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ANDRÉ RAVIER
SÃO FRANCISCO
DE SALES

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André RAVIER s.j.
SÃO FRANCISCO
DE SALES
Ao cuidado de Aldo Giraudo
Apresentação de Morand Wirth
Posfácio de Wim Collin

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Título original: André Ravier, São Francisco de Sales
Tradutor: Basílio Gonçalves
Revisores: Simão Cruz, Sílvio Faria
© Setor da Formação - Salesianos de D. Bosco,
Sede Centrale Salesiana, Via Marsala 42, 00185 Roma
formazione@sdb.org, https://www.sdb.org

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ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
1. INFÂNCIA ABENÇOADA
O Senhor e a Senhora Françoise de Boisy ............................15
O aluno de La Roche e d’Annecy............................................19
2. O PERFEITO GENTIL-HOMEM
Paris e a crise espiritual de 1586-1587 .................................25
Pádua e o doutoramento «em ambos os direitos» ..............37
3. O ENCARREGADO DOS CÓNEGOS
DE GENEBRA
Francisco «Padre de Jesus Cristo»..........................................45
Os primeiros meses de sacerdócio .........................................53
4. O APÓSTOLO DO CHABLAIS: O TEMPO
DAS SEMENTEIRAS
A escolha do Vigário-Geral....................................................59
A resistência dos habitantes de Thonon ..............................66
Mudança de estratégia: as Controvérsias .............................69

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5. O APÓSTOLO DO CHABLAIS:
O TEMPO DAS CEIFAS
As etapas do sucesso...............................................................83
Mons. de Granier escolhe o seu sucessor ..............................90
O coração apostólico de Francisco ........................................95
6. BISPO E PRÍNCIPE DE GENEBRA
Francisco vai a Roma...........................................................109
Coadjutor de Mons. de Granier...........................................112
A estadia de 1602 em Paris .................................................118
A sagração na igreja de Thorens ........................................126
7. O BISPO NO MEIO DO SEU POVO
Segundo a reforma do concílio de Trento............................129
A doutrina espiritual de Francisco de Sales .......................142
O dever episcopal de pregar ................................................146
Quaresmas e catecismos ......................................................150
A visita da diocese ...............................................................152

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8. A REFORMA DO CLERO E DOS RELIGIOSOS
Francisco de Sales e os seus padres......................................157
A reforma das abadias ........................................................163
O amigo das almas e a Introdução à vida devota..............166
A Visitação de Santa Maria e o Tratado do amor de Deus ...172
9. EM DIREÇÃO AO PURO AMOR
A terceira estadia em Paris..................................................185
O desejo de se retirar e de solidão .......................................187
A viagem de Avignon e a morte ..........................................193
POSFÁCIO

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Apresentação
9
APRESENTAÇÃO
Por ocasião do quarto centenário da morte de S. Francisco de Sales
(1622-2022), a Família Salesiana de Dom Bosco quis honrar o seu
santo Patrono com a reedição desta obra intitulada simplesmente
“São Francisco de Sales”. Este ano recordamos também os quatro-
centos e cinquenta anos do nascimento de Sta. Joana Francisca de
Chantal (1572-2022), cofundadora com o bispo de Genebra da
Ordem da Visitação.
Autor da Introdução à vida devota e do Tratado do amor de Deus,
apóstolo da santidade para todos, Francisco de Sales foi proclamado
santo em 1665, declarado doutor da Igreja em 1877, patrono dos jor-
nalistas em 1923 e reconhecido como «doutor do amor divino e da
doçura evangélica» em 1967. Ele continua ainda hoje a inspirar um
grande número de cristãos no mundo, em particular os membros
dos institutos, das associações e das congregações que se referem ao
seu espírito.
Evidenciaram-se muitos pontos de convergência entre a pastoral
e a espiritualidade promovidas pelo Concílio Vaticano II e os ensi-
namentos deste santo, especialmente sobre o método do diálogo, a
primazia do amor e a vocação universal à santidade.
Esta obra havia sido publicada em língua francesa em 1962 e
publicada em italiano pela editora Elledici em 1967, quarto centená-
rio do nascimento do santo.
André Ravier (1905-1999), jesuíta, filósofo, historiador da espiri-
tualidade, reitor de colégio e provincial em Lyon, é autor de numero-
sas publicações sobre a espiritualidade cristã. Em particular escreveu

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São Francisco de Sales
muitas biografias de santos, entre as quais a de Inácio de Loyola, de
Pierre Favre, de Claude de la Colombière, do Cura d’Ars, de S. Bruno
e de Bernardete de Lourdes. É um reconhecido especialista em S.
Francisco de Sales e em Sta. Joana Francisca de Chantal.
Este livro é constituído por nove capítulos, bem ordenados cro-
nologicamente, que apresentam a vida e as obras de S. Francisco de
Sales: a «infância feliz» na Saboia (I); os estudos do perfeito «gentil-
-homem» em Paris e em Pádua (II); o deão dos cónegos de Genebra
(III); o tempo da sementeira e o tempo da ceifa do «Apóstolo do
Chablais» (IV-V); o bispo e príncipe de Genebra (VI); o bispo entre o
seu povo (VII); a reforma do clero e dos religiosos (VIII); os últimos
anos a caminho «do puro amor» (IX).
Para escrever esta obra, o autor explorou documentos originais,
estudou os textos autógrafos principais e os autores que o precede-
ram. A sua erudição não o impediu de nos proporcionar uma narra-
ção simples e transparente em que são postos em evidência os traços
do mistério de Deus na vida de um grande santo.
A atual edição reproduz o texto original. Só as imagens foram
adaptadas. Fazemos votos que o leitor possa apreciar a qualidade do
texto, que não envelheceu.
Como preâmbulo, o padre André Ravier quis citar o testemunho
de S. Vicente de Paulo, discípulo e amigo do bispo de Genebra, que
afirmava que «Mons. de Sales desejava ardentemente ser um retrato
do Filho de Deus», a ponto de se tornar «o homem que melhor
reproduziu o Filho de Deus vivo sobre a terra».
Fazemos nosso o projeto apostólico do doutor do amor, que inspi-
rou S. João Bosco e também o padre André Ravier que assim conclui
a sua apresentação. Francisco de Sales é uma pessoa que quis – como
Jesus Cristo na terra – amar a Deus com todo o seu coração de
homem: e, tendo experimentado as exigências e a doçura deste dom,
trabalhou para introduzir o maior número possível de almas naquela
a que ele magnificamente chama “a eterna liberdade do amor”».
Morand Wirth, sdb.

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Apresentação
11
NOTA DO AUTOR
O nosso texto apoia-se antes de tudo nos documentos publica-
dos na édition complète des Œuvres complètes de François de Sales
(Visitation d’Annecy, 1892-1998, 27 vol.); utilizámos, porém, com
especial prudência as cartas descobertas no século XIX. Para não
sobrecarregar este livro, não fornecemos a lista completa das refe-
rências, quando se trata de citações tomadas nesta grande edição
das Obras completas.
O leitor familiarizado com os Escritos de S. Francisco de Sales
orientar-se-á facilmente com a ajuda dos excelentes índices destes
volumes. – Faremos o mesmo também em relação às citações
tiradas dos dois Procès de canonisation (1627-1632; 1655-1658) ou
do Année Sainte de la Visitation Sainte-Marie. – Muito raramente
utilizámos uma expressão ou um traço das biografias de Messire de
Longueterre (Vie de très-illustre messire François de Sales…, Lyon,
1624), de Dom Jean de Saint-François (La Vie du bienheureux
messire François de Sales…, Paris, 1624), du Père de la Rivière (La
Vie de l’illustrissime François de Sales…, Lyon, 1624).
Quanto à Vie du Bienheureux François de Sales, evesque et prince
de Genève (Lyon, 1634), composta pelo seu sobrinho Charles-Au-
guste de Sales, só a utilizámos com a reserva que convém, isto é,
o mínimo, e para factos de que tínhamos confirmação por outras
fontes. – As referências que vão seguir-se só dizem respeito a obras
que não dependem deste fundo comum a todas as biografias de S.
Francisco de Sales.

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12
São Francisco de Sales
O homem que melhor reproduz
o Filho de Deus vivo na terra
Só um santo podia falar assim de
um santo. A palavra é de Vicente de
Paulo, ao dar testemunho no processo
de Paris das altas virtudes de Fran-
cisco de Sales: «Mons. de Sales tinha
um desejo ardente de ser um retrato
do Filho de Deus. Conformou-se tão
bem com este modelo, constatei-o
eu, que muitas vezes me perguntei
com espanto como uma simples cria-
tura podia chegar a um grau de per-
feição tão grande, dada a fragilidade
humana, e atingir o cume de uma tão
sublime altura… O seu fervor explo-
dia tanto nos seus discursos públicos
como nos seus colóquios familiares…
Ao recordar as suas palavras, sentia
uma tal admiração que fui levado a
ver nele o homem que melhor repro-
duziu o Filho de Deus vivo na terra1».
Por mais ousada que seja esta compa-
ração, é verdadeira; melhor ainda, ela
situa-nos no coração deste movimento
de amor que carateriza o destino espi-
ritual de S. Francisco de Sales; ela
explicita este movimento íntimo e
explica-o: ela dá-nos o segredo desta
existência prestigiosa.
1 Procès de Paris, art. 26 et 27.

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Apresentação
13
É nesta luz que esboçaremos o retrato espiritual de S. Francisco
de Sales: Francisco de Sales é alguém que quis, como Jesus Cristo
na terra, amar a Deus com todo o seu coração de homem e que,
tendo experimentado as exigências e a doçura deste dom, traba-
lhou para introduzir o maior número de almas naquilo a que ele
chama magnificamente «a eterna liberdade do amor».

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14
São Francisco de Sales

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Capítulo i - Infância abençoada
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1. INFÂNCIA ABENÇOADA
O Senhor e a Senhora Françoise de Boisy
É incontestável que, desde o nascimento, Francisco de Sales aparece
como uma alma abençoada. A sua linha paterna – os de Sales –
tal como a sua linha materna – os de Sionnaz – sem ocupar lugar
entre as primeiras do ducado de Saboia, são, no entanto, de velha e
franca nobreza. Os brasões dos de Sales, «de azul com duas faixas
vermelhas delimitadas por linhas douradas, de crescente dourado
no alto, e igualmente duas estrelas, uma no meio e outra em ponta»,
tinham como divisa: Nem mais, nem menos; e a sua Casa contava,
diz-se, trinta e dois graus de nobreza.
Mas a verdadeira nobreza do Senhor e da Senhora de Boisy
(era o título que usavam os pais de Francisco, do nome de um rico
senhorio que Bonaventure de Chevron havida dado como dote à
sua filha Françoise) consistia na sua fidelidade à fé católica.
Nesta região próxima do Genebrino que desde 1534 a crise pro-
testante dilacerava, – dilaceração que significava cruelmente a pre-
sença em «Nessy» (Annecy) do bispo de Genebra, cuja cidade epis-
copal se tinha tornado a Roma de Calvino e dos Calvinistas – os
Sales haviam permanecido ferozmente ligados à Santa Sé e à Igreja;
protegiam-se com cuidado e protegiam os seus de todo o contacto
com a heresia; e foi uma primeira graça para Francisco mergulhar
desde a sua primeira infância neste clima de firmeza religiosa que
não estava imune de provas nem de mágoas.
Esta fé corajosa era para o senhor de Boisy mais do que simples
fidelidade a uma tradição: ela impregnava os atos da sua vida. Fran-
cisco de Boisy praticava à luz do dia a sua religião: assistia às cele-

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São Francisco de Sales
brações realizadas ao domingo e nos dias de festas tradicionais, na
igreja paroquial de Sales, e «confessava-se e comungava no tempo da
Páscoa, nas grandes festas do ano e quando se publicavam algumas
indulgências e perdões». Mostrava-se nas suas terras «grande amigo
dos pobres e sobretudo dos agricultores, que ele assistia em todas as
suas necessidades, quer de dinheiro, quer de trigo, sem juros». Não
havia sombra de heresia neste perfeito cristão.
E a sua esposa – mais nova do que ele uns trinta anos! – refor-
çava ainda, como convém, esta piedade e esta caridade para com
os pobres. «Eu via a Senhora, afirmará no Processo um agricultor
de Thorens, François Terrier, ir do castelo de Sales à igreja que fica
bastante afastada, em tempo chuvoso e no inverno, não receando
nem o frio nem a neve, para o serviço de Deus e para o serviço dos
Thorens, capela edificada sobre o local
em que nasceu S. Francisco de Sales.

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Capítulo i - Infância abençoada
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pobres doentes, não se poupando a nada para os assistir, envian-
do-lhes pão e vinho e outras coisas necessárias. E vi a dita senhora,
com as suas próprias mãos, a curar as úlceras dos doentes»…
Ora, esta «pérola de virtude», assim a designa um conselheiro
do duque de Genevois, François de la Pesse, tinha apenas dezasseis
anos quando deu à luz, no dia 21 de agosto de 1567, Francisco, seu
primogénito: por mais «exemplar» e mais «sensata» que fosse esta
jovem mamã, não podia não se prender com paixão a este filho
«terno» e «delicado», do qual a sua idade a aproximava mais que
do seu esposo.
Sobre os primeiros anos de vida de Francisco de Sales dispo-
mos de algumas informações. A ama de leite, Pétremande Puthod,
a quem foi confiado o bebé nascido prematuramente, e que não
pôde alimentar ela própria, com grande mágoa sua, a Senhora de
Boisy, ainda era viva no tempo do primeiro Processo de canoni-
zação. Ser chamada a deslindar algumas recordações sobre o seu
menino de peito que foi bispo e príncipe de Genebra, e ainda por
cima candidato às honras da Igreja, não é tão habitual que não
se possa perdoar à boa Pétremande um certo lirismo: Francisco,
diz-nos ela, era «um menino muito bonito, de belas feições, afável,
meigo e simples… Nunca conheci criança de melhor boca e de
melhor natural».
A um menino «de tão bom natural», o Senhor de Boisy deu
uma educação rude, até mesmo austera, como convinha a um pri-
mogénito de nobre família: o chicote, garantem-nos, não lhe foi
poupado, por ocasião de um pequeno roubo furtivo; mas em con-
trapartida, eram-lhe explicadas «as razões de tudo o que se exigia
dele». Severidade do pai, ternura da mãe, esta educação cujas
alternâncias terminavam em sabedoria depressa deu bons frutos.
«Desde a sua infância, testemunhará Madre de Chantal, segundo
ouvi dizer a várias pessoas dignas de fé, viu-se brilhar nele uma
sabedoria, doçura e bonomia toda extraordinária nesta idade, e era
muito sossegado e obediente aos seus pais».

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São Francisco de Sales
Charles-Auguste de Sales nota, na descrição desta infância, um
traço que parece verosímil: os seus pais «inculcavam muitas vezes a
Francisco o amor e o temor de Deus e explicavam-lhe os mistérios
da fé cristã, o mais claramente que podiam por imagens e compa-
rações tiradas da natureza, e respondiam sempre às suas pequenas
perguntas». Esta pedagogia religiosa marcará fortemente o espírito
e a alma de Francisco.
O castelo de Sales não era senão uma «casa-fortaleza», ao redor
da qual se dispunham terras, pastagens e um grande pomar; mas
a paisagem, nesta região, é maravilhosa. Situado à entrada do vale
de Usillon, o castelo encontrava-se na fronteira de duas regiões de
aspetos diferentes: em direção ao ocidente, as colinas baixas, férteis,
risonhas; em direção ao oriente, altas montanhas, florestas enfeza-
das, e ao fundo, um rochedo que se levanta como uma muralha
e no alto da qual a neve persiste mesmo no verão. Esta paisagem,
com as suas metamorfoses sazonais, enche de imagens magníficas
a cabeça do pequeno Francisco: as coisas da natureza tornam-se-
-lhe cada vez mais familiares, compreende-as, sente-as com toda
a sua viva sensibilidade, fazem parte do seu universo interior, e
desde então do seu universo religioso.
Mas, todas estas oportunidades que o seu ambiente familiar lhe
prodigaliza não seriam tão eficientes sobre o equilíbrio e o desabro-
char religioso de Francisco, se Deus, do interior, não trabalhasse a
sua alma.
Acreditemos nos olhos e no coração de uma mãe: «Se eu não
fosse a mãe de um tal filho, confiaria um dia, lá por 1610, a Senhora
de Boisy à Senhora de Chantal, revelaria muitas maravilhas da sua
infância… Observei muitas vezes que sendo ainda pequeno, ele
era repleto das bênçãos do céu e só respirava o amor de Deus…».
Acrescentemos: «e o amor dos pobres», aprendido de resto na
escola da sua admirável mãe, e perceberemos o mistério de graça
que se desenrolava já no segredo deste coração de criança.

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Capítulo i - Infância abençoada
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O aluno de La Roche e d’Annecy
Sobreveio então na vida de Francisco – estamos em 1573, tem ele
seis anos – uma mudança grave. Louis de Sales, o irmão do Senhor
de Boisy, decidiu colocar os seus três filhos na escola de La Roche,
pequena cidade situada somente a três léguas do castelo. O Senhor
de Boisy aproveitou logo a ocasião para realizar um projeto que
ele madureceu desde há algum tempo: Francisco acompanhará os
seus primos no colégio. Em La Roche, Francisco revela-se de ime-
diato o aluno perfeito que se dá como modelo aos seus companhei-
ros. Mas, mais ainda do que a sua docilidade, é a sua piedade que
suscita admiração e seduz. A tal ponto que, segundo a Madre de
Chaugy, dois anos mais tarde, quando Francisco deixou La Roche
para nunca mais lá voltar, «a maior parte (das pessoas) acompa-
Thorens, cruz sobre o lugar do antigo solar de Sales
(destruído em 1630).

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São Francisco de Sales
nharam-no, e choravam, dizendo que era a bênção da sua cidade
que lhes tiravam». Estava-se em 1575.
A política, diz-se, haveria provocado esta brusca mudança. Louis
de Sales haveria julgado prudente que o Senhor de Boisy, a sua
família e a sua gente não morassem no castelo de Sales e se retiras-
sem para o castelo de Brens. E esta mudança de residência haveria
mesmo feito com que os alunos mudassem de colégio. Talvez; mas
uma razão mais simples pode ser avançada: o mais velho dos filhos
de Louis haveria terminado o ciclo dos estudos do pequeno colégio
de La Roche, e precisava, para continuar a sua formação, de passar
para um estabelecimento de maior envergadura: irmãos e primo
seguiram-no. Seja como for, cá estão os nossos quatro alunos no
colégio de Annecy: este colégio, que o cónego Eustache Chapuys
havia fundado em 1551 era então florescente e contava entre os
seus alunos toda a juventude distinta da Saboia.
Aqui se situam, no crescimento espiritual de Francisco de Sales,
dois acontecimentos importantes: antes de tudo, a sua primeira
Comunhão e a sua Confirmação, por Dom Ange Justiniani, a 17 de
dezembro de 1577, em Saint-Dominique d’Annecy. Francisco tem
então dez anos, mas este homenzinho impõe-se aos seus colegas,
e até aos seus professores. Aluno diligente no estudo, e cheio de
talentos, é ainda por cima amável companheiro: todos o admiram,
amam e respeitam. «A sua simples presença, refere-nos Madre de
Chantal, mantinha os outros alunos, seus companheiros, em res-
peito; já… desde então tinha esta gravidade e esta compostura,
humilde e sensata, que teve toda a sua vida; … suportava com
paciência e doçura os humores impertinentes dos outros alunos…
E quando os seus colegas iam divertir-se, à noitinha, ele ficava
em casa e convidava a senhora em casa da qual se encontrava em
pensão a ouvir a leitura da Vida dos Santos, dizendo-lhe: «Minha
tia, tenho uma coisa muita boa a dizer-lhe».
O segundo acontecimento importante desta época foi a tonsura
que Francisco recebeu no dia 20 de setembro de 1578; à Madre

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Capítulo i - Infância abençoada
21
Angélique Arnauld, abadessa de Port-Royal des Champs, Francisco
disse um dia: «Desde os meus doze anos, tinha-me decidido tão
fortemente a ser de Igreja que nem por um reino eu mudaria esta
resolução». E a uma das suas penitentes: «Desde que tive a graça de
compreender um pouco o sentido da cruz, este sentimento entrou
na minha alma, nunca mais saiu dela».
O confronto destas duas confidências permite-nos entrever
a qualidade desta decisão de Francisco: esta mostra nele uma
vontade firme, muito ponderada, e que vai de imediato ao essencial
do Evangelho e do mistério da Redenção.
Para afirmar, tanto quanto podia, a sua resolução sem, no
entanto, se opor frontalmente aos prestigiosos projetos de futuro
que os seus sucessos escolares faziam surgir na cabeça do Senhor
de Boisy, Francisco pediu ao seu pai a autorização de receber a
tonsura clerical. Ser clérigo não significava na altura que uma
pessoa se destinasse às Ordens Sagradas, mas abria o caminho às
prebendas e benefícios eclesiásticos. Não era assim que Francisco
entendia as coisas. Foi como futuro homem de Igreja que o rapaz se
apresentou à tonsura: «Sabendo que Gallois Regard, bispo de Bag-
neroy, devia celebrar as Ordenações no mês de setembro, em Cler-
mont-en-Genevois, ali se deslocou imediatamente, acompanhado
de Cartas dimissórias… Lá, na igreja de Saint-Étienne, recebeu a
tonsura segundo as sagradas cerimónias e recebeu o Senhor como
sua parte e porção da sua herança, com uma alegria indizível, no
ano mil quinhentos e setenta e oito».
«Com uma alegria indizível», acreditamos aqui com muito gosto
em Charles-Antoine de Sales. Porque este rapaz de doze anos é
mesmo espantoso. Por isso não há que mudar de rumo – e a sequên-
cia deste retrato no-lo provará bem depressa –, esta amabilidade
esconde uma energia de ferro, este charme esconde um ardor de luta.
Deus ajuda-o sem dúvida, facilita-lhe o esforço: mas a estes atrativos
interiores, Francisco responde de forma resoluta. Ele escolheu Deus,
e esta escolha é sem reservas e será sem arrependimento.

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São Francisco de Sales
Thorens, pia batismal de Francisco de Sales na igreja paroquial.

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Capítulo i - Infância abençoada
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Viu-se bem, neste outono de 1578, quando o Senhor de Boisy,
muito orgulhoso dos sucessos escolares de Francisco, decidiu
enviá-lo a continuar os seus estudos em Paris. Sempre cuidadoso
de proporcionar a seu filho brilhantes relações, o Senhor de Boisy
havia projetado que seu filho teria aulas no colégio de Navarre, fre-
quentado pela elite da juventude parisiense. Mas Francisco não era
de modo algum desta opinião: «Ele tinha ouvido que ali a juven-
tude não se dava tanto à piedade como no colégio dos Padres Jesuí-
tas, de cuja fama e estima tinha os ouvidos cheios».
Não era preciso mais nada para que, no seu coração, Francisco
preferisse o colégio de Clermont ao colégio de Navarre. Mas como
conseguir que o Senhor de Boisy mudasse de opinião? Francisco,
já fino diplomata, recorreu à mediação de sua mãe. De tal forma
que, quando o nosso estudante de doze anos chegou a Paris, «sob
a condução e governo de Jean Déage», foi no colégio de Clermont
que ele se matriculou.

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São Francisco de Sales

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
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2. O PERFEITO GENTIL-HOMEM
Paris e a crise espiritual de 1586-1587
Lyon-Bourges-Orléans. Assim chegou, no fim de setembro2, à «real
cidade de Paris, mãe das doutas Musas, das artes liberais e de toda a
ciência», como a designa o padre Louis de la Rivière, mas também
a cidade da política, das querelas religiosas e das loucas diversões
estudantis…
No colégio de Clermont, Francisco matriculou-se no curso de
Humanidades, talvez mesmo no curso de Gramática Superior,
porque precisava de se iniciar no grego que ele ignorava. E, durante
quatro anos, «prosseguiu o estudo das letras humanas». Depois,
havendo obtido o diploma de bacharel, foi admitido a seguir, na
abertura das aulas de 1584, o curso de filosofia. Este curso durava
quatro anos. Pelos cadernos manuscritos do jovem filósofo que
chegaram até nós, facilmente podemos avaliar o seu entusiasmo no
estudo e sobretudo as qualidades do seu espírito: ordem, método,
profundidade; nada de estranhar que ele fosse considerado «um
dos primeiros da Universidade» e avaliado, no fim dos quatro anos,
«perfeito em filosofia».
No decurso destes oito anos em Paris, a vida espiritual de Fran-
cisco conheceu importantes desenvolvimentos. Charles-Auguste
de Sales não está muito à vontade com o calendário, quando narra
2 Geralmente a partida de Francisco para Paris é datada de 1582. Estudos mais pre-
cisos tendem a antecipar esta data para 1578: Francisco tem doze anos. Cfr. a
biografia crítica de Étienne-Marie LAJEUNIE, Saint François de Sales: l’homme,
la pensée, l’action, Paris, Guy Victor, 1966, 2 vol.

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São Francisco de Sales
a chegada de Francisco a Paris: «Não poderia ter sido menos exi-
gente com o alojamento, que ele quis que fosse no colégio dos
Jesuítas»? O certo é que, entre os seus estudos e toda a sua educa-
ção de gentil-homem (dança, equitação, esgrima) na qual o Senhor
de Boisy exigia que ele fosse energicamente iniciado, Francisco
«não se esquecia de que se havia tornado eclesiástico em Clermont
e de forma alguma queria mudar de resolução». O seu primeiro
cuidado foi escolher (sem dúvida entre os padres do colégio) «um
diretor e pai espiritual, no qual pudesse repousar a sua consciência
e adquirir as máximas da vida eterna; da mesma forma que lhe
haviam sugerido um professor para as ciências humanas».
Entre os colegas de estudos, em Paris tal como em La Roche e
em Annecy, o seu fervor brilha: «Tornava-se tão agradável para
todos pela sua modéstia, refere a Madre de Chantal, que dava gosto
Thorens, o castelo adquirido pela família Sales.

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
27
vê-lo quando passava pela rua e até os artesãos reparavam nele no
meio dos seus companheiros». Comunga com frequência, talvez já
de «oito em oito dias», pelo menos todos os meses. Então, «gostava
de estar com os Capuchinhos» e sentia uma grande admiração pelo
célebre padre Ange de Joyeuse. A todas estas práticas de piedade,
juntava ainda secretamente muitas austeridades, tais como o jejum
e o uso do cilício.
A sua devoção à Virgem Maria era muito forte; tinha um amor
de predileção pela Vierge Noire de Saint-Etienne des Grès, e como
todos os dias passava diversas vezes diante desta igreja, gostava de
parar alguns instantes para dar largas à sua devoção. Foi naque-
les anos que entrou na Associação. «Vendo que nas associações da
santíssima Virgem, vários viviam religiosa e angelicamente, por
conselho do seu precetor inscreveu-se numa delas e lá exerceu com
muita frequência os cargos de Assistente e de Prefeito».
Em Paris, Francisco sentiu o desejo de aprofundar a sua religião
e de reservar algumas das suas horas livres para a teologia. Desejo
da alma, certamente, necessidade de se iniciar nas Santas Escritu-
ras e nos mistérios da sua fé. Mas também, sem dúvida alguma,
projeto inconfessado de se preparar de longe para o sacerdócio.
Ele sabia que, apesar dos decretos do concílio de Trento, e contra a
vontade do bispo de Granier, a desventura dos tempos não permi-
tia que fosse aberto em Annecy um seminário regular, onde se pre-
parassem os candidatos às Ordens. Em Paris, dirá ele mais tarde,
aprendi muitas coisas «para agradar ao meu pai, e a teologia para
agradar a mim mesmo».
Seja como for, Francisco obteve um belo dia do senhor Déage a
autorização de se dedicar aos estudos de teologia, sem que por isso
prejudicasse a filosofia. Eis como, no dizer de Charles-Auguste de
Sales, se sai desta o nosso diplomata: «Porque, ao mesmo tempo,
o senhor Déage, seu precetor, era estudante de teologia… ele estu-
dava e folheava os seus escritos em casa, sempre que tinha tempo
para isso; e quanto mais aprofundava as verdades eternas, mais se

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São Francisco de Sales
inflamava no desejo de continuar; daí que, sempre que tivesse qual-
quer dificuldade em teologia, discutisse com o seu mestre e com
os outros teólogos para esclarecer o assunto. Procurava também
assistir às disputas realizadas na Sorbonne, e escrevia as perguntas,
argumentos e decisões que ele julgava mais dignos de objeção. Ia
com frequência ouvir as lições de Gilbert Génébrard, homem mais
de ciência divina do que humana, e assim adquiriu este grande e
profundo conhecimento de teologia, pelo qual se tornou admirável
em todo o resto da sua vida».
Génébrard? O nome desperta curiosidade: este beneditino de
Cluny, homem de grande erudição, havia introduzido no meio
muito escolástico do Collège Royal, a crítica histórica enaltecida
por Maldonnat... De resto, por muito fiel que fosse à Sorbonne,
Francisco não deixa de frequentar os jardins dos «inovadores»:
«Estudava também a língua hebraica e a teologia positiva de Mal-
donnat». Maldonnat? Este teólogo jesuíta, cuja saída de Paris pre-
cisamente os regentes da Sorbonne haviam conseguido, em 1677,
sob a acusação de «novidades», mas cujas célebres aulas circulavam
de forma camuflada… Decididamente, em Francisco, a atração
pela teologia é muito mais do que uma curiosidade ou um gosto
estético: ele pressente os dramas religiosos do futuro próximo.
Mais ainda, transporta-os dentro de si, vive-os: eis que chega a
crise, – assim se pode falar sem dramatizar – pela qual vai passar
este jovem de apenas 20 anos. Em que data precisa rebentou ela?
Os historiadores hesitam entre 1586 e 1587. Isso em nada altera a
gravidade do assunto. Aquela «borrasca» durou seis semanas e foi
tão profunda que abalou até a saúde de Francisco.
«Este Bem-aventurado contou-me uma vez – depôs Madre de
Chantal – para me confortar em qualquer perturbação que eu
tinha que, sendo estudante em Paris, passou por grandes tenta-
ções e extremas angústias de espírito; parecia-lhe absolutamente
que era condenado e que não havia salvação para ele… Não obs-
tante o excesso deste sofrimento, manteve sempre no fundo do

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
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seu espírito a resolução de amar e servir a Deus com todas as suas
forças durante a sua vida, e tanto mais afetuosa e fielmente quanto
mais lhe parecia que não poderia fazê-lo na eternidade. Este sofri-
mento durou-lhe três semanas pelo menos, ou cerca de seis, con-
forme consigo recordar-me, com tal violência que ele quase deixou
de comer e de dormir e ficou magro e amarelo como cera, o que
causou uma grande mágoa ao seu precetor. Ora, um dia em que
aprouve à divina Providência libertá-lo, quando regressava a Paris,
ao passar diante de uma igreja, entrou para fazer a sua oração. Foi
colocar-se diante de um altar de Nossa Senhora, onde encontrou
uma oração que estava colada numa tábua. Lembrai-Vos, ó piíssima
Virgem Maria, que nunca se ouvir dizer, etc… Disse-a completa;
depois levantou-se e, nesse mesmo instante, encontrou-se perfeita
e inteiramente curado; e pareceu-lhe que o seu mal tinha caído
sobre os seus pés como escamas de lepra».
Este testemunho de Madre de Chantal não deixa nada a desejar.
Mas uma pergunta se coloca: donde vieram a Francisco estas
«grandes tentações e extremas angústias de espírito»? Com toda
a evidência, elas são de ordem espiritual. Todavia, não mergulha-
riam elas no temperamento muito sensível, um pouco escrupu-
loso, e certamente «melancólico» do jovem adulto, uma melanco-
lia que havia herdado de sua mãe e que se exasperava nas horas
de fadiga. Ora, em 1586-1587, concede-se Francisco uma disten-
são suficiente? Não nos declara um dos seus companheiros que
«com muita frequência, escapando-se ao sair das aulas de filosofia,
saltava as suas refeições habituais a fim de ir à Sorbonne ouvir as
disputas de teologia»?
É significativo que Francisco tenha confidenciado esta prova,
precisamente «a um gentil-homem que havia caído numa pro-
funda melancolia»: «Grita-se que, além do mal que se tem devido
aos acidentes corporais, se está sobrecarregado de uma violenta
melancolia… Pois! Se faz favor, peço-lhe que me diga que motivo
tem para alimentar este triste humor que lhe é tão prejudicial? Sus-

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São Francisco de Sales
peito que o seu espírito esteja ainda embaraçado com algum temor
de morte repentina e com os juízos de Deus. Infelizmente, é um
estranho tormento!… A minha alma que o suportou durante seis
semanas, é bem capaz de se compadecer daqueles que o sofrem…
Não tem o senhor esperança em Deus? E quem espera n’Ele será
jamais confundido? Não, senhor, jamais o será».
Aconteça o que acontecer destes preâmbulos, a crise que anali-
samos atingiu em Francisco uma tal violência, e tomou um caráter
tal, que não é possível não reconhecer nela «a mão do Senhor». A
prova é do domínio da mais alta mística. Coincidência espantosa,
por essa mesma época, – em 1583 exatamente – João da Cruz des-
crevia maravilhosamente as vias extraordinárias da vida espiritual
e sobretudo esta etapa, de formas sempre originais, pela qual Deus
purifica a alma que Ele quer unir a Si de uma forma mais perfeita,
e a que ele chama a «Noite». «Todas as forças e todos os afetos
da alma, por meio desta noite e purificação divina, se renovam e
se mudam em temperamento e delícias divinas. 3». Não foi nessa
altura para Francisco de Sales, o benefício desta crise de 1586-1587?
Desta febre espiritual, ignoramos a curva precisa. Mas, pelo con-
trário, documentos de uma grande credibilidade informam-nos
sobre a sua acuidade e sobre o seu desenlace.
Tudo começou, ao que parece, por uma dificuldade na aparên-
cia puramente especulativa: o mistério da predestinação. Perante
o pensamento de S. Agostinho e de S. Tomás que insistem na
presciência e na livre escolha de Deus, no assunto da salvação dos
homens, Francisco tomou antes de tudo uma viva consciência da
incerteza da salvação. Mas eis que, voltando a si mesmo, e medindo
os perigos que o ameaçam – ele, tão sensível, e cujo coração «ama
amorosamente» – no meio da juventude estudantil, assusta-se: era
ele, Francisco, do pequeno número dos predestinados?… Na reali-
dade, a crise foi sobretudo de ordem psicológica e espiritual, mas,
3 La Nuit Obscure, L. II, Ch. IV.

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
31
em Francisco, todo o problema de alma se complica com um pro-
blema de inteligência.
Aqui, precisamos de prestar grande atenção à queixa desta alma
angustiada, tal como chegou até nós do senhor Déage, o precetor, e
de François Favre, o criado de quarto de Francisco, por intermédio
de Charles-Auguste de Sales. Se estas palavras são autênticas, – e
há toda a razão para as julgar assim, de tal forma correspondem
ao ato de abandono heroico que o P. de Quoex nos conservou e ao
Protesto de 1591 – elas revelam-nos magnificamente a que pureza
de caridade havia já acedido Francisco na sua vida espiritual.
É verdadeiramente o queixume do amor frustrado, de um amor
que se vê de repente, ao contrário de toda a sua esperança, incerto
de possuir um dia o seu objeto único: mas no fogo da sua angústia,
este amor purifica-se estranhamente; e, de forma dolorosa, conten-
ta-se com o que lhe resta da sua felicidade: «Pobre de mim, miserá-
vel! Ficarei então privado da graça d’Aquele que me fez provar tão
suavemente as suas doçuras e que se me mostrou tão amável? Oh
Amor! Oh Caridade! Oh Beleza à qual votei todos os meus afetos.
E nunca mais gozarei das vossas delícias?… Oh Virgem… nunca
mais voltarei a ver-Vos, no reino do vosso Filho? E nunca partici-
parei neste imenso benefício da Redenção?… E o meu amado Jesus
não morreu tanto por mim como pelos outros?… Ah! Seja como
for, Senhor, pelo menos que eu Vos ame nesta vida, se não posso
amar-Vos na eterna, pois ninguém Vos louva no inferno». Oração
trágica e generosa, mas que não consegue pacificar a alma.
Quanto mais Francisco estudava e discutia, mais tropeçava na
predestinação à glória anterior à previsão dos méritos. Nenhuma
saída deste drama espiritual parecia possível, quando um dia, ao
voltar sozinho do colégio, «mais morto do que vivo», teve a ideia
de entrar, como fazia frequentemente, na igreja de Saint-Etienne
des Grès. Era «o dia em que aprouve à divina Providência liber-
tá-lo», segundo a narrativa de Madre de Chantal. Aqui, em vários
pontos (duração do desenlace, lugar do ato de abandono heroico,

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São Francisco de Sales
data do Protesto), os historiadores divergem; nós seguiremos de
preferência a versão de Madre de Chantal.
Então, já dentro da igreja, Francisco foi «direito» à capela da
Virgem. Sem dúvida, fez de novo neste momento este «ato de
abandono heroico», esta oferenda que o P. de Quoex nos conser-
vou: «Aconteça o que acontecer, Senhor, Vós que tendes tudo nas
vossas mãos, e cujas vias são todas justiça e verdade; seja o que for
que Vós tenhais decidido a meu respeito sobre este eterno decreto
de predestinação e de condenação; Vós cujos juízos são um pro-
fundo abismo, Vós que sois sempre Justo e Pai misericordioso, eu
Vos amarei; Senhor, ao menos nesta vida, se não me é dado que
Vos ame na eterna; ao menos amar-Vos-ei aqui, ó meu Deus, e
esperarei sempre na vossa misericórdia e, sempre, repetirei todo o
vosso louvor, não obstante tudo o que o anjo de Satã não cessa de
me inspirar contra isso. Ó Senhor Jesus, Vós sereis sempre a minha
esperança e a minha salvação na terra dos vivos. Se, porque a minha
conduta o exige, eu tenho de ser maldito entre os malditos que
não verão a vossa doce face, concedei-me pelo menos que não seja
daqueles que amaldiçoarão o vosso santo nome».
Havendo reafirmado esta patética aquiescência à vontade divina,
«reparou numa pequena placa afixada na parede: era a oração Lem-
brai-Vos, ó piíssima Virgem. Recitou-a de joelhos e em lágrimas».
E eis a maravilha: «Havendo terminado a Oração, pediu a saúde
do corpo e do espírito, e fez promessa da sua virgindade a Deus
e à Virgem; e, em testemunho e memória disso, prometeu rezar o
terço todos os dias da sua vida. E eis que entre estas orações e estas
promessas, a tentação desapareceu, recuperou a saúde, e parecia-
-lhe que lhe tiravam da cabeça e do corpo como que umas crostas
ou escamas de lepra».
Ao sair desta crise, Francisco havia adquirido uma experiência
inestimável dos caminhos de Deus, mas mais ainda, havia tomado
uma posição doutrinal sobre uma questão capital da teologia cató-
lica. É habitual insistir-se na importância da primeira destas vanta-

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
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gens: é muito certo que Francisco, apesar de ter apenas vinte anos,
é a partir de agora capaz de compreender as provas mais dolorosas
das almas que Deus quer conduzir à pureza do seu amor. Mas, se se
considerar a época, as querelas com as quais Francisco, como padre
e depois como bispo, se vai confrontar, protestantismo, mística de
exceção e até, lá para o fim da sua vida, preâmbulos de jansenismo,
todas discussões onde se joga o destino da liberdade humana nas
suas relações com a graça, só podemos admirar a sabedoria de
Deus que prepara assim um doutor do amor puro e da autêntica
«liberdade de glória dos filhos de Deus».
Por muito liberto que esteja agora Francisco, parece que o pro-
blema da predestinação permanecerá para ele, por muito tempo
ainda, sempre talvez, um ponto nevrálgico do seu pensamento reli-
Paris, Collège de Clermont e igreja de Saint-Etienne des Grès
(pormenor do mapa Turgot 1739).

4.4 Page 34

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São Francisco de Sales
gioso. Nos seus manuscritos, encontraremos diversas notas sobre
este tema, entre as quais a mais semelhante pelo tom e pelo teor à
crise de 1586-1587, é sem dúvida este «protesto» espantoso, que
com os melhores críticos situamos por volta de 1591.
Não podemos citá-lo na íntegra4: reteremos pelo menos as pas-
sagens onde se marca melhor a atitude francamente apostólica e
espiritual que adota Francisco no problema especulativo da pre-
destinação.
«Prostrado aos pés dos bem-aventurados Agostinho e Tomás
(os dois autores cujas teses haviam, se não provocado, pelo menos
exagerado a sua crise de alma), estou pronto a tudo ignorar para
conhecer Aquele que é a ciência do Pai, Cristo crucificado. (Nesta
simples frase, inscreve-se já o que será o seu pensamento místico).
Com efeito, embora eu não duvide que aquilo que escrevi (este
protesto encontra-se no fim de notas teológicas sobre a predesti-
nação) seja verdade, porque não vejo nisso nada que possa suscitar
uma dúvida sólida da sua verdade; todavia, porque não vejo tudo e
porque um mistério tão profundo é demasiado brilhante para ser
visto de frente pelos meus olhos de coruja (parece-me que será a
posição que adotará Francisco quando for consultado por Paulo V
na querela De Auxiliis), se, na sequência, o contrário aparecesse, –
o que, penso eu, nunca acontecerá – muito mais, se eu me soubesse
condenado – que tal não aconteça, Senhor Jesus! – por esta vontade
que os tomistas colocam em Deus a fim de que Deus mostre a sua
justiça, cheio de estupefação e levantando os olhos para o Juiz
Supremo, com muito gosto direi com o Profeta: A minha alma não
estará submetida a Deus? Amen, Pai, porque vos parece bom assim;
que a vossa vontade seja feita. E direi isso tantas vezes na amargura
do meu coração, até que Deus, mudando a minha vida e a minha
sentença, me responda: «Tem confiança, meu filho, Eu não quero a
morte do pecador, mas que ele se converta e viva
4 Cf. Œuvres, T. XXII, pp. 63-68.

4.5 Page 35

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
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(E Francisco acumula os textos bíblicos e sobretudo os textos
evangélicos que afirmam a vontade de Deus de salvar todos os
homens) «E porque tu quiseste glorificar o meu nome, mesmo
sofrendo, se fosse necessário, embora nisso sejam mínimas a glória
e a exaltação do meu nome, que não é «condenador», mas «Jesus»
(leiamos estas palavras magníficas em latim: glorificatio nominis
mei qui non est damnator, sed Jesus) – estabelecer-te-ei sobre muito,
a fim de que tu me louves nesta bem-aventurança eterna onde
explode a glória do meu nome…». Então só deverei responder
do mesmo modo que antes: Amen, Pai, porque assim é do vosso
agrado. O meu coração está pronto, ó Deus, para o sofrimento por
vosso amor; o meu coração está pronto para a glória por causa do
vosso nome, Jesus… Amen, Jesus, Maria».
Esta confidência é capital, representa um cume, talvez o cume da
vida espiritual; acreditemos no padre Bremond, que é especialista
na matéria: «Preciosa relíquia, menos ofegante, mais apaixonante
que o talismã de Pascal, mas de uma riqueza doutrinal muito supe-
rior»5. A «riqueza doutrinal» deste texto não surpreenderá nada
os que conhecem as outras notas sobre a Predestinação, e nomea-
damente este fragmento de 1591, em que Francisco enumera as
provas e autoridades, que tornam plausível a tese que «não só a
condenação tem lugar na sequência dos deméritos previstos, mas
também que a predestinação se baseia nos méritos previstos».
Será a partir de agora a sua posição teológica, na qual vai poder
apoiar todas as suas discussões com os Protestantes, toda a sua pre-
gação e toda a sua direção espiritual. Escrevendo, em 1618, mais de
trinta anos depois da crise, ao padre Lessius, declarar-lhe-á: «Na
biblioteca dos Jesuítas de Lyon, vi o seu Traité de la Prédestination,
e embora eu não tenha tido tempo senão de o percorrer à pressa,
notei que o V. Rev.ª abraça e sustenta a opinião da predestinação à
5 Henri BREMOND, Histoire Littéraire du Sentiment Religieux en France depuis la
fin des guerres de religion jusqu’à nos jours, Paris, Bloud et Gay, 1916, T. I, p. 90.

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São Francisco de Sales
glória após a previsão dos méritos, esta opinião tão nobre a tantos
títulos, visto que é tão antiga, tão consoladora… Isso deu-me uma
grande alegria; com efeito sempre vi esta doutrina como a mais
verdadeira, a mais amável e a mais conforme com a misericórdia
de Deus e a sua graça, tal como eu indiquei um pouco no meu
Traité de l’amour de Dieu».
As consequências desta crise de 1586-1587 sobre o destino espi-
ritual de Francisco de Sales são consideráveis: dizem respeito não
somente ao seu pensamento, mas à sua alma, – não somente à sua
teologia, mas à sua religião pessoal e a todo o seu apostolado. No
fundo, esta crise foi para ele uma verdadeira batalha de liberta-
ção: ela fortaleceu a sua fé nas realidades mais essenciais da vida
de graça, desenvolveu nele as virtudes que são mais eficazes nas
relações do homem com Deus, deu-lhe uma experiência muito
alta da vida cristã, fazendo-lhe conhecer a extrema angústia e as
bruscas libertações; em suma, abriu-lhe o acesso à reta, sã e autên-
tica «liberdade de glória dos filhos de Deus»: será daqui em diante
o termo para o qual tenderá com fervor e se esforçará por orientar
as almas mais sublimes e as mais humildes que se apoiarão sobre
ele na sua busca de Deus.
A primeira estadia de Francisco em Paris chega ao fim: Fran-
cisco termina o curso da Faculdade das Artes. No início do verão
de 1588, retoma o caminho da Saboia.
É «à longa túnica vermelha» do senador que o Senhor de Boisy
destina «este filho de muito grande esperança». «Concede», porém,
a Francisco, que desde há oito anos não voltou à Saboia, «tempo
livre para ver os seus familiares e amigos»; mas está desde já deci-
dido que, a partir do outono de 1588, o estudante iria para Pádua,
sempre acompanhado pelo senhor Déage, e ali se aplicaria ao
estudo do direito: Gallois, o irmão mais novo, acompanharia o seu
irmão mais velho e frequentaria as aulas de gramática no colégio
dos Jesuítas.

4.7 Page 37

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
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Pádua e o doutoramento «em ambos os direitos»
Aqui está então Francisco entregue aos estudos de «um e outro
direito», isto é, do canónico e do civil, por obediência a seu pai;
mas, em segredo, e de conivência com o senhor Deáge, ele con-
sagrará uma parte do seu tempo a refazer na sua integralidade os
estudos teológicos: «Prescreveu-se oito horas de estudos, quatro
para a jurisprudência, e outro tanto para a teologia». De facto, inte-
ressou-se ainda por cima, à guisa de passatempo, pela botânica,
mesmo pela medicina!
Mas o problema religioso permanece no centro das suas preo-
cupações: «A fim de aproveitar mais, não somente na escolástica,
mas também na mística, para a qual já havia lançado bons alicer-
ces em Paris, precisava de ter um bom mestre e um diretor». Para
este papel, escolheu, por «uma certa iluminação do céu», «o padre
António Possevino, da Companhia de Jesus, homem que as virtu-
des elevavam acima das cabeças dos outros». Visivelmente, o Padre
exerceu uma grande influência sobre a orientação espiritual do seu
discípulo: foi ele sem dúvida que o levou a entrar na Congregação da
Anunciação de Nossa Senhora, cuja sede era no colégio dos Jesuítas,
e a seguir os Exercícios Espirituais; foi ele que Francisco mandou
chamar quando em 1590 pensou que ia morrer. Mas, durante os três
anos em Pádua, o padre Possevino foi sobretudo para Francisco o
mestre que, prolongando os ensinamentos de Génébrard, desenvol-
veu nele o gosto pela Sagrada Escritura; e igualmente o guia que o
ajudou a levar, no meio da população estudantil, leviana e comba-
tiva, de Pádua, uma vida sinceramente cristã.
Data desta época6 um documento de primeiríssima impor-
tância: Francisco, de acordo com o seu diretor, adota um regula-
6 Contrariamente ao que muitas vezes se diz, não creio que se possa tirar deste texto
a prova de que ele só tenha sido redigido depois da grande doença de Francisco
em fins de 1590 - inícios de 1591.

4.8 Page 38

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São Francisco de Sales
mento de vida. Há que avançar até encontrar nestas páginas «uma
Introdução à vida devota em miniatura»? Não, sem dúvida. Não se
deve esquecer que Francisco se orienta sempre secretamente para
o Sacerdócio, e que ele fez a Nossa Senhora, na igreja de Saint-
-Étienne des Grès, um voto de castidade que ele entende guardar
fielmente, com a ajuda de Deus, entre os perigos de Pádua. Resulta
que este documento nos fornece, sobre a ideia que Francisco se faz
da vida cristã, por volta de 1590, informações muito preciosas.
Um exercício que ele toma fortemente a peito: «Preferirei sempre
a tudo o resto o exercício da preparação, e fá-lo-ei pelo menos uma
vez por dia: a saber, de manhã; consiste num exame prévio, feito na
presença de Deus, do que se prevê acontecer durante o dia».
Depois disso, prescreve-se sete artigos para passar bem o dia.
«De manhã, ao acordar, darei graças a Deus… Depois pensarei em
algum mistério sagrado… Não deixarei de ouvir todos os dias a
Santa Missa, etc…».
Ora, entre os sete artigos, o terceiro é demasiado original para
que não nos detenhamos nele por instantes, tanto mais que a ter-
ceira parte do nosso documento retomá-lo-á e desenvolvê-lo-á:
«Como o corpo precisa de dormir para descansar e aliviar os seus
membros fatigados, igualmente é necessário que a alma tenha
algum tempo para dormitar e descansar entre os braços puros do
seu celeste Esposo, a fim de por este meio recuperar as forças e o
vigor das suas potências espirituais: portanto, destinarei todos os
dias alguns tempos a este sagrado sono, para que a minha alma,
à imitação do discípulo bem-amado, durma em total segurança
sobre o peito amável, mesmo no coração amoroso do amoroso Sal-
vador».
A descrição pormenorizada – em oito pontos – deste «sono»
sagrado é, a bem dizer, uma peça notável. Sono singularmente ativo
onde todos os grandes temas da meditação cristã se parecem…
Mas o que importa aqui, é a atitude da alma. Esta atitude é extrema-
mente caraterística, trata-se bem de uma distensão, de um gosto,

4.9 Page 39

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
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de um deleite saboroso que repousa a alma e introduz no amor de
Deus.
«E em primeiro lugar (assim começa o texto) havendo tomado
o tempo cómodo para este sagrado repouso, antes de tudo o mais,
procurarei refrescar a minha memória de todos os bons movimen-
tos, desejos, afetos, resoluções, projetos, sentimentos e doçuras,
que outrora a divina Majestade me inspirou e fez experimentar na
consideração dos seus santos Mistérios, da beleza da virtude, da
nobreza do seu serviço e de uma infinidade de benefícios que Ela
muito liberalmente me concedeu…».
Este tom de admiração, de entusiasmo, vai manter-se até ao
fim: «Em segundo lugar, descansarei pura e simplesmente, etc…
Em terceiro lugar, descansarei muito docemente, etc… Em quarto
lugar, dormitarei suavemente no conhecimento da excelência da
Pádua, pátio antigo da Universidade.

4.10 Page 40

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São Francisco de Sales
virtude, etc… Em quinto lugar, fixar-me-ei na admiração da beleza
da razão, etc… Em sexto lugar… ocupar-me-ei de ver como estes
belos atributos (a sabedoria infinita, o poder omnipotente e a
incompreensível bondade de Deus) brilham nos mistérios da vida,
morte e paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, etc…».
O oitavo merece ser citado: «… Adormecerei no amor da excelsa
e única bondade do meu Deus; saboreá-la-ei se puder, não nos seus
efeitos, mas em si mesma; beberei esta água de vida, não nos vasos
ou frascos das criaturas, mas na sua própria fonte; saborearei como
esta adorável majestade é boa em si mesma, boa por si mesma,
boa para si mesma, até como é a bondade mesma, e como é toda
a bondade; e bondade que é eterna, inesgotável e incompreensível.
Ó Senhor, direi eu, só Vós sois bom, por essência e por natureza;
só Vós sois necessariamente bom; todas as criaturas que são boas,
tanto pela bondade natural como pela sobrenatural, só o são por
participação da vossa amável bondade». Este documento continha
ainda outras regras «para bem se comportar nas companhias e nos
encontros, sem tropeçar e sucumbir ao vício».
Francisco de Sales já dispõe desta espiritualidade forte e suave,
solidamente dogmática e sensível ao coração, que fará o seu encanto
e atrairá a ele as almas. Mas teria ele atingido este cume, teria ele
escrito estas páginas sobre o Sono espiritual, se não tivesse passado
pela crise de 1586-1587, e se não tivesse triunfado dela? Uma alma
que não dominou na fé e na confiança a sua angústia espiritual
não pode mergulhar tão livremente nas nascentes do amor… Para
Francisco, entre a aridez dos estudos jurídicos e os perigos da
cidade universitária, este regulamento era um talismã: «A fim de
as poder reler com frequência (estas leis e regras) escreveu-as nas
primeiras e nas últimas folhas de um livro de orações que habitual-
mente trazia no bolso».
Tanto mais que, havendo retomado o conjunto dos seus estudos
teológicos, se deparava de novo com o problema da predestinação.
Com efeito o padre Possevino, posto por Francisco ao corrente dos

5 Pages 41-50

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5.1 Page 41

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
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seus projetos de futuro, havia-o encorajado muito na sua vocação:
«Acredite em mim, o seu espírito não anda na labuta do banco
dos advogados, e os seus olhos não estão habituados à sua poeira».
A descoberta do livro de Lorenzo Scupoli, «O Combate Espiri-
tual», que lhe revelaram os Padres Teatinos, em cuja casa Francisco
gostava de frequentar as celebrações, havia-o confirmado ainda
mais na sua resolução de se entregar a Deus e, portanto, de estudar
a teologia.
O seu mestre de pensar continuava a ser S. Tomás de Aquino;
num pitoresco resumo, Charles-Auguste de Sales imagina Fran-
cisco «a abrir sobre a mesa do seu gabinete a Suma do Angélico
Doutor S. Tomás, a fim de a ter sempre diante dos olhos e poder
recorrer a ela prontamente, para a compreensão dos outros livros».
Porque havia «outros livros»: Francisco alargou o campo das suas
leituras: os Padres são-lhe familiares, e entre eles prefere Agos-
tinho, Jerónimo, Crisóstomo, Cipriano, cujo estilo o encanta, e
acrescenta-lhes S. Bernardo e S. Boaventura. Mas sobre o ponto
preciso da predestinação, afasta-se resolutamente do que lhe apre-
sentam como o pensamento de S. Tomás, e adere à opinião «mais
verdadeira e mais amável»7 que os seus mestres jesuítas ensinavam
abertamente, apoiando-se no livro do padre Molina, publicado
em 1588: A Concordância do livre arbítrio com os dons da graça, a
presciência de Deus, a providência, a predestinação e a reprovação.
É destes anos de Pádua (e provavelmente de 1591) que data a
nota que já citámos e que definia nitidamente a atitude muito pura
de fé e de confiança, que seria desde então a atitude de Francisco.
Mas é notável que os quatro «fragmentos» que chegaram até nós,
das suas Observações teológicas de Pádua, todos façam alusão a
este problema da graça e da predestinação. Uma delas é particu-
larmente comovente: «Eu anotei isto, com temor e tremor, escreve
Francisco, no ano 1590, a 15 de dezembro, para não ter talvez de
7 Carta ao P. Leonardo Lessio (Leys), Œuvres, vol. XVIII, pp. 271-274.

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São Francisco de Sales
lamentar a sua perda, se posteriormente esta maneira de pensar,
na qual me afirmei quando atingi a adolescência, e quando adquiri
mais experiência com a idade e com a ciência, continuar a parecer
verdadeira segundo o juízo e a decisão da Igreja, como ela me
pareceu verdadeira então na minha infância. Com efeito, desde
esta época, ao afirmar-me nisso, meditei tudo o que parece cen-
trar-se na questão8».
Estas notas de teologia são de resto envolvidas em oração. Aqui,
uma invocação ao Espírito Santo. Ali, uma homenagem a Jesus
Cristo. O desejo de Deus e o zelo das almas exprimem-se nelas
livremente. «Anotei tudo isto para honra de Deus e para a conso-
lação das almas». Mas o que acima de tudo importa a Francisco,
é que a sua doutrina seja plenamente conforme ao ensinamento
da Igreja. «Escrevi isto muito humildemente, confessa ele, estando
pronto a abandonar não somente as conclusões que tirei ou tirarei,
mas também a cabeça que as concebeu, e isto, mesmo se tal repugna
à minha inteligência, para abraçar a opinião que agora ou no futuro
for adotada pela Igreja Católica, Apostólica e Romana, minha Mãe
e coluna da verdade».
Francisco tinha «vinte e quatro anos, e o tempo que ele havia
destinado ao estudo das leis tinha-se esgotado, quando recebeu
ordem de seu pai para se doutorar». O grande jurisconsulto, Guido
Panciroli, «homem de todo semelhante à virtude e à ciência e que
tinha mais de espírito angélico do que de humano» havia-se ligado
fortemente a Francisco, e quis ser ele mesmo o seu «Promotor».
A sessão solene realizou-se «no dia cinco de setembro do ano mil
quinhentos e noventa e um». Francisco mostrou-se brilhante na
defesa da tese e respondeu «de forma muito consistente aos argu-
mentos apresentados contra a doutrina»… «Panciroli, seu Promo-
tor, não lhe poupou elogios», refere-nos Charles-Auguste no seu
estilo delicioso, «… e entregou-lhe o anel, a coroa e os privilégios
8 Cf. Œuvres, T. XXII, p. 46.

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Capítulo ii - O perfeito gentil-homem
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da Universidade». Francisco era promovido a doutor in utroque
jure – em direito canónico e civil. Todos lhe fizeram festa; «porque
havia conquistado todos os corações de Pádua».
No castelo de la Thuile, onde a guerra entre católicos e protes-
tantes havia forçado M. de Boisy a fechar-se com os seus, o triunfo
de Francisco foi recebido com grande alegria. Antes de regressar à
França, o jovem doutor quis cumprir uma promessa já antiga: fez
a peregrinação a Loreto. De acordo com toda a tradição e também
com Madame de Chantal, haverá que situar nesta época a primeira
viagem a Roma? Esta tradição é certamente digna de respeito. Mas
um estudo mais preciso dos documentos e das datas levaria a pô-la
em questão e talvez a rejeitá-la9.
Em fevereiro de 1592, Francisco estava de regresso a la Thuile,
onde «o senhor de Sales aguardava com impaciência o seu querido
filho».
9 Cf. a biografia crítica de É.-M. LAJEUNIE, Saint François de Sales

5.4 Page 44

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São Francisco de Sales

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Capítulo iii - O encarregado dos cónegos de Genebra
45
3. O ENCARREGADO DOS CÓNEGOS
DE GENEBRA
Francisco «Padre de Jesus Cristo»
O acolhimento foi carinhoso e entusiasta: Francisco – ainda não
tem 25 anos – aparece aos olhos de todos como cumulado de todos
os dons da natureza e da graça. Este jovem Doutor é também um
perfeito gentil-homem; é um cavaleiro de ar elegante e provou
muitas vezes que sabia na devida altura manejar a espada com
«máscula coragem»; é digno de aparecer no mundo como chefe
de nobre família. Seu pai «idealiza grandes coisas para ele» e, para
começar, confere-lhe o domínio senhorial de Villaroget.
Olhemos bem para ele, como olha «toda a sua vizinhança». Não
realiza na perfeição este retrato do homem virtuoso, que ele traçava
no seu escrito sobre o sono espiritual: «Em quarto lugar, dormita-
rei suavemente no conhecimento da excelência da virtude: virtude
que é tão bela, tão graciosa, tão nobre, tão atraente, tão poderosa. É
ela que torna o homem interior e também exteriormente belo; ela
torna-o incomparavelmente agradável ao seu Criador; ela assenta-
-lhe extremamente bem, como própria que é dele. Mas que conso-
lações, que delícias, que honestos prazeres não lhe dá sempre! Ah!
É a virtude cristã que o santifica, que transforma em Anjo, que faz
dele um pequeno Deus e que lhe dá desde aqui o Paraíso».
A beleza de Francisco era antes de tudo uma beleza interior.
Desde o tempo de Pádua, «notava-se sensivelmente nele um não
sei quê de sacerdotal», afirma-nos o padre de la Rivière; e a sua
alma estava dilacerada: «O amoroso respeito que ele tinha pelo
senhor seu pai e pela senhora sua mãe deixava-o perplexo e em
suspenso, saber se ele daria o seu consentimento de forma irrevo-

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São Francisco de Sales
gável às imaculadas bodas do Cordeiro, sem haver sondado pouco
mais ou menos as suas inclinações, ou se ele adiaria por algum
tempo, e até que ele tivesse oportunidade de fazer esta prova com
toda a discrição que lhe fosse possível». Ele havia aguardado, mas
não seria tempo de declarar finalmente a sua decisão?
Francisco hesita, contudo, em falar: o senhor de Boisy apro-
xima-se dos seus sessenta anos, como suportará ele este choque,
que será para ele muito rude? E não vai ele usar da sua autoridade
paterna, como lho permitem os costumes do tempo, para recusar
o desígnio de Francisco? Numa palavra, o assunto arrasta-se… O
senhor de Boisy aproveita este adiamento. «É necessário, diz ele um
dia a seu filho, que vás a Chambéry para te apresentar como advo-
gado ao Senado», e Francisco consente nas diligências que, em 24
de novembro, conduzirão à sua entrada na ordem dos advogados.
Entretanto o Senhor de Boisy sonha em casar Francisco com uma
Menina «verdadeiramente nobre de sangue e de virtudes», Fran-
çoise Suchet de Miribel, e Francisco consente no encontro, com
o risco de não fazer «mais em Sallanches do que saudar simples-
mente a companhia, como se tivesse muito mais que fazer».
Mas há um perigo mais subtil, porque se poderia ver nisso
uma oportunidade única para a família de Sales: «Carlos Manuel
(duque de Saboia), estando bem seguro da probidade e doutrina
do Senhor de Villaroget, promoveu-o à dignidade de Senador na
soberana Corte de Saboia, por cartas régias que François Mel-
chior de Saint-Jeoire, barão d’Hermance, levou a Turim». François
agradece a sua Alteza e recusa. Mas todos estes acontecimentos
convencem-no de que chegou a altura de sair destas ambiguida-
des. «Dirigiu-se ao querido primo Louis de Sales, cónego na igreja
catedral de Genebra (três anos mais velho do que ele e que devia
ser seu companheiro de apostolado), e tomando-o à parte, abriu-
-lhe inteiramente o seu coração», Louis prometeu a Francisco que
«faria vir seu tio» ao desígnio deles.
As coisas, a partir então, vão tomar um ritmo mais rápido.

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Capítulo iii - O encarregado dos cónegos de Genebra
47
Estando vacante o cargo de vigário geral da Igreja de Genebra,
– o vigário geral era o segundo dignitário da diocese –, Louis de
Sales, sem falar disso a Francisco, empreende fazê-lo atribuir a seu
primo… Confia este projeto ao cónego François de Ronys, «que
tinha grande influência em Roma e que entendia muito bem a
negociação dos benefícios». O senhor de Ronys fez de imediato as
diligências habituais, «e Deus favoreceu de tal modo este assunto,
que em pouco tempo houve notícias certas de que Sua Santidade
o havia concedido». A 7 de março de 1593, as bulas de nomeação
eram assinadas em Roma; chegavam ao paço episcopal de Annecy
a 7 de maio.
Francisco ficou estupefacto. «Ele pensava que era um sonho»,
mas viu neste acontecimento, tal como seu primo, o argumento
que permitia obter do Senhor de Boisy, sem ferir demasiado o seu
orgulho paterno, a autorização «de ser da Igreja». A entrevista entre
Francisco e seu pai realizou-se sem dúvida no dia 9 de maio. Reves-
tiu-se do caráter dramático que a tradição lhe atribui? O Senhor
de Boisy tentou ainda ganhar tempo? Pouco importa. Aquiesceu
finalmente e abençoou o filho.
Desde o dia seguinte, 10 de maio de 1593, Francisco quis vestir
a batina. A cerimónia teve lugar na igreja da aldeia de la Thuile.
«Verdadeiramente, disse-lhe monsenhor Bouvard, impressionado
com o seu fervor, parecia ao ver-vos que tomáveis o hábito de capu-
chinho». – «Ah! Monsenhor, replicou Francisco, eu tomo o hábito
de S. Pedro». No dia 12 de maio, Francisco desce a Annecy e, fora
de qualquer cerimónia solene, é investido no seu cargo de Vigário
Geral. De acordo com o seu bispo, decide receber as quatro Ordens
Menores e o subdiaconado no sábado depois do Pentecostes.
É ao castelo de Sales que ele se desloca com o seu confessor,
reverendo Aimé Bouvard, a fim de se preparar para a receção das
Ordens. Ali chega no dia 18 de maio e só de lá regressará a 7 de
junho. Tempo de solidão, de reflexão, de oração… Um eco como-
vente deste retiro chegou até nós em l’Année Sainte das Visitandi-

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São Francisco de Sales
nas: em 19 de maio, Francisco pediu a monsenhor Bouvard para
renovar a tonsura que ele havia recebido, quinze anos antes, de
monsenhor Regard… Ora, por mais estranho que possa parecer, o
sacrifício do seu cabelo «que era, segundo consta, louro e belo» cus-
tou-lhe tanto que desencadeou nele uma vaga de tentações contra a
sua vocação! «Infelizmente, meu padre, confessou ele a monsenhor
Bouvard, há dois dias que sofro grandes combates contra a minha
vocação; o demónio não esqueceu nenhum recanto da minha alma
para me pôr à prova, e tentou-me até à ponta dos cabelos, dan-
do-me grande aversão a esta tonsura. A força de Sansão estava na
ponta da sua cabeleira, e eu penso que uma parte da minha fra-
queza estava na ponta da minha; com efeito, desde que a cortei,
sinto-me mais forte ao serviço de Deus, e prometi à Divina Majes-
tade despojar-me inteiramente do homem velho para viver daqui
em diante totalmente com a sua graça, em novidade de vida com
Jesus Cristo».
O facto de Francisco se referir nesta cerimónia ao belo texto
de S. Paulo sobre o batismo, significa claramente a sua resolução
de conversão radical. Uma nota da sua autoria, que Louis de Sales
afirma ter lido em placas, donde Francisco se havia esquecido de
a apagar, nos dá a entender com que fervor o retirante passou este
dia: «Francisco, não te esqueças de que Deus usou de grande mise-
ricórdia para contigo no dia 19 de maio de 1593, por intercessão
do glorioso S. Celestino, protetor do teu retiro de preparação para
as Ordens».
Ao mesmo tempo que se preparava espiritualmente para as
Sagradas Ordens, Francisco, para perfazer o exame canónico que
já havia feito, redigiu10 o seu primeiro sermão. O tema foi escolhido
segundo a liturgia: a Igreja celebrava então a festa de Pentecostes.
Francisco vê nesta circunstância um convite a pregar: «O dia de
10 Nós dizemos: redigiu, e não pronunciou; mas sem tomar posição na discussão dos
historiadores: Œuvres, T. VII, p. I, nota.

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Capítulo iii - O encarregado dos cónegos de Genebra
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hoje marca o início de toda a pregação»: ora, é notável que uma
passagem deste sermão se refira ao jogo, na alma, do livre arbítrio
e da graça!
A 7 de junho de 1593, Francisco regressa a Annecy. No dia 8,
renuncia legalmente ao seu direito de primogenitura e ao seu título
de Villaroget em favor de seu irmão Gallois. No dia 9 recebe das
mãos de Mons. de Granier as quatro ordens menores, e no dia 11,
«foi promovido à ordem sagrada do subdiaconado». Depois disso,
o seu prelado, acrescenta Charles-Auguste de Sales, ordenou-lhe
que se preparasse para o sermão do dia do Corpo de Deus». Na
realidade, o sermão só se realizou no dia da oitava.
É uma grande pena que o texto, ou pelo menos o esboço deste
sermão sobre «a realidade do corpo de Nosso Senhor na Santís-
sima Eucaristia» não nos tenha chegado às mãos: pois, a julgar pelo
resumo que dele nos faz Charles-Auguste de Sales, parece que o
jovem pregador apresentou nele, pela primeira vez, as suas ideias
sobre o amor de Deus: «Que o soberano bem é soberanamente
comunicativo de si mesmo, que há três principais comunicações, a
primeira pela qual o Pai se comunica ao Filho, e pela qual o Pai e o
Filho se comunicam ao Espírito Santo; a segunda pela qual a San-
tíssima Trindade comunicou a pessoa divina à natureza humana.
A terceira, pela qual Deus comunica o corpo de seu Filho, não à
natureza, mas a toda a pessoa humana. Que estas três comunica-
ções estão de tal forma ligadas entre si, que a terceira não pode
existir sem a segunda, nem a segunda sem a terceira». Era ir direto
ao coração da mística cristã.
Embora ainda subdiácono, o jovem Vigário Geral mostra-se
singularmente ativo. Entre 24 de junho e o Natal de 1593, faz pelo
menos cinco grandes sermões. Em toda a parte «brilha como um
sol radioso»: estuda, trabalha; mostra-se assíduo ao coro e apaixo-
nado pela liturgia. Visita os doentes, reconcilia os inimigos. Para a
santificação das almas, funda a confraria dos Penitentes da Santa
Cruz…

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São Francisco de Sales
Há apenas seis meses que Francisco é «de Igreja»! Que elã apos-
tólico, que zelo das almas neste clérigo! Que fogo! Que será então
quando tiver recebido a ordenação sacerdotal, quando ele for
bispo? Desde agora, carregou aos seus ombros o peso das almas. A
graça nele não é vã: «Temos um Apóstolo novo», teria gritado, após
o seu primeiro sermão, Monsenhor de Granier. Era uma profecia!
A vida dos Apóstolos será sempre ideal de que ele tentará aproxi-
mar-se o máximo.
No sábado das Quatro Têmporas de setembro, dia 18 do mês,
Francisco recebia o diaconado. A ordenação sacerdotal foi marcada
para 18 de dezembro, que era o sábado depois do terceiro domingo
do Advento. Graças a uma carta que o ordenando escreveu ao
seu amigo Antoine Favre, por volta de 15 de dezembro, entreve-
mos alguma coisa dos sentimentos que enchem então a sua alma:
«Ao aproximar-se deste dia terrível, deste dia espantoso, como lhe
chama S. Crisóstomo, em que, de acordo com a vontade do nosso
bispo, quer dizer de acordo com a vontade de Deus (porque eu
não busco outro intérprete desta divina vontade), ao aproximar-se
deste dia, digo eu, em que depois de haver passado por todos os
degraus das Sagradas Ordens, vou ser elevado à augusta dignidade
do sacerdócio, não posso dispensar-me de vos anunciar a insigne
honra e o bem excelente que me aguardam. Não convém que uma
tal transformação se opere sem o meu amigo saber num homem
que é todo vosso».
Não é sem temor que Francisco aborda esta «mudança», «a mais
gloriosa que (lhe) possa acontecer no mundo»: «Sou assaltado pela
maior inquietação que jamais senti… Se eu não me engano, nada
poderia acontecer de mais difícil e de mais perigoso ao homem
do que ser chamado a ter nas suas mãos e a produzir pela sua
palavra, segundo a expressão de S. Jerónimo Aquele que os Anjos,
essas inteligências que nós somos incapazes de compreender ou de
louvar dignamente, não podem nem sequer abraçar pelo pensa-
mento nem celebrar com justos louvores».

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Capítulo iii - O encarregado dos cónegos de Genebra
51
Francisco conta com a fé do seu amigo para compreender a sua
inquietação e sintonizar com a sua alma. «Seguramente, eu não
ignorava, meu estimado amigo, que espantosas responsabilidades
estavam associadas a uma tão santa e augusta dignidade; mas a
distância engana os olhos, e é bem diferente observar um objeto de
perto ou apreciá-lo de longe. Vós sois o único, estimado amigo, que
me parecíeis capaz de compreender a perturbação do meu espírito,
porque vós tratais as coisas divinas com tanto respeito e veneração
que podeis facilmente julgar como é perigoso e temível presidir à
sua celebração, como é fácil pecar e pecar gravemente, e como é
difícil desempenhar dignamente as santas funções».
Mas este desabafo amigável não deve enganar Antoine Favre:
«Não me falta coragem, acrescenta Francisco, até ao presente
nunca me abandonou». Havendo assim confiado ao seu amigo
mais querido a sua «inquietude», «unicamente para excitar (sua)
simpatia; é um remédio útil, eu sei, para aliviar um coração em
sofrimento», Francisco continua num tom firme: «Não penseis que
os santos mistérios me inspiram um pavor tal que não deixe em
mim lugar a uma esperança e a uma alegria bem superiores ao que
poderiam valer-me os meus próprios méritos. Rejubilo especial-
mente e exulto – Laetor plurimum et gaudeo – de poder corres-
ponder por este ofício mais sublime do que todos, quero dizer por
sacrifícios, e por sacrifícios da mais augusta Vítima…».
Aqui termina infelizmente a minuta autógrafa da carta: mas
tal qual, esta confidência é já para nós, entre todas, preciosa: ela
exprime bem a alma infinitamente delicada e prudente de Fran-
cisco, cuja força, elã, dilatação não têm a sua nascente senão no
mais profundo das verdades da fé.
Dia 18 de dezembro, Francisco era «ordenado padre»: «O
bondoso prelado, refere Charles-Auguste de Sales, não conseguiu
impedir as lágrimas ao impor-lhe as mãos e ao refletir que era
o seu muito querido filho. Mas nesta ação de servidor de Deus,
Francisco, deslumbrado na consideração da sua dignidade, parecia

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São Francisco de Sales
Annecy, igreja catedral.

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Capítulo iii - O encarregado dos cónegos de Genebra
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um homem do outro mundo». Antes de celebrar a sua primeira
missa, o novo padre quis ainda preparar-se com três dias de retiro.
No vigésimo primeiro dia de dezembro do ano mil quinhentos e
noventa e três, dia de S. Tomé apóstolo, canta a sua primeira missa
na igreja catedral». «Neste primeiro sacrifício, confidenciará ele
um dia à Madre de Chantal, Deus tomou posse da minha alma de
uma maneira inexplicável». Depois do ofício de Vésperas, acres-
centa Charles-Auguste numa fórmula para o nosso gosto dema-
siado elíptica, (ele) fez uma fervorosa pregação sobre o tema do
seu sacrifício. Segundo os costumes do tempo, este sermão foi sem
dúvida uma semi-confidência e de algum modo uma declaração de
programa, sendo de lamentar que não tenha chegado até nós.
Os cinco anos que vão seguir-se (1593-1598) revelar-nos-ão
em Francisco de Sales o padre de Jesus Cristo. Figura magnífica,
diante da qual os Protestantes do tempo, pelo menos os Protestan-
tes sinceros e os historiadores mais críticos de hoje, tiveram de se
inclinar. A graça brilha nesta alma sacerdotal. E por uma sorte pro-
videncial, vemos Francisco exercer o seu sacerdócio em duas situa-
ções aparentemente muito opostas: na calma da sossegada e muito
católica cidade de Annecy (Natal 1593-setembro 1594), depois na
tormenta e nos perigos da missão do Chablais.
Os primeiros meses de sacerdócio
A fase de Annecy deste apostolado começou pela solene «insta-
lação» do vigário geral. A cerimónia teve lugar pouco depois do
Natal. «Este sacro colégio de tantos gentis-homens e de doutores,
após haver feito as provas da sua nobreza e da sua doutrina segundo
o costume e os estatutos, colocou-o na real, atual e corporal posse
da dignidade de vigário-geral, com o beijo do altar-mor e outras
cerimónias habituais».

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São Francisco de Sales
Nesta ocasião, Francisco pronunciou um notável discurso-pro-
grama11. Após haver dado os seus agradecimentos e manifestado
a sua confusão por haver sido chamado, ele, tão jovem e inexpe-
riente, a presidir este «venerável cabido da igreja de S. Pedro de
Genebra», Francisco evocou naturalmente a tristeza deste exílio e
o desejo que, bispo e cónegos, conservavam no fundo do coração
de que um dia ele regressasse à cidade episcopal. E o vigário-geral
tenta propor aos seus cónegos uma «empresa», «tão grande quão
difícil; todavia, ela não é mais impossível do que não é indigna de
nós: tratar-se-ia de recuperar Genebra, esta sede antiga da vossa
assembleia».
Uma cruzada? O assunto deve ter surpreendido alguns dos assis-
tentes: sendo quase permanente a luta armada e fratricida entre os
protestantes e os católicos desta terra. Mas bem depressa, Fran-
cisco define o sentido da sua reconquista: «É pela caridade que é
preciso abalar os muros de Genebra, pela caridade que é preciso
invadir, pela caridade que é preciso recuperar… não vos proponho
nem o ferro, nem este pó cujo odor e sabor recordam a fornalha
do inferno… É pela fome e a sede suportadas, não pelos nossos
adversários, mas por nós mesmos que devemos repelir o inimigo.
É pela oração que nós os expulsaremos; com efeito este género de
demónios, como sabeis, não pode ser expulsado senão pela oração
e o jejum. Quereis um método fácil para tomar uma cidade de
assalto?».
E Francisco tira da Escritura o seu exemplo: Holofernes assal-
tando Betúlia ocupa o aqueduto e manda guardar todas as fontes
que matavam a sede à cidade. Assim há que fazer com Genebra:
«Há um aqueduto que alimenta e reanima por assim dizer toda a
raça dos hereges: são os exemplos dos padres perversos, as ações,
11 Esta peça muito notável é conservada na Biblioteca pública de Genebra; só foi
publicada em 1891, ao cuidado da Académie Salésienne. Cf. Œuvres, T. VII, pp.
99 sqq.

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Capítulo iii - O encarregado dos cónegos de Genebra
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as palavras, em suma, a iniquidade de todos, mas sobretudo dos
eclesiásticos. É por causa de nós que o nome de Deus é blasfemado
todos os dias entre as nações, e é com toda a razão que o Senhor se
queixa disso tão amargamente pelos seus Profetas. É esta a água de
contradição que me parece matar a sede ardente dos hereges… É a
nossa iniquidade que estes homens iníquos bebem, tal como está
escrito: eles bebem a iniquidade como a água… Dado que é assim,
meus companheiros de armas, dado que eles veem as ações dos
outros e não as suas, interrompamos o curso desta água, peço-vos».
Os pacíficos dos cónegos ficaram muito surpreendidos de ouvir
atribuir-se epítetos tão guerreiros. Impiedoso, o vigário-geral con-
tinua a sua arenga: ei-lo agora a evocar o exílio de Israel: «Deixar-
-nos-ia insensíveis, esta dor que nós deveríamos sentir acerca de
um exílio tanto mais pesado e menos honroso, de que os pecados
de todos nós prolongam a duração? Os Israelitas sentaram-se nas
margens dos rios de Babilónia, e choraram ao recordar-se de Sião.
Que faremos nós então, cónegos de Genebra? Não somos nós exi-
lados e peregrinos numa terra estrangeira, aquela em que habitamos
e pisamos com os nossos pés? Sentemo-nos então nestas margens
dos rios de Babilónia, isto é, da confusão, dos pecados; choremos
ao recordar-nos desta Sião genebrina, outrora tão gloriosa com os
troféus, e hoje, pelos crimes da nossa época e dos nossos antepas-
sados, esmagada sob a mais vergonhosa servitude da heresia».
Um último apelo, em que se resume toda a exortação do vigário-
-geral: «Numa palavra, pois há que terminar este discurso, devemos
viver de acordo com a regra cristã, de tal sorte que sejamos cónegos,
quer dizer regulares, e filhos de Deus, não somente de nome, mas
também de facto».
Convido aqueles que julgam Francisco de Sales demasiado «idea-
lista», a reler integralmente este texto (outros não são de modo
algum menos épicos): estes pensamentos, estas diretivas, este tom,
depressa nos revelaram o verdadeiro Francisco de Sales, quer dizer,
o padre de Jesus Cristo em luta contra o pecado do mundo, e con-

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São Francisco de Sales
Retrato de Francisco de Sales datado de 1618
(Visitação de Moncalieri).

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Capítulo iii - O encarregado dos cónegos de Genebra
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vencido de que pode triunfar dele pela oração, pela penitência e,
acima de tudo, pela caridade.
O jovem vigário-geral não se contenta com pregar por belas
palavras: ele age e dá exemplo. Não obstante as pressões dos seus
familiares, dos seus, obstina-se em recusar «o estado de senador,
ao qual havia sido promovido por Sua Alteza Sereníssima». Se
ele recusa tomar assento no Senado, pelo contrário é assíduo aos
ofícios do capítulo: «É uma máxima, responde ele um dia a Mons.
de Granier, preferir as ações comunitárias às particulares: Deus
está ali onde se está reunido em seu nome». Atendo-se à letra do
seu cargo, o vigário-geral poderia contentar-se com fazer respei-
tar a disciplina canonical: mas não é assim que Francisco entende
o seu sacerdócio: falando deste tempo, Madre de Chantal refere:
«Todos sabem que ele dizia a santa Missa e que ele assistia todos
os dias aos ofícios divinos, confessava e pregava excelentemente
com muita frequência a palavra de Deus; e desde então… era visto
como um homem de Deus».
Notemos este zelo do novo padre pelo ministério das confis-
sões: será um dos traços constantes do seu apostolado. «Tendo
uma autoridade especial do seu bispo (Mons. de Granier havia
nomeado Francisco penitenciário da sua diocese), erigiu um tri-
bunal para ouvir as confissões dos Penitentes na igreja Catedral,
muito próximo da porta de entrada do lado do Evangelho, onde
ele permanecia algumas vezes desde madrugada até ao meio-dia,
rodeado de um grande número de fiéis de um e de outro sexo, e
sem fazer distinção de pessoas».
Que este discurso não nos pareça exagerado: Francisco, mesmo
quando for bispo, entregar-se-á sempre a este ministério das con-
fissões, como a um dos mais importantes; confessará jovens e
velhos, pobres e ricos, nobres e camponeses, sãos e doentes, robus-
tos e débeis»; a sua mãe e o seu pai, eles próprios, dada a ocasião,
recorreram a ele. Gosta de prestar serviço aos outros padres da
diocese, recusa de resto qualquer dinheiro por estes ministérios,

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São Francisco de Sales
embora os seus rendimentos sejam muito escassos, tendo a vigara-
ria sido espoliada de todos os seus bens pelos hereges de Genebra;
pelo contrário, ele encontra maneira de dar esmolas, e de as «dar às
escondidas aos pobres envergonhados». Gosta de aliviar, consolar,
reconciliar. Consultam-no cada vez mais sobre questões de direito
ou de teologia.
Todo este zelo e todo este sucesso não deixavam por vezes de
provocar alguma inveja ou alguma crítica: tentaram até colocar o
bispo contra o seu vigário-geral. Mas pela sua paciência e humil-
dade, Francisco vencia os seus opositores, e ao mal que lhe haviam
feito, só respondia com o perdão. De resto, tem muitos amigos
que o ajudam e o apoiam quando é caso disso: tal como o senador
Antoine Favre, a quem chama, em correspondência Frater suavis-
sime, amantissime, dulcissime, e com quem organiza na terça-feira
de Pentecostes de 1594, na igreja de Aix onde se conserva uma
parcela da verdadeira Cruz, a peregrinação comum da confraria
dos Penitentes de Annecy e da confraria, recentemente ereta por
Antoine Favre, dos Penitentes de Chambéry.

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 59
4. O APÓSTOLO DO CHABLAIS: O TEMPO
DAS SEMENTEIRAS
A escolha do Vigário-Geral
Dá-se então na vida de Francisco uma mudança considerável. Este
vigário-geral dos cónegos de Genebra, que parecia votado a uma
vida laboriosa certamente, mas sem perigo, e facilmente brilhante,
vai tornar-se por quatro anos um missionário pobre, ameaçado,
necessitado, que se poderá comparar a Francisco Xavier, e mesmo
a S. Paulo. Terá, ele em primeiro lugar, de conduzir este assalto,
senão contra Genebra, pelo menos contra ministros protestantes
inspirados em Genebra, que ele havia anunciado no seu discurso
da tomada de posse: ameaças, insultos, contradições, fracassos,
abandonos, nada lhe será poupado. Na existência de Francisco de
Sales, não há talvez época em que ele pareça maior…
Trata-se daquilo a que os historiadores do santo chamam a
Missão do Chablais.
O Chablais, este pequeno território com uma dezena de léguas
de comprimento e cinco de largura, contornado a norte pelo lago
Leman e a sul pelos montes de Faucigny. Em 1594, o duque de
Saboia Carlos Manuel vem recuperá-lo; faz parte do território sob
jurisdição do bispo de Genebra, Mons. de Granier. Mas a sua situa-
ção religiosa não é nada animadora para o bispo: das vinte e cinco
mil almas que o povoam, resta apenas uma centena de católicos;
todo o resto passou, de livre vontade ou à força, para o protestan-
tismo.
Como é que as coisas chegaram a tal ponto de degradação? Seria
demasiado longo de explicar em pormenor em que vicissitudes
viveu esta região depois da chegada do protestantismo a Genebra.

6.10 Page 60

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São Francisco de Sales
Citemos apenas um fragmento da carta de «informações» que
Francisco escreveu de Thonon, a 19 de fevereiro de 1596, ao núncio
apostólico em Turim, Monsenhor Giulio-Cesare Riccardi: «Uma
parte desta diocese de Genebra (trata-se do Chablais) foi invadida
pelos Bernenses, há sessenta anos, e ficou herética; mas, nestes
anos passados, esta região, pela força das armas, ficou de novo sob
o domínio de Sua Alteza e foi reunida ao seu antigo património.
Bom número de habitantes, mais impressionados com o estrondo
dos arcabuzes do que com as pregações que lhes eram feitas por
ordem do senhor bispo, voltaram à fé e reentraram no seio da nossa
mãe a Santa Igreja; mas depois, tendo estas regiões sido infestadas
pelas incursões dos Genebreses e dos Franceses, o povo caiu de
novo no seu lamaçal».
Os anos durante os quais Francisco vai trabalhar no duro na
conversão desta região dilacerada são marcados por dois aconte-
cimentos importantes: a abjuração de Henri de Navarre, a 25 de
julho de 1593, que permitiu ao duque Carlos Manuel recuperar
o Chablais e enfraqueceu, mas sem a anular (todos temiam que
os Genebreses voltassem a ser senhores da região), a pressão do
protestantismo sobre as almas; e o tratado de Vervins em 1598, que
parecia reconciliar a França e a Espanha e trazer uma promessa de
paz, ainda que o diferendo entre a França e a Saboia nele não fosse
completamente liquidado. São, portanto, para os habitantes anos
de incerteza política, e por consequência, – porque tal é a infelici-
dade do tempo – anos de hesitação religiosa. São também anos de
despesas muito pesadas para o duque Carlos Manuel que, sincera-
mente desejoso, por razão de Estado como por convicção religiosa,
de ver Francisco ter sucesso na conversão do Chablais, não poderá
fornecer-lhe a ajuda financeira que a restauração das paróquias e
a criação de obras e, nomeadamente, de colégios para a juventude,
exigiriam. Estas circunstâncias vão conferir à missão do Chablais
– que poderia ser um empreendimento muito colorido de polí-
tica – um caráter incontestavelmente evangélico: é na pobreza, no

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 61
esforço, na penitência, nas contradições, que Francisco trabalhará
muito tempo na reconquista espiritual desta região.
Mas como é então que Francisco foi escolhido para este duro e
perigoso ministério? O duque, desde o fim de 1589, havia pedido
a Mons. de Granier que nomeasse párocos nas cerca de cinquenta
antigas paróquias do Chablais: um ano mais tarde, em fevereiro de
1591, estes cinquenta padres haviam sido de novo expulsos pelos
calvinistas; e o mais claro resultado dos seus trabalhos havia sido
comprovar que o meio tentado não era certamente o melhor. Mais
valia enviar para lá, ao menos para começar, somente dois ou três
padres, mas padres de grande ciência e profundamente religiosos:
«Este grande prelado (Mons. de Granier), narra candidamente
Charles-Auguste de Sales, olhou para todos os lados a fim de ver
aqueles que seriam capazes de lançar a semente da palavra de Deus
nestas terras. Quase todos se mantinham escondidos, pelo terror
que os perigos lançavam nos seus corações. Ele havia verdadeira-
mente lançado os olhos em primeiro lugar para o seu filho, o senhor
vigário-geral Francisco de Sales; mas por certas considerações que
ele alimentava em si mesmo, não ousava fazer-lhe a proposta». Teve
então a ideia de convocar o seu clero em assembleia, e de solicitar
voluntários: «O magnânimo Francisco, havendo sido chamado à
assembleia do clero reunida para este efeito, e vendo que ninguém
dizia palavra, levantou-se corajosamente da sua cadeira e disse:
«Monsenhor, se V. Exª. julgar que eu sou capaz e que mo pede,
estou inteiramente pronto a obedecer e irei de bom grado». Não é
possível dizer quanto o bom bispo ficou contente com esta oferta.
E replicou que não somente o julgava muito capaz, mas sobretudo
que isso lhe parecia o melhor expediente».
A cena é bela, e muito conforme ao temperamento e à graça de
Francisco. Mas talvez esta narração não sublinhe devidamente um
matiz que em nada diminui a generosidade do vigário-geral, – bem
pelo contrário – e que ele mesmo indica no seu relatório de 19 de
fevereiro de 1596 ao núncio Riccardi: «Querendo Sua Alteza Sere-

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São Francisco de Sales
níssima, de um lado, e o nosso Reverendíssimo Senhor Bispo, do
outro, remediar este mal, venho aqui por ordem do meu dito Reve-
rendíssimo Bispo, não como médico capaz de curar tanta enfer-
midade, mas antes como explorador e como precursor, a fim de
examinar os meios a utilizar para prover a região de remédios e de
médicos».
Em suma, mais um precursor, encarregado de preparar a missão,
do que um missionário propriamente dito; e compreende-se melhor
a palavra de Mons. de Granier, tal como a refere Charles-Auguste:
«A estas palavras (Monsenhor) juntou um agradecimento, com
que (Francisco) queria socorrer a sua velhice, dado que a verdade
era tal que todo o peso devia cair sobre os seus ombros enquanto
ele tivesse força bastante para o suportar». Foi, portanto, na quali-
dade de suplente do bispo que Francisco partiria. Tal não diminui
em nada o seu mérito: a missão de precursor em tais circunstâncias
é já muito perigosa: ele deverá, em Thonon, a capital do Chablais,
trabalhar sob a proteção dos soldados católicos do Barão de Her-
mance que estão de guarnição no castelo des Allinges. De resto, o
apostólico Francisco não se contentaria com jogar aos inquiridores
ou aos diplomatas: o mensageiro, como o indica admiravelmente
o relatório de 19 de fevereiro de 1596 ao Núncio, far-se-á desde o
início missionário…
«Logo que o servo de Deus preparou o que lhe era necessário
para esta expedição apostólica, isto é, livros, mas, além da sagrada
Bíblia e As Controvérsias do cardear Roberto Bellarmino, muito
poucos mais. Levou consigo o seu muito querido primo, Louis de
Sales, cónego, homem de um espírito muito claro e muito afável e
que já havia dado grandes provas da sua capacidade em matérias
de teologia, para a pregação da palavra de Deus.
Além disso, recomendou este assunto aos sacrifícios dos seus
confrades cónegos, dos outros bons eclesiásticos e religiosos da
diocese.» Mesmo tendo em conta a parte edificante que é usual
neste género de biografias, compreende-se, através destas palavras

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 63
de Charles-Auguste, a atitude de alma de Francisco e de Louis, par-
tindo para o Chablais.
Um incidente vai, de resto, dar ocasião a Francisco de exprimir
mais claramente os seus sentimentos íntimos. Não ignorava que
a sua empresa encontraria da parte de seu pai a mais feroz oposi-
ção… Passando por Sales, decidiu fazer ali uma paragem a fim de
«receber (a sua) ordem. Mas certamente o senhor de Sales não lhe
ordenava outra coisa senão ficar». Os argumentos do velho gentil-
-homem eram cheios de sabedoria humana e de prudência política.
Francisco teve de enfrentar uma terrível tempestade. «Apoiando-
-se só em Deus e na obediência», diz a Madre de Chantal, mantém-
-se firme. «Meu pai, responde ele, Deus proverá; é Ele que ajuda os
fortes: basta ter coragem; nós não temos problemas com bárbaros.
Além de que não somos ali totalmente desconhecidos (esta confis-
são de Francisco não é de negligenciar, para compreender a escolha
que se fez dele para esta missão), não vamos lá para saquear, nem
para devastar; queremos atacá-los só com armas espirituais. Eles
não farão mal aos nossos corpos. E Deus, segundo a sua promessa,
dará uma grande virtude às nossas palavras, para pregar a verdade
do seu Evangelho. E que seria se nos enviassem para as Índias
ou para a Inglaterra, não haveria que ir? Certamente, seria uma
viagem bem desejável, e a morte que nós sofreríamos por Jesus
Cristo valeria mais que mil vitórias. De resto, é esta a vontade de
Sua Alteza Sereníssima, é esta a ordem e a missão de Monsenhor
Reverendíssimo, nada mais há a contestar. É uma tarefa laboriosa, é
verdade, e ninguém o negará; mas porque usamos nós estas vestes,
se não queremos a sua responsabilidade?»
O Senhor de Boisy hesitou e, para não assistir à despedida de seu
filho, retirou-se para o castelo de la Thuile, donde todavia enviou
cartas a certos amigos do Chablais, a fim de que cuidassem da vida
de seu filho e de seu sobrinho.
Na terça-feira 14 de setembro, festa da Exaltação da Santa Cruz,
Francisco e Louis continuaram a sua viagem. Depressa chegaram

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São Francisco de Sales
a Saint-Cergues e descobriram a planície magnífica do Chablais.
Apressaram-se em direção a esta fortaleza dos Allinges «assente
numa montanha redonda», a fim de se apresentarem primeiro ao
senhor governador, o barão de Hermance. Chegaram lá ao cre-
púsculo. O barão «recebeu na fortaleza os dois novos apóstolos…
Deste lugar elevado, via-se a miserável face desta província».
Com efeito, esta província é de um pitoresco admirável; mas
nesse momento, ao contemplá-la, Francisco tinha mais preocupa-
ções do que admirar a paisagem: ao atravessar a região, os dois
missionários haviam já podido aperceber-se em parte da ruína do
catolicismo. «Eu falo, portanto, do que vi e, por assim dizer, do que
as minhas mãos tocaram, escreverá um dia Francisco ao papa Cle-
mente VIII; e sou o último dos homens, se disser o contrário da
verdade, o mais desconsiderado, se não a conhecer. Acabados de
entrar nestes territórios, um espetáculo entristecedor se ofereceu
por toda a parte aos nossos olhos. Tínhamos diante de nós sessenta
e quatro paróquias; ora, excluindo os oficiais católicos do duque
que nunca quis ter outros, não se encontraria uma centena de fiéis
numa população de vários milhares de almas. Templos, na maior
parte destruídos ou espoliados; mais, absolutamente sem qualquer
cruz, sem altares, mas por todo o lado os vestígios da antiga e ver-
dadeira fé aniquilados. Por toda parte ministros, como são desig-
nados, quer dizer, mestres de heresia, pervertendo as famílias, insi-
nuando a sua doutrina, invadindo os púlpitos, em vista de um lucro
vergonhoso. Os Bernenses, os Genebrenses e outros semelhantes
filhos de perdição, aterrorizam o povo, por meio dos seus emissá-
rios, para os desviar das nossas pregações. As tréguas, dizem eles,
são apenas uma pausa; a paz não está de forma alguma conseguida;
dentro em breve expulsaremos pelas armas duque e padres, e o
nosso partido, desafiando qualquer insulto, ficará o único vence-
dor».

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 65
Os restos da fortaleza dos Allinges.

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São Francisco de Sales
A resistência dos habitantes de Thonon
Tal é a situação. E Francisco procura informar-se junto «do barão
de Hermance, dos meios e da maneira de começar o trabalho». É
em Thonon, evidentemente, que há que tomar contacto com os
protestantes, não há mais que uma quinzena de católicos, mas entre
eles o procurador fiscal Claude Marin, muito devotado ao duque,
o juiz mago Claude d’Orlier, e alguns amigos do Senhor de Boisy,
como Charles Vidomne, senhor de Charmoisy. Francisco fala já
de ali celebrar missa. O barão de Hermance «não achou que fosse
ainda o momento de instituir a celebração da missa em Thonon,
nem noutro sítio, dado que, de noite, não havia segurança em lado
nenhum senão na fortaleza; se bem que, disse ele, nestes inícios,
poder-se-ia encontrar maneira de pregar em Thonon»… Francisco
seguiu o conselho do barão, e tomou alojamento no castelo.
Na sexta-feira 16 de setembro de 1594, o pequeno punhado de
católicos reuniu-se com os dois missionários, na casa do procura-
dor Claude Marin.
No domingo 18, havendo apresentado devidamente ao primeiro
síndico de Thonon, Pierre Fornier, as cartas do duque, que auto-
rizavam a missão, Francisco marcou encontro com as suas novas
ovelhas na antiga igreja de Santo Hipólito, depois de terminada a
celebração calvinista. Assim aconteceu: havendo o ministro Viret
terminado a sua pregação, Francisco entrava na igreja, seguido «dos
ajudantes ducais e de alguns católicos»12, e fazia a este modesto
auditório um sermão, fortemente sustentado por citações da Escri-
tura, sobre a missão dos pastores da Igreja.
Desde então os nossos dois missionários nunca mais interrom-
perão o seu trabalho: Louis encarregando-se sobretudo da região
dos Allinges, e Francisco mantendo-se no centro do perigo, em
Thonon. Uma carta de Francisco ao senador Favre, datada muito
12 Nota no verso da cópia do autógrafo. Cf. Œuvres, T. VII, p. 202.

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 67
provavelmente de 4 ou 5 de outubro, informa-nos sobre estas pri-
meiras semanas. Confessa que «a nuvem na qual comanda sem
dúvida o príncipe das trevas» lhe «parece sombria», e ainda que ela
«obscurece cada vez mais os espíritos destes homens».
Após o sermão de 18 de setembro, as coisas pareciam melho-
rar ligeiramente: «O governador com alguns outros católicos nada
descurou, para atrair, por secretas persuasões, os camponeses dos
arredores e os burgueses de Evian aos nossos sermões, e para fazer
avançar, com um zelo ardente e esclarecido, os assuntos da religião».
Mas bem depressa, os hereges reagiram: «Os principais de Thonon,
havendo reunido o seu conselho (este conselho realizou-se no
domingo 2 de outubro), juraram, por uma soberana perfídia, que
nem eles, nem o povo, nunca assistiriam às pregações católicas…
Aquilo foi, pelo que me disseram, anteontem, nos paços do conce-
lho, e vários deles haviam já tomado esta resolução, na assembleia
dos ímpios, a que eles chamam o seu consistório… Eles queriam
seguramente fazer-nos perder a esperança de levar os nossos proje-
tos a bom termo e, portanto, obrigar-nos a retirar-nos».
Era conhecer muito mal Francisco de Sales! «Não será assim;
porque enquanto nos for permitido pelas tréguas e pela vontade
do príncipe, tanto eclesiástico como secular, estamos absoluta-
mente decididos a trabalhar sem descanso nesta obra, a não deixar
uma pedra por mexer, a suplicar, a retomar com toda a paciência
e a ciência que Deus nos der. Eu sustento a quem quiser discu-
tir comigo sobre este assunto, que não somente as pregações são
necessárias, mas também que é necessário restabelecer a celebra-
ção do Santo Sacrifício o mais depressa que se puder, a fim de que
o homem inimigo veja que pelos seus artifícios nos dá coragem em
vez de no-la tirar». E Francisco acrescenta esta frase que em poucas
palavras diz muito sobre a mistura, nestes assuntos, da política e
da religião: «Mas nisto é preciso usar de uma grande prudência na
expetativa desta condição, a saber: se a paz temporária de que nós
gozamos for duradoura».

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São Francisco de Sales
Tudo se conjuga, neste inverno de 1594-1595, para desanimar
Francisco: o rigor de uma estação que foi particularmente rude,
a oposição dos ministros protestantes que se mostra eficaz sobre
o povo, as negociações que decorrem em Annecy em torno do
bispo para que ele o chame: «Espero, notifica-lhe Antoine Favre a
31 de outubro, que os meus mensageiros não terão que vos entre-
gar as minhas cartas nessa solidão em que viveis, mas nesta cidade
onde em breve, prevejo eu, vos chamarão não somente o desejo de
um pai muito atento, mas também as ordens de um bispo muito
afetuoso. Porque entre eles, na minha presença, tratou-se de vos
chamar e de vos dar um sucessor».
A isto se juntavam «mil injúrias e mil zombarias», para falar
como um dos seus biógrafos; chamavam-lhe «hipócrita, idólatra,
falso profeta», acusavam-no de magia e de feitiçaria. «Faziam-lhe
emboscadas», «subornavam facínoras que procuravam dar-lhe a
morte». Atenhamo-nos a um facto certo e claro: é um fragmento de
carta de 27 de novembro de 1594 que nos informa: «Deus faz-me
aqui empreender um trabalho digno só da virtude da sua direita.
Começo hoje a pregar o Advento a quatro ou cinco pessoas simples;
todo o resto ignora maliciosamente o que quer dizer Advento; e
este tempo tão augusto na Igreja torna-se objeto de opróbrio e de
ridículo entre os infiéis».
Mas estas dificuldades não desanimam o nosso missionário:
«A oração, a esmola e o jejum são as três partes que constituem
o cordão dificilmente quebrado pelo inimigo; vamos, com a divina
graça, tentar ligar com ele o adversário». A oração, a esmola, o
jejum… «Ia para o meio da neve, com mau tempo, a pé, a não ser
que o tempo estivesse tão mau que o fizessem ir a cavalo, refere-
-nos Madre de Chantal; e ouvi-lhe dizer a ele mesmo e ao falecido
senhor Louis de Sales, mesmo a ambos como penso, que ao regres-
sar de (Thonon) este Bem-aventurado ia a outras aldeias pregar,
confessar e fazer o que era necessário para o bem e o progresso da
alma. Estas viagens não se faziam sem perigo…». As coisas che-

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 69
garam a tal ponto que o barão de Hermance propôs a Francisco
dar-lhe uma guarda armada – o que este recusou com horror – e
que ele teve de o fazer acompanhar secretamente e de longe por
alguns soldados…
Mudança de estratégia: as Controvérsias
Aparentemente, é o insucesso. Ao fim de quatro meses de prega-
ção, Francisco teve de constatar que os seus progressos são nulos.
Vai tentar outro método de conquista: dado que não querem escu-
tá-lo, vai escrever. As suas provas, os seus argumentos, as suas refu-
tações, será em casa que os protestantes terão conhecimento deles:
lê-los-ão, relê-los-ão à vontade, discuti-los-ão ou meditá-los-ão
livremente. Simples folhas volantes, mensagens redigidas em pleno
combate, ao longo dos raros tempos livres arrancados aos compro-
missos e às tarefas quotidianas, para os quais, todavia, Francisco se
fixou um plano geral, e com que sonha, segundo parece, desde o
princípio fazer algum dia um livro. Desde a primeira edição, desig-
na-se este conjunto sob o nome de Controvérsias, assim faremos
nós: mas não sem lamentar que se tenha abandonado o nome de
Meditações, ou este, mais expressivo ainda, de Memorial, que o
próprio Francisco atribui a estes escritos.
Acreditando nele, a ideia deste método foi-lhe inspirada por
«um gentil-homem sério e judicioso». A sua «Epístola aos Senho-
res de Thonon» pela qual anuncia o seu desígnio, está datada de 25
de janeiro, «dia da conversão de S. Paulo»; mas, nesta data, ele já
se pôs ao trabalho. Em fins de janeiro, pede desculpa ao seu amigo
Antoine Favre do seu atraso epistolar: «Eu esperava, meu irmão,
enviar-vos parte do nosso trabalho; mas, mudando de opinião,
resolvi aguardar que ele formasse, por assim dizer, um corpo, mais
do que enviar-vo-lo peça a peça. Além disso, sou tão pouco dili-

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São Francisco de Sales
gente que, dividido entre diversas outras ocupações, nem sequer
comecei bem a sério… Revolvo no meu espírito Meditações sobre
as mudanças dos hereges do nosso tempo».
Um pouco mais tarde, sem dúvida lá por meados de fevereiro de
1595, escreve mesmo: «Desejais ver as primeiras páginas da minha
obra contra os hereges: também o desejo muito, e não levarei os
meus estandartes para as fileiras do inimigo com todo o ardor
que esta causa merece, antes que tenhais aprovado o meu desíg-
nio, o plano de batalha e a tática adotada. Mas sinto a dificuldade
da empresa, e mais ainda, faltam-me as tropas auxiliares de que
preciso: quero dizer, os livros necessários a um homem que não
guarda na memória senão uma pequena bagagem de conhecimen-
tos. Todavia, comecei e comecei de tal maneira que será um pouco
mais difícil do que eu pensava levar a bom termo a meu projeto…
Os Allinges, capela onde celebrava Francisco de Sales.

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 71
Logo que seja possível fazer-se, vereis alguma coisa do meu traba-
lho».
Ao mesmo tempo, anuncia ao seu amigo uma decisão impor-
tante: «Vou passar em Thonon o resto da quaresma: é o que me
parece melhor». O melhor? Para a redação das suas controvérsias,
certamente, poderá dispor ali de algumas bibliotecas de amigos;
para alegria e coragem dos católicos também; e até para certos cal-
vinistas que querem consultá-lo em segredo. Mas que temeridade!
Humanamente, o seu gesto é imprudente, e terá ainda durante
algum tempo de esconder o lugar do seu retiro.
A 7 de março, anuncia a Antoine Favre: «Por fim, desci a
Thonon; que o inimigo espere uma discussão muito excitada pelo
aborrecimento do atraso. Atacado das alturas longínquas da minha
cidadela, desprezou condições justas; agora, lançar-lhe-ei o último
assalto». O trabalho superabunda: «Pregações mais numerosas
impedem-me de dar às nossas Meditações contra os hereges toda
a atenção que seria necessário». Mas eis que talvez lhe vá chegar
ajuda: o célebre capuchinho, o padre Chérubin de Maurienne.
«Pois que venha então!».
Francisco ainda não ousa celebrar a santa missa em Thonon:
todas as manhãs vai à capela de Saint-Etienne da aldeia de Marin,
na outra margem do Dranse. Tudo isto não era isento de grande
perigo: um dia Francisco e três companheiros, um deles servidor
do Senhor de Boisy que ali se encontrava, Georges Rolland, foram
assaltados na estrada dos Allinges por dois homens armados. Graças
à calma de Francisco, o incidente terminou sem efusão de sangue, e
até com um perdão. Mas Rolland correu de imediato ao castelo de
Thorens a contar a aventura; o Senhor de Boisy ordenou a seu filho
que regressasse a Annecy, e eis a carta que recebeu em meados de
março de 1595: «Senhor meu honradíssimo pai, se Rolland fosse
vosso filho tal como é vosso criado, não teria a cobardia de recuar
por um tão pequeno choque como aquele em que se encontrou,
e não faria dele o ruído de uma grande batalha. Ninguém pode

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São Francisco de Sales
duvidar da má vontade dos nossos adversários; mas também nos
ofendem quando duvidam da nossa coragem. Pela graça de Deus,
nós sabemos que aquele que perseverar será salvo… Suplico-vos,
portanto, meu pai, que não atribuais a minha perseverança à deso-
bediência…».
Assim escreve ao Senhor de Boisy, mas, quando desabafa livre-
mente do fundo da alma, as suas confidências assumem outro tom.
Neste início de abril de 1595, escreve a monsenhor de Granier: «Se
deseja saber, como é conveniente que saiba, o que fizemos e o que
fazemos agora, encontrará tudo nas epístolas de S. Paulo: cami-
nhamos, mas à maneira de um doente que depois de haver estado
muito tempo de cama, perdeu o andar e, no seu débil estado de
saúde, não sabe se está mais são do que doente…».
Com o padre Possevino, seu antigo diretor de consciência, a sua
confidência torna-se ainda mais íntima: «Tenho aqui alguns fami-
liares e outros que me respeitam por certas razões particulares que
não posso dizer a outras pessoas; e é o que me mantém empenhado
no trabalho. Andaria muito desgostoso nisso, se não fosse a espe-
rança que eu tenho de melhor; além disso, sei bem que o moleiro
não perde tempo quando pica a sua mó. Igualmente seria muito
triste que outro utilizasse aqui a sua pena para nada, que poderia
produzir mais fruto noutro sítio do que eu, que ainda não sou nada
bom para pregar senão às muralhas, como faço nesta cidade».
Por fim, um primeiro sucesso vem recompensar a perseverança
de Francisco: o célebre advogado e jurisconsulto Pierre Poncet,
abjurava do calvinismo: houve grande regozijo entre os católicos
e Francisco recebeu muitas congratulações com esta conversão;
com efeito, a personagem era «de grande estima… e tinha muito
crédito».
Por volta da festa da Ascensão, Francisco – talvez para descansar
um pouco – voltou a Thorens. Passou uma semana no castelo de
Sales; depois desceu de novo a Annecy. Durante as festas de Pente-
costes que, naquele ano, caía a 16 de maio, pregou vários sermões.

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 73
No sábado 25 de maio – Dia do Corpo de Deus – Francisco foi
favorecido com uma graça extraordinária: «Às três horas da manhã,
enquanto meditava profundamente no santíssimo e augustíssimo
sacramento da Eucaristia, narram pouco mais ou menos com as
mesmas palavras Charles-Auguste de Sales e o padre de la Rivière,
sentiu-se arrebatado por uma tão grande abundância de suavidade
pelo Espírito Santo… que, deixando-se o seu coração levar por
tantas delícias, ele se viu forçado a lançar-se por terra e a gritar:
Senhor, retende as ondas da vossa graça; retirai-vos de mim que
já não posso conter a grandeza da vossa doçura, com a qual sou
obrigado a prostrar-me».
E Charles-Auguste acrescenta: «Assim inundado desta torrente
de delícias, foi celebrar a santa missa; de lá, subiu ao púlpito e pregou
com uma tão grande eficácia de palavras e com tanto ardor, que
parecia brilhar de toda a face, tão inflamado estava pelos divinos
abrasamentos do amor celeste.
Deus com os seus favores sustentava a alma do seu missioná-
rio. Com efeito chegava a hora de voltar ao Chablais. No princípio
de junho, Francisco fez uma paragem no castelo de Sales e teve
a mágoa de reencontrar intacta a oposição paterna; como o seu
cargo de vigário-geral não lhe dava qualquer rendimento, e o seu
pai lhe recusava qualquer ajuda, voltava para Thonon sem nada. O
duque Carlos Manuel não lhe manifestava nenhum apoio nem lhe
concedia qualquer ajuda. Só a sua fé em Deus o sustentava no seu
empreendimento… Em Thonon, encontrou de novo o seu pequeno
rebanho fiel, violentamente fustigado pelos calvinistas que, devido
à ausência de Francisco e não obstante a presença de Louis de Sales,
havia redobrado a audácia.
Apesar de tudo, retomou corajosamente o trabalho. E estes meses
de verão foram sem dúvida consagrados, em larga medida, às Con-
trovérsias. Parece, por exemplo, que se pode datar de 29 de junho,
festa de S. Pedro e de S. Paulo, a folha «Da unidade da Igreja. A
verdadeira Igreja deve ser una no seu chefe» e que a folha «Da prof-

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São Francisco de Sales
anação das Escrituras pela facilidade com que eles pretendem estar
na inteligência da Escritura» haja sido redigida em 4 de outubro13.
Escrevendo em 21 de julho a Pedro Canísio, o teólogo jesuíta
que Inácio de Loyola havia enviado ao Concílio de Trento e que
havia nomeado primeiro provincial da Alemanha, Francisco diz-
lhe: «Há nove meses que estou no meio dos hereges e, por muito
vasta que seja a messe, só pude colocar oito espigas na arca do
Senhor… No número destes convertidos encontra-se um certo
Pierre Poncet, jurisconsulto muito erudito e, no que concerne à
heresia, muito mais sábio do que o ministro calvinista do lugar.
Vendo nas conversas familiares que o testemunho da antiguidade
tinha impacto sobre ele, emprestei-lhe o seu Catecismo que contém
os ensinamentos dos Padres… Esta leitura tirou-o do erro e recon-
duziu-o à via trilhada que conduz à Igreja. Por fim voltou, pelo que
nós, um e outro, lhe estamos muito gratos».
Esta leitura apresenta um interesse considerável: Francisco vê-se
confrontado com dificuldades teológicas, levantadas pelos calvi-
nistas e que ele não pode resolver «mesmo com a ajuda das obras de
Bellarmino; os livros necessários para isso faltam aqui; com efeito,
aconteceu que eu só trouxe comigo um pequeno número deles que
tratam das controvérsias do nosso tempo». Tendo tomado cons-
ciência de que não estava separado de Canísio «por assim dizer
senão pelo lago Leman», propõe-se escrever-lhe de vez em quando
para lhe submeter certas questões «sobre as matérias teológicas e
as dificuldades que elas apresentam, a fim de receber também por
carta as suas soluções».
Vê-se – e só merece admiração – o cuidado que ele colocava
na redação das suas folhas e como Francisco tomava a sério os
argumentos dos huguenotes. Eram impressas? Parece que se
deve acreditar nas Visitandinas que o afirmam, mais do que em
13 Cf. Œuvres, T. I, p. 90 : « Évangile du jour d’huy »; e na p. 194, alusão à festa de S.
Francisco de Assis.

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 75
Dom Mackey que o nega: em todo o caso, todas as semanas
uma nova folha «era distribuída nas casas de Thonon e nas do
campo».
Neste mês de julho não se ocupou apenas de teologia. «Passei todo
o mês, quer em peregrinação (isto é, em missões apostólicas), quer
em voltas indispensáveis»14, escreve ele de Annecy, a 2 de agosto, a
Antoine Favre. É fadiga? Excesso de trabalho? Sob a atitude sempre
corajosa, trespassa um cansaço: «A seara de Thonon é um fardo
que ultrapassa as minhas forças, mas decidi não a abandonar senão
com o vosso consentimento, por ordem vossa. Todavia, continuo a
preparar, por toda a sorte de expedientes e habilidades, novos ope-
rários para esta obra, e a buscar-lhes meios de subsistência. Não
vejo maneira de isto acabar, nem qualquer saída no meio destas
astúcias infinitas do inimigo do género humano».
Aqui uma confidência preciosa: «Fiquei atormentado e continuo
a estar, meu irmão, ao ver que no meio de tantas catástrofes que
ameaçam as nossas cabeças, nos resta apenas um momento para
cultivar a devoção de que teríamos tão urgente necessidade. Pre-
cisamos, todavia, contando com a misericórdia de Nosso Senhor,
de elevar os nossos corações a melhores esperanças… Regresso
amanhã à minha Esparta».
De facto, as coisas «em Esparta» vão melhorar um pouco. A
carta que Francisco escreve de Thonon, em 18 de setembro, a
Antoine Favre, é uma obra-prima que, só por si, nos revelaria o
ardor missionário, a fé, o coração daquele que a escreveu: «Eis que
enfim, meu irmão, uma porta mais larga e mais bela se nos abre
para entrar nesta seara de cristãos, porque ontem pouco faltou que
M. d’Avully e os síndicos da cidade, como são designados, viessem
abertamente à pregação, porque tinham ouvido dizer que eu devia
14 Entre as quais devemos contar a resolução de algumas disputas que o Bispo de
Granier lhe confia. Cf., se forem autênticas, as cartas LV e LVI, Œuvres, T. XI, p.
148 e p. 151.

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São Francisco de Sales
falar do augustíssimo sacramento do altar. Tinham tanta vontade
de me ouvir na exposição da crença dos católicos e das suas provas
referentes a este mistério, que não ousando vir publicamente, com
receio de parecer esquecidos da lei que se impuseram, escutaram-
-me de um certo lugar onde não podiam ser vistos15, se porém a
fraqueza da minha voz não pôs obstáculo a isso.
E Francisco estimulou mais esta curiosidade, prometendo que
na pregação seguinte (ele) colocaria, pelas Escrituras, este dogma
em luz mais clara do que a do meio-dia». É que ele quer a todo
o custo obrigar os ministros a «descer à arena e a disputar» com
ele. «É coisa garantida: dado que eles já aceitam discutir, em breve,
segundo o provérbio, virão a capitular… Os habitantes de Thonon
resolveram de comum acordo apresentar-nos por escrito a sua
confissão de fé nos pontos em que ela difere da nossa, a fim de que
nós possamos discuti-los em particular ou em conversas familiares
ou por escrito».
Para Francisco, é a vitória da sua estratégia apostólica: estas dis-
cussões particulares com os «principais» do Chablais haviam-lhe
parecido sempre a chave-mestra, a única evangélica, da sua ação.
Seguro da sua fé, seguro da graça de Deus, iria a estes colóquios não
como parceiro, mas já como vencedor. «Seguramente, estamos no
bom caminho, dado que eles aceitam o combate pelo seu tenente,
que as nossas tão pequenas forças os assustam, e que eles pensam
em propor-nos condições. Para nós, tendo grande coragem pela
graça de Deus, aguardamos com solicitude e com alegria esta luta
que dá boa esperança».
Deste sermão de 17 de setembro, não possuímos, infelizmente,
senão um sumário; todavia, quem quiser conhecer o coração apos-
tólico de Francisco, deverá sempre ler o seu exórdio que está quase
inteiramente redigido. É preciso ouvi-lo começar assim o seu dis-
curso, depois de haver citado a passagem de Paulo aos Coríntios
15 Era, ao que parece, na tribuna do órgão que ouvintes huguenotes se camuflavam.

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Capítulo iv- O apóstolo do Chablais: o tempo das sementeiras 77
(1Cor 10,16): «Sobre esta questão tomada e feita noutro sentido
completamente diferente e de maneira que ela não foi feita por este
bem-aventurado Apóstolo, baseou-se esta grande Babilónia que
nós vemos neste miserável século». Não dirá tudo o que poderia
dizer sobre o assunto, mas o que lhe parecer «mais singular e mais
tocante. A quem quiser apresentar-me dúvidas, seja por escrito
ou de outra forma, ficarei muito grato, tomarei isso como especial
favor, e procurarei em troca por troca dar a melhor resposta com
toda a caridade e respeito».
E que adjuração aos Calvinistas que o escutam! «Adjuro-vos
pela vossa salvação e pelo sangue do Senhor, que venhais ouvir as
razões da Igreja Católica, a fim de que não se possa dizer de vós que
a condenastes sem a ouvir. E deixai de lado toda a sorte de paixão
humana nisto; não olheis à familiaridade que tendes num partido
ou no outro, mas somente onde a Escritura, a razão e a verdadeira
teologia palpitar. E conforme virdes, decidi-vos, deixando tudo, a
esclarecer-vos para o bom partido». E Francisco grita: Ah! Senhor,
estou aqui para o vosso serviço, da mihi intellectum, ut sciam testi-
monia tua».
Neste mesmo dia, 17 de setembro, o Papa Clemtente VIII con-
cedia finalmente ao rei Henrique IV a absolvição pontifícia. A
notícia correu na Saboia tal como na França. Desde os primeiros
dias de outubro, Francisco alegra-se numa carta a Antoine Favre:
«Sei… que o Santo Padre teria enviado muito recentemente a Hen-
rique IV a feliz mensagem: «Saúde e bênção apostólica ao Rei de
França». Se assim for, que a paz reine pela força do Senhor! Auguro
que esta paz seja tanto mais feliz, quanto a vejo mais desagradável
para todos os hereges de Genebra».
O acontecimento terá certamente incidências consideráveis no
apostolado de Francisco no Chablais: as pessoas destas regiões
hesitarão menos em comprometer-se, e o próprio duque Carlos
Manuel, vendo o futuro próximo sob um aspeto menos belicoso,
manifestará de forma mais firme o apoio que deseja dar à ação de

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São Francisco de Sales
Francisco. Entretanto, este acentua a sua pressão sobre os calvinistas
do Chablais: «Eu pressiono agora mais estes Senhores de Thonon,
escreve ele a Favre, e pressioná-los-ei ainda muito mais quando
tiver levado a cabo, segundo a minha capacidade, a pequena obra
que eu meditava desde há muito tempo, e que vós tenhais aprovado
o meu empreendimento».
A atividade de Francisco, neste fim de 1595, parece prodi-
giosa: calvinistas de notoriedade vêm encontrar-se e discutir
com ele, entre os quais o senhor d’Avully, o advogado Claude de
Prez. Começa a redigir, para o Código jurídico que Antoine Favre
prepara (será o Codex Fabrianus), uma exposição das principais
heresias contra as quais deverá exercer-se a vigilância do legisla-
dor: páginas vigorosas e ardentes, que estão entre as mais belas que
Francisco escreveu, e serão incluídas na obra de Favre, sob o título
primeiro: De summa Trinitate et fide catholica16. Para melhor con-
fundir os hereges mergulha no estudo da Institution de la Religion
Chrétienne, de Calvino, não sem humildemente, como um simples
clérigo, haver solicitado de Roma a autorização.
Finalmente, em fins de 1595, Carlos Manuel avisa Francisco que
lhe exponha «os meios… mais prementes para levar de facto a cabo
o santo desejo que (Sua Alteza) tem de ver estes povos do Chablais
reunidos à Igreja Católica»: Francisco rejubila com o convite tão
aguardado e expõe ao duque, no dia 29 de dezembro, que apoios
financeiros e morais ele deseja da sua autoridade. É preciso ler esta
carta na ótica do tempo: a política mistura-se com a religião, infe-
lizmente, tanto do lado católico como do lado protestante: o jurista
Francisco sustenta visivelmente ainda o princípio tradicional do
estado Católico: «Uma fé, uma lei, um rei»; e ouvimo-lo aqui a
reclamar que «em caso de obstinação (sejam privados) de todos os
ofícios de justiça e cargos públicos todos os que persistem no erro»;
16 É preciso ler em particular as páginas magníficas sobre o Santo Sacrifício da
Missa, Œuvres, T. XXIII, pp. 99-100-

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mas constado isto, encontrar-se-á nesta carta o coração apostólico
do missionário, o seu otimismo teológico: a seus olhos, basta que
a fé católica seja pregada e chegue aos ouvidos dos hereges: a graça
fará o resto17. Ele conta antes de tudo com o restabelecimento dos
párocos em todas as paróquias e com a liberdade de circulação dos
missionários «por todos estes lugares conforme for necessário».
Reivindica também que o povo seja convocado oficialmente para
as exposições doutrinais ou para as controvérsias que forem feitas:
«Será, Monsenhor, uma doce violência que os constrangerá»; e,
conhecendo as virtudes de seu amigo, o senador Favre, propõe
que ele seja escolhido para exercer em nome do duque, esta auto-
ridade. Solicita por fim os fundos necessários para que seja criado
em Thonon um colégio de Jesuítas.
Com esta carta ao duque, há que confrontar outra que Francisco
dirige a 19 de fevereiro de 1596 ao núncio Riccardi: expõe ao novo
Núncio, com uma clareza admirável, a situação do Chablais, tal
como ela se apresenta após dezoito meses de trabalhos: «Embora o
medo dos hereges, nossos vizinhos, haja prejudicado grandemente
o sucesso desta empresa, obtêm-se, todavia, alguns frutos pela con-
versão de várias pessoas entre as quais se encontram duas das mais
versadas na heresia. Estamos agora, graças a esta notícia de uma
paz próxima, na véspera de recolher o que semeámos até aqui».
A paz, com efeito, tardará a estabelecer-se. Mas Francisco tem
razão: o tempo das sementeiras, o tempo heroico e missionário
está praticamente terminado; o tempo das colheitas aproxima-se.
Era necessário deter-nos neste tempo das sementeiras. Nunca
Francisco nos parecerá mais puramente «padre de Jesus Cristo»,
apóstolo à maneira de Paulo ou de Francisco Xavier. Está só, ou
pouco mais ou menos só: mesmo quando o seu primo, o cónego
Louis, está junto dele, é Francisco que leva o peso da missão. É
17 Cf. Joseph LECLERC, s.j., Histoire de la tolérance au siècle de la Réforme (Aubier,
1955, 2 tomes), passim ; voir au tables : « Assistance obligatoire au culte officiel ».

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São Francisco de Sales
Thonon, mapa da cidade, incisão (de Theatrum statuum regiae
celsitudinis Sabaudiae ducis…, pars II, Amsterdam, I. Blaeu, 1682).

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pobre, privado de recursos e não tem com que prover às suas neces-
sidades e às suas esmolas, senão algumas ofertas que sua mãe, sem
seu pai saber, lhe faz chegar.
Está sem apoio humano: sem dúvida o barão de Hermance e a
guarnição dos Allinges estão lá, prontos a protegê-lo em caso de
perigo, mas Francisco recusa pregar o Evangelho protegido por
espadas e alabardas. Quanto ao duque, depois de haver pedido que
fosse inaugurada a missão, cala-se, não concede ao missionário
nenhuma autentificação oficial, não lhe permite nenhum subsídio,
ao passo que os protestantes do Chablais se sentem fortes com todo
o apoio e toda a riqueza de Genebra e de Berna.
Lentamente, pacientemente, Francisco trabalha: a sua esperança
está em Deus: reza, jejua, mortifica-se; a sua missa diária, celebrada
nas condições que se sabe, é a sua grande reserva de força. Estes
protestantes que o insultam, ameaçam ou, por vezes, assaltam, tra-
ta-os «com respeito e caridade»: sobretudo, toma-os a sério. Por
eles, estuda, escreve, prega. Que haja cinco pessoas ou cem no
auditório, que importa? É o Evangelho, é a Escritura, é a Igreja que
é preciso apresentar na sua pureza, tornar amáveis e acessíveis. Pela
palavra, sem dúvida; mas por toda a sua vida e por toda a sua fé:
é preciso que o padre que ele é revele aos seus irmãos afastados o
espírito e o coração de Jesus Cristo.
Um dia, o duque Carlos Manuel, apresentando Francisco ao
cardeal de Médicis, dirá: «V. Exª vê um homem que plantou nesta
província a cruz e a fé de Nosso Senhor»: nunca elogio mais ver-
dadeiro terá sido feito a Francisco. Ele mesmo, de resto, nos seus
anos dificultosos, teve o gesto mais simbólico de todo este aposto-
lado heroico: acusado de magia e de feitiçaria, ameaçado de morte,
pôs-se a rir e, fazendo sobre si um grande sinal da cruz, disse: «Aqui
está toda a minha marca e os meus encantos».

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5. O APÓSTOLO DO CHABLAIS:
O TEMPO DAS CEIFAS
As etapas do sucesso
Nestes primeiros meses de 1596, a vida apostólica de Francisco
vai, portanto, conhecer algumas transformações. Segui-lo-emos
mais em pormenor na sua existência movimentada e múltipla; mas
insistiremos sobretudo nos traços da sua fisionomia espiritual.
Um facto importante, que não me parece poder ser posto em
dúvida, porque figura em duas cartas cujo texto está inserido no
primeiro Processo de canonização, permite-nos avaliar o apos-
tolado de Francisco de Sales nesta época e de reconstituir o seu
clima: na corte do duque e na Nunciatura e, sem dúvida, com a
concordância do próprio bispo de Genebra, sonha-se com ele
como coadjutor de Mons. de Granier. Francisco defende-se, com
uma firmeza tão forte que lhe permitam os costumes protocolares:
«Quanto à coadjutoria, todas as razões e a minha própria experiên-
cia me proíbem (sic) de a desejar; e o dever, a honra e o zelo que
eu tenho para com Monsenhor o Reverendíssimo Bispo impedir-
-me-ão sempre de pensar no bispado enquanto Deus mo conceder
por Prelado, e a minha incapacidade, quando Deus me privasse
dele». Mas doravante a ideia anda no ar, e se a autoridade de Fran-
cisco cresce com isso, o seu apostolado pelo contrário, assumirá
fatalmente um matiz político: o admirável é que até nessas relações
oficiais, Francisco permanecerá, acima de tudo e sem desfalecer, o
Padre de Jesus Cristo.
As etapas marcantes do apostolado de Francisco ao longo destas
quatro etapas 1596-1600, podem definir-se assim. Houve primeiro
a «disputa» pública, tão desejada e durante tanto tempo por Fran-

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São Francisco de Sales
cisco, com o ministro Viret: disputa à qual Viret e os outros minis-
tros do Chablais e da região de Vaud, que ele havia convocado como
reforço, se esquivaram finalmente. Isto passava-se sem dúvida nos
primeiros meses de 1596, e «muitas conversões aí tiveram o seu
impulso».
Em 26 de agosto de 1596, o barão d’Avully abjura solenemente
do Calvinismo, perante o núncio, em Turim: abjuração cuja reper-
cussão foi imensa entre os Protestantes, e para a qual o próprio
Papa Clemente VIII escreveu em 20 de setembro ao barão, mas
que valeu ao convertido e a Francisco muitas calúnias. «Não dei-
xarei de vos dizer, escreve Francisco a Mons. Riccardi, em 12 de
dezembro de 1596, que o inimigo não cessa de dirigir contra este
cavaleiro todos os assaltos possíveis, a fim de obscurecer o brilho
que a sua conversão teve; suscita contra ele muitos ódios, tanto da
parte dos hereges como dos católicos».
Neste ano de 1596, sente-se que «alguma coisa mexe» em
Thonon e no Chablais: a 14 de novembro, Francisco escreve
ao núncio, pressionando-o a obter do duque a autorização
de começar o exercício do culto católico «pelo menos em três
ou quatro localidades se, por causa do frio, não se puder fazer
mais»… «É muito começar: se Cristo vem a nós como menino
nestas festas de Natal, crescerá depois pouco a pouco até à per-
feita plenitude da maturidade. E nisto, não há de qualquer modo
nenhum perigo a correr, senão o de abandonar a empresa e de
fugir de Belém, no caso de estas negociações de paz conduzirem
a uma guerra; o que prejudicaria (os interesses da religião) não
somente no Chablais, mas em vários outros lugares da diocese.
Quem sabe se Deus não quer que a paz espiritual seja a prepara-
ção e o fundamento da temporal?».
É naquele fim de verão de 1596 que se situa uma das mais fortes
audácias apostólicas de Francisco: comovido de ver a influência
que exerce a conversão do senhor de Avully, Antoine de la Faye, «o

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ambicioso, intrigante e muito medíocre La Faye»18, decidiu ir em
pessoa a Thonon e mostrar ao senhor de Avully «mais claramente
que o meio-dia, na presença do vigário-geral de Sales, como era vã
a doutrina pela qual ele se havia deixado tirar à Religião Romana».
Francisco aceita o desafio, mas «embora o senhor de Avully a tenha
citado três, quatro vezes e com mais frequência», em vão se aguar-
dou o ministro… Dado que La Faye recusava vir, Francisco decidiu
ir encontrar-se com ele a Genebra. Levou consigo, além do barão,
o seu primo Louis de Sales e um pequeno grupo de burgueses de
Thonon, tanto católicos como calvinistas, e lá vai a pequeno exér-
cito a caminho de Genebra… «e vai diretamente, diz Charles-Au-
guste, a casa do ministro La Faye».
A disputa teve lugar, conforme o permitiam os usos do tempo,
em público, na praça do Molard. Francisco saiu-se com vantagem.
O duque Carlos Manuel, quando soube da temerária empresa e do
sucesso de Francisco, sonhou de novo em elevá-lo à categoria de
senador. Tratava-se mesmo disso, enquanto que, apesar das suas
promessas, o duque não concedia ao missionário nem autorização
oficial de restabelecer o culto católico em Thonon, nem dinheiro
para instalar párocos nas paróquias que solicitavam o seu regresso,
ou para manter missionários: que ele chame antes Francisco a
Turim e lhe dê ocasião de expor a situação do Chablais!
Que carta enérgica aquela que Francisco escreveu ao núncio em
setembro de 1596: «É o que me faz, cada vez mais, desejar ir eu
mesmo a Turim a fim de obter uma declaração da concordância de
Sua Alteza… Que se, como convém, se der prontamente ordens,
regressarei seguro e certo de ver bem depressa amadurecer uma
seara de vários milhares de almas; se, pelo contrário, não se derem,
pedirei a vossa bênção e a permissão de abandonar esta empresa a
outros mais capazes do que eu. Tenho o coração despedaçado por
18 Assim o julga o historiador protestante Paul GEISENDORFF na sua obra Théodore
de Bèze, Genève, 1949, p. 397.

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São Francisco de Sales
me ver sem condições de satisfazer paróquias inteiras que desejam
ser saciadas da santa doutrina católica, sem ter meios de lhes enviar
para tal efeito um número suficiente de pregadores e de pastores.
Já não posso ficar aqui sozinho para me tornar a fábula dos nossos
inimigos19 que, vendo que não dão mais nenhum padre, desprezam
o meu ministério, do qual, todavia, eu devo estar cioso (zelozo) de
todas as formas».
Não acusam Francisco de ambição? «Quanto aos caluniadores,
espero que no fim se saberá, e Deus sabe, como sou livre de toda a
ambição, e que, por estes poucos trabalhos, não procuro ser bem-
-visto pelos meus superiores, senão tanto quanto é necessário para
cumprir esta missão e outras semelhantes». É a esta carta que será
conveniente referir-se sempre quando se vir Francisco, forçado
pelos costumes mesmos do tempo, a ocupar-se de assuntos políti-
cos para o bem do seu ministério.
Ora, eis que por fim o duque se decide a convocar Francisco a
Turim. Já o outono se instala nos Alpes e torna perigosas as viagens.
Que importa? A ocasião é demasiado bela para ir lutar pela causa
do Chablais lá onde ela pode ser ganha. Francisco parte a cavalo,
acompanhado do seu fiel Georges Rolland, transpõe sem perigo
o Grande S. Bernardo, e chega a Turim. O duque dispensou-lhe
um acolhimento muito cordial e pareceu compreender maravi-
lhosamente as dificuldades do Chablais: prometeu a Francisco o
seu apoio oficial sob forma de cartas régias, concedeu-lhe, sobre
os benefícios de Igreja detidos em razão dos tempos pelos cava-
leiros de Saint-Maurice, a pensão de seis párocos, pediu-lhe que
consignasse num relatório que enviaria ao núncio as principais
reclamações da sua exposição. E é com o coração cheio de espe-
rança que Francisco regressa, pelo Pequeno S. Bernardo e Annecy,
até Thonon.
19 A expressão é de notar; exprime uma situação dolorosa e é recorrente na corres-
pondência de Francisco, nesta época.

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Mas a paz entre a Saboia e a França tarda a estabelecer-se, reco-
meça-se mesmo a falar de guerra: «Ouço não sei que anúncios de
guerra que abalam as minhas esperanças», escreve Francisco; e, de
facto, as cartas régias não chegam, como também as transferên-
cias provenientes dos cavaleiros de Saint-Maurice. Todavia o Natal
aproxima-se e as promessas de conversão abundam. Cheio de zelo,
Francisco decide-se a insistir uma vez mais: não obstante a oposi-
ção dos síndicos e as ameaças dos protestantes, erige um altar – um
pobre altar de madeira – na igreja de S. Hipólito de Thonon, e pre-
para-se para aí celebrar a missa de Natal.
Houve muito falatório, tanto mais que ainda por cima, um
ministro, Pierre Petit, pedia para «abraçar a fé» romana! Provisor
e síndicos escrevem, cada qual por seu lado, ao duque. «Estando o
Mensageiro em campo, o Servidor de Deus terminou inteiramente
o que havia começado e preparou a igreja o melhor que lhe foi
possível, segundo as incomodidades dos começos, com imagens,
tapetes, velas e lâmpadas e, à meia-noite da Natividade de Nosso
Senhor Jesus Cristo, celebrou o santíssimo sacrifício da missa
diante dos seus filhos que choravam de alegria e de ternura, deu a
comunhão a todos e, no fim da missa, do meio do altar explicou-
-lhes a história deste nascimento, com tão grandes transportes de
amor, que inflamou os seus corações de vivos arroubos da dileção
celeste para com o divino Pequerrucho, nascido para a redenção
dos homens». Depois celebrou uma segunda missa ao amanhecer,
e a terceira «sobre as nove e as dez horas».
Forçoso era que o duque tomasse claramente posição. A 7 de
janeiro de 1597, chegava finalmente a carta que Francisco aguar-
dava havia três anos: «Reverendo, querido, bem-amado e fiel. Em
resposta à carta que escreveu, dizemos-lhe que achamos bem que
tenha instalado um altar na igreja de S. Hipólito, como também as
outras boas obras que, para louvor de Deus e extirpação das here-
sias, V. Rev.ª aí vai exercitando; e desagrada-nos a oposição que aí
se lhe tem movido, que, todavia, V. Rev.ª ultrapassou tal como Nos

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São Francisco de Sales
escreve. Nisso continuará com a destreza e prudência que julgar
conveniente, tendo escrito ao senhor de Lambert que fez muito
bem em socorrer o ministro que se quer catolizar, tal como V. Rev.ª
e ele nos escrevem».
Uma carta tão cordial de Sua Alteza colocava Francisco ao
abrigo das calúnias e dos ataques dos síndicos; e embora os cava-
leiros de Saint-Maurice se hajam atrasado muito dando desculpas
variadas para lhe fornecer o dinheiro prometido para o restabele-
cimento das paróquias, ele continua o melhor possível a sua ação
apostólica: no ano de 1597, reabre a paróquia dos Allinges, depois
a de Cervans; a 4 de fevereiro, Pierre Fornier, conselheiro e antigo
primeiro síndico de Thonon, abjura solenemente do calvinismo;
a Quaresma é restabelecida em Thonon, sem negligenciar, com
grande troça dos Protestantes, a cerimónia das Cinzas; na proxi-
midade da Páscoa, Francisco está assoberbado de trabalhos, pre-
gações, confissões: «Estas festas, comunica ele em 23 de abril de
1597 ao núncio Riccardi, os novos católicos cansaram-me com as
suas confissões gerais; mas senti uma imensa consolação de os ver
tão piedosos».
Enquanto trata com Roma, com o núncio, questões muito graves
e recebe de Clemente VIII missões muito secretas e de muito alta
importância, como reencontrar-se em Genebra com Théodore de
Bèze. Com todo este ritmo, a sua saúde quebra: em março sentiu
«uma ponta de febre e teve de tomar alguns cuidados: «Fui obri-
gado, escreve de Sales ao Núncio, a 11 de abril de 1597, a ausentar-
-me alguns dias a fim de assistir ao sínodo, pôr ordem em certas
coisas, e prevenir uma doença que me ameaça há muito tempo.
Mas esta ausência será curta e voltarei logo a retomar com mais
ardor os meus trabalhos interrompidos».

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Annecy, confessionário de Francisco de Sales na igreja catedral.

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São Francisco de Sales
Mons. de Granier escolhe o seu sucessor
Regressou de facto a Thonon; mas, desde o fim de abril, retomava
o caminho de Annecy: «Recebi a notícia de que Monsenhor, o
nosso Reverendíssimo Bispo, estava muito doente e que, sentindo-
-se em perigo de morte, desejava ardentemente ver-me. Parti ime-
diatamente». Adivinha-se porquê… Mons. de Granier queria fazer
de Francisco seu coadjutor com direito de sucessão. Francisco
«recusou em absoluto». É para outro lado totalmente diferente que
se voltam os seus desejos: estando vacante a paróquia do Petit-Bor-
nand solicita o seu título e os seus benefícios, a fim de ter «com
que viver segundo a minha condição»; em contrapartida, oferece
a sua demissão de vigário-geral, solicitando apenas um favor: o de
«continuar a ser simples cónego, a fim de que vindo aqui, eu tenha
um lugar no nosso coro; porque os ofícios se celebram aí com tanta
dignidade que se encontra lá uma das maiores consolações».
Mas Mons. de Granier mantinha o seu projeto. Ganhou em pri-
meiro lugar o Senhor de Boisy e a família de Francisco; mas «Fran-
cisco continuava a recusar com uma humildade totalmente admi-
rável. O senhor Bispo não se esqueceu de nada e usou todos os
expedientes que lhe vieram à imaginação, a fim de vencer; contou
com a vontade do Duque, e procurou obter o seu alvará expedido».
A 16 de junho, dando crédito a uma carta do núncio Riccardi, a
decisão de Sua Alteza estava já tomada. Mas a hora da aquiescência
de Francisco ainda não chegou.
Ele regressa ao seu Chablais, e age como chefe de missão: com
efeito, acabam de lhe dar três auxiliares, dois capuchinhos, o padre
Esprit de Beaumes e o padre Chérubin de Maurienne, e um jesuíta,
o padre Jean Saunier; a estes colaboradores junta-se o pároco de
Annemasse, reverendo Balthazar Maniglier e o cónego Louis de
Sales. É então que o padre Chérubin de Maurienne, que desem-
penhou ao lado de Francisco um papel importante na missão do
Chablais, decidiu dar mais um golpe: organizar-se-á no princípio

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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de setembro em Annemasse, que não dista de Thonon mais do que
cinco léguas, e se aproxima de Genebra, Quarenta Horas muito
solenes em honra do Santíssimo Sacramento. Nada foi poupado
para dar a estes três dias um brilho extraordinário; o duque Carlos
Manuel, impedido pelas preocupações da guerra, fez-se ali repre-
sentar oficialmente pelo senhor de Albigny, governador da Saboia.
Foi uma grande homenagem à Eucaristia.
Pouco depois destas grandiosas cerimónias, Mons. de Granier
decidiu lançar contra a humildade de Francisco o assalto final. Um
dia em que o vigário-geral se encontrava em Sales, enviou-lhe o seu
primeiro esmoler, M. Critain. Desde o dia seguinte à sua chegada,
sob pretexto de recitar com ele o santo breviário, M. Critain con-
duziu Francisco à galeria do castelo e atacou-o de frente… Fran-
cisco resistiu longamente… No fim, propôs ao esmoler ir celebrar
as suas missas à igreja da aldeia: «V. Rev.ª celebrará a primeira e eu
ajudarei; eu celebrarei a segunda; invocaremos a graça de Deus e
faremos o que Ele nos inspirar».
Pela oração, Francisco saiu vencido: V. Rev.ª dirá ao senhor
Bispo, declarou ele a M. Critain no caminho de regresso, que nunca
desejei ser bispo… Mas visto que ele o quer e que ele o ordena,
estou pronto a obedecer e a servir a Deus em tudo».
Tudo esteve para ficar por ali: pouco depois, Francisco, pas-
sando por Annecy «caiu de cama com uma forte e virulenta febre
contínua». As coisas chegaram a tal ponto que que no início de
janeiro temeu-se pela sua vida. A sua mãe desceu a Annecy e «foi
encarregada de levar a notícia da sua morte»… «O pobre doente
ficou surpreendido ao princípio, depois foi tomado por um grande
temor dos julgamentos de Deus e dos perigos do inferno. Superou
esta primeira crise entregando-se à misericórdia de Deus. «Não
posso esperar a salvação senão do Senhor; tanto precisarei da sua
misericórdia noutra altura como agora, e ele ser-me-á tão favorável
agora como noutra ocasião». Os cónegos da catedral «vieram em
grupo despedir-se dele e receber a sua santa bênção…». Esgotado

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São Francisco de Sales
com esta visita, Francisco caiu em desfalecimento «pelo espaço de
uma hora», de tal forma que o julgavam morto.
Foi então tentado contra o dogma da Eucaristia. A prova foi ter-
rível, e Francisco não se pôde livrar dela senão «só pela invoca-
ção do nome de Jesus, feita no fundo da sua alma». Voltando a si,
encontrou a solução que não havia podido encontrar no auge da
crise: mas a recordação desta luta ficou a pesar-lhe na alma. Nunca
aceitou revelar este assunto; e «ao recordar-se dele… fazia sempre
o sinal da Cruz, receando que fosse uma pedra de tropeço… para
os espíritos fracos». Assim o Senhor continuava a purificar esta
alma privilegiada e a introduzi-la cada vez mais profundamente no
mistério da sua Paixão e da sua Morte, a fim de fazer dela a sua fiel
imagem.
Francisco de Sales a pregar (quadro de Piero Dalle Ceste, igreja
de S. Francisco de Sales, Turim-Valdocco).

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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Eis, portanto, Francisco salvo da morte. A convalescença será
longa. Em 14 de janeiro dirige uma carta ao núncio Riccardi, mas
«os médicos, diz ele numa nota à parte, que não acham bem que eu
escreva, obrigaram-me a servir-me da mão de outra pessoa». Esta
carta ditada é comovente. «Após haver sido visitado pela bondade
de Deus nosso Senhor por uma febre contínua, tive recentemente
uma recaída tão perigosa que durante sete dias consecutivos não se
esperava outra coisa senão a minha morte».
Há que pensar, entretanto, em deslocar-se a Roma para a visita ad
limina da diocese e nas últimas formalidades do episcopado. Mas
quando? «Agora que, pela mesma bondade divina, estou em con-
valescença, encontro-me numa fraqueza tal, sobretudo nas pernas,
que não sei se poderei fazer a viagem a Roma antes da Páscoa,
embora tenha um grande desejo de lá estar para a Semana Santa;
farei tudo o que puder para isso». Entretanto o seu pensamento voa
para o Chablais onde foi substituído pelo padre Chérubin de Mau-
rienne; apressa a execução dos assuntos em curso: «Havendo Sua
Alteza enviado a Thonon o senhor Presidente Favre, para conhecer
o sentimento dos habitantes do Chablais sobre o exercício do culto
católico, quase todos testemunharam desejá-lo e esperam a toda
hora que seja restabelecido». A promoção a coadjutor não mudou
o coração de Francisco! «Finalmente, tendo-me Deus dado este
pouco de vida que me resta, reconheço que o devo empregar ao
serviço da sua divina Majestade, da santa Igreja…». Assim fará ele,
durante mais tempo do que ele então parecia prever…
É de Sales que Francisco data as poucas cartas que nos chegaram
deste ano. Contudo, em abril, escreve ao núncio: «Vou hoje para
Thonon onde durante algum tempo sou necessário». É que o padre
Cherubin, cujo espírito é cheio de iniciativas, propôs a Francisco
celebrar em Thonon mesmo as Quarenta Horas ainda mais solenes
do que as Quarenta Horas de Annemasse! No dia 2 de maio de
1598, Filipe II de Espanha e Henrique IV assinam o tratado de
Vervins: era, portanto, ao que parecia, a paz para a Saboia: o Cha-

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São Francisco de Sales
blais ficaria desde agora ao abrigo das incursões de Genebra; as
populações poderiam sem receio de represálias, regressar ao cato-
licismo, e Carlos Manuel teria as mãos livres para ajudar os missio-
nários do Chablais.
Imediatamente, o vigário-geral tenta aproveitar as vantagens
da nova situação. Em julho, vários párocos «homens maduros e
muito entendidos no múnus pastoral» são colocados em paró-
quias importantes. Por fim, a 20 de setembro, depois de resolvidas
muitas dificuldades materiais ou diplomáticas, inauguraram-se as
Quarenta Horas de Thonon. Mons. de Granier presidiu ele próprio
as festas religiosas de domingo 20 e segunda-feira 21 de setembro.
Depois, alguns dias mais tarde, a 1 e 2 de outubro, tiveram lugar,
numa atmosfera grandiosa, as segundas Quarenta Horas: o duque
Carlos Manuel, rodeado da sua corte, estava presente, mas também
o cardeal Alexandre de Médicis, legado do Papa na França, que
no regresso a Itália tinha feito questão de fazer uma paragem em
Thonon.
Tudo foi esplêndido. Mas, entre todas as cerimónias, uma delas
deve ter emocionado particularmente a alma de Francisco. Na
manhã e na tarde da quinta-feira 1 de outubro, o cardeal, Mons.
de Granier e Francisco receberam as abjurações: notáveis… um
pastor… grupos… famílias inteiras… No dia seguinte, o ritmo ace-
lerou ainda mais. Os secretários acabaram por não inscrever senão
os nomes dos chefes de família. Em onze dias, segundo a lista que
os Arquivos vaticanos ainda hoje conservam, foram registados
2.300 nomes.
Nestes dias de festas sumptuosas, quantas recordações e que
ações de graças se elevaram do coração de Francisco! Havia apenas
quatro anos que, só, como missionário pobre e sem apoio humano,
penetrava em Thonon. Diante desta multidão que hoje se apressava
para abjurar ou para participar nos sacramentos da Penitência e da
Eucaristia, como não teria ele recordado a pequena dezena de cató-
licos amedrontados que, à força de persuasão, havia conseguido

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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reagrupar em torno do seu púlpito em S. Hipólito, no domingo 18
de setembro de 1594? Havia então pregado sobre a Missão dos pas-
tores da Igreja; hoje, em jeito de encerramento destas solenidades,
na presença do duque e do cardeal e de suas cortes, prega sobre
a missa e o sacerdócio: Fazei isto em memória de mim. Em qual
destes sermões colocou mais coração, mais cuidados?
O duque foi leal no seu reconhecimento. Mal o cardeal havia
chegado aos Paços do Concelho quando, Carlos-Manuel tomou o
vigário-geral pela mão e levou-o diante do prelado. «Monsenhor,
diz-lhe ele, este que lhe apresento, é o apóstolo do Chablais: tem
à sua frente um homem abençoado por Deus e enviado do Céu
até nós, que, inflamado de um grandíssimo zelo pela salvação das
almas, não sem um grande perigo da sua vida, veio ousadamente
em primeiro lugar para esta província, e nela lançou a semente da
palavra de Deus; plantou a Cruz e a fé de Nosso Senhor nestas
paragens, donde há mais de setenta anos que ela tinha sido arran-
cada e levada pelas águas infernais dos hereges». O cardeal, tendo
levantado Francisco que se havia prostrado a seus pés, disse-lhe:
«Senhor, agradeço-lhe pelo seu zelo, continue como tem feito;
quanto a mim, segundo o dever do meu cargo, não deixarei de
reportar amplamente ao nosso Santíssimo Padre o que o senhor
tem feito». Manteve a palavra.
O coração apostólico de Francisco
«O apóstolo do Chablais»: o elogio era merecido. Enquanto se
apagam os últimos ruídos destas festas sumptuosas, e antes que
Francisco se ponha a caminho de Roma e do episcopado, convém
que paremos e contemplemos uma vez mais Francisco de Sales,
padre em terra de missão. Qual foi então a estratégia apostólica
deste jovem padre – tem 27 anos quando penetra no Chablais em

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São Francisco de Sales
setembro de 1594 – para que em quatro anos ele conseguisse con-
verter uma província tão impregnada de Protestantismo e tão soli-
damente defendida pela muito próxima e toda poderosa Genebra?
Convém, certamente, ter presente neste sucesso a parte dos
acontecimentos e mesmo da política. É certo que Henrique IV
desejava, como todos os soberanos do seu tempo, a unidade reli-
giosa do seu reino, e que ele não podia, no exterior, apoiar dema-
siado abertamente as zonas protestantes. De resto, a França encon-
trava-se em guerra com a Casa de Áustria e devia, para esta luta,
poupar os cantões calvinistas da Suíça que comandavam as passa-
gens dos Alpes: Genebra era uma cidade-chave, uma das vias de
acesso à Alemanha. Do lado da Itália, a política estrangeira fran-
cesa não era menos ambígua: Henrique IV precisava, na França,
da amizade do Papa. Neste imbróglio, o duque de Saboia Carlos
Manuel conduzia bem o jogo das suas intrigas. O próprio tratado
de Vervins (2 de maio de1598) não pôs fim ao seu diferendo com
Henrique IV: com efeito a questão de Saluces, este marquesado do
norte da Itália que Carlos Manuel havia tirado à França em 1588,
ficou reservada. O Edito de Nantes, que foi assinado por Henrique
IV a 13 de abril de 1598, mostra bem para que compromisso o rei
era obrigado a orientar-se a fim de conseguir para o reino a paz
interior. Igualmente no exterior, era-lhe necessário procurar um
equilíbrio difícil entre as suas alianças católicas e as suas alianças
protestantes. Vê-lo-emos em breve: Genebra e Berna permaneciam
por este facto muito importantes na corte de Henrique IV – e por
isso mesmo paralisavam, mais ou menos segundo a evolução dos
acontecimentos, a ação dos missionários católicos no Chablais, na
zona de Ternier e nas terras de Gex.
Estas dificuldades têm, pelo menos, uma vantagem: elas realçam
o caráter nitidamente evangélico do apostolado de Francisco de
Sales.
A sua força é a sua fé. Construiu um dia sobre o seu nome um
anagrama muito significativo: «Fé sem desalinhar», quer dizer, fé

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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sem defeito nem fraqueza; a palavra não era usurpada. Francisco
está profundamente persuadido da verdade do catolicismo. Está
convencido de que se a doutrina da Igreja Romana é apresentada
em toda a sua luz, por padres instruídos e santos, as populações,
por pouco que a liberdade de consciência lhes seja efetivamente
garantida, ligar-se-ão de novo sem hesitar à fé primitiva. Em suma,
desde este momento, Francisco, como teólogo e jurista, tem uma
conceção precisa do que deve ser a Reforma da Igreja, se a Igreja
quer sobreviver; ao mesmo tempo, tem consciência dos males que
assolam a Igreja de Cristo, do remédio, do único remédio que a
pode salvar: a restauração de um sacerdócio digno dos apósto-
los. Sublinhemos as linhas de força desta estratégia santa quanto
ousada: elas ressaltam claramente dos escritos, memórias e cartas
que conservámos.
Annecy, canal le Thiou.

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São Francisco de Sales
É preciso, portanto, que em primeiro lugar o Evangelho seja
pregado, em toda a sua pureza de tradição e interpretação teoló-
gica. Francisco não poupa nada para estar ao corrente das objeções
dos protestantes e das dificuldades que os seus adversários vão
buscar à ciência do tempo. Ele não as subestima de modo algum.
Toma a sério o facto calvinista, as suas causas, a sua força, não
ignorando ao mesmo tempo que o povo simples, e mesmo certos
ministros, podem ser ignorantes. Nesta zona, escreve ele um dia,
todos manejam as Instituições (de Calvino); conheço lugares em
que todos sabem as Instituições de cor». Para melhor as conhecer,
ele mesmo pediu a Roma a autorização para ler esta obra que figura
no Índice. As Controvérsias estão aí para nos mostrar… o espírito
e nos dar o estilo de Francisco nestas batalhas de ideias. Assim tra-
balha ele para estabelecer solidamente, face às negações dos seus
adversários, a verdade e os direitos da Igreja Católica Romana. E
tem tanto sucesso nestes placares e folhas volantes, redigidas em
plena luta, no dia a dia, que as Controvérsias merecem ser utiliza-
das em 1870 pelos Padres do Concílio Vaticano quando chegaram
a definir a infalibilidade do Papa e que elas valeram a Francisco, em
1878 o título de doutor da Igreja e, em 1923, o patronato espiritual
dos escritores católicos.
Persuadido de que a doutrina evangélica, por pouco que ela seja
conhecida, trabalha as almas, avança em cada uma delas como
uma raiz na terra, segundo os desígnios da Providência, Fran-
cisco prega. Neste ministério da palavra, que ele considera como
um dos seus primeiros deveres, é infatigável. É-nos mostrado ora
a pregar no mesmo dia em quatro ou cinco aldeias diferentes, ora
«passando a noite a pregar», ou ainda a pregar na presença de sete
ou oito pessoas como faria numa igreja cheia de fiéis, ou também
a catequizar na praça do mercado, a discutir em público ou em
pequeno grupo com pastores ou notáveis protestantes; inventando,
com a ajuda do seu jovem irmão Bernard, uma espécie de pregação
dialogada.

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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«No domingo passado, terceiro da Quaresma, escreve ele por
exemplo em 12 de março de 1597 ao núncio Riccardi, havendo
pregado de manhã cedo segundo o costume, na paróquia de Allin-
ges, passei para outra paróquia a três milhas de distância, chamada
Cervens, onde eu ainda não tinha estado. E tendo avisado o povo
que eu desejava pregar, tive uma numerosa e benevolente assis-
tência que, ao sair do sermão, me testemunhou um ardente desejo
deste pão dos filhos. Mas tive grande dificuldade em chegar a
tempo para o sermão de Thonon, que fica a cinco ou seis milhas de
Cervens, de modo que, estando fixado aqui, é-me quase impossível
evangelizar várias localidades».
Também atribui na sua estratégia apostólica uma importância
primordial à catequese, ao ensinamento simples e firme da dou-
trina, bem como ao texto sagrado da Escritura, à palavra de Deus.
Não traz ele sempre consigo, na sua pequena bagagem, uma Bíblia
com o seu breviário? A Bíblia, conhece-a a fundo, e esmalta das
suas citações até a sua correspondência mais familiar.
Gostaríamos de ver, desde esse tempo, Francisco de Sales dialo-
gar, face a face, senão coração a coração, com certos protestantes,
captar ao vivo, por exemplo, as suas conversações íntimas «na pra-
daria», com o senhor de Avully atormentado de conversão. Três
destes encontros ficaram célebres e misteriosos, de resto: os seus
três encontros em Genebra mesmo, com Théodore de Bèze. A ini-
ciativa veio de Francisco ou de Clemente VIII? Isso não está bem
claro. O que é certo, é que Francisco não empreendeu esta tentativa
de conversão senão com uma aquiescência formal do Papa, que
muito se assemelhava a uma ordem.
Destas entrevistas, não nos resta nenhum documento do lado
protestante20; do lado católico, resta, além dos testemunhos do Pro-
cesso de canonização, uma carta de Francisco de Sales a Clemente
VIII, de 21 de abril de 1597, portanto do dia seguinte à primeira
20 Paul GEISENDORFF, lib. cit., pp. 402-407.

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São Francisco de Sales
entrevista. Esta carta é severa, mas não sem esperança: «Encon-
trei-me com Bèze só, pessoa bastante acessível. Quando, por fim,
me retirei após haver tentado todos os meios para lhe arrancar a
confissão do seu pensamento, sem haver deixado uma pedra por
remover, encontrei nele um coração de pedra, até aqui imóvel ou
pelo menos insuficientemente remexido; quer dizer, um ancião
endurecido, cheio de dias maus. Tanto quanto as suas palavras me
permitem julgar, seria esta a minha opinião: se fosse possível abor-
dá-lo com mais frequência e com mais segurança, talvez se pudesse
trazê-lo de novo ao rebanho do Senhor; mas, para um octogená-
rio, todo o atraso é perigoso». Retenhamos, portanto, esta palavra
pela qual Théodore de Bèze se despediu do seu visitante após as
duas primeiras entrevistas: «Quanto a mim, se não estou em bom
caminho, peço a Deus todos os dias que pela sua misericórdia se
digne colocar-me de novo nele»21. Esta atitude de Théodore de
Bèze não deve ter desagradado a Francisco de Sales.
Com efeito, ela é conforme à sua maneira de tratar com os
hereges. Tocamos aqui um problema muito delicado. É certo que
Francisco de Sales teve por vezes palavras muito duras contra os
huguenotes. Ele está muito seguro também de que nas negociações
políticas que se seguiram às Quarenta Horas de Thonon, Fran-
cisco se opôs com uma firmeza absoluta a que ministros protes-
tantes morassem no Chablais, e particularmente em Thonon, e que
requereu medidas severas contra os últimos obstinados de Thonon
que «seguem o huguenotismo mais como um partido do que como
uma religião».
Era então defensor da intervenção do braço secular nas conver-
sões e nos assuntos religiosos? Aqui há que fazer distinções, pois
Francisco evoluiu neste ponto, ao longo da sua vida. O estudante
de direito em Pádua, demasiado propenso a seguir certas teses jurí-
dicas do tempo, não teria talvez desaprovado a coação política e até
21 Cf. Paul GEISENDORFF, ibid.

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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o emprego das armas. Mas, desde que é promovido a vigário-geral,
e sobretudo quando é ordenado padre, Francisco declara-se firme-
mente defensor só das armas espirituais, a santidade e a ciência teo-
lógica, «a caridade»: recorde-se o sermão do jovem vigário-geral
aos cónegos de Genebra! Todavia, quando, lá para o fim da missão
do Chablais, Francisco se encontra envolvido nas discussões polí-
ticas, duas tendências aparentemente contrárias aparecem no seu
pensamento: por um lado, o seu amor das almas leva-o à mansi-
dão, mas, por outro, segundo as ideias e os costumes do tempo, não
concebe que a unidade política possa realizar-se fora da unidade
de confissão: «Uma fé, uma lei, um rei». Na aparência, o jurista,
nele, parece conciliar-se bastante mal com o missionário. Mas de
facto, para Francisco de Sales, o conflito não existe: o seu otimismo
teológico convence-o de que, se o culto protestante é proibido, e se
os calvinistas são instruídos na fé católica, eles não podem, pelo
menos se eles são leais e sinceros, não se converter22.
Um exemplo vai fazer-nos captar ao vivo o pensamento de Fran-
cisco nesta matéria. No mesmo dia em que era promulgada em
Annecy a paz de Vervins, a 13 de junho de 1598, Francisco escreve
ao núncio Riccardi: «Entre as incalculáveis vantagens espirituais
que vários servidores de Deus esperam desta bendita paz, eles pro-
metem que o rei de França, a convite da Santa Sé Apostólica, se
empenhará vigorosamente em obter que a cidade de Genebra abra
as suas portas ao exercício do culto católico por meio do Interim (o
Interim era um formulário, datando do tempo de Carlos Quinto, e
que assegurava praticamente a liberdade de consciência aos cató-
licos e aos protestantes), a fim de que o Senhor e Príncipe de paz
tenha o seu lugar numa pacificação tão importante e tão desejada».
Assim, portanto, dois meses após a promulgação do Edito de
Nantes (13 de abril de 1598), Francisco espera que uma legisla-
22 Por seu lado, os Protestantes defendiam o mesmo princípio: cf. J. LECLERC, loc.
cit.

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São Francisco de Sales
ção muito semelhante à nova legislação francesa seja instalada em
Genebra. Ora, três anos mais tarde, em julho de 1601, Francisco de
Sales, escrevendo a Clemente VIII em nome de Mons. de Granier,
parece falar bem outra linguagem: «Esta porção da minha diocese
(trata-se da região de Gex), com o que dela resta do outro lado do
Ródano, tocou ao rei de França, em virtude do tratado de paz (o
tratado de Lyon de 17 de janeiro de 1601). Ele ordenou ali o inteiro
restabelecimento do culto católico, ouço eu dizê-lo pelo menos, mas
sob a reserva (o Interim, como se lhe chama) que tolera um lugar
à heresia. É, no fundo, a liberdade deixada a cada um de pensar
mal e agir do mesmo modo: é isto que multiplica estranhamente as
dificuldades de propagar o Evangelho». Vê-se por onde estes dois
julgamentos contrários se unem: em ambos os casos, o objetivo é
o mesmo: propagar o Evangelho; no primeiro caso, o Interim faci-
lita a tarefa; no segundo, ele contraria a mesma. Para compreender
esta posição, não basta apenas invocar as ideias políticas do tempo,
mas também certas conceções teológicas demasiado estreitas que
restringem exageradamente os meios de salvação que conservam,
até ao dia de hoje, os hereges de boa fé23.
Também há que distinguir bem aqui o protestantismo e os pro-
testantes. Porque com as pessoas, Francisco é todo paciência, todo
benignidade, todo acolhimento. Alguns, mesmo religiosos, censu-
raram-lho. Advertido destas censuras, Francisco retorquiu «que
há muito tempo tinha feito a experiência de que se obtinha mais
proveito pela doçura do que de outra maneira… Há que ter por
máxima muito certa que os homens fazem mais por amor e cari-
dade do que por severidade e rigor». Ele sabe nomeadamente que,
ao converter-se, alguns perdem os seus lugares, os seus recursos e
os seus bens. Para eles, esforça-se por organizar ajudas e arranjar
refúgios e obras. Se dele dependesse Thonon teria tido, desde 1595
ou 1596 um colégio de Jesuítas. Outro projeto tem muito a peito em
23 Cf. J. LECLERC, lib. cit., T. II, pp. 126-127.

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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1598, depois de ver afluir os pedidos de conversões: encontra-se o
desígnio dele na súplica que Francisco apresenta ao Papa Clemente
VIII, em janeiro de 1599, da parte de Mons. de Granier; trata-se
de fundar, em favor dos novos convertidos vindos de Genebra e
«despojados dos seus bens»… «uma casa de misericórdia ou hos-
pício de virtude. Ali, estes banidos por causa do amor a Cristo,
sobretudo as crianças e os jovens dos dois sexos, poderiam ser aco-
lhidos, educados e instruídos cristãmente. Ensinar-se-ia a cada um
segundo a sua capacidade as ciências ou qualquer profissão que lhe
permitisse depois ganhar a sua vida».
Estes dons verdadeiramente excecionais de organizador, de rea-
lizador, ia eu dizer, utilizando a palavra no seu melhor sentido,
de político, Francisco revela-os também na sua atitude a respeito
dos católicos do Chablais. Com eles, mostra-se paternal e firme,
exigente e afável, estrito e benigno. Tomemos ousadamente este
exemplo escaldante: o problema do financiamento da missão do
Chablais: Ele mesmo, Francisco, é de uma pobreza rigorosa. Desta
pobreza, não se queixa, feliz da sua parte de ser um «fiel discípulo
da Cruz» e de imitar nosso Senhor Jesus Cristo; e se porventura
dispõe de alguns escudos, utiliza-os em esmolas. Mas ele sabe que
esta pobreza, a não ser que Deus lho imponha, não deve ser tal
que prejudique o seu apostolado, e menos ainda que redunde em
escândalo das almas. Desde o fim de maio de 1595, confia ao seu
amigo Antoine Favre: «É também (um grande argumento contra
o meu apostolado) ver homens no meio dos domínios da Igreja,
sob um príncipe católico, viver uma vida precária e por assim dizer
no dia a dia». Em 31 de maio de 1597, solicita mesmo um bene-
fício-paroquial que se encontra vacante, o do Petit-Bornand: «É
bem verdade que o cargo de vigário-geral não tem um vintém de
renda, e o canonicato que se dá ao encarregado dos não rende em
média senão sessenta escudos por ano; eu julgaria, portanto, mais
vantajoso ser um pároco com rendimentos do que ser um pobre
vigário-geral, não fosse a esperança do nosso regresso a Genebra…

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São Francisco de Sales
Tendo assim de que viver segundo a minha consciência, não busca-
rei outra coisa senão servir o Senhor e a Igreja desta diocese pelos
pequenos trabalhos a que for destinado».
Mas à medida que a missão tinha êxito e se desenvolvia, Fran-
cisco entrava em contestação com os grandes beneficiados da
diocese: como instalar párocos nas paróquias, se não se lhes dá de
que viver, e até se não se começa por reparar as suas igrejas muti-
ladas, pilhadas pelos calvinistas? Como introduzir no Chablais
«pregadores», capuchinhos e jesuítas, se não se garante a sua sub-
sistência? Como fundar obras indispensáveis, sem dinheiro? Ora o
dinheiro existe: a Ordem dos cavaleiros de Saint-Maurice-et-Lazare
foi feita, por Gregório XIII em 1579, depositária dos bens da Igreja
que escaparam aos Berneses; em Turim, em outubro de 1596, o
duque aprovou, segundo o projeto de Francisco, que os cavaleiros
coloquem à disposição da missão do Cablais, pelo menos em parte,
os rendimentos desses bens. Mas resmungam a este serviço. E para
Francisco, o conflito com os cavaleiros será daqui para o futuro
uma preocupação constante: pelo duque, pelo núncio, esforça-se
por lhes arrancar o que a sua avareza lhe recusa…
Assim, em 21 de fevereiro de 1597, ele coloca-os, em termos
muito claros, perante as suas responsabilidades: «Este expe-
diente, declara-lhes ele entre outras coisas, consiste em que, dado
o tratado de paz desejado, Vossas Senhorias quisessem mesmo
ceder absolutamente todas as paróquias de que usufruem nesta
região e suas dependências; acrescentando a isso as que são pro-
venientes dos particulares, poder-se-ia fazer neste arrendamento
um serviço religioso tão brilhante que a luz resplandeceria de
todos os lados». Quando se trata de «combater os combates do
Senhor dos Exércitos», Francisco não receia ser «importuno a Sua
Santidade, a Suas Altezas» e aos Cavaleiros. Esta intrepidez jurí-
dica e financeira que se alia muito bem a um sentido extremo
da sua pobreza pessoal, eis um verdadeiro símbolo das atitudes
apostólicas de Francisco.

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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Da retidão e pureza das suas intenções em todos os assuntos
temporais, não se poderia duvidar: vê-se bem quando se trata de
escolher párocos para o Chablais e de ali os instalar. Estes párocos-
-missionários, quer que sejam homens «maduros e competentes
na missão pastoral»… «próprios para a obra da conversão e das
solenidades eclesiásticas»… Não tem qualquer ilusão sobre as difi-
culdades que aguardam os seus colaboradores: escreve de Thonon
ao núncio, em 2 de março de 1597: «Tenho um bom número de
padres que em breve se disponibilizarão para vir exercitar-se aqui
na paciência e na mortificação; terei todo o cuidado de que eles
sejam ricos de vida boa, e pelo menos bem providos de saber…
Mas não se poderia colocá-los sem antes lhes preparar o caminho
com alguns sermões eclesiásticos feitos por um pregador experi-
mentado». Parece que, desde este momento, sonhou em procurar
para estes vigários «casa e habitação e facilidade de morarem vários
juntos». Mas a ocasião não está madura para realizar este projeto.
Entretanto, visita aqueles que colocou à frente de paróquias, ajuda-
-os, tanto quanto pode, «com um amor ao mesmo tempo paterno
e fraterno». E que mágoa – poder-se-ia quase dizer que rancor –
experimenta Francisco em relação às «gordas abadias», decaídas da
observância regular, «nas quais os monges (que só o são de nome)
destroem mais do que edificam».
Assim nos aparece Francisco no fim deste período missioná-
rio e na véspera de partilhar com Mons. de Granier, e sob a sua
autoridade, a missão do bispado de Genebra. Este padre de trinta
anos já deu a medida do seu génio e da sua santidade. Para o cara-
terizar, não poderíamos fazer melhor do que citar Sainte-Beuve,
mas conferindo-lhe as suas dimensões propriamente espirituais,
as suas vistas penetrantes sobre «Francisco de Sales completo»24.
Aplicando a Francisco o pensamento de Pascal: «Não admiro
24 Charles-Augustin SAINTE-BEUVE, Port-Royal, Hachette, 3e édit., 1867, T. I, Ch.
X, pp. 249 sqq.

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São Francisco de Sales
Francisco de Sales recebido pelo papa Clemente VIII
(incisão de François Chauveau).

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Capítulo v- O apóstolo do Chablais: o tempo das Ceifas
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nada o excesso da virtude… pois de outra forma não é subir, mas
cair. Não se mostra a sua grandeza por estar numa extremidade,
mas sim tocando as duas ao mesmo tempo e preenchendo todo o
entre-dois», ele comenta em duas páginas inolvidáveis este entre-
dois de Francisco de Sales: Ninguém melhor do que (ele)… teria,
com uma qualidade extrema, a combinação, o temperamento, o
corretivo e o extensivo, enfim, para falar com Pascal, o entre-dois.
A cada um dos carateres que precedentemente lhe reconheci, seria
necessário acrescentar quase o seu contrário, o qual aparece, não
para fazer equilíbrio noutro sítio e diversão, mas para modificar e
fortificar a qualidade dominante, ao entrar lá, baseando-se aí, para
lá fazer equilíbrio e lastro, como dentro de si mesma. A sua alma,
desde aqui em baixo, é uma esfera completa sob uma só estrela».
E capaz de dar deste entre-dois um exemplo luminoso: de Fran-
cisco, declara que «não era uma pomba de doçura, mas uma águia
de doçura».
Assim poder-se-ia aliar a seu respeito os termos que parecem
excluir-se. Francisco de Sales é o tipo mesmo da plenitude, mais
ainda do que da medida: nada lhe falta, os contrários nele não são
contraste ou dissonância, mas harmonia superior. Os seus escritos,
seguindo-os de demasiado perto e não considerando demasiado
exclusivamente senão a Introdução à vida devota ou o Tratado
do amor de Deus, – mesmo a sua Correspondência, a não provar
demasiado senão as cartas a Madame de Chantal ou outras almas
privilegiadas, pregam-lhe uma partida: só o mostram sob alguns
dos seus aspetos. Desconhecer o missionário do Chablais, é falsear
o diretor de almas; desconhecer o homem de ação e de governo,
é falsear o escritor; é sobretudo falsear o místico, desconhecer as
riquezas do homem, a habilidade do jurista, a finura do político.
Um «entra» no outro e «funde-se com ele». Que se fale de equi-
líbrio, se não se tem melhor termo. Mas este não é um equilíbrio
terra a terra, rastejante e plano; é um equilíbrio superior, de alto
voo, o equilíbrio que só a liberdade do amor dá.

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São Francisco de Sales
Sainte-Beuve pressentiu este mistério da graça sem, todavia,
penetrar toda a sua profundidade: «De contraste em conciliação,
sou levado ao último entre-dois que é caraterístico em S. Francisco
de Sales e que só pode acabar de dar a sua medida, quero dizer, a
aliança que se fazia nele entre a virtude mística, contemplativa, a
caridade em toda a sua candura e a finura de julgamento humano
em toda a sua sagacidade». Seria necessário que Sainte-Beuve des-
cesse mais um degrau, ou antes, atravessasse um limiar na alma de
Francisco: dar-se-ia conta de que todos os dons humanos – notá-
veis e entre os mais belos que existem – do seu herói, só atingem
uma tal plenitude porque o fogo do amor de Deus havia queimado
todas as suas escórias, purificado os seus defeitos, iluminando-os
do interior e, de algum modo, transfigurando-os.

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
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6. BISPO E PRÍNCIPE DE GENEBRA
Francisco vai a Roma
Deixámos Francisco de Sales no meio das festas brilhantes das
Quarenta Horas de Thonon. A apóstolo do Chablais recebeu a sua
recompensa; e as disposições do duque são tais que há que esperar,
a breve prazo, a conversão total desta província… «Então, tendo
passado o inverno, a primavera sorria, por toda a parte se via levan-
tar-se «a árvore preciosa e resplandecente» da Cruz vivificante; de
toda a parte a Igreja fazia ouvir os seus cânticos como a voz da rola,
e renovadas, florindo de novo, as vinhas exalavam o seu perfume».
Assim Francisco descreverá a situação do Chablais em 1598, num
relatório dirigido a Clemente VIII em 1603.
No fim de novembro de 1598, Francisco partiu para Roma em
companhia do Senhor de Chissé, vigário-geral e sobrinho de Mons.
de Granier.
Em Modena, juntou-se ao seu irmão Louis e ao seu amigo
Antoine Favre que estariam, também eles, de viagem. Pelos meados
de dezembro, os viajantes chegavam à Cidade Eterna. Francisco
estava encarregado de apresentar ao Papa diversos pedidos do
Bispo de Genebra, e o vigário-geral por seu lado devia solicitar
para Francisco as bulas de coadjutoria. O acolhimento de Cle-
mente VIII foi extremamente paterno. Ele conhecia bem Francisco
e conversou longamente com ele da sua obra no Chablais: o cardeal
de Médicis havia ainda recentemente falado a Sua Santidade das
maravilhosas Quarenta Horas de Thonon. Francisco apresentou os
pedidos de Mons. de Granier, depois retirou-se. Isto passava-se em
15 de janeiro de 1599.

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São Francisco de Sales
Era necessário agora aguardar as decisões pontifícias. «Nunca
estive em lugar, escreve Francisco a Mons. de Granier alguns dias
após a audiência do Papa, onde o peso fosse tão grande como é nesta
Corte. Sua Santidade não concederia uma graça, por pequena que
fosse, que ela não fosse pesada e contrapesada pelo conselho dos
Senhores Cardeais, os quais, vendo il Santissimo di questo parere (o
Santo Padre desta opinião), estão também eles mesmos de acordo».
Francisco aproveitou os seus tempos livres para visitar grandes
personagens de Roma, «cardeais e santos religiosos», e para pere-
grinar pelas igrejas e os conventos da cidade. A 15 de março, o
Senhor de Chissé obtinha uma segunda audiência e apresentava
ao Papa o pedido de coadjutoria. O Papa mostrou-se logo muito
favorável a esta proposta, mandou chamar Francisco, disse-lhe que
queria conceder ao bispo de Genebra tudo o que ele pedia… mas
ordenou-lhe que se preparasse para fazer o exame canónico na sua
presença a partir de segunda-feira seguinte.
Ao anúncio deste exame, Francisco ficou surpreendido, pois, de
acordo com os privilégios da Igreja galicana, os padres de Saboia
estavam dispensados dele. Que iam dizer o Soberano Senado de
Saboia e Sua Alteza?25. Mas o Papa declarando que «era só para seu
contentamento e a fim de tornar (Francisco) recomendável a todo
o Sacro Colégio dos Cardeais», forçoso era obedecer.
Tendo chegado segunda-feira, Francisco apresentou-se no
palácio do Papa. «Encontrou a sala muito cheia de gente…». Sua
Santidade presidia; à volta do Papa estavam sentados oito cardeais,
entre outros o cardeal de Florença, o cardeal Borghèse, o cardeal
Baronius e o cardeal Borromeu; vinte arcebispos, bispos, gerais
de Ordem; Bellarmino estava entre os teólogos encarregados de
atacar o candidato. Era um júri de honra! Tudo se passou muito
bem. De tal forma que era de recear que em Annecy se empolasse
25 Foi necessário que Francisco, passando por Turim no seu regresso de Roma, miti-
gasse sobre este ponto o descontentamento do duque. Cf. Œuvres, T. XII, p. 9.

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
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este sucesso. Em 26 de março de 1599, Francisco escreveu a Louis
de Sales: «Confesso-vos ingenuamente que Deus não permitiu que
ficássemos confundidos no exame, se bem que, olhando só para
mim mesmo, só esperava aquilo… Os sinais de bondade paterna
com que o Papa me honrou… obrigam-me a ser mais do que nunca
bom filho e bom servidor da santa Igreja Romana; mas seja o que
for que os nossos amigos escrevam, recordai-vos… que no fim de
contas só somos o que somos diante de Deus».
Em 25 de março, na festa da Anunciação, Francisco foi admitido
à missa do Papa, e ali comungou da mão do Pontífice. Lá, recebeu
«favores particulares de Nosso Senhor» cuja recordação consig-
nou num pequeno bilhete cujo texto é o seguinte: «Tendo rece-
bido a santa Eucaristia da mão do Soberano Pontífice no dia da
Anunciação, a minha alma interiormente ficou muito consolada;
e Deus concedeu a graça de me dar grandes luzes sobre o mistério
da Incarnação, fazendo-me conhecer de uma maneira inexplicável
como o Verbo tomou corpo, pelo poder do Pai e pela operação
do Espírito Santo, no casto seio de Maria, querendo-o Ele mesmo
para habitar entre nós, desde que Ele seria homem como nós. Este
Homem-Deus deu-me também um conhecimento elevado e sabo-
roso sobre a Transubstanciação, sobre a sua entrada na minha alma
e sobre o ministério dos Pastores da Igreja».
No fim da primavera de 1599, Francisco estava de regresso a
Annecy, não sem haver feito pela segunda vez peregrinação a
Loreto26. Em Turim onde parou, os cavaleiros de S. Maurício
«sabendo que eu era portador do breve de Sua Santidade que
confere a Mons. de Genebra a autoridade de aplicar à subsistência
dos párocos, dos pastores e dos pregadores, todos os rendimen-
tos que eles têm nas paróquias convertidas, mandam-me citar para
26 Se Francisco não foi a Roma, ao deixar Pádua em 1591-1592, é a esta viagem
de 1599 que convém referir o que é dito, pela maior parte dos historiadores, da
estadia de 1591-1592

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São Francisco de Sales
prestar contas da minha administração». Os cavaleiros apercebe-
ram-se então que sob a benignidade do prelado se escondia o rigor
do jurista, a justiça do homem apostólico…
Coadjutor de Mons. de Granier
Durante dois anos, Francisco de Sales, bispo nomeado de Nicopo-
lis, vai viver na sombra de Mons. de Granier. Uma sombra de que
ele gosta e, por assim dizer, que ele cria: com efeito recusa obsti-
nadamente deixar-se ordenar, ou mesmo tomar somente as vestes
episcopais enquanto Mons. de Granier vive. É, como deve ser, em
nome do bispo em funções que o coadjutor trata então todos os
assuntos em curso. Estes assuntos dizem respeito na sua maior
parte ao Chablais; alegrias e deceções alternam: as paróquias orga-
nizam-se, mas não sem dificuldades, o colégio dos Jesuítas é apro-
vado e até financiado pelo Papa, mas o provincial de Lyon tem falta
de religiosos disponíveis. E, ainda por cima, eis que, em agosto
de 1600, a guerra rebenta de novo na Saboia: o rei assinou com o
duque, em 27 de fevereiro de 1600, o tratado de Paris, mas o duque
tergiversa, intriga, esquiva-se; Henrique IV, numa campanha-re-
lâmpago, invade a Saboia …
No dia em que o Bearnês entra em Annecy, a posição do Bispo
de Genebra torna-se muito espinhosa: Henrique IV é inimigo do
duque de Saboia Carlos Manuel, príncipe soberano de todo o Gene-
brino, - mas não do duque de Genevois-Nemours, de que Annecy
mesma é o apanágio e que exerce sobre a cidade uma espécie de
soberania. Ora o duque de Genevois-Nemours acautelou-se para
não se envolver no conflito. Que atitude tomar? Tanto mais que já
as pessoas de Genebra e de Berna se esforçam por se infiltrar na
reconquistada pelos franceses e de aí arruinar de novo o catoli-
cismo.

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
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Francisco, nesta ocorrência, salvou segunda vez o Chablais: per-
corre ele mesmo a região, reanima a coragem, apoia missionários e
párocos e, mais ainda, ganha junto de Henrique IV a batalha diplo-
mática; o rei promete a Mons. de Granier que «nada será alterado
na província do Chablais contra o que foi feito para a fé». A paz foi
por fim assinada em Lyon a 17 de janeiro de 1601, entre os plenipo-
tenciários do duque e o rei de França. Mas a situação política dos
católicos tornava-se mais incerta do que nunca: se Carlos Manuel
ficava com Saluces, devia ceder à França a Bresse, o Bugey, o Val-
romey e a região de Gex. Que seria feito destas regiões, uma vez
que o rei não tinha escrúpulos, (acabava de o mostrar durante a
ocupação do Chablais) de fazer governar em seu nome huguenotes
notórios?
É uma carta triste, mas apesar de tudo iluminada por uma conso-
lação essencial, que Francisco havia já enviado ao núncio Riccardi
em 26 de agosto de 1600: «No meio de tantas aflições pelas quais
prouve a Deus castigar os nossos pecados, não me resta outra coisa
a escrever-vos, a não ser que, nesta enfermidade, a virtude divina se
mostrou pela constância dos nossos convertidos de Thonon. Amea-
çados, ora pelas incursões dos Genebreses, ora pelas dos Berneses,
mantiveram-se, porém, firmes na nossa santa religião. É verdade
que até aqui eles só sofreram ameaças, pois estes hereges não estão
mobilizados para a guerra. Mas o receio de que o rei venha a utili-
zar os infiéis será suficiente para abalar consideravelmente a fraca
coragem dos convertidos».
Ainda por cima, um acesso de doença de Mons. de Granier vem
complicar a situação: «Monsenhor o nosso Reverendíssimo Bispo
está ainda bastante doente, quer na sequência das fadigas suporta-
das no Chablais no mês passado, quer devido ao desgosto que sente
ao ver os nossos assuntos a tomar uma tão má direção… Os padres
da missão estão ainda no Chablais, embora dispersos em diferen-
tes lugares por medo dos Genebreses e dos Berneses. Os párocos
na sua maior parte permanecem nas suas paróquias, se bem que

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São Francisco de Sales
alguns dos mais tímidos se tenham retirado para ver como termi-
narão as coisas».
A situação dos católicos não ia tornar-se perigosa? Negociações
diplomáticas deverão iniciar-se em Paris no próximo ano: serão
extremamente complicadas, e os seus resultados magros e frágeis.
Contudo, lá pelo mês de maio de 1600, havia sido publicado
em Jean Pillehotte, livreiro em Lyon, la Défense de l’Étendard de
la Sainte Croix de Notre Sauveur Jésus-Christ. Era a resposta de
Francisco a um panfleto antigo do ministro La Faye : resposta
demasiado tardia sem dúvida (La Faye havia redigido o seu Brief
Traité em 1597, logo depois das Quarenta Horas de Annemasse),
mas obra verdadeiramente digna do génio de Francisco de Sales:
«A linguagem da guerra é diferente da linguagem da paz», declara
ele mesmo, o autor. Esta linguagem da guerra é a da clareza, da
precisão, da força na argumentação: dialética apertada, paixão da
verdade, segurança de doutrina, fidelidade à Tradição, encontramos
ali o estilo das Controvérsias. Além disso, este livro que poderia ser
apenas uma obra de combate, transforma-se, pela graça de Fran-
cisco, em tratado de ascética: a sua ideia fundamental sobre a reli-
gião é já aquela mesma que animará as obras de espiritualidade:
«A verdadeira e pura essência da adoração consiste na ação inte-
rior da vontade, pela qual uma pessoa se submente Àquele que é
adorado; e o conhecimento, ação do entendimento, precede a sub-
missão como fundamento; ao contrário, a ação exterior segue-se
à submissão como efeito e dependência dela». O livro não teve o
sucesso de livraria que se podia esperar; mas ajudou muito eficaz-
mente inúmeras almas a permanecer fiéis, enquanto passava sobre
o Chablais e outras regiões de Saboia o novo furacão protestante.
Fazendo o balanço destes anos 1599-1600, numa carta de 18
de março de 1601 ao núncio Riccardi, Francisco podia ofere-
cer-lhe esta «consolação: comunicar-lhe que, se em Thonon e
em Ternier… se sofreu muito sob o governo de M. de Montglot,
huguenote, e pelas ciladas dos Genebreses (Em Ternier sobretudo

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exerceram uma tirania, e cometeram em relação às coisas sagradas
indignidades que não se podem dizer), todavia, apesar disso, entre
um tão grande número de convertidos, não se encontraram quatro
que tenham recaído, e mesmo sendo de baixa condição. Assim,
reconheceu-se que a sua mudança era obra da direita do Altíssimo,
dado que em contraposição celebraram as festas de Natal com um
entusiasmo totalmente inusitado».
Francisco poderá até em breve (28 de junho de 1601) comuni-
car ao núncio que «apesar da guerra, o número dos convertidos
aumentou desde o Natal», e escrever alguns meses mais tarde (21
de dezembro de 1601) ao sucessor de Mons. Riccardi, o núncio
Tartarini: «Vou agora dar conta a Vossa Senhoria dos progressos
(da religião) na diocese, dizendo-lhe que eles estão muito felizes,
não só em Thonon e em Ternier, pois isso é já antigo; mas também
Thorens Glières, igreja paroquial
em que Francisco foi sagrado bispo.

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São Francisco de Sales
muito recentemente nas regiões de Gex e de Gaillard que se esten-
dem até às portas de Genebra. Na segunda destas regiões, o senhor
bispo de Genebra reconciliou, na semana passada, oito igrejas para
o uso de vários milhares de almas reconduzidas à fé desde o Pente-
costes. Na primeira região, que está sujeita ao rei de França, foram
criadas três paróquias, nas quais foram colocados três dos nossos
cónegos para a santa pregação. Eles obtiveram ali muito fruto, pois
havia nesta região vários antigos católicos cuja fé estava escondida
e coberta como um fogo debaixo da cinza do culto huguenote,
único que ali se praticava desde há setenta anos; posta agora esta fé
a descoberto pelo sopro da palavra divina, eles dão testemunho da
verdade. Outros ainda convertem-se, e outros dispõem-se à con-
versão».
Se bem que Francisco sonhe realizar por fim um dos seus grandes
sonhos apostólicos: estabelecer em Thonon uma Santa Casa, cuja
bula de ereção já possui, assinada por Clemente VIII e datada de
1599, mas que as circunstâncias não permitiram lançar até ao pre-
sente. Esta Casa, que a bula intitula «Alberge de toutes les Sciences
et Arts» e coloca sob a invocação de Nossa Senhora da Compaixão,
é uma ideia muito original e por muitos aspetos moderna: com-
preende um prefeito e sete padres, e reúne «as pessoas converti-
das a Jesus Cristo, de qualquer grau, estado, ordem e condição que
elas sejam… (para ser) educadas e formadas na doutrina cristã, nas
ciências, nas artes e em todas as virtudes»27.
Francisco, de resto, não tem ilusões sobre os obstáculos que se
levantam ainda diante da realização deste projeto: «Mas requer-
-se sobretudo, declara ele, que em breve se ponha mãos à obra,
realmente e a sério, pois as boas intenções de pouco servem. Se
este projeto não se puder executar de uma só vez, que ao menos se
realize pouco a pouco, começando pelas partes mais necessárias,
27 Mémoires et documents publiés par l’Académie Salésienne, T. V, pièce justificative,
n° 25.

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
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tais como o colégio, o seminário, e assim sucessivamente». Na rea-
lidade, a bula só será aberta em 1602.
Neste ano de 1601, a pedido de Mons. de Granier, Francisco havia
pregado em Annecy a estação quaresmal. Na manhã de quinta-
-feira 6 de abril, no momento em que ele ia subir ao púlpito, o reve-
rendo Aimé Bouvard tinha vindo informá-lo de que, na véspera à
noite, o Senhor de Boisy havia «entregue muito suavemente o seu
espírito a Deus».
O bem-aventurado Francisco, juntando as mãos e elevando os
olhos ao Céu, adorou a Deus que vive pelos séculos dos séculos,
e não deixou de subir ao púlpito onde manteve tão bom aspeto e
prosseguiu tão bem o seu discurso, que nunca ninguém se aperce-
beu que ele estivesse tão perturbado. Havendo feito o seu epílogo,
mudou muito a propósito e surpreendeu o povo com estas palavras:
Monumento a S. Francisco de Sales próximo da igreja paroquial
de Thorens Glières..

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São Francisco de Sales
Ao vir para aqui, tomei conhecimento da morte da pessoa à qual
devo mais no mundo; peço-vos duas coisas, uma que me dispen-
seis um ou dois dias, a fim de que eu possa prestar-lhe os últimos
deveres, outra que façais o favor de rezar a Deus pelo repouso da
sua alma».
Terminada a Quaresma, Mons. de Granier e seu coadjutor foram
visitar as paróquias do Chablais e reorganizá-las.
Ora, eis que um problema delicado se coloca a Mons. de Granier:
o rei de França mostra-se muito favorável ao restabelecimento
do culto católico no Gex; o que significa que se restabeleçam os
párocos nas vinte e seis paróquias desta região; mas, pressionado
entre a resolução de favorecer os católicos e o seu cuidado de não
descontentar os protestantes, Henrique IV não fala de devolver a
estes párocos os benefícios espoliados pelos protestantes. Ora, de
que viverão estes padres se não recuperarem os seus rendimentos?
Mons. de Granier pede a Roma que Sua Santidade faça pressão
sobre o rei. Roma dá ordem disso ao seu núncio em Paris. Mas
o núncio não está muito ao corrente da situação real da religião
na região de Gex: precisa de um conselho competente. Mons. de
Granier, cuja saúde era então bastante precária e que, desde há três
anos, havia tomado o costume de confiar as suas preocupações
mais graves ao seu coadjutor, enviou Francisco a Paris para tratar
do assunto de Gex com o núncio de França e com o rei.
A estadia de 1602 em Paris
Na quarta-feira 2 de janeiro de 1602, Francisco de Sales tomava,
pela segunda vez na sua vida, o caminho de Paris. Era acompa-
nhado pelo cónego Déage e por Antoine Favre. Na terça-feira 22
de janeiro, a pequena comitiva chegava a Paris: Francisco ficou
alojado na rua Saint-Jacques, como no tempo dos seus estudos.

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
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Desde a sua chegada, Francisco apresenta-se ao núncio de França.
Mons. Innocenzio del Bufalo mostra-se acolhedor no seu lugar; mas
nada, diz ele, se pode fazer em favor dos católicos de Gex, se antes
não se ganhar para a sua causa o senhor de Villeroy, a quem o rei
encarrega dos assuntos estrangeiros da França. Em 8 de fevereiro,
Francisco escreve a Mons. de Granier: «Depois de a corte ter regres-
sado a esta cidade, Mons. o Núncio deu-se ao incómodo de ir junto
do senhor de Villeroy a quem Sua Majestade nos havia enviado para
tratar do assunto, e ali tive mesmo que debater pelas nossas preten-
sões. Todavia, no fim dei o meu golpe fundamental, sobre o qual
ele me disse que o Conselho nos faria direito e justiça, e que não
tivéssemos disso a menor dúvida». Na realidade, esta «muito boa
esperança» será lenta de realizar, e só se realizará parcialmente: só
em setembro é que Francisco retomará o caminho da Saboia.
Pelo menos, esta estadia forçada vai ser para Francisco de grande
proveito espiritual e apostólico: confere-lhe, por assim dizer, as suas
dimensões humanas, arrancando-o de uma vez por todas a qual-
quer particularismo regional e colocando-o diante dos grandes
problemas do mundo e do tempo. Quando, dentro de alguns
meses, Francisco deixar Paris, terá descoberto a corte de França,
com as suas grandezas, mas também as sua intrigas e os seus jogos
de influência; terá pregado e retido ao pé do seu púlpito auditórios
brilhantes, com frequência tão frívolos quanto sensíveis; terá mer-
gulhado no admirável renovamento religioso que atravessa então a
alta sociedade parisiense. «Santos, verdadeiros santos, em grande
número, e por todo o lado»28. Terá atraído a si muitos espíritos e
muitos corações… E, no meio de todos estes sucessos e todos estes
trabalhos, terá manifestado na sua vida quotidiana a santidade e a
caridade do verdadeiro padre de Jesus Cristo.
Tudo proveio, julgando segundo as causas humanas, de que
Francisco, em Paris, ia por vezes a casa da Princesa Marie de
28 H. BREMOND, lib. cit., T. I, p. 95.

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São Francisco de Sales
Luxembourg, duquesa de Mercœur: havia ali, diz ele, um «afeto
do qual… eu não podia prescindir, dado que me era hereditário,
havendo meu pai, meu avô e meu bisavô tido a honra de haver sido
alimentados enquanto pajens e quase o resto da sua vida, na casa
dos ilustríssimos príncipes de Martigues, respetivamente pai, avô e
bisavô» da duquesa. Ora, aconteceu que, pouco antes da Quaresma
de 1602, «por casualidade, a capela da rainha na sala do Louvre,
estava destituída de pregador»: Francisco foi solicitado. Sem outra
ocupação senão aguardar «o desenlace das suas diligências», teve
de aceitar: «Vi-me forçado, por honestidade, a pregar na capela da
rainha três vezes por semana, escreve em 9 de março de 1602, a
M. de Quoex, diante das princesas e cortesãos, não tendo podido
recusar os pedidos e ordens que me foram apresentados. Mas isso
entende-se, acrescenta com finura Francisco a este correspon-
dente romano, sem retardar a solicitação que faço lentamente para
secundar o humor daqueles que têm o assunto em mãos, aos quais
sou forçado a acomodar-me». Apesar de haver sido improvisada,
esta Quaresma nem por isso deixou de ser um franco sucesso e,
por cúmulo de edificação, o pregador recusou, terminada a Qua-
resma, a «belíssima bolsa cheia de escudos de ouro ao sol» que lhe
mandou entregar, em jeito de recompensa, a princesa de Longue-
ville. Os nossos cortesãos não acreditavam nos seus olhos.
Durante este tempo, os Genebrinos fazem intrigas junto do
ministro Villeroi para frustrar o pedido do coadjutor, e o assunto da
região de Gex revela-se «de tão delicada condução e bizarro pros-
seguimento», que Francisco receia mesmo, no princípio de abril de
1602, regressar a Annecy «sem outra expedição senão esperanças».
Contudo não é culpa sua: pois multiplica cartas e diligências…
Sobreveio então um incidente que deu à negociação uma volta
mais favorável. Henrique IV, tendo ouvido grandes elogios deste
pregador saboiano, «quis vê-lo no púlpito»: Francisco foi a Fontai-
nebleau, e no domingo de Quasimodo, 14 de abril, pregou diante
do rei. «No dia de Quasimodo, o rei fez-me pregar diante dele, e

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
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mostrou ter ficado contente». Depois desta pregação, Francisco
teve uma longa conversa com o rei. Era uma oportunidade, sem a
qual o assunto da região de Gex se teria totalmente gorado. A 18 de
abril de 1602, ele notifica a M. de Quoex : «Regresso agora mesmo
de Fontainebleau e, se não tivesse lá estado, toda a minha negocia-
ção estava arruinada. Todavia, fiz tanto que recuperei alguma boa
esperança; dentro de dois ou três dias, terei a resolução completa
do caso. Não será, à aventura, com todo o contentamento que nós
Brasão de Francisco de Sales.

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São Francisco de Sales
desejamos: é preciso tirar do fogo o que se pode salvar. Será sempre
muito, pelo que dizem os peritos… O andamento dos assuntos é
tão penoso nesta corte, que quando se pensa que se está libertado,
se está embaraçado ao máximo».
Decididamente, o futuro bispo de Genebra anda em dura escola,
mas isso aperfeiçoa nele o diplomata. De deceção em esperança, de
esperança em deceção, as coisas arrastar-se-ão até setembro… e,
de facto, o ganho será magro. Dando conta da sua missão ao Papa
Clemente VIII, Francisco fará este balanço desencantado: «Parecia
que nada contrariaria a esperança do sucesso desejado. Mas, oh
miséria do nosso tempo! Depois de haver feito tantas diligências
por esta santa negociação, apenas obtivemos autorização de cele-
brar os santos mistérios em três localidades, com a concessão para
tal, de um rendimento anual para os nossos padres. Quanto ao
resto, o próprio rei nos pintou a dureza dos tempos: «Eu desejaria,
mais que ninguém, disse ele, o total restabelecimento da religião
católica, mas o meu poder não iguala o meu prazer», e semelhan-
tes conversas. É assim que ao fim de nove meses inteiros, me vi
forçado a regressar sem ter feito quase nada».
«Sem ter feito quase nada»: a palavra era talvez exata no plano
da negociação. No plano espiritual, ao contrário, Francisco havia
feito muito, e ele havia aprendido mais ainda. Pregou «mais de cem
vezes», confessou, converteu; visitou conventos e mosteiros, e des-
pertou de novo nas almas o fervor.
Sobretudo, foi introduzido por Pierre de Bérulle, então simples
«abade» e oito anos mais novo do que ele, no hotel de Madame
Acarie, que Bremond não receia chamar «uma nova Teresa»29. Ali
frequentam Asseline, Marillac, o Chartreux Beaucousin, e o que
Paris conta de mais devoto. Parece que Francisco de Sales exerceu
neste grupo, apesar de já tão fervoroso, uma real influência: vários
o escolheram por confessor e diretor de consciência; mas ele recebe
29 H. BREMOND, ibid, p. 96.

13.3 Page 123

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
123
ainda mais do que dá. Junto das pessoas que assim se reuniam, as
graças propriamente místicas, até os fenómenos extraordinários,
não eram raros.
A mais favorecida parece mesmo ter sido a própria Madame
Acarie. Ora, ela bem depressa teve em Francisco plena confiança:
«abria-lhe o coração, não somente no sacramento da Penitência,
mas também nas conversas particulares». Francisco foi de resto, a
respeito da sua penitente, de uma grande discrição, e não a inter-
rogou de forma alguma sobre as graças extraordinárias com que o
Espírito Santo a favorecia; mais tarde, sentirá mágoa disso: «Oh que
falta cometi, quando não aproveitei da sua santa conversação: com
efeito, ela ter-me-ia aberto totalmente a sua alma; mas o grande
respeito que tinha por ela, fazia com que eu não ousasse perguntar
a mínima coisa». Não que ele mesmo não tivesse já experimentado
em várias circunstâncias estes estados privilegiados em que Deus
se torna sensível30 à alma; mas cada experiência, neste género de
graças, é original, e cada alma tem alguma coisa a aprender das
outras almas: assim se explica a mágoa de Francisco.
O encontro de Francisco de Sales e do grupo Acarie teve duas
consequências extremamente importantes na história religiosa da
França: «Nestas assembleias, foi decidido pelo seu conselho e por
desejo de (Madame) Acarie, recorrer à Espanha, para ter religiosas
Carmelinas (sic) de santa Teresa (Teresa de Ávila tinha morrido
em 1582, havia, portanto, vinte anos), e a Roma, para ter padres do
Oratório do Nome de Jesus31; o que sucedeu com tanto êxito que,
por consentimento do rei e favor do Soberano Pontífice, a princesa
30 Aqui separamo-nos conscientemente de P. A. LIUIMA, Aux sources du Traité de
l’Amour de Dieu de Saint François de Sales, Rome, 1959, p. 185, et du P. SÉROUET,
De la vie dévote à la vie mystique, Desclée de B., 1958, Ch. X et XI. – A nossa afir-
mação baseia-se numa análise dos textos que infelizmente não podemos desen-
volver neste breve esboço.
31 O Oratório havia sido fundado em Roma em 1564 por Filipe Néri. É em 1611 que
Pierre de Bérulle introduzirá o Oratório em França.

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São Francisco de Sales
de Longueville enriqueceu a religião de Paris com um novo mos-
teiro depois de o bem-aventurado Francisco ter escrito a Sua Santi-
dade e instruído amplamente a Sede Apostólica».32 Em outubro de
1604 foi aberto em Paris o primeiro Carmelo.
Quando, no fim de setembro de 1602, Francisco de Sales partiu
de novo para a Saboia, deixava atrás de si numerosas e grandes
mágoas. Sem dúvida, não havia total sucesso na sua missão diplo-
mática; havia ligado a si o coração de Henrique IV que quis logo
nomeá-lo arcebispo em França e lhe atribuiu mesmo uma «avul-
tada pensão» de que o prudente Francisco teve grande dificuldade
em desprender-se. Ele levava também na sua alma a recordação
reconfortante de muitas confissões, confidências e, acima de tudo,
a alegria de haver tomado parte, durante vários meses, neste pro-
digioso impulso espiritual cujos efeitos em breve se fariam sentir
em toda a França e fora da França. De Paris, não é excessivo dizer
que Francisco de Sales regressa, havendo atingido uma espécie de
maturidade humana e espiritual. As primeiras cartas de direção
que ele escreverá após o seu regresso dão testemunho disso: mos-
tram-no-lo na posse da sua doutrina espiritual, tal como se desen-
volverá na Introdução à Vida Devota, nos Entretenimentos e no
Tratado do Amor de Deus. «Repentina, completa e definitiva rea-
lização dele mesmo», ousa escrever Henri Bremond falando desta
metamorfose de Francisco de Sales33.
Ao passar por Lyon, em 29 de setembro de 1602, Francisco
tomou conhecimento de que Mons. de Granier havia falecido, dez
dias antes, de alma toda ainda deslumbrada com o triunfal Jubileu
secular de Thonon que acabava de presidir. Para o coadjutor, foi
32 Das cartas que Francisco escreveu para Roma por este assunto, possuímos pelo
menos aquela que ele dirigiu ao Santo Padre, em novembro de 1603. As reuniões
de Paris em que foi estudada e resolvida a introdução do Carmelo Reformado em
França duraram, segundo a carta ao Papa, «alguns dias»: a última realizou-se, a 5
de junho, ao que parece, e na capela da Chartreuse de Saint-Georges.
33 H. BREMOND, lib. cit., T. I, p. 98.

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
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Annecy, castelo e antigas casas que ladeiam le Thiou.

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São Francisco de Sales
um grandíssimo «choque de tristeza»: Francisco chorou copiosa-
mente aquele que, havia dez anos, era para ele um verdadeiro pai.
A sagração na igreja de Thorens
Portanto, os dados estão lançados para Francisco. Tem de «entrar
na laboriosa e perigosa missão de bispo». «Seja o que a providência
de Deus quiser, escreve ele a um amigo em 21 de outubro. Conti-
nuo a ser o mesmo de antes: não desejo o episcopado mais do que
antes. Se tiver que ser, terei que o assumir; caso contrário, suporta-
rei o melhor que puder…». Como é que o episcopado não haveria
de vir? A sagração foi fixada para 8 de dezembro. «Recebi a con-
sagração episcopal no dia da Conceição da Virgem Maria, Nossa
Senhora, nas mãos da qual me entreguei», escreverá ele no dia 10
de janeiro de 1603 a Mons. Ancina, bispo de Saluces.
Para satisfazer um piedoso desejo de sua mãe, Francisco esco-
lheu Thorens para «a solenidade da sua sagração; a causa era, a resi-
dência da sua mãe e dos seus irmãos, o desejo e as orações dos súb-
ditos e, além disso, a natural inclinação pela sua terra, que parecia
merecer isso dele, ver ungi-lo pontífice, tal como ela o havia visto
nascer e fazer cristão».
Para esta graça da sagração, quis preparar-se com um longo
retiro. «Escreveu ao padre Jean Fourier34, da Companhia de Jesus,
que por então se encontrava em Thonon, suplicando-lhe o favor
de ir a Sales para lhe servir de diretor, na revisão que ele queria
fazer de toda a sua vida. Estando, portanto, livre de todos os outros
pensamentos, ficou pelo espaço de vinte dias quase em solidão, e
34 O P. Jean Fourier aparece pelo menos em três ocasiões na vida de S. Francisco de
Sales: serve-lhe de diretor no retiro de preparação para a Sagração; é por conselho
seu que será publicada a Introduction à la Vie Dévote; por fim o P. Fourier encon-
trar-se-á em Lyon, junto de Francisco moribundo, em 28 de dezembro de 1622.

13.7 Page 127

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Capítulo vi - Bispo e príncipe de Genebra
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com orações contínuas, jejuns, macerações do corpo e semelhan-
tes exercícios, preparou-se para a confissão geral de seus pecados;
depois da qual se prescreveu ele mesmo uma maneira de viver,
com o parecer do seu sábio diretor». Estas regras de vida, Madre
de Chantal afirma tê-las visto «escritas de seu próprio punho» e
tê-las lido. Elas constituem por si sós um curto tratado do ideal
sacerdotal, tal como o Evangelho o propõe: pobreza, jejum, esmola,
oração, confissão, contactos com o seu «povo» e, no centro de toda
esta vida de graça e de cântico, o santíssimo sacrifício da missa,
que ele celebrará todos os dias, a não ser que seja impedido por
alguma necessidade extrema… Não será mal, a propósito, que nos
dias a que se chama de devoção, ele celebre a missa nas igrejas onde
estiver, a fim de que o povo vindo ali, encontre sempre o seu bispo
à frente, como nas festas solenes destas igrejas». O retirante insistiu
para que neste regulamento de retiro o padre Fourier colocasse a
sua assinatura.
No dia 8 de dezembro, começou-se de manhã cedo a caminhar
de Sales para Thorens». A igreja paroquial estava sumptuosamente
atapetada e engalanada. Os «prelados da sagração» eram «Vespa-
siano Gribaldi, arcebispo e conde de Viena, primaz dos primazes
das Gálias, Thomas Pobel, bispo de Saint-Paul ou de Trois-Châ-
teaux, e Jacques Maistret, bispo de Damasco, da Ordem dos Car-
melitas». A cerimónia desenrolou-se segundo o ritual. Mas eis que,
segundo o testemunho de Madre de Chantal, «nesta ação da sua
sagração, lhe pareceu ingenuamente que a adorabilíssima Trindade
imprimia interiormente na sua alma aquilo que os bispos faziam
exteriormente sobre a sua pessoa; igualmente lhe parecia ver a San-
tíssima Mãe de Nosso Senhor que o colocava sob a sua proteção,
e os apóstolos S. Pedro e S. Paulo ao seu lado a protegê-lo. Eram
estas, parece-me, afirma a Madre de Chantal, as suas mesmas pala-
vras».
Durante um mês, após esta «consagração episcopal», só falava
«como um homem estranho ao mundo», «e embora a lida diária

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São Francisco de Sales
tenha amortecido um pouco o ardor do coração, as resoluções,
pela graça divina, tenho-as mantido». Notemos a data desta confi-
dência: 1619!
No sábado 14 de dezembro de 1602, o novo bispo de Genebra
entrou solenemente em Annecy e foi entronizado na igreja catedral.
No dia seguinte, era o terceiro domingo do Advento: nas vésperas,
Francisco subiu ao púlpito, falou da Natividade, mas repentina-
mente «como se tivesse caído em êxtase, narrou ao seu povo sem
se dar conta disso todas as maravilhas que lhe tinham acontecido
aquando da sagração». Dez anos mais tarde, no dia aniversário da
cerimónia, escreverá a Madre de Chantal: «Disse no meu sermão
que havia dez anos que eu havia sido consagrado, isto é, que Deus
me tinha tirado a mim mesmo para (me) tomar para Ele e depois
me dar ao povo, quer dizer, que Ele me havia convertido daquilo
que (eu era) para mim naquilo que eu fosse para eles». A sua vida
de bispo não será senão a pôr em prática este ideal: ele será cada
dia mais «tomado por Deus e dado ao povo».

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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7. O BISPO NO MEIO DO SEU POVO
Segundo a reforma do concílio de Trento
«Aplicou imediatamente o seu espírito às grandes coisas e premen-
tes assuntos da sua diocese». Um pensamento o habita: ser na sua
diocese o bispo que a Igreja deseja, o bispo tal como o concebeu
e definiu o concílio de Trento em seu desejo de reforma. Conhe-
cemos, por Francisco mesmo, as suas disposições íntimas naquele
primeiro ano de pontificado. Um dos seus amigos, Antoine de
Revol, foi nomeado bispo de Dol e pede-lhe conselho. Em 3 de
julho de 1603, Francisco responde-lhe com uma longa e admirável
carta que seria necessário citar toda inteira: «Vós entrais no estado
eclesiástico (Antoine de Revol não era ainda padre), no cume deste
estado. Dir-vos-ei o que foi dito a um pastor escolhido para ser rei
de Israel: Mutaberis in virum alterum; é necessário que vós sejais
totalmente outro em vosso interior e em vosso exterior. E para
fazer esta grande e solene mudança, é necessário virar ao contrário
o vosso espírito e revolver tudo… Para vos ajudar nesta mudança, é
preciso que empregueis os vivos e os mortos: os vivos, porque pre-
cisais de encontrar um ou dois muito espirituais, da conversação
dos quais possais tirar partido. É um grande alívio ter confidentes
para o espírito… Quanto aos mortos, é preciso que tenhais uma
pequena biblioteca de livros espirituais de duas espécies: uns para
vós enquanto eclesiástico, outros para vós enquanto bispo… Tende,
suplico-vos, todos os escritos de Granada35, e que seja o vosso
segundo breviário… o seu principal uso, é que levará o vosso espí-
35 Luís de Granada, escritor espiritual espanhol do séc. XVI.

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São Francisco de Sales
rito ao amor da verdadeira devoção e a todos os exercícios espiri-
tuais que vos são necessários… Mas para o ler frutuosamente, não
é preciso criticá-lo, mas é preciso pesá-lo e apreciá-lo, e capítulo
após capítulo ruminá-lo e aplicá-lo à alma com muita considera-
ção e orações a Deus. É preciso lê-lo com reverência e devoção…
Ia-me esquecer de vos dizer que deveis, de toda a maneira, tomar a
resolução de pregar ao vosso povo…».
Francisco tem, de resto, demasiada experiência apostólica para
acreditar que este ideal que faz do bispo, se realizará sem dilacera-
ção e «multidão de imperfeições». A M. de Bérulle, havia escrito,
alguns dias depois da sua sagração: «Não há remédio: precisaremos
sempre da lavagem dos pés, visto que caminhamos na poeira».
Aqui está, portanto, Francisco de Sales todo inteiro entregue à
sua diocese. Durante vinte anos, consagrar-lhe-á os seus dias e as
suas noites, os seus trabalhos e as suas vigílias. Se porventura se
ausenta dela, é sempre com alguma pena e não sem receio que a
sua ausência a prejudique; é a maior parte das vezes também para
lhe prestar algum serviço. Apenas aceita alguns dos numerosos
convites para pregar, com que o assaltam os bispos seus amigos: ele
sabe antes de tudo que o duque Carlos Manuel, ao mesmo tempo
que está orgulhoso do seu bispo de Genebra, não gosta muito de
o ver triunfar noutros púlpitos, e receia particularmente a estima
que lhe testemunham Paris e o rei de França; e depois sente ele
mesmo algum remorso de deixar por outras ovelhas as ovelhas do
seu próprio rebanho. Há tanto que fazer nesta diocese de Saboia:
além de a vizinhança e as cobiças de Genebra continuarem, não
obstante a paz, a pesar fortemente em certas «regiões», é preciso
restaurar, reparar, restabelecer tudo, em primeiro lugar as almas,
no verdadeiro fervor católico. O território sobre o qual se exerce a
jurisdição do Bispo de Genebra é grande e belo, mas certas aldeias
ou lugarejos são de acesso difícil, até perigoso, sobretudo na estação
do inverno. Os recursos episcopais em dinheiro são escassos e de
modo nenhum permitem grandes empreendimentos.

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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Mas tudo isto seria pouco, se um mal secreto não minasse tudo
o que se tenta edificar. Este mal, Francisco conhece-o, já o denun-
ciou, mas agora, como bispo, toma dele uma consciência mais
aguda, mais pessoal: este mal é o mal de que sofre toda a Igreja, o
mal que favoreceu o desenvolvimento do protestantismo, o mal ao
qual o concílio de Trento decidiu certamente aplicar os remédios
mais enérgicos, mas que custa a curar. «Ele falou-me também com
a mesma franqueza, referirá um dia Madre Angélique Arnauld, e
posso assegurar-vos que ele não me escondia nada dos seus mais
secretos e importantes pensamentos sobre o estado em que se
encontrava a Igreja e sobre a conduta de algumas Ordens religio-
sas». Madre Angélique Arnauld refere mesmo uma longa confidên-
cia que ela teria recebido do Bispo de Genebra: «Minha filha, aqui
estão motivos de lágrimas… É preciso chorar e rezar em segredo
que Deus ponha a mão onde os homens não seriam capazes de
a meter. Nós devemos pedir… que Ele reforme os abusos que se
infiltraram na conduta dos ministros da Igreja, e lhe envie santos
pastores animados do zelo de S. Carlos, que servem para a purificar
pelo fogo do seu zelo e da sua ciência, e para a tornar sem mancha
e sem rugas pela disciplina, como ela o é pela fé e pela doutrina»36.
Esta conversa entre Mons. de Sales e Madre Angélique não
pode datar senão de 1619, mas a alusão a S. Carlos Borromeu (e
a M. de Bérulle, que aqui é igualmente nomeado) permite inferir
deste documento que esse era mesmo desde 1603 o pensamento
de Francisco de Sales. Francisco, há pouco saído da Universidade
de Pádua, não havia ele desejado visitar Milão, a cidade onde sete
anos antes tinha morrido o santo bispo? E guardou sempre no seu
lugar a devoção mais fervorosa, que atiçava ainda a amizade que o
ligava ao primo de S. Carlos, o cardeal Federico Borromeu. Nesta
devoção, não há dúvida de que entrava muito o zelo pela reforma
católica. Na primavera de 1613, irá em peregrinação ao túmulo do
36 Citado por SAINTE-BEUVE, Port-Royal, T. I, pp. 210-211.

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São Francisco de Sales
Planta de Annecy (de Theatrum statuum regiae celsitudinis
Sabaudiae ducis…, pars II, Amsterdam, I. Blaeu, 1682).

14.3 Page 133

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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seu santo modelo; ao celebrar a missa diante do relicário de cristal,
ficará deslumbrado e fora de si…
Durante vinte anos, Francisco de Sales vai esforçar-se por reali-
zar na sua diocese de Genebra o que Carlos Borromeu havia rea-
lizado na diocese de Milão: isto é, a reforma segundo o ideal defi-
nido pelo concílio de Trento.
Tracemos, em grandes etapas, o calendário destes vinte anos de
episcopado. Outubro de 1603: convocação do sínodo diocesano
que reuniu em Annecy «todos os eclesiásticos da diocese, abades,
priores, decanos, cónegos e reitores das igrejas paroquiais» - pri-
meiro contacto de Francisco com o conjunto do seu clero. Qua-
resma de 1604: a primeira quaresma de Dijon e o encontro de
Jeanne Frémyot de Chantal. 1605 a 1608: a bela época da Acadé-
mie Florimontane. 1609: A Introduction à la vie dévote. 1610: na
festa da Santíssima Trindade, 6 de junho, Madame de Chantal, a
menina Bréchard e a menina Favre entram na casa da Galerie, em
Annecy, e fundam a Visitation Sainte-Marie. 1616: em agosto, o
Traité de l’Amour de Dieu é publicado em Lyon, na editora Pierre
Rigaud. 1618-1619: Francisco passa algum tempo em Paris pela
terceira vez.
Simples pontos de referência para balizar esta existência toda
consagrada ao serviço da diocese. Francisco pertence por inteiro
ao seu povo.
Fiel ao espírito da reforma in capite et in membris, é pela sua
pessoa e pela sua própria casa que Francisco de Sales começa a
santificação da sua diocese. Tem um modo de vida muito simples.
É pobre: pobre de recursos pessoais, deixou aos seus irmãos todo o
seu património; pobre de recursos episcopais, o seu bispado só lhe
entrega mil escudos de oiro por ano; pobre porque multiplica as
esmolas em público e em privado; pobre porque ele o quer assim,
para viver «como os apóstolos». Reduziu o pessoal da sua casa
ao mínimo estrito, a sua mesa é frugal, as suas vestes «limpas e
bem arranjadas», mas de longo uso; na casa, «a maior que existe

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São Francisco de Sales
na cidade de Annecy», que Antoine Favre coloca à disposição do
bispo, em 1610, reserva-se para si mesmo um pequeno quarto
muito modesto. Andarei todo o dia, afirma ele, na qualidade de
bispo de Genebra, e à noite retirar-me-ei na qualidade de Francisco
de Sales». Não vive na abundância. «Embora haja sido elevado
à categoria de bispo, não se vangloriava disso na sua maneira de
viver, como alguns fazem. Observava rigorosamente a abstinência
e o jejum e aplicava-se a disciplina com bastante frequência até ao
sangue».
Sobretudo reza: de manhã, entrega-se à oração durante uma
hora inteira, reserva-se tanto quanto pode, segundo as suas reso-
luções da sagração, duas horas para o estudo, um estudo que de
alguma maneira é sempre uma oração, tem grande devoção a dizer
o Ofício que ele recita, quer de joelhos, que a caminhar. Todos os
dias, por volta das nove horas, celebra a sua missa: é em geral na
intimidade do seu oratório, no paço episcopal; mas gosta também
«nos dias a que chama de devoção» encontrar-se com o seu povo
e celebrar numa igreja ou numa capela de Annecy. Gosta da bela
liturgia e, se oficia pontificalmente, mostra-se severo na observân-
cia das rubricas. A missa é a seus olhos o cume da devoção particu-
lar e do culto público; celebrá-la e celebrá-la bem é o seu primeiro
dever de pastor. Então começam para ele «os trabalhos e atalhos»…
Mas agir, para ele, é também fazer oração, porque é unir-se em
profundidade à vontade de Deus. «Agarrai-vos bem a Jesus Cristo
e a Nossa Senhora e ao vosso bom Anjo em todos os vossos assun-
tos, aconselhará ele um dia a Madame de Chantal, a fim de que
a multiplicidade destes não vos perturbe e que a sua dificuldade
não vos surpreenda. Fazei uma coisa a seguir à outra o melhor
que puderdes, e empregai para isso fielmente o vosso espírito, mas
com doçura e suavidade. Se Deus vos der a saída, louvá-l’O-emos
por isso; se não lhe agradar, louvá-l’O-emos também…». Era isso,
não duvidemos, definir a sua própria atitude nas «labutas deste
mundo».

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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Mas por fim acontece que o cansaço se apodera do seu corpo e
o desgosto da sua alma: é em Deus que o bispo de Genebra busca
então a sua salvação. Não há cinco anos que é bispo quando escreve
a um amigo de Dijon este bilhete requintado: «Passarei esta qua-
resma residindo na minha catedral e tornando a vestir um pouco
a minha alma que está quase toda descosida por tanta labuta que
sofreu… É um relógio avariado; é preciso desmontá-lo peça a
peça, e depois de limpo e oleado, voltar a montá-lo para funcionar
melhor». Assim faz ele sempre que pode, respeitando a resolução
que tomou no retiro da sua sagração: «Todos os anos, pelo espaço
de oito dias, e mais quando puder, fará a recoleção e purificação da
sua alma».
Esta devoção do Bispo de Genebra brilha. De toda a sua pessoa
emana uma paz, uma caridade que atrai os corações: quando ele
passa na rua, as crianças rodeiam-no, agarram-se a ele; no paço
episcopal, ou no confessionário, os pobres comprimem-se. Nada
o afasta, ele não afasta ninguém… A seu respeito tecem-se narra-
tivas maravilhosas: as pessoas não esqueceram que em Thonon,
em 1598, aquando das Quarenta Horas, uma criança morta recu-
perou a vida, enquanto Francisco rezava junto do seu leito… ou
que na sua sagração, na igreja de Thorens, ficou em êxtase uma
meia hora… Também as roupas que ele toca, as medalhas que dis-
tribui, os pequenos objetos que lhe pertenceram, são procurados
como relíquias… À medida que os anos passam, a admiração, o
entusiasmo do bom povo de Saboia pelo seu bispo, crescem. Uma
atmosfera de lenda sagrada o rodeia.
E como não haveria de ser assim? Não pode ficar tudo em
segredo, as graças que o Senhor lhe concede. Considerando as
luzes íntimas – como este êxtase do Castelo de Sales, onde lhe
foi revelado que ele seria o fundador e guia de uma Ordem de
Religiosas (e lhe foi mostrado) os fantasmas e ideias das princi-
pais pessoas da sua comitiva pelas quais esta Ordem deveria ter
início - não poderiam em rigor passar despercebidos tantos e

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São Francisco de Sales
tantos factos extraordinários: libertação de possessos, profecias e
leitura das almas, cura de paralíticos ou de doentes, etc., mesmo
até ressurreição à distância de uma morta. Notemos de passagem
que estes milagres se prolongaram por muito tempo depois da
sua morte no túmulo do santo ou à distância: para citar só dois
exemplos, é certo que o Papa Alexandre VII que beatificou Fran-
cisco de Sales em 28 de dezembro de 1661 e o canonizou em 19
de abril de 1665 se considerava como um miraculado do Bispo de
Genebra; - e as narrações contemporâneas das festas de beatifica-
ção em Annecy assinalam que por trás do relicário de prata, que
continha os restos mortais de Francisco de Sales, caminhavam «os
paralíticos curados, os ressuscitados»37.
Mas o mais constante milagre desta vida, foi esta vida ela mesma,
Francisco reconhece-o ingenuamente desde 1606: que acontecerá
após 14 ou 15 anos de corridas e de trabalhos? «Sinto-me bem,
minha querida Filha, escreve ela à baronesa de Chantal, a 2 de
outubro, no meio de uma tão grande quantidade de assuntos e de
ocupações que não se pode dizer mais. É um pequeno milagre que
Deus faz, pois todas as noites, quando me retiro, não posso mexer
nem o meu corpo, nem o meu espírito, tão grande é meu cansaço; e
de manhã estou mais alegre do que nunca. Ordem, medida, razão,
nada disso tenho agora (com efeito nada poderia esconder-vos) e,
todavia, aqui estou muito forte, graças a Deus».
Não era preciso tanto para que o personagem Francisco de Sales
se aureolasse de uma reputação de santidade. Tanto mais que por
toda a parte se via que as «vilanias», críticas, insolências, calúnias
contra o devoto bispo acabavam sempre por se virar contra os seus
autores. Não que ele se atrasasse a refutá-las, a não ser que a honra
da Igreja ou do sacerdócio estivesse em causa, mas tomava-as com
benignidade, com paciência; e em geral tudo terminava, do seu
lado, por um largo e total perdão concedido aos culpados. Então
37 Arch. Visitation d’Annecy, Recueil de circulaires, T. I, p. 573.

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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inventava destas palavras em que, debaixo do sorriso, escondia
maravilhosamente a sua ferida, e que corriam logo entre o povo.
Um libelo difamatório foi um dia divulgado contra Francisco,
em Annecy mesmo: o santo bispo não se perturbou, mas tendo um
cónego lido este escrito, o capítulo procedeu rigorosamente, «e a
sentença ia ser dada, se o bom do prelado (tão santo ele era) não
se tivesse mesmo rebaixado até ao ponto de pedir ao seu capítulo
que esta sentença, que já estava escrita, fosse suprimida e rasurada.
Ele fez muito mais: porque alguns anos depois, procurou para este
homem um cargo muito honroso segundo a sua condição e nasci-
mento, junto dos Sereníssimos Príncipes, sem que ninguém fizesse
qualquer pedido, mas por sua própria iniciativa. De sorte que era
um provérbio muito corrente na Saboia, que era preciso ofender
o bem-aventurado Francisco para receber dele toda a espécie de
benefícios».
Esta paciência e estes perdões não eram do agrado de todos, e
havia quem visse neles fraqueza, ou até pecado: «Quanto a Francisco
de Sales irá seguramente para o paraíso, dizia o prior de Talloires,
depois de Francisco ter perdoado aos monges que haviam tentado
assassiná-lo. Quanto ao bispo de Genebra, não sei: pois ele não
castiga». Era conhecer mal a nascente de todas estas virtudes. Sob
o insulto ou a calúnia, «Francisco sentia – confessou ele – a cólera a
ferver no seu cérebro como a água sobre o fogo», mas continha-se
e pacificava-se, encontrando a sua alegria em se parecer a Nosso
Senhor Jesus Cristo, ultrajado e desprezado, e à Virgem Maria.
«Ó minha Madre, escreverá em 13 de dezembro de 1619 à Madre
Chantal, que se inquietava com certas calúnias, não é preciso ter
tanta pena de mim; é preciso aceitar que me censurem; se o não
mereço de uma maneira, mereço-o de outra. A Mãe d’Aquele que
merecia uma eterna adoração nunca disse uma palavra quando o
cobriam de opróbrios e de ignomínias… Minha querida Madre, há
muito amor próprio em querer que toda a gente nos ame, que tudo
nos seja de glória».

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São Francisco de Sales
Foi, evidentemente, a propósito das suas diligências «de assun-
tos», que Francisco teve de suportar mais críticas, e até mais sus-
peições; Deus sabe, no entanto, como ele se esforçava por informar
com exatidão Roma ou o príncipe acerca da sua conduta. Que-
rendo um bom exemplo disso, há que reler estas cartas ao duque
e a Clemente VIII, em que ele pede autorização de pregar a Qua-
resma em Dijon em 1604. Mas o duque era demasiado intrujão,
demasiado intriguista, para admitir que os convites para pregar,
de que a França, a corte sobretudo e Paris, mas também Dijon,
Lyon, Grenoble, investiam o Bispo de Genebra fossem devidos à
sua eloquência ou mesmo à sua santidade. Por toda a parte fare-
java conspiração e traição. Várias vezes Carlos Manuel recusou a
Francisco a autorização de aceitar essas propostas estrangeiras.
Durante 9 anos, fê-lo esperar pela autorização de pregar em Paris.
Que poderia maquinar o bispo com os Franceses?
Foi sem dúvida após a admirável travessia de Genebra por Fran-
cisco em 12 de setembro de 1609 que as suspeitas do duque atin-
giram o paroxismo. Evidentemente, a aventura temerária era bas-
tante fabulosa para intrigar Carlos Manuel: para não perder um
encontro que lhe havia sido fixado pelo barão de Lux, e onde se
devia tratar do restabelecimento de três paróquias na região de
Gex, Francisco, vendo que o Ródano engrossado pelas chuvas lhe
era intransponível, havia pura e simplesmente decidido passar por
Genebra: o bispo católico, em traje eclesiástico, e escoltado por um
grupo de soldados, atravessando a cavalo, em pleno dia, a cidade
de Calvino, não era certamente de todo banal… Narrando a aven-
tura desde 21 de setembro seguinte ao seu amigo Antoine Favre,
Francisco havia-lhe confiado a verdadeira versão deste sucesso:
«Vós haveríeis sabido como eu atravessei Genebra sob a conduta
do meu bom anjo». Mas esta explicação sobrenatural não satisfazia
nem os Genebrinos, nem o duque… Foi necessário que Francisco
se lavasse aos olhos deste da suspeita de traição! «Além de tudo
isto, ainda utilizaram este argumento, escreve ele a M. des Hayes, a

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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4 de setembro de 1609: «Que é que ele fez em Gex para lhe dar esta
confiança de passar nesta cidade tão inimiga com o nome que ele
tem e com a sua qualidade, e na qual os seus predecessores nunca
entraram desde a revolta, sem salvo-conduto, sem se disfarçar, sem
negar a sua qualidade?». Mas, em pura verdade, eles conhecem mal
a minha alma, se me julgam tão cheio de consideração e de apreen-
são que não pudesse cometer uma pequena temeridade. O tempo,
a minha inocência, mas sobretudo a providência de Deus arranjará
tudo isso: de que, no entanto, escrevi a Sua Alteza tudo o que me
parecia, tendo antes sabido que ela se havia deixado levar a alguma
sorte de desconfiança de mim… Eram estas as minhas notícias de
Estado».
Para acreditar em Francisco, seria necessária ao duque uma
ingenuidade que não era o seu forte. À mínima ocasião, as suas
suspeitas ressurgiam, e Francisco teve várias vezes de o assegu-
rar fortemente da sua fidelidade à Casa de Saboia: «Havendo sido
advertido de que me tinham encarregado junto de Vossa Alteza de
fazer certos maus golpes de Estado com os estrangeiros, escreve-
-lhe ele a 12 de junho de 1611, apanhei a maior surpresa do mundo,
não podendo imaginar com que aparência de fundamento se pode
construir esta calúnia… Gravei há muito tempo no meu coração o
dever que tenho (para com Vossa Alteza) para nunca me rebaixar
a fazer coisa que possa, por pouco que seja, prejudicar os Vossos
interesses; e tenho uma aversão demasiado grande à preocupação
pelos assuntos de Estado, para jamais querer pensar nisso de forma
deliberada».
Se Francisco se defende com esta firmeza, é que a honra e o
interesse da diocese estão aqui em jogo, o destino também e a
situação dos seus próximos e dos seus amigos. Esta força límpida
– Sainte-Beuve diria: esta audácia de pomba – é um dos aspetos
menos conhecidos da sua personalidade: intrigas e calúnias – é o
lado bom destas misérias – permitiram que ela nos fosse revelada.
Esta altura de pensamento, de atitude e de tom, encontramo-los

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São Francisco de Sales
também na sua correspondência, cada vez que o insulto atinge,
através do bispo, a Igreja, os seus padres ou as suas Filhas da Visi-
tação, ou a justiça devida a cada uma das suas ovelhas. Então des-
pertava nele o polemista ousado, irónico, virulento de que, de
ordinário, se se tratasse só dele mesmo, humildade e caridade ate-
nuavam a veia.
Também estas mesmas «arrelias», e estas contrariedades redun-
davam em favor de Francisco. Só um santo podia conduzir-se,
nestes «sarilhos» com tanta ponderação, sabedoria, equilíbrio. Esta
reputação de santidade ultrapassava mesmo os limites da Saboia.
A viagem de Francisco ao Franche-Comté em 1609, quando ali se
deslocou por ordem de Paulo V para resolver o assunto das Salinas,
foi um triunfo: em Dôle, então a capital, em Besançon, em Baume-
-les-Dames, em toda a parte, queriam vê-lo, ouvi-lo pregar, confes-
sar-se a ele, comungar da sua mão. E toda aquela gente chamava a
Francisco «nosso bispo, como se de facto fosse seu pastor».
Aquando da viagem a Paris, em 1618, houve ainda outra coisa.
Igrejas e mosteiros disputaram a graça de o ouvir: conta-se que em
nove meses pregou cento e sessenta e cinco vezes; e como a sua
saúde parecia vacilar, procuravam munir-se de relíquias: nos mos-
teiros guardava-se com devoção a faca, a colher de que ele se havia
servido na sua refeição, e mais ainda as roupas, os paramentos que
ele havia usado para celebrar a missa. De todas estas importunida-
des, Francisco saía-se como podia… Pelo menos não tolerava que
os seus amigos tomassem parte neste concerto: «Vós não escreveis
segundo (o meu desejo), escreve ele a Madame de Chantal em 25 de
novembro de 1607, nem à minha mãe, nem a Mme de Charmoisy,
quando dizeis: «o nosso bom e santo bispo»; com efeito, no lugar
em que estas boas senhoras deveriam ler “sot” (parvo) bispo, elas
leem santo bispo. Sei bem que no tempo do nosso São Jerónimo se
chamava santos a todos os bispos em razão do seu cargo; mas não
é o costume agora». Em 24 de janeiro de 1608, insiste: «Tenho de
vos proibir esta palavra santo quando escreveis sobre mim, porque,

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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Annecy, Maison Lambert,
primeira habitação do bispo Francisco de Sales.

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São Francisco de Sales
minha Filha, sou mais “feint” (fingido) do que “saint” (santo): de
resto a canonização não é convosco».
A doutrina espiritual de Francisco de Sales
Pode-se sem dúvida recusar como excessivo tal ou tal testemu-
nho dos primeiros biógrafos de Francisco de Sales, e invocar a sua
vontade de edificação ou, o que vem a ser o mesmo, a sua ausência
de espírito crítico. A massa dos factos e dos documentos é tal que
não se pode pôr em dúvida a veneração de que foi rodeado, na sua
vida, o bispo de Genebra.
A que se devia isto? Sem dúvida à irradiação da sua alma. Mas
seria falsear o seu retrato espiritual fechar a sua santidade na sua
fidelidade pessoal a Deus. A sua santidade é uma santidade apos-
tólica. As graças que lhe são concedidas, quer fazer beneficiar delas
todo o seu rebanho. A sua reforma de vida, quer que ela se torne,
tanto quanto possível, a reforma de todo o seu povo. A santidade
– e, dizendo isto, dou à palavra todo o seu peso de graça – diz res-
peito a cada uma das suas «ovelhas».
E foi a maravilha deste apostolado: Francisco de Sales ousou,
senão conduzir, pelo menos orientar as almas, todas as almas que
lhe estavam confiadas: o seu povo, o seu clero, os seus religiosos e
as suas religiosas, os seus filhos e as suas filhas espirituais, para o
ideal de vida que ele uma vez havia concebido como sendo o ideal
evangélico. Ninguém deve ficar à parte deste grande movimento:
cada um tem o seu lugar, cada um segundo a sua medida, a sua
situação, o seu «estado», o seu atrativo de graça, mas todos devem
aceder de perto ou de longe a esta «Vida de santa caridade» sobre a
qual projeta em segredo, desde fevereiro de 1607, escrever o livro,
e que ele definiu dois anos mais tarde, numa carta do arcebispo de
Viena, nestes termos menos clandestinos: «Medito num livrinho

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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do amor de Deus, não para tratar dele especulativamente, mas para
mostrar a sua prática na observância dos mandamentos da pri-
meira Tábua. Este será seguido de outro que mostrará a prática do
mesmo amor divino na observância dos mandamentos da segunda
Tábua, e ambos poderão ser resumidos num volume adequado e
manejável».
A força de Francisco de Sales, bispo, consistiu em dispor, desde
o início, de uma doutrina, não só teológica, mas também espiri-
tual, da vida cristã, e haver recebido de Deus dons e uma graça
excecional para fazer viver deles as almas. Sermões, escritos, con-
selhos, direção, tudo dele se dirige ao coração, porque a religião é
essencialmente para ele uma vida e uma vida do coração. «Deus é
o Deus do coração humano»; «entre esta divina Bondade e a nossa
alma», há «grande afinidade, mas secreta». Se bem que o estado
da nossa natureza humana não seja agora dotado da santidade
e retidão original… e que, ao contrário, estejamos grandemente
depravados pelo pecado, acontece, porém, que a santa inclinação
de amar a Deus sobre todas as coisas permaneceu, como também a
luz sobrenatural pela qual conhecemos que a sua soberana bondade
é amável acima de todas as coisas».
Esta inclinação natural «permanece por algum motivo nos
nossos corações: com efeito, Deus serve-se dela para poder mais
suavemente tomar-nos e levantar-nos para si». É ela que atua já
no coração dos infiéis: «Ó Jesus, que prazer delicioso ver o amor
celeste que é o sol das virtudes, quando pouco a pouco, por pro-
gressos que insensivelmente se tornam sensíveis, vai desdobrando
a sua claridade sobre a alma, e não cessa enquanto esta não está
totalmente coberta com o esplendor da sua presença, dando-lhe
enfim a perfeita beleza do seu dia! Oh como esta alvorada é alegre,
bela, amável e agradável!».
Uma vez feito o ato de fé requerido para a nossa justificação,
nada se opõe, senão as nossas paixões e o nosso apego ao pecado, a
que o amor divino se desenvolva em nós em toda a sua plenitude.

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São Francisco de Sales
As orações excecionais e os fenómenos extraordinários não são
essenciais à vida de caridade, mas sim «a união da alma com o seu
Deus» que se alcança, na oração e na ação, pela perfeita conformi-
dade da nossa vontade com a vontade de Deus. O único «êxtase»
autêntico é «o êxtase e arrebatamento da vida e da ação ultrapas-
sando-se a si mesmo e as inclinações naturais…, do qual o grande
Apóstolo fala principalmente quando diz: Eu vivo; mas já não sou
eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim».
Assim, é a partir das verdades mais comuns da fé e dos textos
mais claros do Evangelho, que Francisco de Sales orienta a alma
para a união mais profunda com Deus. «Prego aqui neste Advento,
escreve a 13 de dezembro de 1619, os mandamentos de Deus que
eles desejaram ouvir de mim, e sou maravilhosamente escutado,
mas também prego de todo o meu coração, do qual coração vos
direi, minha querida Madre, que Deus, pela sua bondade infinita,
o favorece muito, dando-lhe muito amor pelas máximas do cris-
tianismo; e isto na sequência das luzes que Ele me dá da beleza
delas e do amor que todos os santos lhes consagram no céu, sendo
eu de opinião que lá em cima se canta com uma vida incompará-
vel: Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino
dos céus». Deus pela sua criação, pela Incarnação, pela Redenção,
colocou todos os seus tesouros ao alcance dos mais humildes: é
segundo o amor que se diferenciam as almas. «O amor é o pri-
meiro ato e princípio da nossa vida devota ou espiritual pelo qual
nós vivemos, sentimos e nos comovemos; e a nossa vida espiritual
é tal como são os nossos movimentos afetivos». Se, portanto, «o
amor é a vida do nosso coração», se a santidade não é assunto de
estado, de situação, de função, menos ainda de riquezas, as pessoas
casadas podem atingi-lo tão bem como os monges, a criança tão
bem como homem maduro, o ignorante, o rude tão bem como o
teólogo, o doente e o enfermo tão bem como o de boa saúde.
E eis que surge o problema que se vai impor cada vez mais ao
pensamento religioso de Francisco de Sales, – um problema que

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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tornará cada vez mais agudos os seus contactos apostólicos com
as almas: a «vida de santa caridade» pode viver-se em todos os
estados: ela depende da graça que Deus concede e da generosidade
com a qual a alma corresponde a este apelo divino. «Que Deus
toque e belisque onde Ele quiser e em tal corda do nosso alaúde
que Ele escolherá, fará sempre uma boa harmonia: Senhor Jesus,
sem reservas, sem se, sem mas, sem exceção, sem limitação, a vossa
vontade seja feita… em tudo e sempre…». «Vejo-Vos, parece-me,
escreve a Madame de Chantal em 1607, com o vosso coração vigo-
roso que ama e que quer poderosamente. Estou contente com isso:
pois estes corações meio-mortos, para que servem? Mas temos de
fazer um exercício particular de querer e de amar a vontade de
Deus mais vigorosamente, e digo mais: mais terna, mais amorosa-
mente, do que nada no mundo».
Porque o capítulo intitulado «Que a devoção é conveniente a
toda a espécie de vocações e profissões» se encontra na Introdução
à Vida Devota, restringe-se por vezes a esta obra o esforço de Fran-
cisco de Sales para abrir a todas as almas as nascentes da devoção.
É esquecer o que entende pela «devoção»: «A verdadeira e viva
devoção… não é senão um verdadeiro amor de Deus. Por fim, a
caridade e a devoção não são mais diferentes uma da outra do que
a chama é do fogo, tanto que a caridade sendo um fogo espiritual,
quando está muito incendiada, chama-se devoção. Se bem que a
devoção nada acrescente ao fogo da caridade, senão a chama que
torna a caridade pronta, ativa e diligente, não somente à obser-
vância dos mandamentos de Deus, mas ao exercício dos conselhos
e inspirações celestes». A diferença nas datas de publicação entre
a Introdução e o Tratado do amor de Deus não significa nada, tal
como a diferença de situação entre Filoteia e Teótimo. A ideia do
Tratado não é ela mesma anterior à da Introdução? Aqui e ali for-
mula-se a mesma doutrina espiritual. A mesma também que nos
Sermões, nos outros livros ou projetos de livros e em toda a Cor-
respondência de direção: é a todas as almas que Francisco poderia

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São Francisco de Sales
dizer o que ele escreverá um dia à Madre Angélique Arnauld: «O
meu coração…não cessa de difundir desejos pelo vosso avanço no
puro e corajoso, mas humilde e doce amor divino». É a todas as
almas que ele desejaria introduzir à «eterna liberdade do amor».
O dever episcopal de pregar
«Ah! Monsenhor, por pouco que os da nossa profissão amem a
Deus, estão sempre prontos a falar do seu amor», teria declarado
Francisco de Sales a monsenhor Geoffroy Ginod, bispo de Belley
que, em 1603, algum tempo depois da sua consagração, o teria feito
pregar na sua catedral; e, depois do sermão, «quase toda aquela bela
assembleia (o duque de Bellegarde assistia ao sermão com a sua
corte) se confessou ao servidor de Deus e na sua missa de segun-
da-feira quis comungar da sua mão». Esta simples anedota poderia
resumir todo o esforço pastoral de Francisco de Sales como bispo
de Genebra: pregar, a fim de conduzir as almas, pela confissão, a
uma vida eucarística fervorosa e à união a Deus.
Pregar. Francisco, que sempre teve o gosto da pregação, não tem
qualquer dificuldade em fazer sua agora a palavra de ordem do
concílio de Trento: pregar é o principal dever do bispo. Escrevendo,
em 3 de junho de 1603, a M. de Revol que dentro em breve vai ser
sagrado bispo, aconselha: «Deve sem dúvida tomar a resolução de
pregar ao seu povo. O santo concílio de Trento, na sequência de
todos os Antigos, determinou que ‘o primeiro e principal ofício do
bispo é pregar’; e não se deixe levar por qualquer consideração que
possa afastá-lo desta resolução. Não o faça para ser grande pre-
gador, mas simplesmente porque é seu dever e que Deus o quer.
O sermão paterno de um bispo vale mais do que todo o artifício
dos sermões elaborados de outro tipo de pregadores. Não é preciso
grande coisa, a um bispo, para pregar bem, pois os seus sermões

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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devem ser sobre coisas necessárias e úteis, não curiosas nem rebus-
cadas; as suas palavras simples, não afetadas; a sua ação paterna e
natural, sem arte nem preocupação; e, por curto que seja e pouco
que diga, é sempre muito». Notemos a data: 1603, Francisco está
nos inícios do seu episcopado.
Um ano mais tarde, tem de resto uma ocasião de precisar e de
desenvolver as suas ideias. Mons. Frémyot, na véspera de fazer a
sua entrada solene na sua cidade de Bourges, e que receia de subir
a um púlpito onde o seu predecessor se tornou célebre, solicitou
a Francisco alguns conselhos sobre a pregação. A 5 de outubro,
Francisco, de repouso em Sales, redige-lhe «ao correr da pena, sem
qualquer preocupação de palavras nem de artifício» uma longa
carta que é ao mesmo tempo que uma verdadeira obra-prima,
uma confidência. Deixemos de lado o que diz respeito à técnica da
eloquência sagrada – e que de resto é excelente –; fiquemos só no
aspeto apostólico: «Ninguém deve pregar sem que tenha três con-
dições: uma vida boa, uma boa doutrina, uma legítima missão».
No que se refere à missão, Francisco adverte que «os bispos têm
não somente a missão, mas têm «as nascentes ministeriais» dela.
Ele insiste na santidade de vida e chega até aconselhar: «Em suma,
nunca se deve pregar sem haver celebrado a missa ou querer celeb-
rá-la… Coisa certa, que estando em nós Nosso Senhor, Ele nos dá
clareza, porque Ele é a luz».
Após este preâmbulo, Francisco faz a pergunta: «Qual então a
finalidade do pregador na ação de pregar?». E eis a sua resposta
magnífica: A sua finalidade e a sua intenção deve ser fazer o que
Nosso Senhor veio fazer neste mundo; e eis o que ele mesmo diz
disso: Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.
Portanto, a finalidade do pregador é que os pecadores mortos na
iniquidade vivam para a justiça, e que os justos que têm a vida
espiritual a tenham ainda mais abundantemente, se aperfeiçoem
cada vez mais». Os modelos do pregador são os apóstolos no dia
de Pentecostes: eles ensinam e comovem. Que é preciso pregar? A

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São Francisco de Sales
palavra de Deus… É preciso então servir-se dos Doutores cristãos
e dos livros santos? Se é necessário, sim. Mas o que é a doutrina dos
Padres da Igreja senão o Evangelho explicado, a Escritura expli-
cada? O que há a dizer entre a Sagrada Escritura e a doutrina dos
Padres é como uma amêndoa inteira e uma amêndoa partida, cujo
caroço pode ser comido cada um seu… As passagens da Escri-
tura…dão à verdade o primeiro lugar e constituem o alicerce do
edifício: no fim de contas, pregamos a palavra e a nossa doutrina
assenta na autoridade. Ipse dixit… ».
Após haver longamente falado do método de apresentação e de
composição, Francisco chega a um ponto «em que (ele) deseja mais
credibilidade do que no resto». Trata-se da arte de «dizer»: «Como
se deve então dizer na pregação? Há que evitar os quanquam e os
longos períodos dos pedantes, os seus gestos, as suas expressões
faciais, os seus movimentos: tudo isto é a peste da pregação. É
preciso uma ação livre, nobre, generosa, natural, forte, santa, grave
e um pouco lenta. Mas o que fazer para a ter? Numa palavra, falar
afetuosa e devotamente, simples e candidamente, e ter confiança;
estar bem impregnado da doutrina que se ensina e daquilo de que
se quer persuadir os demais. O supremo artifício é não ter qualquer
artifício. É preciso que as nossas palavras sejam inflamadas, não
por gritos e ações desmedidas, mas pelo afeto interior; é preciso
que saiam mais do coração do que da boca. Por mais que se diga, o
coração fala ao coração, e a língua só fala aos ouvidos».
Assim brotam da sua pena os conselhos de experiência: «Gosto
da pregação que mostra mais o amor do próximo do que a indig-
nação, até mesmo dos huguenotes, que é preciso tratar com grande
compaixão, não com lisonjas, mas tendo pena deles… A pregação é
a publicação e declaração da vontade de Deus feita aos homens por
aquele que está ali, legitimamente enviado, a fim de os instruir e
mover a servir a sua divina Majestade neste mundo, para ser salvos
no outro…». É Francisco a encorajar este jovem bispo, que ele sabe
um pouco tímido: «Pregue muitas vezes… Deus quer, os homens

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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contam com isso; é a glória de Deus, é a sua salvação; ousadia,
Monsenhor, e coragem, por amor de Deus… Nada é impossível
ao amor. Nosso Senhor não perguntou a Pedro: És sábio ou elo-
quente? para lhe dizer Pasce oves meas; mas: Amas-me? Basta amar
bem para falar bem».
Um último conselho antes de fechar a carta: «O seu povo espe-
ra-o para o ver e ser visto e revisto por si… Oh como ficarão edi-
ficados quando o virem com frequência ao altar a oferecer o santo
Sacrifício pela salvação deles; com os seus párocos a tratar da edi-
ficação deles, e no púlpito a falar da palavra de reconciliação, e a
pregar!».
Todo o coração pastoral de Francisco está nesta carta admirável.
Ela suscita esta estupefação que experimentamos hoje ao ler o que
resta dos Sermões: como é que estes esboços, ou mesmo estes textos
elaborados, cuja secura nos desconcerta, podiam atrair as multi-
dões, fazer vibrar as almas tão profundamente? É que falta neles
aquilo que então fazia em larga medida o seu poder: a emoção, o
calor da alma ao sair da oração, o tom do amor. «Os outros (pre-
gadores), dizia um dia a duquesa de Montpensier, voam no ar, mas
este orador do santo amor funde-se sobre a sua presa, atinge o
coração e apodera-se dela».
O orador do santo amor: a expressão carateriza maravilhosa-
mente o dom da eloquência de Francisco. Este dom é uma graça,
buscada e recebida na oração. «Não posso falar de Deus sem
emoção», confidencia ele a um padre depois do sermão. «Fui muito
alegre, como um passarinho, para o meu púlpito, onde cantei mais
alegremente do que de costume em honra deste grande Deus»,
escreve ele também a Madame de Chantal, em 8 de dezembro de
1617. Todo o sermão é para ele, segundo a sua própria expressão,
«um sermão de amor»: adora pregar perante auditórios restritos,
familiares, onde tem toda a comodidade de dar largas aos (seus)
pobres e pequenos afetos». Quando após a quaresma de Dijon, em
1604, os magistrados municipais lhe apresentaram, em sinal de

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São Francisco de Sales
reconhecimento, um serviço de loiça de prata dourada, e um anel
ornado com uma bela safira, respondeu-lhes gentilmente «que ele
não vendia a palavra de Deus e não queria levar senão o coração
deles». É ainda S. Vicente de Paulo que encontrará, para definir
Francisco de Sales pregador, a fórmula perfeita: ele chama-lhe um
«evangelho falante».
Quaresmas e catecismos
A mais útil destas pregações é para ele a da quaresma, que ele prega
ao seu povo ou que é convidado a pregar noutras dioceses. «A
senhora sabe bem, escreve ele a Madame de Chantal, que a qua-
resma, é a seara das almas… A quaresma é o outono da vida espi-
ritual no qual se devem colher os frutos e apanhá-los para todo o
ano».
Tem da quaresma uma conceção primeira, a ideia litúrgica: a
quaresma é, a seus olhos, o tempo por excelência da conversão dos
pecadores, e da santificação das almas. «Pregar a quaresma intei-
ramente», não é apenas subir «muitas vezes» ao púlpito, pregar até
cinco ou seis sermões no mesmo dia, é também fechar-se longas
horas no confessionário, acolher uns e outros em conversas pes-
soais, instruir, dar catequese, reconciliar… Receia os dias de carna-
val, «este inverno que leva à carne e descarna as almas, que … torna
lânguidos os corações, que… produz esta infeliz enxurrada de pra-
zeres indignos. Ah! Que desapareça este tempo da carne!». Mas o
carnaval é seguido da quaresma. «Oh! Vem, vem, tempo favorável;
vinde, vinde, dias de salvação!». Para estas quaresmas, prepara-se
ele mesmo pela oração e pela penitência. Por essa ocasião, não
hesita de fazer um retiro. Assim fez em 1606. «Hoje despeço-me,
porque amanhã de manhã cedo tenho de partir para Chambéry,
onde o padre Reitor dos Jesuítas (era o P. Fournier) me espera, para

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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me receber nestes cinco ou seis dias de Quaresma, que reservei
para refazer o meu pobre espírito tão sobrecarregado por tantos
afazeres… Ali, minha Filha, pretendo rever totalmente a minha
vida, e recolocar todas as peças do meu coração no seu lugar, com
a ajuda deste bom Padre que é muito meu amigo e só quer o meu
bem». Então abordava os seus auditórios, de coração repleto de
«mil bons desejos de bem servir o divino amor».
Abramos aqui um curto parêntese: porque nada se parece tanto
com as quaresmas de Francisco de Sales, como um ministério que
ele tinha muito a peito, e em primeiro lugar porque era prescrito
pelo concílio de Trento: as catequeses.
À catequese como à quaresma, ele leva a mesma alma. Desde o
inverno de 1603, não receia inaugurar, ele, o bispo, e em Annecy,
este ensino da doutrina cristã às crianças. Primeiro, na igreja de
Nossa Senhora. De onde se passa em breve à igreja de S. Domin-
gos. E eis que os pais se juntam aos filhos, e muitos adultos «que
desejavam ser instruídos». Tanto e tão bem que «se dividiu a con-
fraria em três classes segundo o sexo e a idade».
Com que sentido da alma infantil ou da alma popular, Francisco
de Sales conduz estas reuniões, nada pode revelar-no-lo de uma
forma mais viva do que estes fragmentos de uma carta (11 de feve-
reiro de 1607) a Madame de Chantal. Eis antes de tudo o aspeto
sério: «Oh verdadeiramente, eu aprovo com força que a senhora
seja professora primária. Deus vos recompensará, porque Ele ama
as crianças; e como eu dizia há dias na catequese para incitar as
nossas senhoras a cuidar das meninas, os anjos das criancinhas
amam com especial amor aqueles que as educam no temor de Deus
e que instilam nas suas ternas almas a santa devoção».
E aqui, em simetria, a graça e a distensão: «Acabo mesmo agora
de dar catequese, onde fizemos um pouco de pândega com as nossas
crianças a fazer rir a assistência, fazendo troça das máscaras e dos
bailes; porque eu estava de bom humor, e um grande auditório me
convidava com os seus aplausos a continuar a fazer de criança com

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São Francisco de Sales
as crianças. Dizem-me que me fica bem e acredito. Oh Deus me
faça verdadeiramente criança em inocência e simplicidade!».
Este ministério da catequese será sempre querido ao coração de
Francisco de Sales: durante as suas quaresmas e, vê-lo-emos, no
decurso das visitas às paróquias, gosta de reunir as crianças e de
lhes ensinar a simples doutrina. Para fazer isto, usa o catecismo
de Bellarmino; mas se encontra auditórios demasiado rudes para
o compreender, faz ele mesmo perguntas e respostas, e distribui-
-as a cada um em pequenas folhas manuscritas; é de outubro de
1603, sem dúvida, que data um fragmento muito precioso inti-
tulado: «Regulamentos para o ensino do catecismo»: é destinado
aos párocos da diocese. Durante todo o seu pontificado, Francisco
incentivará sobre este ponto o zelo dos seus padres.
A visita da diocese
Uma das tarefas que o concílio de Trento recomendava, impunha
mesmo aos bispos, era fazer a visita da sua diocese, paróquia após
paróquia. Esta tarefa, Francisco de Sales desejava-a e temia-a ao
mesmo tempo. «Vou a esta bendita visita, escreve ele à baronesa de
Chantal, na qual vejo em cada pedaço de terreno cruzes de todas as
espécies. A minha carne treme, mas o meu coração adora-as. Sim,
eu vos saúdo, pequenas e grandes cruzes espirituais ou temporais,
exteriores ou interiores; saúdo e beijo o vosso pé, indigno da honra
da vossa sombra»38.
Esta carta data do início de outubro de 1605: até ali Francisco
havia estado «detido» em Annecy «por um mundo de urgentes
assuntos», e por uma crise de saúde. A fragilidade da sua saúde
38 Œuvres, T. XIII, p. 113. O mesmo será válido para a sua segunda partida, em
junho 1606, cf. mesmo volume, p. 199.

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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é certamente uma destas cruzes que se perfilam no seu caminho.
Tanto mais que ele viajará a cavalo ou mesmo, se o percurso o
exige, a pé. Com efeito a zona é agreste! Não falará Francisco,
numa carta de agosto de 1606, dos «montes espantosos (de Cha-
monix) completamente cobertos de um gelo espesso de dez ou
doze farpas»? «A diocese de Genebra, tal como a descreve Char-
les-Auguste de Sales, é muito grande e repleta de um grande povo,
quase todo corcunda devido às altas montanhas (se excetuar o
Chablais, Gex, Ternier e uma parte da região de Genebra e da
Saboia), de muito difícil acesso, principalmente às paróquias das
montanhas, e muito diverso na sua temperatura: com efeito, há
lugares em que o inverno é quase eterno, noutros as temperatu-
ras são extremas: é por isso que o bom do bispo tinha de sofrer
grandes incómodos.
Partiu, então, em 15 de outubro de 1605. Tendo em conta indis-
pensáveis idas e estadias em Annecy, esta visita desenrolar-se-á em
quatro anos. Em muitos lugares Francisco encontra protestantes
ou as ruínas do que eles deixaram: alegrias e tristezas misturam-se
então; ora se alegra por constatar ou receber conversões; ora fica
desolado ao chocar com o endurecimento das almas e com mil
e um «embaraços» que os ministros suscitam. Não obstante, em
agosto, a vista do seu Chablais consolou-o: «No lugar onde eu não
encontrava (há onze anos) mais do que cem católicos, não encon-
trei agora cem huguenotes». Mas o relatório que ele endereça ao
Papa Paulo V sobre o estado da diocese (novembro de 1606) é
muito menos otimista: cento e trinta paróquias «partiram para o
domínio tirânico de Berna, parte sob a alçada do Rei Cristianís-
simo»… «No que diz respeito àquelas que estão ocupadas pelos
bernenses, não há nada a esperar enquanto a própria cidade de
Berna não for posta em ordem». Quanto aos outros, o rei «ordena
que se continue a esperar… Mas os meus olhos começam a can-
sar-se de esperar a sua palavra e dizem: quando é que ele me con-
solará?»

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São Francisco de Sales
Frontispício do Ritual, publicado por Francisco de Sales em 1612.

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Capítulo vii- O bispo no meio do seu povo
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Pelo contrário, nas 450 paróquias católicas, Francisco sente,
apesar da fadiga, muitas consolações; e o amor do seu povo recon-
forta-o: «Ó minha querida filha, escreve ele a Madame de Chantal
em 2 de outubro de 1606, que bom povo encontrei entre tão altas
montanhas! Que honra, que acolhimento, que veneração ao seu
bispo! Anteontem, cheguei a esta cidadezinha (Bonneville) já de
noite; mas os habitantes haviam feito tantas luzes, tantas festas, que
parecia de dia. Ah! Como eles mereceriam bem outro bispo!».
É verdade que ele mesmo não poupa pelo seu povo nem o seu
tempo nem as suas forças. Pregava e dava catequese e não deixava
a mais pequena capela por visitar; conferia o sacramento da confir-
mação, ouvia as confissões, e levava pelas suas próprias mãos a san-
tíssima comunhão à boca do seu povo; escutava as queixas de cada
um com uma grande paciência e ordenava prudentemente aquilo
que julgava ser necessário; informava-se dos excessos das pessoas
eclesiásticas e seculares, dos pecados e dos pecadores públicos, e
fazia a correção quando era necessário com uma severidade muito
bem doseada com a sua doçura natural, etc., etc.». Administra-
ção temporal, reconciliações, processos e diferendos, nada era
omitido, para que após a visita, almas e coisas se reencontrem em
paz. «Enfim, ele era aquele bom pastor e bispo que dava a sua alma
pelas suas ovelhas».
Somente, quando regressava destas visitas, uma grande necessi-
dade de repouso e de recolhimento espiritual o invadia. «Cheguei
aqui no sábado à noite, escreve em 30 de novembro de 1605, após
haver percorrido os campos durante seis semanas, sem parar num
lugar senão no máximo meio dia. Preguei habitualmente todos os
dias, e com frequência duas vezes por dia. E como Deus é bom para
comigo! Nunca me senti mais forte. Todas as cruzes que eu previ,
ao abordá-las não passaram de oliveiras e palmeiras; tudo o que
me parecia fel se tornou mel, ou pouco faltou. Somente posso dizer
com verdade que, a não ser a cavalo ou algumas vezes que des-
pertei de noite, nunca tive tempo de pensar em mim e no estado

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São Francisco de Sales
do meu coração, de tal forma as ocupações importantes me asse-
diavam. Administrei o sacramento da Confirmação a um número
incrível de pessoas».
À conta disto, laços cada vez mais íntimos se criam entre o bispo
e o seu povo39 : o coração do seu povo está cada vez mais «apai-
xonado» pelo seu pastor, e ele declara: «Sinto-me um pouco mais
apaixonado pelas almas do que habitualmente… O coração do
meu povo é quase todo meu agora». Que durante este tempo, o rei
Henrique IV se obstine em querer atraí-lo para França, em prepa-
rar-lhe novas honras, títulos, cargos – «Fala-se de me engrandecer»
–, fica muito mal. O que «entristece» Francisco, é que lhe propo-
nham estas mudanças «com o título da maior glória de Deus e do
serviço da Igreja». De resto, ele não esconde que tem «uma especial
inclinação» pela França, «com o ar da qual foi alimentado». Mas,
salvo ordem formal do Papa, ele prefere a sua querida Saboia: «É
verdade que eu estou na minha terra e entre os meus, com uma
certa autossuficiência que me basta e, o que me é mais querido, com
um repouso tão grande como o meu cargo o pode permitir e que
mesmo hoje me parece bastante firme». Naquele tempo, falando
da sua diocese – é verdade que então a palavra era feminina! – ele
dizia em tom de brincadeira: «A minha pobre mulher mete-me
pena, e dado que a não posso deixar que ela sofre mil incomodida-
des e que Deus quer que adira a ela, aqui estou eu amarrado!». Sob
a capa do humor, está o amor, um amor profundo, que se esconde.
39 Um exemplo entre vários: a reação vigorosa de Francisco a respeito de um cardeal,
quando em 1608 acusaram os seus Saboianos de ler livros heréticos. Œuvres, T.
XIV, pp. 42-43.

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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8. A REFORMA DO CLERO E DOS RELIGIOSOS
Francisco de Sales e os seus padres
Deste povo, uma porção recebe o melhor da solicitude de Fran-
cisco: os seus padres. Porque na Correspondência que nos foi con-
servada, as cartas a simples eclesiásticos são muito raras (excetua-
das as cartas a M. de Bérulle antes da sua elevação ao cardinalato),
e as cartas a padres saboianos quase nulas, não se deve concluir que
o seu clero foi para o bispo de Genebra menos interessante que os
seus amigos, os seus filhos e filhas espirituais, e os grandes perso-
nagens com quem se corresponde. Todo o movimento do seu pen-
samento e da sua ação vai no sentido inverso desta opinião: Fran-
cisco de Sales sabe que, se na reforma de uma diocese, o diálogo
com o bispo deve ocupar o primeiro lugar, nada é mais urgente
então do que uma sincera e profunda conversão do clero.
Durante os anos em que ele foi «pároco de Thonon», – pároco
sem igreja, nem paróquia, nem vigário! – viu de muito perto, muito
experimentado na sua sensibilidade, na sua carne, o que a vida pas-
toral exigia do padre em questão de virtudes, de zelo, de graça para
desejar ter um clero fervoroso. De resto, faz suas, também neste
ponto, as diretivas do concílio de Trento: se o bispo tem por exce-
lência a missão de pregar, os seus padres são os «riachos» desta
«nascente ministerial»: a graça da consagração episcopal passa na
graça da ordenação sacerdotal. Uma palavra, dita de passagem, vai
talvez esclarecer-nos sobre o sentimento de Francisco em relação
aos seus padres; a mons. Fremyiot, escreve: «Oh! Como (o seu
povo) ficará edificado quando o vir… com os seus párocos a tratar
da sua edificação». Em termos claros, esta conversa significa que o

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São Francisco de Sales
padre, e particularmente o pároco de paróquia, participa de muito
perto na missão mesma do bispo e, portanto, na sua vocação e na
sua graça.
Dito isto, o problema concreto para Francisco era assegurar
a qualidade deste clero. Queria que o padre fosse instruído e de
bons costumes; sabia por experiência que o calvinismo não tinha
aliados mais seguros do que a ignorância e a má conduta de certos
eclesiásticos. O seu zelo pelo seu clero consistiu, portanto, antes
de tudo, em esforçar-se por santificá-lo e instruí-lo. É pena que
o texto que vamos citar não apresente todas as garantias críticas
de autenticidade, pois exprime com toda a certeza o pensamento
de Francisco de Sales; «Os bons párocos não são menos necessá-
rios do que os bons bispos, e os bispos trabalham em vão se não
forem cuidadosos em prover as suas igrejas paroquiais de párocos
devotos, de vida exemplar e de suficiente doutrina, porque são os
pastores imediatos que devem caminhar à frente das ovelhas, ensi-
nar-lhes o caminho do céu e dar-lhes o exemplo que devem seguir.
A experiência fez-me conhecer que o povo suportava facilmente os
exercícios de devoção quando tinha pessoas eclesiásticas que, pela
palavra de Deus e pelo bom exemplo, o incentivavam a fugir do
vício e a abraçar a virtude; e que ao contrário a populaça desliga-
va-se muito facilmente do exercício das virtudes cristãs quando os
padres eram ignorantes, pouco cuidadosos da salvação das almas e
de má vida»40. Não que a diocese não possuísse muitos eclesiásticos
«altamente recomendáveis», mas Francisco desejava que todos o
fossem, e não apenas muitos.
Nesta reforma do clero, Francisco de Sales apoia-se em alguns
princípios constantes, cuja implementação ele prossegue com
firmeza.
Em primeiro lugar, a criação de um seminário, onde seriam ins-
truídos e formados os numerosos candidatos que todos os anos
40 Cf. Œuvres, T. XXIII, pp. 400-401.

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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se apresentavam às Ordens: é no valor do seminário que se joga
o destino espiritual da diocese. Aí está o paradoxo: há na diocese
do Senhor de Genebra abundância de candidatos e o clero é, no
conjunto, medíocre. Em menos de dois anos – 1605 e 1606 – Fran-
cisco conferiu a tonsura a mais de 570 jovens, no decorrer das suas
visitas. Para os seus vinte anos de episcopado, os arquivos indicam
que ordenou cerca de 900 padres – mais de quarenta em média por
ano! Portanto, os candidatos não faltam; mas é preciso formá-los.
Francisco volta com frequência a esta urgência; um documento
resume maravilhosamente o seu pensamento, é o relatório de 1606
sobre o estado da diocese de Genebra. «Não há diocese no mundo
cristão que tenha mais necessidade de um seminário do que a de
Genebra. Contudo, até aqui foi em vão que se trabalhou na sua
ereção. O rendimento episcopal, com efeito, é demasiado baixo
para que se possa cortar nele; o rendimento capitular é muito pobre
e não basta para alimentar os cónegos, como de resto as outras
igrejas colegiais. Quanto às abadias ou priorados, embora ricos,
não se pode receber absolutamente nada deles, porque aqueles
que os guardam guardam-nos bem, e a maior parte das vezes esses
benefícios tornam-se exangues em consequência das diversas taxas
que lhes são impostas. Se, todavia, a Sede Apostólica, com a sua
suprema autoridade, destinasse à criação do seminário alguns prio-
rados rurais, logo que eles viessem a ficar vagos, sem dúvida que o
negócio seria bom. Não obstante, é preciso absolutamente que ela
se faça, quer desta maneira, quer por uma contribuição geral do
clero. Até ao fim da sua vida, Francisco lutará com obstinação para
realizar o seu desejo. Ele não terá sucesso, mas os seus sucessores
colherão o fruto da sua tenacidade.
Francisco de Sales não esperou nada, após a sua consagra-
ção episcopal, para tomar contacto com o seu clero. Desde 11 de
setembro de 1603, convocava «todos os eclesiásticos da diocese»
para um sínodo que se realizaria em Annecy no dia 2 de outubro.
Os Arquivos conservaram várias Constituições ou Disposições dos

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São Francisco de Sales
sínodos que Francisco realizou assim com o seu clero, no decurso
do seu episcopado: esses textos jurídicos são austeros, certamente,
mas revelam todos a preocupação que anima Francisco de fazer de
todos os seus padres, homens instruídos e de bons costumes. Um
artigo das Constituições de 1617 é caraterístico deste esforço tenaz
e paciente: «Aqueles que doravante quiserem ser promovidos às
Ordens sagradas… terão de se aplicar no exercício das Ordens que
já receberam e de trazer o certificado dos seus párocos por escrito,
como também da sua idade e bons costumes; no que os senhores
párocos são exortados e conjurados, da parte do Juiz eterno, a ser
muito conscienciosos e verdadeiros».
Mas entre as atas da administração episcopal, outros documen-
tos revelam, mais ainda do que os textos dos sínodos, a sua preo-
cupação pastoral a respeito dos padres. Em primeiro lugar, o regu-
lamento para o ensino do catecismo, de que já falámos. Depois, o
Mémorial aux Confesseurs, pelo qual Francisco coloca à disposição
de todos os seus padres a sua longa experiência pessoal do confes-
sionário: «Recordai-vos que os pobres pecadores vos chamam Pai
e que, com efeito, vós deveis ter um coração paterno a seu respeito,
recebendo-os com um extremo amor, suportando pacientemente
a sua rudeza, ignorância, imbecilidade, demora e outras imper-
feições, nunca vos cansando de os ajudar e socorrer enquanto há
alguma esperança de emenda neles… O encargo dos pastores não
é das almas fortes, mas das fracas e débeis»… E define as disposi-
ções apostólicas do padre neste ministério propriamente divino:
«Tende uma grande clareza e pureza de consciência… Tende um
ardente desejo da salvação das almas… Tende a prudência do
médico… Sobretudo sede caridosos e discretos… Quando encon-
trardes pessoas que, por pecados graves… estão excessivamente
assustadas e atormentadas nas suas consciências, deveis por todos
os meios aliviá-las e consolá-las, assegurando-as da grande mise-
ricórdia de Deus, que é infinitamente maior para lhes perdoar do
que todos os pecados do mundo para as condenar, e prometei-lhes

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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assisti-las em tudo o que precisarem de vós para a salvação das
suas almas»… «A pedra de toque de um perfeito confessor, diz ele
noutro fragmento, é que ele seja compassivo com o vício de outrem
e implacável com o seu próprio».
Também não tarda a redigir para os seus padres outro docu-
mento significativo, uma «exortação para que eles se apliquem ao
estudo»: «A ciência, ousa dizer, é o oitavo sacramento da hierar-
quia da Igreja… A ignorância é pior que a malícia… É por isso
que a nossa miserável Genebra nos surpreendeu quando, aperce-
bendo-se, pela nossa ociosidade, que não estávamos devidamente
empenhados e que nos contentávamos com dizer simplesmente o
nosso breviário, sem pensar em nos tornarmos mais sábios, enga-
naram a simplicidade dos nossos pais e daqueles que nos precede-
ram, fazendo-lhes crer que até então não se havia entendido nada
da Escritura Santa».
Foi assim que o bispo de Genebra fazia «correr» a sua própria
reforma até ao espírito e ao coração dos seus padres, a fim de que
por eles se realizasse a reforma de toda a diocese.
Há ainda outra iniciativa que tem muito a peito e de que ele
esperava que seria, para os seus padres, fonte de santidade de vida
e de zelo missionário: a Santa Casa de Thonon, ou mais precisa-
mente o seu «presbitério», quer dizer, este grupo de sete padres
que, sob a autoridade de um prefeito, dirigia e animava as obras da
Santa Casa. Digamos imediatamente que se algumas destas obras
conheceram depois da morte de Francisco um real sucesso, a Santa
Casa não foi para ele, durante a sua vida, mais do que preocupações
e tribulações. A falta quase total de recursos financeiros impediu a
instituição de se desenvolver: ela «vegetou» mais do que viveu; e até
ao fim, Francisco teve de mendigar, ou mesmo reclamar, para ela.
E, no entanto, que esperanças ele depositava neste presbitério! Não
viu ele nisso uma fórmula de comunidade sacerdotal, de centro
missionário que poderia algum dia servir de modelo de «colegial
secular» para as paróquias da diocese? Era talvez sonhar dema-

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São Francisco de Sales
Jeanne-Françoise Frémyot de Chantal
(retrato na Maison de la Galerie)

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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siado belo e demasiado cedo. Mas é interessante ver surgir desde
esta época um esforço por adaptar a vida de um grupo de padres à
tarefa missionária que se lhe confia.
A reforma das abadias
Maldito dinheiro! Quando Francisco visitou a sua diocese, chocou
com este problema por todos os lados. Entre os párocos e vigários,
encontrou certamente muitos «altamente recomendáveis». Mas
de quantos poderia ele escrever o que escrevia de um padre em
1600, a mons. Riccardi: «Ele suporta, quase até à fome, uma grande
pobreza», ou também: «Não temos qualquer meio de conseguir
para estes homens de mérito um alojamento conveniente para a
sua condição e para a sua função». Todavia, o dinheiro não faltava
na Saboia, mesmo tendo em conta as espoliações protestantes…
Aqui tocamos num dos pontos mais sensíveis do episcopado de
Francisco de Sales. «Os dízimos que a gente recebe todos os anos,
declarava ele a Paulo V, bastariam para manter (párocos e pasto-
res). O que impede que isso se faça é o seguinte: quase sempre, as
dízimas dos lugares em questão pertencem a abades e a mosteiros».
E neste texto todo jurídico, Francisco narra este facto: «Vi com
os meus olhos e visitei uma igreja paroquial situada numa alta
montanha, onde ninguém pode chegar senão a trepar com pés e
mãos, e distante da igreja mais próxima seis milhas italianas (cerca
de 9 kms). Ora, um só e único pároco administrava as duas igrejas
e celebrava a missa nos dias de festa numa e na outra, à custa de
quanto sofrimento, de quanto perigo, de quanto inconveniente,
não sei dizê-lo, sobretudo no inverno, quando tudo está coberto de
gelo e de neve nestas paragens. Desde que eu cheguei, toda a gente,
homens e mulheres, do primeiro ao último da aldeola, gritavam:
«Como é que nós que respeitamos todos os direitos eclesiásticos,

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São Francisco de Sales
que pagamos os dízimos e as primícias, e que nenhum pároco nos
seja concedido?… Com efeito tudo era recebido pelo abade mais
próximo».
Se pelo menos abadias e mosteiros realizassem na Igreja «a obra»
para a qual eles foram ao princípio fundados! Infelizmente! Fran-
cisco de Sales que tem em altíssima estima os votos religiosos, e que
recebe de vários Gerais de Ordens (Cartuxos, Dominicanos, Bar-
nabitas, Capuchinhos, etc…) «cartas de filiação», que o fazem par-
ticipar nos méritos e nas boas obras destas grandes famílias religio-
sas, ele que trabalhou para introduzir em França as Carmelitas de
Teresa d’Ávila e fundou a Visitação, é forçado a proclamar o terrível
relaxamento de muitos mosteiros saboianos e a tomar a respeito
deles medidas de uma extrema severidade. A sua correspondência
está cheia de tristeza com esta decadência daqueles e daquelas que
deveriam ser exatamente o contrário, entre o povo cristão, focos de
santidade, de pobreza, de caridade: Francisco avalia o mal causado
à Igreja de Deus por um tal estado de coisas.
Na carta que endereça em fins de 1603 ao núncio Tolosa, escreve
estas linhas severas: «É certo que o relaxamento de todos os mostei-
ros da Saboia, excetuados os dos Cartuxos41 está tão inveterado que
um remédio ordinário não bastaria para os purificar. Para conse-
guir, seria preciso um reformador de grande autoridade e prudên-
cia, munido de muito amplos poderes, de que usaria segundo as
ocasiões; eu não digo somente muito amplos, mas absolutos e sem
apelo, porque os monges são muito experimentados e hábeis na
chicana. E para lhes tirar todos os meios de se subtrair à reforma,
seria preciso que Sua Alteza Sereníssima fizesse intervir neste
assunto o seu Senado da Saboia, porque sem esta intervenção não
se conseguirá nada».
No relatório de novembro de 1606 a Paulo V, Francisco dá um
41 De facto, Francisco excetua também os «Mendicantes», isto é, os Capuchinhos: cf.
a citação seguinte, Œuvres, T. XXIII, p. 325.

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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lugar muito importante a esta grave dificuldade. É surpreendente
ver a que ponto a disciplina regular está por toda a parte arruinada
nas abadias e priorados desta diocese (excetuo os Cartuxos e os
Mendicantes). Em todos os outros, o dinheiro transformou-se em
escória e o vinho misturou-se com água, muito mais se transfor-
mou em veneno.
Também fazem blasfemar os inimigos de Deus que dizem todos
os dias: Onde está então o Deus dessa gente?… As portas dos mos-
teiros das irmãs Cistercienses estão abertas a todos, às monjas para
sair e aos homens para entrar».
A estes males, Francisco, no mesmo documento propõe remé-
dios: «Pode-se remediar este mal, quer enviando pessoas melho-
res de outras Ordens, quer fazendo visitas anuais e empregando
meios de coação, quer finalmente substituindo os religiosos por
cónegos regulares». Eis aqui, portanto, onde, sob o jurista, reapa-
rece o homem espiritual: «O segundo (remédio) é muito difícil e
muito incerto, porque o que se consegue pela força é quase como
se não existisse».
Haveria uma investigação a fazer sobre Francisco de Sales refor-
mador de abadias e de mosteiros: e não é neste género de empresas
que ele se descobriria o menor nem o menos espiritual: para este
estudo, a história da reforma do priorado beneditino de Talloires
daria, só por si, um capítulo luminoso…
Estas dificuldades influenciaram fortemente o pensamento reli-
gioso de Francisco de Sales: podia-se então ser monge e «não con-
servar do monge senão o hábito?». Uma regra tão contemplativa
e tão austera como a regra cisterciense não protegia então contra
os relaxamentos? Os votos de religião, a clausura, os superiores
não bastavam para assegurar a santidade? Podia-se ser de Deus e
desviar as almas de Deus?… Onde estava então o segredo da ver-
dadeira vida devota?

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São Francisco de Sales
O amigo das almas e a Introdução à vida devota
Ora, por contraste, os seus contactos com o seu povo provam-lhe
que existem, entre as pessoas mais humildes tal como entre as
pessoas do mundo, muito «belas almas» que, através do seu simples
dever quotidiano, aderem a Deus e fazem brilhar a sua caridade.
Tinha-as visto no tempo da sua juventude, até no seu meio fami-
liar. Havia-as conhecido nas suas longas estadias no confessioná-
rio. Havia-as encontrado em Paris, no círculo de Madame Acarie,
e Madame Acarie ela mesma. Havia-as descoberto, no coração
mesmo da herética Genebra, tal como aquela criada de albergue,
Jacqueline Coste, de quem ele fará a primeira porteira da Visita-
ção. Por fim, vê muitas delas no fundo das mais humildes aldeias,
enquanto visita a sua diocese: «Deus, escreve ele lindamente após
a visita de 1606… encontrei-a toda cheia de doçura e de suavidade
entre as nossas mais altas e agrestes montanhas, onde muitas almas
simples O acarinhavam e adoravam com toda a verdade e sinceri-
dade, e os cabritos-monteses e camurças corriam aqui e ali entre os
gelos medonhos para anunciar os seus louvores». E, um dia, pede
desculpa a uma nobre dama que batia um pouco com os pés espe-
rando que ele acabasse de se entreter com uma mulher do povo: «Ó
minha filha, gosto muito destas pobres aldeãs: há almas tão boas,
tão simples, tão repletas do temor de Deus! Mesmo entre os presos,
alguns dos quais suplicavam a Francisco que os acompanhasse ao
último suplício, ele descobriu por vezes perfeito amor…
Foi no decurso de tais experiências que nele se desenvolveu
(porque nele era inato) o sentido, o gosto da direção das almas.
Frente a frente – coração a coração – com uma alma, Francisco sen-
te-se plenamente ele mesmo. Tem certamente o dom de atrair e de
incentivar à verdadeira e autêntica santidade; mas estes contactos
íntimos, espirituais, procura-os antes de tudo como o meio indis-
pensável para que cada alma aceda, segundo a sua graça própria à
«perfeição do puro amor». E não é só aos religiosos e religiosas que

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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ele deseja que sejam «assistidos espiritualmente»! Parece mesmo
que é a todos os párocos de paróquias que ele dirige este espantosa
Advertência (1604?): «Aos confessores e diretores para discernir as
operações do Espírito de Deus e as do espírito maligno nas almas».
Em todo o caso, encontra-se nestas Advertências o segredo da sua
maneira pessoal de tratar com as almas. «A marca mais segura
da santidade, é quando ela está baseada numa verdadeira e pro-
funda humildade e uma ardente caridade»; ou também esta regra
de ouro: «É um efeito da feliz conduta do Pai das luzes, inspirar (a
alma) por sentimentos interiores, (de) fluir docemente na alma, e
descer sobre ela como a chuva sobre a lã».
Não usará outros princípios nesta admirável correspondência
espiritual que, por muito abundante que seja, não representa senão
a sexta parte das cartas que ele redigiu. E o que é a Introdução à
Vida Devota, senão uma recolha de «memórias» espirituais, um
eco das longas e numerosas conversas que Francisco concedeu a
Madame de Charmoisy? Sabe-se como é que o livro foi publicado.
Madame de Charmoisy teve, em 1608, de passar vários meses em
Chambéry por motivos de negócios; Francisco de Sales, após algum
tempo, aconselhou-a a dirigir-se ao padre Fournier. Foi assim que
este teve conhecimento das «memórias por escrito» que Francisco
havia deixado à sua penitente. O Padre ficou entusiasmado e pediu
a Francisco que fosse «dado à imprensa o tesouro de devoção de
Madame de Charmoisy».
Assim fez o bom do bispo, confiando no julgamento deste
«grande, douto e devoto religioso». Sem dúvida reviu «apressa-
damente» o seu texto e fez alguns pequenos «acertos» antes de o
entregar à tipografia; mas diz a verdade quando escreve a mons. de
Viena: «Terá reparado bem, Monsenhor, que este trabalho nunca
foi feito com um projeto preparado. É um memorial que eu tinha
feito para uma bela alma, que havia desejado a minha direção; e
isso, nas minhas ocupações de uma quaresma, em que eu pregava
duas vezes por semana».

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São Francisco de Sales
Assim, a Introdução liga-se bem à direção espiritual habitual de
Francisco de sales e reflete as suas conversas familiares; de resto, a
mesma carta no-lo confirma claramente: «(Monsenhor de Mon-
tpillier) adverte-me de que ando demasiado apressado e fechado
em vários lugares, não desenvolvendo suficientemente as minhas
opiniões. Vejo que ele tem razão nisso; mas havendo feito este tra-
balho só para uma alma que eu via com frequência, mostrei a bre-
vidade na escrita, pela oportunidade que eu tinha de me alongar
em palavras. A outra coisa que ele me diz, é que, para uma simples
e primeira introdução, levo demasiado adiante a minha Filoteia; e
assim aconteceu, porque a alma que eu acompanhava era já muito
virtuosa, se bem que nada tivesse saboreado da vida devota: foi por
isso que, em pouco tempo, ela avançou muito». Nenhuma «teoria»
neste livro: é uma coleção de experiências: para não a tomar em
sentido contrário, é preciso inseri-la em toda a correspondência
espiritual e mesmo em tudo o que se pode saber da direção de
Francisco de Sales.
A Correspondência coloca de resto um problema especificamente
salesiano: o da amizade espiritual. Quando se fala da amizade sale-
siana, parece fazer-se apenas alusão ao sentimento que ligou Fran-
cisco de Sales a Madame de Chantal e a algumas outras pessoas
muito devotas. É restringir indevidamente o campo. Com efeito, a
amizade é, para Francisco de Sales, o clima normal, eu diria indis-
pensável, para que se possa realizar uma direção espiritual digna
deste nome. A amizade envolve, e até ultrapassa a direção espiri-
tual. E eis o que define claramente a sua natureza: não há amizade
senão espiritual; a amizade é a comunicação de luzes, de santos
desejos, de graças, entre duas almas que aspiram igualmente à per-
feição do divino amor e que se ajudam nesta busca.
Retomarei aqui apenas dois exemplos, mas são suficientes.
Antoine Favre, primeiro: quem dirá qual, do senador ou do vigá-
rio-geral, foi o diretor do outro? Tudo lhes era verdadeiramente
comum. Antoine era o confidente dos projetos de Francisco, e era

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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o primeiro a tentar a realização dos mesmos. Francisco colaborava
nos trabalhos de Antoine, por exemplo no Codex que conservará o
seu nome. Francisco aconselhava Antoine, mas também com fre-
quência lhe pedia o seu conselho: assim, no tempo do Chablais,
recorre a ele para julgar se deve morar em Thonon, ou ainda se deve
publicar as Controvérsias. Juntos, os dois amigos inauguram no
inverno de 1606-1607 a Académie Florimontane. É de algum modo
o prolongamento, em benefício de toda a elite culta de Annecy e
mesmo de Saboia, daquilo que fez o fervor da sua correspondên-
cia de juventude ou o encanto destas conversas familiares, que eles
têm no hotel do Clos de Cran, em Annecy: a partilha de toda a sua
cultura e de toda a sua virtude. «A finalidade da Academia será o
exercício de todas as virtudes, a soberana glória de Deus, o serviço
dos Sereníssimos Príncipes, e a utilidade pública»: assim começam
Annecy, capela na Maison de la Galerie

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São Francisco de Sales
os estatutos. É a sua amizade que sustenta a Académie Florimon-
tane e lhe dá a sua alma. Quando, em 1610, Antoine Favre, pro-
movido à presidência do Soberano Senado, muda de Annecy para
Chambéry, a brilhante instituição declina. A correspondência
entre Francisco e Antoine será com frequência então uma corres-
pondência de trabalho entre um bispo e um presidente do Senado,
mas a amizade mantém-se: «Parece-me que a nossa amizade é sem
limites, e que estando tão fortemente enraizada no meu coração,
ela é tão antiga como ele».
Um novo laço se cria de resto em 1610 entre os dois amigos:
«Mademoiselle Favre, escreve Francisco a Madame de Chantal em
5 de fevereiro, decidiu-se por fim, com a concordância de seu pai,
a ser toda de Nosso Senhor e de continuar minha filha mais do que
nunca, e creio que faremos dela algo de bom»: no Pentecostes de
1610, Marie-Jacqueline entrava na Maison de la Galerie, ao lado de
Madame de Chantal e de Mademoiselle de Bréchard. Naquele dia,
a amizade de Francisco de Sales e de Antoine Favre tomava todo o
seu sentido.
Quando se fala das amizades de Francisco de Sales, o nome de
Madame de Chantal vem logo ao espírito. Com razão: basta abrir
a Correspondance para colher às braçadas as provas de uma ligação
privilegiada, total, ao mesmo tempo respeitosa e forte, cujo tom
de resto, mesmo nas expressões mais ternas, se mantém paterno
mais do que propriamente falando amigável. «Sei que a senhora
tem uma inteira e perfeita confiança no meu afeto, escreve-lhe ele
por exemplo a 24 de junho de 1604… Saiba também, e acredite
mesmo, que eu tenho uma viva e extraordinária vontade de servir
o seu espírito com todo o alcance das minhas forças. Não saberia
explicar-lhe nem a qualidade nem o tamanho deste afeto que eu
tenho ao seu serviço espiritual; mas dir-lhe-ei mesmo: penso que
ele é de Deus e por isso alimentá-lo-ei com cuidado, e todos os dias
o vejo crescer e aumentar notavelmente… Sou todo seu… Deus
deu-me a si: tenha-me por seu n’Ele».

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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Mas convém notar como, desde a sua origem, esta amizade se
situa no plano da «perfeição do divino amor». Antes de tudo, foi
Deus que o quis: Ele preparou maravilhosamente o encontro de
Francisco e de Madame de Chantal em Dijon; Ele revelou-o mesmo
com antecedência a um e outro; mas sobretudo: «(Esta escolha
que a senhora fez de mim para ser seu pai espiritual) tem todas as
marcas de uma boa e legítima escolha, escreve Francisco à baro-
nesa em 14 de outubro de 1604. Este grande movimento de espírito
que aí a levou quase à força e com consolação; a consideração que
eu lhe dei antes de ter consentido nisso; o facto de nem eu nem a
senhora havermos confiado em nós mesmos, mas aplicámos-lhe o
parecer do seu confessor, bom, douto e prudente; o facto de haver-
mos dado tempo às primeiras agitações da sua consciência para se
moderar, se elas fossem mal fundadas; o facto de as orações, não de
um dia nem de dois, mas de vários meses precederem, são indubi-
tavelmente marcas infalíveis de que era a vontade de Deus».
Desde as primeiras cartas, Francisco tem muito cuidado de dar
a esta amizade o seu caráter nitidamente espiritual, e estabelece
logo à partida as suas relações na santa liberdade da caridade pura:
«Nunca entendi que houvesse alguma ligação entre nós que impli-
casse alguma obrigação, senão a da caridade e verdadeira amizade
cristã cujo vínculo é designado por S. Paulo o vínculo da perfeição.
Eis o nosso vínculo, eis as nossas cadeias, que quanto mais se aper-
tarem e comprimirem, mais à-vontade e liberdade nos darão».
Um ano mais tarde, em 1 de agosto de 1605, escreve ainda a
Madame de Chantal estas linhas decisivas: «Não lhe direi nada da
grandeza do meu amor para consigo, mas dir-lhe-ei que ela fica
muito acima de toda a comparação: e este afeto é mais branco que
a neve, mais puro que o sol: é por isso que lhe larguei as rédeas
durante esta ausência, deixando-o correr à vontade. Oh, Senhor
Deus, não se pode dizer quanta consolação há no Céu a mergu-
lhar nesta maré-cheia de caridade, quando já estes riachos dão
tanta».

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São Francisco de Sales
Não acompanharemos nas suas etapas a evolução desta santa
amizade: ela conduzirá um dia à fundação da Ordem da Visitação
de Santa Maria. «Saúdo essas queridas filhas que estão à sua volta,
escreverá Francisco a Madame de Chantal, alguns dias depois da
cerimónia: são os meus doces amores em Jesus Cristo, e a irmã,
minha querida Filha, é o meu próprio coração naquele que, por
ter o nosso, lhe apresenta o Seu descoberto… Agora, olho tanto
para a nossa congregação que estou lá noite e dia». Neste bilhete,
Francisco «dava razão» à sua correspondente, da maneira como ele
fazia a sua oração… Tudo entre eles era caridade e liberdade, tudo
era intercâmbio dos dons de Deus.
A Visitação de Santa Maria e o Tratado do amor de Deus
Ao fundar a Visitação de Santa Maria, Francisco fazia mais do que
acrescentar uma nova Congregação às Ordens já existentes… Rea-
lizava um novo tipo de vida consagrada, o tipo original a que a
sua experiência espiritual, a sua reflexão, os seus contactos com
as almas o haviam conduzido a fazer da vida consagrada a Deus.
«As mais rigorosas clausuras do mundo não fazem almas unidas
a Deus». Como também não as grandes austeridades e macera-
ções, as observâncias mais severas, nem sequer a alta contempla-
ção, nem os êxtases mais extraordinários, mas, só, o amor de Jesus
Cristo. A Visitação? É no fundo, para Francisco de Sales, o verda-
deiro mosteiro reformado: todo o exterior da vida religiosa nada
é, se o coração humano não está repleto do amor de Jesus Cristo.
Para definir em que consiste o espírito da Visitação de Santa
Maria, só as Visitandinas têm competência e autoridade: para com-
preender em profundidade a Regra de uma Ordem, é preciso viver
esta regra desde o interior. O papel do historiador é outro; consiste
em reunir e interpretar o melhor possível os documentos que pre-

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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cederam e acompanharam a fundação. Ora, aqui a tarefa é imensa
e apaixonante: pois é no decorrer da experiência e, portanto, no
decorrer da sua existência pessoal, ao sabor dos acontecimentos,
através dos quais se manifestava a vontade de Deus, que Francisco
de Sales aperfeiçoou o seu projeto de Congregação religiosa.
Tudo começou, ao que parece, em Dijon, e por uma inspiração
que se impôs à sua alma. «A nossa Congregação, escreve ele, em
24 de maio de 1610, ao jesuíta Nicolas Polliens, é fruto da viagem
a Dijon, pela qual nunca pude ver as coisas na sua face natural; e
a minha alma era secretamente forçada a penetrar noutro sucesso
que caía tão diretamente sobre o serviço das almas que nunca os
meus olhos me expuseram mais à opinião e à mercê dos bons do
que à crueldade da calúnia dos maus». A viagem a Dijon? Trata-se
da estadia de 1604, da Quaresma pregada na Sainte-Chapelle do
palácio dos Duques, e do primeiro encontro com a Baronesa de
Chantal…
Mas as etapas foram numerosas e difíceis antes que o projeto se
realizasse! Durante três anos, Francisco guardará em segredo o seu
desígnio, refletirá, rezará. Não dirá palavra sobre isso a Madame de
Chantal, nem aquando da entrevista de Saint-Claude, em agosto
de 1604, nem sequer durante o retiro que ela veio fazer a Sales
sob a sua direção, em maio de 1605. Só em 1607, quando ela veio
a Annecy, lhe revelou o seu plano. Até ali, ele não havia querido
aprovar, e menos ainda encorajar o desejo que por vezes a baro-
nesa manifestava de deixar o mundo: «Pensarei bem nisso e rezarei
várias missas para obter as luzes do Espírito Santo, respondeu-lhe
ele ainda em 11 de fevereiro de 1607; com efeito, veja, minha Filha,
esse é um golpe de mestre e deve ser pesado a peso do santuário».
Mas eis que em maio a viagem de Madame de Chantal se decide;
em junho ela está em Annecy e, durante esta estadia, a 4 de junho,
segunda-feira de Pentecostes, Francisco declara-lhe «a escolha que
ele fez dela». Em 2 de julho, na semana a seguir à sua partida, ele
escreve-lhe: «Para mim, sinto (esta escolha) cada vez mais firme na

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São Francisco de Sales
minha alma; e visto que, depois de tantas considerações, orações
e sacrifícios, tomámos resoluções, não permita de modo algum
ao seu coração que se aplique noutros desejos; mas, bendizendo a
Deus pela excelência das outras vocações, concentre-se humilde-
mente nesta, mais baixa e menos digna, mas mais própria da sua
presunção e mais digna da sua pequenez. Mantenha, portanto, sim-
plesmente esta resolução, sem olhar nem à direita nem à esquerda».
O projeto, de resto, não tinha falta de audácia e requeria uma
grande confiança em Deus: «Vejo nele grandes dificuldades de
execução, confessava Francisco por primeiro, e não vejo maneira
de as ultrapassar; mas garanto que a divina Providência o fará
por meios desconhecidos das criaturas». Três anos mais tarde, na
festa da Santíssima Trindade de 1610, em 6 de junho, Madame de
Chantal, Charlotte de Bréchard e Jacqueline Favre eram introduzi-
das na Galerie por Mons. de Genebra; Jacqueline Coste, a criada,
estava lá à espera delas: a Visitação de Santa Maria começava. Ao
fim de um ano, dia a dia, na festa de Saint-Claude de 1611, a Madre
de Chantal e as Irmãs de Bréchard e Favre pronunciavam a sua
«oblação», e Monsenhor impunha-lhes o véu.
Mas as Constituições da nova Congregação não estão ainda redi-
gidas. Vários «ensaios», datando de 1610-1611, transformaram-se
numa redação verdadeira lá por julho-setembro de 1613. Mas, a
propósito da fundação de Lyon, surge o diferendo entre o arce-
bispo mons. de Marquemont e Francisco de Sales; em 2 de fevereiro
de 1616, Francisco aceita que a Visitação seja transformada em
Ordem religiosa, em «Religião formal», como ele diz. Revê a Regra
a fim de a adaptar às novas exigências canónicas. Entre agosto de
1616-janeiro de 1617, o manuscrito está pronto. Por fim, em julho
de 1618, Francisco recebia de Roma o breve que erigia a Visitação
em Ordem religiosa. Em 16 de outubro, transformava a Maison
d’Annecy «em mosteiro sob a Regra de Santo Agostinho»… Havia
mais de catorze anos que, em Dijon, Deus tinha inspirado a Fran-
cisco a fundação de uma Congregação!

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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Annecy, a segunda Visitação (jardim interior).

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São Francisco de Sales
Para ter a certeza de captar qual era a intenção de Francisco
ao fundar a Visitação de Santa Maria, convém, portanto, proce-
der com extrema prudência. É todo o seu pensamento religioso
e apostólico dos anos 1604-1618 que se encontra de facto impli-
cado neste desígnio, e que seria, portanto, de reconstituir. Seria
necessário primeiro seguir a sua correspondência, carta por carta,
e não apenas aquela que troca com a baronesa de Chantal ou as
primeiras vocações Visitandinas, como Charlotte de Bréchard ou
Jacqueline Favre; mas também a que troca com almas de «leigos e
seculares» ávidos de perfeição. Seria necessário também analisar,
peça por peça, o dossier das Constituições e o das fundações. E isto
ainda não basta: seria indispensável precisar mais de perto o traba-
lho da graça na alma das primeiras Irmãs, e na alma de Francisco
ele mesmo, e de confrontar todos estes dados com a lenta elabora-
ção do Tratado do Amor de Deus. Com efeito, tudo isto contribuiu
em conjunto para a fundação da Visitação de Santa Maria, como
também a ação missionária do bispo na sua diocese e fora dela. Os
Entretiens dão testemunho disso… Um tal estudo ultrapassaria os
limites deste livro. Limitemo-nos a algumas notas que nos parecem
essenciais.
Um facto parece capital: a Visitação de Santa Maria liga-se estrei-
tamente, – poder-se-ia dizer que ela é a sua realização ideal, – ao que
há de mais alto na doutrina espiritual de Francisco de Sales. Este
cume, nós vimo-lo, é o puro amor e, para aceder a este puro amor,
a perfeita abnegação, o vazio total do amor próprio. Ora, definindo
nas suas constituições «o fim pelo qual esta Congregação foi ins-
tituída», Francisco de Sales acentua nitidamente que entende, por
esta fundação, permitir às almas, a todas as almas, e qualquer que
seja a sua idade ou o seu estado de saúde, «tender à perfeição do
divino amor»: «Esta Congregação é ereta de modo que nenhuma
grande severidade possa afastar as fracas e enfermas de entrar nela,
para aí tender à perfeição do divino amor». As pessoas «de boa
e forte compleição» terão acesso a ela; mas também as «viúvas»,

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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contanto que hajam suficientemente «resolvido os seus negócios»,
e nomeadamente a situação dos seus filhos; e sobretudo as pessoas
«que, pela sua idade ou por qualquer (debilidade) corporal, não
possam entrar nos mosteiros mais austeros».
A palavra é de importância: ela cria um novo critério de aptidão
à vida religiosa. O que se requer das postulantes, já não é a saúde
do corpo para seguir sem desfalecer uma Regra austera, mas «um
espírito são e disposto a viver numa profunda humildade, obe-
diência, simplicidade, doçura e resignação». Em 1619, a propó-
sito de uma candidata estropiada, Francisco escreverá à Madre de
Chantal: «Será eternamente o meu sentimento que nunca se deixe
de receber as raparigas doentes na Congregação, a não ser que se
trate de enfermidades previstas nas Regras, o que não é o caso da
enfermidade desta rapariga, que é inválida das pernas; pois, sem
pernas, pode-se fazer todos os exercícios essenciais da Regra: obe-
decer, rezar, cantar, guardar silêncio, costurar, comer, e sobretudo
ter paciência com as irmãs que a levarão, quando elas preparadas e
prontas a praticar a caridade… Não vejo nada que deva impedir a
sua receção se ela não é estropiada de coração».
Se Francisco de Sales elimina com um traço tão nítido das suas
Constituições «a austera austeridade», é que ele pretende mesmo
que «o fervor da caridade e a força de uma muito íntima devoção
supram tudo aquilo», e que elas exijam da alma uma união a Deus
extremamente viva. Da força e da fraqueza espiritual, Francisco
tem a mesma conceção que S. Paulo: «Cum infirmor, tunc potens
sum». Amor e humildade andam juntos, chamam-se um ao outro:
«Vendo a vossa Congregação, escreve ele na Prefácio das Consti-
tuições, pequena em número ao princípio e, todavia, grande no
desejo de se aperfeiçoar cada vez mais no santíssimo amor de Deus
e na renúncia a qualquer outro amor, fui obrigado a assisti-la cui-
dadosamente, recordando-me bem que Nosso Senhor, tal como
diz Ele mesmo, veio a este mundo para o bem das suas ovelhas, não
somente para que elas tivessem a verdadeira vida, mas também

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São Francisco de Sales
para que a tivessem mais abundantemente». No Livro dos Votos,
escreve pela sua mão, em 6 de junho de 1611, dia da oblação das
três primeiras Madres: «A humilde glória das Irmãs da Congrega-
ção. Não temos nenhum vínculo senão o da dileção, que é o vínculo
da perfeição… A caridade de Jesus Cristo nos impele».
Uma tal conceção da vida religiosa requer que as almas que a ela
se entregam recebam uma formação espiritual sólida e profunda,
apoiada numa fé viva. A verdadeira devoção supõe uma grande
força de alma. E a força de alma não se adquire senão na luta quo-
tidiana. Francisco de Sales sabe-o. Não é por acaso que recomenda
com tanta insistência à baronesa de Chantal, em 1607, a leitura
assídua do Combate espiritual, este livro de Scupoli «que é o meu
querido livro, e que eu trago no bolso, há bem dezoito anos, e que
nunca releio sem proveito»; porque «a virtude de força e a força da
virtude nunca se adquirem na paz».
Para formar a alma de Madame de Chantal, e a alma das primei-
ras Irmãs, antes mesmo da sua entrada em religião, não poupou
tempo nem cuidados. Pensava que da solidez destas pedras angu-
lares dependeria a estabilidade e a duração de todo o edifício.
Num documento muito interessante, – a datar sem dúvida de
setembro-outubro de 1614 – «Préface pour l’instruction des âmes
dévotes sur la dignité, antiquité, utilité et variété des Congréga-
tions ou Collèges des Femmes et Filles dédiées à Dieu» –, chega a
esta constatação: «Não há nenhum género de vida neste mundo
no qual não surjam inconvenientes»: a solidão ou a conversação
(quer dizer, a vida comunitária), a doutrina ou a ignorância, as
mudanças frequentes dos superiores ou «de os ter perpétuos»,
as visitas dos Gerais ou a sua residência imóvel numa cidade, a
mendicidade ou a garantia dos recursos: tudo tem vantagens,
tudo comporta riscos para a vida espiritual… «As abelhas no
inverno, observando a estreita vedação, estão sujeitas à sedição e
a matar-se umas às outras; mas no verão em que desatam a voar,
estão sujeitas a perder-se».

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Onde está então a salvaguarda das almas religiosas? «Se o espí-
rito de devoção reina nas Congregações, uma clausura (vedação)
medíocre bastará para lá fazer boas servas de Deus; se ele não reina
lá, a mais apertada vedação do mundo não bastará. Ora o espí-
rito de piedade ali reinará sempre se os superiores tiverem dele
o cuidado paterno que devem ter». Que a Madre de Chantal haja
sido inspirada a pronunciar «o voto de muito excelente perfeição»,
e que ela haja sido autorizada a isso por Francisco de Sales, em 27
de dezembro de 1611, isso importava não somente à alma da fun-
dadora, mas a toda a fundação.
Nesta educação espiritual, Francisco atribui ao coração humano
um papel primordial, coloca-o no centro, estuda-lhe os movimen-
tos, os atrativos e as repugnâncias, as generosidades e as tibiezas.
O coração é, para ele, o lugar do amor, como é o lugar das renún-
cias e da abnegação: «Esperemos, escreve Francisco a Madre de
Chantal, que o Espírito Santo nos cumule um dia do seu santo
amor; e aguardando, esperemos sempre, e demos lugar a este fogo
sagrado, esvaziando o nosso coração de nós mesmos enquanto for
possível. Como seremos felizes, minha Madre muito querida, se
um dia substituirmos o nosso coração por este amor que, unifican-
do-nos mais, nos esvaziará perfeitamente de toda a multiplicidade,
para não ter no coração senão a soberana unidade da Santíssima
Trindade, que seja bendita para sempre pelos séculos dos séculos.
Amen!».
Francisco tem tal cuidado de envolver, eu ia dizer de compro-
meter, o coração humano na sua «devoção», e na vida de perfei-
ção, que quis inscrever o símbolo dele nas armas da Visitação. Um
bilhete de 10 de junho de 1611 narra-nos ingenuamente como ele
vive a sua inspiração. Naquela manhã, não pôde ir celebrar a missa
a la Galerie e fez-se substituir por M. Rolland. Mas, disse à Madre
de Chantal, «ele não é bom mensageiro para vos levar o pensa-
mento que Deus me deu esta noite: que a nossa casa da Visitação
é, por sua graça, nobre bastante e considerável bastante para ter

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São Francisco de Sales
as suas armas, o seu brasão, a sua divisa e o seu grito de armas.
Por isso pensei, minha querida Madre, se estiver de acordo, que
temos de tomar por armas um único coração, atravessado por duas
flechas, encerrado numa coroa de espinhos, servindo este pobre
coração de encravamento a uma cruz, que estará situada por cima,
e terá gravados os sagrados nomes de Jesus e de Maria». E eis a
explicação mística deste símbolo: «Verdadeiramente a nossa con-
gregação é uma obra do coração de Jesus e de Maria. O Salvador
ao morrer deu-nos à luz pela abertura do seu sagrado coração; é
por isso muito justo que o nosso coração permaneça, por uma cui-
dadosa mortificação, sempre rodeado da coroa de espinhos que
esteve sobre a cabeça do nosso Chefe, enquanto o amor o manteve
atado sobre o trono das suas dores mortais». O amor e a abnegação
do coração humano, segundo Francisco de Sales, não se explicam
Incipit de um manuscrito autógrafo de Jeanne-Françoise de Chantal
(Treviso, arquivo da Visitação)

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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nem se justificam senão em referência ao amor de Jesus Crucifi-
cado. A sua religião vai do coração ao coração.
O espantoso, é que este ideal não esteja só simbolizado pelas
«armas» da congregação, mas que esteja também, por assim dizer,
inscrito na sua história. Não narraremos aqui o diferendo que opôs
o arcebispo de Lyon, monsenhor de Marquemont, a Francisco de
Sales, e que terminou por fazer da Visitação uma Ordem enclau-
surada. Reteremos somente a magnífica resposta que Francisco de
Sales dirigiu ao arcebispo, em 2 de fevereiro de 1616. É uma peça
que mereceria que se ponderasse todos os matizes! Como ela se
integra bem na espiritualidade salesiana! Francisco não esconde
que a supressão da «visita aos doentes» que leva à clausura perpé-
tua não seja para ele um sacrifício e até, na sua opinião, uma perda
espiritual. Mas com uma magnífica largueza de vistas, reconhece
que o ideal da vida religiosa não está lá; e dado que «na transmu-
tação da Congregação da Visitação em Religião formal, se poderá
exatamente guardar o fim dela… o bispo de Genebra aquiesce
muito livremente de bom grado» ao desejo de do senhor Arce-
bispo! Assim, portanto, dado que as almas, todas as almas, mesmo
as pessoas fracas e enfermas poderão «tender à perfeição do divino
amor», segundo os seus princípios espirituais, Francisco «aceita de
bom grado a escolha que agradará ao senhor Arcebispo»: «A fina-
lidade da Congregação será adequada para conservar na Religião,
contanto que esta finalidade seja amada, aceite e favorecida, tanto
quanto ela o merece e que nestas terras das Gálias a necessidade do
bem das almas o requere».
Haverá necessidade de sublinhar a perfeita concordância entre
a ideia da vida religiosa que impele Francisco a fundar a Visitação
e a doutrina espiritual que ele expõe no Tratado do amor de Deus?
A Ordem e o livro (publicado em agosto de 1616 amadureceram
juntos no espírito de Francisco, e ele não esconde, no Prefácio do
Tratado, que o cuidado das Visitandinas influenciou fortemente na
redação da obra: «Há mesmo muito tempo que eu tinha projetado

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São Francisco de Sales
escrever acerca do amor sagrado, mas este projeto não era com-
parável ao que esta ocasião (o encargo das Visitandinas) me fez
produzir». É certo que as confidências das suas Filhas infletiram
o pensamento de Francisco para os problemas concretos, práti-
cos, da vida religiosa; mas não é menos certo, – e ao dizer isto,
não minimizamos a influência da Visitação sobre a inspiração do
Tratado, mas ao contrário, – que o Tratado do amor de Deus per-
manece bem, aos olhos do seu autor, o livro de todas as almas que
querem «tender à perfeição do divino amor», fossem elas «leigas
e seculares» e vivendo «no meio da azáfama dos negócios do
mundo»; permanece antes de tudo uma «Vida de santa Caridade»;
ele prega a todos como expressão suprema do amor, o abandono
perfeito à vontade de Deus; propõe como modelo único da santi-
dade, segundo a doutrina «do grandíssimo e miraculoso S. Paulo»,
Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado. Não admira, portanto, se o
Tratado do Amor de Deus e a Ordem da Visitação têm entre si res-
sonâncias tão íntimas: um e outro nasceram do mesmo coração, o
coração devoto e apostólico, o coração evangélico de Francisco de
Sales.
À baronesa de Chantal que tinha gravado no seu peito o nome
de Jesus, Francisco escrevia um dia: «O meu ponto (de oração) era
sobre este pedido da Oração dominical: Sanctificetur nomen tuum,
Santificado seja o teu nome. Ó Deus, dizia eu, quem me dará esta
felicidade de ver um dia o nome de Jesus gravado no mais fundo do
coração daquela que o tem gravado no seu peito?»… O mais fundo
do coração, é lá somente que se realizam para as almas, as almas
religiosas e as almas seculares, as almas simples e as almas sacer-
dotais, as conversões autênticas, as reformas: o Tratado do amor
de Deus, este prodigioso breviário da mística cristã, não faz mais
do que expor esta ideia fundamental de Francisco de Sales. Onde
finalmente nos conduz o último capítulo «destas coisas, Teótimo,
que pela graça e pelo fervor da caridade, foram escritas para a
vossa caridade» intitula-se: «Que o Monte Calvário é a verdadeira

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Capítulo viii- A reforma do clero e dos religiosos
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academia da dileção». Uma academia de amor? É precisamente
o nome que utiliza Henri Bremond para designar a Visitação de
Santa Maria.42
42 H. BREMOND, lib. cit., T. II, pp. 573-583.

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São Francisco de Sales

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Capítulo ix- Em direção ao puro amor
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9. EM DIREÇÃO AO PURO AMOR
A terceira estadia em Paris
Em meados de outubro de 1618, Francisco de Sales tomava, pela
terceira vez na sua vida, o caminho de Paris. Não é que Paris não
tenha convidado com frequência o pregador que a havia encan-
tado em 1602, mas o desconfiado Carlos Manuel opunha-se a que
Francisco aceitasse ali pregar a quaresma. Agora, tem de ceder e
permitir que Paris reveja e escute de novo Francisco: com efeito,
o Príncipe-Cardeal de Saboia vai para a corte, solicitar a mão da
jovem Christine de France para o príncipe do Piemonte, filho mais
velho de Sua Alteza.
A embaixada teve sucesso: o casamento realizou-se em fevereiro
de 1619. E só regressaram à Saboia no mês de setembro. Este ano
parisiense foi para Francisco um ano muito apostólico: com efeito,
toda a gente queria ouvi-lo pregar, conversar com ele, confessar-se
a ele ou receber dele direção espiritual. «Encontrei em Paris um tal
aumento de piedade que é maravilhoso», escreve ele. Não que ele
esqueça os seus amigos e as suas filhas de Annecy; as cartas partem
numerosas para a Saboia, e não contam entra as menos puras, as
menos espirituais da Correspondance. «Gostaria muito, certamente,
escreve em 23 de junho a Madame de Chantal, de ter algum belo
ramo do deserto do nosso glorioso S. João, para o apresentar à sua
bela alma; mas a minha, mais estéril que o deserto, não conseguiu
hoje encontrar nenhum, se bem que na verdade ela haja tido esta
manhã e continue ainda agora a ter um pequeno, insensível senti-
mento de não querer viver segundo a natureza, mas, tanto quanto
possível, segundo a fé, a esperança e a caridade cristã, à imitação

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São Francisco de Sales
deste homem angélico que nós vemos, neste profundo deserto, não
ver senão a Deus e a si mesmo. Oh que bem-aventurado é aquele
que só vê estes dois objetos, um dos quais o arrebata à dileção sobe-
rana, e o outro o rebaixa a abjeção extrema».
Esta estadia em Paris recapitula, por assim dizer, e coroa a vida
e a obra de Francisco de Sales. Madame Acarie morreu, mas o
Carmelo, que ele a ajudou a fundar, brilha. Com Pierre Bérulle que
introduziu o Oratório em França, com o padre Bourdoise, com
Vicente de Paulo, ocupa-se da formação do clero. Encontra-se de
novo com a Madre Angélique Arnauld que se encontra então a
braços com a reforma da sua abadia de Port-Royal des Champs, e
a reforma, ainda mais árdua, da abadia de Maubuisson, e aconse-
lha-lhe: «Não se sobrecarregue demasiado com vigílias e com aus-
teridades (e acredite em mim, minha muito querida Filha, pois sei
bem o que digo nisto), mas vá ao Porto Real da vida religiosa pelo
caminho real da dileção de Deus e do próximo, da humildade e da
bondade extrema».
A 7 de abril de 1619, funda na capital um novo mosteiro da Visi-
tação e confia a direção das suas filhas a Vicente de Paulo, que assu-
mirá este encargo durante mais de quarenta anos. Entre os prela-
dos que encontra na corte, repara no jovem bispo de Luçon, mons.
Armand du Plessis de Richelieu, e este por sua vez repara em Fran-
cisco: «Jurou-me toda a amizade e disse-me que por fim alinharia
no meu partido, para só pensar em Deus e na salvação das almas».
Se não manteve a sua bela resolução, Richelieu guardou pelo menos
por Francisco de Sales uma grande veneração.
Durante esta estadia na Corte, um perigo mais sério ameaça
subitamente Francisco: o cardeal de Gondi, arcebispo de Paris,
apoiado pelos cardeais de la Rochefoucauld e du Perron, fez um
projeto de reter o bispo de Genebra em Paris e de o fazer nomear
coadjutor, com futura sucessão: o rei Luís XIII «teve gosto nisso».
Todas as dificuldades estão previstas e aplanadas: nomear-se-á
bispo de Genebra, o próprio irmão de Francisco, Jean-François (o

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Capítulo ix- Em direção ao puro amor
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bispado de Paris assumirá mesmo a seu cargo as despesas da sagra-
ção!); Francisco será provido da rica abadia de Sainte-Geneviève...
Houve o bom gosto de não lhe falar da púrpura que não deixaria
de lhe cair sobre os ombros… «O bem-aventurado agradeceu ao
cardeal pela sua benevolência e expôs-lhe na mesma hora como
ele, por outra parte, estava ligado havia tantos anos; que ele não era
forte bastante para carregar o fardo do bispado de Genebra, como
ia caminhando para a velhice e se via sujeito a muitas doenças e
incomodidades».
No ano seguinte, a 26 de fevereiro, à Madre de Chantal, como-
vida por saber da promoção de Jean-François de Sales à coadjutoria
de Genebra, Francisco dará não outra versão, mas outra tradução
da sua resposta: «Eu disse (ao cardeal) de forma bastante inteligí-
vel em Tours, que eu não queria ser descasado a não ser para não
voltar a casar… Que eu me encarregasse da esposa de outro por
obrigação, isso para mim, como eu penso, seria impossível». Mas
não conseguiu escapar ao desejo da pequena e encantadora prin-
cesa Marie-Christine de France, que, seduzida pela sua boa graça,
o quis como capelão-mor: pelo menos conseguiu que, com a sua
aceitação do título, se introduzisse uma cláusula mitigante: o seu
irmão Jean-François exerceria o cargo.
O desejo de se retirar e de solidão
«Eu não queria ser descasado a não ser para não voltar a casar…».
Esta “boutade” esconde sem dúvida uma confissão. Regressado a
Annecy, Francisco retomou o ritmo habitual dos seus cuidados e
das suas ocupações, mas parece que no fundo do seu coração, e
sem nada deixar transparecer, ele aspirava à solidão. Algum tempo
depois, o capelão da princesa Marie-Christine foi nomeado coad-
jutor de Genebra, sem que ele, seu irmão, haja alguma vez dito uma

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São Francisco de Sales
Monumento a S. Francisco de Sales
junto da fortaleza Les Allinges.

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única palavra, nem mendigado, nem procurado qualquer reco-
mendação». Francisco escreve a Madame de Chantal, a 4 de maio
de 1620: «Eis o meu irmão bispo: isso não me enriquece, é verdade,
mas alivia-me e dá-me alguma esperança de poder retirar-me da
prensa: (e fazendo alusão aos projetos do cardeal de Gondi) isso
vale mais que um chapéu de cardeal».
Durante o verão, redige Constituições para os anacoretas do
Mont-Voiron; e à vida destes eremitas um pouco vagabundos, não
receia fixar um ideal propriamente eclesial: viverão aqui santa-
mente, «para a maior glória e culto da bendita e pura Virgem, Mãe
do nosso Salvador Jesus Cristo, para a salvação das suas almas e
para a edificação do povo católico das províncias vizinhas deste
ermitério e, senão para a conversão, pelo menos para a disposição
dos hereges para receber a luz da fé verdadeira e salutar». À insti-
gação de Francisco, a vida de contemplação e de penitência reen-
contrava o seu sentido evangélico.
No decurso do ano de 1621, a saúde Mons. de Genebra altera-
-se. «Vivemos: normal quanto a comer, escreve a 21 de setembro à
Madre de Chantal, e já não escrevo à noite, porque a minha vista
não permite e o meu estômago também não. Não dependerá de
mim que eu não venha a ser muito idoso.
No outono, o prior de Talloires informa Francisco de que o
ermitério de Saint-Germain está restaurado, tal como ele mesmo
havia ordenado, e pede-lhe que venha benzer o santuário. «Ora, ele
admirava a beleza deste ermitério, conta-nos Charles-Auguste de
Sales, e entre os louvores que dele fazia, não pôde deixar de desco-
brir a sua alma: está resolvido, diz ele, pois tenho um coadjutor, se
for possível, por vontade dos nossos Sereníssimos Príncipes, virei
cá para cima; é preciso que aqui seja o meu repouso, habitarei neste
ermitério, porque o escolhi. E ditas estas palavras, abrindo a janela
do lado norte e contemplando o lago e a paisagem de Annecy:
Oh Deus, disse, que bom e que agradável estarmos aqui; resolu-
tamente é preciso deixar ao nosso coadjutor o peso do dia e do

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São Francisco de Sales
calor, enquanto que com o nosso terço e a nossa pluma serviremos
a Deus e à sua Igreja. E sabe, padre Prior (diz ele voltando-se), as
ideias vir-nos-iam à cabeça tão abundantes e em flocos como as
neves que ali caem no inverno».
É que ele tinha em projeto várias obras, cujos títulos, acredi-
tando nos familiares de Francisco que os revelaram nas suas depo-
sições nos Processos, são significativos da sua espiritualidade:
Explicação familiar dos mistérios da nossa santa fé, Tratado dos
quatro amores (Deus, nós mesmos, os nossos amigos, os nossos
inimigos), e sobretudo uma História Teândrica «na qual queria
descrever a vida de Nosso Senhor humanizado e propor os meios
de facilmente praticar as máximas evangélicas…». Deve-se lamen-
tar que Francisco não haja podido escrever estas obras; elas teriam,
certamente, fornecido sobre a sua espiritualidade esclarecimentos
novos, originais; mas adivinha-se, só pelos títulos, que no fundo
a doutrina seria semelhante à da Introdução e do Tratado do amor
de Deus.
O interesse destes projetos está de resto para além deles mesmos.
«Com o nosso terço e a nossa pluma, ali serviremos a Deus e à
Igreja»: por parte do antigo missionário do Chablais, o bispo que
tanto pregou, confessou, se empenhou e se esforçou» ao serviço de
Deus e da Igreja, este propósito indica uma orientação espiritual,
significa uma escolha, que o historiador de alma deve conside-
rar como uma etapa. Sem dúvida, o estado de saúde de Francisco
deteriora-se; os afazeres, as voltas cansam-no mais no corpo e no
espírito; mas há mais: estas forças que lhe restam, pensa sincera-
mente que não poderia utilizá-las melhor ao serviço de Deus e da
Igreja do que a rezar e a ir, graças aos seus livrinhos difundidos aos
milhares, procurar no domicílio Filoteia e Teótimo, para os ajudar
a avançar com um passo alegre no caminho real da dileção de Deus
e do próximo».

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Annecy, a Santa Fonte

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São Francisco de Sales
Annecy, Basílica da Visitação

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A viagem de Avignon e a morte
«Entretanto, o Cristianíssimo Rei Luís XIII e o Sereníssimo Duque
de Saboia pensavam em conluiar-se na cidade de Avignon (Luís
acabava de triunfar no sul da revolta huguenote de Benjamin de
Rohan), e o bem-aventurado Francisco recebeu ordem expressa de
ali se deslocar o mais depressa possível». O meio social de Mon-
senhor entrou em grande desassossego: «Não houve ninguém que
não pensasse mal desta viagem para o santo bispo». E todos lhe
aconselhavam a informar Sua Alteza do «miserável estado em que
a sua saúde se encontrava».
Francisco de Sales morreu por obedecer a Deus e ao seu príncipe…
«Prevendo a sua morte, pôs em ordem todos os seus assuntos
e fez o seu testamento solene… que assinou e selou conveniente-
mente… Logo a seguir, preparou tudo o que era necessário para
esta viagem, despediu-se de todos os seus, e predisse a sua morte
com palavras expressas».
Estas despedidas de Francisco foram comoventes, pois ele não
escondia a ninguém que eram mesmo as despedidas. Só ele guar-
dava uma paz maravilhosa. No dia 8 de novembro de manhã, cele-
brou a missa no oratório da Santa-Nascente. «Minhas queridas
filhas, deixou-lhes ele à maneira de palavra de ordem suprema, que
o vosso único desejo seja Deus; o vosso receio, perdê-l’O; a vossa
ambição, possuí-l’O para sempre».
E foi a partida. Francisco montou a cavalo, enquanto que em
seu nome se distribuía aos pobres – porque havia então na cidade
grande necessidade – alguns alqueires de grão.
No dia 14 de novembro, Francisco chegou a Avignon. As festas
sucederam-se às festas. Aquilo durou uns dez dias.
Na quinta-feira 25 de novembro, o rei e o duque partiram de
Avignon e subiram juntos pelo Lyonnais. Em Lyon, Francisco foi
pedir asilo ao convento das suas Filhas, em Bellecour: «pelo amor
que ele tinha à santa pobreza, de preferência à casa, escolheu o

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casebre do jardineiro da Visitação, onde morava também o con-
fessor das religiosas, sob pretexto de que estaria mais livre para
receber aqueles que viriam visitá-lo; tal como não daria tanto incó-
modo aos seus, e estaria pronto mais cedo para o serviço espiritual
das suas queridas Filhas».
E foi logo na pequena choupana um desfile ininterrupto de
visitas que acrescentaram o seu peso ao peso das cerimónias ofi-
ciais e das pregações. «Meu Deus, escreve ele a uma senhora em 19
de dezembro de 1622, que felizes são aqueles que, fora das cortes
e dos cumprimentos que lá reinam, vivem pacificamente na santa
solidão aos pés do crucifixo!».
Mas era preciso que Francisco metesse a última mão ao seu
edifício espiritual, e que ele nos mostrasse, pelos factos e pelo
seu exemplo, as supremas exigências do «divino amor». Tudo o
Annecy, urna de S. Francisco de Sales na Basílica da Visitação

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que dissemos da sua espiritualidade seria falseado, se não insis-
tíssemos neste último gesto de Francisco de Sales, diretor espiri-
tual. «Quando será, havia ele escrito em maio de 1616, à Madre
de Chantal, que este amor natural do sangue, das conveniências,
das decências, das correspondências, das simpatias, das graças será
purificado e reduzido à perfeita obediência do amor totalmente
puro do bom prazer de Deus?»
Esta hora chegou para a Madre de Chantal… «Havia cerca de
três anos e meio que ela não lhe havia dado contas do seu inte-
rior». Ora, ela encontrava-se em Lyon em 10 de novembro, quando
Francisco desceu de Annecy para Avignon. «Mas desta vez, o Pai e
a Filha não tiveram ocasião de se falar. Este bem-aventurado orde-
nou-lhe que fosse visitar as nossas casas de Montferrand e de Sain-
t-Étienne».
No dia 12 de dezembro, a Madre de Chantal, regressada de Lyon,
esperava encontrar de novo Francisco. Para ter mais tempo livre,
ambos se haviam mesmo «libertado da pressão dos outros assun-
tos». Minha Madre, diz Francisco, teremos algumas horas livres.
Qual de nós dois começará a apresentar o que tem a dizer?»… «A
nossa digna Madre (narra a Madre de Chaugy nas suas memó-
rias) que era mais ardente e que tinha mais cuidado da sua alma
do que de tudo o resto, respondeu prontamente: «Eu, se faz favor,
meu Padre: o meu coração tem grande necessidade de ser revisto
por si»… «Minha Madre, replicou-lhe Francisco, falaremos de
nós mesmos em Annecy, agora terminemos os assuntos da nossa
Congregação…» A Madre de Chantal dobrou o bilhete onde havia
apontado os assuntos da sua alma e «desdobrou os que ela havia
feito dos assuntos do Instituto». Ambos conferiram durante «quatro
longas horas»; depois Francisco deu ordem a Madre de Chantal de
ir visitar os mosteiros de Grenoble, Valence, Belley, Chambéry…
Abençoou-a e disse-lhe adeus.
A perfeição da amizade espiritual, consiste em renunciar a si
mesma para que a alma possa envolver-se toda inteira no serviço

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de Deus e do próximo: aí está a meta verdadeira da «Vida de Santa
Caridade», a meta para a qual Francisco encaminha, etapa por
etapa, a alma que se confia à sua alçada. Então esta alma atinge em
plenitude «a liberdade do santo amor».
«Na noite de Natal, à meia-noite, celebrou diante das suas que-
ridas filhas da Visitação e fez-lhes uma exortação toda cheia de
carinho. Ao amanhecer, foi ouvir de confissão os príncipes do
Piemonte e celebrou para eles a missa da Aurora». Às onze horas,
celebrou a sua terceira missa. «Depois de jantar, impôs o hábito da
Visitação a duas raparigas e pregou com grande fervor». No dia
seguinte, «tratou de vários e diversos assuntos».
Na terça-feira 27 de dezembro, dia da festa de S. João Evangelista,
por volta das «duas horas da tarde… teve um desfalecimento». Os
seus servidores acorreram e puseram-no de cama. Após um longo
dia de agonia que uma intervenção cirúrgica à moda do tempo –
a aplicação do «ferro de cauterizar» – tornou muito dolorosa, «o
santo bispo entregou doce e tranquilamente a sua muito inocente
alma a Deus». Era o dia 28 de dezembro, na festa dos santos Ino-
centes, às oito horas da noite.
Nos momentos mais penosos da sua doença e da sua agonia,
Francisco repetia estes dois nomes: Jesus! Maria!
Nos dias da sua sagração, Francisco de Sales havia escolhido por
modelo do seu episcopado, o santo bispo de Milão, Carlos Borro-
meu. O seu desejo foi cumulado: «Para os prelados do seu tempo»,
ele foi «outro S. Carlos de cá dos montes». Muitos ousaram dizer
mais ainda: «É preciso chamar-lhe a imagem do Homem-Deus»,
havia declarado um dia o grande prior de França no Conselho do
Rei. A imagem do Homem-Deus? Sim, pelo coração: Francisco de
Sales tinha sobretudo um coração semelhante ao Coração de Jesus
Cristo…
Um dia, era em 1616, fez à Madre de Chantal esta preciosa con-
fidência: «Não há almas no mundo que amem mais cordial, mais
ternamente e, para dizer tudo, em boa fé, mais amorosamente do

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Apoteose de S. Francisco de Sales, vitral
(Annecy, Basílica da Visitação).

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São Francisco de Sales
que eu; com efeito, agradou a Deus fazer o meu coração assim.
Todavia, eu amo as almas independentes, vigorosas e que não são
efeminadas; porque esta tão grande ternura baralha o coração,
inquieta-o e distrai-o da oração amorosa para com Deus, impede a
inteira resignação e a perfeita morte do amor próprio. O que não é
Deus, não é nada para nós. Como pode ser que eu sinta isto, eu que
sou o mais afetuoso do mundo, como sabe, minha querida Madre?
Na verdade, porém, eu sinto-o; mas é maravilhoso como eu con-
cilio tudo isto juntamente, pois parece-me que não amo senão a
Deus e todas as almas por Deus».
«O mais afetuoso» e ao mesmo tempo perfeitamente «indife-
rente», o mais livre: que confidência! Francisco confessa aqui
para que ideal ele tendia e fazia tender as almas. Mas acrescenta:
«Como pode ser?…». Sim, um tal estado espiritual é um mistério
da graça, ao mesmo tempo que um mistério do coração humano!
Para alcançar esta «perfeição do divino amor», não há, portanto,
método, senão que o coração do homem se abandona, loucamente,
ao Amor de Deus, «num perfeito desnudamento de si mesmo».
Eis, por fim, o segredo que o bispo de Genebra nos revela com a
sua vida e com a sua obra.
O Deus de Francisco de Sales é mesmo «o Deus do coração
humano».
A. Ravier, s.j

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Posfácio
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POSFÁCIO
Uma palavra sobre o autor deste livro
Esta biografia de S. Francisco de Sales foi publicada pelo padre
André Ravier (1905-1999) uns vinte anos antes da sua obra mais
conhecida: Francisco de Sales: um douto e um santo.43
Após a morte de Ravier, na introdução ao seu necrológio44, Jean
Sainclair perguntava-se que perspetiva privilegiar para descrever
a sua vida. Com efeito, ele foi docente, escritor, educador, mas
também homem de governo como reitor do colégio e provincial
dos jesuítas de França… Todavia, ele foi sobretudo um homem que
encontrou Deus e quis oferecer a muitos outros a possibilidade de
viver a mesma experiência, como podemos constatar pelas suas
inúmeras obras.
Nascido a 3 de junho de 1905 em Poligny no Jura francês, o
jovem André Ravier foi educado no colégio de Notre Dame de Mont
Roland de Dole. Depois do bacharelado em filosofia (1922) entrou
no noviciado dos jesuítas na colina de Lyon, próximo do célebre
santuário mariano de Fourvière. Completado o primeiro ciclo em
filosofia na Universidade Católica de Lyon, transferiu-se para Gre-
noble onde tirou uma licenciatura em letras e filosofia com uma
tese sobre a imagem de Deus na filosofia religiosa de Jules Lache-
lier. Em1937 é ordenado sacerdote.
43 André RAVIER, Un sage et un saint, François de Sales, Paris, Nouvelle Cité 1985
(trad. ital. Francesco di Sales. un dotto e un santo, Milano, Jaca Book 1987).
44 Cf. Compagnie. Courrier de la Province de France, n. 333 (décembre 1999), pp.
191-194.

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São Francisco de Sales
Terminado o serviço militar, lecionou grego, filosofia e francês no
colégio de Yzeure. Aqui, juntamente com dois confrades, fundou
uma associação estudantil que tinha como objetivo, além do
acompanhamento espiritual dos jovens, a sua formação completa,
humana, religiosa, intelectual e social. No tempo livre empreen-
deu um doutoramento de pesquisa na École des hautes études da
Sorbona sobre o Émile de Jean-Jacques Rousseau.
No início da Segunda Guerra Mundial foi recrutado como sub-
tenente do exército francês. Sobreviveu miraculosamente aos pri-
meiros dias turbulentos de guerra, mas durante um bombardea-
mento perdeu quase todos os materiais da tese. Teve de escrever o
texto de novo à base de notas e fragmentos provisórios.
Em setembro de 1941, depois da discussão da tese, Ravier
voltou para Lyon. Durante oito anos foi prefeito e depois reitor do
Collège Sainte-Hélène, onde pôs a render os seus estudos peda-
gógicos.
Em 1951 é nomeado provincial dos jesuítas. Era um momento
particularmente crítico, pouco depois da encíclica Humani Generis
de Pio XII e dos “affaires de Fourvière”. Fourvière era sede do estu-
dantado teológico dos jesuítas franceses. Ali lecionavam teólogos
de grande relevo como Pierre Teilhard de Chardin, Henri de Lubac
e outros.
O seu ensino teológico, porém, havia sido julgado excessiva-
mente atento ao método histórico-crítico, demasiado ligado à
atualidade cultural. Roma tinha intervindo com pesadas censuras.
Como provincial, o padre Ravier mostrou-se atento e delicado para
com os irmãos condenados, procurou compreendê-los e encorajá-
-los. Mostra-o a sua correspondência com Teilhard de Chardin,
exilado nos Estados Unidos. T. de Chardin, no auge da crise, escre-
via a um amigo: “Recebi uma carta extremamente amável e com-
preensiva do meu provincial de Lyon [André Ravier].
É a primeira vez que um superior me pede que fale livre e cons-
trutivamente com ele… Tais gestos valem mais do que todos os

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Posfácio
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decretos para me ligar à Ordem e mais em geral à Igreja, isto para
mim é importante”45.
Quando terminou o mandato como provincial, Ravier pôde
finalmente dedicar-se à sua vocação: a de escritor. Publicou livros
apreciados sobre o Cura d’Ars e Bernardete Soubirous e sobre a
espiritualidade de santo Inácio de Loyola, depois de uma viagem
a Roma que lhe permitiu mergulhar nos arquivos da Companhia.
Neste período descobriu pouco a pouco são Francisco de Sales,
Cláudio de la Colombière, são Bruno o Cartuxo e santa Colette de
Corbie.
Entre 1962 e 1968 foi reitor do colégio Saint-Louis-de-Gonza-
gue em Paris. Como ele escreveu, foram “seis anos maravilhosos,
mas também difíceis”. Eram tempos de contestação e de luta, mas
também belas ocasiões de reflexão sobre a identidade católica do
colégio e sobre as transformações socioculturais. Seguramente ’68
foi para ele um ano de prova.
Depois daquele cargo, é transferido para o belíssimo castelo de
Les Fontaines de Chantilly, situado numa zona de floresta a qua-
renta quilómetros de Paris. Era o lugar ideal para o padre Ravier:
tinha à disposição uma grande biblioteca e a tranquilidade neces-
sária para o trabalho intelectual. Desde aquele momento, foi escri-
tor a tempo inteiro. Em vinte e dois anos publicou uma centena
de trabalhos entre livros, artigos e contributos de vário género, de
caráter espiritual e histórico.
Ser escritor não era simplesmente a sua segunda vocação ou
uma nova vocação. Ele tinha a escrita no sangue. Desde os anos
em que era prefeito no colégio de Yzeure e depois quando pro-
vincial – como se lê no necrológio – dedicou todo o tempo livre
dos fins de semana à escrita. Escreveu monografias para diversos
45 Pierre TEILHARD DE CHARDIN, Lettres intimes à Auguste Valensin, Bruno de
Solages, Henri de Lubac, André Ravier 1919-1955. Introduction et notes par Henri
de Lubac, Paris, Aubier Montaigne 1974, p. 418 in nota.

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São Francisco de Sales
institutos religiosos. Gostava da pesquisa arquivística. Não a fazia
só para reconstruir a história daquelas congregações e dos seus
fundadores, mas para compreender a sua espiritualidade e iden-
tidade carismática. Tinha um estilo pessoal de redigir os livros:
gostava de os ilustrar com imagens de lugares e objetos, com fotos
e desenhos, com documentos. Os seus escritos conseguiam com-
binar de modo natural história e espiritualidade. Assim escreveu
de são Bruno, Francisco de Sales, Bernardette Soubirous, Inácio
de Loyola, Cláudio de la Colombière, Colette de Corbie e do Cura
d’Ars. Publicou também resumos de conferências, livros sobre a
espiritualidade da vida quotidiana, linhas-guia para a educação
católica, descrições de igrejas e de obras de arte, meditações sobre
a experiência do silêncio, sobre as várias formas da oração, sobre a
Igreja, sobre Lourdes… Foi traduzido para inglês, italiano, alemão,
holandês e espanhol. Os seus escritos foram publicados e reimpres-
sos mesmo depois da morte46.
Nos últimos anos, a saúde piorou lentamente. A mente estava
lúcida, mas tornava-se-lhe cada vez mais difícil caminhar. Trans-
feriu-se para Paris em 1994, para a casa de saúde jesuíta no centro
histórico, onde continuou a escrever e a preparar os seus livros.
Escrever era o seu modo de fazer pastoral, de catequizar, de
anunciar o Evangelho e de falar de Deus. Num dos últimos artigos
deteve-se no tema da presença de Deus, sintetizando tudo quanto
havia querido transmitir aos leitores nas suas múltiplas obras: isto
é, como pode o homem experimentar Deus e aproximar-se d’Ele.
“Como pode um coração humano compreender alguma coisa
d’Aquele que se definiu: «Eu sou Aquele que é»? […] Só a expe-
riência nos permite perceber algum sinal da sua Presença. O certo
é que Deus se torna constantemente presente ao homem, chama-o
46 Por exemplo: Mystique et pain quotidien, Paris, Parole et Silence 2002; Saint Bruno.
Le Chartreux, Paris, Lethielleux 32003; En retraite chez soi, Paris, Parole et Silence
52015.

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para se encontrar com Ele, mas aguarda que o homem O procure e
vá ao seu encontro”47.
O primeiro parágrafo do artigo contém uma profissão de fé
pessoal, profunda e vivida. Deus está desde sempre e em todo
o lado, porque Ele criou tudo; tudo nos foi dado por Ele. Deus
está sempre e em toda a parte presente no homem, formado à sua
imagem e semelhança. Revelou-se ao longo da história e, na ple-
nitude dos tempos, com a encarnação, aconteceu o auge da revela-
ção. No seu Filho unigénito o Verbo fez-se homem. Quem encon-
tra Cristo encontra Deus.
No segundo parágrafo, ele pergunta-se porque é que o homem
permanece tão insensível à presença de Deus. Como é que nós não
sentimos nem vemos? Há aqui um toque muito pessoal que faz
da sua escrita algo mais do que uma simples reflexão teológica:
é o resultado de longos anos de busca e de meditação. É a síntese
muito densa do seu pensamento e da sua experiência de vida
interior. Ele leva o leitor pela mão, mostra-lhe os obstáculos que
impedem aproximar-se de Deus e oferece os seus conselhos para
um caminho espiritual eficaz, conselhos inspirados no seu grande
modelo, na sua fonte por excelência, S. Francisco de Sales.
Colocar-se na presença de Deus, escreve Ravier, é antes de tudo
um ato de fé. Devemos ter consciência de que Deus está presente,
nos vê, nos escuta, nos ama. É um facto que todos sabemos, mas
ao qual não damos grande valor. Estamos constantemente imersos
no fluxo de amor que dimana do Pai: ali, naquele amor, podemos
experimentar em profundidade a presença de Deus, como ensina
Francisco de Sales no Tratado do amor de Deus.
O crente deve gradualmente passar do colocar-se na presença de
Deus ao viver “constantemente” na presença de Deus. Isto, escreve
Ravier, não é fácil. Pensamos que a nossa natureza humana não
47 André RAVIER, Présence de Dieu, présence à Dieu, in “Revue des sciences reli-
gieuses » 70 (1996) n. 3, p. 353.

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São Francisco de Sales
no-lo permite, pois somos naturalmente distraídos, fracos. Mas
Deus conhece-nos como somos, sabe quem somos e apesar de
tudo ama-nos imensamente. Portanto, como ensina S. Francisco
de Sales, não sonhes ser o que não és, mas deseja ser o que és…
Não estejas à espera de que tudo seja perfeito, pois Deus acolhe
cada um como é.
Uma vez mais, Ravier usa as palavras do bispo de Genebra:
“O máximo do êxtase amoroso não consiste em buscar a própria
vontade, mas a de Deus e não buscar satisfação na própria vontade,
mas na de Deus”. Sentir a presença de Deus é perder-se completa-
mente n’Ele: é esta a nossa razão de vida. O abandono em Deus, a
unidade total entre o crente e o Criador, não é apenas a finalidade
última da existência humana, mas é também a sua fonte e a sua
causa.
Este é o núcleo fundamental, o coração e alma da obra de André
Ravier. Através dos seus livros quer guiar-nos à única transforma-
ção necessária na vida: a do abandono em Deus e da união com
Deus. Depois de haver lido, relido e meditado as suas obras, os
livros e os artigos por ele escritos, não podemos deixar de concluir
que ele mesmo seguiu primeiro este caminho que lhe foi indicado
pelos santos que ele estudou. Anima-nos a fazer o mesmo.
Wim Collin, sdb.

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«O homem que melhor reproduz o Filho de Deus vivo na
terra». Assim S. Vicente de Paulo, no processo de canonização
de Paris, testemunhava as altas virtudes de Francisco de Sales.
Esta biografia apresenta, de modo particularizado e apaixonado,
um original retrato espiritual do Santo.
Francisco de Sales é alguém que quis, como Jesus Cristo na
terra, amar a Deus com todo o seu coração de homem e que,
tendo experimentado as exigências e a doçura deste dom,
trabalhou para introduzir o maior número de almas naquilo
a que ele chama magnificamente “a eterna liberdade do amor”.
Os traços salientes da vida se Francisco: o seu coração de
homem, sacerdote, bispo, fundador; a sua extraordinária
capacidade de guia espiritual para quem se confiava a ele.
André Ravier, (1905-1999), jesuíta, já como superior provincial na sede de Lyon,
cultivou sempre os estudos de espiritualidade. Interessou-se sobretudo por algumas
figuras de santos: Inácio de Loyola, Bernardete Soubirous, Joana de Chantal, Francisco
de Sales, o Cura d’Ars, dos quais redigiu célebres biografias.
Setor da Formação
Sede Centrale Salesiana