparados foram encaminhados rapidamente. No dia 2 de junho de
1890, o padre Rua nomeou João Bonetti postulador da causa. E ele, no dia 3 de junho, apre-
sentou sua postulação ao arcebispo. Devia-se instituir um tribunal. O arcebispo refletia havia
tempo sobre isso e o constituiu imediatamente.5 Sua composição podia satisfazer o padre Rua.
A tarefa de promotor da fé (ou advogado geral, chamado pelo povo “advogado do diabo”)
foi confiada ao cônego Michele Sorasio, benévolo em relação aos salesianos, e não ao cônego
Emanuele Colomiatti, notoriamente ferrenho adversário da canonização de Dom Bosco. Este
deveria se contentar com agir escondido, enviando uma carta a Roma para o cardeal Caprara.
No dia 6 de junho, o padre Rua, comovido e visivelmente inquieto, escreveu aos salesianos
uma longa circular sobre a abertura do processo de beatificação do Fundador, pedindo a irmãos
e alunos que implorassem, todo dia, em público ou em particular, a luz do Espírito Santo e a
proteção de Maria Auxiliadora sobre o eminentíssimo arcebispo de Turim, sobre o tribunal que
havia escolhido, sobre o postulador da causa, sobre as testemunhas chamadas para depor, a fim
de que, assistidos pelo céu, nada dissessem ou fizessem, nada omitissem em desacordo com os
decretos emanados pela Santa Igreja sobre esse tipo de questões.6 As armadilhas do processo o
angustiavam.
As primeiras duas sessões do processo aconteceram nas manhãs do dia 4 e do dia 27 de
junho. No decorrer da segunda sessão, o padre Bonetti apresentou ao tribunal uma série de ar-
tigos, cuja história é bom conhecer, que de fato orientariam os depoimentos das testemunhas.
Já a partir da morte de Dom Bosco, o padre Rua havia pedido a Bonetti que sintetizasse sua
vida e suas virtudes em vista de uma possível canonização. Bonetti, ajudado eficazmente pelo
arquivista Joaquim Berto, havia produzido quatro cadernos com mais de 800 artigos (ou pará-
grafos). Aconselhado por Cesare Cagliero, procurador salesiano em Roma, Bonetti os subme-
teu ao advogado Ilario Alibrandi. Em 1890, o longo texto foi oportunamente condensado e os
artigos foram reduzidos a 406. A primeira parte deles contava a vida de Dom Bosco e ressaltava
sua reputação de santidade. A segunda apresentava os fatos documentados do heroísmo com o
qual ele havia praticado as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), as quatro virtudes
cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), as virtudes próprias do estado religioso
(pobreza, castidade e obediência), assim como as principais virtudes morais, sobretudo a pie-
4 MB XIX, p. 38-41.
5 Cf. MB XIX, p. 42, 398.
6 L. C., p. 45-48.
299

16 Pages 151-160

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16.1 Page 151

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dade e a humildade (esta última acrescentada por conselho de Alibrandi). Os artigos queriam
demonstrar a presença dessas virtudes na vida de Dom Bosco, sobretudo quando, no decorrer
de sua existência extenuante, teve de enfrentar dificuldades familiares e sociais, doenças físicas,
tentações e vexações diabólicas, incompreensão dos parentes, dos colaboradores, dos amigos,
dos superiores, das autoridades civis e religiosas. Concluía-se afirmando que tudo em Dom
Bosco demonstrava a correspondência perfeita à graça, a constância no bem e a heroicidade da
“virtude”, termo entendido no sentido mais amplo. A leitura desses artigos deve ter causado
grande satisfação ao padre Rua, pronto para intervir pessoalmente na qualidade de testemunha
no processo.
Os depoimentos no processo informativo
As 28 testemunhas reunidas pelo padre Bonetti se apresentaram ao tribunal durante a 3ª ses-
são (23 de julho de 1890), todos reunidos na capela do seminário da arquidiocese.7 Havia um
bispo (dom Bertagna), 8 sacerdotes diocesanos mais ou menos notáveis, 9 sacerdotes salesianos
(com o padre Rua à frente), 2 coadjutores salesianos e 8 leigos (comerciantes, agricultores e um
simples pedreiro). No fim das audiências, o número das testemunhas subiu para 45, das quais
6 escolhidas ex officio (por ofício) e outra, o sacerdote diocesano Giovanni Turchi, convencida
a se unir ao grupo dos salesianos preocupados com a direção tomada pela questão dos livretos
antigastaldianos atribuídos a Dom Bosco.8
O padre Rua foi chamado para testemunhar somente no início dos cinco longos anos do
processo informativo. Nesse meio-tempo, morreu o postulador João Bonetti (5 de junho de
1891), e foi substituído pelo prefeito geral Domenico Belmonte (1843-1901). O tribunal
ouviu o padre Rua durante 38 sessões, distribuídas entre 20 de abril e 10 de julho de 1895.9
Ele respondeu detalhadamente às perguntas sobre o ministério pastoral de Dom Bosco como
padre novo, sobre a fundação da sociedade salesiana, sobre sua expansão, em especial sobre
as missões americanas: todas situações das quais fora testemunha direta e, frequentemente,
também protagonista ativo. Na 21ª e na 22ª perguntas não foi difícil demonstrar a heroicidade
das virtudes teologais e cardeais do Fundador, como se observa das primeiras frases de cada
resposta. Sua fé? “Durante os trinta e seis anos em que vivi ao lado de Dom Bosco, vi sempre
nele a máxima exatidão na observância dos mandamentos de Deus e da Igreja” (Positio, 436).
Sua esperança? “Sua confiança em Deus se manifestava na hora de empreender obras difíceis
e grandiosas” (Positio, 478). Sua caridade para com Deus? “O Servo de Deus se distinguiu em
todas as virtudes; mas, com certeza se pode dizer que a caridade foi nele, de modo especial,
7 Cf. a lista das testemunhas em P. Stella, La canonizzazione..., p. 75.
8 Cf. a lista definitiva das testemunhas efetivamente interrogadas em Taurinen. Beatificationis
et Canonizationis Servi Dei Ioannis Bosco Sacerdotis Fundatoris Piae Societatis Salesianae. Positio
super Introductione Causae. Summarium et Litterae Postulatoriae. Roma, Schola Typ. Salesiana,
1907, p. 1-22 (que citaremos Positio). Para mais detalhes, cf. P. Stella, La canonizzazione..., p.
117-124.
9 A verbalização dos depoimentos do padre Rua está conservada em FdR 2405D12-2414D3.
300
luminosa” (Positio, 503). Sua caridade em relação ao próximo? “Animado como era pelo amor
de Deus, não podia senão ser aceso de caridade para com seu próximo. Apontei-o como anjo
tutelar para salvação de seus companheiros [...]. Ordenado sacerdote, sua vida se tornou um
tecido contínuo de obras de caridade” (Positio, 555).
Interrogado sobre a prudência de Dom Bosco, o padre Rua respondeu: “Acrescento ainda
poucas coisas sobre a prudência heroica do Servo de Deus. Quando tratava com qualquer classe
de pessoas, sua amabilidade era tanto para os ricos como para os pobres. E tomava muito cuida-
do para nunca despedir alguém descontente” (Positio, 595). Respondendo às perguntas sobre a
virtude da justiça, afirmou: “Manifestava também respeito para com as autoridades civis e go-
vernamentais, enquanto não faltava com o respeito devido ao chefe do Estado” (Positio, 630).
A propósito de sua força moral, declarou: “A fortaleza de Dom Bosco foi admirável e heroica ao
refrear as próprias paixões, ao suportar fadigas, incômodos, tribulações; ao empreend­ er e apoiar
as iniciativas mais árduas”. E nossa testemunha dava numerosas provas sobre tudo (Positio,
667). A temperança de Dom Bosco era, segundo o padre Rua, orientada por seu amor à pureza
(Positio, 716-723). Quanto à humildade, testemunhou: “Recebia com grande humildade as
sugestões de seus alunos, e levava em muita consideração suas observações e, diria até, as corre-
ções” (Positio, 759-765). Depois de ter narrado a vida do Fundador, o padre Rua acrescentou:
“Ao expor as virtudes que o Servo de Deus exerceu durante sua vida, várias vezes acenei que as
admirei exercidas heroicamente. Todavia, parece-me oportuno acrescentar como o vi constante
na prática das mesmas, de modo a se poder dizer que, com o avançar dos anos, foi crescendo
na perfeição mais que perdendo alguma coisa no fervor” (Positio, 369).
Depois dele, entre 7 e 23 de outubro de 1895, testemunhou o padre Giovanni Turchi. Os
salesianos, o padre Rua por primeiro, descobrirão quanto será determinante seu testemunho
sobre a vicissitude dos folhetos antigastaldianos. De fato, mesmo sem um reconhecimento for-
mal, quantos lerem o depoimento compreenderão que o padre Turchi era o autor dos infelizes
opúsculos, que o cônego Colomiatti continuava a atribuir a Dom Bosco.10
O depoimento do padre Rua, embora sóbrio, é um dos mais substanciosos do processo e
ocupa bem 273 páginas da cópia pública. Foi superado somente por Joaquim Berto (387 pági-
nas) e Júlio Barberis (283 páginas), que, porém acabam sendo muito redundantes.11
No dia 1º de abril de 1897, o arcebispo de Turim, Davide Riccardi, presidiu a sessão de
encerramento do processo informativo. Tinha durado sete anos, por causa de interrupções
devidas a várias mortes seguidas de novas nomeações. Na circular de 6 de agosto de 1907, o
padre Rua escreveu: “Os juízes deram prova de muita sabedoria no acolher os depoimentos de
numerosas testemunhas, e, coisa digna de ser bem considerada, longe de se sentirem enfadados
pela duração e importância do trabalho, se mostravam cada dia mais entusiastas”.12 Em abril
de 1897, o padre Belmonte pôde entregar à Congregação dos Ritos, em Roma, o volumoso
processo instituído em Turim.
10 Cf. P. Stella, La canonizzazione …, p. 88.
11 Cf. P. Stella, La canonizzazione..., p. 83.
12 L. C., p. 518-519.
301

16.2 Page 152

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Em Roma, a causa de Dom Bosco seguiu seu caminho. No dia 30 de agosto de 1897,
o padre Rua nomeou postulador o padre Cesare Cagliero, que era também seu procurador
junto à Santa Sé. Com decisão de 25 de outubro de 1898, a Congregação dos Ritos ordenou
a entrega de todos os escritos do Servo de Deus. A prescrição foi reforçada em Turim pelo ar-
cebispo Riccardi e pelo próprio padre Rua, numa carta aos salesianos do dia 8 de dezembro.13
O exame dos escritos foi realizado de 1902 a 1904, sob o patrocínio do douto cardeal Luigi
Tripepi, muito favorável à causa. O censor designado não encontrou nada a objetar, nem na
apologia antigastaldiana, a mais contestada pelo cônego Colomiatti, intitulada Exposição aos
Eminentíssimos Cardeais (1881): concluiu-se que Dom Bosco tinha se limitado a se defender,
embora em tom muito áspero.14
No dia 18 de novembro, o padre Rua foi a primeira testemunha chamada a depor sobre a
ausência de culto prestado a Dom Bosco (Super cultu numquam praestito).15 Não havia nenhu-
ma dificuldade em reconhecer o quanto tinha sido grande a reputação de santidade, também
durante sua vida mortal. Era esta que atraía para ele a veneração das multidões, sobretudo nas
últimas grandes viagens. Mas nunca lhe tinha sido prestado culto público, nem na câmara-
-ardente nem no túmulo em Valsalice. O padre Rua não tinha nem conhecimento de alguma
forma de culto público diante de seus retratos nos lugares onde estavam expostos.
Oposições e réplicas – Dom Bosco é venerável
A fase crucial do processo chegou em 1907. Dom Alessandro Verde, promotor da fé, tinha
se distinguido em 1905 e 1906 pela dureza eficaz das observações sobre as causas de Anna
Maria Taigi e do padre Bernardo Clausi, da ordem dos frades menores. Em março de 1907,
designado para examinar a causa de Dom Bosco, apresentou suas Animadversiones (observa-
ções), destinadas a levantar objeções ao prosseguimento do projeto de beatificação.16 Substan-
cialmente, dom Verde denunciou certa duplicidade de Dom Bosco a partir de uma presumida
afirmação do padre Cafasso que se lia no prefácio da biografia escrita pelo doutor d’Espiney.
Sua argumentação estava condensada na fórmula: “Dom Bosco é um mistério”, atribuída ao
padre Cafasso. Infelizmente, para dom Verde (e para a memória de Dom Bosco), todo o trecho
era fruto de uma construção oratória de Louis Cartier, verdadeiro autor daquele prefácio. A
única observação verdadeiramente atribuível a Cafasso era talvez outra expressão citada por
Cartier: “Deixe-o fazer”.17 De qualquer forma, dom Verde relembrou a vida de Dom Bosco,
13 L. C., p. 186-187.
14 Positio super revisione scriptorum, Romae, Typis Vaticanis, 1906; P. Stella, La canonizzazione..., p. 127-
130.
15 A documentação dessa fase do processo é conservada em FdB 2435A7-2439A4. O testemunho do padre
Rua se encontra em FdR 2435E7-2436A11.
16 As 25 páginas dessas Animadversiones, datadas de 16 de março de 1907, se encontram incluídas no fim
da Positio... 1907.
17 Pude desmontar esta construção na última parte de meu estudo sobre a biografia de Dom Bosco de
Jacques-Melchior Villefranche, RSS 9 (1990), p. 85-89.
302
que todos consideravam sustentada pela graça divina, para demonstrar que a reputação de
santidade estava fundamentada sobre sonhos e profecias apresentados com arte. Na realidade,
seu comportamento habitual não era o que se devia esperar de um santo. Ele parecia mais um
homem à procura de sucesso e movido por um orgulho sutil. Os salesianos tiveram muita difi-
culdade para engrandecê-lo e orquestrar sua pretensa santidade.18
Para felicidade dos salesianos, a réplica prevista foi confiada a um sacerdote jovem e brilhan-
te, padre Carlo Salotti (nascido em 1870), grande admirador do estilo educativo salesiano, que
tinha experimentado pessoalmente. Segundo esse advogado, toda a construção das Animad-
versiones visava a deformar os fatos, calando as circunstâncias significativas e exagerando sua
importância e seu alcance. Desde a infância do pequeno saltimbanco, germinou nele o sentido
da oração e da caridade zelosa para com os companheiros. Seus sonhos, começando pelo dos
9 anos, eram revelações celestes. Sua extrema cautela em narrá-los é prova da prudência que o
animava precocemente. Nele não havia nenhuma loquacidade, mas uma insistência proposital
a fim de que seus sucessos fossem considerados o resultado da fé e da intercessão de Maria.
Nenhuma ostentação de penitências corporais, mas uma alegre oferta de si nas intermináveis
confissões dos jovens e nas múltiplas coletas na cidade, no Piemonte, na Itália, na Europa,
durante viagens cansativas e sem qualquer fim turístico. Portanto, era oportuno apresentá-lo
como exemplo luminoso para toda a sociedade cristã e, em primeiro lugar, para os sacerdotes,
ele que, sacerdote jovem, tinha sido apresentado pelo venerável José Cafasso como apóstolo de
Turim; ele que depois deu, em meio a pessoas muito diversas, provas abundantes de zelo apos-
tólico e que, com seus irmãos, se consagrou totalmente à formação sadia da juventude.19
O contexto se fazia cada vez mais favorável. O cardeal Luigi Tripepi morreu no dia 29 de
dezembro de 1906. O postulador salesiano, Marenco, procurou inutilmente substituí-lo pelos
cardeais Rampolla, Totti e Cretoni. Finalmente, como escreveu ao padre Rua no dia 7 de janei-
ro de 1907, encontrou no capuchinho José Calasanz Vivés y Tuto um cardeal disponível e até
entusiasta.20 Este, nomeado Ponente (responsável) no dia 23 de fevereiro de 1907, se pôs logo
ao trabalho, como demonstram as Animadversiones e a Responsio de março e abril seguintes.
“O cardedal Vivés y Tuto é muito dedicado – escreveu então o padre Marenco ao padre Rua.
– Acredito que nunca tivemos um Ponente tão benévolo e empenhado.”21
Finalmente, chegou-se a uma conclusão durante a sessão da Congregação dos Ritos de 23 de
julho. À pergunta sobre a oportunidade de introduzir a causa de beatificação e de canonização
de Dom Bosco, o voto dos cardeais e de seus consultores resultou afirmativo. No dia seguinte,
Pio X assinava o documento, que traria a data de 28 de julho de 1907. Marenco, cheio de
alegria, deu a notícia ao padre Rua no mesmo dia da assinatura do papa: “Agora podem ser
tocados tambores e sinos”.22
18 Cf. A análise de P. Stella, La canonizzazione..., p. 131-136.
19 A longa defesa (81 páginas), chamada Responsio, de Carlo Salotti, datada de Roma em 10 de abril de
1907, está incluída no apêndice da Positio..., 1907.
20 Carta de G. Marenco a M. Rua, Roma, 7 de janeiro de 1907. In: FdR 3830 D3-4.
21 Carta de G. Marenco a M. Rua, Roma, 10 de abril de 1907. In: FdR 3830D12-E3.
22 Cartas de G. Marenco a M. Rua, Roma, 24 de julho de 1907. In: FdR 3831A1-4.
303

16.3 Page 153

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O decreto Supremus Humanae Familae que ratificava a introdução da causa “para a bea-
tificação e a canonização do venerável servo de Deus João Bosco, sacerdote fundador da Pia
Sociedade Salesiana”, assinado pelo cardeal prefeito Serafino Cretoni, punha sua vida e sua obra
na esteira dos santos sacerdotes educadores dos tempos modernos:
Deus, supremo autor e regedor da família humana, como em outros tempos, também nos nossos
provê com especial cuidado à sociedade cristã, auxiliando-a com ajudas e remédios oportunos, por
meio de homens singulares, ilustres por virtude luminosa e operativa, os quais, percorrendo seu
caminho, pareceram comunicar a todos o próprio espírito e o próprio ardor salutar e vital. Entre
eles, no século há pouco terminado, a Providência divina mandou para auxílio e ornamento de
sua Igreja o sacerdote João Bosco, o qual, seguindo fielmente as pegadas daqueles homens santos,
que foram José Calazans, Vicente de Paulo, João Batista de La Salle e outros semelhantes, com a
Pia Sociedade Salesiana por ele fundada e com várias outras obras, se consagrou inteiramente a
buscar a salvação das almas e especialmente a educar a juventude na piedade, nas letras e nas artes,
fazendo-se tudo para todos para fazer todos salvos.23
Nesse documento não se fazia nenhuma alusão a dotes taumatúrgicos, nem durante a vida
nem depois da morte de Dom Bosco. Resultava simplesmente que toda sua vida e o conjunto
das obras por ele promovidas deviam ser consideradas uma espécie de “teofania”, reservada
à Igreja em tempos difíceis, como escreve Pietro Stella com perspicácia e espírito crítico.24
O padre Marenco telegrafou logo a notícia no dia 24 de julho. Depois, dirigiu-se a Turim
para entregar pessoalmente o documento ao padre Rua. Nosso Reitor-Mor exultou. O docu-
mento sancionava a “venerabilidade” de Dom Bosco. No dia 6 de agosto, transbordando de
alegria, espalhou aos salesianos uma circular toda dedicada ao acontecimento.
Dom Bosco é venerável! Quando me coube notificar com mão trêmula a toda a Família Salesiana
a morte de Dom Bosco, eu escrevia que aquele anúncio era o mais doloroso que já tinha feito ou
pudesse fazer em minha vida. Agora, ao contrário, a notícia da Venerabilidade de Dom Bosco é a
mais doce e suave que posso lhes dar antes de descer ao sepulcro. Com este pensamento, um hino
de alegria e de agradecimento explode em meu peito. Se vimos, por muitos anos, nosso bom Pai
oprimido sob o peso de indizíveis dores, sacrifícios e perseguições, como é consolador ver a Igreja
Católica atenta trabalhando para a glorificação dele também diante do mundo! Se alguma vez nos
surpreendesse alguma dúvida de que nossa Pia Sociedade é obra de Deus, agora nosso espírito pode
descansar tranquilo desde o momento em que a Igreja, com seu inefável magistério, chama de Ve-
nerável nosso Fundador. Quanto devemos ser agradecidos ao Sumo Pontífice Pio X, que se dignou
propor a causa de Dom Bosco para o estudo da Sagrada Congregação muito mais depressa que se
costuma fazer, mesmo em se tratando de personagens mortos com fama de santidade! O cardeal
Vivés y Tuto, responsável pela causa de Dom Bosco, dando suas congratulações à Pia Sociedade
Salesiana pela Venerabilidade de Dom Bosco falou dele de modo a arrancar-nos lágrimas de alegria
e a fazer-nos valorizar como um favor especialíssimo da Providência o sermos seus filhos...25
23 Este longo decreto em latim, com tradução acima, foi publicado em Bollettino Salesiano, setembro de
1907, p. 260-265.
24 La canonizzazione..., p. 147.
25 L. C., p. 516-521.
304
Os fatos de Varazze
O esforço do padre Rua para manter a calma, evidente para quem lê a circular de 6 de agos-
to, tem algo de extraordinário quando se considera seu sofrimento moral nos últimos dias de
julho, causado pelos fatos de Varazze. Aquele não era, infelizmente, o primeiro escândalo de-
nunciado pela imprensa. No dia 21 de maio de 1906, durante a reunião do Capítulo Superior,
o padre Baratta entrou bruscamente na sala para informar que a casa de Intra havia recebido a
ordem do provedor dos estudos de evacuar todos os alunos dentro de 48 horas.26 Era a conse-
quência de uma história de pedofilia que a imprensa havia tornado pública. A causa promovida
contra o clérigo S. O. será julgada no dia 25 de maio de 1908, com a condenação do imputado
a onze meses de prisão. A questão de Varazze, ao contrário, fundamentada em falsos testemu-
nhos, tomou dimensões totalmente diferentes.27 O padre Ceria fala dela como de uma verda-
deira e própria atividade diabólica, destinada a demolir a Congregação Salesiana. Atenho-me à
sua narração, consciente de que certos detalhes marginais, por exemplo, os títulos dos jornais
ou as frases dos interrogatórios, poderiam ser fruto do espírito fecundo do padre Amadei, pri-
meiro narrador do acontecimento. Mas a estrutura do conjunto, que encontramos no memo-
rial de denúncia da calúnia, e as intervenções dos advogados são certamente exatas. Relatamos
os primeiros dias, que nos informam sobre a origem de uma história especialmente sórdida.
No dia 29 de julho, dia seguinte da conclusão do ano escolar, pelas 7 horas, na capela do
Colégio cívico de Varazze, dirigido pelos salesianos, uns 20 alunos estavam recitando as ora-
ções e assistiam à missa esperando o momento de retornar para suas famílias. Improvisamente,
saiu da sacristia um grupo de funcionários e agentes de polícia, entraram no presbitério até à
balaustrada, sem respeito ao caráter sagrado da cerimônia, e ordenaram ao público que parasse
de rezar e saísse imediatamente. Os alunos foram separados dos salesianos e levados pelos solda-
dos ao refeitório, enquanto os salesianos foram recolhidos a uma sala de aula. O diretor, padre
Carlo Viglietti, curioso diante daqueles movimentos insólitos, correu e se encontrou com o
subprefeito de Savona, que lhe disse: “Coisas graves, coisas graves, reverendo. Aqui se cometem
iniquidades incríveis”.28 Depois do café da manhã, os alunos, em grupos, foram levados ao
quartel dos soldados para ser interrogados na presença de uma mulher e de um menino, sobre
o qual falaremos. Os pobrezinhos não sabiam realmente o que responder.
No final da tarde, no mesmo quartel aonde os salesianos foram levados, Viglietti, interroga-
do pelo provedor dos estudos de Gênova, pôde finalmente tomar consciência do que se tratava.
Logo tomou notas, coisa que nos dá a certeza da objetividade.
26 Verbali del Capitolo Superiore, 21 de maio de 1906. In: FdR 4246A2.
27 Cf. I fatti e gli scandali di Varazze (luglio 1907). Memoriale-denunzia per calunnia dei Salesiani del
Collegio Civico. Torino, Tipografia Salesiana, 1908, 62 p.; I Fatti e gli scandali di Varazze (luglio 1907).
Rilievi dei querelanti. Torino, Tip. S.A.I.D. Buona Stampa, 1909, 4 p.; Corte di Appello di Genova, Le
origini della calunnia contro i R.R. Sacerdoti Salesiani a Varazze (luglio 1907-ottobre 1910). Torino, Tip.
Baravalle e Falconieri, 1910, 44 p. Ceria consagrou aos «Fatos de Varazze» um capítulo inteiro em Annali
III, p. 672-702.
28 Annali III p. 685.
305

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Perguntou de que os salesianos estavam sendo acusados. “A missa negra, a missa negra! –
respondeu o provedor –. A missa negra!? Mas eu não sei o que quer dizer missa negra. – Não
se faça de ingênuo! Diga logo, é verdade ou não que se fazia a missa negra no colégio? – Mas
permitam-me pedir-lhes que me expliquem de que se trata”. Foi chamado o vice-chefe de po-
lícia, que entrou aborrecido e leu num caderninho uma meia página de obscenidades. Depois,
interrompendo a leitura, começou a gritar: “Eu não devo dar satisfação a este homem, não
leio mais nada. A missa negra, você, você sabe, e não se faça de simplório, quer dizer que, de
noite, todos eles em casa, jovens e superiores, nus, dançavam com todas as irmãs. De resto,
você sabe muito bem. E depois, as procissões de meninos internos e externos, todos nus, com
monjas e frades, dentro e fora de casa, queimando estátuas e imagens de Vítor Emanuel II e
de Garibaldi. E você sabe das violências usadas com os jovens pelos seus padres, e basta”. Dito
isso, saiu batendo a porta. “Muito bem, retomou o provedor, confessa agora? – Sou obrigado,
em nome da verdade, a negar tudo. Nós não conhecemos nenhuma irmã; nenhuma irmã
nunca colocou o pé em nossa casa. Estou sabendo agora o que é missa negra. São obscenidades
inconcebíveis. Nada de semelhante, esteja certo, nunca, nunca aconteceu no colégio. – Mas
nos anos passados... nos anos passados... – Estou em Varazze só desde outubro. Mas também
no passado acredito que não tenha acontecido nada de tudo isso. E quanto às violências contra
os jovens, eu conheço meu pessoal e respondo por todos os salesianos, e não julgo ninguém
capaz de atos semelhantes, ninguém. – Mas nem o Calvi. Nem o Disperati e o Crosio? – Nem
eles! – Mas veja que há queixas... Veja que você nesta noite será preso... – Não sei o que dizer,
senhor provedor, nego tudo. – E, então, pode ir, eu o abandono à sua sorte”.29
No dia seguinte, 30 de julho, os salesianos foram deixados em paz. Mas as investigações e
os interrogatórios se voltaram contra as Filhas de Maria Auxiliadora, contra as irmãs Imacula-
tinas, contra as irmãs da Neve, contra os capuchinhos, contra o arcipreste e contra outros ain-
da, todos denunciados por terem participado das orgias das missas negras celebradas durante
nove meses, no colégio, de novembro a julho. O Instituto Santa Catarina, dirigido pelas Filhas
de Maria Auxiliadora, de manhã, foi visitado pela polícia, que reuniu no parlatório as irmãs e
29 alunas que ainda não tinham partido para as férias. Quatro irmãs e somente uma aluna foram
indicadas por um menino, levado pelos policiais (o menino do qual estamos para falar) por terem
tomado parte na missa negra do dia 23 de abril, pelas 9 horas. Logo acreditaram, como vários me-
ninos, que “missa negra” queria dizer missa de morto, que naqueles tempos era sempre celebrada
com paramentos pretos, e, naturalmente, admitiram saber de que se tratava. Então, um agente
se explicou brutalmente. Horrorizadas, as irmãs apresentaram logo suas desculpas. A menina, ao
contrário, uma adolescente já crescida, respondeu arrogantemente aos policiais.
Nesse meio-tempo, era entregue ao diretor padre Viglietti o último número do Cittadino,
a folha anticlerical de Savona, com títulos e subtítulos como estes: “A descoberta de obsceni-
dades no colégio salesiano de Varazze. Frades e monjas comprometidos. Escândalos graves.
O fechamento do colégio”. O jornal comentava a investigação da polícia: “Parece que foram
constatadas coisas incríveis, enormes, monstruosas, inauditas nos anais dos colégios dirigidos
por frades e monjas”.30 Não era senão o começo da campanha difamatória.
29 Annali III, p. 686-687.
30 Annali III, p. 688-689.
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Uma mulher, de idade madura, viúva de um cônsul, Vincenzina Besson, e um rapaz de
15 anos, Carlo Marlario, um enjeitado que Vincenzina fazia acreditar ser seu filho Alessandro,
haviam arquitetado a intriga às escondidas. Carlo Marlario era aluno externo do Instituto
Cívico. Um dia, por seu intermédio, Vincenzina fez chegar às autoridades um caderninho de
origem misteriosa, atribuído ao rapaz. Era aquele cuja leitura Viglietti tinha sido obrigado a
ouvir de um estranho durante o interogatório. O caderninho continha uma história construída
pela viúva Besson. O rapaz descobrira que eram cometidas infâmias de toda espécie no colégio.
A presumida mãe, em vez de retirá-lo, quis que continuasse a frequentar a escola, que assistisse
às obscenidades e as narrasse uma a uma no seu caderninho. Quando o ano escolar estava para
terminar, o caderninho partiu na direção de Roma. Lá se fez uma cópia dele que estava agora
em Varazze. O padre Ceria pensa que suas páginas presumiam uma cultura pornográfica e um
conhecimento da terminologia médica pouco verossímil para um rapaz de 15 anos. Todavia,
na tarde de 30 de julho, o confronto com o diretor Viglietti, diante do procurador do rei e de
um juiz instrutor do tribunal de Savona, foi surpreendente. Viglietti anotou no diário: “No co-
meço, deu-me a impressão de alguém que recitava a lição estudada e o disse. Mas, depois, tive
a impressão de que esse rapaz infeliz estava possuído por um demônio”. Com efeito, ouvia-o
dizer com precisão os lugares, nomear as pessoas, responder às objeções, descrever as missas
negras com tal abundância de particulares de modo a ficar absolutamente desconcertado.31
A queixa dos salesianos que denunciarão a calúnia voltará frequentemente sobre a qualidade do
longo depoimento do rapaz: “É uma sumidade de clareza e de precisão. Não há um lapsus. Não
há uma incorreção de linguagem, nem uma lacuna de memória, nem uma incongruência de
frase”.32 Se Carlo Marlario tinha aprendido uma lição, ele a aprendera com perfeição.
A notícia era explosiva e rapidamente correu a Itália. Os grandes jornais multiplicaram as
edições. A curiosidade do público ia crescendo dia após dia. Os títulos eram construídos de
modo a atrair a atenção: “Obscenidades inacreditáveis em Varazze. Uma pocilga em Varazze.
Obscenidades inauditas no colégio dos salesianos em Varazze. Os escândalos negros. A missa
negra ou as alegrias do paraíso. Os escândalos imundos de Varazze. Revelações de indecência
dos padres. A liturgia negra”.33 Aquele tipo de informações, cuja inconsistência se poderia in-
tuir com um mínimo de espírito crítico, provocou também manifestações violentas e às vezes
selvagens em várias cidades. Por exemplo, em La Spezia, a gentalha se pôs a andar pelas ruas,
assobiando e gritando contra os padres, desafogando-se contra as igrejas, enfrentando a polícia,
tanto que foi declarado “estado de sítio”. Em Sampierdarena, em Alassio, em Savona, em Faen-
za, em Firenze e outros lugares, os colégios salesianos foram atacados por grupos de exaltados.
As desordens se estenderam para cidades nas quais não havia escolas salesianas, como Livorno
ou Mântua.34 Circulou até a notícia de que os soldados tinham prendido e encarcerado um
clérigo e um velho coadjutor de Varazze. No parlamento, os anticlericais invocavam a abolição
dos institutos dirigidos por religiosos e por religiosas.
31 Annali III, p. 690.
32 Memoriale-denunzia per calunnia, p. 20.
33 Annali III, p. 690.
34 Annali III, p. 690.
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No dia 2 de agosto, um decreto do prefeito ordenava o fechamento provisório do colégio
de Varazze. No dia 3 de agosto, um decreto análogo envolvia o Instituto das Filhas de Maria
Auxiliadora. Evidentemente, os salesianos, num primeiro momento, atordoados pela avalanche
de injúrias, começaram a reagir como melhor sabiam. Encorajados por seus amigos, ex-alunos
e cooperadores, decidiram, por sua vez, denunciar a calúnia e pedir justiça. A população de Va-
razze se controlava e investia contra a viúva Besson. No dia 3 de agosto, os salesianos, ajudados
por advogados do foro de Turim, apresentaram uma queixa por calúnia e difamação. E a onda
começou a se acalmar.
Mas os processos judiciários exigem tempo. O decreto do ministro da Justiça que autorizava
a reabertura do colégio de Varazze chegou somente no dia 26 de novembro de 1907. Depois,
em junho de 1908, o tribunal de Savona reconheceu a total inconsistência das acusações mo-
vidas contra os salesianos.
Passaram outros dois anos e, no dia 2 de agosto de 1910, o mesmo tribunal julgou funda-
mentada sua queixa por calúnia e difamação pública. Os salesianos acreditavam que alguns
maçons tivessem manipulado os dois acusadores, em especial um médico de Varazze que, se-
gundo a viúva Besson, lhe havia sugerido que se escrevesse para Carlo Marlario um memorial
de todas as indecências que presenciara ou que lhe eram contadas pelos colegas.35 O inquérito
suplementar se encerrou em 1912.
O padre Rua na tormenta
Voltemos a Turim para nos concentrar no padre Rua. No fim de julho de 1907, quando
explodiu o escândalo, estava doente.36 As pessoas que iam visitá-lo colocavam-no a par dos
acontecimentos. Apesar de sua imensa dor, manteve uma calma e uma serenidade heroicas.
Rezava e fazia rezar. Às vezes pedia os jornais da parte adversária, ouvia impassível um resumo
e se limitava a exclamar: “Vejam o que têm coragem de escrever”. E tinha certeza de que aquele
castelo de absurdidades logo ruiria. Recolhia-se: “É preciso rezar”.37
Mas ao redor dele os ex-alunos puseram-se a trabalhar. Na tarde do dia 2 de agosto, o Cír-
culo Dom Bosco de Turim votou um protesto violento contra a desavergonhada campanha
orquestrada contra os salesianos e a passividade das forças da ordem em tal circunstância.
Quando, no dia seguinte, seu presidente mostrou seu texto ao padre Rua, ele lhe agradeceu,
mas acrescentou: “Não é muito forte?”. Pensava que os funcionários acreditaram ter feito seu
dever e que não se pudesse julgá-los. O presidente, maravilhado, precisou engolir um belo
sermão sobre a caridade e sobre o preceito evangélico de amar o próximo como a si mesmo
(Tg 2,8). Mas o telegrama já tinha sido enviado...38
35 Sobre o papel desse médico, cf. I fatti e gli scandali di Varazze (luglio 1907), p. 34-36.
36 Aqui sigo Ceria, Vita, p. 465-469.
37 Testemunhos de Giuseppe Balestra e do padre Luigi Terreno no Processo apostólico, em Positio 1947,
Summarium, p. 504 e 541.
38 Ceria, Vita, p. 466-467.
308
No mesmo dia, outro ex-aluno, Giovanni Possetto, não lendo em nenhum jornal notícias de
uma reação defensiva por parte dos salesianos e temendo que não se fizesse nada, foi depressa
a Turim para falar com o padre Rua. De sua conversa deixou um relato minucioso, do qual
recordaremos o tom geral e algum elemento.39 Possetto encontrou o padre Rua sentado perto
da escrivaninha, coberta de papéis e de cartas, com uma perna rígida e enfaixada estendida
sobre uma cadeira colocada ao lado. Estava pálido, mais que pálido, térreo, emagrecido, com
os olhos inchados e vermelhos que seguravam uma lágrima prestes a cair suspensa nos cantos.
Sua vivacidade tinha desaparecido. Todo o seu semblante de asceta estava nos olhos. “Pobre pa-
dre Rua, nunca o haviam visto tão deprimido, tão angustiado.” Disse que se sentia incapaz de
enfrentar a torrente de infâmias jogada sobre a Sociedade Salesiana. Por outro lado, esse era seu
castigo, uma dívida que devia pagar por ter ousado aceitar o cargo que ocupava. Tudo aquilo
que nos acontece de bem ou de mal é sempre obra da vontade divina. Refugiava-se no pranto
e na oração, implorando de Deus que descarregasse somente sobre ele o peso daquela prova.
Somente um milagre poderia resolver as calúnias que conspurcavam sua Sociedade. Possetto fez
de tudo para confortá-lo. Era preciso sacudir as autoridades. Toda a instituição salesiana estava
atacada. As infâmias espalhadas feriam sua honra. Ajude-se que o céu o ajudará! Certamente,
era preciso confiar na ajuda de Deus, mas era preciso agir logo com um protesto vibrante ao
prefeito. Depois, pedir uma investigação em todas as casas salesianas. O pobre padre Rua
multiplicava as objeções, falava de resignação e dizia que não queria irritar posteriormente os
adversários provocando-os com essa investigação. A conversa durou muito tempo. No fim, o
padre Rua se deixou persuadir. “Não, não, exclamou, portae inferi non praevalebunt” (as portas
do inferno não prevalecerão).
Hoje, não conseguimos imaginar as proporções do escândalo desencadeado em Varazze
e suas repercussões até na Sicília e nos limites do país, não só, mas no mundo todo. Lemos
aquilo que o padre Rua escreveu para os cooperadores, na carta anual no Bollettino Salesiano de
janeiro de 1908: “São conhecidas também de vós as infames calúnias que no último verão se
tentou acumular sobre o nome dos filhos de Dom Bosco, as quais (com grave escândalo quem
sabe de quantas almas!) encontraram eco fulminante em todo o mundo”.40 Inserimos aqui, a
título de informação, um protesto que, segundo Angelo Amadei, o padre Rua teria telegrafado
ao ministério do Interior a propósito das desordens de La Spezia. Não nos resta nenhuma mi-
nuta do documento. Nosso historiador, que não consultava os arquivos do governo italiano, a
reconstruiu livremente, como segue:
Sua Excelência o Ministro do Interior. Roma.
Notícias que me chegaram de Spezia me deixam em grande angústia pela segurança pessoal dos
superiores e alunos daquele instituto salesiano, ameaçado por uma gentalha selvagem. É doloroso
que um instituto beneficente situado quase no centro de uma grande cidade, instituto no qual se
encontram acolhidos numerosos filhos do povo, deva passar dias de angustiosa apreensão por obra
de malfeitores e não encontre a defesa necessária nas autoridades. Contra esse estado de coisas re-
corro à solicitude de Vossa Excelência e invoco a proteção à qual tem direito todo cidadão.
Padre Miguel Rua.41
39 “Per la storia e biografia di D. Rua”, Turim, abril de 1920. In: FdR 2855 D5-E1; citado por Amadei
III, p. 328-332.
40 Bollettino Salesiano, janeiro de 1908, p. 3.
41 Cf. Amadei III, p. 327-328; o texto é citado em Ceria, Vita, p. 466.
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De qualquer forma, a partir de 5 de agosto, o padre Rua se recuperou. As Verbali del Ca-
pitolo Superiore o demonstram. Mas não sob forma de protestos indignados, como se poderia
imaginar. Adotou um tom mais modesto, análogo ao que teve na conversa com Giovanni
Possetto. Conhecia bem as inevitáveis fraquezas de seus filhos. As atas nos revelam seus verda-
deiros sentimentos naqueles dias atormentados. No dia 5 de agosto, o padre Rua, depois de
ter recordado
o ponto crítico no qual nos encontramos, talvez o mais crítico que tenha atravessado a Congrega-
ção, fazendo abstração da malignidade dos homens, [acrescenta que] aí se quer discernir um aviso
do céu, do Venerável Dom Bosco, e quereria aproveitar para sempre melhor purificar nossas casas
eliminando os indignos e afastando a ofensa de Deus, último objetivo da obra de Dom Bosco.
O senhor padre Rua propõe, antes de tudo, que se vá muito devagar e com toda precaução na
aceitação para o noviciado, para a profissão e para as ordenações sagradas.42
Para conhecer melhor o pessoal das casas, era preciso começar uma inspeção geral. Segundo
a ata, foram tomadas quatro decisões:
Afastar do convívio dos jovens aqueles tais (sejam eles sacerdotes, clérigos ou coadjutores – profes-
sos inscritos ou familiares) que se macularam gravemente por moralidade ou maus-tratos.
Dar outra ocupação àqueles diretores que são inaptos para desempenhar seu ofício, sobretudo para
a direção dos irmãos e a observação dos jovens.
Reduzir o número dos inspetores para poder assim ter maior número de bons diretores e confesso-
res, dos quais se sente grande necessidade.
Anunciar, dentro do ano de 1907-1908, quase contempOrãeamente, uma visita geral a todas as
casas da Congregação com o objetivo de ter bem claro o verdadeiro estado moral, disciplinar,
econômico de toda a Congregação. [...] O senhor padre Rua acrescenta que quando há acusações
de imoralidade é preciso que os superiores locais analisem bem a fundo a gravidade da falta e que
comuniquem logo e bem, para que possam ser tomadas aquelas decisões consideradas oportunas,
entre as quais ele acena à de fazer depor o hábito talar quando o culpado fosse um clérigo ainda
não in sacris.43
Em seguida, o Capítulo Superior dedicou ao problema três reuniões, nos dias 8 e 9 de agosto
que foram objeto de uma única ata:
Nestas sessões, o Capítulo se ocupou principalmente em identificar aqueles sujeitos que, segundo
seu modo de ver, deviam ser excluídos das casas salesianas e em apontar aos inspetores aqueles
irmãos que devem ser segregados do convívio dos jovens ou precisam de observação especial, como
também em indicar aqueles diretores das casas da Itália que, para o ano, deverão ter outra ocupa-
ção, porque inaptos a desempenhar seu ofício, sobretudo na direção dos irmãos e na observação
dos jovens. São traçadas algumas normas para os inspetores, todas coisas ditas na carta reservada do
senhor padre Albera na data de 12 do mês corrente. Os inspetores da Itália foram convidados, no
máximo até o dia 22, a se dirigir a Turim para uma harmonização mais completa com o Capítulo.
Aos outros recomendou que expusessem por escrito suas ideias e seus projetos para o bom anda-
mento das casas das respectivas inspetorias, às quais são prepostos.44
42 Verbali del Capitolo Superiore, 5 de agosto de 1907. In: FdR 4247A11.
43 Verbali del Capitolo Superiore, 5 de agosto de 1907. In: FdR 4247A11-12.
44 Verbali del Capitolo Superiore, 8-9 de agosto de 1907. In: FdR 4247A12-B1.
310
De fato, nos dias 23 e 24 de agosto os inspetores da Itália passarão, um depois do outro,
diante do Capítulo Superior.
No dia 29 de setembro, festa de São Miguel, fez-se em Valsalice uma celebração magnífica
em honra do Venerável Dom Bosco, junto ao túmulo. Uma mensagem manuscrita de Pio X,
endereçada “ao dileto padre Rua, superior geral”, consolou definitivamente o Reitor-Mor sobre
as injúrias sofridas nas semanas terríveis de julho-agosto.45 Os cooperadores da Sicília fizeram
imprimir uma mensagem de 3 páginas, explicitamente datada de 29 de setembro de1907: Ao
padre Miguel Rua. Homenagem de estima, de veneração e de protesto contra os insultos lançados à
Congregação Salesiana (Turim, Tipografia Salesiana, 1907).46
E o padre Rua pediu que se inserisse no Bolletino Salesiano de outubro uma “declaração
importante”, na qual se afirmava essencialmente que o Instituto Cívico de Varazze, dirigido
pelos salesianos, como o Instituto Santa Catarina da mesma cidade, dirigido pelas Filhas de
Maria Auxiliadora, eram totalmente inocentes em relação às infamantes acusações contidas no
famigerado diário de um rapaz. A declaração concluía assim:
E, visto que: 1º é falsa a acusação de que lá eram cometidas obscenidades inconcebíveis, deno-
minadas missas negras; 2º é falsa a acusação de que um dos professores dava aulas na escola com
roupa indecente; 3º é falsa a acusação de que tenham sido dirigidas afrontas contra a imagem do
Soberano e do general Garibaldi, aqueles dois institutos foram obrigados, para defesa da própria
honorabilidade, a apresentar queixa por difamação e calúnia contra os acusadores.47
A onda de calúnias antisalesianas calou-se novamente.
A condenação do modernismo
Não consta que tenha havido algum tipo de repercussão sobre a Sociedade Salesiana,
resultado da repressão antimodernista, culminada em 1907 com o decreto Lamentabili
Sine Exitu, de 17 de julho, no qual se condenavam 65 proposições do modernismo bíblico
e teológico, e com a promulgação da encíclica Pascendi, de 10 de setembro, que traçava
as orientações do movimento doutrinal e reformista. Os quadros dirigentes da Congre-
gação e seus professores eram muito fiéis à Santa Sé para se deixarem tentar seriamen-
te pelo modernismo doutrinal desenvolvido na França e na Itália no começo do século.
A História sagrada e a História eclesiástica de Dom Bosco estavam ainda em uso. No entan-
to, no dia 1º de novembro de 1906, uma carta circular do padre Rua pediu aos inspetores
que estivessem atentos e lutassem contra as tendências modernistas.48 Observamos que
durante o decisivo segundo semestre de 1907 as circulares do Reitor-Mor e do prefeito
geral são abundantes em recomendações práticas de todo tipo (sobre as férias dos irmãos
45 A mensagem de Pio X é conservada em FdR 3833A5. Descrição da festa em Amadei III, p. 347-349.
46 Essa mensagem é conservada em FdR 2764A12-B2.
47 Bollettino Salesiano, setembro de 1907, p. 281.
48 L. C., p. 352-353.
311

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fora das casas salesianas; sobre as férias abusivas dos alunos no Natal e no verão; sobre a
conservação dos arquivos das casas; sobre o regulamento dos oratórios festivos; sobre o re-
gulamento dos exercícios espirituais etc.), mas ignoram totalmente o termo e as tendências
do modernismo. Da documentação disponível, emerge somente uma medida emanada
pelo Capítulo Superior no dia 16 de setembro, no dia seguinte à Pascendi. Lemos na ata:
“Delibera-se fazer imprimir no texto latino e italiano as 65 proposições condenadas sobre
o modernismo precedidas de uma carta do senhor padre Rua e mandar cópia a todos os
sacerdotes ou alunos de teologia da Congregação”.49 A submissão da Sociedade Salesiana
às instruções romanas devia ser exemplar em tudo. Fazendo eco àquela diretiva, alguns
meses depois, o conselheiro escolar, padre Cerruti, pedirá aos diretores e aos inspetores que
estudem e divulguem o Catecismo sobre o modernismo de Jean-Baptiste Lemius, pequena
obra especialmente severa contra a nova “heresia”.50
Entretanto, talvez depois da promessa feita durante a tempestade de Varazze,51 o padre
Rua começou a programar uma longa peregrinação ao país de Jesus. Desde o momento em
que assumiu o cargo, o ano de 1907 foi para ele o mais glorioso e o mais doloroso de todos.
Conseguindo para o Fundador o título de venerável, havia coroado uma obra iniciada no
dia seguinte à sua morte e perseguida com tenacidade por dezenove anos. O grave complô
de julho-agosto não conseguira lançar lama sobre a Congregação Salesiana, da qual era
responsável, ou sobre o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, que era especialmente
importante para ele. A conjuração tinha sido desvendada. Sentia, portanto, o dever de
agradecer à Providência, que lhe havia permitido superar tempos extremamente árduos
para seu corpo e seu espírito. Ao mesmo tempo, a peregrinação lhe permitiria participar
pessoalmente, da inspeção geral indispensável das casas salesianas espalhadas nos vários
continentes.
49 Verbali del Capitolo Superiore, 16 de setembro de 1907. In: FdR 4247B8.
50 Circular aos inspetores e aos diretores, de 24 de março de 1908. In: F. Cerruti, Lettere circolari e programmi
di insegnamento, a cura di José Manuel Prellezo. Roma, LAS, 2006, p. 303; J.-B. Lemius, Catechismo sul
modernismo secondo l’enciclica “Pascendi Dominici Gregis” di Sua Santità Pio X, Roma, Tipografia Vaticana,
1908.
51 Segundo Francesia, p. 188; mas, nas frases do próprio padre Rua por ele relatadas, nada parece confirmar
esta hipótese.
312
Capítulo 32
Sete meses de dificuldades e de alegrias
A visita extraordinária às casas da Congregação
Os primeiros meses de 1908 foram ricos de emoção para nosso padre Rua. Três aconteci-
mentos os caracterizaram: a organização de uma visita extraordinária às casas salesianas, uma
viagem ao Oriente e o processo informativo diocesano de Domingos Sávio.
A ideia de uma visita extraordinária a todas as casas da Congregação tinha vindo ao padre Rua
no barulho surgido em torno dos “fatos” de Varazze, como resulta da reunião do Capítulo Su-
perior de 5 de agosto de 1907. O projeto amadureceu e tomou corpo no início do ano seguinte.
Sabiamente, o padre Rua se explicou numa circular aos salesianos, datada de 18 de janeiro
de 1908, inteiramente dedicada à visita extraordinária. Era preciso que se evitasse alarmar os
salesianos. Por isso, refugiou-se no texto das Regras. As Constituições lhe pediam que visitasse
uma vez por ano, pessoalmente ou por meio de um delegado, todas as casas da Congregação.
Até àquele momento, tinha viajado muito e os inspetores o haviam substituído corretamente.
Mas nada poderia substituir um visitador extraordinário, livre de laços de afeto ou de interesse
com a obra e com os irmãos, o qual, inspirando plena confiança em cada um, estaria nas me-
lhores condições para tomar conhecimento de tudo e relatar. Nosso reitor fez questão de pre-
cisar que não se tratava de uma investigação policial. Ao contrário, se disse persuadido de que,
embora os visitadores por ele delegados pudessem constatar alguma miséria – uma vez que “nós
todos somos filhos de Adão” –, teriam também a consolação de tomar consciência do grande
bem que se fazia nas casas, graças ao zelo e à atividade dos irmãos prepostos à sua direção.1
Era preciso criar o instrumento adequado para a visita e conferir-lhe a solenidade apropriada.
Durante as sessões capitulares de 13, 14 e 15 de janeiro, decidiu-se que as visitas começariam
no mês de março seguinte. O Capítulo redigiu as instruções para os visitadores. As inspetorias
foram subdivididas em 10 grupos (que serão 11) e foram designados os respectivos visitadores.
Convocados em Turim (com exceção dos visitadores da América), eles prestariam juramento
nas mãos do Reitor-Mor, enquanto os ausentes seriam representados por um delegado. O Ca-
pítulo Superior examinou a carta do padre Rua, datada de 18 de janeiro, e o questionário que
os visitadores deviam preencher.2
1 L. C., p. 378-381.
2 FdR 4247C12-D1.
313

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A cerimônia do envio em missão se realizou diante dos membros do Capítulo Superior no
dia 30 de janeiro, às 10 horas, na pequena capela de Dom Bosco no Oratório. O padre Rua
presidiu-a de sobrepeliz e estola. Estavam presentes 7 visitadores entre os nomeados. Acompa-
nhavam-nos 4 irmãos representando os 4 visitadores ausentes. Cantou-se o Ave Maris Stella e o
Veni Creator. O padre Rua comentou a circular de 18 de janeiro. O pró-secretário do Capítulo
leu a carta de nomeação e de apresentação de cada visitador. Depois de alguns avisos paternos
do Reitor-Mor, os visitadores prestaram juramento em latim: “Invoco a Deus por testemunha,
que exercerei fielmente o encargo que me foi confiado e manterei o segredo”. Tudo estava ter-
minado pelas 11 horas, com a oração ritual do Agimus.3 O padre Rua inaugurava assim um ato
muito importante de seu reitorado. Esperava que a Congregação saísse da visita extraordinária
purificada das escórias que a deturpavam, com o que estava muito preocupado. Estava conven-
cido de que tudo contribuiria “para a maior glória de Deus e para o bem das almas”, escopo
essencial da Congregação confiada à sua responsabilidade.
Com esses sentimentos, escreveu uma longa circular, datada de 31 de janeiro de 1908,
intitulada Vigilância. Certamente, a torrente de infâmias derramada pela imprensa sobre a
Congregação durante as terríveis semanas de julho e agosto vinha do maligno.
Nada, absolutamente nada o justificava. Mas disso se podia tirar também uma advertência
salutar: “Os fatos acontecidos no ano passado são advertências que o Senhor nos envia para
que estejamos mais atentos aos perigos que se encontram na missão delicada e nem sempre
fácil de educadores da juventude”. Recomendava, portanto, que se evitassem parcialidades,
amizades particulares, carícias, mesmo se inspiradas pelo afeto equilibrado. E contava a história
incrível de dois irmãos mandados pelo pai a um colégio salesiano expressamente para tentar os
professores. Felizmente, encontraram ótimos educadores, aproximaram-se dos sacramentos e
se transformaram no período de poucas semanas. Chegado o tempo das férias, no momento da
partida, o maior foi procurar o superior para agradecer a ele e, chorando, lhe confessou a ma-
nobra urdida pelo indigno pai, “homem sem religião e sem moralidade”, que queria arrastar os
salesianos para diante da Justiça, instaurar um processo contra os religiosos e contra os padres e
conseguir o ressarcimento de uma bela soma de dinheiro. O educador nunca é suficientemente
prudente.4
O padre Rua em viagem ao Oriente
O padre Rua se dispunha, então, a partir para uma longa viagem ao Oriente. No dia 20 de
janeiro lhe foi entregue um passaporte para a Europa, a Turquia asiática e o Egito.5 Projetou
atravessar a Europa central até à Ásia Menor e à Palestina e voltar passando pelo Egito e pela
Itália do Sul. O ecônomo geral Clemente Bretto (1855-1919), visitador extraordinário para o
3 Os nomes e os títulos dos visitadores e dos delegados, assim como a designação exata dos territórios a
serem visitados, aparecem na ata detalhada da sessão do Capítulo Superior de 30 de janeiro de 1908, em
FdR 4247D2-3.
4 L. C., p. 382-395.
5 O passaporte é conservado em FdR 2752E4-6.
314
Oriente, o acompanharia e cumpriria, assim, sua missão particular. Na mente do Reitor-Mor,
a viagem, que durará de 3 de fevereiro até 20 de maio, tinha dois objetivos principais: antes de
tudo, um conhecimento melhor da situação salesiana, e, depois, um contato direto com os lu-
gares santos. Devia ser, como deixa entender em sua circular conclusiva, a ocasião para a visita
atenta das casas salesianas e uma peregrinação piedosa pelo Oriente.6
Sigamo-lo em seu itinerário mais diretamente salesiano.7 Deixou Turim no dia 3 de feverei-
ro e, passando pelo Vêneto, fez paradas mais ou menos prolongadas, todas dignas de interesse,
nas várias casas salesianas espalhadas nos territórios do Império Austro-Húngaro, especialmen-
te na Eslovênia (Lubiana e Radna). Com o companheiro de viagem atravessou a Sérvia e a Bul-
gária por ferrovia, no Orient Express, e chegou a Constantinopla no domingo, 16 de fevereiro.
Durante o trajeto, no compartimento onde estava confinado, o padre Rua sofreu muito porque
não podia estender as pernas doentes.
Constantinopla, Esmirna, Nazaré
Tinham entrado no Império Otomano e o padre Bretto se encontrava no território da
inspetoria oriental, sobre a qual tinha responsabilidade como visitador. As paradas da viagem
se prolongaram, todas conotadas por elementos comuns: aplausos e discursos, saudações às
autoridades religiosas e às autoridades consulares italianas, visitas aos benfeitores e às casas de
diversas ordens e congregações, mas, sobretudo, atenção toda especial aos 9 centros salesianos
da região. Assim, em Constantinopla, onde estiveram de 16 a 24 de fevereiro, o padre Rua,
hóspede da casa salesiana, se preocupou em visitar o delegado apostólico, o embaixador da
Itália e 7 institutos religiosos: dominicanos, lazaristas, Irmãos das Escolas Cristãs, jesuítas,
conventuais, capuchinhos e Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. Ao longo do percurso
vai se mostrar também atento em manter contato com as Igrejas locais.
Aqui nos concentramos nas casas salesianas e suas lembranças significativas para o padre
Rua. O leitor queira nos perdoar se ignoramos detalhes de numerosas escalas intermediárias.
Na tarde do dia 24 de fevereiro, nossos dois viajantes, deixaram Constantinopla por mar em
direção a Esmirna, onde, como sabemos, os salesianos dirigiam duas obras: uma escola comer-
6 Carta edificante n. 11, de 24 de junho de 1908. In: L. C., p. 522-533.
7 Fonte essencial de nossas informações sobre a viagem de 1908 é a relação manuscrita de 164 páginas
enviada pelo padre Bretto ao padre Rinaldi, que se encontra em FdR 3013E12-3016D9 (aqui citado:
Relazione). Foi muito adaptada, aumentada e arbitrariamente subdividida em 12 partes no Bollettino Sale-
siano; tal adaptação aparece sob a forma de cartas datadas e enviadas respectivamente de Constantinopla,
Esmirna, Nazaré (2 “cartas”), Belém (3 “cartas”), Port-Said, Alexandria do Egito, Catânia, Bari e Parma (cf.
Bollettino Salesiano, [1908], p. 134-140, 164-170, 197-206). Cf. também I. Grego, Sulle orme di Cristo.
Il Beato Michele Rua, Primo Successore di Don Bosco, pellegrino in Terra Santa, Gerusalemme, Franciscan
Printing Press, 1973, p. 33-63, que se documentou seriamente, mas em algumas partes acriticamente
dependente do Bollettino Salesiano.
315

16.9 Page 159

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cial e uma escola popular com Oratório anexo. Aí permaneceram de 25 de fevereiro a 6 de
março, e fizeram uma visita a Éfeso, onde o padre Rua queria venerar a lembrança do Concílio
ecumênico do ano 431. Escreverá:
Entre as ruínas daquele templo onde Nestório foi condenado e Maria foi solenemente proclamada
Mãe de Deus, senti meus olhos encherem-se de lágrimas e supliquei, com todo fervor de que era
capaz, a nossa Mãe celeste que continuasse a nos cobrir com seu manto e que concedesse a todos os
salesianos a graça de serem promotores zelosos de sua devoção e propagadores de suas glórias.”8
No dia 3 de março, terça-feira gorda, os oratorianos de Esmirna organizaram para os vi-
sitadores uma tarde muito divertida com um desfile burlesco e uma alegre comédia. No dia
6 de março, de Esmirna, primeiro de barco, depois de trem e finalmente em carro puxado a
cavalo, se dirigiram para Tiberíades, através de Beirute e Damasco. Atravessaram o lago numa
embarcação. O padre Rua confiará aos irmãos:
Tive a felicidade de sulcar numa barquinha as ondas daquele lago de Genezaré sobre as quais o di-
vino Salvador havia caminhado a pé enxuto, onde tinha acalmado uma tempestade horrível com a
onipotência de sua palavra, que havia atravessado muitas vezes no barquinho de Pedro. Pareceu-me,
então, assistir à pesca milagrosa. Quando pus os pés em terra, imaginei-me ainda ver a margem api-
nhada de pessoas que ouviam avidamente a palavra do divino Mestre que falava desde a barca. E aqui,
comovido, voltei meu pensamento a todos meus caros filhinhos, e fiz votos ardentes para que se con-
servem bem agarrados à barca de Pedro, pois somente com ele podemos chegar ao porto da salvação.9
Assim, no sábado, 14 de março, o padre Rua e o padre Bretto chegaram a Nazaré, onde
ficaram uma semana. Inicialmente, o orfanato Jesus Adolescente de Nazaré (1899) tinha sido
instalado em lugar pouco adequado, na parte alta da cidade, onde os salesianos possuíam um
vasto terreno. O diretor, Athanase Prun, logo se empenhou em construir uma grande casa,
tornada inteiramente habitável em outubro de 1905. Perto dela devia ser construída a bela
basílica de Jesus Adolescente. A primeira pedra tinha sido abençoada recentemente, no dia
20 de setembro de 1907.
Em Nazaré, o padre Rua não perdeu nem um segundo, como deduzimos do relatório do
padre Bretto. Dedicou seu primeiro dia à visita cuidadosa do novíssimo orfanato, examinou os
trabalhos da igreja, que caminhavam rapidamente, e visitou também o lugar do velho edifício.
Os alunos tinham preparado uma recepção, e ele lhes agradeceu em italiano. Não entenderam
nada. Assim, para a boa-noite, recorreu a um intérprete. Os outros dias foram, sobretudo,
dedicados às visitas ao clero e aos religiosos. O padre Rua quis também se dirigir ao caimakam
(governador) da cidade, que mesmo sendo de rito ortodoxo, pediu ao padre Rua que abençoas­
se a família e a casa. Depois, ele mesmo se apressou em retribuir a visita recebida dirigindo-se
ao orfanato, acompanhado das principais autoridades locais, às quais se juntou o comandante
militar de Jaffa, que estava de passagem por Nazaré. Os rapazes, muito honrados, executaram
os melhores trechos de música de seu repertório. Conversaram até ao pôr do sol. Nessa hora,
os muçulmanos do séquito se retiraram por um momento sob os pórticos para suas orações
rituais. O comandante militar não pôde esconder sua admiração pelo padre Rua: “É verdadei-
8 Carta circular de 24 de junho de 1908. In: L. C., p. 527.
9 L. C., p. 528.
316
ramente um santo!”, observou.10 Também as emoções do padre Rua eram de natureza religiosa.
Confessará:
Não posso deixar de dizer que nos dias passados em nosso orfanato de Nazaré, toda vez que me
encontrava no meio daqueles jovenzinhos que com tanto afeto me pegavam a mão, beijavam-na e
depois a levavam à sua fronte, me parecia ver Jesus quando era de sua idade. Muitas vezes em meu
coração lhe agradeci por nos haver chamado a fazer um pouco de bem a seus concidadãos.11
Nazaré constituía a primeira etapa da peregrinação aos lugares santos. O Reitor-Mor não
quis esquecer nada, antes de tudo a cidade. Visitou várias vezes o santuário da Anunciação e lá
celebrou a missa. Venerou as ruínas de uma basílica construída no passado sobre aquela que se
acredita ter sido a casa da Sagrada Família. Sucessivamente visitou a ruína na qual a “tradição”
situa a oficina de São José, a “fonte da Virgem”, de onde Maria tirava a água para casa, as ruínas
de uma velha sinagoga, a capela do Tremor, lugar em que Maria teria ouvido que estavam para
atirar Jesus de cima de um monte, e também a Mensa Christi, grande bloco de pedra sobre o
qual a fecunda tradição local quer que Jesus tenha ceado com os apóstolo depois da ressurreição.
Não longe de Nazaré se encontra o monte Tabor, onde uma tradição incerta situa a transfi-
guração do Senhor. Na tarde do dia 16 de março, o padre Rua e o padre Bretto, em companhia
do diretor, padre Rosin, e do inspetor, Pietro Cardano, se dirigiram aos pés do monte. De lá
os conduziram à casa guardada pelos franciscanos, onde precisaram passar a noite. Foram rece-
bidos com grandes atenções. Na manhã seguinte, depois da celebração da missa, os peregrinos
subiram até ao cume do monte. Um franciscano servia-lhes de guia. Tinham à disposição
animais de carga, mas o padre Rua quis fazer a caminhada a pé. Quando a subida se tornou
mais íngreme, aceitou somente sentar-se de viés sobre um burrinho da comitiva, com o risco
de rolar a qualquer momento.12 O grupo atingiu o cume, presumido lugar da transfiguração,
e eles viram as ruínas das antigas basílicas destruídas pelas vicissitudes dos séculos passados.
No meio delas, numa esplanada, tinha sido colocado um altar onde lhe disseram que às vezes
era celebrada uma missa durante as grandes peregrinações. Os peregrinos não se saciaram de
contemplar o panorama magnífico que se estendia sob seus olhos maravilhados: o grande e o
pequeno Ermon, os montes Gelboé, a planície de Esdrelon, no fundo da qual entreviram as
montanhas da Samaria. Admirando o cenário, recordaram alguns relatos bíblicos, como a res-
surreição do filho da viúva de Naim e a pitonisa de Endor, ou acontecimentos históricos como
as cruzadas, Saladino e Napoleão. Habitualmente, o padre Rua não se entusiasmava muito.
Mas o padre Bretto nos garante que naquela vez teria exclamado: “Vir a Nazaré e não fazer a
subida do Tabor é realmente um pecado”.13
Na obra de Nazaré, o padre Rua preparou os ânimos para a festa de São José, que foi cele-
brada no dia 19 de março. Pediu ao padre Prun que contasse como, dez anos antes, no começo
do orfanato, o santo tinha dado um grande presente. No dia 3 de março daquele ano estavam a
10 Relazione, p. 79.
11 L. C., p. 528-529.
12 Segundo uma relação do padre Rosin, citada em Amadei III, p. 383-384.
13 Relazione, p. 82.
317

16.10 Page 160

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ponto de dispensar os alunos por falta de dinheiro. O diretor havia convidado os jovens a rezar
a São José. Depois de poucos dias, chegou uma carta registrada, datada de 3 de março, com a
qual eram oferecidos 10 mil francos para pagar as dívidas e 50 mil para continuar a obra.14 A
festa de São José foi celebrada de modo íntimo e intenso.
Belém, Jerusalém, Cremisan, Beitgemal, Haifa
No dia seguinte, 20 de maio, os peregrinos partiram diretamente para Jerusalém e para
Belém. Uma viagem pitoresca e movimentada, que, inicialmente, devia ser feita a cavalo. Para
cavaleiros inexperientes, era quase impossível evitar as quedas. O padre Rosin, que o acom-
panhava, contará: “O padre Rua, encorajado a montar a cavalo, porque não havia outro meio
de transporte, não se deu por vencido, a não ser depois de muito caminho e unicamente para
nos contentar. A desgraça quis que o cavalo tropeçasse e lançasse por terra, para nosso espanto,
o pobre cavaleiro, que batendo com a cabeça no chão sofreu na testa um pequeno ferimento.
Levantando-se logo e sorrindo, garantindo-nos que não tinha sofrido nenhum mal, não quis
mais montar na sela”.15
Lentamente chegaram a Naplusa, pernoitaram na paróquia do patriarcado latino e, no dia
seguinte, 22 de março, alugaram um carro com o qual, sacolejando continuamente naquelas
estradas mal conservadas, finalmente chegaram a Jerusalém. Esperavam-nos na escola italiana,
onde permaneceram somente uma noite.
No dia 23 de março, o orfanato salesiano de Belém reservou ao padre Rua uma acolhida
sensacional. Ergueram um arco de triunfo na rua que levava ao instituto. De toda parte, uma
multidão numerosa de habitantes e de alunos aclamava o sucessor de Dom Bosco. Num piscar
de olhos, a igreja ficou repleta. O padre Rua agradeceu à multidão em italiano e deu a bênção
com o Santíssimo Sacramento. Belém foi sua sede durante as quatro semanas que passou na
região.
Para não nos perdermos numa crônica detalhada, enfadonha para quem não tem familiari-
dade com os lugares e os locais célebres, citamos somente algum detalhe ligado ao padre Rua.
“No dia 24 de março – escreverá na carta aos salesianos, do dia 24 de junho seguinte – graças
à bondade dos padres franciscanos, tive a felicidade de celebrar em Belém a missa na gruta da
Natividade, e lhes garanto que rezando naquele lugar não só o coração se inflama de amor por
aquele Deus que se humilha a ponto de se fazer homem para a nossa salvação, mas sente tam-
bém um vigoroso impulso para imitá-lo na humildade e na pobreza”.16
Prossigamos com um “milagre” que entra para a “lenda áurea” de nosso herói, devotamente
transmitida pelas irmãs salesianas. No dia 28 de março, o padre Rua celebrou a missa em Jeru-
salém na capela das Filhas de Maria Auxiliadora. Amadei relatou o acontecimento testemunha-
14 Relazione, p. 84.
15 Amadei III, p. 385-386.
16 L. C., p. 529.
318
do pela irmã Felicina Vaccarone – à qual atribuiremos toda responsabilidade:
Sabendo que se dignaria visitar nosso instituto, reuniram-se todas as meninas da escola e os meni-
nos da creche no longo corredor de entrada. Logo que chegou entre nós, as meninas leram para ele
uma bela mensagem, dando-lhe as boas-vindas. O bom pai dirigiu-lhes palavras de encorajamento
e de congratulação pela pronúncia exata da bela língua italiana, e deu-lhes bons e santos conselhos,
estimulando-as ao bem. Dirigiu-se, depois, ao padre Bretto e lhe disse: “Agora precisaria ter alguma
coisa para dar a estas boas meninas”. O padre Bretto sorriu, depois colocou a mão no bolso e tirou
um pequeno embrulho que continha não mais que 30 medalhinhas, e o apresentou, como estava,
ao padre Rua. O venerado pai, vendo tão pouca coisa para tanta agente, com sua grande humildade
e confiança em Deus, disse: “Muito bem, comecemos a distribuir, e a Providência... vir-nos-á em
socorro...”. Quem diria! As meninas com os meninos da creche eram uns 200 e todos receberam as
medalhinhas, dando 5 ou 6 para cada um. Terminando de entregar para as alunas, o bom pai disse:
“Quero entregar também para as irmãs”; e assim fez: distribuiu-as para todas nós, que éramos 12.
Houve medalhas suficientes, e me lembro muito bem de que para a última, que era a irmã Agatina
Tomaselli, deu as medalhas e também o papel: e assim terminou a distribuição milagrosa, que
todos puderam ver. Disto dão testemunho as irmãs e as meninas que estiveram presentes. Então,
o inesquecível padre Bretto se dirigiu a nós irmãs e disse: “É um verdadeiro milagre, não há nada
a acrescentar!”.17
O padre Rua esteve muito atento para não esquecer a razão principal de sua peregrinação à
Terra Santa:
Finalmente, no dia 30 de março, com a alma ansiosa pela emoção, celebrei a missa no Santo
Sepulcro. Foi então que agradeci ao Senhor por ter feito triunfar a nossa Pia Sociedade contra as
calúnias de nossos inimigos e por ter tirado do fato imensa vantagem para nossas obras. Naquele
templo augusto renovei a consagração de nossa Congregação ao Sagrado Coração de Jesus, e rezei
longamente para que todos os seus membros perseverem em sua vocação e que nenhum sequer se
perca.18
O padre Rua dedicou os últimos dias de março e os primeiros dias de abril à visita das casas
salesianas de Cremisan e de Beitgemal, amplamente providas de terras cultiváveis. Como tinha
o hábito de fazer nas inspeções às obras salesianas, deixou uma série de tarefas enumeradas, que
testemunham suas principais preocupações, ao mesmo tempo espirituais e materiais.19
Em Cremisan, verificou os inconvenientes da obrigação de usar a língua italiana na vida
cotidiana nas casas da Palestina, que, recordemo-lo, ele mesmo tinha querido. Escreveu, por-
tanto, solicitado pelo visitador padre Bretto, uma lista de obrigações:
1º De manhã, orações em árabe.
2º No exercício da boa morte, conferência aos jovens, em árabe.
17 Amadei III, p. 389-390. I. Grego (Sulle orme di Cristo, p. 4) explica que as irmãs Maria Cattan e Emilia
Ayub, e também a ex-aluna Latife Shaer – esta última através do padre Laconi – lhe confirmaram pessoal­
mente o acontecimento.
18 L. C., p. 529.
19 Essas obrigações, cuja autenticidade parece garantida pela forma numerada, habitual do padre Rua, são
lidas em Amadei III, p. 390-393.
319

17 Pages 161-170

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3º Exercitar os padres na pregação, com a alternativa festiva, em árabe.
4º Estabelecer lá o noviciado dos coadjutores e escolher um bom mestre dos noviços.
5º Mandar para lá, de todas as casas do Oriente, os estudantes de latim com vocação.
6º Aperfeiçoar o vinho e a aguardente e aumentar sua produção.
7º Plantar árvores em boa parte da propriedade.
8º Promover a cultura do trigo, de frutas e hortaliças.
9º Ter em mira chegar a custear, com os próprios produtos, todos os comestíveis e combustíveis,
exceto a iluminação, e, com o vinho, pagar todas as outras despesas.
10º A inspetoria organize bem a guarda dos registros necessários, cuidando especialmente da con-
tabilidade e da administração.
De fato, o vinho de Cremisan logo será famoso em toda a Palestina e, mais tarde, em Israel.
O padre Rua e o padre Berto ficaram em Beitgemal de 1º a 5 de abril. As disposições mate-
riais e espirituais (que, segundo Amadei, foram transmitidas depois de um mês para Alexandria
ao inspetor padre Cardano) foram muito detalhadas: 21 diziam respeito aos aspectos materiais
e, suponho, foram formuladas pelo padre Bretto; 11 eram de ordem administrativa e espiritual,
reservadas ao diretor e ao prefeito. Estas espelham as preocupações do padre Rua sobre o gover-
no das casas salesianas e sobre a ideia que ele tinha dos deveres do diretor salesiano.
Para Beitgemal, para o diretor e o prefeito.
1º Recorde-se o diretor que seu ofício é mais espiritual que temporal. Por isso, esteja atento para
não se deixar absorver pelos afazeres materiais, com prejuízo dos espirituais.
2º Organize duas pregações em todo dia festivo, uma de manhã e outra à tarde.
3º Faça aos irmãos duas conferências mensais e receba os rendiconti mensalmente.
4º Proporcione também para as irmãs uma conferência mensal no exercício da boa morte.
5º Veja se e quais consertos são necessários na casa das irmãs.
6º Dê aulas de teologia para N.N. pelo menos três vezes na semana.
7° Com suas boas palavras e com familiaridade paterna anime os coadjutores e os familiares, infor-
mando-se sobre seus trabalhos e deixando-os explicar suas atividades etc.
8º O prefeito deveria cuidar de toda a contabilidade e do registro, mas, nas condições atuais, de-
vendo sair frequentemente, convirá dividir essa importante ocupação com o diretor.
9º Todavia, não se entregue inteiramente aos cuidados materiais; esteja presente nas práticas de
piedade da comunidade, e reserve para si pelo menos um pouco de tempo para alguns estudos
sagrados.
10º Na gestão material faça-se ajudar, o quanto puder, por algum coadjutor fiel e capaz.
11º Cuide que não se empregue o sistema repressivo, avisando quem se entregasse a ele.
Nestas observações aparece novamente o padre Rua visitador das casas do Piemonte nos
anos de 1872-1876.
Cito um texto significativo que o Bollettino Salesiano omitiu, talvez a pedido do padre Rua.
No dia 11 de abril, celebrou-se solenemente o decreto de venerabilidade de Dom Bosco na casa
de Jaffa, confiada aos salesianos pela Associação Nacional Para o Socorro dos Missionários Italia-
nos. Depois da missa solene, presidida pelo padre Rua, seguiu-se imediatamente uma recepção.
O vice-cônsul Alonso quis pronunciar um discurso em língua árabe. O inspetor das escolas turcas,
muito impressionado, fez um grande elogio da obra salesiana e, no fim, o padre Rua agradeceu os
presentes com tal simplicidade que, na saída, segundo o cronista Bretto, sua atitude pareceu “tão
320
salutar que as pessoas exclamavam: vimos um santo e ouvimos coisas que não esperávamos”.20
Chegou a Semana Santa (12-19 de abril). O padre Rua acompanhou todas as celebrações
em Belém ou em Jerusalém. Ele mesmo quis presidir o “lava-pés” de 13 meninos do orfanato
de Belém. Na Sexta-feira Santa, em Jerusalém, participou na via-crúcis organizada pelos fran-
ciscanos no trajeto da Via Dolorosa. Obrigado a ficar em pé por longas horas, no inevitável
aperto, suas pernas doentes fizeram-no sofrer duramente. Entendemo-lo pela narrativa deta-
lhada do padre Bretto:
É um espetáculo grandioso: milhares e milhares de peregrinos cristãos, nem sempre todos católicos,
acompanham devotamente o padre franciscano, que, em cada estação, faz um breve sermão como-
vente e, depois, se recita a oração habitual.
Infelizmente, porém, a função é habitualmente perturbada por soldados turcos que atravessam
também, várias vezes, a multidão dos devotos cristãos, como para afirmar seu domínio daqueles
lugares. De fato, neste ano estávamos ainda reunidos na rua diante do pátio turco onde está a
primeira estação, quando um desfile de soldados com bandeiras e uma música turca nos obrigou a
nos apertar contra as paredes. Passavam, passavam trazendo seus fuzis carregados, muitos a cavalo
com o fuzil meio levantado, outros com a espada embainhada e com a lança apoiada sobre o pé,
havia todas as formas de vestir, e a pele, do moreno ao negro escuro; atrás vinha, a cavalo, o chefe
de sua religião de residência em Jerusalém.
Logo que passou aquele desfile, começou a procissão, mas, depois de algumas estações, passando de
uma para outra com grande dificuldade por causa do aperto, eis que, enquanto o padre pregava, se
ouve a trombeta anunciando uma grande patrulha de soldados que passavam. E o padre nos pedia
que déssemos passagem sem dar o mínimo sinal de impaciência. Passaram e depois retomamos o
caminho pela Via Dolorosa.
O pobre padre Rua era rodeado por nós e defendido dos empurrões que vinham de todos os lados.
Mas, pobrezinho, deve também ter se cansado muito, uma vez que à noite vimos que quase não po-
dia estar de pé. Num ponto da via-crúcis, onde as ruas são estreitas e a procissão deve voltar sobre
si mesma, ouvimos um barulho insólito e um vociferar de gente que nos fez temer algum tumulto,
mas a atitude enérgica de algum frade franciscano e de alguns guardas repôs a calma e prosseguimos
até ao Calvário, onde há várias estações, todas na Basílica do Santo Sepulcro.
A entrada aqui se torna ainda mais difícil. A grande massa se apertava naquele ponto, e nós que
nos industriamos para manter o padre Rua quase sempre a pouca distância do padre pregador
para que se sentisse bem, quisemos proporcionar-lhe e a nós, também lá, essa satisfação. Portanto,
nos empurramos com dificuldade pelas escadas acima que sobem íngremes ao lugar do Calvário.
Depois, com a mesma dificuldade e grande precaução descemos depressa para chegar ao lugar da
última estação no Santo Sepulcro.21
A cerimônia daquela Sexta-feira Santa foi uma autêntica via-crúcis para nosso padre Rua.
Devoto como era, certamente se alegrou com ela em seu coração. Com o domingo de Páscoa,
19 de abril, celebrado em Belém, concluiu-se a peregrinação propriamente dita nos lugares san-
tos. No dia seguinte, iniciou a viagem de volta para a Itália, por mar. Nós a sintetizamos, pois
a relação, sobretudo na versão ampliada oferecida pelo Bollettino (preocupado em satisfazer,
citando-as, todas as obras e todas as personalidades encontradas), é muito prolixa.
20 Relazione, p. 119. In: FdR 3015E12.
21 Relazione, p. 124-126. In: FdR3016A5-7.
321

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No dia 20 de abril, o padre Rua e o padre Bretto embarcaram em Haifa para Alexandria
do Egito, onde os salesianos dirigiam uma escola italiana muito florescente. Entre 21 e 30 de
abril, procedeu-se à visita minuciosa da obra. Entretanto, no dia 24 de abril, o prefeito geral
padre Rinaldi enviava de Turim para os inspetores e para os diretores uma longa circular sobre
a viagem do Reitor-Mor ao Oriente, à Ásia Menor e à Terra Santa.22 Toda a Congregação podia,
assim, acompanhar seu reitor.
No dia 30 de abril, o navio Orione partiu de Alexandria na direção de Messina, na Sicília.
Desembarcaram no dia 3 de maio, depois de uma travessia muito agitada por causa da tempestade.
O padre Rua visitou as casas salesianas da ilha. No dia 5 de maio, foi a Siracusa. De lá embarcou
para Malta e La Valletta, onde se inaugurava um novo instituto salesiano (Sliema), ocasião para
diversos festejos. No dia 8 de maio, encontramo-lo na Sicília e, na terça-feira, 12, no continente, na
Calábria. Em seguida, foi para Bari, para Foggia, para Macerata (17 de maio), depois para Loreto,
para Bolonha (19 de maio) e, finalmente, para Alexandria (20 de maio). Naquele dia, visitou as Fi-
lhas de Maria Auxiliadora da cidade, que foram testemunhas piedosas de seu extremo cansaço: “Os
lábios secos, parecia um crucificado”. Naquela tarde, voltou para o Oratório de Turim, onde, depois
da função do mês mariano, deu a bênção com o Santíssimo Sacramento e entoou o Te Deum de re-
conhecimento ao Senhor por haver levado a bom termo sua viagem, a mais longa de toda a ua vida.
No dia 24 de maio, na circular para inspetores e diretores, o prefeito geral, padre Rinaldi, pôde anun-
ciar que o Reitor-Mor, “voltando de sua longa viagem de visita às nossas casas do Oriente”, agrade-
cia “cordialmente os caros irmãos pelas orações com as quais se alegraram em acompanhá-lo duran-
te esses meses” e augurava-lhes “passar santamente o iminente mês do Sagrado Coração de Jesus.23
Impressões de viagem
O padre Rua dedicou a carta circular de 24 de junho à viagem ao Oriente. Ele se disse con-
tente, supercontente (arrisco-me a usar este adjetivo moderno). Não somente a peregrinação
aos lugares santos o havia satisfeito, como acabamos de ver, mas lhe havia oferecido modo de
constatar, por toda parte, que as calúnias que visavam a destruir a Congregação nos meses an-
teriores não tinham deixado nenhum sinal. Por toda parte, elogios, em nenhum lugar a sombra
de alguma reserva. Antes de passar às impressões experimentadas nos lugares santos, insistiu
longamente sobre a satisfação pela obra de seus filhos naqueles lugares distantes.
Antes de tudo, me fornece matéria para escrever sobre a visita que fiz a muitas de nossas casas que
se encontravam no meu caminho. Em cada uma delas procurei permanecer o quanto era preciso
para formar um conceito justo das obras nas quais trabalham nossos irmãos, das dificuldades
que encontram em seu nem sempre fácil apostolado, e dos frutos que tiram ou esperam tirar dos
seus trabalhos. Agora, de tudo o que vi com meus olhos, ouvi com meus ouvidos e, diria, toquei
com minhas mãos, me é de grande conforto poder concluir que o Senhor continua a abençoar
nossa Pia Sociedade, e que não cessa de servir-se dela como instrumento para a salvação de
muitíssimas almas.
22 Essa circular, fruto das relações epistolares entre o padre Bretto e o padre Rinaldi durante a viagem, é
conservada em FdR 4074E7-12.
23 FdR 4075A1-3.
322
Os elogios tinham sido abundantes em toda parte: na Áustria-Hungria, na Ásia Menor, na
Terra Santa, no Egito, em Malta, na Sicília e em toda a península italiana. “As calúnias e as
perseguições dos tristes contra seus antigos superiores e mestres, muito longe de afastá-los [os
ex-alunos] de nós, marcaram um despertar muito consolador de afeto e de reconhecimento
e levaram-nos a se unirem e a se mostrarem cada vez mais fiéis aos ensinamentos recebidos”.
Notamos que a associação dos ex-alunos, nasceu justamente em 1908.
Mas se apressou em acrescentar que todos os louvores eram dirigidos a Dom Bosco:
Confesso que, de minha parte, gostaria que fosse omitido tudo o que diz respeito diretamente à
minha pobre pessoa, e unicamente se publicasse aquilo que redunda em maior glória de Deus e em
bem das almas. Mas ninguém melhor que eu está convencido de que tudo o que se fez e se faz em
honra do padre Rua não é senão um reflexo do afeto e da veneração que se tem por Dom Bosco.
Por isso, acreditei que não podia impedir tais manifestações. Ao contrário, naquilo que diz respeito
especialmente a essa minha última viagem, parece-me dever aprová-los e deixar que também essas
demonstrações de estima sejam levadas ao conhecimento de nossos cooperadores [alusão aos arti-
gos seguidos do Bollettino], porque elas também fazem conhecer melhor quanto, junto com Dom
Bosco, seja apreciada em regiões distantes sua obra principal, isto é, nossa Pia Sociedade. [...] Tive
prova muito evidente, em minhas últimas viagens, da grande consideração em que é tida a Con-
gregação Salesiana pelas autoridades eclesiásticas e civis, pelas ordens religiosas, pelos cidadãos mais
respeitáveis. [...] Na pessoa do Reitor-Mor, em todo lugar, se quer honrar toda nossa Pia Sociedade.
Com as ovações, com os cumprimentos, com as academias feitas para mim, além da veneração a
Dom Bosco, se entendeu externar a gratidão que se professava a todos os salesianos. E é por isso
que, naquele momento, desaparecia minha humilde pessoa, era exaltada nossa Congregação e
aclamado seu Venerável Fundador.24
À distância de um século, essas piedosas e afetuosas justificativas talvez não nos convençam.
De fato, por toda parte se queria ver e ouvir justamente o santo sucessor de Dom Bosco. Es-
tava muito evidente. E os leitores do Bollettino, em 1908, o sabiam, apesar dos cortes feitos na
narrativa da viagem.
O processo de beatificação e de canonização de Domingos Sávio
No dia 4 de abril de 1908, enquanto estava em andamento a peregrinação à Palestina, em
Turim foi aberto o processo informativo de beatificação e de canonização de Domingos Sávio.
O padre Rua seria citado como uma das testemunhas privilegiadas,25 junto com outros 5: os
cônegos Giovanni Battista Anfossi e Giacinto Ballesio, os salesianos Cagliero e Cerruti, o leigo
Carlo Savio, camponês de Mondonio. Seriam depois acrescentadas quatro testemunhas de
ofício: o salesiano padre Francesia, os párocos padre Piano, padre Pastore e padre Vaschetti.
No grupo das testemunhas, o padre Rua era, sem dúvida, o mais informado. Interveio durante
7 sessões, programadas entre 23 de junho e 20 de julho de 1908. Encontramos suas respostas
no Summarium de 243 páginas incluído na coleção intitulada Positio super introductione causae
24 L. C., p. 522-527.
25 P. Stella, La canonizzazione, p. 152.
323

17.3 Page 163

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beatificationis et canonizationis Servi Dei Dominici Savio.26 O padre Rua não economizou elo-
gios a seu antigo companheiro de Oratório. Ele tinha sido seu colega desde o momento em que
entrara em Valdocco, em outubro de 1854, até sua partida definitiva, na véspera de sua morte,
em março de 1857. Depois de cinquenta anos, as virtudes do condiscípulo, sobre as quais era
interrogado, continuavam a despertar sua férvida admiração. A fé daquele jovem era de uma
“simplicidade” extrema. “O servo de Deus era guiado em toda sua ação pela esperança da re-
compensa eterna.” “Eu estou persuadido de que o Servo de Deus não cometeu nunca pecado
mortal e, diria até, pecados veniais deliberados.” Aconteceu-lhe muitas vezes estar em êxtase
diante do Santíssimo Sacramento ou no altar da Virgem Maria. Seu zelo pela salvação das al-
mas beirava ao heroísmo. Tinha sido heróico na prática da justiça, da prudência, da fortaleza,
da temperança, da castidade, da humildade e da obediência. Era verdadeiramente santo. Por
outro lado, depois da morte, os companheiros começaram imediatamente a invocá-lo pedindo
sua intercessão, e eminentes eclesiásticos auspiciaram sua canonização. O padre Rua citou
também algumas curas conseguidas graças a ele: “Ouvi contar muitas graças conseguidas por
intercessão do servo de Deus. Algumas escrevi eu mesmo ouvindo os agraciados, e se encon-
tram no apêndice da biografia escrita pelo Venerável Dom Bosco, e dessas graças conseguidas
por intercessão do Servo de Deus, algumas contêm algo de prodigioso”.27
Aquelas sessões longas diante do tribunal diocesano, encarregado de instruir a causa de
beatificação de Domingos Sávio, foram, junto com o anúncio da visita extraordinária e com
a viagem ao Oriente, os acontecimentos de 1908 que tornaram memoráveis para nosso padre
Rua aqueles sete meses difíceis, mas consoladores. A visita extraordinária às casas salesianas,
anunciada em janeiro, tinha produzido resultados tranquilizadores. A longa viagem através da
Europa Central, da Ásia Menor, da Palestina, do Egito e da Itália Meridional tinha confortado
seu coração. Agora, o processo para a causa de Domingos Sávio lhe permitia reviver momentos
privilegiados da juventude.
26 Asten. et Taurinen. Beatificationis et Canonizationis Servi Dei Dominici Savio adolescentis laici alumni
Oratorii Salesiani. Summarium super dubio. Roma, Instituto Pio IX, 1913.
27 Ibidem, 179.
324
Capítulo 33
A consagração da Igreja de Santa Maria Libertadora
A Igreja de Maria Libertadora em Roma
Como Dom Bosco, vinte e um anos antes, assim o padre Rua, antes de morrer, se dirigiu
uma última vez a Roma para a consagração de uma igreja confiada aos salesianos. Em maio de
1887, Dom Bosco assistia à inauguração da igreja do Sagrado Coração, pela qual tinha sofrido
muito. Em novembro de 1908, o padre Rua participou da consagração da igreja de Santa Ma-
ria Libertadora, num bairro problemático da cidade.1
Pio X, a partir de outubro de 1904, tinha dado sinais evidentes de estima pelos salesianos,
num primeiro tempo com uma chuva de indulgências plenárias ou parciais concedidas aos
cooperadores,2 depois (janeiro de 1905) com a cessão gratuita da igreja de San Giovanni della
Pigna, destinada a se tornar a sede da procuradoria geral salesiana.3 No mesmo ano, quase
como contrapartida, o papa confiava à Congregação o acabamento da construção de outra
igreja em Roma. No recente bairro periférico de Testaccio, território controlado pela má vida
da cidade – a “China romana” como se dizia –, os salesianos tinham aberto uma escola e um
oratório festivo que começavam a trazer frutos,4 mas a população se sentia religiosamente
abandonada: nenhum lugar de culto para os adultos, nenhuma presença visível da Igreja. Era
preciso criar uma paróquia. Leão XIII havia destinado um fundo para começar os trabalhos.
“Começaram a lançar as fundações há cerca de vinte anos”, explicou o padre Rua aos coopera-
dores na carta de janeiro de 1906. Mas o projeto tinha encalhado. Pio X resolveu a questão pela
raiz. Tirou a construção do Vicariato de Roma e a confiou aos salesianos. Em 1905, o cardeal
vigário recebeu a ordem de iniciar as tratativas com o padre Rua. Os trabalhos recomeçaram
imediatamente “segundo os planos do arquiteto Mario Ceradini”, escrevia o padre Rua. Estava
certo de que os cooperadores lhe facilitariam a tarefa.5 A paróquia seria dedicada a Maria Li-
bertadora. Fariam, assim, reviver o nome de um antigo edifício religioso desaparecido colocado
no Fórum romano.
1 Aqui sigo fielmente Ceria, Vita, p. 494-509.
2 Cf. “Sommario delle Indulgenze, Privilegi e Indulti concessi ai Cooperatori della Società Salesiana appro-
vato dal S. Padre Pio X nell’udienza del 13 luglio 1904”, Bollettino Salesiano, janeiro de 1905. p. 8-10.
3 Explicações na circular do padre Rua datada de 19 de fevereiro de 1905, em L. C., p. 324-325.
4 Circular de 31 de janeiro de 1909, em L. C., p. 401.
5 Bollettino Salesiano, janeiro de 1906, p. 13.
325

17.4 Page 164

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Os trabalhos não se arrastaram. No final de 1907, os pedreiros já chegavam à moldura.
Apresentou-se, então, a ocasião que serviu de estímulo à generosidade dos cooperadores: em
setembro de 1907, iniciavam-se as festas do jubileu sacerdotal de Pio X. O padre Rua pediu a
aceleração dos trabalhos para poder oferecer a igreja em homenagem ao papa na ocasião do seu
50º aniversário de ordenação. “Mas para terminar a nova igreja na data proposta, é absoluta-
mente necessário que todos me venham em socorro prontamente”, escrevia aos cooperadores
em janeiro de 1908.6
O apoio pessoal do papa seria precioso. No dia 25 de setembro de 1907, escrevia a Pio X:
A Pia Sociedade Salesiana e a Pia União dos Cooperadores Salesianos, querendo se associar às so-
lenes manifestações de devoção filial com as quais o mundo católico se prepara para festejar vosso
muito auspicioso Jubileu sacerdotal, têm em mente oferecer a Vossa Santidade inteiramente termi-
nada e aberta ao culto divino a igreja de Santa Maria Libertadora, em construção no Testaccio, em
Roma, antes que termine o ano jubilar. Ainda falta muito, é verdade, para a realização desse desejo
ardentíssimo, mas estou certo de que se tornará uma alegre realidade se Vossa Santidade se dignar
conceder a bênção apostólica a todos os cooperadores salesianos que concorrerem para o término
do importantíssimo templo.
O papa enviou de bom grado sua bênção a todos os cooperadores, com os mais vivos agra-
decimentos por sua contribuição.7 O padre Rua foi ouvido. Os trabalhos foram apressados.
Em maio de 1908, as paredes da igreja e da casa paroquial estavam terminadas. A comissão
central dos festejos jubilares havia fixado para o dia 16 de novembro, dia do 24º aniversário
da ordenação episcopal de Giuseppe Sarto, o ápice das celebrações romanas. Era, portanto, de
esperar que tudo estivesse pronto naquela data. Decidiu-se fixar a cerimônia de consagração
da igreja de Santa Maria Libertadora para o dia 15 de novembro. O padre Rua pensava em ir
a Roma alguns dias antes.
No Oratório, os jovens, encorajados pelos superiores, rezavam e ofereciam comunhões para
implorar boa viagem e feliz retorno a seu pai. Todos sabiam, de fato, o quanto a saúde do padre
Rua tinha se tornado precária. Entre julho e setembro, quis participar ativamente de uma série
de exercícios espirituais para os salesianos: em Valsalice, em Sampierdarena, em Nizza Monfer-
rato, novamente em Valsalice, em Foglizzo e uma terceira vez em Valsalice, depois em Ivrea, em
Lanzo e finalmente em Lombriasco. Agora, sua perna ferida o fazia sofrer tremendamente.
Em setembro, faltou pouco para que cancelasse a viagem a Roma, depois de um incidente
durante os exercícios espirituais de Lanzo. Naquela ocasião, o padre Rua queria rever o san-
tuário de Santo Inácio, nas alturas do vizinho monte Bastia, onde Dom Bosco o havia muitas
vezes levado em sua juventude. Os idosos gostam desse tipo de voltas ao passado. Quis subir
a pé. Lá em cima, falou aos clérigos missionários da Consolata que estavam em férias na casa,
evocando as lembranças antigas. Depois, começou a descida. Um bom sacerdote do lugar
que o acompanhava tomou-o pelo braço, mas ao longo do caminho perdeu improvisamente
6 Bollettino Salesiano, janeiro de 1908, p. 6.
7 Nota enviada ao Círculo Dom Bosco, com a mensagem “Ao querido padre Rua, Superior Geral”, 24 de
setembro de 1907. In: FdR 3833A5.
326
o equilíbrio e bateu com seus sapatões cravados na tíbia do padre Rua. Ele esteve a ponto de
perder a consciência, mas se recuperou e, escondendo a dor atroz, retomou a descida. À noite,
no colégio, tirando as meias percebeu que tinha perdido muito sangue. Cuidou-se sozinho du-
rante um mês, até quando o padre Rinaldi o convenceu a se submeter a uma consulta médica.
Foi-lhe imposto repouso absoluto. Caso contrário, nenhuma viagem a Roma. No dia 1º de
outubro, o padre Rua presidiu a reunião do Capítulo Superior reunido em seu quarto.8 Re-
cebia as visitas no escritório, sentado numa poltrona, com a perna estendida. Todo o Oratório
sabia de sua doença. Quando, no dia 9 de novembro, na véspera de sua partida, presenciou a
distribuição dos prêmios aos aprendizes, foi acolhido com uma salva de palmas interminável,
como atesta a crônica local.9
Em viagem para Roma
Finalmente, no dia 10 de novembro, o padre Rua pôde partir para Roma, em pequenas eta-
pas, em companhia do padre Francesia. Parou primeiro em Sampierdarena, depois em Livorno
e em Colle Salvetti. Chegou a Roma no sábado, 14. Durante as várias paradas, o padre Fran-
cesia teria preferido que o deixassem tranquilo, mas sem sucesso. O padre Rua não se poupava
nunca. As audiências se sucediam. “O padre Rua está acabado – escrevia o companheiro de
Livorno, no dia depois da partida – e isso não se pode esconder; mas, graças a Deus, resiste com
tranquilidade a esses trabalhos exaustivos das visitas e das conferências”.10 De fato, por onde
passava, o padre Rua queria falar aos irmãos. E nunca de modo rápido.
Conta-se que em Livorno previu o futuro de dois meninos. Tinha ido visitar a família do
cooperador Riccardo De Ghantuz Cubbe. Apresentaram-lhe dois meninos, um de nome João,
de 5 anos, o outro Rafael, de 4 anos. O maior estava de tal forma interessado nas cerimônias
religiosas que os pais fizeram construir para ele um pequeno altar, no qual estava todo ocupado
em se fazer de padre. Sua mãe lhe havia feito paramentos adequados ao seu porte pequeno.
Papai e mamãe viam nele os sinais evidentes de uma vocação ao sacerdócio. Confidenciaram
com o padre Rua, o qual teria dito, indicando João: “Este aqui, não”, e a propósito de Rafael:
“Aquele lá, sim”. O pai, que tinha um caderninho com a crônica dos pequenos acontecimentos
familiares, anotou na data de 11 de novembro de 1908: “O padre Rua não conhece a vivaci-
dade de Rafael”. Os interesses litúrgicos de João logo desapareceram, enquanto Rafael entrou,
em 1921, para o noviciado dos jesuítas e foi ordenado sacerdote no dia 26 de julho de 1934.11
O padre Rua havia visto certo.
Em Colle Salvetti, os alunos organizaram uma pequena “academia” em sua honra, e o padre
Rua participou de seu exercício da boa morte.
8 Verbali del Capitolo Superiore, 1° de outubro de 1908. In: FdR 4248A8.
9 Amadei III, p. 451.
10 Carta de J.B. Francesia a F. Rinaldi, Livorno, 11 de novembro de 1908. In: FdR 3016D12.
11 Ceria, Vita, p. 498-499.
327

17.5 Page 165

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A consagração da Igreja
Em Roma, nossos dois viajantes se hospedaram na Procuradoria salesiana de San Giovanni
della Pigna. No dia seguinte pela manhã, o padre Francesia surpreendeu o padre Rua, que
ajudava a missa do procurador na igreja vizinha. Era um domingo, dia 15 de novembro. Nosso
Reitor se apressou em visitar a igreja de Santa Maria Libertadora. Os operários tinham traba-
lhado muito, mas não puderam terminar. Era impossível, também porque algumas partes do
altar-mor, provenientes de Milão, ainda não tinham chegado. Não se sabia nem onde estavam.
A consagração foi, portanto, adiada para 29 de novembro, primeiro domingo do Advento.
Não pensemos que o padre Rua aproveitava a trégua para descansar. No dia 16 assistiu à
cerimônia jubilar em São Pedro. O procurador lhe reservara um bom lugar perto do coro dos
cônegos, ao lado do altar papal. A cerimônia durou três horas. O padre Francesia teve, por um
momento, a impressão de que Pio X reconheceu o padre Rua e se voltou para ele de modo
significativo. Talvez. Em todo caso, nosso reitor sofria. “Seus olhos me causam dó, escrevia o
padre Francesia. Vão se tornando mais remelosos, e não consegue esconder que o incomodam,
precisando fechá-los e devendo limpá-los mais frequentemente”.12 Na procuradoria chegavam
visitantes respeitáveis. De fato, o jubileu de Pio X atraía muita gente a Roma.
Para fazê-lo repousar um pouco, propôs-se ao padre Rua visitar os castelos romanos, onde
os salesianos tinham algumas casas. Chegou, ao anoitecer, a Genzano, e os noviços lhe fizeram
a surpresa de uma acolhida com velas acesas às portas da cidade. O padre Rua deu a boa-noite.
O secretário Francesia se espantou ao encontrá-lo ainda “fresco como uma rosa”. Mas o espanto
do diretor foi ainda muito maior. Lemos o que contou o padre Andrea Gennaro no processo
de canonização:
No dia 18 de novembro de 1908, em Genzano de Roma, o padre Rua me chamou ao seu quar-
to, depois das orações da noite. Fui até lá. Logo que entrei, sentou-se e me pediu para lhe tirar
os sapatos e as meias, porque não conseguia fazê-lo sozinho. Pus-me quase de joelhos, mais por
veneração que por necessidade de tal operação. Tirados os sapatos, tirei a primeira meia. À vista
daquela perna escura e ressequida me comovi e exclamei chorando: – Oh! Padre Rua! Que pernas
o senhor tem! Mas o padre Rua logo me fez tirar a outra meia, e dizendo-me boa-noite com toda
doçura, me dispensou. Tive a impressão de que as veias varicosas de que sofria lhe reduziram as
pernas de modo muito feio.13
Embora o edifício não estivesse totalmente pronto, a cerimônia da consagração da grande e
bela igreja de Maria Libertadora aconteceu no dia 29 de novembro. O padre Rua escreveu na
circular de 31 de janeiro seguinte: “Não saberia expressar com palavras a alegria puríssima que
experimentei, no domingo 29 de novembro passado, assistindo à consagração do novo templo,
realizada por Sua Eminência o cardeal Respighi, Vigário de Sua Santidade. Voltando o olhar
12 Citado por Ceria, Vita, p. 500.
13 Depoimento do padre Andrea Gennaro no Processo apostólico, em Positio 1947, p. 901. Esse testemunho
escrupuloso, porém, temia ter confundido as meias com as pernas, e acrescentou: “Mas, pela emoção, não
pude verificar se as meias que tirava cobriam outras meias elásticas”. Se errava, todos aqueles que usam
meias elásticas sabem que são as mais difíceis de tirar. O padre Rua teria certamente pedido para tirá-las.
Gennaro tinha, portanto, visto exatamente as pernas todas enegrecidas pelo sangue.
328
para os lados, e vendo a população do Testaccio acorrer à nova Igreja eu me alegrava imensa-
mente por poder dizer que com nossos sacrifícios tínhamos contribuído para proporcionar-lhes
meios de viver como bons cristãos”.14 E ilustrou seu pensamento trazendo uma longa citação
da Civiltà Cattolica, inclusive um aceno crítico ao socialismo, muito raro em seus escritos, no
quais evitava cuidadosamente toda alusão política:
O título glorioso da antiga igreja, que recordava no foro romano o triunfo de Maria sobre o velho
paganismo, agora é renovado no Testaccio por vontade do Sumo Pontífice. Assim, Maria Liberta-
dora domina soberana, lá, diante do Aventino, no novo populoso bairro que se estende ao redor,
denunciando seu triunfo materno sobre o paganismo moderno, como é justamente o naturalismo
socialista, que procurou e procura com todo esforço colocar seu centro em meio àquele povo
de operários. À sombra dela a obra dos filhos de Dom Bosco se desenvolverá benéfica e eficaz,
sustentada pela caridade cristã, com oratórios, círculos, escolas e outras instituições semelhantes
oportunas aos lugares e aos tempos. E assim também, à sombra de Maria Libertadora, crescerá livre
da incredulidade e do vício o laborioso povo do Testaccio, e irá cada vez melhor se educando para
sustentar as lutas pela honestidade e pela fé contra aqueles infelizes transviados que se preocupam
em descristianizar e barbarizar na desordem, na impiedade e na anarquia aquela periferia extrema
da cidade de Roma.15
Notava, além disso, que, na audiência pontifícia de 10 de dezembro, Pio X se interessara por
todas as coisas salesianas, se alegrara com a Congregação por ter levado a bom termo a cons-
trução da grande igreja do Testaccio, expressara suas melhores esperanças sobre o apostolado
dos salesianos em favor daquela porção de seu rebanho e encorajara o sacerdote que lá seria o
pároco. Na saída da audiência, o devoto Reitor-Mor levava consigo uma fórmula de bênção
toda especial, que o papa havia escrito de próprio punho: “Deus omnipotens adimpleat omnem
benedictionem suam in vobis (Deus onipotente vos encha de toda sua bênção). Em seu entusias-
mo, o padre Rua afirmou que com ela o papa “não somente implorava uma bênção abundante
sobre toda nossa humilde Sociedade, mas ainda acrescentava uma oração para que a mesma se
tornasse verdadeiramente plena e eficaz”.
Naqueles dias, não perdeu tempo. Depois de Roma, foi para o sul, às casas salesianas de
Caserta, Castellamare, Nápoles e Portici. Embora rápidas, suas visitas aumentavam o entusias-
mo dos jovens e das multidões. Seu acompanhante, padre Francesia, arriscou uma observação:
“Hoje o padre Rua desencadeia o mesmo entusiasmo de Dom Bosco, e a veneração que lhe é
reservada é a que circunda um homem de virtude extraordinária”. Como Dom Bosco, aconte-
ceu-lhe até multiplicar as hóstias, se quisermos dar crédito ao depoimento do bispo salesiano
dom Federico Emanuel em seu processo apostólico de canonização:
Sendo eu diretor do colégio salesiano de Caserta, no ano de 1909, no mês de dezembro, ele quis
visitar minha casa. Os alunos se prepararam para a comunhão geral na missa que o padre Rua
devia celebrar. O catequista, ou seja, o diretor espiritual, esqueceu-se de colocar as hóstias para
consagrar. No momento da comunhão tirou a píxide, e nela encontrou somente poucas partículas.
Ficou confuso e humilhado, mas o padre Rua lhe disse: – Não se perturbe – e começou a distribuir
a comunhão. Todos os 230 alunos comungaram e ficaram ainda na píxide partículas cujo número
14 Sigo aqui a circular citada de 31 de janeiro de 1909 em L. C., p. 400-402.
15 L. C., p. 401-402, onde se cita Civiltà Cattolica, caderno 1404.
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não saberia precisar. Terminada a missa, proibiu absolutamente ao catequista padre Pietro Squar-
zon que falasse do fato com quem quer que fosse. Mas o catequista confidenciou o fato comigo de
modo absolutamente secreto e também eu não falei dele com ninguém.16
O desastre de Messina
Aquele ano de 1908, tão cheio de acontecimentos, concluiu-se com uma enorme tragédia
para seus filhos sicilianos.17 Na tarde do dia 22 de dezembro, o padre Rua voltou discretamente
para Turim. Na manhã do dia 28 de dezembro, um violentíssimo terremoto, seguido de um
poderoso maremoto, sacudiu as costas da Sicília e da Calábria. Em poucos segundos, as cidades
de Messina e Reggio, e também várias cidadezinhas ao redor delas, foram arrasadas, com um
total de 200 mil vítimas. Todas as comunicações foram interrompidas, as primeiras notícias,
muito inferiores à realidade, se espalharam pela Itália e pelo mundo todo somente na manhã
do dia 29. O padre Rua, como Dom Bosco havia feito quando do terremoto da Ligúria, tele-
grafou logo para o arcebispo de Messina, para o cardeal arcebispo de Catânia, e também para
os prefeitos das duas cidades devastadas:
Preocupado com a sorte de meus irmãos e alunos da Calábria e da Sicília, penso invocar sobre eles a
bondade de Deus, abrindo novamente as portas dos meus institutos para os jovens órfãos por causa
do terremoto. Telegrafei para Catânia ao inspetor salesiano, padre Bartolomeo Fascie, para que se
coloque à disposição de Vossa Excelência e do Excelentíssimo Prefeito para atender as necessidades
mais urgentes dos jovenzinhos sofredores, certo de realizar obra de fé e de patriotismo.18
No dia 30 de dezembro, ainda nenhuma notícia precisa tinha chegado a Turim. O padre
Rua, obrigado a ficar no quarto pelos graves problemas nas pernas, não podia ir pessoalmente
aos lugares do desastre. Enviou o padre Bertello, já inspetor na Sicília, com o padre Calogero
Gusmano e o coadjutor Tagliaferri. Finalmente, na tarde do dia 31, chegou um telegrama,
expedido de Catânia no dia 29, que dava a notícia de numerosas vítimas no colégio salesiano
de Messina. Era a noite na qual, por tradição, se comunicava a toda a comunidade a estreia
para o novo ano. Apesar das péssimas condições de saúde, o padre Rua quis descer ao salão de
teatro para falar aos seus e anunciar a estreia e a oração jaculatória que a acompanhava. O padre
Amadei, que estava presente, recorda que, comentando a estreia, parecia uma vítima resignada
a toda tribulação querida ou permitida pela Divina Providência. Depois, passou à leitura do
telegrama em meio à comoção geral.
O acento, o tremor das mãos e de toda a pessoa, a dor viva que sentia no íntimo do coração
causaram uma impressão dolorosa em todos os presentes, que foram dormir rezando por ele.
Os alunos de Valdocco pediram ao padre Rua que fizesse celebrar uma missa solene por
seus companheiros de Messina. A circular do dia 2 de janeiro de 1909 aos cooperadores e às
cooperadoras de Turim comunicava essa iniciativa, acrescentando:
16 Positio 1947, p. 472-473.
17 Refiro-me aqui ao relato de Amadei III, p. 474-478; Amadei foi testemunha direta, portanto digna de
fé; ele foi nomeado pelo padre Rua diretor do Bollettino Salesiano justamente naquele ano de 1908.
18 Amadei III, p. 475.
330
Também os salesianos, para alívio da própria dor, desejam fazer igualmente em sufrágio de seus
irmãos e cooperadores. O segundo ofício fúnebre acontecerá na terça-feira, 5 do corrente, às 10
horas, no santuário de Maria Auxiliadora. Acredito fazer bem enviando o anúncio à Vossa Senhoria
benemérita com o convite para participar do ato, para implorar o repouso eterno dos inesquecíveis
finados.19
Naqueles dias chegou uma carta expressa do padre Bertello, que explicava a pavorosa reali-
dade do colégio de Messina, considerado, num primeiro tempo, capaz de resistir ao abalo:
Morreram e permanecem sepultados sob o edifício os irmãos sacerdotes: Giuseppe Pasquali, Vin-
cenzo Pirrello, Dario Claris, Antonio Urso, Arcangelo Lo Faro, Mauro Rapisarda; os clérigos Ma-
rio Manzini, Giuseppe Venia e o coadjutor Giuseppe Longo. Além disso, morreram 38 alunos e
também os familiares Antonio Marotta, Salvatore Marotta, Francesco Pirrello, Alfio Zuccarello.
Há muitos feridos, mas nenhum grave.
Nos dias 4 e 5 de janeiro de 1909, as cerimônias previstas aconteceram no santuário ador-
nado a luto. A saúde precária do padre Rua o impediu de cantar a missa solene, como desejaria.
Durante todo o rito, permaneceu ajoelhado junto ao cadafalso, com o corpo e o olhar marcados
pelo sofrimento. Pobre padre Rua, em 1907, uma rajada de calúnias se abatera sobre ele. Em
1908, uma catástrofe natural desgraçava in extremis um ano que tinha conseguido, finalmente,
tranquilizá-lo. Cansado, consumido pelo mal, ao se aproximar dos 72 anos, a idade que Dom
Bosco tinha quando deixou esta terra, se dispunha serenamente a segui-lo. Percebia-se que o
fim estava próximo, enquanto era preparado seu jubileu sacerdotal para o verão de 1910.
19 FdR 4001D2-3.
331

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Capítulo 34
O último ano do padre Rua
Preparar-se para a morte
Na tarde de 19 de janeiro de 1909, o padre Luigi Rocca, ecônomo geral da Sociedade Sa-
lesiana, era chamado à cabeceira de uma doente na avenida Regina Margherita, não longe do
Oratório. Depois de administrar os sacramentos àquela senhora, viram-no sair meio vacilante.
Então, a família saiu à janela para acompanhá-lo com o olhar até à rua. Mas não o viram apa-
recer. Abriram, então a porta e o encontraram lá, no chão, agarrado ao corrimão das escadas.
Teve uma congestão cerebral. Transportado ao Oratório, morreu pouco depois. O padre Rua
não pôde deixar de concluir a carta de 31 de janeiro de 1909, centrada na igreja de Maria
Auxiliadora, com uma série de considerações sobre o exercício da boa morte. A morte havia
atingido improvisamente alunos e irmãos sicilianos e agora, também repentinamente, tinha
roubado o padre Luigi Rocca, na idade de somente 55 anos. Sabia que seus religiosos estavam
sempre prontos para o grande passo rumo à eternidade. Mas, segundo ele, essas eram provas
da necessidade de fazer regularmente e bem o exercício da boa morte. Dom Bosco lhe atribuía
muita importância:
O venerável Dom Bosco, desde o início do oratório, introduziu o uso de fazer todo mês o exer-
cício da boa morte. A um sacerdote que se admirava do bom comportamento de tantos jovens
que viviam no oratório, Dom Bosco disse: eles são bons porque fazem, todo mês, o exercício da
boa morte. Esta prática é o apoio de nossa casa. Nós recordamos como ele, com certa solenidade,
a anunciava alguns dias antes nas palavras que nos dirigia à noite; parece-nos ainda vê-lo, ajoelhado
nos degraus do altar, recitar conosco as orações muito ternas com as quais se pede a graça de morrer
bem.
Depois de ter lembrado um artigo das Constituições e uma disposição dos “artigos orgâni-
cos”, concluía seriamente: “Por isso, não pode dizer-se verdadeiramente salesiano aquele que
descuida um meio tão eficaz para conseguir nossa salvação.1
A perspectiva da morte ameaçava agora o próprio padre Rua, que, cada vez mais fra-
co, começava a pensar na herança que o sucessor receberia. O enfermeiro Guiseppe Ba-
lestra atesta que seus sofrimentos aumentavam, as pernas se inchavam terrivelmente,
estavam cheias de feridas e era difícil caminhar. “Para aliviá-lo, Balestra aplicava panos
1 L. C., p. 404-405.
332
muito quentes sobre uma ou duas feridas. Esse remédio fazia pouco efeito. Era preciso
que estivesse na cama, ou no sofá com as pernas estendidas, e fazia isso a contragos-
to, quando não suportava mais. Estando de pé ou sentado, o inchaço ia aumentando.”.2
No entanto, ainda encontrou forças para escrever uma longa carta aos irmãos por ocasião
do aniversário da morte de Dom Bosco, no dia 31 de janeiro de 1909. Nela fez notar como
a obra do venerável Fundador sobrevivia e se desenvolvia, apesar dos profetas de desventura e
das manobras dos inimigos que novamente prometeram fazer dela um “monte de ruínas”. No
entanto, acrescentava com lucidez,
é bem verdade que nós não temos sempre correspondido bem às graças recebidas. Infelizmente,
podem reprovar em nós muitos e graves defeitos. Quem sabe quantas vezes merecemos que Deus
voltasse seus olhares para outros lugares, e procurasse outros instrumentos melhores para obter
sua glória. Mas ele, infinitamente rico em misericórdia, em vista dos méritos de nosso Venerável
Pai, continuou a nos abençoar, a nos sustentar e a nos consolar. Vemos, todo dia, verificarem-se as
predições de Dom Bosco em relação ao número de seus filhos e a seus empreendimentos.3
No final das contas, aproximando-se da idade na qual Dom Bosco tinha deixado esta terra,
se dispunha a partir com a alma em paz.
Os irmãos ao redor dele se organizavam para celebrar solenemente seu jubileu sacerdotal.
Tinha sido ordenado sacerdote no dia 29 de julho de 1860. Portanto, o jubileu devia ser ce-
lebrado no dia 29 de julho de 1910. Programava-se distribuir os festejos durante o segundo
semestre de 1910. Foram designados oficialmente os membros da comissão central encarregada
da organização. Toda a Congregação foi envolvida.4 A festa teve início em Valdocco no dia 29
de julho de 1909: missa do padre Rua no altar de Maria Auxiliadora, banquete no teatro, boa-
-noite do Reitor-Mor para toda a comunidade de Valdocco.5 Foi impressa uma imagenzinha
com a fotografia do padre Rua “como recordação do felicíssimo 29 de julho de 1909, no qual,
surgindo o 50° ano da ordenação sacerdotal do Reverendíssimo padre Miguel Rua, os superiores
e os alunos do Oratório Salesiano de Valdocco, depois de se terem prostrado afetuosamente aos
pés da Virgem Auxiliadora, exultantes sentavam-se à mesa com ele, parabenizando por suas bodas
de ouro”.6 No dia 30 de agosto de 1909, ele presenciou em Valsalice a 5ª assembleia geral dos
diretores diocesanos da Pia União dos Cooperadores Salesianos, sobre a qual falaremos a seguir.7
A vida habitual do padre Rua doente
Seria um erro grave imaginar que o padre Rua permanecesse inativo por causa das dores que
o atormentavam. A longa carta anual para os cooperadores saiu pontualmente em janeiro de
2 Amadei III, p. 482.
3 L. C., p. 397-398.
4 Carta circular do prefeito geral padre Felipe Rinaldi aos Salesianos, 6 de fevereiro de 1909. In: FdR
2753A7-9.
5 Amadei III, p. 510.
6 FdR 2754B1-2.
7 Bollettino Salesiano, outubro de 1909, p. 291-294.
333

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1909. Nela tranquilizava os leitores porque o Senhor continuava a abençoar a obra salesiana,
como demonstravam as novas obras abertas no Velho e no Novo Continente. Exortava seus
cooperadores a apoiar as missões salesianas em crescimento contínuo.8 Nos anos anteriores a
carta anual informava também sobre as obras das irmãs salesianas. Agora, apesar da separação,
o padre Rua não quis esquecê-las. Depois da carta aos cooperadores, no Bollettino Salesiano de
janeiro de 1909, fez inserir um artigo intitulado: “O Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora
em 1908”. O artigo, certamente querido e talvez até escrito pelo padre Rua, atestava que, ape-
sar da separação oficial, o instituto continuava a ser o ramo privilegiado da Família Salesiana.
Além das cartas circulares para cooperadores e salesianos, sempre bem circunstanciadas, o
padre Rua, fiel aos próprios hábitos, multiplicou as cartas individuais. Somente um pequeno
número delas foi entregue aos arquivos de Roma. No entanto, entre as de 1909, encontramos
5 endereçadas ao padre Evasio Rabagilati, inspetor na Colômbia, 8 ao padre Giuseppe Ves-
pignani, inspetor na Argentina, 10 ao padre Arturo Conelli, inspetor na Itália central, oito
ao padre Pietro Cardano, inspetor no Oriente Médio, 5 ao padre Giuseppe Gamba, inspetor
no Uruguai-Paraguai. Suas longas cartas ao padre Isacco Giannini, diretor da colônia agrícola
palestina de Beitgemal, datadas de 25 de janeiro e 7 de julho de 1909, atestam o interesse
excepcional que o padre Rua reservava por aquela obra, visitada no ano anterior.9 Em julho e
em agosto endereçou 3 longas cartas ao padre Antonio Malan, inspetor no Mato Grosso, no
coração do Brasil, sobre o modo de tratar com os índios, de prepará-los para o batismo etc.10
Apesar dos sofrimentos físicos, o padre Rua ainda se deslocava. Entre 16 e 18 de março, pre-
gou para as irmãs josefinas de Turim o tríduo preparatório para a festa do patrono São José. Os
temas eram simples e concretos: 1º dia: Trabalhar, fazer o próprio dever tendo São José como
modelo; 2° dia: Rezar, é preciso rezar sempre, segundo o modelo de Maria; 3° dia: Sacrificar-
se, saber se submeter às superioras. Modelos: José, Maria e Jesus.11 No dia 20 de março, em
Nizza Monferato, celebrou a conclusão dos exercícios espirituais das Filhas de Maria Auxilia-
dora. Centrou seu discurso nas três letras “PUÒ” (Pode), Piedade, (h)Humildade (Umiltà),
Obediênc­ ia: um procedimento mnemotécnico que lhe era familiar.12 No dia 21 de março, foi
organizada uma academia “em honra de Dom Bosco e de seu sucessor”. Foi-nos conservado o
longo discurso de circunstância.13 Uma reflexão característica do padre Rua concluiu a festa:
Eu não sei se mereço tantos encômios e tantos elogios, mas os aceito porque são seguidos da pro-
messa de que vocês rezarão por mim, que preciso muito. Desejaria ser uma cópia de Dom Bosco,
e enquanto estou lendo sua vida confronto-a com a minha, e me vejo humilhado, e devo dizer que
sou uma cópia feia de Dom Bosco. E não o digo por humildade, mas porque é assim. E rezem para
que eu possa me tornar uma cópia verdadeira!14
8 Bollettino Salesiano, janeiro de 1909, p. 1-8.
9 Cartas de M. Rua a I. Giannini, 25 de janeiro e 7 de julho de 1909. In: FdR 3904D2-6.
10 Cartas de M. Rua a A. Malan, Turim, 3 de julho, 16 de julho e 19 de agosto de 1909. In: FdR 3915 D1-7.
11 Segundo a crônica local citada por Amadei III, p. 486-488.
12 Cf. Amadei III, p. 489-492.
13 FdR 2765A8-12.
14 Segundo a crônica local, em Amadei III, p. 493.
334
O padre Rua quis participar nas cerimônias da Semana Santa no oratório. Na quinta-fei-
ra, 8 de abril, apesar de suas enfermidades, lavou pessoalmente os pés de 12 rapazes, que de-
pois convidou para sua mesa. Participou entre 15 e 24 de maio da novena em preparação à
festa de Maria Auxiliadora, mas deixou a diversos cardeais e bispos a honra de presidir e pregar.
A tradicional “festa do reconhecimento” de 23 e 24 de junho, mesmo se desenvolvendo segundo
o esquema habitual, adquiriu um tom mais solene que o de costume. O barão Antonio Manno
anunciou a composição do comitê para o jubileu do padre Rua, presidido pelo cardeal Richelmy.
Os festejos jubilares propriamente ditos estavam previstos para o dia 24 de junho de 1910. Não
se esperaria o dia 29 de julho, aniversário da ordenação. Parece que o interessado chegou a dizer:
“Vocês farão a festa, mas sem o santo!”.15 No dia 25 de junho, uma carta enviada aos salesianos da
comissão central, assinada pelo prefeito geral, padre Rinaldi, expunha em detalhes as manifesta-
ções jubilares: mostras, concursos, envio de cartas e fotografias ao padre Rua etc.16
Segundo um costume antigo, no dia 24 de cada mês, o padre Rinaldi transmitia aos inspeto-
res e aos diretores as instruções do Reitor-Mor e de cada membro do Capítulo Superior. O fato
de essas circulares serem todas numeradas, como era o estilo do padre Rua, atesta sua auten-
ticidade como também as preocupações administrativas e, sobretudo, religiosas de seu autor.
Permitam-me sintetizar, a título de exemplo, as que vão do mês de janeiro ao mês de julho de
1909. Elas demonstram o quanto o Reitor-Mor, já quase inválido, continuava a estar próximo
de seus filhos espalhados por todo o mundo. É digna de nota, especialmente, sua preocupação
quase obsessiva pelos cooperadores salesianos.
No dia 24 de janeiro, o padre Rinaldi escreve que o Reitor-Mor: 1) anuncia que, depois
do enorme desastre de Messina, outra desgraça feriu a Congregação, a morte por apople-
xia do ecônomo geral, padre Luigi Rocca. 2) Recomenda que se tenha grande cuidado com
os irmãos coadjutores e na aceitação dos que tenham as qualidades necessárias para pode-
rem tornar-se excelentes coadjutores. 3) Sugere a inspetores e diretores que releiam e colo-
quem em prática as deliberações dos Capítulos Gerais relativas aos cooperadores salesianos.
4) Convida inspetores e diretores a responder para cada um dos membros do Capítulo Superior
que escrevem na circular mensal.
No dia 24 de fevereiro, o padre Rua: 1) Anuncia a nomeação do padre José Bertello para
o cargo de ecônomo geral. 2) Comunica que em Turim foi encerrado o processo ordinário
diocesano para a causa de beatificação de Domingos Sávio. 3) Solicita das casas da América
uma resposta a sua circular de 27 de dezembro de 1908 sobre a adesão à federação Italica Gens
para o cuidado dos emigrados italianos. 4) Recomenda às casas não italianas, especialmente aos
noviciados, o estudo da língua italiana. 5) Pede aos inspetores que prestem contas das confe-
rências regulamentares aos cooperadores salesianos. 6) Convida os diretores que não puderam
responder às cartas circulares porque não tinham os formulários a pedi-los ao próprio inspetor.
7) Elogia os diretores que não só leem publicamente as cartas circulares, mas fazem delas argu-
mento de conferências comunitárias.
15 Amadei III, p. 506.
16 FdR 2753B10-12.
335

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No dia 24 de março: 1) Augura boas festas pascais aos salesianos e a seus alunos. 2) Reco-
menda aos diretores que cuidem dos clérigos tirocinantes. 3) Pede que, durante o mês mariano,
sacerdotes e clérigos façam breves sermões em honra de Nossa Senhora.
No dia 24 de abril, o Reitor-Mor: 1) Exorta os salesianos a cuidar do mês de Maria e a en-
raizar no coração dos alunos a devoção à Auxiliadora. 2) Convida os diretores a reler a circular
mensal de janeiro de 1904, que dizia respeito aos privilégios relativos à festa de Maria Auxilia-
dora. 3) Recorda a conferência que costuma ser feita aos cooperadores nessa ocasião.
No dia 24 de maio, o padre Rua: 1) Recomenda que passem santamente o mês do Sagrado
Coração: Ad Jesum per Mariam. 2) Recorda os avisos dos anos anteriores em relação aos banhos,
seguindo as recomendações de Dom Bosco. 3) Contesta a teoria muito em voga que reserva
a assistência somente aos clérigos, enquanto os sacerdotes deveriam se dedicar unicamente ao
santo ministério: “Seria fatal para o espírito de nossa Pia Sociedade e para os bons resultados do
sistema educativo”. 4) Convida a não visitar as exposições nas quais houvesse pinturas contrá-
rias à moralidade. 5) Anuncia a abertura, em Turim, do processo apostólico de Dom Bosco.
No dia 24 de junho: 1) Agradece pelos augúrios recebidos por ocasião da festa de São João
Batista, dia em que se celebra o onomástico de Dom Bosco e se festeja o Reitor-Mor. 2). Reco-
menda a dinamização dos oratórios festivos durante as férias. 3) Anuncia que a subscrição sa-
lesiana pelas vítimas do terremoto de Messina serviu para arrecadar 21.466 liras e 17 centavos.
4) Exorta os inspetores negligentes a expedir o rendiconto das visitas inspetoriais. 5) Convida os
inspetores a ter presente a circular de 3 de julho de 1906 sobre o pessoal das casas.
No dia 14 de julho, o padre Rua: 1) Convida novamente os inspetores a entregar os rendi-
conti das visitas às casas. 2) Exorta inspetores e diretores a convidar para os exercícios espirituais
os jovens e os familiares que dão esperança de vocação. 3) Augura a todos boas férias e frutuosos
exercícios espirituais para o bem temporal e espiritual da Sociedade.17
Finalmente, o padre Rinaldi, no dia 24 de agosto de 1909, escreve uma carta aos salesianos
para recordar as recomendações do padre Rua sobre o silêncio e o recolhimento durante os
exercícios espirituais que eram feitos nas férias.18 Como se vê, nosso bom reitor não cessava de
vigiar sobre a boa saúde espiritual dos seus.
Os depoimentos do padre Rua no processo apostólico de Dom Bosco
O padre Rua foi a primeira das testemunhas citadas no processo apostólico de Dom Bosco
que foi aberto em Turim no dia 26 de maio de 1909. Seus depoimentos, sempre cuidadosos e
solidamente argumentados, foram programados entre 11 de junho (4ª sessão) e 20 de novem-
bro (35ª sessão), em 31 sessões, suspensas num período de férias entre 17 de julho (19ª sessão)
e 4 de outubro (20ª sessão).19
17 Essas circulares de Rinaldi são conservadas em FdR 4075C6–E10.
18 FdR 2753C1-4.
19 Sobre a primeira etapa do Processo apostólico de Dom Bosco, cf. FdB 2439A5-2482C1. Os depoimentos
do padre Rua se encontram em FdR 2444C10-2449E6.
336
Entre a 4ª e a 12ª sessão, como havia feito durante o processo informativo, ele relembrou
minuciosamente toda a vida movimentada de Dom Bosco, que conheceu na idade de 8 anos
e ao lado de quem esteve até no momento da morte, em 1888, com exceção dos anos 1863-
1865, quando fora nomeado diretor em Mirabello. Contou sua formação escolar, dificultada
pelo meio-irmão Antonio, os estudos na escola pública e no seminário de Chieri, o período
passado no seminário eclesiástico de Turim. Afirmou que o Servo de Deus sempre tinha se
mostrado apóstolo zeloso, sobretudo em relação aos companheiros de infância e aos jovens que
encontrava. Narrou suas visitas e suas confissões nas cadeias.
Durante as sessões 7-10 evocou com riqueza de particulares a história da Sociedade de cléri-
gos e leigos, destinada a constituir progressivamente a Congregação de São Francisco de Sales,
o nascimento do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora e da Pia União dos Cooperadores
Salesianos, obra apoiada pelo papa Pio IX. O padre Rua não esqueceu a Obra dos Filhos de
Maria, para as vocações adultas. Durante as sessões 11ª e 12ª, recordou como, para defender
o papa defraudado, Dom Bosco se ocupou intensamente, e por esse motivo teve que sofrer
perseguições e até agressões. Em 1867, avisou o papa sobre as ameaças de Garibaldi. Defendeu
a infalibilidade pontifícia bem antes da divulgação no Vaticano I. Recordou ainda que, já na
juventude, o Venerável havia pensado em anunciar pessoalmente o Evangelho aos infiéis, mas,
não podendo realizar seu sonho, a partir de 1875, decidiu enviar seus missionários à América
do Sul. Em seu zelo, queria tê-los enviado também para os Estados Unidos, para a África e
para a Índia.
Da 13ª à 19ª sessão, o padre Rua testemunhou sobre a heroicidade das virtudes teologais e
morais de Dom Bosco; sobre a constante união com Deus; sobre a especial devoção eucarísti-
ca; sobre sua veneração pela Palavra de Deus; sobre a devoção a Maria, a prática das virtudes
inerentes ao estado eclesiástico, a confiança na Divina Providência, apesar dos contínuos obstá-
culos a superar. Finalmente, falou sobre sua conformidade incessante à vontade de Deus, até à
doença final e à morte. Acrescentou que ele se entregava sempre à vontade do Senhor antes de
tomar decisões graves, que sua vida foi uma contínua obra de misericórdia espiritual e material
e que não se podia reprovar nele nenhum apego ao dinheiro.
Depois da interrupção das férias, as sessões de número 21-23 foram dedicadas às virtudes
cardeais. O padre Rua testemunhou que Dom Bosco era dotado de um caráter ardoroso, deci-
didamente inclinado a amar o próximo. Mas sua força espiritual era heroica: demonstrou-o na
perseguição tenaz da própria vocação. Em cada momento da vida, em meio a contradições de
todo tipo, ele manifestou profunda humildade e verdadeiro e próprio amor à pobreza e à cas-
tidade. Na 24ª sessão, o depoimento se concentrou nos dons sobrenaturais. O assunto voltou
nas sessões 25ª e 26ª. Falou-se do dom das lágrimas, da profecia, do conhecimento das almas,
das visões e das curas obtidas enquanto estava em vida. A 27a sessão foi dedicada a uma rápida
indagação sobre as obras publicadas por Dom Bosco e terminou com a recordação de sua mor-
te. Na 28ª sessão se falou dos funerais e da reputação de ele ser um santo e até um taumaturgo,
fama espalhada enquanto era ainda vivo não somente em Turim e na Itália, mas um pouco por
toda parte no mundo. A 29ª sessão tocou em temas que contrastavam com a admiração gene-
ralizada que se tinha em relação a Dom Bosco: foram enfrentadas, de fato, as interpretações dos
adversários que afirmavam ter ele perdido a cabeça e o acusavam de apropriação de herança...
O padre Rua mostrou que os principais ataques dos quais tinha sido objeto eram causados por
337

17.10 Page 170

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seu zelo em defesa do papa e da Igreja, não por faltas em seu comportamento ou no dos discí-
pulos. Passou-se depois às perguntas relativas aos milagres atribuídos a Dom Bosco depois da
morte. Delongou-se sobre o tema durante as sessões 30-32. O padre Rua elencou os nomes dos
miraculados e descreveu com precisão as doenças de que sofriam. Não restava senão confirmar
e assinar os depoimentos, coisa que aconteceu durante as sessões 33-35.
Os depoimentos circunstanciados do padre Rua são muito preciosos para o historiador.
Ele de fato possuía uma memória excelente e sabia dosar cuidadosamente as palavras, como se
pode ver das anotações marginais inseridas no momento da releitura dos depoimentos. Bem
entendido, podia também cair em erro, como aconteceu com a pretensa ressurreição provisória
do jovem “Carlos”, que o padre Rua atribuía a Dom Bosco, enquanto se tratava de um episó-
dio que o padre de Valdocco havia contado tirando-o da biografia de São Felipe Neri.20 Nas
narrações das curas, o padre Rua refletia a opinião comum, atenta ao prodigioso. Mas estas são
minúcias comparadas a um testemunho sólido e bem fundamentado, admirável numa pessoa
idosa e doente como ele.
20 FdR 2449 C1. A retificação é documentada em F. Desramaut, “Autour de six logia attribués à Don
Bosco dans les Memorie Biografiche”, RSS 10 (1991), p. 38-52.
338
Capítulo 35
O ocaso
O verão difícil de 1909
Durante o intervalo das várias sessões do processo apostólico de Dom Bosco, o padre Rua
se ocupava como podia. No dia 30 de julho, encerrou, em Valsalice, os exercícios espirituais
dos clérigos e dos jovens. No dia 13 de agosto, foi celebrar a missa para as Damas do Sagra-
do Coração em Valsalice.1 No dia 16 de agosto, dirigiu-se aos novos aspirantes, reunidos em
Valsalice. Seu discurso partiu do acróstico BOSCO, isto é, Bondade, Oração, Estudo (Studio),
Castidade e Obediência.2 No dia 21 de agosto, dirigiu-se a Nizza Monferrato junto às Filhas de
Maria Auxiliadora, onde celebrou a missa e disse algumas palavras de encorajamento, mas se
recusou absolutamente a dar diretivas, deixando entender que não queria dar “nenhum passo
que pudesse mesmo só parecer em antítese com as disposições da autoridade superior da Igre-
ja” sobre a separação entre seu instituto e a Sociedade Salesiana. Mesmo demonstrando certa
disponibilidade, não apoiou de nenhuma forma as tentativas sistemáticas da Madre Geral Da-
ghero “para ter um conselheiro salesiano em cada inspetoria” das Filhas de Maria Auxiliadora.3
No dia 30 de agosto, o padre Rua esteve presente junto ao túmulo de Dom Bosco, em Valsa-
lice, na 5ª assembleia geral dos diretores diocesanos da Pia União dos Cooperadores Salesianos.
Tinha sido encorajado a organizá-la por uma carta de Pio X, Diletto Figlio, de 25 de agosto
anterior.4 Foi uma assembleia muito importante sobre a modernização necessária do Oratório
salesiano, tema caro ao nosso reitor. A sociedade civil estava mudada em relação às origens do
Oratório. Agora, um socialismo antirreligioso mudava as cartas na mesa. Não se podia mais
reduzir o Oratório à única função recreativa e religiosa.
A assembleia expressou o desejo de que a ação dos oratórios estivesse integrada “com obras
de cunho econômico e social, que respondessem eficazmente às necessidades da juventude,
de modo que ela encontrasse no Oratório e nas obras anexas a instrução social e a assistência
moral e material que lhes eram oferecidas por círculos e instituições anticristãs”. A moção final
elencava, não sem ambição, algumas dessas obras:
1 Amadei III, p. 517.
2 Amadei III, p. 518.
3 Amadei III, p. 519.
4 Esse documento é reproduzido em FdR 3833A9.
339

18 Pages 171-180

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1) Círculos de cultura. 2) Conversações sociais. 3) Escolas profissionais. 4) Secretariados do traba-
lho. 5) Escritório para inscrição na Caixa Nacional de previdência. 6) Seguros operários populares.
7) Conferências de higiene profissional. 8) Instruções sobre a legislação do trabalho. 9) Iniciação
às Conferências de São Vicente de Paulo. 10) Preparação para os círculos militares. 11) Assistência
dos jovens operários emigrantes segundo o sistema de Kolping.
Sabiamente, a moção sublinhava: “cuidando, ao mesmo tempo, da complementação da
parte recreativa e instrutiva com todos os atrativos da didática moderna (por ex. com cinemas,
projeções fixas etc.)”.5 Na mente do padre Rua, o Oratório era um verdadeiro e próprio centro
de formação da juventude.6
No dia 9 de setembro, o padre Rua encerrou os exercícios espirituais salesianos em Lanzo.
No dia 15 foi a Foglizzo, onde se dirigiu aos estudantes de teologia e aos novos professos. No
dia 24 de setembro, falou aos sacerdotes de Ivrea. No dia 28 de outubro, na igreja de Maria
Auxiliadora, durante a cerimônia de adeus a 40 novos missionários, presidida pelo cardeal Ri-
chelmy, o padre Rua pôde dar seu habitual abraço aos que partiam. As testemunhas afirmam
que quase não se percebia que tinha uma dor terrível nas pernas.7
Entre setembro e novembro, as muitas reuniões do Capítulo Superior aconteceram sob a
presidência do padre Rua, mas em seu quarto. Com efeito, seus males tinham se agravado.
O declínio
Na metade de novembro, em San Benigno, onde os membros do Capítulo Superior haviam
se reunido para examinar as relações dos visitadores extraordinários e programar a preparação
remota para o Capítulo Geral de 1910, a saúde do padre Rua sofreu uma queda. Na terça-feira
23, não pôde celebrar a missa na capela. Precisou se retirar na enfermaria. Isso não o impediu
de dar uma lição espiritual ao noviço que o assistia, a partir da vida de São Clemente Romano
que era festejado naquele dia.8 No dia 24 de novembro, a crônica nos revela a atenção com
a qual os seus acompanhavam as vicissitudes do Reitor-Mor: “Hoje o padre Rua completa
72 anos, cinco meses e 15 dias, a idade de Dom Bosco [no momento da morte]. Os jovens,
portanto, antes do almoço o recebem com aplausos. Leem um augúrio. O padre Rua agradece
e repete que rezem não para que sua vida se prolongue, mas para que possa passar santamente
aquela que lhe resta”.9
Estava prostrado e no mesmo dia precisou voltar para Turim. Saiu de casa apoiado no braço do
padre Albera. Para saudá-lo, os jovens, em fila e em silêncio, se puseram de joelhos. Sau­dou-os do
5 Bollettino Salesiano, outubro de 1909, p. 292.
6 Sobre esse problema, cf. o artigo documentado de P. Braido, “L’Oratorio Salesiano in Italia, ‘luogo’ propizio
alla catechesi nella stagione dei Congressi (1888-1915)”, RSS 24 (2005) p. 7-88 (sobretudo 83).
7 Amadei III, p. 523-527, passim.
8 Amadei III, p. 540.
9 FdR 4249A11.
340
carro. Voltando ao Oratório, foi obrigado a permanecer no quarto e passar os dias com as pernas
estendidas sobre o velho sofá, mas sempre vestido com a batina. Os pés inchados já lhe impediam
calçar sapatos ou chinelos.10
As conclusões da visita extraordinária
No entanto, continuava ativo. As conclusões formuladas a partir da visita extraordinária de
todas as casas salesianas por ele ordenada em 1908 foram apresentadas ao Capítulo Superior
no dia 22 de janeiro de 1910. Eram severas: falta de pessoal, sobretudo de pessoal qualificado;
falta de bons diretores; escassez de bons confessores; lacunas na formação do pessoal, em espe-
cial dos coadjutores; presença de indivíduos indignos prejudiciais aos irmãos; necessidade de
mudar os inspetores e os diretores inadequados etc.11
Algumas semanas antes, no dia 1º de dezembro, o padre Rua havia assinado uma circular
importante para inspetores e diretores, que reunia suas observações pessoais depois de uma
leitura parcial daquela documentação.12 A carta, à primeira vista, parecia tranquilizadora. Se-
gundo o padre Rua, os relatórios dos visitadores testemunhavam ainda uma vez que a “humilde
Congregação Salesiana” (observe-se o adjetivo), abençoada pelo Senhor, sustentada por Maria
Auxiliadora, desenvolvida pelas orações e pelos méritos de seu venerado Fundador, continuava
a fazer grande bem em todo o mundo. As calúnias de Varazze e de Marsala, as perseguições
depois das revoluções de Barcelona ou na Colômbia provavam somente que o inimigo, der-
rotado por um lado, assaltava por outro. “Quem sabe o que está pensando hoje contra nós!
Mas nós não temos nada a temer, pois Deus está conosco.” Dito isso, o padre Rua fazia uma
observação de ordem geral, que inspiraria a sequência de seu documento: constatou-se que nas
casas dirigidas por um superior dotado de qualidades necessárias para seu cargo, animado por
zelo verdadeiro e ardoroso, fiel imitador de seu venerável pai e fundador Dom Bosco, floresce
a piedade, reina grande pureza de costumes, assiste-se com admiração a um progresso contí-
nuo nos estudos, respira-se uma atmosfera impregnada de perfume das virtudes mais insignes.
Infelizmente, os relatórios da visita extraordinária atestavam que tais pérolas eram bastante
raras. A triste constatação levava o padre Rua a elencar uma série de conselhos e de exortações
destinadas, sobretudo, aos principais responsáveis das casas.
O padre Rua os exorta a confrontar o próprio comportamento com o texto das Constitui-
ções. “O momento mais adequado para esse exame” é o exercício da boa morte. Os relatórios
dos visitadores revelam que alguns diretores das casas se dispensam facilmente das práticas de
piedade impostas pela Regra, sobretudo da meditação e da leitura espiritual. Outros não so-
mente “descuidam a solução mensal do caso de moral, mas, apesar de muitas recomendações,
não cuidam de fazer as duas conferências mensais tão necessárias para manter vivo o espírito de
Dom Bosco em seus irmãos”. Como, ainda, “podem estar tranquilos, em consciência, aqueles
10 Amadei III, p. 541-542.
11 Verbali del Capitolo Superiore, 22 de janeiro de 1910. In: FdR 4249B5.
12 L. C., p. 407-418.
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diretores que não recebem o rendiconto de seus dependentes?” Essa desordem deplorável é tal-
vez a origem da perda de muitas vocações, enquanto tais diretores perdem seu tempo na leitura
de jornais, aceitam facilmente obrigações fora de casa ou fazem frequentes visitas externas não
necessárias. “Pelo menos esta lembrança que lhes manda o pobre Reitor-Mor, do leito onde o
prende sua enfermidade, valesse para corrigir sua negligência.”13
Não basta que os diretores observem as Constituições, devem fazer que os próprios depen-
dentes as observem. “Ai do superior negligente! São Boaventura não hesita em afirmar que
ele peca contra Deus, de quem profana o poder, contra seus irmãos, que deixa acostumar em
suas inobservâncias, contra a própria consciência, na qual acumula, além das próprias, as faltas
de seus súditos”. O padre Rua se delonga especialmente sobre a prática do voto de pobreza,
ao qual havia já dedicado uma circular substanciosa no dia 31 de janeiro de 1907.14 “Como
dói saber que certos diretores não são mais diligentes e corajosos em fazer praticar a pobreza.
Procurem impedir com firmeza que os irmãos tenham dinheiro e o gastem em suas pequenas
distrações. É doloroso ver irmãos arrastarem atrás de si, ao mudar de casa, toda uma bagagem
de livros e de objetos que eles chamam próprios”. A acolhida favorável reservada à carta de
1907 havia feito esperar que esse tipo de abusos terminasse. Lamentável! Mas os relatórios das
visitas o desmentiram amargamente: “Consolo-me, porém, pensando que vocês cuidarão que
meus desejos sejam plenamente realizados”.
O padre Rua denuncia outro abuso que poderia parecer estranho em nossos dias: “Dir-se-
-ia que entraram em nossa Pia Sociedade indivíduos que não têm outro pensamento senão o
de buscar vantagens materiais para suas famílias”. Esses não se preocupam com os interesses
da Congregação, mas buscam ter dos superiores um subsídio cada vez mais consistente para
subvencionar as famílias. Por isso, convida os inspetores a indagar “se os postulantes e os no-
viços entram na Congregação pelo verdadeiro único objetivo de salvar sua alma, e não para
buscar uma vida cômoda e ajudar sua família. Informem-se também sobre o estado da família
do postulante, e quando acontecer de ela precisar de apoio por parte do filho, exortem-no a
tomar outro caminho e a não se fazer salesiano. Sobretudo, estejam atentos para que não sejam
ordenados sacerdotes aqueles qui quaerunt quae sua sunt, non quae Jesu Christi [que buscam os
próprios interesses, não os de Jesus Cristo]”.
Delonga-se ainda sobre a desenvoltura de certos sacerdotes na celebração da missa: “Permi-
tam-me recordar-lhes que os senhores inspetores e diretores têm, como os prelados, a estrita
obrigação de corrigir seus dependentes que celebram mal ou com pressa indecorosa ou não
fazem a devidos preparação e o agradecimento”. Continua recordando algumas considerações
de São Francisco de Sales, que escreveu na Introdução à vida devota: “O santo sacrifício da missa
é o centro da religião cristã, o coração da devoção, a alma da piedade, um mistério inefável
que revela o abismo da caridade divina, pela qual Deus se une realmente a nós, nos comunica
generosamente suas graças e seus favores”.
13 L. C., p. 412.
14 L. C., p. 360-377.
342
Recomenda que se faça observar o artigo 780 dos Regulamentos, que “proíbe a nossos
alunos colocar as mãos nos ombros, segurar-se um ao outro pela mão ou passear de braços
dados”. Mas não basta. Os inspetores e diretores estejam atentos para que nenhum salesiano se
permita semelhantes familiaridades com os alunos. “Falem alguma vez nas conferências sobre
a necessidade, para nós salesianos, de mortificar o sentido do tato. Proíbam a todos acariciar
os meninos, segurar suas mãos, passear abraçados com eles, apalpar seu rosto ou o queixo e,
especialmente, fazê-los sentar-se sobre os joelhos”. Estes gestos “poderiam levar a graves desor-
dens contra a moralidade, e oferecer pretexto a nossos inimigos para nos caluniar e nos atribuir
intenções que não tínhamos. O venerável Dom Bosco, que também amava com muito afeto os
jovens, não considerou nunca lícito atraí-los a si com tais meios e repreendia com muito zelo
quem quer que agisse diferentemente”.
O padre Rua conclui a circular exortando os salesianos a não se comportarem mais como
“crianças”, mas como pessoas maduras, como “robustos operários da vinha do Senhor”. Cada
um cumpra seu dever com a máxima diligência, “como se dependesse somente dele a honra de
toda a Congregação”. Cada um se torne capaz de “fazer muito bem, especialmente em favor
da juventude”, usando “de todo meio para progredir na ciência e na virtude”. Ninguém faça
paz com os próprios defeitos. “Todos, no falar, no trabalhar e em nossa atitude mostremo-nos
dignos do nome de salesianos e de filhos de Dom Bosco.” Inspetores e diretores deem às co-
munidades “aquele tom de seriedade que nos é indispensável”, buscando “com doce firmeza
que observem as Constituições e os Regulamentos”, na leitura à mesa, nas saídas de casa, na
regularidade das práticas de piedade, inclusive nos períodos de férias etc.
No apêndice à circular, o padre Rua se congratula com aqueles que nas casas salesianas
promoverão a boa imprensa.
Talvez o padre Rua estivesse consciente de que aquela carta seria seu testamento espiritual.
Estava fundamentada nos relatórios da visita extraordinária de 1908, que lhe permitiram perce-
ber, no conjunto, a situação real das casas salesianas espalhadas pelo mundo. Fizera o confronto
delas com os Regulamentos redigidos pelos Capítulos Gerais e com o ideal de religioso que
cultivava dentro de si. Segregado no próprio quarto, com as pernas doentes, o padre Rua pro-
curava ainda chegar pessoalmente a todos seus filhos e suplicava-lhes que se mostrassem dignos
discípulos de Dom Bosco. Este tinha sido, desde o início, o escopo de seu reitorado.
As últimas semanas do padre Rua
A carta anual do padre Rua aos cooperadores saiu pontualmente no dia 1º de janeiro de
1910.15 No dia 4 de janeiro, o padre Rua aceitou descer para os pórticos de Valdocco e fazer-se
fotografar com o tricórnio na cabeça e os ombros cobertos com a manta.16 “Olhando-o bem –
observava o padre Ceria – mostra no rosto exausto e consumido um ar insolitamente abatido;
os olhos, embora ainda brilhe neles o vigor da alma, parecem invadidos por um véu sutil de
15 Bollettino Salesiano, janeiro de 1910, p. 2-8.
16 Ver essa foto de página inteira em Bollettino Salesiano, maio de 1910, p. 131.
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fraqueza; os lábios quereriam esboçar o sorriso habitual, mas fazem ver somente a contração
muscular, falta a vivacidade que deveria animá-los”.17
O padre Rua já não podia se dirigir para a missa na Igreja de Maria Auxiliadora, mas cele-
brava na pequena capela de Dom Bosco, ao lado de seu escritório. Aquela celebração o cansava
muito, e por isso – particular insólito para ele tão devoto – era obrigado a fazer o agradeci-
mento sentado numa poltrona diante do altar. Numa manhã, no final da Eucaristia, chamou
o fiel enfermeiro Balestra e lhe disse: “Tenho vertigens. Ajude-me a voltar para o quarto”. No
dia 14 de fevereiro, o doutor Battistini, médico habitual do Oratório, constatou uma fraqueza
cardíaca alarmante e o aconselhou a se abster de celebrar e a repousar por quatro ou cinco dias.
No dia seguinte, quis de qualquer forma rezar a missa. Será a última. Na quarta-feira, 16, da
cama, assistiu à Eucaristia celebrada pelo padre Francesia na capelinha. Ao meio-dia se levan-
tou, mas depois de uma hora precisou voltar para a cama. Estava exausto e disse ao salesiano
Balestra: “Pegue o correio e leve-o ao padre Rinaldi. Diga-lhe que se ocupe dele, porque eu não
consigo mais”.
No entanto, acomodado sobre almofadas, ainda recebeu aqueles que desejavam vê-lo. Nas
horas marcadas, fazia a meditação e a leitura espiritual com Balestra, que lia para ele textos em
uso na comunidade.
Os médicos diagnosticaram uma “miocardite senil”, que debilitava inexoravelmente as for-
ças de seu corpo. Mas o espírito permanecia atento e benévolo para com quem o visitava. De
fato, nesses dias, pela sua cabeceira desfilavam cardeais, eclesiásticos ou leigos notáveis, mem-
bros das famílias nobres e também pessoas comuns. Aqueles que conheciam sua virtude, o viam
se elevar a um nível espiritual extraordinário.18 No dia 14 de março, percebendo que o fim se
aproximava, pediu que se fizesse o inventário das estantes e das gavetas de sua escrivaninha. No
dia seguinte, chamou Balestra e lhe ditou o programa diário que queria observar. Ei-lo:
Horário provisório
5h: Despertar
5h20: Missa, comunhão e agradecimento
6h15: Meditação
6h45: Repouso – das 8h às 9h, visita dos médicos e lanche com alguma audiência
9h: Remédio [medicamentos] – Alguma audiência de externos, segundo a conveniência e a possi-
bilidade, e repouso
12h: Almoço e um pouco de conversa
14h: Repouso
15h30: Oração, leitura e alguma distração
16h: Remédio
17 Ceria, Vita, p. 574. Para a narrativa das últimas semanas do padre Rua, sigo, mais ou menos, Ceria, Vita,
p. 575-584, mas tenho presentes também as circulares e os telegramas do padre Rinaldi aos salesianos,
como também a crônica substanciosa em duas partes: “Gli ultimi giorni” e “La morte”, em Bollettino
Salesiano, maio de 1910, p. 133-149, 150-161.
18 Carta mensal do padre Rinaldi aos inspetores e diretores, n. 61, 24 de março de 1910. In: FdR
4076C1-2.
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18h: Repouso e alguma distração
20h: Jantar, orações e preparativos para a noite.19
Já antes de estabelecer aquele regulamento, seus dias começavam segundo um programa
consolidado. Às 5 horas, Balestra batia levemente as mãos e dizia Benedicamus Domino, ao
que o padre Rua respondia Deo Gratias. Devia se preparar para a missa. Por isso, lavava-se e
vestia a veste talar, enquanto a cama era coberta com um lençol branco. Quando não lhe foi
mais possível vestir-se, cobria-se com um grande xale preto para receber dignamente a santa
Comunhão e as visitas. No fim, precisou se contentar com um amplo foulard. Dava muita
importância ao decoro. Portanto, abria o missalzinho e, quando o sino anunciava o início do
santo sacrifício, fazia o sinal da cruz e respondia ao celebrante junto com o coroinha, muito
atento ao desenvolvimento do rito.
No dia 20 de março, a Igreja entrava na Semana Santa. O rosto e as mãos do padre Rua co-
meçaram a inchar. Ele percebeu, de tal forma que na Quarta-feira Santa (23 de março) pediu o
Santo Viático para o dia seguinte. A Eucaristia lhe foi levada pelo prefeito geral, padre Rinaldi,
precedido processionalmente pelos irmãos do Oratório, que levavam nas mãos velas acesas.
Antes de receber a hóstia, o padre Rua fez sinal de que queria falar. Ergueram-no sobre suas
almofadas e falou com voz tão forte que podia ser ouvido nos quartos vizinhos. Suas expressões
foram reconstruídas:
Nesta circunstância, sinto o dever de endereçar-lhes algumas palavras. A primeira é de agradeci-
mento por suas contínuas orações: muito obrigado, o Senhor lhes recompense também por aquelas
que ainda farão.
Quero dizer-lhes outra palavra, porque não sei se terei ocasião de falar-lhes outras vezes reunidos,
todos juntos. Recomendo-lhes que as apresentem também aos ausentes. Eu rezarei sempre a Jesus
por vocês. Espero que o Senhor ouça o pedido que faço por todos aqueles que estão em casa agora
e no futuro. Creio ser muito importante que todos nos façamos e nos conservemos dignos filhos
de Dom Bosco. Dom Bosco, no leito de morte, marcou um encontro com todos: Ver-nos-emos no
paraíso. É esta a lembrança que ele nos deixou.
Dom Bosco nos queria todos seus filhos. Por isso, recomendo-lhes três coisas:
Grande amor a Jesus Sacramentado.
Devoção viva a Maria Auxiliadora.
Grande respeito, obediência e afeto aos pastores da Igreja, e especialmente ao Sumo Pontífice.
É esta a lembrança que também eu lhes deixo. Procurem tornar-se dignos de serem filhos de Dom
Bosco.
Eu não deixarei nunca de rezar por vocês. Se o Senhor me acolher no paraíso com Dom Bosco,
como espero, rezarei por todos das várias casas e especialmente desta.20
Por amor à perfeição, notamos como mais tarde, no dia 1º de abril, o padre Rua pediu
expressamente ao padre Rinaldi que acrescentasse às recomendações do dia 24 de março,
que considerava um testamento espiritual, uma observação significativa em seus lábios:
“Recomende aos irmãos tudo o que disse no dia em que recebi o Santo Viático e recorde-
lhes que será nossa felicidade termos sido fiéis em conservar as tradições de Dom Bosco
19 Esse documento é reproduzido em FdR 2779C9-10.
20 Carta mensal do padre Rinaldi aos inspetores e diretores, n. 62, de 21 de abril de 1910. In: FdR 4076C5.
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e em evitar as novidades”.21 Comentando suas palavras, o cardeal Maffi dirá no discurso
comemorativo: “Palavras breves, mas que revelam todo o mistério e o mundo de uma
alma, que dizem um programa secretamente, sinceramente querido e seguido, que da luz
verdadeira e plena, a luz das agonias, iluminam aquilo que foi para o padre Rua trabalho
incessante e suspiro contínuo”.22
Nenhum estranho tinha sido admitido à cerimônia, a não ser o devoto professor Rodolfo
Betazzi, defensor ardoroso da Ação Católica e apóstolo da moralidade. Tinha pedido como um
grandíssimo favor. Depois, assinou o registro da antecâmara e escreveu: “Feliz por ter assistido
ao Viático de um santo”. Um sobrinho vindo de Roma e os sobrinhos residentes em Turim, que
o visitaram várias vezes, não ousavam perturbá-lo. O padre Rua os fez se aproximarem, um de-
pois do outro, para dizer-lhes alguma boa palavra e saudá-los com um Ver-nos-emos no paraíso!
A morte do padre Rua
No dia 27 de março, dia da Páscoa, pelas 21h30, se manifestaram os sintomas de uma leve
embolia. O padre Rua perdeu a consciência. O médico garantiu aos superiores alarmados que
os sintomas eram passageiros. De fato, o doente voltou a si e recuperou a palavra. Mas as forças
o abandonavam cada vez mais. O padre Rinaldi, então, lhe propôs receber a Extrema-unção.
Respondeu imediatamente: “Com certeza, com certeza!”. Mostrou-lhe seu pequeno ritual e
pediu-lhe que lesse todos os ritos e as orações prescritas para a administração do sacramento.
No dia seguinte, o padre Albera lhe administrou a Unção, na presença de todos os membros do
Capítulo Superior. Constatou-se nele, como já em Dom Bosco, aquele efeito sobre o físico que
muito frequentemente acompanha a administração do sacramento: o doente experimentou
um verdadeiro descanso, que parecia uma melhora geral. Lemos no programa diário ditado a
Balestra a palavra “remédio”. O padre Ceria acredita que se tratava do cuidado para as pernas,
que eram uma só ferida. Deus sabe como o faziam sofrer. No entanto, durante a doença, não
se ouviu nunca pronunciar um lamento. A quem lhe perguntava se sofria muito, respondia
habitualmente com grande calma: “Não, não!”, e às vezes: “Um pouco!”.
O diagnóstico do médico se tornava dia após dia mais alarmante. Sua miocardite piorava.
Não conseguiu mais se alimentar, de tal modo que no sábado, 2 de abril, o padre Rinaldi
anunciou a todas as casas que estava se aproximando o fim.23 Na antecâmara, algumas pessoas
quereriam ainda se aproximar dele. Mas eram mantidas distantes pelo enérgico padre Stefano
Pagliere. Mas, às vezes, o padre Rua fazia sinal para deixar alguém entrar. Foi, parece, o caso
de Giovanni Possetto, o amigo que veio procurá-lo quando tinha explodido o escândalo de
Varazze. O padre Rua apertou-lhe levemente as mãos:
Tenho sempre uma grande dívida, me disse com voz que parecia um murmúrio, lembra-se? Foi
aqui, neste mesmo quarto. Eu sempre rezei por você e pela sua família e agora que estou para deixá-
21 Ibidem, FdR 4076C6.
22 Ceria, Vita, p. 580-581.
23 FdR 2778C7-8.
346
-lo definitivamente quero ainda lhe dizer que quando estiver lá, junto com nosso bom Pai, invoca-
rei sempre sobre o senhor a bênção celeste. Adeus, nosso amigo bom e fiel.24
No dia 1º de abril, na igreja de Maria Auxiliadora, tinha começado um tríduo de orações
pelo padre Rua, diante do Santíssimo exposto. Na tarde do último dia, antes da bênção, parece
que Francesia, dirigindo-se aos jovens e a outros presentes, disse: “Jesus, dá-nos nosso pai,
nosso amigo, nosso benfeitor. Tal graça, Virgem Santa, seria para todos a pérola mais esplên-
dida de vossa coroa!”. Na tarde do dia 4 de abril, o padre Rua chamou seu confessor, que logo
atendeu: “Toma o ritual e leia as orações da recomendação da alma”. Os superiores, avisados,
interromperam a reunião e chegaram imediatamente. Ajoelhados aos pés da cama, respondiam
às ladainhas. O padre Rua, por sua vez, acompanhava tranquilo e sereno.
Pouco depois, a calma o abandonou e entrou numa agitação espiritual que lembrou ao
padre Piscetta, que estava presente, a de Jesus no Getsêmani: “Pai, se é possível, afasta de mim
este cálice”. O padre Rua pediu aos presentes que rezassem ao Senhor para que afastasse dele
a morte ou a tornasse menos pavorosa. “Porque”, dizia, “tenho medo de me apresentar ao
julgamento de Deus, tenho medo de não suportar a agonia”. Naturalmente, o padre Albera
procurou tranquilizá-lo e confortá-lo. E a crise passou.
Na manhã da terça-feira 5 de abril, na capela ao lado do quarto, revezaram-se 8 sacerdotes
para celebrar a missa. À coleta acrescentavam a oração por um moribundo. O padre Rua acom-
panhou atentamente a segunda daquelas missas, celebrada por seu confessor, padre Francesia.
A devoção com a qual recebeu a comunhão, a última de sua vida, tocou quem estava assistin-
do. Pelas 10 horas, pediu que lessem para ele a meditação. Responderam-lhe que não devia se
cansar, mas aceitar a vontade de Deus. Resignou-se somente em parte. Depois de ter recitado
o Veni sancte Spiritus, quis que lhe enunciassem pelo menos os títulos dos diversos pontos da
meditação do dia e as resoluções finais. Depois, recolheu-se por uns dez minutos.
Conservava ainda o espírito lúcido, rezava. Mas em alguns momentos, perdia a consciência.
No fim da tarde, começou a reconhecer as pessoas com dificuldade. Chegando a noite, perdeu
completamente a visão. Parece que a agonia teve início pelas 22 horas. De tanto em tanto per-
guntava se havia chegado a hora da morte. Pela meia-noite adormeceu.
No dia 6 de abril, à 1h30, agitou-se. O padre Francesia lhe sugeriu algumas jaculatórias
que pareceram reanimá-lo. Quando ouviu aquela que Dom Bosco lhe havia ensinado quando
jovem: “Doce Coração de Maria, fazei que eu salve a minha alma”, sussurrou com um fio de
voz: “Sim, salvar a alma... é tudo... é tudo... salvar a alma”. A partir daquele momento não
proferiu mais nenhuma palavra. Entrou lentamente em coma. Depois do despertar da comu-
nidade, os jovens do oratório começaram a desfilar diante de sua cama para lhe beijar a mão.
Vieram também as Filhas de Maria Auxiliadora. O cortejo durou mais de uma hora. Terminou
às 9h37. Então, sem nenhum lamento, sem nenhum movimento, quase sem que os presentes
percebessem, o coração parou de bater e seu pobre corpo ficou sem vida. Os presentes caíram
de joelhos, enquanto o sacerdote, seguindo o ritual, invocava os santos e os anjos para que lhe
viessem ao encontro, acolhessem sua alma e a apresentassem ao trono do Altíssimo.
24 Segundo o relato de Possetto, reproduzido em FdR 2855D12.
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Os funerais do padre Rua
Era um santo! Todos no oratório se comoveram até às lágrimas. Era natural. Mas logo
a dor foi substituída pela certeza de ter adquirido outro protetor no paraíso, um verdadei-
ro santo, um grande santo. A notícia correu de boca em boca, em casa e fora do instituto.
A população começou a afluir para prestar homenagem aos despojos mortais, expostos na igreja
de São Francisco de Sales. O corpo, revestido com o hábito talar, a sobrepeliz e a estola, estava
colocado sobre um pequeno cadafalso, com um crucifixo nas mãos. Os primeiros a vir foram
naturalmente os turinenses.25
No rosto de todos liam-se a admiração e a reverência.26 Queriam vê-lo e tocá-lo em sinal de
veneração. Essa peregrinação piedosa assumiu proporções extraordinárias no dia seguinte, 7 de
abril, depois que a imprensa espalhou a notícia da morte do padre Rua. Na praça Maria Auxi-
liadora se assistia a um vaivém de carruagens e “automóveis”, enquanto uma maré de pessoas
se dirigia para o Oratório e para a igreja de São Francisco de Sales. “Todos queriam tocar no
corpo com terços, medalhas, correntinhas, livros, imagens, lenços, e, com o mesmo objetivo,
muitas senhoras entregavam aos clérigos e aos sacerdotes adidos ao piedoso ofício seus anéis,
muitos senhores os relógios e vários estudantes universitários o livrinho de suas assinaturas.”27
No dia 8 de abril, chegou o momento de colocá-lo no caixão. Depois, o féretro foi transferido
para o santuário de Maria Auxiliadora. Lá continuou o cortejo.
Na manhã do dia 9 de abril, na igreja preparada a luto, começaram os funerais com uma
missa em cantochão (gregoriano), celebrada pelo bispo salesiano dom Giovanni Marenco,
acompanhado por dom Pasquale Morganti, arcebispo de Ravenna, grande amigo do padre
Rua, e pelo dominicano dom Angelo Francesco Scapardini, bispo de Nusco. O padre Rua sem-
pre amou o canto gregoriano. O cadafalso era modesto, sem flores nem coroas, somente 6 velas,
mas a cerimônia foi grandiosa e, ao mesmo tempo, muito recolhida. As diversas associações
ligadas aos salesianos quiseram estar presentes com os respectivos estandartes. A família real foi
representada pela princesa Letizia Bonaparte. “Nunca se viu tanta gente e tanto recolhimento.”
Quando a cerimônia terminou, não somente o santuário, mas os pátios internos do oratório e a
vasta praça da igreja “apresentavam o aspecto de uma festa extraordinária”. À tarde, um cortejo
interminável precedeu e seguiu o féretro do padre Rua pelas ruas de Valdocco. Calcula-se que
100 mil pessoas assistiram apertadas nas laterais das ruas à última passagem do padre Rua pela
cidade que o havia visto nascer e se consumir sem reservas, com admiração de todos. O jornal
Il Momento, na edição do sábado, 9 de abril, escrevia:
Para a sepultura do padre Rua, a crônica vence com sua grandiosidade toda nota de comentário.
Ao lado do caixão do sacerdote humilde estavam todas as representações oficiais das mais altas
autoridades civis, mas, atrás dos cordões militares, que controlavam com dificuldade a multidão
na igreja, como na praça ou nas avenidas, era tamanha a imensa onda de povo que ninguém se
lembra de ter visto coisa igual há muito tempo. E o significado mais comovente da função estava
25 Para os funerais do padre Rua, inspiro-me em Ceria, Vita, p. 585-588, e na descrição circunstanciada
contida no artigo “La morte”, Bollettino Salesiano, maio de 1910, p. 150-161.
26 “La morte”, Bollettino Salesiano, maio de 1910, p. 151.
27 “La morte”, Bollettino Salesiano, maio de 1910, p. 151-152.
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justamente naqueles milhares e milhares de pessoas que levavam um tributo de memória, de reco-
nhecimento, de afeto, de admiração, de veneração.
Suceder Dom Bosco não era tarefa fácil. Conservar ainda, depois de um quarto de século, intensi-
ficada toda a simpatia que o nome de Dom Bosco arrastava atrás de si, irresistivelmente, não podia
ser senão a vitória de uma pessoa humilde e grande como tinha sido o Pai. Ontem, o entusiasmo
espontâneo de Turim pelo padre Rua foi a mais nobre, a mais eloquente, a mais comovida demons-
tração que se pudesse imaginar. Os sinos que tocavam à sua sepultura cantavam a largas notas o
hino de seu triunfo.28
No dia 9 de abril, um carro fúnebre transferiu o féretro da igreja de São Francisco de Sales
para o seminário das Missões Exteriores de Valsalice, a casa salesiana onde repousavam havia
vinte e dois anos os restos mortais de Dom Bosco. Depois de uma última bênção exequial, o
caixão do padre Rua foi colocado num lóculo, escavado ao lado do túmulo de Dom Bosco.
O diretor do Oratório, padre Secondo Marchisio, deu o último adeus ao reitor defunto:
Em nome de todos os filhos do Oratório, e também daqueles que estão espalhados por todo o
mundo, deponho, Pai venerado, sobre teu caixão a saudação extrema do amor. Nós assumimos
hoje, aqui, sobre teu túmulo, o compromisso solene de nos mantermos sempre fiéis aos grandes
ensinamentos deixados para ti e para nós pelo Venerável Dom Bosco e que se resumem no lema
oração e trabalho! Esta é a flor que os filhos depõem sobre o túmulo do Pai.29
28 “La morte”, Bollettino Salesiano, maio de 1910, p. 153-154.
29 “La morte”, Bollettino Salesiano, maio de 1910, p. 156.
349

18.6 Page 176

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Epílogo
A caminho da beatificação
À morte do padre Miguel Rua, como se viu, aqueles que o conheceram ou simplesmente
lhe estiveram próximos, salesianos ou não, chamaram-no santo, convencidos de sua santidade,
como se a Igreja já se tivesse pronunciado. Pietro Fedele, historiador da Universidade de Turim,
disse ao sucessor Paulo Albera que, se estivessem na Idade Média, Valdocco não teria celebrado
uma missa de Requiem, mas teria cantado imediatamente a missa em honra de São Miguel Rua,
canonizado pela voz do povo.1 Mas a Igreja do século XX, pelo menos até ao advento de João
Paulo II, caminhava com pés de chumbo em matéria de beatificação e de canonização.
A ideia de introduzir a causa de beatificação, ventilada em 1910, não tardou a se tornar reali-
dade. No dia 2 de maio de 1922, o cardeal Agostino Richelmy constituiu em Turim o tribunal
eclesiástico para o processo ordinário ou informativo. Foram convocadas vinte testemunhas
diretas e duas de ofício. Sucederam-se 226 sessões, até 20 de novembro de 1928.2 Em 1931,
o cardeal Giuseppe Gamba iniciou o exame dos escritos do padre Rua, tarefa fácil, desde o
momento em que ele não tinha publicado quase nada. Em 1936, o sucessor, Maurilio Fossati,
instituiu um processo particular (de non cultu) para se garantir de que nenhum culto público
tinha sido prestado ao pobre padre Rua.3 O “Decreto para a introdução da causa de beatifica-
ção e de canonização do Servo de Deus padre Miguel Rua, sacerdote da Pia Sociedade de São
Francisco de Sales”, fiel discípulo de Dom Bosco, cujo espírito “pousou sobre ele, como o de
Elias sobre Eliseu”, foi assinado em Roma no dia 15 de janeiro de 1936.4 Anunciava a iminen-
te abertura do processo apostólico, que, iniciado em 10 de novembro de 1936, com 24 teste-
munhas, das quais 4 de ofício, concluiu-se no dia 4 de maio de 1938, depois de 174 sessões.5
Depois veio a guerra, que atrasou tudo. A heroicidade das virtudes do padre Rua, tão evidente
para os leitores dos documentos processuais, foi reconhecida por decreto da Congregação dos
Ritos somente no dia 21 de abril de 1953.6 Era preciso ainda regular a questão dos milagres
atribuídos à sua intercessão: somente a garantia de sua autenticidade permitiria proclamá-lo
1 Ceria, Vita, p. 591.
2 Todas as atas são reproduzidas em FdR 4255C9-4276E10.
3 Esse processo é reproduzido em FdR 4326A7-4329A6.
4 Cf. o decreto reproduzido em FdR 4255A4-7.
5 A “cópia pública” do processo ordinário e do apostólico é reproduzida em FdR 4329A7-4423D5.
6 Cópia datilografada em FdR 4255B1-3.
350
beato. Transcorreram outros dezessete anos para se conseguir, finalmente, o “Decreto sobre os
milagres” (19 de novembro de 1970).7 Estávamos na época de Paulo VI, certamente benévolo
com os salesianos. A beatificação do padre Rua foi celebrada em Roma no dia 29 de outubro
de 1972, cinquenta anos depois da abertura do processo informativo em Turim.8
O discípulo fiel de Dom Bosco
Da superabundância de testemunhos sobre a vida, as virtudes e a morte santa do padre Rua,
brota uma imagem clara. Miguel Rua foi realmente aquele que havia procurado ser, desde a
adolescência, o discípulo fiel de Dom Bosco.9
Do ponto de vista físico, a diferença com Dom Bosco era total: o padre Rua chocava pela
magreza e pela estatura esbelta, segundo os cânones da época (pois, lemos no passaporte de
1908, tinha a altura de 1,68m). O ascetismo rigoroso de seu estilo de vida havia marcado
profundamente seu semblante magro. Vendo-o, vinha à mente o cura d’Ars, São João Maria
Vianney. Mas, quando falava, um sorriso muito suave e cheio de candura iluminava seus traços
e o tornava sedutor. Seus pobres olhos, de pálpebras avermelhadas pelas horas de vigília, bri-
lhavam como os de uma criança e seu olhar penetrava os corações. Sua pessoa não tinha nada
de estudado e artificial, nem na atitude nem nas palavras. Demonstrava a simplicidade típica
daqueles para os quais importa somente o ser, não o aparecer. Possuía uma inteligência supe-
rior, extremamente vivaz. Compreendia tudo muito depressa. A vasta e sólida cultura, ajudada
por uma memória ótima, tinha algo de prodigioso quando se pensa em todas as suas atividades.
Na juventude, vários acreditavam que ele fosse professor universitário. Não lhe faltava fineza e
misturava com muito gosto uma nota de jovialidade na conversa. Ao contrário, demonstrava
pouca imaginação, nenhuma fantasia e, em seu comportamento, uma impressionante estabili-
dade de espírito e de humor. A língua falada e escrita – como se vê pelas circulares – era clara,
polida, em alguns trechos ardente, mas sem impulsos líricos.
Era dotado de sensibilidade extrema e de coração muito afetuoso. Mas foi sempre reservado,
tinha pudor de seus sentimentos. As aulas dos Irmãos das Escolas Cristãs ensinaram-no profun-
damente desde a adolescência. Mostrava-se em toda ocasião extremamente educado, com um
estilo de comportamento seguro e muita distinção no trato. Mesmo sendo filho do povo, fre-
quentou os grandes com desenvoltura. Ainda mais notável foi sua força de vontade no controle
de si, na gestão da vida, do tempo, dos dias, na tensão calma e perseverante para os objetivos
prefixados. Sobretudo, o padre Rua parecia sumamente prudente. Sua grande prudência foi su-
blinhada de modo especial no decreto sobre a heroicidade de suas virtudes (1953). Como ensina
São Lourenço de Bríndisi, escreve o relator, as atitudes indispensáveis à pessoa prudente são três:
7 Esse documento é reproduzido em FdR 4255B4-5.
8 Cf. a reprodução do breve pontifício de beatificação do padre Rua (Roma, 29 de outubro de 1972),
em FdR 4255B6-12.
9 Aqui me inspiro livremente nas páginas de síntese dos dois processos de beatificação; nos capítulos de
Auffray (L’homme et le saint) e de Ceria (Don Rua e Don Bosco); e, sobretudo, num belo texto de J. Aubry,
Les saints de la famille, Roma, SDB, 1996, p. 124-129.
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Antes de tudo, propondo-se um objetivo, saber identificar os meios necessários, úteis, suficientes
e, ao mesmo tempo, mais rápidos e oportunos para a consecução do mesmo, uma vez que uma
pessoa prudente não anda às cegas nem precipitadamente, mas se aconselha e reflete para se ater
sempre ao melhor. Em segundo lugar, saber endereçar para o objetivo perseguido os meios pro-
curados e encontrados. Por isso, uma pessoa prudente procede com atenção e diligência, não age
distraidamente, às tontas ou sem constância. Terceiro, sagacidade e sabedoria em prevenir e evitar
perigos, em afastar surpresas razoáveis, abundando sempre em cautela. Tudo isso [continuava o
relator] o Servo de Deus praticou com precisão e assim, com a ajuda de Deus, dilatou por toda
parte a Sociedade Salesiana, promoveu nos sócios a piedade e o zelo das almas, multiplicou as
expedições missionárias, deu, de coração, seu consentimento a irmãos desejosos de se dedicarem à
assistência dos leprosos, procurou conscienciosamente que nos internatos e nos colégios se culti-
vassem a piedade, o estudo e a disciplina, e, com força sim, mas também com muita afabilidade,
nada descuidou de tudo o que, segundo os ensinamentos do fundador, pudesse redundar para a
maior glória de Deus.”10
Sob seu sábio governo, o número dos salesianos professos passou de 773, subdivididos em
58 casas em 1888, para 4.001, divididos em 387 casas, em 1910.
As provas não o desencorajavam. Muito ao contrário. Durante os anos de seu reitorado, hou-
ve alguns dias de abatimento quando explodiu o problema de Varazze no final de julho de 1907.
Foi também incomparável homem de ação, um chefe que conquistava a confiança e a total
colaboração de todos.
Como observou o relator a propósito da heroicidade das virtudes, o padre Rua pôs toda sua
qualidade a serviço do Reino de Deus. Realizou assim a vocação providencial de continuador
fiel de Dom Bosco. Este deixara aos filhos o lema: “Trabalho e temperança”, que para ele signi-
ficava “colocar-se a serviço dos outros e atividade apostólica intensa, tornada possível pela rejei-
ção de toda procura do próprio interesse pessoal em todos os campos”. O padre Rua acreditou
naquele programa, com precisão e completitude verdadeiramente extraordinárias. Foi, no ver-
dadeiro sentido do termo, um “stacanovista” (que tem apego exagerado ao trabalho). Qualquer
dia seu era cheio, sem um instante de repouso, como se tivesse feito voto de não perder um mi-
nuto. Nunca tirou um dia de férias. “Chegando ao paraíso – disse um de seus filhos no dia se-
guinte da morte –, depois de ter saudado afetuosamente Dom Bosco, seria capaz de perguntar-
-lhe: ‘Há um pouco de trabalho para mim por estes lados?’, e ‘A que hora se faz a meditação?’”.
A temperança, outra pedra angular do programa de Dom Bosco, se expressava nele através
do “culto à Regra”, como se disse. A narrativa de sua vida no-lo ilustrou amplamente. Era
também de vigilância assídua sobre si mesmo para não conceder à natureza a não ser o estrita-
mente necessário. Conta-se que Dom Bosco dissera: “O padre Rua é a Regra viva”. Por nada
no mundo atrasaria por 24 horas a confissão semanal, mesmo à custa de se confessar com um
companheiro de viagem, apavorado com o pedido. Nunca se concedeu uma sesta. Todo dia,
depois do almoço, fazia o recreio com os irmãos, segundo o que estava indicado na Regra.
Depois das orações da noite, observava e fazia observar o grande silêncio religioso. Respeitava
e fazia respeitar as menores prescrições litúrgicas.
10 FdR 4255B2.
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Era temperante na alimentação. Nunca foi visto tomar alimento fora da refeição e, apesar de
ser superior geral, não tolerou nenhum privilégio em seus cardápios. Temperante também no
sono: terminado o dia de trabalho, não se deitava na cama, mas numa poltrona, que, toda noi-
te, era preparada, e se concedia não mais que cinco ou seis horas de sono. Em suma, aprendeu
desde a juventude a não se preocupar consigo, não porque tivesse o gosto da mortificação, mas
para tornar sua carne mais flexível ao serviço do espírito e do amor. De fato, era importante
viver na caridade, como seu Mestre espiritual.
O amor verdadeiro é humilde e desapegado. As duas virtudes evangélicas da humildade e da
pobreza no padre Rua brilharam com um esplendor singular. A humildade era a virtude pre-
ferida: quando estava com Dom Bosco, já observamos, trabalhou duramente permanecendo
na sombra, sem nunca passar para o primeiro plano. Tornado Reitor-Mor, cargo para o qual
se considerava indigno e inadequado, sua única preocupação foi a de não se comportar como
protagonista, mas somente em nome de Dom Bosco, de querer e agir como ele. Quando, du-
rante as viagens, via aproximarem-se as multidões e testemunhar-lhe de mil maneiras estima e
veneração profunda, exclamava: “Como Dom Bosco é amado!”. Sabe-se que conseguiu várias
curas, mas sempre exclamou: “Como Maria Auxiliadora e Dom Bosco são poderosos!”. No seu
cartão de visita nunca se leu outra coisa senão: “padre Miguel Rua”, seguido do endereço.
Quanto à pobreza, fez dela sua companheira amada, demonstrando-se, também nisto, ver-
dadeiro filho de Dom Bosco. Não tinha mais que duas batinas: uma para o verão, outra para
o inverno, ambas usadas até se acabarem, mas sempre muito limpas. A mesma sobriedade
mostrava em seu escritório, como se disse. Quando substituiu Dom Bosco, não quis absolu-
tamente que se mudasse nada nesse quarto abençoado, onde moraria por vinte e dois anos.
Conservou-o tal e qual, pobre e despido de qualquer ornamento. Viajou sistematicamente na
terceira classe e não se permitiu nunca divagações turísticas. Sua circular mais inspirada foi
provavelmente a de 31 de janeiro de 1907, à qual fizemos alusão, que trata da pobreza e está
colocada sob o emblema do “Dom Bosco pobre”.
“Tudo para a maior glória de Deus e para a salvação das almas”: quando não se está atento,
se é levado a ver no padre Rua somente dificuldade e austeridade. Mas à distância de cem anos
de sua morte sabemos que é uma imagem falsa. Como faz observar, com razão, José Aubry, não
se compreenderia nada de sua prodigiosa capacidade de trabalho e de sua ascética pobreza se
fosse esquecida a intimidade divina de seu espírito. Debaixo de um ar hierático, eternamente
tranquilo, aquele homem, na realidade, ardia de paixão, como Dom Bosco: a paixão do amor
de Deus e das almas para salvar. E, se exteriormente podia parecer áspero, na realidade era um
ser mesclado de ternura, impregnado da alegria que Deus sabe dar àqueles que ama.
Sua bondade paterna pelos irmãos era reconhecida por todos. De fato, cada um, do maior
ao menor, encontrava nele um coração compreensivo, preocupado em saber das capacidades, da
maturidade e do futuro das pessoas, exercendo maravilhosamente a arte da correção, traduzindo
sua estima e seu afeto em gestos delicados de paciência e de atenção refinada. Respondia às cartas
que recebia e, na maioria das vezes, as assinava com a expressão: “Seu afeiçoadíssimo amigo”.
Mas é preciso insistir sobre a piedade e sobre a vida interior, mais intuída que conhecida,
pois nunca foi dado a confidências. Sua piedade era muito simples, sem êxtases, compartilhada
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com os irmãos nas práticas comunitárias cotidianas: orações vocais, meditação, santa missa. No
entanto, impressionava, porque sua fé viva fazia dela uma oração verdadeira (não uma fórmula
ou um rito), isto é, um verdadeiro encontro com Deus, uma adoração filial de todo o ser, uma
adoração visível no recolhimento e às vezes no sobressalto do semblante. Para julgar sua capa-
cidade de se recolher em oração, era suficiente vê-lo durante o agradecimento depois da missa,
ajoelhado na sacristia, com o rosto entre as mãos ossudas, enquanto dialogava com seu Deus.
A oração enchia totalmente seus dias. O espírito de oração o mantinha unido a Deus em todo
lugar, durante o trabalho, nos encontros, nas viagens. Quando estava em Valdocco, o último
ato do dia era uma visita ao santuário de Maria Auxiliadora no coração da noite: entrava pelo
coro, de onde podia olhar o tabernáculo e o quadro da Virgem.
Em suma, apesar da diferença de caráter, o padre Rua foi um discípulo fiel e um digno con-
tinuador de Dom Bosco. Quando Paulo VI, em 1972, o proclamou beato na basílica de São
Pedro, celebrou-o justamente com este título:
Por que o padre Rua é beatificado, isto é, glorificado? É beatificado e glorificado exatamente por-
que sucessor, isto é, continuador de Dom Bosco: filho, discípulo, imitador. Ele fez, com outros,
sabe-se muito bem, mas primeiro entre eles, do exemplo do Santo uma escola, de sua obra pessoal
uma instituição espalhada, pode-se dizer, sobre toda a terra; de sua vida uma história, de sua regra
um espírito, de sua santidade um tipo, um modelo; fez da fonte uma corrente, um rio. [...] A
fecundidade prodigiosa da Família Salesiana, um dos maiores e mais significativos fenômenos da
vitalidade perene da Igreja no século passado e no nosso, teve em Dom Bosco a origem, no padre
Rua a continuidade. Foi esse seu seguidor que, desde os humildes inícios de Valdocco, serviu à obra
salesiana em sua virtualidade expansiva, compreendeu a felicidade da fórmula, desenvolveu-a com
coerência textual, mas com sempre genial novidade. O padre Rua foi o mais fiel, por isso o mais
humilde e, ao mesmo tempo, o mais valoroso dos filhos de Dom Bosco. [...] Inaugurou uma tradi-
ção. [...] Ele ensina aos salesianos a permanecer salesianos, filhos sempre fiéis de seu fundador.11
11 O texto completo da homilia de Paulo VI foi publicado no Bollettino Salesiano, dezembro de 1972,
p. 10-13.
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CRONOLOGIA
1837 – Nascimento, em Turim, de Miguel Rua, quarto filho de Giovanni Battista e de Giovan-
na Maria Ferrero (9 de junho). Batismo (11 de junho).
1845 – Miguel conhece Dom Bosco (setembro).
1848 – Começa a frequentar a escola de Santa Bárbara dirigida pelos Irmãos das Escolas Cristãs
(outubro).
1850 – Começa o estudo do latim. Aulas do padre Pietro Merla (outubro).
1851 – Escola do professor Carlo Bonzanino (outubro).
1852 – Vestidura do hábito eclesiástico nos Becchi (3 de outubro). Escola do padre Matteo
Picco (outubro).
1853 – Admissão ao estudo da filosofia no seminário de Turim (julho).
1854 – Participa da constituição de um primeiro embrião de sociedade apostólica ao lado de
Dom Bosco (26 de janeiro). Enfermeiro dos doentes de cólera (agosto).
1855 – Votos temporários nas mãos de Dom Bosco (25 de março). Inicia os estudos de teologia
no seminário (outubro).
1858 – Viagem a Roma com Dom Bosco (18 de fevereiro – 16 de abril).
1859 – Assembleia de fundação da Sociedade de São Francisco de Sales. Miguel é eleito diretor
espiritual (18 de dezembro).
1860 – Ordenação sacerdotal pela mão de dom Balma (29 de julho).
1862 – Primeiros votos religiosos (14 de maio).
1863 – Diretor do pequeno seminário São Carlos de Mirabello (outubro).
1865 – Prefeito geral da Sociedade Salesiana (18 de setembro).
1869 -1874 – Mestre dos noviços sem ter o título.
1883 – Com Dom Bosco em Paris (maio), depois em Frohsdorf (julho).
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1884 – Vigário geral por vontade de Leão XIII (novembro).
1885 – Anúncio oficial de seu título de vigário geral (24 de setembro, 8 de dezembro).
1888 – Depois da morte de Dom Bosco (31 de janeiro) é reconhecido como Reitor-Mor pela
Santa Sé (11 de fevereiro).
1895 – Peregrinação à Terra Santa (16 de fevereiro – 29 de março). Congresso dos Cooperado-
res salesianos em Bologna (23-25 de abril). Depoimentos no processo informativo de
Dom Bosco (24 de abril – 10 de julho).
1898 – O Capítulo Geral reelege o padre Rua Reitor-Mor (30 de agosto).
1899 – Decreto do Santo Ofício que proíbe os superiores de confessar seus dependentes na
cidade de Roma (5 de julho).
1900 – Consagração da Sociedade Salesiana ao Sagrado Coração de Jesus (31 de dezembro).
1901 – Decreto do Santo Ofício que proíbe os superiores salesianos de confessar seus de-
pendentes (24 de abril). O padre Rua em vão tenta ganhar tempo. Durante o nono
Capítulo Geral, decisão de criar os estudantados de teologia e de impor aos clérigos um
tirocínio prático de três anos depois da filosofia (2 de setembro).
1903 – Coroação do quadro e da estátua de Maria Auxiliadora em Turim (17 de maio).
1904 – Nova fórmula para o décimo Capítulo Geral, só com os inspetores acompanhados de
seus delegados inspetoriais (23 de agosto – 13 de setembro).
1905 – Pio X confia ao padre Rua a construção da igreja de Maria Libertadora no bairro do
Testaccio, em Roma.
1906 – O padre Rua intervém na greve da empresa Poma, em Turim (22 de maio – 19 de ju-
lho). Conforme o decreto Normae secundum quas, de 1901, e apesar da resistência das
irmãs, acontece a separação efetiva entre o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora e a
Sociedade Salesiana, acompanhada de novas Constituições (outubro).
1907 – Decreto Supremus Humanae Familiae: Dom Bosco é declarado venerável (28 de julho).
Explode o escândalo de Varazze (final de julho).
1908 – O padre Rua projeta uma visita extraordinária a todas as casas salesianas (janeiro).
Viagem ao Oriente (3 de fevereiro – 20 de maio). Depoimentos do padre Rua no
processo informativo de Domingos Sávio (26 de junho – 20 de julho). Consagração da
igreja de Maria Libertadora em Roma (29 de novembro). Terremoto de Messina (28
de dezembro).
1909 – Depoimentos do padre Rua no processo apostólico de Dom Bosco (11 de junho – 20
de novembro). Sua saúde decai rapidamente.
1910 – Morte do padre Rua em Turim (6 de abril).
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Esta obra foi composta pela divisão
de produção da Editora Salesiana e impressa
na gráfica das Escolas Profissionais Salesianas.