CG28|pt|Que tipo de Salesiano para os jovens de hoje?







PERFIL DO SALESIANO DE HOJE

Que tipo de Salesiano para os jovens de hoje?


RECONHECER

Seus olhos se abriram e eles o reconheceram (Lc. 24:31)


UM MUNDO EM CHAMAS

O mundo de hoje está em chamas… o que estamos fazendo para essa situação?”i

Estas palavras são atuais, hoje como quando foram pronunciadas por Santa Teresa de Ávila em 1577. Vivendo no tempo da reforma, da mudança das paisagens políticas e religiosas, como ela responde a isso? Acendendo outro fogo, recolhendo ao seu redor mulheres que viveram uma vida de contemplação através do desenvolvimento da amizade com Cristo.

Que tipo de carmelita estava buscando?

Mulheres determinadas, tão determinadas que assustassem os homens”; ao final, ela escreve: “foram as mulheres que permaneceram fiéis ao pé da cruz quando a maior parte dos homens tinha fugido”.ii Sabia que precisavam dessa perseverança e resistência para levar a sério o caminho interior da oração contemplativa, entendida como amizade com Cristo. A compreensão teresiana da oração como amizade com Cristo está na base da compreensão salesiana da oração com o coração a coração. São Francisco de Sales fala de Deus como “amigo do nosso coração”,iii e Dom Bosco vive os Exercícios Espirituais como “uma série de meditações e instruções que nos levam à amizade de Deus”.iv É esta amizade com Cristo que somos chamados a cultivar e compartilhar com os jovens.


Hoje o mundo está em chamas. Também nós vivemos em tempos difíceis, onde se abriu no mundo ocidental uma inquietante ruptura entre a cultura contemporânea e a nossa tradição de fé cristã, descrita por São Paulo VI como “o drama do nosso tempo”.v Isso é verdade, de modo eminente, na ruptura entre a visão e cultura religiosa que herdamos e a experiência vivida por muitos jovens de hoje. Vivemos uma época de mudanças velozes, de secularização e incerteza. Muitos países, antigos bastiões de valores cristãos, passaram por uma mudança tão rápida que “há um profundo redesenho da nossa paisagem moral”.vi As recentes queimadas amazônicas captam vivamente as ameaças ao nosso mundo de hoje: a mudança climática, o remanejamento de povos, os refugiados, a instabilidade política, a limpeza étnica, as guerras, as perseguições religiosas.


Reconhecendo-o como o mundo dos jovens de hoje, perguntemo-nos:


Que tipo de salesianos para os jovens de hoje?


MANSIDÃO E CARIDADE

Se a “determinação” era a qualidade suprema exigida das Carmelitas para que perseverassem no caminho da contemplação, o que é o fundamental para nós Salesianos? Voltemos ao sonho dos nove anos: “Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos.vii O aspecto distintivo da espiritualidade salesiana é a mansidão e a caridade (trabalhando na comissão pré-capitular, fiz uma pesquisa nos documentos recebidos das Inspetorias e encontrei apenas uma referência à mansidão. Achei muito interessante). Como Salesianos estamos enraizados na mansidão e na caridade ou fomos desenraizados? Não esqueçamos os propósitos de Dom Bosco antes da ordenação: “A caridade e a doçura de São Francisco de Sales me guiem em tudo”.viii Ele escolhe especificamente São Francisco de Sales como patrono “porque os que desejam dedicar-se a esse gênero de trabalho devem ter este Santo como modelo de caridade, de boas maneiras”.ix Vemos aqui que há uma afinidade espiritual entre os dois grandes santos, afinidade que roda ao redor da doçura e da bondade: Dom Bosco está em ressonância com São Francisco de Sales, o que explica porque não se trata de uma escolha arbitrária, mas de um discernimento dos espíritos, revelando o elemento carismático que pertence especificamente ao carisma salesiano.

Como São Francisco de Sales nos recorda: “Não há nada de tão forte como a doçura e nada tão doce como a verdadeira força”.x Assim, mais tarde, no sonho, quando Maria aconselha o jovem Bosco, diz-lhe: “torna-te humilde, forte, robusto”. Assim fazendo, ensina-nos a ligação entre doçura e humildade. Trata-se simplesmente da elaboração da doçura salesiana que se inspira em Jesus como “doce e humilde de coração” (Mt 11,29). São Francisco de Sales afirma:

Nosso Senhor tinha fundado a sua doutrina nestas palavras: Sede meus discípulos porque eu sou doce e humilde de coração. Por que Deus nos atrai? Porque é gentil: o espírito de doçura é o espírito de Deus”. xi


A doçura salesiana (douceur) é o espírito das bem-aventuranças, um dom do Espírito que nos permite viver à imitação da humildade e da doçura de Jesus. Não se trata, como é mal-entendido às vezes, de um modo de ser gentil! Esta doçura requer domínio de si e disciplina porque exige que “suprimamos os movimentos de raiva, que sejamos gentis, cordiais e cheios de mansidão para com todos, que perdoemos os nossos inimigos e soframos o desprezo”. É a doçura das Bem-aventuranças. Não surpreende, pois, que São Francisco de Sales conclua que essa doçura “é difícil, especialmente para quem não é uma pessoa de grande oração”. xii Se há falta de doçura em nossas comunidades, entre os jovens e os nossos colaboradores, não poderia ser esse um reflexo da falta de oração? Levanto simplesmente a questão. Como Salesianos, somos chamados a ser gentis, humildes e fortes: isso será possível sem a oração? A doçura, enfim, é uma sintonia da nossa vontade com Jesus manso e humilde de coração. Dom Bosco escreve:

Meus filhos, em minha longa experiência tive que me convencer muitas vezes desta grande verdade: [Que] é mais fácil impacientar-se do que conter-se, e ameaçar um jovem do que o persuadir... Devemos ser firmes, mas gentis e pacientes com eles… Este é método que Jesus usava com os apóstolos. Suportou a ignorância deles, a aspereza deles e até a infidelidade deles. Tratava os pecadores com uma gentileza e um afeto que fazia com que alguns ficassem chocados, outros escandalizados, e outros ainda a esperar na misericórdia de Deus. E assim nos disse para sermos gentis e humildes de coração. xiii


Como seriam as nossas comunidades salesianas se a doçura reinasse sobre a raiva? Como seria a nossa relação com os jovens se fosse caracterizada por uma doçura sem abusos verbais ou uma raiva incontrolada e não elaborada? Como seria a nossa cooperação com os leigos sem estouros de raiva ou agressões passivas? Façamos nossa a oração de São Paulo pelos Salesianos de hoje:

Sede sempre humildes e gentis. Sede pacientes uns para com os outros, suportando-vos reciprocamente com amor (Ef. 4,2).














INTERPRETAR

Este é o meu Filho, o eleito; escutai-o (Lc 9:35)


Que tipo de Salesianos para os jovens de hoje?

Se esperais uma resposta à pergunta, ficareis frustrados! Como bons irlandeses, respondamos às perguntas fazendo outras perguntas! Refletindo sobre os dados recebidos das Inspetorias a respeito do perfil dos Salesianos de hoje, a comissão notou uma dupla tendência ou tentação:

  1. Apresentar uma visão idealizada do Salesiano como uma espécie de super-homem, um ideal impossível que ninguém jamais poderia alcançar; ou

  2. apresentar uma imagem um tanto negativa que pareceria evidenciar as nossas falências e a incapacidade de viver à altura do ideal.

Como nos recorda São Francisco de Sales, a verdade não está nos extremos – devemos ter uma perspectiva equilibrada que deriva da humildade que busca a verdade – a verdade é que tanto possuímos valores como defeitos; Deus nos abençoou com dons para o seu serviço, mas resta sempre um espaço para desenvolvermos e utilizarmos mais esses dons.


Não nos esqueçamos que a pergunta:

Que tipo de salesianos para os jovens de hoje?

não é dirigida a nós como indivíduos, mas, sobretudo, como Salesianos a quem é confiada uma missão comunitária pelos jovens. “Cada um de nós é chamado por Deus a fazer parte da Sociedade Salesiana... (cada um de nós) coloca sua pessoa e os próprios dons a serviço da vida e da ação comum” (Const. 22)... O amor fraterno, a nossa missão apostólica e a prática dos conselhos evangélicos são as ligações que nos unem e reforçam constantemente a nossa comunhão. Tornamo-nos, dessa forma, um só coração e uma só alma para amar e servir a Deus e ajudar-nos uns aos outros (cf. Const. 3 e 50). A pergunta interpela-nos como Salesianos que vivemos, trabalhamos e rezamos juntos em comunidade. Não é uma pergunta que busca o Salesiano ideal (que, em todo caso, não existe); nem um Salesiano super-homem; também não é uma pergunta que nos pede para fazer uma selfie salesiana! A pergunta não se refere à imagem, ao modo com que vemos a nós mesmos ou o modo com que os outros nos veem. A pergunta é sobre a nossa identidade de Salesianos. Parece-me haver uma tríplice ênfase na pergunta: Salesianos – jovens – hoje.


Voltemos agora à pergunta: Que tipo de Salesianos para os jovens de hoje?

A nossa pergunta vai aos jovens? A nossa pergunta vai aos nossos colaboradores e aos membros da Família Salesiana? Perguntamo-lo a nós mesmos? Há muitas respostas e expectativas diversas, mas o que dizer de Deus? Creio sinceramente que esta pergunta mude significativamente, quando a dirigimos a Deus e lhe perguntamos:

Senhor, que tipo de Salesianos para os jovens de hoje?

Inicialmente, pode parecer que eu esteja apenas jogando com as palavras, mas muda notavelmente a nossa atenção se nos dirigimos ao Senhor com esta pergunta. Por que? Porque a atenção não é mais sobre nós mesmos. Restituímos o centro a Deus e somos convidados a escutar e refletir, como Maria, para que seja Ele a ensinar-nos. Não nos é pedido para encontrar a resposta, mas nos é pedido para acolher a resposta d’Ele. Coloca-nos, como Maria, na posição de receptividade em que buscamos a sua vontade e nos rendemos a ela. Justamente como Dom Bosco, a quem, por intercessão de Maria, foi mostrada a resposta no sonho dos nove anos “Eis o teu campo, onde deves trabalhar...”. Também nós, como Salesianos de hoje, precisamos receber a nossa missão do Senhor. Não resta dúvida de que virão muitas opiniões, expressas durante o Capítulo, mas esperamos levar estes pontos de vista na oração para que o Senhor nos surpreenda com a sua perspectiva.




Senhor, que tipo de salesianos queres para os jovens de hoje?


O que Deus espera de nós? Sabemos o que Deus quer que sejamos? Deixamos que Deus nos mostre o seu campo de trabalho como fez com o jovem Bosco? Quando levo esta pergunta à oração: Senhor, que tipo de salesianos para os jovens de hoje? não consigo chegar a uma resposta, mas sinto um convite: Vem a mim. Isso tem sentido porque se quisermos aprender de Jesus, manso e humilde de coração, devemos primeiramente responder ao seu convite: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos e eu vos darei repouso” (Mt 11,28-30). Só então poderemos aprender d’Ele. Responder ao convite do Senhor é o primeiro passo, inegociável, para descobrir que tipo de salesianos para os jovens de hoje? Quando fico com este convite – Vem a mim – segue um convite mais profundo – Permanece em mim – “Permanecei em mim e eu em vós” (Jo 15,4). Só se formos fiéis a este convite, como Dom Bosco, descobriremos que “nisto é glorificado o meu Pai, que produzais fruto e sereis meus discípulos” (Jo 15,8).

Parece-me, biblicamente, que há sempre um passo a dar antes de poder ver e reconhecer. Esse passo é escutar a Palavra de Deus. Se tomarmos os dois discípulos de Emaús, que estão abatidos porque tinham esperado e suas expectativas não foram realizadas, não são capazes de ver ou reconhecer o Senhor. Somente quando conversam com ele, ouvindo a Palavra, eles o escutam e depois “seus olhos se abrem e o reconhecem” (Lc 24,31). Em suma, precisamos ouvir antes de poder ver; precisamos ouvir a Palavra, e só então poderemos interpretar e entender.


APRENDER A ESCUTAR


Se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças,

não entrareis no reino dos céus (Mt 18,3)


Para nós Salesianos, seguindo os passos de Dom Bosco, o mundo dos jovens é um lugar privilegiado onde encontramos Deus. É a nossa ‘sarça ardente’ onde Deus se nos revela, mas, como Moisés, devemos tirar as sandálias, afastar-nos das nossas coisas para ver Deus que faz algo de novo: “Irei ver esse espetáculo surpreendente”. Como Moisés, precisamos deixar-nos atrair por Deus, ter um sentimento de admiração. Por isso é tão importante para nós escutar os jovens, mas – coisa ainda mais importante – devemos escutar o que Deus nos diz através deles.


São os jovens, sobretudo os pobres e os mais necessitados, que nos ensinam a ser como crianças. Se quisermos “passar pela mudança de coração” e “ser como crianças”, devemos, então, aprender a receber de Deus. O nosso Deus gosta de dar. Vejamos, agora, a questão de uma perspectiva completamente diversa. E se Deus nos fizesse a pergunta:


Irmãos Salesianos, o que quereis que vos dê hoje?


O que pediríeis? É a mesma pergunta que Deus fez a Salomão: “Pede o que te devo conceder” (1Rs 3,5). Pergunto-me quantos de vós responderiam como Salomão: “Senhor, concede-me um coração dócil (um coração que escuta)... para eu saber fazer justiça ao teu povo e distinguir o bem e o mal” (1Rs 3,9). Sem um “coração que escuta” não podemos entrar no reino do Espírito; sem o “coração que escuta” não podemos ver o plano de Deus, porque se não escutamos a Palavra, não veremos e os nossos olhos não poderão se abrir.


Escutamos várias vozes durante os nossos capítulos inspetoriais, mas Deus nos convida agora a escutar ainda mais profundamente o Capítulo Geral. É uma “provocação” a cada um de nós. É a voz do Espírito que nos impele a nos questionarmos, a “examinar as nossas obras”, a “rever”, a “arrepender-nos e converter-nos”. “Quem tem ouvidos, escute o que diz o Espírito”. É o Espírito que fala também a nós e nos convida a escutar (cf. Ap 2,1-29).xiv


Maria, Esposa do Espírito Santo, que nos foi dada como mãe e mestra, é o nosso exemplo. Ela nos ensina a preparar-nos para receber um “coração que escuta”, porque meditou todas essas coisas em seu coração. Rezemos para que, por intercessão de Maria, recebamos a sabedoria do Espírito Santo que nos guie enquanto tiramos do (nosso) tesouro “coisas novas e coisas antigas (Mt 13,52).


É interessante notar que Salomão recebe o seu “coração que escuta” enquanto dorme; São José descobre a vontade de Deus e muda os seus planos quando é visitado por um Anjo no sonho. Temos inumeráveis exemplos de Deus que se revela a Dom Bosco em seus sonhos enquanto dorme. Talvez devêssemos passar menos tempo a falar e mais tempo a dormir neste Capítulo! Parece-me que quando dormimos, resistimos menos a Deus. Às vezes, são justamente as nossas palavras e discussões que criam obstáculo ao que Deus nos quer dizer. Um “coração que escuta” permite-nos pôr de lado as nossas agendas para receber a direção de Deus. Se e quando escutamos Deus, o script muda. Não caminhemos mais segundo as nossas expectativas, mas descubramos que Deus nos oferece possibilidades ainda maiores de quanto pudéssemos imaginar. Possibilidades que jamais estiveram no nosso script original.


Quando falamos já sabemos o que queremos dizer, mas quando realmente escutamos, nos transformamos, porque podemos aprender algo de novo. A espiritualidade salesiana oferece-nos o seguinte desafio: Escuto para responder ou para entender? Como nos recorda o Papa Francisco:

Somente quem está disposto a escutar é que tem a liberdade de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente (…). Desta forma, está realmente disponível para acolher uma chamada que quebra as suas seguranças, mas leva-o a uma vida melhor, porque não é suficiente que tudo corra bem, que tudo esteja tranquilo. Pode acontecer que Deus nos esteja a oferecer algo mais e, na nossa cómoda distração, não o reconheçamos.xv


ESCOLHER

A mãe diz aos servos: "Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5)


é capaz de dirigir-se aos servos graças ao seu “coração que escuta”. Ela é capaz de refletir sobre os acontecimentos da vida, ver e responder com compaixão aos esposos que tanto precisam disso, e encaminhar os servos ao seu Senhor e Mestre. É o mesmo esquema do sonho de Dom Bosco, quando Ela lhe mostra o seu campo de trabalho. Como Dom Bosco, também nós somos convidados por Ela a cultivar um “coração que escuta” para discernir o projeto de Deus para nós. O período de espera pode ser difícil para nós Salesianos que gostamos de ser ativos. Contudo, é uma passagem essencial no processo de discernimento e espera nesse lugar que não conhecemos. Nesse lugar “não desejamos nada, não pedimos nada, não recusamos nada” (São Francisco de Sales). Todavia, tendo recebido as sugestões do Espírito Santo, o nosso coração que escuta, como Maria, começa a ver, e nós somos convidados a responder com compaixão. A nossa espera transforma-se em ação com o mesmo zelo do amado do Cântico dos Cânticos que “percorrerá o caminho do amado”: a espera ansiosa é substituída pelo fazer a vontade de Deus.


Voltemos a um episódio na vida de Jesus. Os discípulos vão até ele e lhe dizem: “Todos te buscam!”. Como Ele responde? Não da maneira que esperam: “Vamos a outros lugares, às aldeias próximas, para que eu pregue também ali. Na verdade, foi para isso que eu vim”. Por que não fica com aqueles que receberam há pouco a boa-nova? A resposta está no que fez antes de responder aos seus discípulos: “De madrugada, quando ainda estava escuro, saindo de casa retirou-se num lugar deserto e ali rezava” (Mc 1,35). É a oração ao seu Pai, que permite a Jesus ter “um coração que escuta”, discernir a vontade do Pai e deixar-se caminhar na missão do seu Pai. Talvez, para nós, Salesianos, jamais deveríamos usar a palavra discernimento sem que ela fosse precedida da palavra orante. Enfim, o discernimento não é apenas argumentações racionais. Recolher informações, compreender o contexto, escutar e analisar a situação dos jovens é importante, mas não basta. Não podemos chegar ao projeto de Deus para nós num nível puramente racional de reflexão e discussão. Exige-se a oração. Em especial, a oração contemplativa de onde nasce a nossa missão. O discernimento, para nós, é sempre um discernimento orante.


DISCERNIMENTO ORANTE


A fidelidade à oração permitiu a Dom Bosco retornar ao seu coração e discernir as inspirações que o Espírito de Deus inspirou nele. O sonho recorrente do Pastor foi uma pedra miliar da sua espiritualidade, mas mesmo três anos depois da ordenação, no último ano do Colégio Eclesiástico, ele nutriu o desejo de entrar entre os Oblatos de Maria Imaculada e dedicar a sua vida à pregação dos Exercícios Inacianos.xvi Júlio Barberis anota que Dom Bosco apresenta esse projeto para discernimento ao P. Cafasso, que rejeita completamente a sua proposta. Ele o vive como “um terrível golpe”. O Padre Cafasso, porém, também ele homem de oração, sintonizou-se com a inspiração mais profunda de Dom Bosco, que se manifestou nos seus sonhos.


Muito antes, em seu primeiro ano de filosofia, Dom Bosco contara ao Padre Cafasso um sonho que o tinha deixa perplexo. Via-se já Padre numa alfaiataria. Não costurava roupas novas; remendava roupas gastas e juntava um grande número de retalhos de pano.xvii Dom Bosco já falara ao Padre Cafasso da sua “inclinação” a trabalhar com os jovens como “um estímulo interior”: “Sinto-me inclinado a trabalhar pelos jovens...”. “Neste momento me parece encontrar-me no meio de uma multidão de meninos que me pedem ajuda”.xviii É na escuta desse “impulso interior” ou “voz” que o Padre Cafasso toma ciência de que ele é chamado por Deus para uma missão específica (não dos Franciscanos ou dos Oblatos de Maria Imaculada). O simbolismo de consertar roupas gastas não se perde no Padre Cafasso que vê claramente nele o seu chamado aos jovens pobres e abandonados.

Não compliquemos as coisas. É bastante simples. É muito claro que Dom Bosco participa da missão do Bom Pastor “para buscar a ovelha perdida e reconduzir ao rebanho a que se perdera, enfaixar a ferida e curar a que estava doente” (Ez 34,16). É o mesmo Senhor que nos consagrou “com o dom do seu Espírito e nos envia para sermos apóstolos dos jovens” (Const. 3).


CONTEMPLATIVOS NA AÇÃO


Se me permitis, compartilharei convosco um testemunho pessoal. Depois do meu primeiro ano como Inspetor, iniciei os Exercícios Espirituais anuais “dirigidos” (a propósito, recomendaria vivamente os Exercícios Espirituais dirigidos, além dos nossos Exercícios salesianos, como opção que seria extremamente útil para a formação permanente). Não muito tempo depois dos Exercícios Espirituais dirigidos, contudo, fui perturbado pela seguinte pergunta:

Tornei-me mais servo do que amigo de Deus?


Depois de alguns dias de retiro, como fazia muito esforço para entrar num modo mais contemplativo, fui fazer um passeio às margens do mar. Vi um cão na praia, que vinha na minha direção e arrastava o seu infeliz proprietário atrás de si. Ele continuou a sua viagem, mas ficou-me o pensamento: Teria sido talvez como esse cão em grande parte do meu primeiro ano como Inspetor? Continuei a nutrir esse pensamento durante a minha viagem de volta para casa, que foi muito mais agradável pois agora tinha o vento às costas, que me impelia. Improvisamente, um pequeno grupo de gaivotas surgiu diante de mim esvoaçando sem esforço pouco acima da cabeça. Admirava-as e invejava-as. Como era fácil para elas deixar-se levar pela brisa e deixar-se transportar. Que diferença em relação ao cão ofegando na coleira. O contraste não ficou sem efeito sobre mim. Passara grande parte do meu primeiro ano querendo fazer as coisas acontecerem, mas a operosidade não garante que estejas fazendo a vontade de Deus. Não tem sentido bater as asas freneticamente ou puxar a coleira quando se vai na direção errada. Esse fato provocou-me as seguintes perguntas:

Estou realmente seguindo o Senhor ou estou correndo à frente, pedindo que o Senhor me siga?

De quem é o reino que se está construindo? De quem são os planos que estão sendo realizados?

Entendi logo que devia descer da esteira rolante do ativismo salesiano onde estava procurando que as coisas acontecessem para, então, aprender a ser levado pela brisa do Espírito e deixar que a vontade de Deus seja feita. Para que isso acontecesse, devia fazer uma opção: devia escolher dar prioridade a dois períodos de meditação todos os dias, um pela manhã e outro à noite.


Se vivemos da fumaça da análise, do planejamento e do centrar-nos nos objetivos, será muito mais difícil para nós captar a brisa do Espírito. Ela requer um “coração de escuta”, um espírito contemplativo. Não podemos fazer que isso aconteça, mas podemos dispor-nos mediante a meditação e a contemplação a receber um “coração que escuta”. A passagem da análise à consciência requer um espaço interior diferente. É um modo contemplativo que não se apressará, mas que aprende a esperar o ritmo de Deus e o tempo de Deus. Sem isso, corremos o risco de elaborar projetos e objetivos que são nossos e não de Deus. Não fazemos discernimento fora dos nossos objetivos. É preciso um espaço de escuta onde, para nossa surpresa, descobrimos que Deus tem os seus planos para nós. Quando Davi disse que desejava construir o templo para o Senhor, o profeta Natã estava inicialmente de acordo. Contudo, depois que repensou sobre isso no sonho (notai novamente que Deus irrompe quando somos menos resistentes) transmitiu a mensagem de Deus: quem és tu para construir uma casa para mim? Eu vou construir uma casa para ti e para os teus pais (cf. 2Sm 7,10-11).


A OPÇÃO CONTEMPLATIVA


Como disse anteriormente, não podemos criar um “coração que escuta” porque é um dom de Deus, o dom da contemplação, mas podemos preparar o nosso coração para recebê-lo através da meditação e da contemplação. Só assim, como aconselha São Francisco de Sales, podemos “pertencer a Deus em meio a tanta operosidade”. Se Jesus, cansado pela sua missão, sentiu a necessidade de retirar-se para comunicar-se com o Pai na oração, então, certamente, também nós devemos fazer o mesmo. Se São Francisco de Sales desde seus primeiros anos de estudo desenvolveu a prática contemplativa do “sono sagrado” para escutar o batimento do coração de Deus, não deveríamos também nós fazer o mesmo? Quando lhe foi perguntado quanta meditação era necessário quando se está empenhado no trabalho pelo Senhor, ele respondeu: “É necessária meia-hora, mas se estás ocupado, então, uma hora”.


O TESTEMUNHO DE DOM BOSCO


E Dom Bosco? O Beato Felipe Rinaldi recorda: “Se queres viver segundo o espírito de Dom Bosco jamais deves perder de vista a sua vida interior... continuamente unido a Deus na oração”. Dom Bosco privilegiou os momentos de comunhão solitária com Deus, encorajou retiros e períodos de silêncio entre os seus meninos, e fazia anualmente os Exercícios Espirituais no Santuário de Santo Inácio.xix O cardeal Cagliero afirma eloquentemente: “O amor de Deus brilhava no seu rosto e de toda a sua pessoa e de todas as palavras que vinham do seu coração quando falava de Deus no púlpito ou no confessionário, em conferências públicas ou privadas, ou em conversas amigáveis. Esse amor foi o único desejo do seu coração e o desejo mais ardente de toda a sua vida”.xx


Quando falava de Deus… esse amor era o único desejo do seu coração. É óbvio que Dom Bosco comunicava-se com um Deus vivo porque vivia numa relação vital com Deus. Isso só é possível através da oração como amizade com Cristo que alimenta o ardor entre nós. Sem essa intimidade alimentada pela oração “...Deus desaparece ao longe. Ele torna-se lentamente uma “ideia” sem sentido e sem vida... Se deixamos de rezar por um longo período de tempo, Deus “morre”!... não em si mesmo, mas morre nos nossos corações. Deus “morre” como uma planta seca que esquecemos de regar”.xxi


O respiro interior da oração e o respiro exterior da atividade permitiram a Dom Bosco realizar o trabalho de Marta com o coração de Maria.xxii Com o aprofundamento da amizade com Cristo através da oração, a sua incansável atividade era aumentada como expressão do seu amor por Deus. Creio que a nossa heresia salesiana fundamental é olhar para Dom Bosco na tentativa de imitá-lo na sua ação sem ter a união com Deus de que ele gozava. Nós, com frequência, somos simplesmente ativos, enquanto, para Dom Bosco, a sua obra era a superabundância da relação com Deus (o êxtase da ação).


OS SALESIANOS HOJE

Comunicamos o Deus vivo aos outros?

Come declara São João Paulo II:

O futuro da missão depende em grande parte da contemplação. O missionário, se não é contemplativo, não pode anunciar Cristo de modo credível. Ele é testemunha da experiência de Deus e deve ser capaz de dizer como os Apóstolos: “o que nós contemplamos, ou seja o Verbo da vida... nós o anunciamos também a vós” (1Jo 1,1-3).xxiii


Por que é tão importante para nós Salesianos de hoje ter um “coração que escuta” ou um espírito contemplativo? O nosso mundo de hoje valoriza o humano, mas perde de vista o transcendente. A nossa tradição salesiana também tem a peito o homem e acreditamos que a graça tem seu fundamento na natureza. Por isso, em muitas das reações recebidas, reconhecemos o valor e a importância da consultoria para responder às dificuldades vividas pelos jovens. Contudo, se ficarmos nesse nível teremos falido com os jovens de hoje. A sede e a fome mais profunda é espiritual. O psicológico é importante, mas não pode substituir o espiritual. Se não trilharmos esse caminho em nosso interior para o espiritual através da oração, da meditação e da contemplação não seremos capazes de acompanhar os jovens em seu caminho. Se falharmos nesse sentido, seremos julgados pelas gerações futuras por ter prejudicado o real e o espiritual, estando em contato com o psicológico, o que não é suficientemente profundo.


Isso nos traz de volta a nós mesmos como Salesianos de hoje. Somos nós, como Dom Bosco, guiados pelo Espírito e cheios de Espírito? “Desta presença ativa do Espírito haurimos a energia para a nossa fidelidade e o apoio da nossa esperança” (Const. 1). O importante para nós Salesianos “não é acelerar numa multidão de obras exteriores, mas descobrir e praticar as atitudes e os comportamentos que nos abrem à ação do Espírito”. Tudo o mais brotará disso, e nós seremos capazes de realizar “as boas obras que Deus preparou para que nós a pratiquemos” (cf. Ef 2,10). A vida espiritual não consiste tanto em fazer, quando em deixar que seja feito, deixando que Deus aja em nós, atue através de nós. xxiv É pela união com Deus, que vem através da sua fidelidade à prática contemplativa, que [o Espírito] “formou [em Dom Bosco] um coração de pai e mestre, capaz de doação total: “Prometi a Deus que até meu último alento seria para meus pobres jovens” (Const. 1).


Rezemos


Pai querido, dá-nos um espírito de sabedoria e percepção para ver e responder às necessidades dos jovens de hoje, especialmente dos mais necessitados.


Senhor Jesus, pastor de nossos corações, renova em nós o mesmo espírito de entrega que iluminou o coração de São João Bosco, apóstolo dos jovens.


Espírito de amor, cobre-nos com a tua sombra. Aquece nossos corações com o teu amor e enche-os novamente com a força e o zelo de Pentecostes.


Maria, Esposa do Espírito Santo, obtém-nos a graça de fazer a vontade de Deus e sermos

outra humanidade para Jesus, onde ele possa renovar todo o seu mistério.


Vivei Jesus.

Que Jesus possa viver em nós, trabalhar conosco e amar através de nós, para podermos ser verdadeiramente sinais e portadores do amor de Deus aos jovens.


Que o Pai seja glorificado na obra que nos chamou a realizar com a força do seu Espírito e

em nome do Seu Filho Jesus.

Amém.


Trad.: JAV

i The Way of Perfection, ch.1, par.5 in E. Allison Peers (trans), The Complete Works of St Teresa of Jesus Vol. 2 (London: Sheed & Ward, 1963), 5.

ii Ibid, 229

iii François de Sales, Oeuvres Éditions Annecy, Vol. IV: 189. Hereafter, OEA.

iv (Salesian Central Archives) ACS A 225.02.01. cited in Giuseppe Buccellato, The Roots of the Spirituality of Saint John Bosco (Bolton: Don Bosco Publications, 2019), 11.

v Evangelii Nuntiandi, n. 20.

vi J. Sacks, The Persistence of Faith (London: Weidenfeld and Nicoloson, 1991), 50.

vii João Bosco, Memórias do Oratório (Brasília: Edebê, 2012), 29.

viii MBp.1, 420.

ix MBp.3, 84.

x The Spirit of St Francis de Sales, as cited by C. F. Kelley, in The Spiritual Maxims of St Francis de Sales (London & New York & Toronto: Longmans, Green & Co., 1954), 124.

xi Adrienne Fichet, Premier Proces Remissorial d’Annecy, 32, as cited by Lajeunie, in St Francis de Sales, 2:133.

xii OEA IV:303.

xiii Epistolario, Torino, 1959, 4, 201-203.

xiv CG28 outline of reflection on the theme, see 2.2.2. Preparation process for the GC28.

xv Christus Vivit, n.284.

xvi MBp, vol.2, 203-207.

xvii BMp, vol. 1, 307.

xviii MBp, vol. 2, 199.

xix G. Buccellato (ed) San Giuseppe Cafasso: Il Direttore Spirituale di Don Bosco (Roma: LAS, 2007) 28.

xx Ibid, 220.

xxi Ignacio Larrañaga OFM Cap, Sensing Your Hidden Presence: Toward Intimacy with God (Quebec, Editions Paulines, 1992), 27-28.

xxii See Introduction to The Devout Life, Part III, n.10.

xxiii Redemptoris Missio, n.91

xxiv Jacques Philippe, Fire and Light: Learning to Receive the Gift of God (New York: Scepter, 2016), 3.


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