BOZZOLO%2C Sonhos_dos_nove_anos pt-br


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ANDREA BOZZOLO
O SONHO DOS NOVE ANOS
Leitura teológica

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O SONHO DOS NOVE ANOS

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ANDREA BOZZOLO
O SONHO DOS NOVE ANOS
Leitura teológica
Tradução
Dom Hilário Moser
P. José Antenor Velho
2023

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Dados internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)
B793s
Bozzolo, Andrea.
O sonho dos nove anos: leitura teológica/ Andrea
Bozzolo; Dom Hilário Moser e P. José Antenor Velho
(trad.) – Brasília: Edebê Brasil, 2023.
116p.
Título original: il sogno dei nove anni
ISBN 978-65-5885-506-4 (Impresso)
978-65-5885-507-1 (Digital)
1. Teologia. I. Moser, Dom Hilário. II. Vellho,
P. José Antenor. Título.
CDU 2
(Mayara Cristovão da Silva / CRB 2812 / Brasília, DF, Brasil)
Diretor-geral: Nivaldo Pessinatti
Coordenadora editorial: Giovanna Farago
Tradutores: Dom Hilário Moser e P. José Antenor Velho
Editora de texto: Pamella Oliveira
Editora assistente de texto: Mariana Fernandes dos Santos
Revisora: Zeneida Cereja da Silva
Supervisor de produção editorial: Anderson B. de Figueiredo
Produtor gráfico: Luciano da Conceição Sant’ana
Produtor digital: Marcílio Canuto
Diagramador responsável: Marcílio Canuto
Capista: Roberta Braga
Texto © by LAS - Libreria Ateneo Salesiano, 2023
Título original: il sogno dei nove anni - Leitura Teologica
Todos os direitos reservados.
Editora Edebê Brasil Ltda.
SHCS CR Quadra 506, Bloco B, Loja 59
Asa Sul — Brasília-DF CEP 70350-525
Site: www.edebe.com.br

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................ 7
O SONHO DOS NOVE ANOS:
QUESTÕES HERMENÊUTICAS E LEITURA TEOLÓGICA..... 9
1. Fontes............................................................................................ 14
2. Questões hermenêuticas............................................................. 22
2.1. Memória, narração e história............................................ 25
2.2. A experiência onírica......................................................... 33
2.3. O fenômeno extraordinário............................................... 42
3. Leitura teológica.......................................................................... 55
3.1. Estrutura narrativa e movimento onírico......................... 55
3.1.1. Personagens e estrutura.............................................. 58
3.1.2. A tensão narrativa....................................................... 62
3.1.3. O movimento intencional.......................................... 68
3.2. Pano de fundo bíblico......................................................... 72
3.3. Temas espirituais.................................................................. 84
3.3.1. A missão oratoriana.................................................... 84
3.3.2. O apelo ao impossível................................................. 93
3.3.3. O mistério do Nome................................................. 100
3.3.4. A mediação materna................................................. 105
3.3.5. A força da mansidão................................................. 110
5

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APRESENTAÇÃO
Em 2024 ocorre — com certo grau de aproxima-
ção — o bicentenário do “sonho dos noves anos” de
Dom Bosco. Essa recorrência remete a um dos acon-
tecimentos que Dom Bosco considerou dentre os mais
relevantes na sua experiência pessoal e mais determi-
nante para sua missão. Ele mesmo afirma nas Memó-
rias do Oratório que aquele sonho lhe ficou “profunda-
mente impresso na mente por toda a vida” e lhe atribui
particular valor prefigurativo do desenvolvimento de
sua obra. Não só. Em 1858, quando vai a Roma para
tratar com Pio IX do nascimento da Congregação e
este lhe pede que narre “minuciosamente tudo que ti-
vesse até mesmo somente aparência de sobrenatural”,
ele refere ao Papa precisamente este sonho. E o Papa
lhe dá ordens para que “o ponha por escrito em seu
sentido literal, minuciosamente, e que o deixe como
encorajamento para os filhos da congregação”.
Os filhos e as filhas de Dom Bosco sempre consi-
deraram essa narração como uma página “sagrada”,
repleta de sugestões carismáticas e de força inspira-
dora. Verdade é que o caráter evanescente da expe-
riência onírica, a grande distância de tempo (cerca
de cinquenta anos) entre o momento do sonho e sua
redação, a dificuldade de avaliar a natureza “sobre-
natural”, levantam uma série de perguntas acerca da
consistência efetiva do acontecimento narrado pelo
santo. Penso que seja importante não fugir dessas per-
guntas, precisamente para não permitir que um texto
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O SONHO DOS NOVE ANOS
de extraordinário valor acabe simplesmente confina-
do no âmbito de uma narração romântica ou de litera-
tura edificante.
Alguns anos atrás experimentei confrontar-me
com essas interrogações e, com base em reflexões
argumentadas, tentei sugerir algumas linhas de res-
posta, que considero ainda convincentes. Nasceu um
estudo que enfrenta questões hermenêuticas (mais
complexas) e propõe uma leitura teológico-espiritual
(mais modesta) do sonho. O ensaio já foi publicado
pela LAS, em 2017, no contexto de uma volumosa
pesquisa sobre os sonhos de Dom Bosco, à qual re-
meto o leitor desejoso de maior aprofundamento. O
bicentenário parece uma ocasião oportuna por tor-
ná-lo disponível também nesta forma independente,
mais acessível e leve.
Espero que este trabalho nos ajude na escuta
prolongada e meditativa das palavras com que
Dom Bosco nos entregou este acontecimento íntimo
que está na origem do nosso carisma.
P. Andrea Bozzolo
Reitor da Universidade Pontifícia Salesiana
8

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O SONHO DOS NOVE ANOS
QUESTÕES HERMENÊUTICAS E
LEITURA TEOLÓGICA
Andrea Bozzolo
A narração feita por Dom Bosco nas Memórias
do Oratório sobre o sonho que teve aos nove anos
de idade é um dos textos mais relevantes da tradição
salesiana. Esta narração acompanhou de modo vital
a transmissão do carisma, tornando-se um dos seus
símbolos mais eficazes e uma das suas sínteses mais
eloquentes. Por isso, o texto chega ao leitor que se
reconhece nessa tradição espiritual com as caracte-
rísticas de uma página “sagrada”, que reivindica uma
credibilidade carismática incomum e exerce uma
consistente energia performática, que toca os afetos,
passa à ação e gera identidade. Nela, de fato, os ele-
mentos constitutivos da vocação salesiana são, ao
mesmo tempo, fixados de modo qualificado, como
um testamento a ser consignado às gerações futuras, e
reconduzidos, por meio da misteriosa experiência do
sonho, à sua origem transcendente. Como nas gran-
des páginas bíblicas, o movimento para a realização e
a referência à Origem entrelaçam-se inseparavelmen-
te na narração.
Com efeito, na acolhida dos herdeiros, a nar-
ração exerceu uma história rica de efeitos, geran-
do uma verdadeira communitas de leitores, que se
9

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O SONHO DOS NOVE ANOS
identificaram com a sua mensagem. São inúmeros
os homens e as mulheres, consagrados e leigos, que
nela encontraram inspiração para o discernimento da
sua vocação e a realização do seu serviço educativo e
pastoral. A amplitude desta história dos efeitos instrui
desde o início aqueles que se preparam para analisar
o texto sobre a delicadeza da operação hermenêutica
que estão iniciando. Estudar este sonho significa não
só investigar um evento ocorrido há cerca de duzentos
anos na vida de um menino, mas intervir criticamente
em um vetor espiritual, em um símbolo identificador,
em uma narração que, para o mundo salesiano, tem o
peso de um “mito de fundação”. Uma narração não
pode adquirir tal força geradora sem que haja uma ra-
zão profunda para isso, e o estudioso não pode deixar
de se questionar para compreender a sua natureza.
Por outro lado, a história dos efeitos do sonho di-
zia respeito, mesmo antes dos herdeiros espirituais,
à própria experiência do fundador. Dom Bosco narra
que, desde a noite em que aconteceu, o sonho ficou-
-lhe “profundamente impresso na mente por toda a vi-
da”,1 tanto mais que foi “renovado em outras ocasiões
de modo muito mais claro”,2 sugerindo-lhe a direção
* Tradução: Dom Hilário Moser (parágrafos 2.1. e 2.2.) e P. José Ante-
nor Velho. Observações: 1. as citações bíblicas são de https://www.
bibliacatolica.com.br/; e 2. os textos das Memórias do Oratório, tra-
dução de Fausto Santa Catarina. Brasília: Editora Dom Bosco, 2012.
1 MO, p. 28-30.
2 MO, p. 79. O texto completo diz: “Ia-se aproximando o fim do ano
de retórica, época na qual os estudantes costumam decidir a própria
vocação. O sonho de Murialdo estava gravado em minha memória;
havia-se até renovado de maneira muito mais clara, e assim, se lhe
10

2.3 Page 13

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O SONHO DOS NOVE ANOS
da sua existência e orientando-o no cumprimento da
sua missão. Ele também relembra nas Memórias do
Oratório o estado de espírito que o acometeu quando,
depois de se tornar padre e retornar ao povoado na
solenidade de Corpus Christi para celebrar ali uma
de suas primeiras missas, chegara enfim ao vilarejo
onde nascera:
Quando, porém, cheguei perto de casa e vi o lugar do
sonho dos 9 anos, não pude conter as lágrimas e disse:
“Quão maravilhosos os desígnios da Divina Providência!
Realmente Deus tirou da terra um pobre menino para
colocá-lo entre os príncipes do seu povo”.3
Quando foi a Roma em 1858 para tratar da funda-
ção da Congregação e Pio IX “fez contar pormenori-
zadamente tudo quanto tivesse ainda que só a aparên-
cia de sobrenatural”, Dom Bosco expôs o sonho ao
Papa, recebendo a ordem de “escrevê-lo literalmente e
com pormenores, e deixá-lo como estímulo aos filhos
da Congregação”.4 Outra confirmação de que aquela
experiência noturna permaneceu um ponto de referên-
quisesse dar fé, devia optar pelo estado eclesiástico, ao qual justa-
mente me sentia inclinado. Porém, a pouca fé nos sonhos, meu es-
tilo de vida, certos hábitos do meu coração e a falta absoluta das
virtudes necessárias para esse estado tornavam duvidosa e bastante
difícil a decisão nesse sentido”.
3 MO, p. 112-113.
4 MO, p. 30. A primeira visita de Dom Bosco a Roma aconteceu entre
21 de fevereiro e 14 de abril de 1858. Ele encontrou o Papa várias
vezes, nos dias 9, 21 (ou 23) de março e em 6 de abril. Segundo
Lemoyne, foi no segundo encontro (21 de março) que o Papa ouviu
a narração do sonho e ordenou a Dom Bosco que a redigisse. Sobre
essa viagem, cf. P. BRAIDO. Dom Bosco padre dos jovens no século
da liberdade. São Paulo: Editora Salesiana, 2008, 1, p. 391s.
11

2.4 Page 14

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O SONHO DOS NOVE ANOS
cia essencial durante toda a vida de Dom Bosco pode
ser encontrada em um episódio bem documentado da
velhice do santo.5 Dom Bosco estava em Roma para
a solene consagração da Igreja do Sagrado Coração,
de cuja construção ele havia se encarregado a pedido
de Leão XIII. Na manhã de 16 de maio de 1887, foi
celebrar no altar de Maria Auxiliadora, mas duran-
te a celebração viu-se obrigado a parar várias vezes,
tomado por uma intensa comoção que o impedia até
mesmo de falar. Quando retornou à sacristia e recupe-
rou a calma habitual, o Padre Viglietti, que o assistira
durante a missa, interrogou o idoso sacerdote sobre o
motivo das suas lágrimas, e ele respondeu: “Eu tinha
[...] tão viva diante dos meus olhos a cena de então,
quando eu tinha dez anos, sonhei com a Congregação,
e via e ouvia tão bem os meus irmãos e a minha mãe a
discorrer e questionar sobre o sonho que tive”.6 Dom
Bosco, já no fim da vida, finalmente compreendeu em
todo o seu significado a mensagem que lhe fora co-
municada no sonho como uma palavra aberta ao futu-
ro: “A seu tempo, tudo compreenderás”. Ao relatar o
episódio, Lemoyne observa: “Sessenta e dois anos de
trabalho árduo, sacrifícios e lutas se passaram desde
aquele dia, e um lampejo repentino revelava-lhe, na
construção da Igreja do Sagrado Coração em Roma,
5 Stella afirma que temos “testemunhos sólidos” deste acontecimento
(PST1, p. 32).
6 C. M. Viglietti, Cronaca di don Bosco. Prima redazione (1885‑1888).
Introducción, texto crítico e notas por Pablo Marin Sànchez. Roma:
LAS, 2009, p. 207.
12

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O SONHO DOS NOVE ANOS
o coroamento da missão que lhe fora misteriosamente
anunciada no início da sua vida”.7
Seja qual for a maneira de entender os contornos
daquela experiência onírica infantil e de especificar
os detalhes da sua narração, pode-se concordar plena-
mente com o que Stella diz sobre a importância que
ela teve na consciência de Dom Bosco:
O sonho dos nove anos não foi para Dom Bosco
como muitos outros que ele deve ter tido em sua infância.
Além dos problemas relacionados com ele, ou seja, com
a sua lembrança, com os textos que o transmitiram até
nós; além da questão, hoje insolúvel, sobre a época em
que realmente aconteceu, e sobre as circunstâncias que
possivelmente o provocaram e deram imediatamente as
implicações fantásticas; além de tudo isso, resulta claro
que Dom Bosco foi profundamente afetado por ele; ou
melhor, transparece que ele deve tê-lo sentido como uma
comunicação divina, como algo — ele mesmo diz — que
tinha a aparência (os sinais e as garantias) do sobrenatu-
ral. Para ele, foi como um novo caráter divino indelevel-
mente impresso em sua vida.8
O sonho dos nove anos, em suma, “condicionou
todo o modo de viver e de pensar de Dom Bosco. E,
em particular, o modo de sentir a presença de Deus
em sua vida e na história do mundo”.9
7 MB XVIII, p. 341.
8 PST1, p. 30.
9 PST1, p. 31s.
13

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O SONHO DOS NOVE ANOS
1. Fontes
O Sonho dos Nove Anos chegou até nós em di-
ferentes redações. Desramaut, abordando o pro-
blema das fontes das quais Lemoyne se valeu para
redigir as Memórias Biográficas, encontrou seis ver-
sões diferentes.10 A primeira (A) é a que Dom Bos-
co escreveu nas Memórias do Oratório.11 A segunda
(B) consta do depoimento de Cagliero no processo
ordinário de canonização; Cagliero diz que ouviu
o sonho de Dom Bosco em 1858-59, depois de ter
recebido, durante a sua viagem a Roma, a ordem
de Pio IX para redigi-lo.12 A terceira (C) é do Padre
Barberis, que repete substancialmente a versão de
10 F. Desramaut, Les Memorie I de Giovanni Battista Lemoyne. Etude
d’un ouvrage fondamental sur la jeunesse de saint Jean Bosco, Maison
d’études Saint Jean Bosco, Lyon 1962, 250-256. A pesquisa é reto-
mada e desenvolvida por A. Lenti. Don Bosco’s Vocation-Mission
Dream. Its Recurrence and Significance. In: Journal of Salesian Stu‑
dies, 2 (1991), p. 45-156. Cf. também ID., Don Bosco storia e spirito.
1. Dai Becchi alla Casa dell’Oratorio (1815-1858). Roma: LAS, 2017,
p. 211-225 [Dom Bosco: história e carisma. 1. Dos Becchi a Valdocco
(1815-1858). Brasília: Editora Dom Bosco, 2012, p. 94s.].
11 A edição crítica encontra-se em MO, p. 34-37. P. Berto, secretário
de Dom Bosco, retomou este relato textualmente, obviamente
formulando-o na terceira pessoa, em seu depoimento no processo
ordinário de canonização, como se pode ler em Copia Publica
Transumpti Processus Ordinaria auctoritate constructi in Curia
Ecclesiastica Taurinensi super fama sanctitatis vitae, virtutum et
miracolorum Servi Dei loannis Bosco Sacerdotis Fundatoris Piae
Societatis Salesianae, 277r (= frente) - 279r.
12 Ivi, 1080v (= verso) - 1081r.
14

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Dom Bosco.13 A quarta (D) provém de José Turco,
colega de infância de Dom Bosco, transmitida por um
intermediário não identificado e coletada pelo Padre
Lemoyne.14 A quinta (E) é a exposição do P. Rua no
processo ordinário do relato ouvido de Lúcia Turco,
irmã de José.15 A sexta (F) é o brevíssimo relato que
o próprio José Turco fez durante o processo.16 Desra-
maut ressalta que as formas A, B e C têm Dom Bosco
como fonte direta, enquanto D, E e F dependem das
recordações transmitidas na família Turco.
Lemoyne, baseando-se na afirmação de Dom Bosco
de que o sonho se repetira várias vezes e entregan-
do-se à sua inclinação de manter todas as fontes à
sua disposição, reportou as diferentes versões do so-
13 Em sua forma mais antiga, encontra-se, sem indicação de origem,
em G. B. Lemoyne, Documenti per scrivere la storia di D. Giovanni
Bosco, dell’Oratorio di S. Francesco di Sales e della Congregazione
Salesiana, I, p. 153.
14 Ivi, I, p. 68-69.
15 “Lúcia Turco contou-me que, pertencendo a uma família onde Dom
Bosco ia com frequência para estar com seus irmãos, que uma ma-
nhã o viram chegar mais alegre do que de costume. Perguntado so-
bre a causa, ele respondeu que havia tido um sonho durante a noite,
que o havia animado. Quando lhe pediram para contar o sonho, ele
disse que tinha visto uma Senhora majestosa vindo em sua direção,
com um rebanho muito numeroso atrás de si, e que, ao se aproximar
dele, chamou-o pelo nome e disse: ‘Eis aqui Joãozinho: confio todo
esse rebanho aos teus cuidados’. Soube então por outros que ele per-
guntou: ‘Como cuidarei de tantas ovelhas e tantos cordeiros? Onde
encontrarei pastagens para mantê-los?’. A Senhora lhe respondeu:
‘não temas, eu te assistirei’ e depois desapareceu” (Copia Publica,
2476v).
16 “Quando era clérigo, ele também me contou certo dia que tivera
um sonho, que se estabeleceria em algum lugar, onde reuniria um
grande número de jovens para instruí-los” (Copia Publica... 768v).
15

2.8 Page 18

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O SONHO DOS NOVE ANOS
nho nas Memórias Biográficas, que são em grande
parte convergentes, atribuindo-as a diversas épocas.17
Desramaut, no estudo citado, discute a plausibilidade
da escolha de Lemoyne, considerando-a, em grande
parte, fruto de uma associação artificial, exceto talvez
no caso da versão D. De fato, é plausível, mesmo que
não seja demonstrável com argumentos históricos se-
guros, que João Bosco tenha falado ao amigo José
Turco sobre o sonho depois de uma das ocasiões em
que ele se repetira.
Em todo caso, a versão a que devemos nos referir
para o nosso trabalho é, sem dúvida, a que Dom Bosco
escreveu de próprio punho nas Memórias do Oratório.
A redação do sonho e de todos os fatos ligados à ori-
gem do Oratório foi solicitada, como já se disse, por
Pio IX em 1858. Dom Bosco, porém, impedido por
muitos compromissos e pela relutância em falar de si
mesmo, demorou-se em pôr-se ao trabalho. Por isso,
em 1867, em outra audiência, o Papa exortou-o nova-
mente a escrever as suas recordações. Depois de adiar
por mais seis anos, Dom Bosco finalmente em 1873
iniciou o manuscrito das Memórias, concluindo-o em
1875. Copiado em bela caligrafia pelo seu secretário,
17 No primeiro volume das Memórias Biográficas, Lemoyne reporta
fielmente a narração do sonho dos nove anos oferecida por Dom
Bosco nas Memórias do Oratório (MB I, p. 123-126); cruzando vá-
rias informações à sua disposição, ele atribui a versão transmitida
por Turco (D) a uma repetição do sonho ocorrida em 1831, quando
Dom Bosco tinha 16 anos (MB I, p. 243f.); a de Barberis (C), atribui
a uma nova repetição ocorrida em 1834, quando João tinha 19 anos
(MB I, p. 305s); e, enfim, a de Cagliero (B), à época em que João já
era clérigo (MB I, p. 424).
16

2.9 Page 19

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O SONHO DOS NOVE ANOS
P. Joaquim Berto, o texto foi revisado e corrigido pelo
autor em várias ocasiões até 1879.18
Com base nesses dados, podemos dizer que o so-
nho, ocorrido por volta de 1824 (não é possível ser
mais preciso quanto à data) e repetido várias vezes
nos anos seguintes “de modo muito mais claro”, foi
escrito por Dom Bosco cerca de cinquenta anos depois
do evento. Naquela época, ele já conseguia apreender
o significado da mensagem do sonho de uma maneira
mais rica e profunda do que havia intuído quando era
menino. A compreensão do sonho certamente cres-
cera nele pelas muitas experiências da vida, gerando
um desenvolvimento narrativo e interpretativo. Essa
evolução apresenta uma situação hermenêutica com-
plexa, da qual é preciso estar ciente. De fato, no texto
que lemos interagem entre si diversos horizontes tem-
porais: o tempo da realização (pelo menos parcial) do
sonho, que corresponde ao tempo em que Dom Bosco
o registra no manuscrito das Memórias, o tempo do
crescimento na sua compreensão, que começa com a
primeira narração à família e se desenvolve gradual-
mente na consciência do protagonista, o tempo crono-
lógico em que o sonho aconteceu e o tempo onírico,
aquela espécie de “tempo suspenso” ou “outro tempo”
18 Para as questões relativas à composição do manuscrito original da
cópia do P. Berto e das intervenções feitas por Dom Bosco, cf. a
Introduzione de E. Ceria à primeira edição impressa do documen-
to G. (san) Bosco, Memorie dell’Oratorio di S. Francesco di Sales dal
1815 al 1855. Torino: SEI, 1946, p. 6. F. Desramaut, Les Memorie I
de Giovanni Battista Lemoyne, p. 116-119; a Introduzione da edição
crítica MO, p. 18-19.
17

2.10 Page 20

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O SONHO DOS NOVE ANOS
que é interior à experiência noturna. Esses diversos
horizontes temporais, que se fundem na narração de
Dom Bosco, interagem, por sua vez, com o tempo
do leitor, com as suas expectativas, os seus questio-
namentos, as suas pré-compreensões, no interior de
uma tradição interpretativa que o transmitiu até nós.
Não é possível abordar seriamente o estudo do so-
nho sem estar ciente dessa multiplicidade de níveis,
de onde derivam importantes questões hermenêuticas
que tentaremos abordar na próxima seção. Antes de
nos aprofundarmos nelas, porém, devemos primeiro
colocar o sonho em seu contexto narrativo, ou seja,
no conjunto da obra que o transmitiu até nós.19
As Memórias do Oratório são um texto autobio-
gráfico em que Dom Bosco recolhe a história do
Oratório de São Francisco de Sales e as suas ques-
tões pessoais, com a intenção de deixar aos seus her-
deiros espirituais uma valiosa lição para o futuro.20
19 Para uma compreensão da lógica narrativa presente nas Memórias,
cf. o excelente ensaio de A. Giraudo, L’importanza storica e
pedagogico-spirituale delle Memorie dell’Oratorio. In: G. Bosco,
Memorie dell’oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815 al 1855. Roma:
LAS, 2011, p. 5-49.
20 Dirigidas aos salesianos, presentes e futuros, as Memórias são clara-
mente diferentes dos demais textos históricos anteriores escritos por
Dom Bosco: a Carta ao Vicario di Città, de 1846; o Cenno e os Cenni
storici de 1854 e 1862, que focalizam os eventos ligados ao início do
catecismo em São Francisco de Assis, depois transferido para o Refú-
gio da Barolo etc., até a chegada à Casa Pinardi. Esses textos eram des-
tinados às autoridades ou ao público ou aos benfeitores e apoiadores,
aos quais Dom Bosco queria oferecer um relato do surgimento e dos
objetivos da sua instituição, apresentando também as atividades que
ali se realizavam e os resultados educativos alcançados.
18

3 Pages 21-30

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3.1 Page 21

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O SONHO DOS NOVE ANOS
As intenções do autor são explicitadas desde as pri-
meiras linhas do manuscrito:
Para que servirá então este trabalho? Servirá de norma
para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições
do passado; servirá para dar a conhecer como o próprio
Deus conduziu todas as coisas a cada momento; servirá
de ameno entretenimento para meus filhos quando lerem
as aventuras em que andou metido seu pai; e haverão de
lê-las com mais gosto quando, chamado por Deus a pres-
tar conta dos meus atos, já não estiver entre eles.21
As Memórias são, portanto, uma narração edifi-
cante que pretende transmitir, por meio da seleção
e concatenação dos fatos, não só os acontecimentos
fundamentais que marcaram o nascimento do Orató-
rio, mas também o profundo segredo que deu origem
a essa experiência, que a tornou possível e a carac-
terizou de modo essencial. A obra, portanto, não é
uma mera crônica de eventos, mas revela claramente
a intenção de envolver o leitor na aventura narrada,
a ponto de torná-lo seu participante como uma his-
tória que lhe diz respeito e que, atraído pelo relato, é
chamado a continuar.22 Esse aspecto foi efetivamen-
21 MO, p. 23.
22 “O ápice da estratégia de atrair os leitores é alcançado com o sonho
da pastora, situado na passagem do Colégio Eclesiástico a Valdocco,
ou seja, da fase das experiências iniciais, de caráter predominan-
temente pessoal, àquela da realização final do Oratório de caráter
comunitário [...]. Nos cordeiros transformados em pastores [...] os
filhos de Dom Bosco foram e são convidados a se reconhecer como
continuadores da missão providencial, prevista desde o início, na
experiência profética do sonho, como parte viva da história” (A. Gi-
raudo, L’importanza storica, p. 19).
19

3.2 Page 22

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O SONHO DOS NOVE ANOS
te enfatizado por Pietro Braido, que cunhou a feliz
expressão memorie di futuro — memórias do futuro)
para destacar o caráter de testamento, antes mesmo
de ser um documento, que caracteriza a narração de
Dom Bosco.23
Nessa reconstrução interpretativa do passado, que
liga a gênese do Oratório à precisa história espiritual
do narrador, o sonho dos nove anos passa a desempe-
nhar um papel “estratégico”. É por meio dele que, de
fato, é oferecida a chave de leitura de toda a história,
individuando o fato prodigioso que constitui a sua
origem sobrenatural. Como fundamento do Oratório
de São Francisco de Sales e da Congregação religiosa
que nele surgiu, não há apenas a operosidade de um
padre generoso, mas uma verdadeira iniciativa divi-
na, da qual o sonho é a marca mais evidente.
Ressaltando o papel que o sonho tem na estrutura
narrativa das Memórias, Giraudo afirma:
Esse evento torna-se parte da estratégia do texto
como o verdadeiro início da “memória” oratoriana, de-
terminando a sua divisão em três décadas. Os Dez anos
de infância (1815-1824) são de fato representados como
um prelúdio significativo, mas não propriamente “orato-
riano”. Já a década de 1825-1835, a Primeira Década, co-
meça com o narrador retratando a si mesmo aos dez anos
de idade, com a intenção de cuidar das crianças fazendo
“o que era compatível com essa idade: uma espécie de
Oratório festivo”. Dessa forma, o início onírico, evocado
com artifícios literários emprestados da forma ficcional,
23 P. Braido. Scrivere “memorie” del futuro. RSS 11 (1992), p. 97-127.
20

3.3 Page 23

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O SONHO DOS NOVE ANOS
assume um valor especial: torna-se o prenúncio de um
texto histórico-literário, cujos significados, estratégias e
estruturas antecipa conscientemente; em suma, torna-se
um traço identificável de uma orquestração retórica vol-
tada às intenções do autor. É significativo que ele tenha
sido interpretado na tradição salesiana precisamente em
sentido profético-prefigurativo.24
O sonho coloca-se, pois, na arquitetura das Me-
mórias como a coluna da qual partem as arcadas da
narração. Em sua qualidade de acontecimento prodi-
gioso, constitui, de algum modo, a premissa decisiva
para a compreensão da lógica sobrenatural de tudo
o que se segue. Dom Bosco, certamente, não atribui
nenhum caráter fatalista a essa premissa, como se ti-
vesse encontrado de maneira convincente o seu des-
tino predeterminado. No desenvolvimento da narra-
ção, ele não oculta de modo algum a tortuosidade de
um caminho complexo de discernimento vocacional
do qual o sonho jamais o dispensou. No entanto, re-
lendo-o a posteriori a partir da sua posição de padre
e fundador, ele não pode deixar de entendê-lo como
uma manifestação antecipadora e profética. As pala-
vras com que sigila a narração — “O que vou dora-
vante expor dará a isso alguma explicação” — são um
claro testemunho disso.25
Reconhecidos esses elementos, a pergunta que o
estudioso de Dom Bosco e da sua experiência espiri-
tual deve necessariamente fazer a si mesmo não pode
24 A. Giraudo. L’importanza storica, p. 21s.
25 MO, p. 30.
21

3.4 Page 24

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O SONHO DOS NOVE ANOS
deixar de ser esta: a importância excepcional atribuí-
da por Dom Bosco a este sonho, a ponto de colocá-
-lo como chave de leitura das Memórias, é essencial-
mente o resultado de um artifício narrativo, movido
por intenções edificantes, ou exprime uma convicção
pessoal seriamente enraizada na realidade dos fatos?
Dito de outra forma e de maneira mais direta: Dom
Bosco exagera as nuances, enfatizando a magnitude
do evento a fim de atrair os seus leitores para a epo-
peia oratoriana, ou ele dá vida às cores originais de
um evento que foi em si mesmo excepcional? Há uma
grandeza originária no fato histórico ou ela deve ser
atribuída meramente à narração?
Diga-se claramente que da resposta que se der a
essas perguntas dependerá o modo de entender o tra-
balho da interpretação crítica: se ele deve assumir a
forma de uma desconstrução desmistificadora, como
maneira de acessar a verdade histórica real para além
da narração, ou se deve assumir a forma de uma acei-
tação fiducial (mas nem por isso ingênua) da narra-
ção, como caminho para encontrar através dela o va-
lor histórico do ocorrido.
2. Questões hermenêuticas
É necessário, mas muito exigente, responder às
perguntas postas pela narração do sonho. É necessário
porque afetam profundamente o modo de compreen-
der a experiência espiritual de Dom Bosco e o carisma
22

3.5 Page 25

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O SONHO DOS NOVE ANOS
que ele suscitou. Por mais que a grandeza de Dom
Bosco se baseie na santidade da sua vida e não nos fe-
nômenos extraordinários que a acompanharam, estes
não podem ser considerados irrelevantes e secundá-
rios, seja do ponto de vista histórico ou teológico. De
fato — obviamente em um nível derivado e analógico
— a mesma abordagem crítica aplicada ao prodigioso
na vida dos santos é aplicada pela teologia aos gestos
miraculosos de Jesus narrados nos Evangelhos. Tais
gestos não são redutíveis a elementos marginais, mas
“são um momento essencial na revelação do Reino,
que Jesus vinculou explicitamente ao seu anúncio
como sinais do Reino que já está aqui (Mt 12,28). Os
milagres de Jesus não são apenas um aspecto da sua
palavra: eles afirmam que a palavra de Jesus não é
doutrina, mas ação, uma ação que cura”.26 Eles são,
portanto, uma espécie de “assinatura” que o Pai colo-
ca nas obras do Filho encarnado, para mostrar que as
suas obras tornam a ação de Deus presente na história
e inauguram para os homens o tempo escatológico.
26 A. Bertuletti, Dio, il mistero dell’unico. Brescia: Queriniana, 2014,
p. 395s. “Intervindo contra as formas de doença que dão forma
concreta ao mal que ameaça a existência inteira, atualizam o com-
promisso de Deus com o homem e alcançam o seu efeito quando
confirmam a disposição radical que Jesus chamou de “fé”: a con-
vicção íntima de que a vontade de Deus em relação ao homem é
inequivocamente determinada em vista da sua salvação. [...] Isso
explica a analogia, enfatizada pelos evangelistas, entre milagres e
parábolas. Como os milagres, as parábolas unem a dimensão de
julgamento com a de edificação. Elas têm o objetivo de superar a
resistência que o homem opõe à aceitação da palavra de Deus por
causa da sua aparente falta de confiança. Sobreveio um evento no
presente que muda a face da terra, mas ele deve ser buscado para
ser compreendido” (p. 396).
23

3.6 Page 26

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Nos gestos taumatúrgicos de Jesus, o discípulo é,
então, convocado a contemplar a ação libertadora de
Deus, que cuida do homem, e a receber uma pala-
vra que o interpela pela fé. Não se trata obviamente
de uma questão que possa deixar alguém indiferente
àquela sobre o fato de a narração evangélica dar voz
a eventos reais, de modo a restaurar o seu significado
interpelativo, ou apenas a reconstruções enfáticas e
tardias, em última análise distantes da realidade histó-
rica. Guardadas as devidas proporções, a pergunta que
nos devemos fazer sobre o extraordinário na vida de
Dom Bosco e, em particular, sobre o sonho dos nove
anos, pertence à mesma ordem de considerações.
Formular a resposta, no entanto, é algo muito exi-
gente, pois implica enfrentar ao menos três ordens
de questões, com os quais procuraremos lidar ago-
ra, conscientes da sua complexidade e dos limites da
nossa pesquisa. Elas referem-se, respectivamente, à
relação entre memória, narração e história (§ 2.1.), à
natureza da experiência onírica (§ 2.2.) e aos critérios
teológicos que nos permitem abordar os fenômenos
extraordinários da vida espiritual e interpretar o seu
significado (§ 2.3.). Que confiabilidade pode ter uma
narração edificante, formulada cinquenta anos depois
dos eventos, para chegar à real qualidade da experiên-
cia? Supondo que a narração seja confiável, pode uma
experiência tão “vaga” como a do sonho ter uma rele-
vância tão forte a ponto de se propor, à luz dos fatos
posteriores e da sua interpretação crente, como a cha-
ve para interpretar a história de Dom Bosco? Tendo
24

3.7 Page 27

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O SONHO DOS NOVE ANOS
adquirido esses dados, é possível crer razoavelmente
que o sonho do menino de nove anos foi um fenôme-
no sobrenatural de natureza profética?
As três questões, é claro, estão intimamente en-
trelaçadas entre si, porque o eventual caráter sobre-
natural do sonho não pode deixar de ter um relevo
particular devido ao modo como o narrador preserva
a sua memória e as margens de liberdade narrativa
com as quais ele transmite a mensagem. Desse modo,
também a consistência antropológica reconhecida na
experiência do sonho afeta obviamente a possibilida-
de de ele ter uma forte relevância existencial e ser
espaço de comunicação divina. As três questões de-
veriam ser consideradas, de certa forma, em conjunto,
mas a sua complexidade e o desejo de ser claro, tanto
quanto possível, nesse tipo de questões (!), sugerem
que se proceda por partes. O leitor que tiver dificulda-
de para aceitar este raciocínio poderá dispensar-se do
esforço e ir diretamente ao comentário sobre o sonho.
2.1. Memória, narração e história
A reflexão mais madura sobre o tema da narração
provavelmente é a proposta pelo filósofo francês Paul
Ricoeur mediante a ideia de identidade narrativa,
formulada, primeiro, em Tempo e narração, no con-
texto de uma teoria da narração, e retomada, em se-
guida, em O si-mesmo como outro, no âmbito de uma
25

3.8 Page 28

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O SONHO DOS NOVE ANOS
teoria da identidade do indivíduo.27 O cruzamento das
duas perspectivas — a da narração e a da identidade
pessoal — é revelador, porque a tese de Ricoeur con-
siste em afirmar que o mundo do indivíduo e o mundo
do texto não podem ser entendidos como dois mun-
dos separados e autônomos, dos quais, o primeiro (a
narração) seria simplesmente o sinal (ficando sempre
aquém do original) do segundo (a realidade histórica,
em última análise, inatingível em sua realidade con-
creta). A teoria da identidade narrativa sustenta, pelo
contrário, que o indivíduo como tal e a narração só
podem existir contemporaneamente: o homem não
pode ter acesso a si mesmo, a não ser narrando a si
mesmo, e a narração não pode ser entendida, a não ser
mediante a disponibilidade a permitir que a própria
identidade sofra transformação.28
27 P. Ricoeur. Tempo e racconto I. Milano: Jaca Book, 1986; Tempo e
racconto II. La configurazione del racconto di finzione. Milano: Jaca
Book, 1987; Tempo e racconto III. Il tempo raccontato. Milano: Jaca
Book, 1988; ID., Dal testo all’azione. Saggi di ermeneutica. Milano:
Jaca Book, 1989; ID., Sé come un altro. Milano: Jaca Book, 1993;
ID., L’identité narrative, “Revue des sciences humaines” 95 (1991)
p. 35‑47.
28 Entre texto e ação há, portanto, sempre uma circularidade: são o
polo objetivo e o polo subjetivo da mesma atuação. O texto revela
a ação porque fornece o modelo para interpretá-la; a ação é como
um texto porque tem um projeto, uma intenção, um agente (o que
é, porque, quem). Por isso, a narração revela os traços específicos
da ação humana, a estrutura hierárquica das ações complexas, o seu
caráter histórico, a sua estrutura teleológica, isto é, a referência ao
horizonte total da vida. Por outro lado, a linguagem só é radical-
mente compreendida enquanto é ação: não só exprime alguma coisa
de já constituído, mas concorre para constituí-lo.
26

3.9 Page 29

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Na base dessa teoria está a tomada de consciência
da dialética que é interna ao que a linguagem chama,
com uma única palavra, identidade do homem. Neste
termo sobrepõem-se dois significados que na língua
latina são expressos por duas palavras diversas: idem
e ipse. O primeiro significado designa a identidade
como “mesmice” e implica a ideia de alguma coi-
sa que permanece e não muda; o segundo designa a
identidade do sujeito “como tal” (“ipseitas”) e indica
o que existe de próprio, de pessoal, de não estranho.
Mediante essa distinção, Ricoeur mostra que não se
pode compreender a identidade de uma pessoa so-
mente enquanto permanência no tempo de uma rea-
lidade igual a si mesma (idem), a não ser que seja
ao preço de perder sua irredutível identidade pessoal.
De fato, a identidade pessoal realiza-se na dialética
do que permanece e do que continuamente muda, e
por isso se assemelha mais a uma narração do que a
um objeto. O uso do mesmo nome para designar uma
pessoa do nascimento à morte não anula o fato de que
ela experimenta continuamente a mudança corpórea
e psíquica. O tempo vivido pelo indivíduo como tal
(ipse) nunca é reduzível ao tempo físico-cósmico,
mesmo que não seja separável. Segundo Ricoeur, o
conceito de narração pode fornecer um bom modelo
para acessar a “ipseitas” (identidade pessoal), porque
o processo de constituição de si organiza numa única
unidade uma sequência de eventos separados, confli-
tuosos e heterogêneos. A compreensão da vida huma-
na como uma unidade narrativa permite sintetizar a
27

3.10 Page 30

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O SONHO DOS NOVE ANOS
permanência e a mudança, sem que uma predomine
sobre a outra.29
Sendo assim, a teoria da identidade narrativa le-
vanta a questão da identidade pessoal para além da al-
ternativa entre um Eu que teria acesso imediato à pró-
pria identidade, resultando transparente a si mesmo, e
um Ele que se pode colher desde o exterior mediante
os instrumentos da reconstrução analítica, ou seja, um
ator histórico reduzido à sua representação objetiva.
A identidade pessoal não é nem a do Eu cartesiano,
nem a do Ele histórico, mas é a de um Si-mesmo, ao
qual se tem acesso somente mediante a narração. A
identidade pessoal não pode ser reconstruída na for-
ma de um conceito (ninguém exprime o Si-mesmo
simplesmente na forma abstrata de uma ideia), nem
mediante o modelo heurístico das ciências da natu-
reza (o Si-mesmo, por definição, nunca é objetivável
como um fato). A complexidade da experiência vi-
vida só pode ser reconstruída mediante a mimese da
narração que recolhe num entrelaçamento os aconte-
cimentos da existência. A mediação narrativa mostra
que o conhecimento de si é uma interpretação de si.
29 Como afirma Ricoeur, “a subjetividade não é nem uma sequência
incoerente de eventos, nem uma substancialidade imutável, inaces-
sível ao devir. É um tipo de identidade que somente a composição
narrativa pode criar com seu dinamismo [...]. A identidade narra-
tiva situa-se no meio [...] entre a pura mudança e a identidade ab-
soluta” (P. Ricouer. La vita: un racconto in cerca di narratore, em
ID., Filosofia e linguaggio, a cura di D. Jervolino, Milano: Guerini e
Associati, p. 169-185, 184s.).
28

4 Pages 31-40

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4.1 Page 31

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O SONHO DOS NOVE ANOS
A esses elementos teóricos é preciso acrescentar
duas observações. A raiz profunda pela qual o ho-
mem pode conhecer a si mesmo somente quando ele
se interpreta deve ser individuada no fato de que os
próprios acontecimentos da vida, e não simplesmente
a linguagem que os narra a distância, possuem uma
dimensão simbólica originária, que os torna irredu-
zíveis à mera facticidade empírica. Neles, o Si-mes-
mo acontece e não somente se manifesta. Por isso, a
memória que os articula na narração é a única chave
de acesso à qualidade intencional que eles possuem
e que constitui, para além de qualquer reducionismo
positivista, a forma singular da sua historicidade.30
Em segundo lugar, o ato com que o redator con-
figura a fábula do próprio discurso não termina sim-
plesmente no texto, mas se destina ao leitor. A leitura
é um momento crucial, pois, nela, a “fusão de hori-
zontes” reside na capacidade da narração de transfi-
gurar a experiência de quem a recebe. O texto sempre
convida o leitor a ver o mundo de forma diferente,
dado que a narração nunca é eticamente neutra, con-
vida também o leitor a agir de forma diversa. Portan-
to, não se pode ter acesso ao sentido do texto sem pôr
em jogo a configuração da própria identidade, o ho-
rizonte simbólico no qual se situa a própria história.
30 Por isso, também a obra mais cientificamente isenta de tendências
de um historiador ultimamente tem a forma de uma narração, que
define um ponto de partida e um ponto de chegada, alcançados atra-
vés de um entrelaçamento em que são postos em cena protagonistas
e outros atores na interação de uma trama. A história não pode ser
traduzida em teoria; ela só pode ser compreendida enquanto narra-
da, quer dizer, ela possui uma inteligibilidade narrativa.
29

4.2 Page 32

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Em função do problema com que nos ocupamos,
ou seja, do nexo entre memória, narração e histó-
ria na narração do sonho dos nove anos, a teoria de
Ricoeur oferece elementos teóricos de incontestável
interesse. Ela permite perceber com maior clareza
que a narração que Dom Bosco nos transmitiu de sua
experiência não pode ser vista como mera informa-
ção material do acontecimento, mas deve ser com-
preendida como a mimese narrativa mediante a qual
Dom Bosco configura a própria identidade, juntan-
do, num certo entrelace, os episódios de sua histó-
ria. Dessa forma, transmitindo-nos as Memórias do
Oratório, ele nos torna acessível seu Si-mesmo, numa
forma que não se poderia alcançar mediante a simples
reconstrução documentária.
O fato de que, na arquitetura narrativa das Memó-
rias do Oratório, o episódio do sonho figure como
elemento fundante, indica a importância que o narra-
dor lhe reconheceu na estruturação de sua identidade.
Dom Bosco desenha as linhas mestras de sua narração
fazendo do sonho a antecipação proléptica do quadro
geral da história porque, na retomada a posteriori de
sua vida, encontra nela o acontecimento que lhe torna
possível recolhê-la numa unidade.
Neste sentido, o fato de que a narração tenha sido
redigida cinquenta anos depois do acontecimento
não diminui sua credibilidade. Um relato redigido ao
despertar ou até mesmo uma (impossível) gravação
empírica do fenômeno psíquico não nos propiciaria
um acesso mais autêntico ao que João Bosco menino
30

4.3 Page 33

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O SONHO DOS NOVE ANOS
viveu em sua identidade própria (ipse). Um arrazoado
desse tipo trairia uma visão do eu como transparência
da consciência a si mesma e encerraria os contornos
do viver humano nos limites de um imediatismo sem
profundidade. A experiência da vida que fazemos
diariamente não coincide com o grau de consciência
que a acompanha e com a reconstituição que podería-
mos fazer dela no momento. Muitos acontecimentos
(ações, opções, atitudes, encontros) se tornam claros
em suas implicações somente a distância, mediante
a retomada que fazemos deles no diálogo com um
amigo ou com um guia espiritual. Precisamente a
narração e o confronto com outras pessoas é que nos
permitem reconhecer quanto a estreita contempora-
neidade dos acontecimentos nos impedia de enxergar.
Para dizê-lo de uma forma mais acessível, o sentido
da experiência é como uma semente que cresce no
terreno da consciência e desdobra suas energias so-
mente mediante os recursos da “cultura” que permi-
tem interpretá-lo. Portanto, a memória não é somente
um filtro que seleciona e conserva as recordações,
destinadas a se tornarem cada vez mais desbotadas;
ela é o lugar da elaboração narrativa da profundi-
dade simbólica da experiência de que vive o nosso
Si-mesmo. Este é o motivo pelo qual sem memória
não existe identidade.
Ler o sonho dos nove anos como uma espécie
de crônica dos fatos, tratando as palavras do sonho
como se fossem as ipsissima verba [mesmíssimas pa-
lavras], seria uma hermenêutica ingênua. Uma leitura
desse tipo poderia talvez parecer como a expressão da
31

4.4 Page 34

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O SONHO DOS NOVE ANOS
máxima confiança em relação ao realismo do texto,
mas na realidade implicaria numa substancial desa-
tenção em relação à trama complexa da narração com
a ilusão de poder chegar à materialidade de um dado
indiscutível. O “crescimento” que o acontecimento
de cinquenta anos conheceu na consciência de Dom
Bosco não é um elemento que se possa ignorar ou
remover, porque, precisamente através de tal cresci-
mento, o sentido da experiência onírica amadureceu
até encontrar o tempo, o contexto e as palavras mais
adequadas para reconstituí-lo na forma interpelante
que teve.31
Vice-versa, ler o sonho como uma mera “constru-
ção artificial”, fruto de uma ênfase intencional que
teria colmado as lacunas da memória, seria uma her-
menêutica suspeita, que não parece justificar-se com
sinceridade. De fato, ela colocaria em dúvida não
somente a reproposição de um acontecimento, mas
também a confiabilidade do complexo quadro de con-
junto que Dom Bosco nos oferece de sua identidade
narrativa. De fato, a função estrutural que a narração
do sonho possui na trama das Memórias do Oratório
corresponde ao relevo que vem a ter na configura-
ção que o narrador confere à sua vida. A interpretação
daquele sonho como manifestação de uma iniciativa
divina, tão evidente nas entrelinhas da narração quan-
to justamente prudente na sua formulação explícita,
31 As próprias correções que há no manuscrito e que a preciosa edição
crítica do P. Antônio da Silva Ferreira evidencia atestam a cuidadosa
qualidade dessa opção linguística.
32

4.5 Page 35

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O SONHO DOS NOVE ANOS
chama em causa as convicções mais profundas que
acompanharam Dom Bosco no exercício de sua mis-
são e na transmissão do carisma: como alguma coisa
que não provinha dele, mas que tinha precisamente
outra origem. Na narração — e, portanto, na cons-
ciência concreta de Dom Bosco — o sonho se apre-
senta como símbolo dessa origem. Por essa razão,
uma desconfiança radical em relação a um santo que
narra a si mesmo teria mais do que motivos para ques-
tionar o horizonte existencial do leitor, ou seja, para
verificar sua disponibilidade a deixar-se reconfigurar
pelo acontecimento de palavra que lhe é oferecido.
Em conclusão, estamos convencidos de que ler a
narração do sonho dos nove anos como a mimese nar-
rativa que restabelece honestamente o relevo que a ex-
periência onírica teve na constituição do Si-mesmo de
Dom Bosco é a hermenêutica mais coerente: ao mes-
mo tempo, crítica e fiducial. Portanto, isto permite afir-
mar que a grandeza pertence originariamente ao fato
real (história), mas somente mediante o crescimento na
consciência (memória) pôde encontrar as palavras para
ser reconstruída pela descrição (narração).
2.2. A experiência onírica
Pode um sonho adquirir tanta importância? A ra-
zão do homem moderno ocidental é levada a respon-
der imediatamente que não. Essa resposta, porém,
não é simplesmente fruto de espontaneidade, mas dos
33

4.6 Page 36

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O SONHO DOS NOVE ANOS
esquemas culturais que nos séculos do iluminismo se
sedimentarem em nossa cultura.
Enquanto para o homem antigo, com exceção de
Aristóteles e de alguns de seus discípulos, os sonhos
remetem a alguma coisa objetiva, real e concreta, seja
ela ou não ligada ao divino, ao mágico ou ao ordiná-
rio,32 para o homem moderno, que tende a fazer coin-
cidir os espaços da consciência espiritual com os da
consciência atenta, o sonho se apresenta como uma
espécie de experiência diluída, à qual se pode atribuir
somente um modestíssimo coeficiente de realidade.
A história da filosofia mostra que ao afirmar-se do
Cogito [ergo sum] cartesiano, corresponde a uma pro-
porcional expulsão do sonho dos confins da verdade
e a uma tendenciosa marginalização para o âmbito da
ilusão. O que não pode ser incluído no domínio das
ideias claras e distintas, o que não pertence ao mun-
do dos significados lúcidos e racionais, é considerado
como momento débil da consciência.
Luísa de Paula escreve lucidamente:
No período que vai das Meditationes de prima
philosophia à Traumdeutung, o homem desperto toma
32 Para o mundo clássico, cf. E. Dodds. I Greci e l’Irrazionale. Firenze:
La Nuova Italia, 1959 (em particular o capítulo Schema onirico
e schema di civiltà); L. Binswanger. Il sogno. Mutamenti nella
concezione e interpretazione dai greci al presente (1928). Macerata:
Quodlibet, 2009; para o mundo bíblico, cf. J. M. Husser. Songe. In:
Supplement au Dictionnaire de la Bible, vol. 12 (1996), 1439-1543;
E. R. HAYES; L.-S. Tiemeyer (ed.), “I Lifted my Eyes and Saw”.
Reading Dream and Vision Reports in the Hebrew Bible. London:
Bloomsbury, 2014.
34

4.7 Page 37

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O SONHO DOS NOVE ANOS
distâncias do próprio si-mesmo noturno, confinando-o
no não lugar da irrealidade. A cisão dualista entre mente
desperta e inteligência onírica é também e imediatamen-
te monopólio da primeira na esfera do real. O divórcio
da consciência no estado de vigília do Cogito noturno e
a supremacia da primeira sobre o segundo não podem,
portanto, ser compreendidos nem como um dado bioló-
gico e constitutivo do ser humano, nem como uma va-
riante independente do processo histórico, mas deveriam
ser enquadrados no contexto do mais amplo caminho da
civilização ocidental que levou ao divórcio entre o Eu e o
mundo, o corpo e a alma, os sentidos e a razão, junto com
a progressiva marginalização de um dos dois termos do
horizonte da realidade.33
A Interpretação dos sonhos de Freud constitui em
grande parte o ponto de chegada desse processo. De
fato, a teoria do pai da psicanálise traz a questão do
sonho para o centro da atenção da cultura, ao preço
de entendê-lo não como uma experiência originária
a ser compreendida em seu valor próprio, mas como
uma realidade derivada, um sintoma, um resíduo. Na
concepção de Freud, o “conteúdo manifesto” do so-
nho é como uma fachada ilusória que esconde uma
verdade oculta, o “pensamento latente” que deve ser
alcançado. A experiência imaginária do sonho não
tem, portanto, nenhum valor por si mesma, não tem
um significado próprio de sentido, mas é somente a
reverberação distorcida de alguma coisa que se en-
contra em outra parte, no inconsciente. Só interessa
33 L. De Paula. Il sogno tra radicalismo scettico e realismo onirico.
http://www.uniurb.it/vecchiaserie/2008depaula.pdf, p. 3. Acesso
em: 16 out. 2023.
35

4.8 Page 38

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O SONHO DOS NOVE ANOS
enquanto remete para um significado preexistente, do
qual não é senão a expressão. Para que o sonho vol-
tasse a ter sentido, a psicologia moderna postulou a
existência do inconsciente, um não lugar em que as
criações noturnas remetem a desejos frustrados e fan-
tasias removidas.34
Esta abordagem, porém, com o tempo, mostrou
sua inadequação, e a própria psicanálise hoje tomou
distância do enquadramento freudiano. De fato, a
consciência “vive as aventuras da noite com a mes-
ma intensidade do dia; as imagens dos sonhos se nos
apresentam com uma evidência em nada inferior às
imagens em vigília”.35 A percepção não coincide com
a consciência: nós estamos continuamente imersos
em percepções (sonoras, visíveis, táteis) que não ne-
cessariamente atraem sobre si nossa atenção desperta,
34 “Freud não conseguiu ir além de um postulado fundamental da psi-
cologia do século XIX: que o sonho é uma rapsódia de imagens. Se
o sonho fosse somente isso, poderia ser explicado por uma análise
psicológica orientada ou no estilo mecânico de uma psicofisiologia
ou uma pesquisa dos significados. Entretanto, o sonho é bem mais
do que uma rapsódia de imagens, pela simples razão de ser uma
experiência imaginária; e se ele não se deixa explicar — acabamos
de ver — por uma análise psicológica, é porque penetra também
no âmbito da teoria do conhecimento. Até o século XIX, é precisa-
mente nos termos de uma teoria do conhecimento que se colocou o
problema do sonho. O sonho é descrito como uma forma de expe-
riência absolutamente específica, e se é possível invocar a psicolo-
gia, isso ocorre num segundo tempo e de forma derivada, a partir da
teoria do conhecimento que o situa como um tipo de experiência. É
esta tradição esquecida que Binswanger retoma em Sonho e existên‑
cia” (M. Foucaut. Il sogno. Milano: Raffaello Cortina, 2003, p. 28).
35 L. De Paula. Il sogno tra radicalismo scettico e realismo onirico, p.
16.
36

4.9 Page 39

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O SONHO DOS NOVE ANOS
mas nem por isso deixam de ser reais. Não é possível,
portanto, reduzir a realidade da consciência à vigí-
lia alerta e aos instrumentos do pensamento. A forma
como a percepção do mundo e a configuração de sen-
tido ocorrem em nós implica em tomar em considera-
ção uma gama de realidades vividas mais amplas do
que as que podemos dominar racionalmente.
No sonho, portanto, o homem não é “menos” ele
mesmo do que na vigília, mas ele o é de forma dife-
rente, à qual se deve reconhecer seu valor específico
no continuum da existência. Sonhando, o homem ins-
taura uma relação diferente com as coisas, atua em
uma forma diversa de habitar o mundo, que não é me-
ramente “ilusão”, embora não possua a forma lúcida
da abstração cognitiva. Quanto a este dado, atualmen-
te as neurociências concordam, graças a pesquisas
consolidadas. A visualização radioscópica evidencia
que, enquanto sonhamos, nosso cérebro registra picos
máximos de atividade, comparáveis aos que ele al-
cança somente em momentos de intensa concentração
em situação de vigília.
A fim de restituir ao sonho sua possibilidade de
falar, é necessário recuperar a relação originária da
consciência com o corpo e com o mundo. A filoso-
fia contemporânea de matriz fenomenológica oferece
contribuições significativas para a elaboração de uma
abordagem equilibrada que permita a integração entre
os dados das neurociências e a atenção aos dados da
vivência do sujeito. Dessa forma, o sonho passa do
não lugar da consciência para o despertar fenomeno-
37

4.10 Page 40

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O SONHO DOS NOVE ANOS
lógico do Mundo Próprio (Eigenwelt). Naturalmente,
isto implica num respeito pela dimensão de ofusca-
mento que o sonho traz consigo, sua característica que
o leva a subtrair-se a pretensões do Eu desperto de
trancá-lo forçadamente dentro das próprias categorias.
A ideia de que o sonho manifesta o surgir do
Lebenswelt ou mundo vital da pessoa nas pregas de
seu constituir-se, recupera e reinterpreta uma intuição
do filósofo grego Heráclito, que num de seus frag-
mentos afirma: “Para os que estão acordados existe
um só mundo comum, ao passo que quem dorme
entra para um seu mundo próprio” (idios kosmos).36
Ludwig Binswanger,37 máximo expoente da análise
existencial e da psiquiatria fenomenológica, e Michel
Foucault na fase inicial de seu pensamento, oferece-
ram uma contribuição importante para elaborar essa
intuição. Em vez de concentrar-se sobre cada uma das
imagens oníricas, para decifrar um significado, eles
mostraram a conveniência de focar o sonho como ato
intencional da consciência, para fazer emergir a dire-
ção de seu sentido.
Foucault escreve:
O sonho, em sua transparência e por sua transcendên-
cia, desvela o momento originário com que a existência,
na sua irreduzível solidão, se projeta versus um mundo
que se constitui como o lugar de sua história. [...] Rom-
36 Trata-se do fragmento IX, cit. in: M. Foucaut. Il sogno, p. 42.
37 L. Binswanger. Il sogno. Mutamenti nella concezione e
interpretazione dai greci al presente (1928). Macerata: Quodlibet,
2009; Sogno ed esistenza (1930). Milano: SE, 1993.
38

5 Pages 41-50

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5.1 Page 41

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O SONHO DOS NOVE ANOS
pendo com essa objetividade que encanta a consciência
desperta, restituindo ao sujeito humano sua liberdade
radical, o sonho revela paradoxalmente o movimento da
liberdade em relação ao mundo, o ponto originário a par-
tir do qual a liberdade se torna mundo.38
Recupera-se, assim, a função originária da ima-
ginação no interior do movimento de transcender a
consciência. Esta
não é alguma coisa simplesmente adjunta ou acessó-
ria em relação ao que é objeto de percepção ou de sen-
sação, mas é a condição primeira do constituir-se de al-
guma coisa, o pressuposto imprescindível para que uma
“realidade”, coisa ou pessoa, se torne presente a mim; e
a experiência onírica é a revelação em transparência do
trabalho incessante da imaginação.39
A imaginação mostra o movimento originariamen-
te constitutivo do estar no mundo, a série dos atos
que se voltam para esse objetivo, pelos quais a cons-
ciência se torna presente ao mundo. Essa recupera-
ção é muito importante, porque alarga os horizontes
da relação entre o homem e a verdade: esta não pode
aparecer ao homem sem mostrar o próprio liame com
o mundo e sem envolver a dimensão imaginativa.
38 M. Foucaut. Il sogno, p. 43.
39 L. De Paula, Il sogno senza inconscio. Immaginazione notturna tra
psicologia e fenomenologia. Roma: Alpes, 2013, p. 31. Inclusive, mes-
mo só para ver uma pessoa querida preciso da imaginação. É graças
a ela que, no coração da percepção, eu consigo dar forma à pessoa
e aos objetos que a circundam. No campo da percepção está sem-
pre em ação um movimento de ulterioridade e transcendência, uma
dinâmica intencional que organiza e coordena a atividade sensorial
abrindo-lhe o horizonte.
39

5.2 Page 42

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Recupera-se igualmente a exigência de colher o
sonho dentro do horizonte vital do sujeito, dentro do
conjunto de sua abertura ao mundo e à vida. Assim se
exprime a filósofa Maria Zambrano:
Em vez de ser simplesmente analisado, (o sonho) deve
ser assimilado, o que é um verdadeiro e próprio processo.
A interpretação dos sonhos relativos à realidade ocorre
com certa lucidez numa espécie de sonho de segundo
grau durante a vigília. A pessoa que tomou parte no so-
nho persegue-o lucidamente [...]. O conhecimento válido
e adequado aos processos da pessoa deve ser ativo: so-
mente assim será conhecimento verdadeiro e libertador.40
A imagem onírica não pode, portanto, ter acesso à
vigília mediante a análise que a descontrói, mas deve
passar para o agir do sonhador. Ela é mais aberta para
frente do que para trás, é mais expressão de um mo-
vimento em que a pessoa se situa a si mesma do que
um repositório do que já vivenciou. O sonho, assim,
indica um “para”, uma “orientação” do mundo pes-
soal: não com a clareza lúcida da ideia, mas como
movimento interior da imaginação. É auscultando
esse movimento que o sonho pode ser compreendido.
A essa altura, não é difícil compreender este pon-
to, caso se consiga fugir do preconceito moderno
em relação ao onírico, ou seja, a força inspiradora e
orientadora que o sonho dos nove anos teve sobre a
vida de Dom Bosco apresenta sólidas razões de acei-
tação. No horizonte das aquisições antropológicas
40 M. Zambrano. Il sogno creatore. Milano: Mondadori, 2002, p. 24.
40

5.3 Page 43

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O SONHO DOS NOVE ANOS
mais recentes sobre “consciência onírica”, esse é um
dado que não levanta objeções. O sonho infantil ex-
primiu um “para”, um “movimento” intencional da
vida do sonhador (aliás, como veremos, uma correção
de movimento) que pedia para traduzir-se em reali-
dade. O Lebenswelt de João menino se exprime de
forma fascinante, com a riqueza de suas referências
ambientais (o prado, a casa), relacionais (mãe), reli-
giosos (os dois personagens majestosos), culturais (os
colegas, os animais ferozes, os cordeiros), mas parti-
cularmente com a clareza de uma orientação de vida
que nele avulta: não com a lucidez da ideia, dado que
precisamente nesse nível o sonhador não compreen-
de, mas com o caráter sedutor de imagens carregadas
de energia.
Assentada a possibilidade antropológica de que
um sonho tenha uma verdadeira força orientadora
para a existência, chegamos agora à terceira ordem
de interrogações. No sonho de João encontramos
dois personagens que se apresentam com caracteres
transcendentes, aliás, com uma clara conotação cris-
tológica e mariana: o homem venerando e a mulher
de aspecto majestoso. Trata-se simplesmente de ima-
gens que brotaram das fantasias noturnas de um me-
nino, quem sabe após algum acontecimento anterior
que lhe deu ocasião, ou se trata, como Dom Bosco
parece ter considerado com crescente convicção, de
um fenômeno sobrenatural? Conscientes de que nes-
se tipo de questões em geral não é possível chegar
a respostas apodíticas — pelo menos porque nesse
campo, mais do que em outros, entram em jogo con-
41

5.4 Page 44

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O SONHO DOS NOVE ANOS
vicções, atitudes, experiências e tomadas de posição
pessoais — buscamos oferecer ao leitor pelo menos
alguns elementos que possam contribuir a um escla-
recimento, sem renunciar a propor o que nos parece
ser a resposta mais convincente.
2.3. O fenômeno extraordinário
Para responder à questão sobre o caráter
“sobrenatural” do sonho dos nove anos, vale a pena
lembrar, antes de tudo, que na vida de Dom Bosco
a presença de fenômenos extraordinários é um fato
bem documentado e muito consistente. Os episódios
em que o prodígio irrompeu na vida do santo são
numerosos e, em muitos casos, isso aconteceu
debaixo dos olhos daqueles que mais tarde dariam
testemunho juramentado do fato no processo de
canonização. É o caso das curas repentinas de doenças
graves ou incuráveis, como cegueira ou paralisia, que
ocorreram quando Dom Bosco deu a bênção de Maria
Auxiliadora, ou da multiplicação dos pães, contada,
entre outros, pelo P. Dalmazzo que, quando menino,
presenciou diretamente o prodígio, ou das profecias
de eventos futuros, que várias testemunhas atestam a
realização pontual.
É igualmente importante lembrar a atitude que
Dom Bosco sempre teve em relação a esses fenôme-
nos excepcionais que acompanhavam o seu minis-
tério. Segundo os depoimentos das testemunhas, ele
42

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O SONHO DOS NOVE ANOS
mostrava-se muito desapegado deles, não buscava de
modo algum a fama que vinha com eles; pelo contrá-
rio, temia o clamor que tais eventos suscitavam em
torno da sua pessoa. No que se refere mais diretamen-
te à atitude de Dom Bosco em relação aos seus sonhos,
temos um testemunho significativo de Dom Cagliero
que, nos depoimentos do processo ordinário, relata:
Eu estava presente quando, em 1861, contou-nos ou-
tro sonho, em que tinha visto o futuro da Congregação
nascente, ainda não louvada ou enaltecida pela Santa Sé.
E noto aqui uma delicadeza do Servo de Deus, que, desde
quando teve esses sonhos, aconselhava-se com o seu dire-
tor espiritual, o douto e santo P. Cafasso; este disse a Dom
Bosco que ele deveria ir em frente com tuta conscientia
ao dar importância a esses sonhos, que julgava serem da
maior glória de Deus e das almas! E isso nos foi dito por
Dom Bosco, a nós os mais íntimos.41
Dom Bosco manifesta, portanto, em relação aos
sonhos e, de modo mais geral, em relação ao “ex-
traordinário” que envolve a sua vida, as atitudes de
responsabilidade, gratidão e humildade que os gran-
des mestres de espírito sempre recomendaram nessas
circunstâncias, demonstrando, também sob este ân-
gulo, uma excepcional estatura espiritual e uma ad-
mirável liberdade de espírito. Os seus sonhos, aceitos
com docilidade humilde e discernimento sábio, fun-
damentaram convicções e sustentaram empreendi-
mentos. Sem eles não se explicariam alguns aspec-
tos característicos da religiosidade de Dom Bosco e
41 Copia Publica Transumpti Processus Ordinaria, 1195r-v.
43

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O SONHO DOS NOVE ANOS
dos salesianos. Por isso, merecem ser estudados com
atenção não só pelo seu conteúdo pedagógico e mo-
ralista, mas também pelo que eram em si mesmos
e pelo modo como foram compreendidos por Dom
Bosco, pelos seus jovens, pelos seus admiradores e
herdeiros espirituais.42
O realismo e o senso do concreto que Dom Bosco
herdou da sua gente, e dos quais a frase lapidar da
sua avó “Não se deve fazer caso dos sonhos” foi uma
expressão eloquente, não haveriam de permitir que
os sonhos o influenciassem tão profundamente se ele
não os considerasse portadores de uma mensagem es-
piritual a ser usufruída.43
Em relação mais diretamente ao sonho dos nove
anos, o ponto de partida para o raciocínio sobre o
seu caráter sobrenatural só pode ser essa passagem
das Memórias:
Mas quando, em 1858, fui a Roma para falar com o
Papa sobre a Congregação Salesiana, ele me fez contar
42 PST2, p. 507.
43 Entre os seus discípulos, de qualquer forma, era generalizada a con-
vicção de que os sonhos eram, em grande parte, verdadeiras “visões
divinas”. Por exemplo, Cagliero, no depoimento mencionado aci-
ma, afirma: “Entre as revelações que o Servo de Deus teve quando
criança e como sacerdote, e que ele chamou de sonhos...”. (Copia
Publica Transumpti Processus Ordinaria, 1135r). Da mesma forma,
o P. Cerruti atesta que era essa a ideia comum entre os meninos: “Eu
e a grande maioria dos meus companheiros quase sempre acredita-
mos que eram visões, ou seja, maneiras pelas quais o Senhor fazia
Dom Bosco ver o que queria dele, e especialmente o que era neces-
sário para o nosso bem espiritual” (ibid, 1362v). Testemunhos desse
tipo poderiam ser multiplicados.
44

5.7 Page 47

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pormenorizadamente tudo quanto tivesse ainda que só
a aparência de sobrenatural. Contei então pela primei-
ra vez o sonho que tive na idade de 9 a 10 anos. O Papa
mandou-me escrevê-lo literalmente e com pormenores, e
deixá-lo como estímulo aos filhos da Congregação, a qual
era precisamente o objetivo de minha viagem a Roma.
Com essas palavras, Dom Bosco, que estava pro-
fundamente persuadido de que ninguém deveria
lançar mão da fundação de um instituto religioso sem
sinais claros vindos do alto, parece expressar a sua
convicção de que o sonho que tivera quando menino
fora um desses sinais. A ordem de Pio IX de elaborar
a sua exata redação parecia ser uma confirmação au-
torizada, embora implícita, desse fato.
Mas como essas comunicações sobrenaturais, das
quais a história da espiritualidade oferece inúmeros
testemunhos, devem ser entendidas e até que ponto
é possível pronunciar-se sobre a sua autenticidade?
A atenta reflexão que um teólogo do calibre de Karl
Rahner desenvolveu sobre isso em seu ensaio Visions
and Prophecies [Visões e profecias] pode ajudar-nos
a formular uma resposta para essas perguntas.44
Na compreensão teológica desses fenômenos,
Rahner introduziu uma importante correção à aborda-
gem da apologética manualística, que os considerava
dentro da problemática da relação entre revelação públi-
ca e revelações privadas. Observando as inconsistências
desse esquema, o teólogo alemão mostrou a conveniên-
44 K. Rahner. Visioni e profezie. Milano: Vita e Pensiero, 1995.
45

5.8 Page 48

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O SONHO DOS NOVE ANOS
cia de enquadrar o tema no horizonte dos fenômenos
carismáticos com que o Espírito Santo ajuda a conduzir
a Igreja ao longo dos séculos, oferecendo-lhe luzes espe-
ciais para enfrentar os desafios que encontra à sua frente.
Diante das visões, portanto, não se trata de perguntar-se
se elas acrescentam algo à revelação cristológica, mas
sim o quanto e como elas contribuem para encarná-la
numa precisa época e situação. O seu valor não está es-
sencialmente no plano da assertividade, como atestado
de uma determinada verdade, mas no nível imperativo.
Elas não transmitem primordialmente uma ideia, mas
uma determinação, uma atitude a ser assumida; são si-
nais que moldam a experiência espiritual, instando o
destinatário, e possivelmente outros envolvidos com ele,
a cumprir uma determinada tarefa que é importante para
a vida da Igreja. Em síntese, Rahner afirma: “O impera-
tivo inspirado por Deus a um membro da Igreja para que
a Igreja aja numa determinada situação histórica, isso
nos parece a essência de uma “revelação privada” profé-
tica de um tipo pós-cristão”.45
Que estes fenômenos sejam possíveis é um fato
seguro de fé: “A possibilidade de revelação parti-
cular por meio de visões e audições conexas é, para
um cristão, fundamentalmente certa. Deus, como um
Deus pessoal e livre, pode ser perceptível ao espíri-
to criado não apenas por meio das suas obras, mas
também por meio da sua palavra livre e pessoal”.46
45 K. Rahner. Visioni e profezie, p. 52. Entenda-se aqui pós-cristão no
sentido de “pertencente à era após o evento cristológico”.
46 K. Rahner. Visioni e profezie, p. 38s.
46

5.9 Page 49

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Quais sejam, porém, só pode ser o resultado de um
discernimento cuidadoso, o que, de qualquer forma,
nunca implica um verdadeiro assentimento da fides
catholica, uma vez que o seu conteúdo não é confiado
à Igreja oficial para transmiti-lo com autoridade aos
fiéis, mas um crédito relacionado com a clareza que
se consegue alcançar. Em certos casos, esse crédito
pode chegar a ser para o destinatário da visão, e pos-
sivelmente para outros também, uma verdadeira fides
divina, ou seja, um crédito dado pessoalmente a Deus
reconhecendo-se interpelados por Ele.
Rahner convida, por isso, a uma atitude de equi-
líbrio saudável que saiba reconhecer, muito mais do
que no passado, o papel essencial e insubstituível do
carisma profético para a vida da Igreja, mas ao mes-
mo tempo lembra que “em tais questões, as respostas
mais claras e apodíticas, bem como as soluções mais
simples e práticas, não são necessariamente também
as mais justas”.47
Quanto às modalidades da visão sobrenatural,
deve-se observar primeiramente que a manifestação
de Deus por meio de sinais e imagens “corresponde
mais ao caráter fundamental do cristianismo do que
uma pura unio mystica desprovida de “imagens”,
em relação à qual sempre surge o antigo problema
de saber se a religiosidade da pura transcendência do
espírito é autenticamente cristã”.48 A analogia de tais
47 K. Rahner. Visioni e profezie, p. 31.
48 Ibid, 39, nota 12. “Por outro lado, deve-se entender, precisamente
a partir dessa estrutura encarnacional fundamental em que Deus
47

5.10 Page 50

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visões com a estrutura da encarnação, na qual o hu-
mano e o divino se unem sem confusão, implica a ne-
cessidade de reconhecer que, no fenômeno com que
estamos lidando, é necessário levar em conta tanto
as leis psíquicas que derivam das capacidades espiri-
tuais da pessoa que tem a visão quanto da iniciativa
com que Deus intervém no indivíduo.
Isso significa, em primeiro lugar, que “para uma
visão ser verdadeiramente a realidade espiritual de
um determinado indivíduo, ela deve ser de fato, me-
tafisicamente falando, um “ato” do indivíduo, ou seja,
não apenas causada nele por Deus, mas também real-
mente operação deste indivíduo, realizada por ele”.49
As visões provocadas por Deus também estão enrai-
zadas na estrutura psicofisiológica do indivíduo, que
as experimenta em seu próprio horizonte de vida (por
exemplo, na linguagem que fala, com imagens que
pode reconhecer e assim por diante).50 Em nosso caso,
e a criação reúnem-se em unidade sem confusão, que só se pode
acessar Deus no sinal — mesmo na figura da visão — se não nos
apegarmos ao sinal (“noli me tangere”) como se fosse algo definitivo
e último, o próprio Deus, mas o atestarmos transcendendo-o e o
compreendermos deixando-o livre” (ibid).
49 Ibid, p. 66.
50 “Em termos concretos, será obviamente quase impossível dizer, no
ato da visão, onde fica exatamente o limite entre as leis psíquicas ne‑
cessariamente válidas e as leis naturais, mesmo que não necessárias,
que são suspensas pela intervenção milagrosa de Deus” (66). Além
disso, “se já na visão imaginativa é preciso supor necessariamente
um elemento subjetivo, isso poderá acontecer com maior razão de‑
pois da visão, mesmo no caso de pessoas absolutamente honestas:
correções involuntárias, erros de memória, utilização de esquemas
de pensamento preconcebidos e um vocabulário já confecciona-
do na narração com que inadvertidamente as perspectivas são al-
48

6 Pages 51-60

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6.1 Page 51

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O SONHO DOS NOVE ANOS
seja qual for a qualidade teologal da ocorrência, é ne-
cessário sustentar que o que acontece é realizado por
meio das faculdades humanas de João Bosco menino.
É realmente ele quem sonha, a sua consciência não
é uma espécie de tela passiva em que são projetadas
imagens celestes, por assim dizer, mas ele concorre
plenamente com a sua capacidade imaginativa para
produzir a figura e o discurso.
Um segundo esclarecimento importante refere-se
ao fato de que, como observa Rahner, a expressão
“essa visão é causada por Deus” é, em si mesma, ex-
traordinariamente ambígua, porque qualquer graça é
causada por Deus, mesmo quando perfeitamente ex-
plicável dentro das leis naturais. O homem religioso
percebe corretamente a graça gratuita de Deus para
a sua salvação, mesmo num evento explicável na-
turalmente. Isso não diminui, no entanto, o fato de
que “em um sentido muito particular, as visões que
tenham origem numa intervenção autenticamente so-
brenatural de Deus, ou seja, excedendo as leis da na-
tureza física e psíquica, devem ser qualificadas como
ʻde origem divina’”.51 E aqui também deve ser feita
uma distinção entre (a) aquilo que é fruto da inabi-
tação habitual de Deus na alma — que pode dar ori-
gem a fenômenos psíquicos em um crente, podendo
ser chamados realmente de visões sobrenaturais, sem
teradas, acréscimos involuntários de tipo suplementar, descrição
psicológica e interpretação do acontecido, cujos resultados são me-
lhores ou piores dependendo da capacidade de auto-observação do
visionário” (p. 97s.).
51 Ibid, p. 68.
49

6.2 Page 52

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O SONHO DOS NOVE ANOS
serem, em sentido técnico, milagres — e (b) aquilo
que é fruto de uma intervenção milagrosa de Deus
que suspende as leis da natureza e, portanto, também
as leis psicológicas normais. Muito apropriadamente,
Rahner afirma:
Vê-se claramente que, na prática, não será fácil dizer
se uma visão deve ser considerada como causada por
Deus no primeiro ou no segundo sentido de um evento
sobrenatural, especialmente porque os dois momentos
podem convergir juntos na mesma visão. Além disso, de-
ve-se lembrar de que o significado religioso de uma visão
sobrenatural no primeiro sentido pode, por sua própria
natureza, ser essencialmente maior do que uma visão so-
brenatural no segundo sentido, já que o que é milagroso
no sentido técnico não precisa, de um ponto de vista on-
tológico e ético, ser necessariamente o mais perfeito.52
Por fim, deixando de lado outros aspectos desta
complexa questão, ainda é importante colher um ele-
mento que ajude a entender o que se quer dizer quan-
do se interpreta uma visão como “profecia” e o que
distingue a autêntica profecia cristã do (debatido) fe-
nômeno psíquico da clarividência. No caso das visões
parapsicológicas, diz Rahner, o vidente vê “uma pe-
quena parte aleatória do futuro, poderíamos dizer um
pequeno trecho absolutamente aleatório de um longo
filme, mas sem que esse trecho seja inserido em um
desdobramento maior, em si mesmo significativo,
52 Ibid, p. 69.
50

6.3 Page 53

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O SONHO DOS NOVE ANOS
com uma explicação significativa”.53 Muito diferente
é a natureza genuína da visão profética:
Ela não é, pelo menos em sua essência, uma “visão”,
mas uma “palavra”. Ela, propriamente, não mostra uma
parte do futuro como uma imagem, mas participa de algo
dele enquanto o explica. Tal explicação é, por isso mesmo,
obscura em suas particularidades — precisamente por-
que vem de Deus, não apesar do fato de vir de Deus –,
porque fala do sentido do futuro e, longe de ser entendida
como um meio de se proteger dele ou de prevê-lo, desti-
na-se antes a manter aberta a liberdade do homem que
ousa confiar em Deus. Por isso, ela não tem o estilo de
um cronista que miraculosamente se transfere ao mesmo
futuro e de lá explica o que experimentou, mas revela ao
homem a quem se dirige algo da sua situação atual, por
meio daquele vislumbre do futuro de que ele precisa para
manter o seu presente agora, em fidelidade e confiança.54
A esta altura, devemos voltar ao nosso sonho, re-
sumindo os dados já adquiridos e tentando dar o pas-
so definitivo. Afirmamos que o sonho dos nove anos
se reveste de um papel arquitetônico fundamental na
elaboração da trama narrativa das Memórias, papel
que corresponde à importância existencial atribuída
por Dom Bosco àquela experiência onírica na estru-
53 Ibid, p. 119. “O vidente parapsicológico capta impessoalmen-
te um pequeno fragmento do futuro, que se esgueira de forma
absolutamente casual, sem sentido e cegamente, na esfera do seu
conhecimento. O que é visto diretamente, é visto de forma clara e
concreta, como se a pessoa estivesse no local. Isso pode ser referido
como em uma reportagem. Mas o que é visto tão claramente per-
manece em si mesmo isolado e, portanto, apesar da clareza, incom-
preensível” (ibid).
54 Ibid.
51

6.4 Page 54

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O SONHO DOS NOVE ANOS
turação da sua identidade narrativa. Também foi dito
que a narração, escrita cinquenta anos depois, não é
simplesmente um relato, mas uma retomada narra-
tiva nascida da memória que recolhe numa unidade
a própria história e restaura o sentido da experiência
original de modo maduro e ponderado. Isso se torna
ainda mais compreensível tendo visto que o signifi-
cado dos sonhos não deve ser buscado em cada ima-
gem individualmente ou em palavras exatas, mas na
direção em que a imaginação se move em seu ato de
transcendência e abertura. No interior desse contexto
dinâmico, os detalhes individuais manifestam de fato
a sua unidade e a sua orientação.
Agora, à luz do que foi dito sobre as visões sobre-
naturais, perguntamo-nos se esta página, à qual Dom
Bosco atribui tanta importância, é apenas o eco vazio
de uma experiência em que, sem perceber, ele apenas
se escutava, ou se de fato nos entrega o conteúdo de
uma comunicação divina especial, de caráter proféti-
co e antecipatório.
Os esclarecimentos feitos até agora nos permi-
tem apresentar a nossa resposta evitando excessos
maximalistas ou minimalistas. Maximalista e enga-
nosa seria a ideia de que o conteúdo do sonho é um
encontro com o Senhor e a Virgem, em que eles são
vistos e ouvidos de maneira análoga ao que acontece
na percepção sensorial normal. Neste caso, suas de-
clarações deveriam ser entendidas como palavras que
saem “materialmente” dos lábios de Jesus e Maria,
que vieram do céu para visitar o menino dos Becchi.
52

6.5 Page 55

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Como vimos, tal concepção ignora a dimensão antro-
pológica do evento, ou seja, negligencia o papel que
a consciência do menino João Bosco, o seu horizonte
cognitivo, a sua imaginação, o ato das suas faculda-
des, desempenharam no fenômeno, caindo na ideia
ingênua de um imediatismo espiritual. Minimalista,
por outro lado, e igualmente enganoso, seria reduzir
o sonho a uma criação do inconsciente do sonhador
ou a uma expressão da sua fervorosa imaginação reli-
giosa. O conteúdo do sonho não teria de forma algu-
ma os contornos de algo recebido, mas simplesmente
de algo produzido. Esta tese não é metafisicamente
impossível, mas choca-se com uma série de evidên-
cias morais e espirituais de grande profundidade.
Para sustentá-la, de fato, é preciso afirmar que Dom
Bosco, ao colocar a narração do sonho do menino de
nove anos como chave de leitura das Memórias do
Oratório e, portanto, da sua vida apostólica e espiri-
tual, enganou-se ou, pior ainda, enganou-se sobre um
elemento absolutamente decisivo para a sua história
pessoal e para a vida e a missão da sua Congregação
religiosa, ou seja, a presença de um chamado do alto,
do qual o sonho foi sinal e ratificação. O inconsciente
de um menino teria produzido do nada um importante
texto carismático, que inspirou milhares e milhares
de fiéis, e teria oferecido uma importante iluminação
espiritual a um dos grandes fundadores da história da
Igreja, sem nenhuma intervenção particular de Deus:
é realmente difícil pensar dessa forma!
Ignorando esses excessos opostos e levando em
conta a estatura teológica da missão atribuída por
53

6.6 Page 56

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Deus a Dom Bosco — a estatura de uma missão des-
tinada a crescer de modo surpreendente em benefício
da Igreja universal –, é inteiramente razoável acredi-
tar que o sonho foi de fato, como Dom Bosco o en-
tendeu, uma comunicação sobrenatural, assimilável
àquelas que podem ser lidas nas grandes histórias
bíblicas dos sonhos dos patriarcas ou das visões no-
turnas dos profetas. Com base nos critérios normal-
mente levados em conta na teologia espiritual, essa
avaliação parece ser a mais coerente com toda a his-
tória espiritual deste santo. Parece difícil, no entanto,
mas também menos importante, dizer se a natureza
sobrenatural desta comunicação deve ser entendida
como um reflexo carismático da ação da graça no
coração da pessoa chamada ou como uma verdadei-
ra visão “milagrosa” no sentido técnico. Foi dito, de
fato, que não é realmente disso que depende o seu
significado “religioso”.
Mais relevante, enfim, é evidenciar que, justamen-
te porque aquela luz vinha de Deus, ela não tinha
simplesmente os traços de uma inteligibilidade ime-
diata, que dispensasse do trabalho de discernimento
vocacional e da referência à mediação eclesial. Em
essência, o conteúdo do sonho não previu o futuro
para o menino dos Becchi na forma de uma clara pres-
ciência, mas por meio de uma injunção no presente.
Foi-lhe dito o que ele deveria fazer no presente para
que o futuro fosse possível, como um dom que não o
eximia do esforço, mas o impunha, e de uma forma
muito exigente. Isso também confirma que o sonho
não era um eco vazio em que o menino ouvia apenas
54

6.7 Page 57

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O SONHO DOS NOVE ANOS
o seu inconsciente, mas uma verdadeira experiência
religiosa em que ouvia uma mensagem de Deus.
Ato da consciência onírica do menino João Bosco
e, ao mesmo tempo, palavra profética de Deus,
apresentada sob a forma de uma narração remi-
niscente, em que a profecia já é lida em sua rea-
lização em curso; esse é, em conclusão, o sonho
que estamos prestes a repercorrer e cuja mensagem
procuramos interpretar.
3. Leitura teológica
3.1. Estrutura narrativa e movimento onírico
Com base nas premissas hermenêuticas feitas até
agora, podemos abordar o texto do sonho dos nove
anos, que reproduzimos de acordo com a edição crí-
tica de Antonio da Silva Ferreira, da qual nos afasta-
mos apenas por duas pequenas variantes.55 Dividimos
a história em parágrafos que, por comodidade, acom-
panhamos com uma sigla entre colchetes.
55 O texto crítico encontra-se em MO, p. 34-37 [Istituto Storico
Salesiano, Fonti, Serie prima 4, G. Bosco, Memorie dell’Oratorio…].
As duas variantes são indicadas por Aldo Giraudo in G. Bosco,
Memorie dell’oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815 al 1855. Roma:
LAS, 2011, p. 62s., nota 18: “presemi” [tomou-me], onde da Silva
presomi [tomando-me]; e nota 19: integração de ed ogni cosa
disparve [e tudo desapareceu], omitido acidentalmente por da Silva.
55

6.8 Page 58

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O SONHO DOS NOVE ANOS
[C1] Nessa idade, tive um sonho que me ficou pro-
fundamente impresso na mente por toda a vida.
[I] Pareceu-me estar perto de casa, numa área bas-
tante espaçosa, onde uma multidão de meninos estava
a brincar. Alguns riam, outros divertiam-se, não pou-
cos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias, lancei-me de
pronto no meio deles, tentando, com socos e palavras,
fazê-los calar.
[II] Nesse momento apareceu um homem veneran-
do, de aspecto varonil, nobremente vestido. Um manto
branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém, era tão lu-
minoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo
nome e mandou que me pusesse à frente daqueles meni-
nos, acrescentando estas palavras: “Não é com pancadas,
mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar es-
ses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre
a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude”. Confu-
so e assustado, repliquei que eu era um menino pobre e
ignorante, incapaz de lhes falar de religião. Senão quando
aqueles meninos, parando de brigar, de gritar e blasfemar,
juntaram-se ao redor do personagem que estava a falar.
[III] Quase sem saber o que dizer, acrescentei: “Quem
sois vós que me ordenais coisas impossíveis?” “Justamen-
te porque te parecem impossíveis, deves torná-las possí-
veis com a obediência e a aquisição da ciência”. “Onde,
com que meios poderei adquirir a ciência?” “Eu te darei
a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e
sem a qual toda sabedoria se converte em estultice”. “Mas
quem sois vós que assim falais?” Sou o filho daquela que
tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia”. “Minha
mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que
não conheço; dizei-me, pois, vosso nome”. “Pergunta-o a
minha mãe”.
[IV] Nesse momento vi a seu lado uma senhora de
aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplande-
56

6.9 Page 59

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O SONHO DOS NOVE ANOS
cente, como se cada uma de suas partes fosse fulgidíssima
estrela. Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas
perguntas e respostas, acenou para que me aproximasse
e, tomando-me com bondade pela mão, disse: “Olha”. Vi
então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar
deles estava uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos
e outros animais. “Eis o teu campo, onde deves traba-
lhar. Torna-te humilde, forte, robusto; e o que agora vês
acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus filhos”.
Tornei então a olhar, e em vez de animais ferozes aparece-
ram mansos cordeirinhos que, saltitando e balindo, cor-
riam ao redor daquele homem e daquela senhora, como
a fazer-lhes festa. Neste ponto, sempre no sonho, desatei a
chorar, e pedi que falassem de maneira que pudesse com-
preender, porque não sabia o que significava tudo aquilo.
A senhora descansou a mão em minha cabeça, dizendo:
“A seu tempo tudo compreenderás”.
[C2] Após essas palavras, um ruído qualquer me acor-
dou, e tudo desapareceu. Fiquei transtornado. Parecia-me
ter as mãos doloridas pelos socos que desferira e doer-me
o rosto pelos tapas recebidos; além disso, aquele perso-
nagem, a senhora, as coisas ditas e ouvidas de tal modo
me encheram a cabeça que naquela noite não pude mais
conciliar o sono. De manhãzinha contei logo o sonho,
primeiro aos meus irmãos, que se puseram a rir, depois
à mamãe e à vovó. Cada um dava o seu palpite. O irmão
José dizia: “Vais ser pastor de cabras, de ovelhas e de ou-
tros animais”. Mamãe: “Quem sabe se um dia não serás
sacerdote”. Antônio, secamente: “Chefe de bandidos, isso
sim”. Mas a avó que, de todo analfabeta, entendia muito
de teologia deu a sentença definitiva: “Não se deve fazer
caso dos sonhos”. Eu era do parecer de minha avó, toda-
via não pude nunca tirar aquele sonho da minha cabeça.
O que vou doravante expor dará a isso alguma explica-
ção. Mantive-me sempre calado; meus parentes não lhe
57

6.10 Page 60

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O SONHO DOS NOVE ANOS
deram importância. Mas quando, em 1858, fui a Roma
para falar com o Papa sobre a Congregação Salesiana, ele
me fez contar pormenorizadamente tudo quanto tivesse
ainda que só a aparência de sobrenatural. Contei então
pela primeira vez o sonho que tive na idade de 9 a 10
anos. O Papa mandou-me escrevê-lo literalmente e com
pormenores, e deixá-lo como estímulo aos filhos da Con-
gregação, a qual era precisamente o objetivo de minha
viagem a Roma.
3.1.1. Personagens e estrutura
A narração do sonho apresenta uma evolução que,
embora com alguma complexidade, segue estrutu-
ras narrativas muito simples. Elas se baseiam funda-
mentalmente num esquema tripartido, envolvendo a
apresentação do ator, da ação e da reação. Sem poder
excluir, especialmente nos diálogos, um componente
literário para completar o enredo, a ausência de qual-
quer sofisticação artificial na construção do enredo é
bastante clara. Isso confirma, também em nível analí-
tico, a plausibilidade da correspondência substancial
com a experiência onírica do menino.
Embora elementos fundamentais da espiritualida-
de salesiana estejam obviamente presentes na textura
narrativa, pode-se observar ainda a presença de algu-
mas palavras que se tornariam “técnicas” para expres-
sar a missão de Dom Bosco, como “bondade”, “assis-
tência”, “educação”, “almas”, “salvação” e assim por
diante. As ideias que lhe correspondem são expressas
por meio de uma linguagem acessível a um menino
58

7 Pages 61-70

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7.1 Page 61

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O SONHO DOS NOVE ANOS
campesino: “pôr-se à frente”, “ganhar estes amigos”,
“campo” no qual “trabalhar”, tornar-se “humilde, for-
te, robusto”, “instrução sobre o pecado e a virtude”.
O protagonista do sonho é claramente o próprio so-
nhador, os lugares são aqueles que lhe são familiares,
povoados pela presença juvenil, alegre e festiva, mas
também já maculada pelo mal (brigas, gritos, blasfê-
mias). Os demais personagens são-lhe, de certa forma,
familiares. Além dos meninos, nenhum dos quais é
identificado, e da mãe, que é uma presença evocada,
mas não pessoalmente ativa no sonho, os dois interlo-
cutores do sonhador são o homem venerando e a se-
nhora de aspecto majestoso, claramente identificáveis
como Jesus e Maria. Os traços do homem venerando
são a idade varonil, a vestimenta nobre, especificada
com o detalhe de um manto branco envolvendo toda
a pessoa, o seu rosto tão brilhante que não pode ser
fixado: todos os detalhes que parecem referir-se à ima-
gem evangélica da transfiguração do Senhor. Sua ação
é marcada por um poder de autoridade (“ele mandou”),
mas também por uma proximidade com João (“cha-
mou-me pelo nome”) e uma eficácia pacificadora com
os meninos, que se reúnem ao redor daquele que fala.
A senhora de aspecto majestoso é apresentada como a
mãe do homem venerando; ela também tem um manto
que parece bordado com estrelas brilhantes e é a mes-
tra com quem se aprende a verdadeira sabedoria. O
elemento que mais diretamente distingue a sua identi-
dade, revelando-se inequivocamente como mariana, é
a referência ao comportamento quotidiano do menino,
59

7.2 Page 62

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O SONHO DOS NOVE ANOS
que aprendeu com sua mãe a oração do Ângelus, com
que ele saúda a Virgem três vezes ao dia.
É interessante notar que o sonho não faz referên-
cia à figura do pai, o que corresponde claramente à
situação biográfica de João, órfão de pai desde os
dois anos de idade. Isso talvez também se traduza na
falta de uma referência direta ao Pai do céu, já que
o espaço do transcendente é todo ocupado pela figu-
ra de Jesus e de Maria. Isso também parece ser uma
característica da experiência religiosa da infância de
João, que não passa por nenhuma conclusão teológica
no momento da redação. A ausência de uma presença
paterna explícita talvez possa sugerir alguma reflexão
sobre a conexão com a missão que João recebe no
sonho; de fato, é próprio de um pai ser forte e robus-
to e trabalhar pelo bem de seus filhos. Na verdade,
a paternidade será precisamente a característica mais
evidente do amor que Dom Bosco encarnará para um
número incontável de jovens. No entanto, deixemos
este tema em suspenso, como foi deixado pelo sonho,
limitando-nos a sugerir que a ausência do pai pode
ser exatamente o espaço simbólico que João terá de
preencher pessoalmente.
A página apresenta-se com uma estrutura que pode
ser subdividida nestas seções:
[C1] enquadramento inicial
[I] visão dos meninos e intervenção de João
[II] aparição do homem venerando
60

7.3 Page 63

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O SONHO DOS NOVE ANOS
[III] diálogo sobre a identidade do personagem
[IV] aparição da senhora de aspecto majestoso
[C2] enquadramento conclusivo
Deixando de lado, por enquanto, o enquadramen-
to inicial (muito curto) e final (muito mais amplo),
voltemos a atenção para o conteúdo da experiência
onírica. A divisão em quatro seções corresponde à
clara sucessão das cenas.
A primeira [I] apresenta o início da visão, com
uma situação desafiadora à qual João dá uma resposta
imediata e impulsiva. A segunda [II] introduz a “re-
viravolta” da aparição do homem venerando que in-
terrompe a iniciativa de João direcionando-a de outra
forma, por meio de uma ordem e um ensinamento que
lhe causam confusão e medo. Poderíamos continuar
essa cena, incluindo a parte do diálogo com o perso-
nagem, mas a descrição dos meninos que param de
brigar e se reúnem ao redor daquele que fala intro-
duz, na verdade, uma cesura narrativa, inaugurando,
em nossa opinião, uma nova unidade. A terceira seção
[III] difere das demais por não conter nenhuma ação,
mas apenas um diálogo franco composto de quatro
perguntas prementes e suas respostas. No centro do
diálogo está a pergunta sobre a identidade do perso-
nagem, mas as respostas mudam gradualmente o foco
para a presença da sua mãe. A última parte do sonho
[IV] apresenta a aparição do segundo personagem, a
senhora de aspecto majestoso por meio de quem as
dúvidas de João devem ser respondidas. Ela também
61

7.4 Page 64

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O SONHO DOS NOVE ANOS
indica uma tarefa a ser realizada e propõe um ensina-
mento, mas a sua fala é entrelaçada com uma cena que
constitui uma “visão dentro da visão”, explicitamente
introduzida pelo imperativo: “olha”. As palavras e a
visão transmitem uma mensagem explicativa, mas a
conclusão é, contudo, marcada por um crescendo de
penumbra no sonhador e o adiamento da compreen-
são para tempos futuros.
3.1.2. A tensão narrativa
Retomando mais detalhadamente cada unidade a
fim de evidenciar a tensão narrativa que as permeia,
podemos dizer que na primeira seção [I] é possível
reconhecer, em primeiro lugar, a localização espacial
do sonho, em um pátio muito espaçoso perto de casa.
Desde o início, a proximidade doméstica e a abertura
do horizonte qualificam o ambiente imaginativo em
que se abre o Lebenswelt do sonhador. O ambiente é
alegremente povoado por meninos que se divertem.
Imediatamente, porém, toma conta o elemento per-
turbador de não poucos que blasfemam. O comporta-
mento é percebido pelo sonhador como inaceitável e
desafiador, e ele intervém com um movimento resolu-
to e violento, no qual não é difícil reconhecer o cará-
ter naturalmente impetuoso do menino dos Becchi.56
56 Sobre a índole impulsiva e impetuosa do caráter de Dom Bosco,
temos estes significativos testemunhos daqueles que o conheceram
de perto: “Pela sua própria confissão, ouvida por mim, ele era na-
turalmente impetuoso e altivo e não podia sofrer oposição, contu-
do com muitos atos ele foi capaz de se conter tanto que se tornou
62

7.5 Page 65

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O SONHO DOS NOVE ANOS
O primeiro episódio, portanto, pode ser esquematica-
mente dividido nestes três momentos: (1) localização
espacial do sonho, (2) comportamento negativo de
um grupo de meninos, (3) reação espontânea de João.
Entre as seções II e IV há um óbvio paralelismo
estrutural. De fato, em ambas há uma nítida análise
ternária: aparecimento do personagem, sua ordem/ad-
moestação (apresentada, por sua vez, em forma tripar-
tida), reação às palavras do personagem. No caso do
homem venerando, o texto pode ser assim disposto:
(1) aparição do homem venerando e suas características
(2) sua ordem/admoestação
a. pôr-se à frente dos meninos
b. não com pancadas
c. põe-te imediatamente a instruí-los
(3) reação de João e reação dos meninos
No caso da senhora de aspecto majestoso:
(1) visão da senhora e suas características
um homem pacífico e manso e tão senhor de si mesmo que parecia
nunca ter nada para fazer” (Marchisio, in Copia Publica Transumpti
Processus Ordinaria, p. 629r). São semelhantes os juízos de Dom
Cagliero e do P. Rua: “Por sua própria confissão, o seu caráter era
ardoroso e altivo, de modo que não podia sofrer oposição, e sentia
uma luta inexprimível dentro de si, sempre que devia apresentar-se
a alguém para pedir ajuda” (Cagliero, ibi 1166r); “Ele possuía um
temperamento ardoroso, como eu e muitos outros comigo pudemos
constatar; observamos em várias circunstâncias quanta violência ele
devia fazer contra si mesmo para reprimir as explosões de raiva pe-
las contrariedades que lhe advinham. E se esse era o caso em sua
velhice, isso nos leva a crer que o seu caráter era ainda mais vivo em
sua juventude” (Rua, ibid, p. 2621r-v).
63

7.6 Page 66

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O SONHO DOS NOVE ANOS
(2) sua ordem/admoestação, entrelaçada com
cena simbólica
* visão de animais ferozes
a. eis o teu campo.
b. torna-te humilde, forte, robusto... deves fazê-lo,
* transformação dos animais ferozes em
mansos cordeiros.
(3) reação de João e garantia da senhora sobre a
futura compreensão.
O paralelismo estrutural e temático é evidente: os
dois personagens são apresentados com característi-
cas semelhantes, combinando transcendência (nobre-
za da roupagem e esplendor pessoal) e proximidade
(ele chama pelo nome, ela convida a aproximar-se,
põe a mão sobre a cabeça); nos dois casos, há uma
atribuição imperativa (“põe-te imediatamente”, “de-
ves fazê-lo”) de uma missão juvenil e o ensinamento
sobre o método da doçura e mansidão a ser seguido.
O resultado do encontro também é o mesmo nas duas
cenas: João sai dela confuso e desanimado, enquanto
os destinatários da sua missão passam por uma trans-
formação pacificadora (na primeira cena, os meninos
param de brigar e reúnem-se ao redor do personagem
venerando; na segunda, os animais ferozes tornam-se
mansos cordeiros que fazem festa ao redor do homem
e da senhora). Apesar do paralelismo dos elemen-
tos, no entanto, em termos funcionais e dinâmicos,
os dois momentos não são simplesmente uma repeti-
ção. O segundo, de fato, aparece como uma retomada
do primeiro, intensificando a sua dinâmica e os seus
contrastes, aumentando a luz, mas paradoxalmente
64

7.7 Page 67

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O SONHO DOS NOVE ANOS
também a escuridão e a perturbação. Com essa dialé-
tica, portanto, os dois episódios mantêm viva a tensão
do movimento onírico.
De maneira plenamente adequada à psicologia de
um menino, que recorre espontaneamente à mãe para
obter explicações, a função da segunda cena é ofere-
cer um esclarecimento materno da primeira. A mãe
do homem venerando aparece ali como mediação
para a compreensão da sua mensagem, que ela co-
nhece de maneira adequada. No entanto, embora ex-
plique o conteúdo em imagens (a visão dos animais),
como as mães costumam fazer com os filhos, ela tam-
bém conserva a dimensão do mistério que o envolve.
O nome do personagem, que João deveria ter sabi-
do pela mulher, permanece desconhecido, enquanto
a tarefa que lhe é confiada torna-se apenas em parte
mais clara. Aquela que no início parecia ser uma ins-
trução moral a ser dada “imediatamente” a um grupo
de meninos, mais tarde parece ser uma missão futura
de longo prazo, um campo a ser trabalhado assidua-
mente, realizando uma tarefa ilustrada de modo enig-
mático: “o que agora vês acontecer a esses animais,
deves fazê-lo aos meus filhos”. O trabalho indicado
é o de provocar uma metamorfose (espiritual) que
certamente não parece ser na medida humana. Não é
de se admirar que o menino de nove anos não tenha
entendido: a tensão entre clareza e escuridão da pri-
meira aparição (seção II) é radicalizada na segunda
(seção IV), levando-a às extremas consequências.
65

7.8 Page 68

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O SONHO DOS NOVE ANOS
O aumento da tensão entre a primeira e a segunda
aparição é obtido através do diálogo tenso da seção
III, com suas quatro perguntas/pedidos insistentes:
“Quem sois vós...?”; “Onde, com que meios...?”;
“Quem sois vós...?”; “Dizei-me vosso nome”. Está
claro que a pergunta central se refere à identidade do
personagem que produziu a “reviravolta” no sonho,
exigindo que o sonhador mude seus hábitos. O tema
da missão a ser realizada pelo menino (central nas se-
ções II e IV) está, portanto, inseparavelmente ligado
à questão sobre o seu mandante. Mas, junto com a
questão do mandante, emerge também a questão da
viabilidade da tarefa, que parece totalmente despro-
porcional aos recursos do sonhador. À dialética entre
a clareza e a escuridão da missão, mencionada acima,
acrescenta-se, portanto, uma tensão entre a possibili-
dade e a impossibilidade do empreendimento, o que
é claramente representado pelas primeiras linhas do
diálogo: “Quem sois vós que me ordenais coisas im-
possíveis?”; “Justamente porque te parecem impossí-
veis, deves torná-las possíveis com a obediência e a
aquisição da ciência”.
As respostas desta seção III, no entanto, mudam
gradualmente o foco para o tema da mãe, que apare-
cerá na seção IV, com uma significativa duplicação
de figuras. As mães de que se fala, de fato, são duas:
a do homem venerando e a de João. Esta última já é
uma mestra confiável para ele, a cujos ensinamentos
ele recorre para justificar o seu pedido: “Minha mãe
diz que sem sua licença não devo estar com gente que
não conheço; dizei-me, pois, vosso nome”.
66

7.9 Page 69

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O SONHO DOS NOVE ANOS
O homem venerando mostra que conhece e apro-
va os ensinamentos da mãe de João, a quem ele
também apela: “Sou o filho daquela que tua mãe te
ensinou a saudar três vezes ao dia”. Mas outra é a
mãe — “Minha Mãe”, diz o homem — em cuja esco-
la João deve se colocar para aprender a sabedoria que
torna possíveis as coisas impossíveis.
A seção III, portanto, se por um lado parece ser
uma transição entre as duas aparições, por outro in-
troduz elementos temáticos de grande profundidade:
o sonhador encontrará a chave para acessar a iden-
tidade do homem venerando e adquirir a sabedoria
que torna o impossível possível a partir do persona-
gem misterioso, que sua mãe/mestra já o fez conhe-
cer. Essa concatenação mostra como a tensão entre o
excedente do inédito” e a “familiaridade do já co-
nhecidoseja o tom narrativo do sonho, a forma pela
qual o novum transcendente entra no Lebenswelt do
sonhador para modificá-lo a partir dos alicerces.
Resumindo a estrutura narrativa que emerge da
análise, podemos chegar, portanto, a este esquema:
[I] situação inicial
1. colocação espacial do sonho
2. comportamento desviante dos meninos
3. reação espontânea de João
[II] seção do homem venerando
1. aparição do homem venerando
e suas características
2. sua tríplice ordem/admoestação
67

7.10 Page 70

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O SONHO DOS NOVE ANOS
a. pôr-se à frente dos meninos
(discurso indireto)
b. não com pancadas...
c. põe-te imediatamente...
3. reação diferente de João e dos meninos
[III] diálogo intermédio
— “Quem sois vós...?”
— “Onde, com que meios...?”
— “Quem sois vós...?”
— “Dizei-me o vosso nome”.
[IV] sessão da mulher de aspecto majestoso
1. visão da mulher e suas características
2. sua tríplice ordem/admoestação entrelaçada
com cena simbólica:
* visão de animais ferozes
a. eis o teu campo
b. torna-te humilde, forte e robusto
c. o que agora vês... deves fazê-lo aos meus
filhos
* transformação dos animais ferozes em
mansos cordeiros
3. reação de João e garantia da mulher sobre a
futura compreensão.
3.1.3. O movimento intencional
A análise da estrutura do texto e o exame da ten-
são narrativa que percorre a narração permitem-nos
agora perceber o “para”, a “direção”, o “movimen-
to intencional” que caracteriza a experiência onírica.
68

8 Pages 71-80

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8.1 Page 71

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Vimos que a cena se passa em um ambiente familiar,
mas desde o início ele é muito aberto e povoado por
presenças (meninos que brincam). A percepção de
um elemento perturbador (blasfêmia) faz com que
João intervenha veementemente querendo reprimir o
comportamento negativo. Há, portanto, um primeiro
“para”, que expressa uma tendência natural à inter-
venção ativa, à aceitação de responsabilidade e, tal-
vez, uma inclinação ao protagonismo, o que corres-
ponde plenamente aos dados que conhecemos sobre o
temperamento natural do sonhador.
Entretanto, na medida em que esse gesto toma for-
ma com todo o seu ímpeto feito de socos e de pa-
lavras (“Ao ouvir as blasfêmias lancei-me de pronto
no meio deles”), ocorre um fato surpreendente que
exige uma mudança decisiva no “movimento” in-
tencional e imprime um novo “para”. Os elementos
que devem mudar são dois: primeiro, o objetivo, que
deve ser “ganhar” os companheiros tornando-se seu
líder e não simplesmente reprimir o mal; em segundo
lugar, o método: “Não é com pancadas, mas com a
mansidão e a caridade”. O desenvolvimento posterior
do sonho pode ser visto como o esclarecimento e o
aprofundamento dessa mudança de direção, das suas
perspectivas futuras e das demandas atuais.
Diante da mudança de movimento intencional exi-
gida “do exterior”, no entanto, a resistência emerge
imediatamente “do interior” do sonhador. Ela ma-
nifesta-se na forma de objeções, que se baseiam em
dois elementos: inadequação (“eu era um menino
69

8.2 Page 72

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O SONHO DOS NOVE ANOS
pobre e ignorante, incapaz de lhes falar de religião”)
e dificuldade de compreensão (“Quase sem saber o
que dizer”). A primeira objeção é respondida apon-
tando para os meios que tornam possível o impossí-
vel: obediência e ciência/sabedoria. A segunda é res-
pondida com o adiamento para o futuro: o que agora
não é claro, a seu tempo ficará claro. Não se pode
esconder o paradoxo contido nessas respostas, pois
elas basicamente afirmam que somente obedecendo
à ordem ficará totalmente claro o que ele realmente
pede (!). Há, contudo, uma garantia de poder/possibi-
lidade, garantida do alto, que compensa a inadequa-
ção/impossibilidade percebida pelo narrador, e uma
oferta de luz presente e futura que torna sustentáveis
as amplas margens de escuridão. Por mais árduo e
obscuro que possa parecer o novo movimento — ou,
para falar em termos cristãos, a nova missão — , ele
precisa ser realizado. Esse é o caráter de injunção que
o sonho traz consigo.
A injunção vem dos dois personagens misteriosos.
O homem venerando é, na verdade, a origem e o pon-
to de referência decisivo: ele não só intervém primei-
ro e de forma imperativa, mas a objeção depois da
visão dos animais volta a ser dirigida a ele (“pedi que
falassem de maneira que pudesse compreender”). A
senhora de aspecto majestoso, indicada a João como
uma mestra segura e credível, na verdade depende
do filho, já que, enfim, ela não faz nada mais do que
mediar a sua vontade. Do ponto de vista teológico,
é totalmente pertinente que ela deva ser uma mestra
70

8.3 Page 73

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O SONHO DOS NOVE ANOS
sobre o que parece impossível e obscuro ao homem
(cf. Lc 1:37).
O impacto da injunção na consciência do sonha-
dor é descrito no quadro final do sonho. As Memórias
narram que João acorda e tudo desaparece. A visão
do sonho termina, mas não os seus efeitos, impressos
não apenas na mente, mas também no corpo:
Fiquei transtornado. Parecia-me ter as mãos dolo-
ridas pelos socos que desferira e doer-me o rosto pelos
tapas recebidos; além disso, aquele personagem, a senho-
ra, as coisas ditas e ouvidas de tal modo me encheram a
cabeça que naquela noite não pude mais conciliar o sono.
Isto é totalmente plausível, uma vez que durante
o sonho os centros nervosos do cérebro enviam real-
mente os seus sinais aos órgãos do corpo, de modo
a dispô-los à ação. Assim como um sonho pode fa-
zer uma pessoa gritar alto, ele também pode fazer
as mãos e o rosto doerem se a experiência for muito
emocionante. Na verdade, nada como o corpo é uma
testemunha confiável do impacto — físico e psíquico
— da realidade, porque não se trata apenas de mas-
sa orgânica, mas de “carne” que pulsa e vibra. Neste
caso, o testemunho do corpo é particularmente inten-
so, igual à intensidade do impulso registrado por ele:
um impulso que deveria orientar uma vida inteira; na
verdade, haveria de orientar muitas vidas.
João, depois de ficar acordado por muito tempo,
porque naquela noite não conseguia mais dormir, “de
manhãzinha contou logo o sonho” aos irmãos, que ri-
71

8.4 Page 74

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O SONHO DOS NOVE ANOS
ram, depois à mãe e à avó, como contaria mais tarde
aos seus futuros leitores. Assim começa o conflito de
interpretações, que Dom Bosco não esconde: as en-
graçadas (pastor de cabras) e as desrespeitosas (chefe
de bandidos), as céticas (não se deve fazer caso dos
sonhos) e as espirituais (ser padre). Aquela que mais
se aproxima do coração da experiência é a mãe, já
evocada na experiência onírica. Quem dará ao sonho
a credibilidade necessária para que se torne mensa-
gem pública e profecia eclesial é aquele que na Igreja
reveste o papel simbólico de pai, o Papa.
Assim sendo, já estamos a caminho de uma leitura
de fé que, para ser melhor desenvolvida, precisa ter
um pano de fundo. As imagens e a dinâmica do sonho
devem, portanto, estar relacionadas ao que, na vida
da Igreja, constitui o “cânone” da linguagem da fé, ou
seja, o texto das Escrituras.
3.2. Pano de fundo bíblico
Entre os textos bíblicos a serem levados em con-
sideração como critérios hermenêuticos para a expe-
riência espiritual do sonho dos nove anos, há obvia-
mente, em primeiro lugar, aqueles que se referem à
possibilidade de Deus comunicar-se com o homem
através da mediação da imaginação onírica. Esta con-
vicção é expressa claramente, embora com a devida
cautela, tanto no Primeiro quanto no Novo Testamen-
to e tem uma série ampla e articulada de testemunhos.
72

8.5 Page 75

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Para o Primeiro Testamento, basta recordar os so-
nhos de Abraão (Gn 15,12ss), Jacó (Gn 28,10), José
(Gn 37,5-11; em Gn 39-41, José aparece mais tarde
como intérprete dos sonhos de dois dignitários e do
Faraó), Gideão (Jz 6,25ss), Samuel (1Sm 3,2ss), Natã
(2Sm 7,14-17) e Salomão (1Rs 3). Após o exílio, são
descritas as visões noturnas de Zacarias (Zc 1-6) e
Daniel (Dn 7; em Dn 2 ele explica os sonhos de Na-
bucodonosor), enquanto o profeta Joel anuncia que
sonhos e visões acompanharão o tempo da efusão do
espírito: “Depois de tudo isso, derramarei o meu es-
pírito sobre todos os viventes. E, então, todos os vos-
sos filhos e filhas falarão como profetas; os anciãos
receberão em sonho suas mensagens e os jovens terão
visões” (Jl, 3,1). A importância deste texto torna-se
evidente se levarmos em conta que ele é retomado pe-
los Atos dos Apóstolos na página que narra o prodígio
de Pentecostes (At 2,17-21), vendo na efusão do Es-
pírito do Ressuscitado o cumprimento da profecia de
Joel e nos sinais que a acompanham a vinda do tempo
em que o carisma profético se difunde entre o povo
de Deus. Os textos do Antigo Testamento também
incluem o sonho premonitório de Judas Macabeu,
que, antes da batalha contra Nicanor, prediz a vitória
(2Mc 15,11ss).
No Novo Testamento, o Evangelho de Mateus
apresenta bem três comunicações divinas em so-
nho a José (Mt 1,20; 2,13; 2,20) e uma aos Magos
(Mt 2,12), e relata que, durante a paixão de Jesus, a
mulher de Pilatos mandou-lhe dizer: “Nada faças a
esse justo. Hoje, por sua causa, fui perturbada por um
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O SONHO DOS NOVE ANOS
sonho que se refere a ele” (Mt 27,19). Depois, nos
Atos dos Apóstolos, visões noturnas são relatadas por
Ananias (At 9,10-12) e Paulo (At 16,9; 18,9).
A possibilidade de Deus falar com o homem por
meio de sonhos é, portanto, totalmente aceita nas
Escrituras, mesmo que não faltem advertências con-
tra a confiança em sonhos enganosos (Dt 13,2-4) e
que seja categoricamente proibida toda forma de
adivinhação (Dt 18,10).57 O posicionamento bíblico
quanto aos sonhos é, portanto, complexo: sabiamente
prudente, mas não preconceituoso. Ele abre espaço
para a possibilidade de os homens de Deus receberem
revelações específicas durante o sono, mas exclui ca-
tegoricamente que tais comunicações possam ser pe-
didas ou solicitadas.
A analogia mais evidente que se pode encontrar
entre um episódio bíblico e o sonho do menino dos
Becchi é encontrado provavelmente na vocação no-
turna de Samuel, descrita em 1Sm 3,1ss. Embora o
sonho de Samuel não seja descrito no texto inspira-
do, a página é introduzida com a afirmação de que
naqueles dias “as visões não eram frequentes”, su-
57 Se, por um lado, Jó afirma que “Deus fala de uma maneira e de ou-
tra e não prestas atenção. Por meio dos sonhos, das visões noturnas,
quando o sono profundo cai sobre os homens, enquanto dormem
nos seus leitos, então abre os ouvidos dos mortais e os assusta com
suas aparições. Isso para desviá-lo do pecado e livrá-lo do orgulho”
(33, 14-17); por outro lado, os profetas advertem: “assim disse o
Senhor: não vos deixeis engodar pelos profetas que se acham entre
vós, nem pelos adivinhos. Não escuteis os sonhos que anunciam.
Porquanto esses homens mentem, pretendendo pronunciar oráculos
em meu nome. Não lhes outorguei tal encargo” (Jr 29,8-9; cf. Jr 27,9).
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O SONHO DOS NOVE ANOS
gerindo que a esse tipo de fenômeno pertence a ex-
periência do jovem Samuel durante a noite, ao ouvir
repetidamente ser chamado pelo nome. Por sua vez,
a ideia de uma verdadeira visão noturna, enquanto
o menino dormia, é confirmada pelo fato de que, na
manhã seguinte, Samuel “temia manifestar a visão a
Eli” (3, 15). Também para Samuel, a experiência de
um chamado noturno durante o sono é prolongada em
outras visões. De fato, no final da cena do chamado
noturno, é dito que “o Senhor continuou a aparecer
em Silo, porque o Senhor se revelou a Samuel em
Silo com a sua palavra” (3, 21).
Norbert Hofmann58 ressaltou os paralelos que po-
dem ser encontrados entre o sonho dos nove anos e os
relatos bíblicos de vocação profética, entre os quais se
pode considerar como protótipo o profeta Jeremias:
Foi-me dirigida esta palavra do Senhor: “Antes que
fosses formado no seio materno, eu já te conhecia; an-
tes do teu nascimento, eu já te havia consagrado, e te ha-
via designado profeta das nações”. E eu respondi: “Ai de
mim, Senhor Javé, eu nem sei falar, pois que sou apenas
uma criança”. Replicou, porém, o Senhor: “Não digas:
“Sou apenas uma criança”: porquanto irás procurar todos
aqueles aos quais te enviar, e a eles dirás o que eu te or-
denar. Não deverás temê-los porque estarei contigo para
livrar-te — oráculo do Senhor”. E o Senhor, estendendo
58 N. Hofmann, Der Berufungstraum Don Boscos, “Schriftenreihe zur
Pflege salesianischer Spiritualitat” 29 (1991) 1-48. Uma edição re-
duzida em língua italiana está disponível em: N. Hofmann, Il sogno
della vocazione di don Bosco. In: ABS, Bollettino di collegamento
n. 11, p. 43-65.
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O SONHO DOS NOVE ANOS
em seguida a sua mão, tocou-me na boca. E assim me
falou: “Eis que coloco minhas palavras nos teus lábios”
(Jr 1,4-9).
O esquema da narração de vocação subjacente a
esses versículos e também recorrente em outras ce-
nas vocacionais do Antigo Testamento apresenta esta
série de elementos: descrição da situação de partida
e encontro com aquele que chama, missão, objeção
daquele que é chamado, garantia de ajuda, sinal.
Confrontando o esquema vocacional bíblico vetero-
testamentário e a estrutura do sonho, Hofmann chega
à conclusão de que entre os dois “parece haver uma
ampla convergência não apenas de natureza formal,
mas também de natureza de conteúdo, que ainda pode
ser verificada na análise dos particulares”.59 Entre es-
ses aspectos de semelhança, vale a pena evidenciar
aqueles que têm a mais clara relevância teológica,
como o caráter repentino e inesperado da figura ce-
leste que traz o chamado; o caráter social da missão,
que nunca diz respeito apenas à conjuntura pessoal de
quem é chamado, mas a um povo que lhe é confia-
do; a consciência de quem é chamado sobre a própria
inadequação radical devido à desproporção existente
entre a grandeza da tarefa e a escassez das capacida-
des pessoais. No caso da página de Jeremias, o para-
lelismo entre as objeções do jovem profeta — “Ai de
mim, Senhor Javé, eu nem sei falar, pois que sou ape-
nas uma criança” — e as de João no sonho: “Confuso
e assustado, repliquei que eu era um menino pobre
59 N. Hofmann. Il sogno, p. 53.
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O SONHO DOS NOVE ANOS
e ignorante, incapaz de lhes falar de religião” — é
bastante evidente. Isso não implica necessariamente o
uso consciente do esquema bíblico por parte do autor
das Memórias do Oratório, já que a natureza comum
da experiência de quem é chamado basta para justi-
ficar a semelhança do texto. Em todo caso, não deve
surpreender que as histórias bíblicas tenham desem-
penhado um papel inspirador, pelo menos implicita-
mente, no ato narrativo de Dom Bosco.
Quanto ao tema da mudança do “movimento in-
tencional” — de um gesto impulsivo de repressão do
mal a uma ação libertadora de orientação para o bem
— o ponto de referência mais óbvio do Antigo Testa-
mento é a história de Moisés. O livro de Êxodo não
fala da juventude do líder. O único episódio que se
insere entre o seu nascimento e a sua maioridade é o
do assassinato do egípcio e a sua fuga (Ex 2,11-15),
seguido pela narração do seu casamento com Zípora
[Séfora], filha de Reuel [Jetro]. Vale a pena citar essa
passagem porque ela oferece a possibilidade de algu-
mas considerações importantes:
Um dia em que saíra por acaso para ir ter com os seus
irmãos, [Moisés] foi testemunha de seus duros trabalhos,
e viu um egípcio ferindo um hebreu dentre seus irmãos.
Moisés, voltando-se para um e outro lado e vendo que
não havia ali ninguém, matou o egípcio e ocultou-o na
areia. Saindo de novo no dia seguinte, viu dois hebreus
que estavam brigando. E disse ao culpado: “Por que fe-
res o teu irmão?”. Mas o homem respondeu-lhe: “Quem
te constituiu chefe e juiz sobre nós? Queres, porventura,
matar-me como mataste o egípcio?”. Moisés teve medo
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O SONHO DOS NOVE ANOS
e pensou: “Certamente a coisa já é conhecida”. O faraó,
sabendo do ocorrido, procurou matar Moisés, mas este
fugiu para longe do faraó. Retirou-se para a terra de Ma-
diã, e sentou-se junto de um poço.
O texto evidencia o desenvolvimento de Moisés,
que não é apenas físico, mas também espiritual. Este
desenvolvimento é expresso em sua saída para encon-
trar os seus irmãos, que o texto relata duas vezes: no
v. 11 e no v. 13. Assim, o verbo “sair” aparece nes-
ta página pela primeira vez, o que será fundamental
para a teologia do Êxodo. Ele expressa aqui o movi-
mento espontâneo e natural de Moisés, um movimen-
to que, embora brotado da vontade de fazer justiça
e reprimir o mal, é, no entanto, realizado de forma
violenta e perturbada, com resultados negativos. Nes-
tes versículos é descrito, portanto, o “êxodo” inicial
de Moisés, cujas limitações são mostradas porque “a
violência não elimina a injustiça, mas torna a situação
pior do que antes e, acima de tudo, porque na origem
desse êxodo ainda não há nenhuma missão de Deus
— significativamente, Ele está em silêncio em todo
este evento — , mas apenas o ideal e o entusiasmo de
um homem”.60 Será somente pela vocação na sarça
ardente, lugar arquétipo para o tema da revelação do
Nome divino, que Moisés receberá a nova direção in-
terior, o movimento que o colocará à frente do povo
e o capacitará para liderar os seus irmãos no caminho
adequado de saída, no verdadeiro êxodo.
60 Esodo, nuova versione, introduzione e commento di M. Priotto.
Milano: Paoline, 2014, p. 72.
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9 Pages 81-90

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9.1 Page 81

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O SONHO DOS NOVE ANOS
O mesmo tema de uma mudança de direção inte-
rior pode ser reconhecível, no Novo Testamento, na
história de Paulo de Tarso. No início, a sua adesão
à Lei de Deus transmitida pelos pais é expressa com
zelo agressivo e violento, que deseja suprimir o que
lhe parece incompatível com a educação religiosa
recebida. Mas quando Paulo cede ao próprio impul-
so interior, experimenta, na estrada para Damasco,
um encontro que o revira de cabeça para baixo. É o
encontro com uma luz que o deixa cego e o leva a
colocar-se na escola de Ananias, para aprender a en-
tender de maneira nova o que Deus realmente quer
dele. Paulo se definirá de agora em diante “apóstolo
por vocação” (cf. Rm 1,1; 1Cor 1,1) ou “apóstolo pela
vontade de Deus” (2Cor 1,1; Ef 1,1; Cl 1,1), eviden-
ciando assim que a mudança não resulta de uma bus-
ca interior pessoal, da realização dos seus próprios
pensamentos ou reflexões, mas é fruto de uma in-
tervenção divina imprevisível, que direcionou a sua
vida para um novo rumo. Por isso, ele, que havia sido
“perseguidor e injuriador” (1Tm 1, 13), aprendeu a
“fazer-se tudo para todos, a fim de a qualquer custo
salvar alguns” (cf. 1Cor 9, 22).
Tanto a experiência de Moisés quanto a de Paulo
iluminam de modo intenso a transformação interior
exigida de João para que ele abandone o seu impulso
espontâneo em relação à realidade e a sua pretensão
de melhorá-la por meio dos seus esforços e entre no
movimento e no estilo com que Deus age na história.
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O SONHO DOS NOVE ANOS
Este estilo é essencialmente caracterizado, no
sonho e nas Escrituras, através da simbólica pasto-
ral. Embora a terminologia de “pastor” não apareça
explicitamente no sonho dos nove anos, as imagens
correspondentes a ela são claramente atestadas,
especialmente quando os meninos para os quais João
deve trabalhar são retratados como mansos cordei-
ros.61 Essas imagens, por outro lado, eram familiares
a um menino que, como todos os seus companheiros,
passava várias horas do dia pastoreando, cuidando
dos animais. Essa atividade diária constituía, portan-
to, uma ligação espontânea com a experiência reli-
giosa do povo de Israel, para quem o pastoreio era
um dos símbolos fundamentais que exprimiam o guia
da comunidade e o cuidado com a sua vida. Os reba-
nhos precisam de homens habilidosos para guiá-los e
defendê-los dos animais ferozes; da mesma forma, o
povo precisa de guias sábios, que cuidem da sua vida
com dedicação e responsabilidade. É por isso que, no
Antigo Testamento, o título de “pastor” é atribuído
61 Embora a terminologia do “pastor” não ocorra explicitamente na
narração, o seu simbolismo está, sem dúvida, como pano de fundo.
Ela, porém, ficará explícita em um segundo sonho, que as Memórias
do Oratório narram mais tarde, descrevendo-o como uma espécie
de “apêndice ao que teve nos Becchi” (MO, p. 133). Nesse sonho,
que Dom Bosco tem na noite anterior ao segundo domingo de ou-
tubro de 1844, ele vê novamente a cena de animais ruidosos que
se transformam em mansos cordeiros, mas a isso se acrescenta um
novo elemento maravilhoso, pois “muitos cordeiros convertiam-se
em pastorzinhos, que cresciam e passavam a tomar conta dos ou-
tros” (p. 133). A mesma figura feminina do sonho dos nove anos
também retorna nesse sonho na figura de uma “pastora”. O imagi-
nário pastoral, que estava presente como pano de fundo implícito
no primeiro sonho, torna-se progressivamente mais claro.
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9.3 Page 83

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O SONHO DOS NOVE ANOS
normalmente a reis e a outros papéis de responsabi-
lidade, sem esquecer que os dois maiores líderes de
Israel — Moisés e Davi — foram, antes de tudo, pas-
tores em sentido literal. O título, no entanto, refere-se
sobretudo a Deus, pois, mediante pastores colocados
como guias do povo, é Ele mesmo quem de fato o
conduz: “Escutai, ó pastor de Israel, vós que levais
José como um rebanho” (Sl 79 (80), 2); “nós somos o
povo de que ele é o pastor, as ovelhas que as suas mãos
conduzem” (Sl 95 (94), 7); “O Senhor é meu pastor”
(Sl 22 (23), 1); “como um pastor, vai apascentar seu
rebanho, reunir os animais dispersos” (Is 40, 11). O
capítulo 34 de Ezequiel destaca-se de modo particular
entre todos os textos do Antigo Testamento que fazem
uso dessa metáfora. Nele, o profeta expressa um duro
juízo sobre os falsos reis-pastores, que, em vez de se
dedicarem ao bem do povo, buscam os próprios inte-
resses, e relata a decisão de Deus de assumir a função
de pastor (“vou tomar eu próprio o cuidado com mi-
nhas ovelhas, velarei sobre elas... A ovelha perdida
eu a procurarei; a desgarrada, eu a reconduzirei; a
ferida, eu a curarei; a doente, eu a restabelecerei”).
Esse empenho é completado pela promessa de Deus
de suscitar um pastor segundo o seu coração: “para
pastoreá-las suscitarei um só pastor” (Ez 34, 23).
No Novo Testamento, a imagem do pastor, usada
por Jesus nas parábolas e que dá um vislumbre da
sua atitude interior quando ele se comove diante
das multidões abandonadas, atinge o seu clímax no
grande discurso cristológico de Jo 10. Em polêmica
com os falsos guias políticos e religiosos, descritos
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O SONHO DOS NOVE ANOS
como mercenários, Jesus apresenta-se como o “bom
pastor”, ou seja, o autêntico pastor enviado por Deus,
que conhece uma a uma as suas ovelhas e dá a sua
vida por elas. A imagem do pastor é, portanto, uma das
formas privilegiadas com que se expressa a teologia
da missão de Cristo. O Filho enviado pelo Pai é o
guia pelo qual Deus conduz a si toda a humanidade,
libertando-a do mal e introduzindo-a nas pastagens
da vida. Essa imagem, entretanto, também é usada no
Novo Testamento para aqueles que Jesus associa à sua
missão, os apóstolos e seus sucessores, constituindo-
os, por sua vez, como guias e pastores da sua
comunidade. As palavras de Jesus a Pedro “apascenta
os meus cordeiros” (Jo 21,15) são uma das expressões
mais elevadas deste mandato pastoral. A tarefa que o
Ressuscitado confia ao apóstolo aparece como uma
verdadeira participação no ato que o próprio Jesus
continua a realizar pessoalmente, conduzindo pelos
caminhos da história aqueles que participam do seu
rebanho.
A profundidade bíblica da metáfora pastoral lança
uma luz significativa sobre a cena do sonho que apre-
senta os mansos cordeiros correndo, fazendo festa ao
redor do homem venerando e da senhora. A missão
que o menino do sonho recebe e que excede totalmen-
te as suas forças é possível pelo fato de que ele não
precisa confiar nas próprias capacidades, mas deve
agir “dentro” do espaço vital do Ressuscitado. Não
é difícil entender que o Pastor que transformará os
animais ferozes é Ele mesmo e que, por essa razão,
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O SONHO DOS NOVE ANOS
os cordeiros se reunirão em festa ao redor d’Ele e da
Mãe, e não ao redor de João.
Esta consideração leva-nos, assim, ao tema da
simbólica cristológica e mariológica do sonho, à
qual já nos referimos necessariamente no comen-
tário sobre as seções da narração, tão crucial para a
sua compreensão. Já mencionamos as características
transcendentais e ao mesmo tempo familiares que
caracterizam as duas figuras. Elas são caracterizadas
por uma luz cintilante, que torna impossível até mes-
mo fixar o olhar sobre o homem, enquanto brilha de
todos os lados no manto da mulher. A luz é claramente
uma das características mais marcantes da simbologia
religiosa para expressar o divino e a transcendência: o
próprio Deus é “envolvido de luz como de um manto”
(Sl 103 (104), 2). Não há necessidade, contudo, de
resumir aqui toda a riqueza bíblica dessa metáfora,
nem de explicar todas as referências bíblicas (espe-
cialmente apocalípticas) que podem ser encontradas
para os traços e as ações que qualificam os dois in-
divíduos. O leitor com um mínimo de familiaridade
com as Escrituras perceberá imediatamente as suas
alusões. No entanto, é mais importante, neste ponto
da reflexão, parar e compreender alguns temas teoló-
gico-espirituais apresentados pelo sonho e transmiti-
dos aos leitores como um legado a valorizar e cultivar.
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O SONHO DOS NOVE ANOS
3.3. Temas espirituais
Um comentário sobre os temas teológico-espirituais
presentes no sonho dos nove anos poderia ter desdo-
bramentos tão amplos que incluiria um tratado inteiro
de “salesianidade”. Lido a partir da história dos seus
efeitos, o sonho abre, de fato, inúmeros caminhos
para aprofundar os aspectos pedagógicos e apostóli-
cos que caracterizaram a vida de São João Bosco e a
experiência carismática que teve origem nele. A natu-
reza da nossa pesquisa e o seu lugar no interior de um
projeto de pesquisa mais amplo impõem, no entanto,
que nos limitemos a alguns elementos, concentrando-
-nos nos temas principais e sugerindo as linhas pelas
quais podemos aprofundar a sua compreensão. Opta-
mos, então, por concentrar a nossa atenção em cinco
pistas de reflexão espiritual que se referem, respecti-
vamente, (1) à missão oratoriana, (2) ao chamado ao
impossível, (3) ao mistério do Nome, (4) à mediação
materna e, enfim, (5) ao poder da mansidão.
3.3.1. A missão oratoriana
O sonho dos nove anos está repleto de meninos.
Eles estão presentes da primeira à última cena e
são os beneficiários de tudo o que acontece. A sua
presença é marcada pela alegria e a recreação,
típicas da sua idade, mas também pela desordem e
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O SONHO DOS NOVE ANOS
por comportamentos negativos. Os meninos não
são, portanto, no sonho dos nove anos, a imagem
romântica de uma idade encantada, intocada pelos
males do mundo, nem correspondem ao mito pós-
moderno da condição juvenil como uma época de
ação espontânea e disposição perene a mudanças,
que deveria ser preservada numa eterna adolescência.
Os meninos do sonho são extraordinariamente
“reais”, tanto quando aparecem com a sua fisionomia
quanto quando são representados simbolicamente
sob a forma de animais. Eles brincam e brigam,
divertem-se rindo e arruínam-se dizendo blasfêmias,
exatamente como fazem na realidade. Não parecem
nem inocentes, como imaginados pela pedagogia
da espontaneidade, nem capazes de ser mestres de
si mesmos, como pensados por Rousseau. Desde o
momento em que aparecem, em um “pátio muito
espaçoso”, que pressagia os grandes pátios dos
futuros oratórios salesianos, eles invocam a presença
e a ação de alguém. O gesto impulsivo do sonhador,
entretanto, não é a intervenção adequada; é necessária
a presença de um Outro.
Entrelaçada com a visão dos meninos está a apari-
ção da figura cristológica, como agora podemos cla-
ramente chamá-la. Aquele que disse no Evangelho:
“Deixai vir a mim os pequeninos” (Mc 10,14), vem
para indicar ao sonhador a atitude com que os meni-
nos devem ser abordados e acompanhados. Ele surge
majestoso, varonil, forte, com traços que enfatizam
claramente o seu caráter divino e transcendente; o seu
modo de agir é marcado pela segurança e pelo poder
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O SONHO DOS NOVE ANOS
e manifesta uma plena autoridade sobre as coisas que
acontecem. O homem venerando, no entanto, não ins-
tila medo, mas traz paz aonde antes havia confusão
e agitação; ele manifesta compreensão benevolente
para com João orientando-o pelo caminho da mansi-
dão e caridade.
A reciprocidade entre as duas figuras — os meni-
nos, de um lado, e, de outro, o Senhor (depois acom-
panhado pela Mãe) — define os contornos do sonho.
As emoções sentidas por João na experiência do so-
nho, as perguntas que faz, a tarefa que é chamado a
realizar, o futuro que se abre diante dele estão plena-
mente relacionados com a dialética entre os dois po-
los. Talvez a mensagem mais importante que lhe foi
transmitida pelo sonho, que ele provavelmente enten-
deu por primeiro porque ficou impressa na sua imagi-
nação, mesmo antes de entendê-la de forma reflexiva,
é que essas figuras se relacionam umas com as outras
e que ao longo da sua vida ele jamais poderá disso-
ciá-las. O encontro entre a vulnerabilidade dos jovens
e o poder do Senhor, entre a necessidade deles de sal-
vação e a sua oferta de graça, entre o desejo deles de
alegria e o seu dom de vida deve ser agora o centro
dos seus pensamentos, o espaço da sua identidade. A
partitura da sua vida será toda escrita na tonalidade
proporcionada por esse tema gerador: modulá-la em
todas as suas potencialidades harmônicas será a sua
missão, em que ele deve versar todos os seus dons de
natureza e graça.
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O SONHO DOS NOVE ANOS
O dinamismo da vida de João aparece, portanto,
no sonho-visão como um movimento contínuo, uma
espécie de ir e vir espiritual, entre os meninos e o
Senhor. Do grupo de meninos entre os quais ele se
lançou impetuosamente, João deve permitir-se ser
atraído pelo Senhor que o chama pelo nome e, em
seguida, partir novamente d’Aquele que o envia e co-
locar-se à frente dos seus companheiros com estilo
muito diferente. Mesmo que no sonho ele receba so-
cos tão fortes dos meninos, que ainda sinta a sua dor
quando acorda e que ouça palavras do homem vene-
rando que o deixam sem palavras, seu ir e vir não é
uma agitação inconclusiva, mas um caminho que o
transforma gradualmente e faz chegar aos jovens uma
energia de vida e de amor.
Que tudo isso aconteça em um pátio é altamente
significativo e tem um claro valor proléptico, já que,
na missão de Dom Bosco, o pátio oratoriano será o
lugar privilegiado e o símbolo exemplar. Todo o cená-
rio é montado nesse ambiente, ao mesmo tempo vas-
to (pátio muito espaçoso) e familiar (perto de casa).
O fato de a visão vocacional não ter como pano de
fundo um lugar sagrado ou um espaço celeste, mas o
ambiente em que os meninos vivem e brincam, indica
claramente que a iniciativa divina assume o mundo
deles como lugar de encontro. A missão confiada a
João, mesmo que seja claramente dirigida em senti-
do catequético e religioso (“para instruí-los sobre a
fealdade do pecado e a preciosidade da virtude”), tem
como habitat próprio o universo da educação. A as-
sociação da figura cristológica com o espaço do pátio
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O SONHO DOS NOVE ANOS
e a dinâmica da diversão, que certamente um menino
de nove anos não pode ter “construído”, constitui uma
transgressão do imaginário religioso mais comum,
cuja força inspiradora é igual à profundidade dos mis-
térios. Ela realmente sintetiza em si toda a dinâmica
do mistério da encarnação, pela qual o Filho assume a
nossa forma para nos oferecer a Sua, e evidencia que
não há nada de humano que deva ser sacrificado para
dar lugar a Deus.
O pátio fala, portanto, da proximidade da graça
divina ao “sentir” dos jovens: para acolhê-la não é
preciso renunciar à própria idade, negligenciar as pró-
prias necessidades, forçar os próprios ritmos. Quando
Dom Bosco, já adulto, escreveu no Jovem Instruído
que um dos truques do demônio é fazer com que os
jovens pensem que a santidade é incompatível com o
seu desejo de ser alegres e com o frescor exuberan-
te da sua vitalidade, ele estava apenas retomando de
forma madura a lição intuída no sonho e que depois
se tornou um elemento central do seu magistério espi-
ritual. Ao mesmo tempo, o pátio fala da necessidade
de entender a educação a partir do seu núcleo mais
profundo, que se refere à atitude do coração em re-
lação a Deus. Ali, ensina o sonho, não está apenas o
espaço de uma abertura original à graça, mas também
o abismo da resistência, onde se escondem a feiura
do mal e a violência do pecado. É por isso que o ho-
rizonte educativo do sonho é claramente religioso, e
não apenas filantrópico, e põe em cena o simbolismo
da conversão, e não apenas o da autorrealização.
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10.1 Page 91

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O SONHO DOS NOVE ANOS
No pátio do sonho, cheio de meninos e habitado
pelo Senhor, revela-se a João o que será a futura dinâ-
mica pedagógica e espiritual dos pátios oratorianos.
Dela queremos enfatizar ainda dois aspectos, clara-
mente evocados nas ações realizadas no sonho, pri-
meiro pelos meninos e depois pelos mansos cordeiros.
O primeiro aspecto deve ser observado no fato que
“aqueles meninos, parando de brigar, de gritar e blas-
femar, juntaram-se ao redor do personagem que esta-
va a falar”. O tema do “reunir-se” (juntar-se) é uma
das matrizes teológicas e pedagógicas mais importan-
tes da visão educativa de Dom Bosco. Numa célebre
página escrita em 1854, Introdução ao Plano de Re-
gulamento do Oratório Masculino de São Francisco
de Sales de Turim, na região de Valdocco,62 ele apre-
senta a natureza eclesial e o sentido teológico da ins-
tituição oratoriana citando as palavras do evangelista
João: “Ut filios Dei, qui erant dispersi, congregaret
in unum” (Para que fossem reconduzidos à unidade
os filhos de Deus dispersos) (Jo 11, 52). A atividade
do Oratório é, portanto, colocada sob o signo da reu-
nião escatológica dos filhos de Deus, que constituiu o
centro da missão do Filho de Deus:
As palavras do santo Evangelho que nos fazem conhe-
cer o divino Salvador vindo do céu à terra para reunir
todos os filhos de Deus, dispersos nas várias partes da
terra, parecem-me que se possam aplicar literalmente à
juventude dos nossos dias.
62 O texto crítico encontra-se em P. Braido (ed.). Don Bosco educatore.
Scritti e testimonianza. LAS 3, 1996, p. 108-111.
89

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O SONHO DOS NOVE ANOS
A juventude, “porção mais delicada e preciosa da
sociedade humana”, vê-se muitas vezes dispersa e
desorganizada devido ao desinteresse educativo dos
pais ou à influência de maus companheiros. A primei-
ra coisa a fazer para proporcionar a educação desses
jovens é justamente “reuni-los, deixá-los falar, mo-
ralizá-los”. Nessas palavras da Introdução ao Plano
de Regulamento, o eco do sonho, amadurecido na
consciência do educador já adulto, está presente de
forma clara e reconhecível. O oratório é ali apresen-
tado como uma alegre “reunião” de jovens ao redor
da única força calmante capaz de salvá-los e trans-
formá-los, a do Senhor: “Os oratórios são reuniões
nas quais os jovens são mantidos em uma recreação
agradável e honesta, depois de terem participado das
sagradas funções da igreja”. De fato, desde a infância,
Dom Bosco entendeu que “essa era a missão do filho
de Deus; isso só a sua santa religião pode fazer”.
O segundo aspecto que se tornará um traço iden-
tificador da espiritualidade oratoriana é aquele que,
no sonho, é revelado pela imagem dos cordeiros cor-
rendo “ao redor daquele homem e daquela senhora,
como a fazer-lhes festa”. A pedagogia da festa será
uma dimensão fundamental do Sistema Preventivo de
Dom Bosco, que verá nas numerosas festas religio-
sas do ano a oportunidade de oferecer aos meninos
a chance de respirar profundamente a alegria da fé.
Dom Bosco saberá envolver entusiasticamente a co-
munidade juvenil do Oratório na preparação de even-
tos, peças teatrais, recepções que proporcionem uma
distração do trabalho enfadonho do dia a dia, a fim
90

10.3 Page 93

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O SONHO DOS NOVE ANOS
de valorizar os talentos dos meninos para a música, a
representação, a ginástica, para orientar a sua imagi-
nação na direção de uma criatividade positiva. Levan-
do-se em conta que a educação proposta nos círculos
religiosos do século XIX tinha geralmente um teor
bastante austero, que parecia apresentar como ideal
pedagógico a ser alcançado o de uma compostura de-
vota, a saudável alegria festiva do oratório destaca-se
como expressão de um humanismo aberto a captar
as necessidades psicológicas do menino e capaz de
satisfazer o seu protagonismo. O que a pedagogia sa-
lesiana deve ter em vista, portanto, é a alegria festiva
que se segue à metamorfose dos animais do sonho.
A festa oferece ao homem a chance de se liber-
tar das restrições da vida quotidiana, abandonar os
papéis que enclausuram as relações e trazer à luz o
que é essencial, o que pode realmente fundamentar
a alegria de viver e permitir reconhecer-se como co-
munidade. Na raiz do comportamento festivo, no en-
tanto, há uma questão inevitável que se refere ao seu
fundamento. Em todas as culturas, o comportamento
festivo pressupõe uma credibilidade que os partici-
pantes das festas não podem dar a si mesmos. A cele-
bração não pode ser simplesmente o resultado de uma
decisão autônoma; não é possível celebrar sem um
motivo real para fazê-lo, e esse motivo deve provir
de uma experiência que realmente amplie os espaços
do coração e introduza na liberdade. Caso contrário,
a liberdade encenada na festa é apenas uma crosta
exterior vazia, recobrindo uma aspiração frustrada;
em última análise, é uma ilusão que só pode decep-
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10.4 Page 94

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O SONHO DOS NOVE ANOS
cionar. Em vez de liberdade, vive-se a transgressão;
em vez de comunidade, produz-se o rebanho; em vez
de alegria, há apenas o clamor que a imita, mas não
a proporciona.
A festa oratoriana põe o seu centro onde os cordei-
ros do sonho, uma metamorfose do rebanho barulhen-
to, a encontraram. A presença de Jesus e de sua Mãe é
o centro, a origem e o objetivo da festa juvenil. . Dom
Bosco sabe que a alegria autêntica vem da paz de uma
consciência que vive na amizade com o Senhor. Por
isso, prepara as festas com novenas que adestram o
coração para a vida da graça e com o sacramento da
Confissão, proposto como verdadeira experiência de
cura interior. A festa é, portanto, o momento culmi-
nante de um verdadeiro caminho de transformação
espiritual, do qual a graça de Deus é a força motriz
profunda, enquanto, por sua vez, aponta para uma
realização posterior, que ocorrerá na alegria do céu,
quando a transfiguração do homem será plenamente
realizada. A Escritura ensina que toda a criação está,
desde o início, orientada para o sábado, o dia do re-
pouso de Deus, que não é um tempo vazio, mas um
espaço para a gratuidade do encontro e a celebração
da amizade. O homem carrega espontaneamente den-
tro de si o anseio de entrar no dia de Deus, de lutar por
uma plenitude de vida que não conhece mais o peso
da existência e o cansaço do quotidiano. Essa tensão
é particularmente viva na idade juvenil, que busca
mais intensamente o passatempo e a diversão, quase
como se buscasse aí a antecipação de uma felicidade
maior. Dom Bosco soube colher nesta tensão a base
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10.5 Page 95

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O SONHO DOS NOVE ANOS
criatural e o espaço educativo para uma experiência
espiritual da verdadeira festa, possibilitada pelo dom
da graça.
A ligação entre recreação do pátio e fazer fes-
ta na liturgia é certamente um dos aspectos madu-
ros das intuições que o sonho trazia em si. Em uma
passagem das Memórias do Oratório, descrevendo a
animação de um dia típico entre os meninos, Dom
Bosco afirma: “servia-me daqueles agitados recreios
para insinuar aos meus alunos pensamentos religiosos
e convidá-los a frequentar os santos sacramentos”.63
Por outro lado, na célebre Carta de Roma de 1884,
que é uma das expressões mais preciosas da sua sa-
bedoria espiritual, ele coloca vice-versa uma relação
muito estreita entre a “apatia” no recreio e a “frieza”
na aproximação dos sacramentos. Na missão orato-
riana que o sonho lhe confiou, pátio e igreja, diversão
e liturgia, recreação saudável e vida da graça devem
estar intimamente unidos, como dois elementos inse-
paráveis de uma única pedagogia.
3.3.2. O apelo ao impossível
Enquanto o sonho termina em festa para os meni-
nos, para João termina em desânimo e até mesmo em
lágrimas. Este é um resultado que não pode deixar
63 MO, p. 176.
93

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O SONHO DOS NOVE ANOS
de ser surpreendente. É costume pensar, de fato, com
alguma simplificação, que as visitas de Deus são ex-
clusivamente portadoras de alegria e consolação. É
paradoxal, portanto, que a cena vocacional termine
em lágrimas para o apóstolo da alegria, para o ho-
mem que, como seminarista, fundou a “sociedade da
alegria” e, como padre, ensinou aos seus filhos que a
santidade consiste em “estar muito alegres”.
Isto pode indicar certamente que a alegria de que se
fala não é puro lazer e simples despreocupação, mas
uma ressonância interior à beleza da graça. Como tal,
ela só pode ser alcançada por meio de batalhas espiri-
tuais exigentes, cujo preço Dom Bosco terá de pagar
em grande parte pelo bem dos seus meninos. Assim,
ele reviverá em si mesmo aquela troca de papéis en-
raizada no mistério pascal de Jesus e prolongada na
condição dos apóstolos: “Nós, estultos por causa de
Cristo; e vós, sábios em Cristo! Nós, fracos; e vós,
fortes! Vós, honrados; e nós, desprezados!” (1Cor
4,10), mas, ao mesmo tempo, “queremos apenas con-
tribuir para a vossa alegria” (2Cor 1,24).
A agitação que encerra o sonho lembra, todavia,
sobretudo a sensação de vertigem sentida pelos gran-
des personagens bíblicos diante da vocação divina
que se manifesta em sua vida, direcionando-a para
um rumo totalmente imprevisível e desconcertante.
O Evangelho de Lucas afirma que até mesmo Maria,
diante das palavras do anjo, teve uma sensação de
profunda agitação interior (“perturbou-se ela com
essas palavras e pôs-se a pensar no que significaria
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10.7 Page 97

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O SONHO DOS NOVE ANOS
semelhante saudação” Lc 1,29). Isaías sentira-se per-
dido diante da manifestação da santidade de Deus no
templo (Is 6), Amós comparara ao rugido de um leão
o poder da Palavra divina pela qual ele havia sido
tomado (Am 3,8), enquanto Paulo experimentaria na
estrada para Damasco a reviravolta existencial que
vem do encontro com o Ressuscitado. Embora teste-
munhando o fascínio do encontro com um Deus que
seduz para sempre, no momento do chamado, os ho-
mens bíblicos parecem mais hesitar temerosos diante
de algo que os ultrapassa do que se lançar de cabeça
na aventura da missão.
A agitação vivida por João no sonho parece ser
uma experiência análoga. Ela decorre da natureza pa-
radoxal da missão que lhe é designada, que ele não
hesita em descrever como “impossível” (“Quem sois
vós que me ordenais coisas impossíveis?”). O adjeti-
vo pode parecer “exagerado”, como às vezes são as
reações das crianças, especialmente quando expres-
sam um sentimento de inadequação diante de uma
tarefa desafiadora. Esse elemento da psicologia infan-
til, porém, não é suficiente para iluminar o conteúdo
do diálogo do sonho e a profundidade da experiência
espiritual que ele comunica. Tanto mais que João tem
uma verdadeira qualidade de líder e uma excelente
memória, o que lhe permitirá, nos meses seguintes
ao sonho, começar imediatamente a fazer um pouco
de oratório, entretendo os seus amigos com jogos de
acrobacia e repetindo para eles na íntegra a pregação
do pároco. Por isso, nas palavras com que ele declara
sem rodeios ser “incapaz de falar de religião” com
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10.8 Page 98

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O SONHO DOS NOVE ANOS
seus companheiros, é bom ouvir o eco distante da ob-
jeção de Jeremias à vocação divina: “eu nem sei falar,
pois que sou apenas uma criança” (Jr 1,6).
Não é no nível das qualidades naturais que se ma-
nifesta aqui o apelo pelo impossível, mas no nível do
que pode ser incluído no horizonte do real, do que
pode ser esperado com base na própria imagem de
mundo, do que está dentro dos limites da experiên-
cia. Além desta fronteira, abre-se justamente a região
do impossível que, no entanto, biblicamente, é o es-
paço do agir de Deus. Para Abraão é “impossível”
ter um filho com uma mulher velha e estéril como
Sara; é “impossível” para a Virgem conceber e dar ao
mundo o Filho de Deus feito homem; aos discípulos
parece ser “impossível” a salvação, se é mais fácil
um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que
um rico entrar no reino dos céus. No entanto, Abraão
ouve a resposta: “Existe alguma coisa impossível ao
Senhor?” (Gn 18,14); o anjo diz a Maria que “a Deus
nada é impossível” (Lc 1,37); e Jesus responde aos
discípulos incrédulos que “o que é impossível aos ho-
mens é possível a Deus” (Lc 18,27).
O lugar supremo onde surge a questão teológica
do impossível é o momento decisivo da história da
salvação, ou seja, o drama pascal, em que a fronteira
do impossível a ser superado é o mesmo abismo te-
nebroso do mal e da morte. Como é possível vencer
a morte? Não é ela mesma o emblema peremptório
da impossibilidade, o limite intransponível de toda
possibilidade humana, o poder que domina o mun-
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10.9 Page 99

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O SONHO DOS NOVE ANOS
do, indicando o seu xeque-mate? E a morte de Jesus
não sela esse limite de forma irrevogável? “Com esta
morte, mais do que com qualquer outra, a morte triun-
fa como fim de todas as possibilidades, pois com a
morte do Santo trata-se da morte da possibilidade de
tudo e de todos”.64 Entretanto, foi no próprio seio des-
sa suprema impossibilidade que Deus suscitou a no-
vidade absoluta. Ao ressuscitar o Filho feito homem
no poder do Espírito, Ele subverteu radicalmente o
que chamamos de mundo do possível, rompendo o
limite dentro do qual encerramos a nossa expectativa
de realidade. Uma vez que nem mesmo a impotência
da cruz pode impedir o dom do Filho, o impossível
da morte é superado pelo inédito da vida ressuscitada,
que dá origem à criação suprema e faz novas todas
as coisas. De agora em diante e “uma vez por todas”,
não é mais a vida que está sujeita à morte, mas a mor-
te à vida.
É nesse espaço gerado pela ressurreição que o
impossível se torna realidade efetiva, é nele que o ho-
mem venerando do sonho, resplandecente da luz da
Páscoa, pede a João que torne possível o impossível.
E o faz com uma fórmula surpreendente: “Justamente
porque te parecem impossíveis, deves torná-las pos-
síveis com a obediência”. Parecem as palavras com
que os pais exortam os filhos, quando eles relutam
em fazer algo que não se sentem capazes ou dispos-
tos a fazer. “Obedece e verás que consegues”, dizem,
64 J. L. Marion, Nulla è impossibile a Dio, “Communio” n. 107 (1989),
p. 57-73, 62.
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10.10 Page 100

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O SONHO DOS NOVE ANOS
então, a mãe ou o pai: a psicologia do mundo infantil
é perfeitamente respeitada. Mas são também, e muito
mais, as palavras com que o Filho revela o segredo do
impossível, um segredo totalmente oculto na sua obe-
diência. O homem venerando que ordena uma coisa
impossível sabe, pela sua experiência humana, que a
impossibilidade é o lugar onde o Pai trabalha com o
seu Espírito, desde que a pessoa lhe abra a porta com
a própria obediência.
João, obviamente, permanece perturbado e perple-
xo, mas essa é a atitude que o homem experimenta
quando se depara com o impossível da Páscoa, quan-
do se depara com o milagre dos milagres, do qual to-
dos os outros eventos salvíficos são sinais. Depois de
uma análise acurada da fenomenologia do impossível,
J. L. Marion afirma: “Na manhã da Páscoa, somente
o Cristo pode ainda dizer Eu, de modo que, diante
d’Ele, todo Eu transcendental deve reconhecer-se
como [...] um eu questionado, porque perplexo”.65 A
Páscoa faz com que o que existe de mais real na his-
tória é algo que o eu incrédulo considera a priori im-
possível. O impossível de Deus, para ser reconhecido
em sua realidade, exige uma mudança de horizonte,
que se chama .
Não surpreende, então, no sonho, que a dialética
do possível-impossível esteja entrelaçada com outra
dialética, a da claridade e da escuridão. Ela caracteri-
za, em primeiro lugar, a própria imagem do Senhor,
65 Ibid, p. 72.
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11 Pages 101-110

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11.1 Page 101

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O SONHO DOS NOVE ANOS
cujo rosto é tão brilhante que João não consegue olhar
para ele. Nessa face brilha, de fato, uma luz divina
que, paradoxalmente, produz escuridão. Em seguida,
há as palavras do homem e da senhora que, embora
expliquem claramente o que João deve fazer, ain-
da assim o deixam confuso e assustado. Por fim, há
uma ilustração simbólica, por meio da metamorfose
de animais, que, no entanto, leva a uma incompreen-
são ainda maior. João só pode pedir mais esclareci-
mentos: “pedi que falassem de maneira que pudesse
compreender, porque não sabia o que significava tudo
aquilo”, mas a resposta que obteve da senhora de as-
pecto majestoso adia o momento da compreensão: “A
seu tempo, tudo compreenderás”.
Isso certamente significa que somente por meio da
execução do que já é apreensível do sonho, ou seja, por
meio da obediência possível, será aberto mais ampla-
mente o espaço para esclarecer a sua mensagem. Este,
de fato, não consiste simplesmente em uma ideia a ser
explicada, mas em uma palavra performativa, uma lo-
cução eficaz, que justamente ao realizar o seu poder
operativo manifesta o seu significado mais profundo.
Esta de dialética luz e escuridão e a forma práti-
ca de acesso à verdade que lhe corresponde são os
elementos que caracterizam a estrutura teologal do
ato de fé. Crer é, na verdade, caminhar numa nuvem
luminosa, que mostra ao homem o caminho a percor-
rer, mas ao mesmo tempo priva-o da possibilidade de
dominá-lo com o olhar. Caminhar na fé é caminhar
como Abraão, que “partiu sem saber para onde ia”
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O SONHO DOS NOVE ANOS
(Hb 11,8); não, porém, no sentido de que partiu em
uma aventura, movendo-se ao acaso, mas no sentido
de que partiu na obediência “para um lugar que de-
veria receber como herança”. Ele não podia conhecer
de antemão a terra que lhe era prometida, porque a
sua prontidão e entrega interior realmente contribuí-
ram para que ela existisse como tal, como terra de
encontro e aliança com Deus, e não apenas como es-
paço geográfico a ser alcançado de forma material.
As palavras de Maria a João — “a seu tempo, tudo
compreenderás” — não são, então, apenas um bene-
volente incentivo materno, como aquele que as mães
dão a seus filhos quando não podem dar mais, mas
contêm, de fato, a maior claridade que pode ser ofere-
cida àqueles que devem caminhar na fé.
3.3.3. O mistério do Nome
Ao chegarmos a esse ponto da reflexão, estamos
mais aptos a interpretar outro elemento importante
da experiência onírica. Trata-se do fato que no centro
da dupla tensão entre possível e impossível e entre
conhecido e desconhecido, e também, materialmente,
no centro da narração do sonho, está o tema do Nome
misterioso do homem venerando. O denso diálogo da
seção III é, de fato, entrelaçado com perguntas que
reiteram o mesmo tema: “Quem sois vós que me or-
denais coisas impossíveis?”; “Mas quem sois vós que
assim falais?”; e, enfim: “Minha mãe diz que sem sua
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11.3 Page 103

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O SONHO DOS NOVE ANOS
licença não devo estar com gente que não conheço;
dizei-me, pois, vosso nome”. O homem venerando
diz a João para perguntar o Nome à sua mãe, mas,
na verdade, ela não lhe dirá. Ele permanece até o fim
envolto no mistério.
Já acenamos, na parte dedicada à reconstrução
do pano de fundo bíblico do sonho, que o tema do
Nome está intimamente relacionado ao episódio da
vocação de Moisés na sarça ardente (Ex 3). Essa pá-
gina constitui um dos textos centrais da revelação do
Antigo Testamento e estabelece as bases para todo o
pensamento religioso de Israel. André LaCoque pro-
pôs chamá-la de “revelação das revelações” por ser o
princípio de unidade da estrutura narrativa e prescri-
tiva que qualifica a narração do Êxodo, a célula-mãe
de toda a Escritura.66 É importante notar como o texto
bíblico articula em estreita unidade a condição de es-
cravidão do povo no Egito, a vocação de Moisés e a
revelação teofânica. A revelação do Nome de Deus a
Moisés não acontece como transmissão de uma infor-
mação a conhecer ou um dado a adquirir, mas como
manifestação de uma presença pessoal, que entende
despertar uma relação estável e gerar um processo de
libertação. Neste sentido, a revelação do Nome divino
orienta-se na direção da aliança e da missão.67 “O
Nome é ao mesmo tempo teofânico e performativo,
66 A. LaCoque. La révélation des révélations: Exode 3,14. In: P.
Ricoeur; A. LaCoque. Penser la Bible. Paris: Seuil, 1998, p. 305.
67 Com relação ao Ex 3,15, onde o Nome divino está unido ao singular
humano “tu dirás”, A. LaCoque afirma: “O maior dos paradoxos é
que aquele que tem o direito de dizer “Eu”, que é o único ‘ehjeh, tem
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O SONHO DOS NOVE ANOS
pois aqueles que o recebem não são simplesmente
introduzidos no segredo divino, mas são os destinatá-
rios de um ato de salvação”.68
O Nome, com efeito, diferentemente do conceito,
não designa meramente uma essência a ser pensada,
mas uma alteridade à qual referir-se, uma presença
a invocar, um sujeito que se propõe como verdadei-
ro interlocutor da existência. Embora envolvendo o
anúncio de uma incomparável riqueza ontológica, a
do próprio Ser que jamais pode ser adequadamente
definido, o fato que Deus se revele como um “Eu”
indica que somente através da relação pessoal com
Ele será possível ter acesso à Sua identidade, ao Mis-
tério do Ser que Ele é. A revelação do Nome pessoal
é, pois, um ato vocal que interpela o destinatário, pe-
dindo-lhe para situar-se diante de quem fala. Somente
assim é possível colher o seu significado. Essa reve-
lação é também explicitamente estabelecida como
fundamento da missão libertadora que Moisés deve
cumprir: “ʻEu sou’ envia-me junto de vós” (Ex 3,14).
Apresentando-se como um Deus pessoal, e não como
um Deus vinculado a um território, e como o Deus da
promessa, e não puramente como o Senhor da imu-
tável repetição, Yahwé poderá sustentar o caminho
do povo, a sua viagem rumo à liberdade. Ele tem,
portanto, um Nome que se torna conhecido enquanto
suscita aliança e move a história.
um nome que inclui uma segunda pessoa, um ‘tu’” (A. LaCoque.
La révélation des révélations: Exode 3,14, 315).
68 A. Bertuletti. Dio, il mistero dell’unico. p. 354.
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O SONHO DOS NOVE ANOS
Entretanto, esse Nome só será totalmente revela-
do por meio de Jesus. A chamada oração sacerdotal
de Jesus, que lemos em Jo 17, identifica a revelação
do Nome de Deus como o coração da missão cristo-
lógica (v. 6, 11, 12, 26). Nessa página, como afirma
Ratzinger, “o próprio Cristo aparece para nós quase
como a sarça ardente, da qual o nome de Deus flui
sobre os homens”.69 N’Ele, Deus se torna totalmente
invocável, pois n’Ele entrou plenamente em coexis-
tência conosco, habitando a nossa história e condu-
zindo-a ao seu êxodo definitivo. O paradoxo aqui é
que o Nome divino revelado por Jesus coincide com
o próprio Mistério da sua pessoa. Jesus, de fato, pode
atribuir a si mesmo o Nome divino — “Eu sou” —
revelado a Moisés na sarça. O Nome divino é assim
revelado em sua inimaginável profundidade trinitária,
cujo Mistério somente o evento pascal manifestará
em sua plenitude. Pela sua obediência até a morte na
cruz, Jesus é exaltado na glória e recebe um Nome
que está acima de qualquer outro nome, de modo que
diante Dele todo joelho se dobre, nos céus, na terra
e debaixo da terra. Então, somente no Nome de Je-
sus há salvação, porque na Sua história Deus realizou
plenamente a revelação do Seu próprio mistério tri-
nitário.
“Dizei-me, pois, vosso nome”: o pedido de João
não pode ser respondido simplesmente com uma fór-
mula, um nome entendido como um rótulo exterior
69 J. Ratzinger, Introduzione al cristianesimo. Lezioni sul simbolo
apostolico. Brescia: Queriniana, 1971, p. 93.
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O SONHO DOS NOVE ANOS
da pessoa. Para conhecer o Nome daquele que fala no
sonho, não basta receber uma informação, mas é pre-
ciso tomar uma posição diante da sua fala. Ou seja, é
necessário entrar em relação de intimidade e entrega
que os Evangelhos descrevem como “permanecer”
junto d’Ele. Por isso, quando os primeiros discípulos
questionam Jesus sobre sua identidade — “Mestre,
onde moras?” ou literalmente “onde permaneces?” —
ele responde: “Vinde e vede” (Jo 1, 38). Só “perma-
necendo” com ele, habitando no seu mistério, entran-
do na sua relação com o Pai, é que se pode realmente
saber Quem ele é.
O fato de o personagem do sonho não respon-
der a João com um apelativo, como nós faríamos ao
apresentar o que está escrito em nosso documento de
identidade, indica que o seu Nome não pode ser co-
nhecido como designação puramente exterior, mas só
mostra a sua verdade quando sela uma experiência de
aliança e de missão. João, portanto, conhecerá aque-
le Nome próprio atravessando a dialética do possí-
vel e do impossível, da claridade e da escuridão; ele
O conhecerá realizando a missão oratoriana que lhe
foi confiada. Ele O conhecerá, portanto, carregando-
-O dentro de si, graças a uma história vivida como
história habitada por Ele. Um dia, Cagliero testemu-
nhará sobre Dom Bosco que o seu modo de amar era
“muito terno, grande, forte, mas todo espiritual, puro,
verdadeiramente casto”, tanto que “dava uma ideia
perfeita do amor que o Salvador tinha para com os
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O SONHO DOS NOVE ANOS
meninos”.70 Isso indica que o Nome do homem ve-
nerando, cujo rosto era tão luminoso que ofuscava a
vista do sonhador, entrou realmente como um sigilo
na vida de Dom Bosco. Ele teve a experientia cordis
[experiência do coração] através do caminho da fé e
da sequela. Esta é a única forma pela qual a pergunta
do sonho podia encontrar uma resposta.
3.3.4. A mediação materna
Na incerteza sobre Aquele que o envia, o único
ponto firme ao qual João pode se apoiar no sonho é
a referência a uma mãe, ou melhor, a duas mães: a do
homem venerando e a sua própria. As respostas às suas
perguntas, de fato, soam assim: “Sou o filho daquela
que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia” e,
depois, “o meu nome, pergunta-o a minha Mãe”.
Que o espaço do esclarecimento possível seja ma-
riano e materno é, sem dúvida, algo que merece uma
reflexão. Maria é o lugar onde a humanidade perce-
be a mais alta correspondência com a luz que vem de
Deus e o espaço da criatura em que Deus entregou
ao mundo a sua Palavra que se fez carne. Também é
indicativo que, ao despertar do sonho, quem entende
melhor o seu significado e o seu alcance é Margarida,
a mãe de João. Em níveis diferentes, mas de acordo
70 Copia Publica Transumpti Processus Ordinaria, p. 1146r.
105

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O SONHO DOS NOVE ANOS
com uma analogia real, a Mãe do Senhor e a mãe de
João representam a face feminina da Igreja, que se
mostra capaz de intuição espiritual e constitui o ventre
no qual as grandes missões são geradas e dadas à luz.
Não deve surpreender, então, que as duas mães es-
tejam justapostas uma à outra e exatamente no ponto
em que se trata de chegar ao fundo da questão apre-
sentada pelo sonho, ou seja, o conhecimento d’Aque-
le que confia a João a missão de uma vida. Assim
como com o pátio perto da casa, também com a mãe,
na intuição do sonho, os espaços da experiência mais
familiar e quotidiana abrem-se e mostram uma pro-
fundidade insondável. Os gestos comuns da oração, a
saudação angélica, habitual três vezes por dia em to-
das as famílias, aparecem improvisamente por aquilo
que são: um diálogo com o Mistério. João descobre,
assim, que na escola da sua mãe ele já estabeleceu
um vínculo com a Senhora de aspecto majestoso, que
pode explicar-lhe tudo. Já existe, então, uma espécie
de via feminina que permite superar a aparente distân-
cia entre “um menino pobre e ignorante” e o homem
“nobremente vestido”. A mediação feminina, mariana
e materna acompanhará João ao longo de toda a vida
e desenvolverá nele uma disposição especial para ve-
nerar a Virgem com o título de Auxílio dos Cristãos,
tornando-se apóstolo d’Ela para os seus meninos e
para toda a Igreja.
O primeiro auxílio oferecido por Nossa Senhora
é o que uma criança naturalmente precisa: o de uma
mestra. O que ela tem a ensinar-lhe é uma disciplina
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O SONHO DOS NOVE ANOS
que torna a pessoa verdadeiramente sábia, “sem a qual
toda sabedoria se converte em estultice”. Trata-se da
disciplina da fé, que consiste em dar crédito a Deus e
obedecer mesmo diante do impossível e do obscuro.
Maria transmite-a como a mais alta expressão de li-
berdade e como a mais rica fonte de fecundidade espi-
ritual e educativa. Trazer em si o impossível de Deus
e caminhar na escuridão da fé é, de fato, a arte em que
a Virgem se sobressai acima de todas as criaturas.
Ela fez disso um árduo aprendizado em sua pe-
regrinatio fidei [peregrinação da fé], marcado não
raramente pela escuridão e incompreensão. Baste
pensar no episódio em que Jesus, aos doze anos, foi
encontrado no Templo (Lc 2,41-50). À pergunta da
mãe: “Meu filho, que nos fizeste? Eis que teu pai e
eu andávamos à tua procura, cheios de aflição”, Jesus
responde de forma surpreendente: “Por que me pro-
curáveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas
de meu Pai?”. E o evangelista observa: “Eles, porém,
não compreenderam o que ele lhes dissera”. É muito
menos provável que Maria tenha entendido quando a
sua maternidade solenemente anunciada do alto foi,
por assim dizer, expropriada dela para ser uma he-
rança comum da comunidade dos discípulos: “Todo
aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos
céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”
(Mt 12,50). Enfim, aos pés da cruz, quando a escuri-
dão se abateu sobre toda a terra, o “eis-me aqui” pro-
nunciado no momento do chamado assumiu os con-
tornos de uma renúncia extrema, de uma separação
do Filho em cujo lugar ela deveria receber os filhos
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11.10 Page 110

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O SONHO DOS NOVE ANOS
pecadores, pelos quais deixasse que seu coração fosse
trespassado pela espada.
Quando, então, a senhora de aspecto majestoso
do sonho inicia a sua tarefa de mestra e, colocando
a mão na cabeça de João, diz-lhe: “A seu tempo tudo
compreenderás”, ela tira essas palavras das entra-
nhas espirituais da fé que, aos pés da cruz, fez dela
a mãe de todos os discípulos. Sob a sua disciplina,
João deverá permanecer ao longo da vida toda: como
jovem, como seminarista, como sacerdote. De modo
especial, deverá permanecer ali quando a sua missão
assumir contornos que não podia imaginar no mo-
mento do sonho; isto é, quando deverá ser, no coração
da Igreja, o fundador de famílias religiosas destinadas
à juventude de todos os continentes. Então João, que
agora se tornou Dom Bosco, compreenderá também
o significado mais profundo do gesto com que o ho-
mem venerando lhe deu a sua mãe como “mestra”.
Quando um jovem entra numa família religiosa,
encontra para acolhê-lo o mestre de noviciado, a
quem é confiado para ser introduzido no espírito da
Ordem e ajudá-lo a assimilá-lo. Quando se trata de
um Fundador, que deve receber do Espírito Santo a
luz originária do carisma, o Senhor dispõe que a mes-
tra seja a sua mesma mãe, a Virgem de Pentecostes
e modelo imaculado da Igreja. Com efeito, somente
ela, a “cheia de graça”, compreende todos os carismas
a partir de dentro, como alguém que conhece todas as
línguas e as fala como se fossem suas.
108

12 Pages 111-120

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12.1 Page 111

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O SONHO DOS NOVE ANOS
A senhora do sonho sabe, de fato, como lhe in-
dicar, de maneira precisa e adequada, as riquezas
do carisma oratoriano. Ela não acrescenta nada às
palavras do Filho, mas ilustra-as com a cena dos ani-
mais selvagens que se tornaram mansos cordeiros e
com a indicação das qualidades que João deverá ama-
durecer para cumprir a sua missão: “humilde, forte,
robusto”. Nesses três adjetivos, que indicam o vigor
do espírito (humildade), do caráter (força) e do corpo
(robustez), há uma grande concretude. São os con-
selhos que daria a um jovem noviço quem tem uma
longa experiência no oratório e sabe o que é exigido
pelo “campo” em que se deve “trabalhar”. A tradição
espiritual salesiana conservou cuidadosamente as pa-
lavras deste sonho que se referem a Maria. As Cons-
tituições Salesianas fazem clara alusão a ela quando
dizem: “A Virgem Maria indicou a Dom Bosco seu
campo de ação entre os jovens”,71 ou recordam que
“guiado por Maria que lhe foi Mestra, Dom Bosco vi-
veu, no encontro com os jovens do primeiro Oratório,
uma experiência espiritual e educativa a que chamou
Sistema Preventivo”.72
Dom Bosco reconheceu em Maria um papel de-
cisivo em seu sistema educativo, vendo em sua ma-
ternidade a mais elevada inspiração do que significa
“prevenir”. O fato de Maria intervir, desde o primeiro
momento da sua vocação carismática e desempenhar
um papel tão central neste sonho, fará com que Dom
71 Const. art. 8.
72 Const. art. 20.
109

12.2 Page 112

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Bosco perceba para sempre que ela pertence às raí-
zes do carisma e que, onde esse papel inspirador não
for reconhecido, o carisma não será compreendido
em sua genuinidade. Dada como Mestra a João nes-
te sonho, ela também deverá sê-lo para todos os que
compartilham a sua vocação e a sua missão. Como
os sucessores de Dom Bosco jamais se cansaram de
afirmar, “sem o concurso materno e ininterrupto de
Maria, a Vocação Salesiana é inexplicável no seu nas-
cimento, no seu desenvolvimento, e sempre”.73
3.3.5. A força da mansidão
“Não é com pancadas, mas com a mansidão e a ca-
ridade que deverás ganhar esses teus amigos”. Essas
palavras são, sem dúvida, a expressão mais conhecida
do sonho dos nove anos, aquela que, de alguma for-
ma, resume a sua mensagem e transmite a sua inspira-
ção. São também as primeiras palavras que o homem
venerando diz a João, interrompendo seus esforços
violentos para pôr fim à desordem e à blasfêmia dos
seus companheiros. Não é apenas uma fórmula que
transmite uma sentença sapiencial sempre válida,
73 E. Viganò. Maria renova a Família Salesiana de Dom Bosco, ACG
p. 289 (1978). Para uma recepção crítica da devoção mariana na
história das Constituições Salesianas, cf. A. Van Luyn. Maria nel
carisma della “Società di San Francesco di Sales”. In: Aa.Vv., La
Madonna nella “Regola” della Famiglia Salesiana. Roma: LAS, 1987,
p. 15-87.
110

12.3 Page 113

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O SONHO DOS NOVE ANOS
mas uma expressão que especifica o modo de execu-
tar uma ordem (“mandou que me pusesse à frente da-
queles meninos, acrescentando estas palavras”) com
que, como se disse, é redirecionado o movimento
intencional da consciência do sonhador. O ardor das
pancadas deve transformar-se em arrojo de caridade,
a energia transtornada de uma intervenção repressiva
deve dar lugar à mansidão.
O termo “mansidão” passa a ter aqui um peso con-
siderável, o que é ainda mais impressionante quan-
do se considera que o adjetivo correspondente será
usado no final do sonho para descrever os cordeiros
que faziam festa ao redor do Senhor e de Maria. O
cotejo sugere uma observação que não parece sem re-
levância: para que aqueles que eram animais ferozes
se tornem “mansos” cordeiros é preciso que, antes
de tudo, o seu educador seja manso. Ambos, embo-
ra de pontos de partida diferentes, devem passar por
uma metamorfose para entrar na órbita cristológica
da mansidão e da caridade. Para um grupo de meni-
nos agitados e briguentos, é fácil entender o que essa
mudança exige. Para um educador, talvez isso seja
menos evidente. Ele, de fato, já se coloca na vertente
da bondade, dos valores positivos, da ordem e da dis-
ciplina: que mudança pode ser exigida dele?
Surge aqui um tema que terá um desenvolvimento
decisivo na vida de Dom Bosco, antes de tudo em ní-
vel de estilo de ação e, em certa medida, também em
nível de reflexão teórica. Trata-se da orientação que
leva Dom Bosco a excluir categoricamente um siste-
111

12.4 Page 114

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O SONHO DOS NOVE ANOS
ma educativo baseado na repressão e no castigo, para
escolher com convicção um método que se baseia in-
teiramente na caridade e que Dom Bosco chamará de
“Sistema Preventivo”. Além das diversas implicações
pedagógicas que derivam dessa escolha, para as quais
remetemos à rica bibliografia específica, interessa
destacar aqui a dimensão teológico-espiritual que
subjaz a essa orientação, da qual as palavras do sonho
constituem, de alguma forma, a intuição e o gatilho.
Colocando-se do lado do bem e da “lei”, o educa-
dor pode ser tentado a definir a sua ação com os me-
ninos de acordo com uma lógica que tenha em mira
a ordem e a disciplina essencialmente por meio de
regras e normas. No entanto, até mesmo a lei carrega
em si uma ambiguidade que a torna insuficiente para
orientar a liberdade, não apenas por causa dos limites
que toda regra humana tem em si, mas por causa de
um limite que é, em última análise, de ordem teolo-
gal. Toda a reflexão paulina é uma grande meditação
sobre este tema, pois Paulo havia percebido, em sua
experiência pessoal, que a lei não o havia impedido
de ser “blasfemo, perseguidor e violento” (1Tm 1,13).
A própria Lei dada por Deus, ensina a Escritura, não
é suficiente para salvar o homem, a menos que haja
outro Princípio pessoal que a integre e internalize no
coração humano. Paul Beauchamp resume oportuna-
mente essa dinâmica quando afirma: “A Lei é pre-
cedida por um És amado e seguida por um Amarás.
És amado: o fundamento da Lei, e Amarás: a sua
112

12.5 Page 115

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O SONHO DOS NOVE ANOS
superação”.74 Sem esse fundamento e essa superação,
a lei carrega em si os sinais de uma violência que re-
vela a própria inadequação para gerar o bem que ela
também exige cumprir. Voltando à cena do sonho, os
socos e as pancadas que João dá em nome do sacros-
santo mandamento de Deus, que proíbe a blasfêmia,
revelam a insuficiência e a ambiguidade de todo arro-
jo moralizador que não seja interiormente reformado
desde o alto.
É necessário, então, que João e os demais que
aprenderão com ele a espiritualidade preventiva se
convertam a uma lógica educativa sem precedentes,
que vai além do regime da lei. Esta lógica só é possí-
vel graças ao Espírito do Ressuscitado, derramado em
nossos corações. Somente o Espírito permite passar
da justiça formal e exterior (seja a clássica da “disci-
plina” e da “boa conduta”, seja a moderna dos “proce-
dimentos” e dos “objetivos alcançados”) à verdadeira
santidade interior, que realiza o bem por ser atraída
e conquistada interiormente. Dom Bosco demonstrou
ter essa consciência quando, em seus escritos sobre
o Sistema Preventivo, declarou claramente que tudo
se baseava nas palavras de São Paulo: “Charitas
benigna est, patiens est; omnia suffert, omnia sperat,
omnia sustinet.
Só a caridade teologal, que nos torna participantes
da vida de Deus, é capaz de imprimir na obra edu-
cativa o traço que realiza a sua singular qualidade
74 P. Beauchamp. La legge di Dio. Casale Monferrato: Piemme, 2000,
p. 116.
113

12.6 Page 116

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O SONHO DOS NOVE ANOS
evangélica. Não é por acaso que o Novo Testamento
identifica a mansidão e a doçura como os traços dis-
tintivos da “sabedoria que vem do alto”: ela é “pri-
meiramente pura, depois pacífica, condescendente,
conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos,
sem parcialidade, nem fingimento” (Tg 3,17). Por
isso, para aqueles que a praticam, fazendo obra de
paz, “é semeado um fruto de justiça” (cf. Tg 3,18).
A “mansidão” ou, na linguagem salesiana, a “amo-
revolezza-bondade” que caracteriza essa sabedoria é
o sinal qualificador do coração que passou por uma
verdadeira transformação pascal, deixando-se despo-
jar de toda forma de violência.
“Não é com pancadas”: a força deste imperativo
inicial, ao qual talvez tenhamos feito ouvidos moucos
para compreender o seu caráter injuntivo, destaca-se
como um eco das palavras mais fortes do Evangelho:
“Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau” (Mt 5,39)
ou “Embainha tua espada” (Mt 26,52; cf. Jo 18,11).
Refere-se a um dos traços que qualificam a novida-
de sem precedentes do evento cristão, que é a forma
absoluta da sua pretensão de verdade expressa exclu-
sivamente na forma de ágape, ou seja, na entrega de
si mesmo pela vida do outro. A partir das palavras ini-
ciais do sonho, chegamos ao cerne da revelação cristã,
onde se trata da autêntica Face de Deus e da conversão
que isso envolve. O “estilo” da educação cristã, a sua
capacidade de gerar práticas e atitudes verdadeiramen-
te enraizadas no evento cristológico, é desempenhado
precisamente na correspondência com aquela Face.
114

12.7 Page 117

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O SONHO DOS NOVE ANOS
A gramática religiosa por si só não é capaz de
honrá-lo. O evento de Jesus mostra claramente que,
mesmo dentro dessa gramática, com seus códigos e
rituais, suas regras e instituições, pode enraizar-se
alguma coisa que não vem de Deus e que, de fato,
resiste e se opõe a Ele. O evento cristológico vem pre-
cisamente para explodir essas contradições internas
na prática do sagrado, à medida que os filhos de Adão
o transmitem a seus filhos, adaptando-o a seus pa-
drões de justiça e punição; prontos, em nome da Lei,
para apedrejar a adúltera e crucificar o Santo de Deus.
Diante dessa forma distorcida de entender a reli-
gião, Jesus veio inaugurar outro Reino, do qual ele é
o Senhor e cuja entrada messiânica em Jerusalém re-
vela emblematicamente a lógica. Entrando na Cidade
Santa no lombo de um jumento, Jesus apresenta-se
como o rei-messias que não conquista os homens com
armas e exércitos, mas apenas com a força suave da
verdade e do amor. O dom da sua vida, que ele fará na
cidade de Davi, é a única maneira pela qual o Reino
de Deus pode vir ao mundo. A sua mansidão como
Cordeiro Pascal é o único poder com o qual o Pai
deseja conquistar o nosso coração, mostrando a cre-
dibilidade da relação e a integridade da contrapartida.
“Não é com pancadas, mas com a mansidão e a
caridade que deverás ganhar esses teus amigos”.
Ler essas palavras com o pano de fundo da revela-
ção do Evangelho é reconhecer que, por meio delas,
um movimento interior é transmitido a João que, em
sua genuinidade incontaminada, só pode surgir do
115

12.8 Page 118

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O SONHO DOS NOVE ANOS
Coração de Cristo.75 “Não é com pancadas, mas com
a mansidão” é a tradução educativa do estilo “perso-
nalíssimo” de Jesus.
Naturalmente, “ganhar” os jovens dessa forma é
uma tarefa muito exigente. Implica não ceder à frieza
de uma educação baseada apenas em regras, nem à
bondade de uma proposta que renuncia a denunciar a
“fealdade do pecado” e apresentar a “preciosidade da
virtude”. Conquistar o bem simplesmente mostrando
o poder da verdade e do amor, testemunhado pela de-
dicação “até o último respiro”, é a figura do método
educativo que é, ao mesmo tempo, uma verdadeira e
própria espiritualidade.
Não é de se admirar que João resista, no sonho,
a entrar nesse movimento e peça uma compreensão
clara de Quem o está transmitindo. Quando, porém,
ele tiver entendido, fazendo dessa mensagem primei-
ro uma instituição oratoriana e depois também uma
família religiosa, pensará que narrar o sonho em que
aprendeu essa lição será a maneira mais bela de com-
partilhar com os seus filhos o significado mais autên-
tico da sua experiência. Foi Deus quem guiou todas
as coisas, foi Ele mesmo quem produziu o movimento
inicial do que viria a ser o carisma salesiano.
75 Por isso o artigo 11 das Constituições estabelece que “o espírito sa-
lesiano encontra seu modelo e fonte no próprio coração de Cristo,
apóstolo do Pai”, explicitando que ele se revela na atitude do “bom
Pastor que conquista com a mansidão e o dom de si”.
116

12.9 Page 119

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12.10 Page 120

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Em 2024 ocorre – com certo grau de aproximação – o bicente-
nário do “sonho dos noves anos” de Dom Bosco. Essa recorrên-
cia remete a um dos acontecimentos que Dom Bosco considerou
dentre os mais relevantes na sua experiência pessoal e o mais de-
terminante para sua missão. Os filhos e as filhas de Dom Bosco
sempre consideraram essa narração como uma página “sagrada”,
repleta de sugestões carismáticas e de força inspiradora. Este en-
saio já foi publicado pela editora LAS em 2017 no contexto de
uma volumosa pesquisa sobre os sonhos de Dom Bosco, à qual
remeto o leitor desejoso de maior aprofundamento. O bicente-
nário parece uma ocasião oportuna por torná-lo disponível ao
grande público, também nesta forma independente, mais acessí-
vel e mais leve.
ANDREA BOZZOLO, salesiano presbítero, é doutor em Letras
Clássicas e em Sagrada Teologia. Leciona Teologia Dogmática na
Universidade Pontifícia Salesiana de Roma, da qual, desde 2021, é
também Reitor. Participou como perito do Sínodo sobre os jovens.
É professor convidado no Instituto João Paulo II. Entre suas publi-
cações da LAS, recordamos Il rito di Gesù. Temi di teologia sacra-
mentaria (2013) e La cultura affettiva. Cambiamenti e sfide (2022).
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